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Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017 ARTIGOS 9
Luciano Medeiros de Andrade Bicalho
10 ARTIGOS Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017
A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes de transferências voluntárias
Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017 ARTIGOS 11
Luciano Medeiros de Andrade Bicalho
Não sendo observados os preceitos de boa gestão (Lei nº 8.429/92), Lei dos Crimes de Responsabi
previsto na norma, foi estabelecido, por fim, intri lidade (Lei nº 1.079/50) e no Código Penal (Título
cado sistema de responsabilização dos agentes XI do Decreto-Lei nº 2.848/40).
faltosos. Jair Eduardo Santana elenca,6 de modo resu
A realização dos objetivos das leis está umbi mido, as sanções previstas para os entes federa
licalmente atrelada às sanções estabelecidas pelo tivos, denominadas pela doutrina sanções estru
descumprimento de seus preceitos. No intuito de turais ou institucionais:
garantir o seu efetivo cumprimento, e, consequen a) Vedação de transferências voluntárias.
temente, garantir-se a gestão responsável dos b) Vedação na obtenção de garantia.
recursos públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal c) Vedação na contratação de operações de
estabeleceu penalidades para os entes federati crédito.
vos inadimplentes, que não se confundem com as d) Retenção de transferência constitucional.
penalidades previstas no ordenamento jurídico para e) Limitação de empenho e de movimentação
os respectivos gestores. financeira.
Partindo-se do fato de que as normas jurídicas A vedação de transferências voluntárias é
impõem condutas desejáveis, porém, passíveis sanção aplicável às seguintes infrações:
de descumprimento, o estabelecimento de sanções a) Não instituir, prever ou arrecadar efetiva
para o seu descumprimento é absolutamente ne mente os impostos respectivos (art. 11,
cessário. Trata-se do atributo da coercibilidade, ine parágrafo único).
rente ao Direito. b) Não adequar os gastos aos limites da Lei
Retirar a coercibilidade das regras previstas de Responsabilidade Fiscal, no prazo es-
na Lei de Responsabilidade Fiscal é negar-lhes o tabelecido, e enquanto perdurar o excesso
caráter impositivo das normas jurídicas vigen tes, (art. 23, §3º, I).
pois que, se não há consequência para o descum c) Exceder o limite de despesas de pessoal
primento, a norma torna-se mero conselho. no primeiro quadrimestre do último ano do
Por essa razão, a Lei de Responsabilidade mandato dos titulares de Poder ou órgão
Fiscal estabelece que ficarão impedidos de receber (art. 23, §4º).
recursos voluntários os entes que não cumprirem d) Não observar as exigências previstas no
com os preceitos fundamentais de gestão fiscal art. 25, §1º, da Lei de Responsabilidade
que lhes são impostos por lei. É uma forma de Fiscal.
coerção direta, ou seja, o ente federativo somente e) Não retornar a dívida consolidada ao limite,
receberá recursos oriundos de transferências volun no prazo estabelecido, e enquanto perdurar
tárias se, por exemplo, comprovar a correta apli o excesso (art. 31, §2º).
cação dos recursos anteriormente recebidos. Ou f) Não efetuar o cancelamento, não amortizar
seja, nessa hipótese, a sanção tem por finalidade ou não constituir reserva específica na lei
garantir que as normas que determinam a regular orçamentária, quando a operação de cré-
aplicação dos recursos públicos sejam cumpridas. dito for reali
zada com infração da Lei de
O que se pretende com a norma não é punir o ente Responsabilidade Fiscal (art. 33, §3º).
federativo faltoso, mas garantir que os preceitos g) Não encaminhar ao Poder Executivo da
de responsabilidade fiscal sejam cumpridos pelos União, nos prazos especificados, as contas
entes federativos. relativas ao exercício anterior (art. 51, §2º).
A responsabilização do prefeito e de seus h) Não publicar, até trinta dias após o encer
secretários, por exemplo, não fará com que a obra ramento de cada bimestre, o Relatório Re
de construção de um posto de saúde que restou sumido de Execução Orçamentária (art. 52,
inacabada seja finalizada. O que a sociedade quer, §2º).
em última instância, é o bem ou serviço decorrente i) Não publicar, até trinta dias após o encerra-
do recurso que foi transferido. mento do quadrimestre a que corresponder,
o Relatório de Gestão Fiscal (art. 55, §3º).
De acordo com os postulados estabelecidos
4 Sanções institucionais versus sanções
pelas legislações que lhe deram origem, não basta
pessoais o controle: é necessária a responsabilização. Con
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê apenas trole e responsabilização são as duas faces de uma
as sanções aplicáveis aos entes faltosos. A respon mesma moeda. Só faz sentido se falar em controle
sabilidade dos agentes públicos pelos atos res se houver responsabilização.
pectivos está prevista em legislação própria, em
especial, na Lei de Improbidade Administrativa 6
Santana e Borges (2002).
12 ARTIGOS Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017
A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes de transferências voluntárias
A responsabilidade do ente federativo, é im No mérito, cumpre afastar, desde logo, a incidência
portante observar, não se exaure nos atos pratica do princípio da intranscendência, ou seja, enten
dos pelo gestor. Os atos dos administradores, de der que o ente federativo não poderia ter o próprio
nome lançado no cadastro federal de inadimplentes
qualquer escalão, são imputados à pessoa jurídica
pelo descumprimento de obrigações jurídicas por
a qual se vinculam (teoria da imputação). Nesse
órgãos a ele integrados. Nesse sistema, não deve
sentido, quando agem, é o próprio Estado o autor ser inserido o gestor, a instituição ou o Poder que
da ação, devendo-lhe ser atribuídas as consequên tenha claudicado quanto ao emprego de verbas,
cias jurídicas da conduta de seus agentes. mas o Estado. O mesmo raciocínio, e até com maior
A imputação de responsabilidade ao ente razão, deve ser utilizado quanto à sucessividade
político tem por objetivo justamente assegurar a de gestões. Prospera, no âmbito da administração
concretização dos princípios de responsabilidade pública, o princípio da impessoalidade, previsto no
fiscal insculpidos na Constituição e na Lei Comple artigo 37 da Constituição Federal. A relação jurídica
envolve a União e o Estado, e não a União e certo
mentar nº 101/01, sem, contudo, relegar a respon
Governador ou outro agente.
sabilidade dos agentes que praticaram os atos,
que estarão sujeitos às respectivas sanções cíveis,
Ressalte-se que as obrigações impostas
penais e administrativas.
pela Lei de Responsabilidade Fiscal têm como
A Lei de Responsabilidade Fiscal em nada ino
sujeito passivo o ente público. A norma tem caráter
vou na responsabilidade dos agentes públicos, que
prescritivo, isto é, determina uma conduta (cum
se mantém regida pelos diplomas legais anteriores.
primento dos deveres impostos) a ser adotada por
A lei tem por objetivo suprir uma lacuna anterior
um sujeito específico (ente público destinatário dos
mente existente, qual seja, criar mecanismos para
recursos), sob pena de aplicação de uma sanção
que o ente político seja responsabilizado por even
(proibição de recebimento de recursos voluntários).
tual irregularidade fiscal e orçamentária cometida.
A sanção é consequência do descumprimento do
dever jurídico imposto, por isso, somente pode
5 O princípio da intranscendência da pena ser aplicada àquele a quem o dever foi imposto. O
Há que se ter em mente que nem sempre princípio da intranscendência da pena, amplamen
será possível a punição dos agentes responsáveis, te aceito nos ordenamentos jurídicos modernos,
diante da impossibilidade de identificação, no caso proíbe justamente que a sanção atinja pessoa
concreto, da responsabilidade individual de cada diversa daquela que infringiu o dever jurídico corres
agente na ocorrência do fato ilícito. Nos atos de pondente. Portanto, proíbe justamente que se pena
transferência de recursos, há a atuação de diversos lize outra pessoa além do ente público, eis que este
órgãos e pessoas, não se podendo, muitas vezes, é o destinatário da norma.
identificar o responsável. Cientes disso, muitos
agentes políticos têm se escondido por detrás da 6 O controle na gestão fiscal: criação de
burocracia estatal para praticarem gestão irres novos mecanismos
ponsável dos recursos recebidos. A fiscalização
Não há vedação alguma no sistema jurídico
exercida pelos órgãos de controle, por sua vez, não
que impeça que a sociedade, por meio de seus
é capaz de acompanhar, pari passu, todo o trâmite
representantes eleitos, crie sistemas diferenciados
da utilização dos recursos repassados. É absolu
de controle. É ínsita à própria estrutura estatal a
tamente impossível se exigir, por exemplo, que a
possibilidade de criação de novos mecanismos.
União esteja presente, acompanhando diariamente
Conforme lição do jurista alemão Fritz Fleiner,7
a utilização dos recursos federais transferidos aos se, por um lado, a Constituição representa o ele
5.564 Municípios e 26 Estados brasileiros. mento fixo do Estado, definindo a sua estrutura
As pessoas jurídicas possuem personalidade organizacional e os direitos fundamentais assegu
jurídica própria, o que lhes garante a aptidão para rados, a Administração é o elemento ativo, dinâ
adquirir direito, mas também a responsabilidade mico, do Estado, passível de constante adequação
pelos atos de seus agentes. Portanto, não há qual e transformação diante dos problemas sociais que
quer ofensa ao princípio da intranscendência da se impõem.
pena, vez que, sem prejuízo da responsabilidade A Constituição de um país estabelece o arca
civil, penal ou administrativa do gestor responsá bouço de princípios a que se submete o Estado, mas
vel, a responsabilidade imputada pela Lei de Res não lhe exaure a atuação administrativa, que deve
ponsabilidade Fiscal é de natureza institucional. ser móvel, no ensejo de atender às peculiaridades
No voto proferido na Ação Cível Originária nº 1.978/
AL, o Ministro Marco Aurélio pontuou de forma bas
tante adequada: 7
Fritz Fleiner apud Cirne Lima (2007, p. 28).
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territoriais, temporais, de recursos, entre outras, interpretação que tenha como consequência a res
que se imponham. trição excessiva de um direito fundamental, reti
Dessa forma, a Constituição não esgota as rando-lhe um mínimo de eficácia.11
possibilidades de atuação administrativa do Esta
do. Cabe ao poder constituído definir os respecti 7 Conclusão: o pacto federativo
vos instrumentos, sempre, é claro, em consonância
A Constituição Brasileira de 1988, ao passo
com os princípios constitucionais.
em que impôs a Estados e Municípios enorme carga
Portanto, não há, a rigor, qualquer vedação
de atribuições, concentrou nas mãos da União os
à inovação legislativa estabelecida pela Lei de
principais instrumentos de arrecadação. Como con
Responsabilidade Fiscal.
sequência, a União arrecada enorme volume de
Por outro lado, as sanções institucionais
recursos na cobrança de tributos, enquanto a maio
pre vistas na lei decorrem, em última análise, do
ria dos Estados e Municípios possui arrecadação
prin cípio constitucional da eficiência, que impõe
insuficiente para o desempenho de suas compe
à Administração “o compromisso indeclinável de
tências constitucionais. De acordo com dados
encontrar a solução mais adequada economica
do Ins tituto Brasileiro de Geografia e Estatística
mente à gestão da coisa pública”8 e ao administra
(IBGE), a União arrecada mais de 60% dos recursos
dor público o dever de “realizar suas atribuições
tributários, enquanto todos os Estados, conjunta
com presteza, perfeição e rendimento funcional”.9
mente, arrecadam cerca de 25% dos recursos,
É o princípio da boa administração, introdu
restando aos 5.561 Municípios brasileiros repartir
zido pioneiramente pela Constituição Italiana de 5% dos recursos tributários.12
1948, um conceito que trinta anos mais tarde Em consequência, os Estados e, principalmen
seria aperfeiçoado pela Constituição Espanhola, te, os Municípios brasileiros são absoluta mente
que o incluiria entre os princípios que regem a dependentes da transferência de recursos federais
administração pública com a atual denominação de para se desincumbirem de suas finalidades.
princípio da eficiência.10 A concentração de recursos nas mãos do
No Brasil, o Princípio foi erigido à categoria governo federal, entretanto, é matéria que deve
de princípio constitucional por meio da Emenda ser debatida no âmbito de uma reforma tributária
Constitucional nº 19/98, que o inseriu expressa e política, não sendo lícito legitimar a irresponsa
mente no caput do art. 37 da Magna Carta. É um bilidade fiscal dos entes federativos como forma
dos pilares de sustentação da reforma adminis de compensação para o déficit em suas fontes de
trativa promovida pelo governo federal, que criou arrecadação.
diversas figuras jurídicas de (pelo menos em tese) A Lei de Responsabilidade Fiscal tem o nobre
modernização dos mecanismos de atuação estatal. propósito de impor disciplina na gestão dos recur
O princípio não é novo, uma vez que já previsto sos públicos, garantindo a necessária responsabi
em outros diplomas legais, como, por exemplo, no lidade na criação e execução de despesas públicas.
Decreto-Lei nº 200/67 (arts. 13, 25, V e VII, e 26, Suprimir os instrumentos criados pela lei é dar um
III). passo para trás, é retroceder no combate à gestão
As sanções previstas na Lei de Responsabili irresponsável de recursos públicos.
dade Fiscal são, portanto, instrumentos criados para Brasília, 11 de julho de 2017.
a garantia da efetivação do princípio constitucio
nal da eficiência, mediante o compromisso do uso Referências
responsável dos recursos públicos.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação
Obrigar a transferência de recursos para entes dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007.
federativos em débito com a União ou que não CAVALCANTI, Márcio Novaes. Fundamentos da Lei de Respon
tenham prestado contas adequadamente do uso sabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001.
de recursos federais anteriormente recebidos é CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 7. ed. São
esvaziar de conteúdo o princípio. Uma interpretação Paulo: Malheiros, 2007.
que negue validade aos instrumentos criados para FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os
a correta gestão dos recursos públicos, previstos princípios fundamentais. São Paulo: Malheiros, 1999.
na Lei de Responsabilidade Fiscal, não satisfaz, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE.
por essa razão, o postulado de proibição de exces Perfil dos Municípios Brasileiros 2015. Disponível em: <http://
www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/
so, que proíbe, no conflito entre princípios, a 2015/default_xls.shtm>. Acesso em: 11 jul. 2017.
8
Freitas (1999, p. 85).
9
Meirelles (1997, p. 90). Ávila (2007, p. 147).
11
10
Moreira Neto (2002, p. 37). IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros 2015.
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14 ARTIGOS Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017
A responsabilidade fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes de transferências voluntárias
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São SANTANA, Jair Eduardo; BORGES, Leonardo Augusto Rodrigues.
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. Vedação de transferências voluntárias como sanção à renúncia
de receitas tributárias. Fórum de Contratação e Gestão Pública
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito – FCGP, Belo Horizonte, ano 1, n. 12, p. 1.445-1.451, dez.
Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 2002.
PEREIRA, Bresser. A lógica perversa da estagnação: dívida,
déficit e inflação no brasil. Revista Brasileira de Economia, 45
(2), p. 187-211, abr. 1991.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BICALHO, Luciano Medeiros de Andrade. A responsabilidade
RODRIGUES, Walton Alencar. Tribunal de Contas da União, Lei de
fiscal e as exigências para recebimento de recursos provenientes
Responsabilidade Fiscal e municípios. Fórum de Contratação e
de transferências voluntárias. Fórum de Contratação e Gestão
Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 5, n. 60, dez. 2006.
Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago.
Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.
2017
aspx?pdiCntd=38555>. Acesso em: 17 jan. 2013.
Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 188, p. 9-15, ago. 2017 ARTIGOS 15