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REVOLUÇÃO PASSIVA
ALVARO BIANCHI 24 FEV 2018
2ª parte de dicionário com alguns dos conceitos de Antonio Gramsci elaborado a partir
de curso sobre o pensamento do comunista italiano.
Cena do filme "Os dias do cárcere", 1977, do diretor Uno del Fra, que retrata a vida do
marxista italiano Antonio Gramsci.
CENA DO FILME "OS DIAS DO CÁRCERE", 1977, DO DIRETOR UNO DEL FRA,
QUE RETRATA A VIDA DO MARXISTA ITALIANO ANTONIO GRAMSCI.
Gramsci começa sua reflexão sobre a hegemonia nos Quaderni del carcere logo no
Primo quaderno, num sugestivo parágrafo intitulado “Direção política de classe antes e
depois de chegar ao governo”.1 É um parágrafo destinado a discutir as forças políticas
presentes no Risorgimento italiano, o processo de unificação da península e a
construção de um moderno Estado nacional. Esse processe se estendeu de 1848 a 1871 e
teve a peculiaridade de ter sido dirigido por uma força estatal, o Piemonte. Gramsci
discutiu nesse texto a hegemonia exercida no Risorgimento pelo partido dos moderados
do Piemonte, liderado pelo conde de Cavour e pelo rei Vittorio Emanuele II, bem como
o papel subalterno do Partito d’Azione, de Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.
Gramsci anunciou ai um importante critério histórico político, o qual deveria guiar a
pesquisa:
Para evitar dois usos distintos da palavra “dominante” e tornar o texto mais preciso,
Gramsci introduziu uma pequena mas importante modificação na segunda versão desta
nota, inscrita no Quaderno 19, dedicado integralmente ao Risorgimento: “a supremacia
de um grupo se manifesta em dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e
moral’”.3
O sentido convergente dessas várias fórmulas pode ser apreendido em uma importante
mudança que Gramsci efetuou naquele § 44 do primo quaderno. Na primeira versão
escreveu: “De que forma os moderados conseguiram estabelecer o aparelho de sua
direção política?”.17 Na segunda versão, alterou substancialmente o texto e embora não
tenha modificado o sentido tornou-o mais preciso: “De que forma e por quais meios os
moderados conseguiram estabelecer o aparelho (o mecanismo) de sua hegemonia
intelectual, moral e política”.18 “Direção política” era, aqui, sinônimo de “hegemonia
intelectual, moral e política”.
Como dito, é sempre da política que Gramsci está falando quando usa a noção de
hegemonia. Mas a política era entendida de modo amplo, como “a característica de todo
fato social enquanto fato social, Em termos filosóficos: a política não é uma
superestrutura, mas a ontologia do social”.19 Nesse sentido, a política é aquilo que
permite a própria existência do social em suas múltiplas dimensões, inclusive aquela
econômica, enquanto existirem as distinções de classe.
“Se classe dominante perdeu o consenso, isto é, não é mais ‘dirigente’, mas unicamente
‘dominante’ detentora de pura força coercitiva, isto significa precisamente que as
grandes massas se separaram [afastaram] das ideologias tradicionais, não acreditam
mais naquilo que antes acreditavam, etc. A crise consiste precisamente no fato de que o
velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos
mórbidos mais variados”.23
O parágrafo é extremamente sugestivo e valioso para o estudo das crises políticas. Estas
assumem a forma de uma crise de autoridade, mas o que as caracteriza é a crise de
hegemonia, o esgarçamento da capacidade dirigente dos grupos sociais e dos partidos
tradicionais.
Uma compreensão adequada do Estado permitiria formular uma estratégia adequada “ao
período do pós-guerra”, no qual ocorreu uma “concentração inaudita de hegemonia”.
Nesta “fase culminante da situação político-histórica” a guerra de posição torna-se
decisiva:
“A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que se quere a menos que se
tenha imediatamente uma superioridade esmagadora sobre o inimigo; sabe-se quantas
perdas custou a obstinação dos Estados-Maiores em não quererem reconhecer que a
guerra de posição era ‘imposta’ pela relação geral das forças em choque”.29
“No oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no ocidente,
havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e ao oscilar o Estado
podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado
era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de
fortalezas e casamatas”.30
Revolução passiva
Gramsci introduz a noção de revolução passiva naquele importante § 44 do Primo
quaderno, já citado aqui várias vezes. Como visto, trata-se de uma nota dedicada à
análise do particular processo de formação do Estado nacional italiano, o Risorgimento,
dirigido pelos moderados do Piemonte. Nessa nota, refere-se ao Risorgimento como
“uma revolução sem revolução”, acrescentando à margem, posteriormente, “revolução
passiva, segundo a expressão de V. Cuoco”.31 A fórmula havia sido utilizada em 1801
por Vincenzo Cuoco a respeito da revolução napolitana de 1799: “sendo a revolução
passiva, a máxima parte da nação deve supor-se indiferente e inerte”.32 Cuoco
comparava a revolução napolitana, passiva, com as revoluções ativas, em particular
aquela que havia ocorrido dez anos antes na França. A comparação foia retomada várias
vezes por Gramsci, o qual considerava o processo de “formação dos Estados modernos
na Europa como ‘reação – superação nacional’ da Revolução francesa e do
napoleonismo”, acrescentando mais uma à margem a expressão “revolução passiva”
(.33 Na segunda versão do § 44 a referencia a Cuoco era inserida no próprio texto e a
menção à França e aos jacobinos tornava-se mais clara:
“Da política dos moderados aparece claro que se pode e se deve exercer uma atividade
hegemônica mesmo antes da chegada ao poder e que não é necessário contar apenas
com a força material que o poder dá para exercitar uma direção eficaz: precisamente a
brilhante solução deste problema tornou possível o Risorgimento, na forma e nos limites
nos quais ele se efetivou, sem ‘Terror’, como ‘revolução sem revolução’, ou seja, como
‘revolução passiva’ para empregar uma expressão de Cuoco com um sentido um pouco
diferente daquele que Cuoco quer dizer”.34
Era o caráter gradual e ao mesmo tempo autolimitado desse processo o que permitia
recorrer à noção de revolução passiva como chave explicativa. Mas chama a atenção,
nesse caso, que Gramsci não recorreu à fórmula revolução-restauração. Por outro lado,
promove neste parágrafo aqui discutido uma significativa aproximação entre as noções
de revolução passiva e guerra de posição:
“Esta concepção [de revolução passiva] poderia ser avizinhada daquela que em politica
se pode chamar de ‘guerra de posição’, em oposição à guerra de movimento. Assim no
ciclo histórico precedente a Revolução francesa teria sido a ‘guerra de movimento’ e a
época liberal do século XIX uma longa guerra de posição”.42
Epílogo
O objetivo deste artigo e daquele que o precedeu, publicado no número anterior da
revista Movimento é pedagógico. Trata-se de uma apresentação sumária de alguns dos
conceitos fundamentais do pensamento político gramsciano. Evitou-se aqui expor as
polêmicas que cercam a interpretação desses conceitos ou mesmo o considerável
volume de estudos que têm contribuído para o esclarecimento de alguns importantes
núcleos do pensamento gramsciano. Apesar dos limites que a própria forma de
exposição carrega pode-se perceber a força desses conceitos para o delineamento de
uma estratégia revolucionária para o século XXI.
Notas
2 Q 1, § 44, p. 41.
4 Q 1, § 44, p. 41.
6 Q 1, § 44, p. 50.
7 Q 1, § 44, p. 53 e 54.
8 Q 1, § 44, p. 41.
9 Q 1, § 46, p. 56.
11 Q 6, § 85, p. 759.
12 Q 7, § 71, p. 908.
13 Q 4, § 38, p. 480.
14 Q 6, § 24, p. 703.
15 Q 6, § 118, 789.
17 Q 1, § 44, p. 41.
19 FROSINI, Fabio. La religione dell’uomo moderno: politica e verità nei Quaderni del
carcere di Antonio Gramsci. Roma: Carocci, 2010, p. 85.
21 Q 1, § 44, p. 41.
22 Q 1, § 48, p. 59.
23 Q 3, § 34, p. 311.
25 Q 1, § 134, p. 122.
26 Q 1, § 134, p. 122.
27 Q 6 § 155, p. 810-811.
28 Q 6, § 138, 802.
30 Q 7, § 16, p. 866.
31 Q 1, § 44, p. 41.
32 CUOCO, Vincenzo. Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli. Milano: Rizolli, 1999
[1801, p. 210.
33 Q 1, § 150, p. 133.
35 Q 1, § 150, p. 133.
36 Q 4, § 57, p. 504.
37 Q 8, § 25, p. 957.
38 Q 8, § 39, p. 966.
39 Q 8, § 236, p. 1089.
40 Q 8, § 236, p. 1089.
41 Q 10/I, § 9, 1128.
42 Q 8, § 236, p. 1089.
https://movimentorevista.com.br/2018/02/o-lexico-de-gramsci-hegemonia-guerra-de-
posicao-e-revolucao-passiva-bianchi-dicionario/