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oz E PALAVRA — MUSICA E ATO iilvia Adriana Davini O que éa voz? Onde ela se dé quando falo? E quando canto? Essas ques- des, aparentemente tao simples, tornam-se surpreendentemente complexas 1a hora mesma em que tentamos respondé-las. A produgio da voz ¢ da pala- ‘ra em performance vem sendo explorada hé séculos no campo das técnicas ‘ocais para o canto. Porém, no campo da formagio do ator, o treinamento ocal configura-se formalmente como area somente na virada do século XIX yara o XX, na Inglaterra. No entanto, 0 desenvolvimento conceitual em tor- yo do tema, em ambos os casos, continua incipiente. No campo das técnicas vocais para o canto, um dos sintomas dessa pou- sa sistematizacao € a falta de conexao entre o fendmeno do qual se fala e 9s varios nomes que lhe sao dados. O caso dos “tegistros” oferece um bom sxemplo para ilustrar essa situagao. Chamamos de registros as regiGes grave, média e aguda de uma voz. Chamamos igualmente de registros as categorias da voz quanto ao seu desempenho, as quais s40 chamadas também “tessitu- ras”. Assim, qualificamos as vozes femininas como sopranos, mezzo-sopra- nos € contraltos, ¢ as masculinas como tenores, barftonos ¢ baixos, catego- rias estas que, por sua vez, envolvem infinitas subclassificagdes. No entanto, como e de que forma se classificam as vozes, 0 que cada pessoa entende por soprano spinto ou coloratura também podem se tornar matéria de especu- lagdo. Finalmente, identificamos ainda como registros as categorias que de- finem a voz infantil, a adulta, a voz feminina e a masculina. Semelhante inconsisténcia torna improvavel a produgéo de um discurso preciso sobre qualquer assunto, particularmente se nosso desejo é considerar a voz. em sua fluidez como objeto. Assim, definir ou redefinir cada termo € uma priorida- de no sentido de atingir alguma consisténcia conceitual no campo do trei- namento vocal para a cena. ‘A abordagem do canto e da palavra em suas diversas manifestagGes, co- mo fendmeno cultural e estético, leva-nos a retomar nossas perguntas ini- ciais. Comecaremos entio por revisar 0 que se entende por voz no campo da formacio de cantores e atores. Focaremos nossa andlise nas definigdes de voz formuladas nas publicagdes de Johan Sundberg, Kristin Linklater e Ci- cely Berry, autores cujo trabalho como mestres de canto e preparadores vo- 307 — cais de atores é referéncia internacional! As posig6es que eles sustentam a respeito da voz, do canto e da fala servirao de ponto de partida para nossa propria argumentacao. | Essas considerag6es nos permitirao explicitar o que identificamos como a “abordagem instrumental” da voz, dominante no canto e na atuagao. Na tentativa de superar a abordagem instrumental, argumentaremos em favor | de nossa prépria definigao de voz como produgao do corpo, capaz de gerar significados complexos controlaveis em cena, na certeza de que um perfil es- tético produtivo se nutre inequivocamente de um desenvolvimento concei- tual consistente. A ABORDAGEM INSTRUMENTAL Johan Sundberg observa que “parece que sabemos exatamente 0 que queremos dizer com a palavra voz até 0 momento em que tentamos defini- la? (Sundberg, 1987:2). Ele evita deliberadamente a terminologia das escolas tradicionais de canto, por consideré-la ineficaz, ¢ recorre sistematicamente & da fisica acistica e da engenharia eletrdnica. As diferentes estruturas fisiolégi- cas ativadas quando a voz é produzida sao chamadas por Sundberg de érgio vocal; isto inclui o sistema respiratério, por ele denominado “compressor”: as pregas vocais, que identifica como “osciladores”, € as cavidades dsseas ¢ carti- laginosas, como “ressonadores”. Nesse contexto, Sundberg define voz como: Os sons gerados pelo drgio vocal, incluindo as pregas vocais vibratérias; ou, mais precisamente, por uma coluna de at originada nos pulmées, modificada em prime ro lugar pelas pregas vocais vibrarérias e, depois, pelo resto da laringe,faringe, boca e, as vezes, também, cavidades nasais. Assim, voz se torna sindnimo de som vocal. 0 timbre vocal (o som caracteristico da vor) é determinado em parte pela forma como 0 6rgio vocal estd sendo usado e, em parte, pela morfologia do érgio vocal? (Sund- berg, 1987:3) | A tigorosa depuragéo terminoldgica que Sundberg implementa em seu _ trabalho parece nao superar a elusividade conceitual a respeito da voz, a0 concluir, de forma redundante, que voz ¢ “sinénimo de som vocal”. J Com relacao & palavra, Sundberg declara que um érgio vocal gera uma gtande variedade de sons vocais, alguns deles sons falados que, quando at- _ ranjados numa seqiiéncia adequada, produzem fala. Assim, Sundberg define fala como um cédigo actistico para comunicagio inter-humana, No canto, _ ele acrescenta, existem ambos: sons da fala mais ou menos modificados em timbres e alturas (Sundberg, 1987:1). | A produao de um som falado é determinada por um ntimero de fato- tes significativos na hora de definir 0 registro ¢ o timbre de uma vor. Um deles é a prontincia ou os habitos de fala, que determinam as especificidades do som, variando de acordo com as origens social e geografica dos individuos; outro, as caracteristicas, mecanicas e/ou morfoldgicas de cada drgao vocal (Sundberg, 1987:13). Sundberg considera a voz como sinal acistico ¢ a fala como cédigo co- municativo, reforgando a idéia da voz como um instrumento para comu- nicar cédigos da fala. Segundo ele, um ator usa 0 érgao vocal para produzir som vocal e fala; um cantor o utiliza como um instrumento musical (Sund- berg, 1987:1, grifos meus). ‘A nocio da voz como instrumento é clara aqui, inclusive na escolha dos verbos, Contudo, essa nocao € desestabilizada quando, no Capitulo 7, perto do final do livro A ciéncia da voz cantada, ap6s desenvolver exaustivamente a idéia da voz como “instrumento”, Sundberg reconhece que 0 desempenho da glote, definida por ele como “oscilador humano”, é afetado pelas emo- oes (Sundberg, 1987:87). Esta constatagao de Sundberg € suficiente para expor os limites de sua visio instrumental da voz, j4 que as emoges afetam aos instrumentistas, nao aos instrumentos. No mesmo sentido, caberia questionar: se a voz € um instrumento, onde esté o instrumentista? De fato, a voz remete ao corpo que a produz, lugar do sujeito. Quanto 4 palavra, defini-la como cédigo co- municacional significa, no minimo, restringir drasticamente seu universo. O estilo descritivo ¢ analitico de Sundberg, abundante em enumera- goes, € um bom exemplo do quanto um repertério terminoldgico traz com ele ecos da op¢io discursiva onde se gerou, a qual, por sua vez, se define a partir de uma esfera conceitual determinada. Assim, a obra de Sundberg é prova também dos limites da transferéncia direta de pensamento de uma {rea de conhecimento para outra, tao habitual no universo da formagao vo- cal para a cena; ¢ da necessidade de produzir um discurso que parta da con- sideragao da voz ¢ da palavra em performance. Kristin Linklater define voz “primeiro como um instrumento humano, e depois como instrumento humano do ator”. Mais tarde, ela afirma que, no caso da pessoa, a voz corresponde a um 6rgao fisico e, no caso do ator, a um snstrumento. Assim, segundo Linklater, se no dia-a-dia a vor expoe a pes- soa, a voz como instrumento tenderia a funcionar, paradoxalmente, como uma tela cuja fungao seria a de ocultar a pessoa. Com relacao a isto, Linkla- 309

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