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DOUTRINA

ARTIGOS

A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de


recursos provenientes de transferências voluntárias
Luciano Medeiros de Andrade Bicalho
Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor de Direito Administrativo do Instituto
Brasiliense de Direito Público. Instrutor da Escola Superior da Advocacia-Geral da União. Membro do Conselho Editorial da revista
Debates em Direito Público. Ex-Consultor Jurídico substituto do Ministério das Cidades. Ex-Consultor Jurídico da União no Estado de
Minas Gerais. Ex-Coordenador substituto da Escola da Advocacia-Geral da União em Minas Gerais. Coordenador-Geral de Pessoal,
Contratos, Licitações e Convênios da Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Membro da Comissão Nacional de
Elaboração e Atualização dos modelos de editais de licitação da Advocacia-Geral da União. Advogado da União.

distribuição dos recursos do Fundo de Participa­


Resumo: As transferências voluntárias de recursos são condicio­
nadas à comprovação pelo beneficiário do cumprimento dos ção dos Estados (art. 159, I, a, da Constituição),
requisitos previstos no art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal. seja por deter­minação de lei, a exemplo da trans­
Os Estados e Municípios brasileiros, contudo, têm questionado
perante o Supremo Tribunal Federal a validade do dispositivo.
ferência de recursos do Fundo Penitenciário
Em inúmeras ações, a suprema corte suspendeu cautelarmente Nacional – FUNPEN (art. 3º-A da Lei Complementar
a exigência; entretanto, no mérito, não se vislumbra, ainda, nº 79, de 1994).
como irá decidir o tribunal. O presente trabalho tem por objetivo
apresentar os fundamentos teóricos das exigências previstas no Além das transferências obrigatórias, os entes
art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal, assim como demons­ federativos possuem a discricionariedade para
trar a sua importância para a boa gestão dos recursos públicos.
efetuar voluntariamente transferências de recursos
Palavras-chave: Exigências para recebimento dos recursos. Ina­ uns para os outros. É a chamada transferência
dimplência. Lei de Responsabilidade Fiscal. Responsabilidade do
ente federativo. Transferências voluntárias de recursos. voluntária, definida pela Lei de Responsabilidade
Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 2001, como
Sumário: 1 Introdução: a insurreição de Estados e Municípios
contra as exigências para recebimento de transferências volun­ “a entrega de recursos correntes ou de capital a
tárias – 2 A Lei de Responsabilidade Fiscal: substrato histórico outro ente da Federação, a título de cooperação,
– 3 Coercibilidade: o elemento que garante eficácia à lei –
4 Sanções institucionais versus sanções pessoais – 5 O princípio
auxílio ou assistência financeira, que não decorra
da intranscendência da pena – 6 O controle na gestão fiscal: de determinação constitucional, legal ou os desti­
criação de novos mecanismos – 7 Conclusão: o pacto federativo nados ao Sistema Único de Saúde”.
– Referências
A transferência é discricionária; entretanto,
somente podem receber recursos de transferên­
cias voluntárias as entidades que atendam ao rol
1 Introdução: a insurreição de Estados
de exigências previsto na Lei de Responsabilidade
e Municípios contra as exigências para Fiscal, em especial em seu art. 25:
recebimento de transferências
voluntárias Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar,
A Constituição Brasileira de 1988, em conso­ entende-se por transferência voluntária a entrega
de recursos correntes ou de capital a outro ente
nância com o modelo de federalismo de coopera­
da Federação, a título de cooperação, auxí­ lio ou
ção adotado, estabelece mecanismos de atuação
assistência financeira, que não de corra de deter­
conjunta dos entes federados, destacando-se, pela minação constitucional, legal ou os destinados ao
sua importância, as transferências voluntárias de Sistema Único de Saúde.
recursos financeiros. §1º São exigências para a realização de transfe­
Algumas transferências são obrigatórias, rência voluntária, além das estabelecidas na lei de
seja por imposição da Constituição, a exemplo da diretrizes orçamentárias:

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I – existência de dotação específica; Em diversos precedentes análogos, a Corte já


II – (VETADO) se manifestou pela concessão da liminar para
III – observância do disposto no inciso X do art. 167 afastar a inscrição do Estado no SIAFI/CADIN, sob
da Constituição; o argumento de que a inviabilidade de formalizar
acordos e convênios, bem como receber repasses
IV – comprovação, por parte do beneficiário, de:
de verbas, pode gerar prejuízos ainda maiores (inclu­
a) que se acha em dia quanto ao pagamento de
sive com a paralisação de serviços essenciais) do
tri­butos, empréstimos e financiamentos de­vi­dos ao
que a ausência da inscrição do Estado, suposta­
ente transferidor, bem como quanto à prestação de
mente devedor, nesses bancos de dados. Nesse
contas de recursos anterior­mente dele recebidos; sentido, os seguintes precedentes: AC n. 39 (MC),
b) cumprimento dos limites constitucionais rela­ti­vos Rel. Min. Ellen GrAC, monocrática, DJ 11.07.03; AC
à educação e à saúde; n. 223 (MC), Rel. Min. Gilmar Mendes, monocrática,
c) observância dos limites das dívidas consolidada DJ 23.04.04; AC n. 266 (MC), Rel. Min. Celso de
e mobiliária, de operações de crédito, inclusive por Mello, monocrática, DJ 31.05.04; AC n. 259 (MC),
antecipação de receita, de inscrição em Restos a Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, unânime, DJ
Pagar e de despesa total com pessoal; 03.12.04; AC n. 659 (MC), Rel. Min. Carlos Britto,
d) previsão orçamentária de contrapartida. Plenário, unânime, julg. 12.06.06. Assim sendo,
§2º É vedada a utilização de recursos transferidos por entender presentes os requisitos legais, defiro
em finalidade diversa da pactuada. a liminar para determinar a suspensão da inscri­ção
do Requerente no SIAFI, sem prejuízo de melhor
§3º Para fins da aplicação das sanções de suspen-
exa­me da matéria quando do julgamento do mérito.
são de transferências voluntárias constantes desta
(DJ de 30.6.2006)
Lei Complementar, excetuam-se aquelas relativas a
ações de educação, saúde e assistência social.
No mérito, o Supremo Tribunal Federal tem
Os Estados e Municípios, contudo, têm se sinalizado para a impossibilidade de supressão
insurgido contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, do devido processo legal, garantindo-se, assim,
questionando perante o Supremo Tribunal Federal que qualquer restrição somente será imposta após
a validade das exigências previstas em seu art. 25. a instauração do devido processo legal em que
Uma das alegações mais corriqueiras para a sejam garantidos ao ente federativo inadimplente
invalidade da norma seria o desrespeito ao prin­ o contraditório e a ampla defesa. Nesse sentido,
cípio da intranscendência da pena, na medida em transcreve-se excerto da Medida Cautelar deferida
que o ente federativo seria responsabilizado por pelo Ministro Celso de Mello na Ação Cível Origi­
irregularidade praticada pelo gestor público. Na nária nº 2.661/AL:
Ação Cível Originária nº 2.733/AC, por exemplo, o
A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo
Estado do Acre alega “ofensa ao princípio da intrans­ Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se
cendência das medidas restritivas de direitos, pois realize no âmbito estritamente administrativo (como
o Estado e a população não poderiam ser pena­ sucede com a inclusão de supostos devedores em
lizados”, porque “a responsabilidade seria apenas cadastros públicos de inadimplentes), supõe, para
do agente público causador do dano ao Erário”. Ou legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito,
seja, alega-se que eventual penalidade deve ser pelo Poder Público, da garantia indisponível do “due
aplicada exclusivamente às pessoas naturais res­ process of law”, assegurada, pela Constituição da
ponsáveis pela irregularidade. República (art. 5º, LIV), à generalidade das pes­soas,
inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito
Na Ação Cautelar nº 3.775/DF, o Estado do
público, eis que o Estado, em tema de limitação
Amapá, por sua vez, alegou que as exigências ou supressão de direitos, não pode exercer a sua
afrontam o princípio da programação orçamentá­ autoridade de maneira abusiva e arbitrária.
ria, uma vez que “os recursos os quais pretende
a União ver bloqueados estão insertos no PPA, na Conforme destacou o Ministro Luiz Fux no jul­
LDO e na LOA federais, com o claro objetivo de ga­
mento do Agravo Regimental na Ação Cautelar
implementar políticas públicas de atendimento aos nº 3.031, ajuizada pelo Estado de Pernambuco:
direitos fundamentais”.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem Por expressa determinação constitucional, na medi­
deferido medidas cautelares para sustar a apli­ca­ da em que a atuação da Administração Pública é
ção das exigências previstas na Lei de Responsa­bi­ pautada pelo princípio da legalidade (CF, art. 37,
caput), de fato não existe, a princípio, qualquer ilega­
lidade Fiscal, sob o argumento de que as restrições
lidade na atuação da União em proceder à inscrição
podem ser mais gravosas que as irregularidades
do órgão ou ente (o qual se mostre inadimplente em
que visam combater. Conforme observou o Ministro relação a débitos ou deveres legais) nos cadastros
Gilmar Mendes, no julgamento da Medida Cautelar de restrição, bem como na não celebração de
na Ação Cautelar nº 1.260/BA: convênios ou prestação de garantias.

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A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes de transferências voluntárias

A discussão, contudo, permanece em aberto, décadas de 80 e 90 está diretamente ligada à


vez que há inúmeras ações ajuizadas perante o crise fiscal vivida pelo Estado brasileiro. A péssima
Supremo Tribunal Federal ainda pendentes de jul­ qualidade do gasto público gerou um moto-contí­
gamento, mas que tiveram medidas cautelares nuo de endividamento e aumento dos gastos,
defe­ridas para possibilitar que Estados e Municípios ele­vando a inflação e diminuindo os investimentos.
inadimplentes celebrem convênios e contratos de Os resultados são fatos históricos: desem­
repasse com a União (nesse sentido, vide: ACO nº prego e falta de investimentos na implementação
2.733 MC-Ref/AC; AC nº 4.015 MC-Ref/DF; AC nº dos direitos fundamentais à saúde, educação,
3.775 MC-Ref/DF; AC nº 3.790 MC-Ref/DF; ACO segurança e assistência social. Muitos brasileiros
nº 2.661 MC-Ref/AL; ACO nº 2.375 TA-Ref/PI; AC possuem relatos trágicos das consequências da
nº 3.521 MC-Ref/AP; AC nº 2.973 MC/DF; AC nº irresponsabilidade fiscal que imperou no país até
2.864 MC-REF; e AC nº 2.636 MC-REF/PE). a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal.3
As obrigações, responsabilidades e sanções
2 A Lei de Responsabilidade Fiscal: previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, por­
substrato histórico tanto, têm por substrato histórico a desídia na
gestão dos recursos públicos que sempre assolou
Em regulamentação ao capítulo II do Título VI o país e que foi uma das causas responsáveis
da Constituição, que trata das finanças públicas, pela enorme crise econômica dos anos 80/90. A
foi editada a Lei Complementar nº 101, de 2001, inter­
pretação das limitações impostas, portanto,
cuja finalidade expressa é o estabelecimento de tem que ser contextualizada no momento histórico
normas “voltadas para a responsabilidade na que lhe deu origem. Um instituto jurídico nunca
gestão fiscal”. Nas palavras do art. 1º, §1º, da lei: é alheio ao contexto histórico. Conforme lição do
jurista belga Chaïm Perelman: “Ele se situará no
§1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe
interior deste contexto, que fornecerá a própria
a ação planejada e transparente, em que se previ­
nem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o matéria de nossa reflexão moral, das razões pró e
equilíbrio das contas públicas, mediante o cumpri­ das razões contra”.4
mento de metas de resultados entre receitas e A irresponsabilidade na gestão de recursos
despesas e a obediência a limites e condições no públicos tem, portanto, como principal vítima a
que tange a renúncia de receita, geração de des­pe­ própria coletividade que a ordem constitucional visa
sas com pessoal, da seguridade social e outras, dívi­ proteger. Por essa razão, a imputação de res­pon­
das consolidada e mobiliária, operações de crédito, sabilidade aos entes federativos que não obser­
inclusive por antecipação de receita, conces­são de
varem o dever de bem gerir os recursos públicos é
garantia e inscrição em Restos a Pagar.
norma que tem por objetivo a proteção da própria
sociedade.
Conforme bem observa Márcio Novaes
Cavalcanti,1
3 Coercibilidade: o elemento que garante
Um dos objetivos fundamentais do legislador era eficácia à lei
o de criar um novo paradigma na administração pú­
blica brasileira, o da responsabilidade fiscal. Assim, A Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo
foram instituídos mecanismos de controle e limi­ta­ Walton Alencar Rodrigues,5 está fundamentada em
ção de gastos públicos, para obrigar os gestores quatro princípios: planejamento, transparência, con­
do dinheiro público a gastar de forma responsável tro­le e responsabilização. Para sua elaboração, foram
e dentro de condições orçamen­tárias previamente observadas experiências estrangeiras, no caso: o
estabelecidas, levando em consideração a arreca­ Fiscal Responsability Act, da Nova Zelândia; o Tra­-
dação do Estado e do Município.
tado de Maastricht, da Comunidade Econômica
­
Euro­peia; e o Budget Enforcement Act, dos Estados
Após décadas de total irresponsabilidade na
Unidos.
gestão dos recursos financeiros do Estado, a Lei
A lei impõe diversos mecanismos obrigatórios
de Responsabilidade Fiscal inaugurou uma nova
de planejamento orçamentário e financeiro, garan­
era, em que a sociedade brasileira se compromete
tindo, ainda, instrumento de transparência e con­
a criar mecanismos rígidos de controle dos gastos
trole institucional e social dos gastos públicos.
públicos.
Conforme bem observa Bresser Pereira,2
a estag­ nação econômica vivida pelo país nas 3
A jornalista Miriam Leitão, em sua obra A saga brasileira, narra
algumas estórias emblemáticas de dramas vividos por brasileiros
durante as crises econômicas das décadas de 80/90.
Cavalcanti (2001, p. 73).
1 4
Perelman (1996, p. 323).
Pereira (1991).
2 5
Rodrigues (2006).

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Não sendo observados os preceitos de boa gestão (Lei nº 8.429/92), Lei dos Crimes de Responsabi­
previsto na norma, foi estabelecido, por fim, intri­ lidade (Lei nº 1.079/50) e no Código Penal (Título
cado sistema de responsabilização dos agentes XI do Decreto-Lei nº 2.848/40).
faltosos. Jair Eduardo Santana elenca,6 de modo resu­
A realização dos objetivos das leis está umbi­ mido, as sanções previstas para os entes federa­
licalmente atrelada às sanções estabelecidas pelo tivos, denominadas pela doutrina sanções estru­
descumprimento de seus preceitos. No intuito de ­tu­rais ou institucionais:
garantir o seu efetivo cumprimento, e, consequen­ a) Vedação de transferências voluntárias.
temente, garantir-se a gestão responsável dos b) Vedação na obtenção de garantia.
recursos públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal c) Vedação na contratação de operações de
estabeleceu penalidades para os entes federati­ crédito.
vos inadimplentes, que não se confundem com as d) Retenção de transferência constitucional.
penalidades previstas no ordenamento jurídico para e) Limitação de empenho e de movimentação
os respectivos gestores. financeira.
Partindo-se do fato de que as normas jurí­dicas A vedação de transferências voluntárias é
impõem condutas desejáveis, porém, passíveis sanção aplicável às seguintes infrações:
de descumprimento, o estabelecimento de sanções a) Não instituir, prever ou arrecadar efetiva­
para o seu descumprimento é absolutamente ne­ mente os impostos respectivos (art. 11,
ces­sário. Trata-se do atributo da coercibilidade, ine­ pará­grafo único).
rente ao Direito. b) Não adequar os gastos aos limites da Lei
Retirar a coercibilidade das regras previstas de Responsabilidade Fiscal, no prazo es-
na Lei de Responsabilidade Fiscal é negar-lhes o tabelecido, e enquanto perdurar o excesso
caráter impositivo das normas jurídicas vigen­ tes, (art. 23, §3º, I).
pois que, se não há consequência para o descum­ c) Exceder o limite de despesas de pessoal
primento, a norma torna-se mero conselho. no primeiro quadrimestre do último ano do
Por essa razão, a Lei de Responsabilidade mandato dos titulares de Poder ou órgão
Fiscal estabelece que ficarão impedidos de receber (art. 23, §4º).
recursos voluntários os entes que não cumprirem d) Não observar as exigências previstas no
com os preceitos fundamentais de gestão fiscal art. 25, §1º, da Lei de Responsabilidade
que lhes são impostos por lei. É uma forma de Fiscal.
coerção direta, ou seja, o ente federativo somente e) Não retornar a dívida consolidada ao limite,
receberá recursos oriundos de transferências volun­ no prazo estabelecido, e enquanto perdurar
tárias se, por exemplo, comprovar a correta apli­ o exces­so (art. 31, §2º).
cação dos recursos anteriormente recebidos. Ou f) Não efetuar o cancelamento, não amorti­zar
seja, nessa hipótese, a sanção tem por finalidade ou não constituir reserva específica na lei
garantir que as normas que determinam a regular orça­mentária, quando a operação de cré-
aplicação dos recursos públicos sejam cumpridas. dito for reali­
zada com infração da Lei de
O que se pretende com a norma não é punir o ente Responsabilidade Fiscal (art. 33, §3º).
federativo faltoso, mas garantir que os preceitos g) Não encaminhar ao Poder Executivo da
de responsabilidade fiscal sejam cumpridos pelos União, nos prazos especificados, as contas
entes federativos. relativas ao exercício anterior (art. 51, §2º).
A responsabilização do prefeito e de seus h) Não publicar, até trinta dias após o encer­
secretários, por exemplo, não fará com que a obra ramento de cada bimestre, o Relatório Re­
de construção de um posto de saúde que restou su­mido de Execução Orçamentária (art. 52,
inacabada seja finalizada. O que a sociedade quer, §2º).
em última instância, é o bem ou serviço decorrente i) Não publicar, até trinta dias após o encerra-
do recurso que foi transferido. mento do quadrimestre a que corresponder,
o Relatório de Gestão Fiscal (art. 55, §3º).
De acordo com os postulados estabelecidos
4 Sanções institucionais versus sanções
pelas legislações que lhe deram origem, não basta
pessoais o controle: é necessária a responsabilização. Con­
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê apenas trole e responsabilização são as duas faces de uma
as sanções aplicáveis aos entes faltosos. A respon­ mesma moeda. Só faz sentido se falar em controle
sabilidade dos agentes públicos pelos atos res­ se houver responsabilização.
pectivos está prevista em legislação própria, em
especial, na Lei de Improbidade Administrativa 6
Santana e Borges (2002).

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A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes de transferências voluntárias

A responsabilidade do ente federativo, é im­ No mérito, cumpre afastar, desde logo, a incidência
portante observar, não se exaure nos atos pratica­ do princípio da intranscendência, ou seja, enten­
dos pelo gestor. Os atos dos administradores, de der que o ente federativo não poderia ter o próprio
nome lançado no cadastro federal de inadimplentes
qualquer escalão, são imputados à pessoa jurídica
pelo descumprimento de obrigações jurídicas por
a qual se vinculam (teoria da imputação). Nesse
órgãos a ele integrados. Nesse sistema, não deve
sentido, quando agem, é o próprio Estado o autor ser inserido o gestor, a instituição ou o Poder que
da ação, devendo-lhe ser atribuídas as consequên­ tenha claudicado quanto ao emprego de verbas,
cias jurídicas da conduta de seus agentes. mas o Estado. O mesmo raciocínio, e até com maior
A imputação de responsabilidade ao ente razão, deve ser utilizado quanto à sucessividade
político tem por objetivo justamente assegurar a de gestões. Prospera, no âmbito da administração
concretização dos princípios de responsabilidade pública, o princípio da impessoalidade, previsto no
fiscal insculpidos na Constituição e na Lei Comple­ artigo 37 da Constituição Federal. A relação jurídica
envolve a União e o Estado, e não a União e certo
mentar nº 101/01, sem, contudo, relegar a respon­
Governador ou outro agente.
sabilidade dos agentes que praticaram os atos,
que estarão sujeitos às respectivas sanções cíveis,
Ressalte-se que as obrigações impostas
penais e administrativas.
pela Lei de Responsabilidade Fiscal têm como
A Lei de Responsabilidade Fiscal em nada ino­
sujeito passivo o ente público. A norma tem caráter
vou na responsabilidade dos agentes públicos, que
prescritivo, isto é, determina uma conduta (cum­
se mantém regida pelos diplomas legais anteriores.
primento dos deveres impostos) a ser adotada por
A lei tem por objetivo suprir uma lacuna anterior­
um sujeito específico (ente público destinatário dos
mente existente, qual seja, criar mecanismos para
recursos), sob pena de aplicação de uma sanção
que o ente político seja responsabilizado por even­
(proibição de recebimento de recursos voluntários).
tual irregularidade fiscal e orçamentária cometida.
A sanção é consequência do descumprimento do
dever jurídico imposto, por isso, somente pode
5 O princípio da intranscendência da pena ser aplicada àquele a quem o dever foi imposto. O
Há que se ter em mente que nem sempre princípio da intranscendência da pena, amplamen­
será possível a punição dos agentes responsáveis, te aceito nos ordenamentos jurídicos modernos,
diante da impossibilidade de identificação, no caso proí­be justamente que a sanção atinja pessoa
concreto, da responsabilidade individual de cada diver­sa daquela que infringiu o dever jurídico corres­
agente na ocorrência do fato ilícito. Nos atos de pondente. Portanto, proíbe justamente que se pena­
transferência de recursos, há a atuação de diversos lize outra pessoa além do ente público, eis que este
órgãos e pessoas, não se podendo, muitas vezes, é o destinatário da norma.
identificar o responsável. Cientes disso, muitos
agentes políticos têm se escondido por detrás da 6 O controle na gestão fiscal: criação de
burocracia estatal para praticarem gestão irres­ novos mecanismos
ponsável dos recursos recebidos. A fiscalização
Não há vedação alguma no sistema jurídico
exercida pelos órgãos de controle, por sua vez, não
que impeça que a sociedade, por meio de seus
é capaz de acompanhar, pari passu, todo o trâ­mite
representantes eleitos, crie sistemas diferenciados
da utilização dos recursos repassados. É absolu­
de controle. É ínsita à própria estrutura estatal a
tamente impossível se exigir, por exemplo, que a
possibilidade de criação de novos mecanismos.
União esteja presente, acompanhando diariamente
Conforme lição do jurista alemão Fritz Fleiner,7
a utilização dos recursos federais transferidos aos se, por um lado, a Constituição representa o ele­
5.564 Municípios e 26 Estados brasileiros. mento fixo do Estado, definindo a sua estrutura
As pessoas jurídicas possuem personalidade organizacional e os direitos fundamentais assegu­
jurídica própria, o que lhes garante a aptidão para rados, a Administração é o elemento ativo, dinâ­
adquirir direito, mas também a responsabilidade mico, do Estado, passível de constante adequação
pelos atos de seus agentes. Portanto, não há qual­ e transformação diante dos problemas sociais que
quer ofensa ao princípio da intranscendência da se impõem.
pena, vez que, sem prejuízo da responsabilidade A Constituição de um país estabelece o arca­
civil, penal ou administrativa do gestor responsá­ bouço de princípios a que se submete o Estado, mas
vel, a responsabilidade imputada pela Lei de Res­ não lhe exaure a atuação administrativa, que deve
ponsabilidade Fiscal é de natureza institucional. ser móvel, no ensejo de atender às peculiaridades
No voto proferido na Ação Cível Originária nº 1.978/
AL, o Ministro Marco Aurélio pontuou de forma bas­
tan­te adequada: 7
Fritz Fleiner apud Cirne Lima (2007, p. 28).

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territoriais, temporais, de recursos, entre outras, interpretação que tenha como consequência a res­
que se imponham. trição excessiva de um direito fundamental, reti­
Dessa forma, a Constituição não esgota as rando-lhe um míni­mo de eficácia.11
possibilidades de atuação administrativa do Esta­
do. Cabe ao poder constituído definir os respecti­ 7 Conclusão: o pacto federativo
vos instrumentos, sempre, é claro, em consonância
A Constituição Brasileira de 1988, ao passo
com os princípios constitucionais.
em que impôs a Estados e Municípios enorme carga
Portanto, não há, a rigor, qualquer vedação
de atribuições, concentrou nas mãos da União os
à inovação legislativa estabelecida pela Lei de
principais instrumentos de arrecadação. Como con­
Responsabilidade Fiscal.
se­quência, a União arrecada enorme volume de
Por outro lado, as sanções institucionais
recursos na cobrança de tributos, enquanto a maio­
pre­ vistas na lei decorrem, em última análise, do
ria dos Estados e Municípios possui arrecada­ção
prin­ cípio constitucional da eficiência, que impõe
insuficiente para o desempenho de suas compe­
à Administração “o compromisso indeclinável de
tências constitucionais. De acordo com dados
encontrar a solução mais adequada economica­
do Ins­ tituto Brasileiro de Geografia e Estatística
mente à gestão da coisa pública”8 e ao administra­
(IBGE), a União arrecada mais de 60% dos recursos
dor público o dever de “realizar suas atribuições
tributários, enquanto todos os Estados, conjunta­
com presteza, perfeição e rendimento funcional”.9
mente, arrecadam cerca de 25% dos recursos,
É o princípio da boa administração, introdu­
restando aos 5.561 Municípios brasileiros repartir
zido pioneiramente pela Constituição Italiana de 5% dos recursos tributários.12
1948, um conceito que trinta anos mais tarde Em consequência, os Estados e, principal­men­
seria aperfeiçoado pela Constituição Espanhola, te, os Municípios brasileiros são absoluta­ mente
que o incluiria entre os princípios que regem a dependentes da transferência de recursos fede­rais
administração pública com a atual denominação de para se desincumbirem de suas finalidades.
princípio da eficiência.10 A concentração de recursos nas mãos do
No Brasil, o Princípio foi erigido à categoria governo federal, entretanto, é matéria que deve
de princípio constitucional por meio da Emenda ser debatida no âmbito de uma reforma tributária
Constitucional nº 19/98, que o inseriu expressa­ e política, não sendo lícito legitimar a irresponsa­
mente no caput do art. 37 da Magna Carta. É um bilidade fiscal dos entes federativos como forma
dos pilares de sustentação da reforma adminis­ de compensação para o déficit em suas fontes de
trativa promovida pelo governo federal, que criou arrecadação.
diversas figuras jurídicas de (pelo menos em tese) A Lei de Responsabilidade Fiscal tem o nobre
modernização dos mecanismos de atuação estatal. propósito de impor disciplina na gestão dos recur­
O princípio não é novo, uma vez que já previsto sos públicos, garantindo a necessária responsabi­
em outros diplomas legais, como, por exemplo, no lidade na criação e execução de despesas públicas.
Decreto-Lei nº 200/67 (arts. 13, 25, V e VII, e 26, Suprimir os instrumentos criados pela lei é dar um
III). passo para trás, é retroceder no combate à gestão
As sanções previstas na Lei de Responsabili­ irresponsável de recursos públicos.
dade Fiscal são, portanto, instrumentos criados para Brasília, 11 de julho de 2017.
a garantia da efetivação do princípio constitucio­
nal da eficiência, mediante o compromisso do uso Referências
responsável dos recursos públicos.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação
Obrigar a transferência de recursos para entes dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007.
federativos em débito com a União ou que não CAVALCANTI, Márcio Novaes. Fundamentos da Lei de Respon­
tenham prestado contas adequadamente do uso sabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001.
de recursos federais anteriormente recebidos é CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 7. ed. São
esva­ziar de conteúdo o princípio. Uma interpreta­ção Paulo: Malheiros, 2007.
que negue validade aos instrumentos criados para FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os
a correta gestão dos recursos públicos, previstos princípios fundamentais. São Paulo: Malheiros, 1999.
na Lei de Responsabilidade Fiscal, não satisfaz, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE.
por essa razão, o postulado de proibição de exces­ Perfil dos Municípios Brasileiros 2015. Disponível em: <http://
www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/
so, que proíbe, no conflito entre princípios, a 2015/default_xls.shtm>. Acesso em: 11 jul. 2017.

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