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ACÓRDÃO N.

º 198/85

Processo n.º 32/83.

2.ª Secção.

Relator: Conselheiro Cardoso da Costa.

Acordam na 2.a Secção do Tribunal Constitucional:

I — No 9.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, a sociedade por quotas A.,


L.da, com sede em Sacavém, foi, a seu requerimento, declarada em estado de falência
por sentença de 25 de Janeiro de 1983. Nessa sentença, porém, o M.mo Juiz decidiu que
«não se determina que se comunique à Administração-Geral dos CTT declarada a
falência da requerente a fim de a correspondência a esta dirigida ser entregue ao
administrador, para ser aberta na sua presença, porquanto, ao abrigo do artigo 207.º da
Constituição, se recusa a aplicação da norma contida no artigo 1216.º do Código de
Processo Civil, por infracção do disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 34.º da Lei
Fundamental, que consagram o direito à inviolabilidade da correspondência, com a
única excepção dos casos previstos na lei em matéria de processo criminal».
Dessa sentença, na parte em que recusou a aplicação da norma contida no
artigo 1216.º do Código de Processo Civil, interpôs o Ministério Público recurso
obrigatório para a Comissão Constitucional. Nas suas alegações — apresentadas ainda
no tribunal a quo, por força do que ao tempo resultava do Estatuto daquela Comissão —
manifesta-se, todavia o respectivo magistrado também no sentido da
inconstitucionalidade da citada norma, se não na íntegra, pelo menos na parte respeitante
à correspondência comercial do falido.
Por força do disposto no artigo 106.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, o recurso transitou para o Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, não obstante notificada para o efeito, a sociedade em causa
não alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II — 1 — Como emerge do relato antecedente, a questão jurídico-


constitucional a solucionar no presente recurso consiste em saber se a norma contida no
artigo 1216.º do Código de Processo Civil — a qual prescreve que «toda a
correspondência dirigida ao falido até se dar princípio ao rateio para pagamento aos
credores é entregue ao administrador, para ser aberta na presença do falido, ou, estando
este ausente, na da pessoa por ele indicada para esse fim, e, na falta desta, na presença
do síndico, entregando-se ao destinatário ou ao seu representante a que não for de
interesse para a administração da massa e guardando-se sigilo sobre os assuntos de
ordem privada nela contidos» — viola os preceitos dos n.os 1 e 4 do artigo 34.º da
Constituição. Ou, mais precisamente: se tal norma, enquanto aplicada a uma sociedade
declarada em estado de falência, violará os ditos preceitos constitucionais.
O M.mo Juiz a quo sustenta a tese de que ocorreria semelhante violação,
argumentando, em resumo, nos seguintes termos:

a) O artigo 34.º, n.º 4, da Constituição apenas ressalva ou excepciona as


restrições ao direito ao sigilo da correspondência previstas na lei «em matéria de
processo criminal», com o que exclui, pois, restrições em qualquer outro domínio;
assim, não tendo a norma contida no artigo 1216.º do Código de Processo Civil carácter
criminal, não se encontrava ela abrangida pela referida excepção do artigo 34.º, n.º 4; daí
a sua inconstitucionalidade;
b) O direito ao sigilo da correspondência não é incompatível com a natureza
das pessoas colectivas, mas antes lhes é perfeitamente extensível — como, de resto, bem
se revela «quando se atenta nos prejuízos que para elas podem advir do conhecimento e
divulgação dos seus segredos de indústria ou comércio ou de outros elementos
confidenciais que podem circular através da sua correspondência; assim, trata-se de um
direito fundamental de que também tais pessoas gozam, nos termos do n.º a do artigo
12.º da Constituição; consequentemente, a inconstitucionalidade do artigo 1216.º do
Código de Processo Civil não é afastada quando a sua aplicação respeitar (como no
caso) a uma sociedade comercial; c) Tal inconstitucionalidade também não é afastada,
por outro lado, pela ocorrência de uma qualquer «relação especial de poder»,
característica da situação jurídica do falido — isto, concedendo já, por hipótese, que tais
«relações especiais de poder» seriam susceptíveis de justificar outras restrições ao sigilo
da correspondência. É que, efectivamente, o falido apenas se encontra numa situação de
«indisponibilidade» patrimonial relativamente aos bens apreendidos (ou que possam vir
a sê-lo) para a massa falida, imposta para protecção do interesse dos seus credores, mas
situação essa que em nada afecta a sua relação ou subordinação ao Estado ou aos
poderes públicos, a qual é idêntica à de qualquer outro cidadão.

A esta argumentação da sentença recorrida aduz ainda o digno Agente do


Ministério Público no tribunal a quo, por seu turno, a «análise exegética comparativa
dos n.os 2 e 4 do preceito (constitucional) invocadamente violado», a qual mostra que o
legislador constitucional, no primeiro dos citados números e no tocante à involabilidade
de domicílio, já excepciona os casos previstos na lei ordinária genericamente
considerada e não apenas os casos previstos na lei processual criminal, como faz na
segunda das referidas disposições, a propósito do sigilo da correspondência.
Em compensação, no entanto, pondera o mesmo magistrado a possibilidade
de a inconstitucionalidade do artigo 1216.º do Código de Processo Civil se restringir à
parte dele que abrange a «correspondência não comercial» do falido, «caso se reconheça
personalidade jurídica à massa falida, nomeadamente no caso das sociedades». É que —
esclarece —, para certa doutrina, a inibição patrimonial do falido explica-se pela «teoria
objectiva da transmissão da propriedade», justamente com o reconhecimento de
personalidade jurídica à massa falida; e, assim, esta última, «encabeçando o património
no caso das sociedades, seria, ela própria, titular da correspondência comercial dirigida à
pessoa colectiva». Não deixa, todavia, de assinalar que uma tal teoria não é
maioritariamente seguida.

2 — Qualquer que seja o exacto conteúdo do direito ao sigilo da cor-


respondência consignado no artigo 34.º, n.º 1, da Constituição, parece inquestionável
que o disposto no artigo 1216.º do Código de Processo Civil representa, ao menos em
princípio, uma clara compressão ou «restrição» desse direito. É que essa norma
processual não se limita a impor ao falido a obrigação de entregar ao administrador a
correspondência com «interesse para a administração da massa», mas antes, e muito
mais do que isso, determina que toda a correspondência do falido seja entregue ao
administrador da massa, para ser por este aberta, só depois se separando e entregando ao
destinatário a que não interessar à falência. E, se é verdade que a abertura da
correspondência haverá de ocorrer na presença do falido (ou de pessoa que este indique,
ou, na sua falta, do síndico) e que, por outro lado, fica a impender sobre o administrador
um dever (naturalmente qualificado) de sigilo sobre os «assuntos de ordem privada»
naquela contidos, tais garantias não destroem o facto de o falido ter de suportar, por
força da disposição legal em causa, a ingerência ou a intromissão forçada de um terceiro
no conhecimento da correspondência que lhe é dirigida e do respectivo conteúdo — de
tal modo que esse conhecimento deixa de estar na sua reserva e disponibilidade, como se
prevê e garante no artigo 34.º da lei fundamental.
Posto isto, parece também inegável que o artigo 1216.º do Código de
Processo Civil não pode deixar hoje de suscitar um sério problema de legitimidade
constitucional. Pois, na verdade, no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição apenas se prevê a
possibilidade de restrições legais ao sigilo da correspondência «em matéria de processo
criminal», e a restrição ora em causa não tem aí, a todas as luzes, a sua sede — não é,
por outras palavras, ditada por um objectivo de investigação e perseguição criminal. Por
outro lado, independentemente do preciso significado que deva atribuir-se em geral, ou
no âmbito de outros direitos fundamentais, à extensão da vinculatividade de tais direitos
também às entidades privadas, o que é dizer, às relações jurídico-privadas (artigo 18.º,
n.º 1, da Constituição), afigura-se indiscutível que o direito ao sigilo da correspondência
é um daqueles que, por sua natureza, não pode deixar de ter um alcance erga omnes,
impondo-se não apenas ao poder público e aos seus agentes, mas igualmente no domínio
das relações entre privados (neste sentido, D. Oehler, Postgebeimnis, em Bettermann-
Nipperdey-Scheuner, Die Grundrechte, vol. III, p. 609, e A. Pace, em Amato-Pace-
Finochiaro, Commentario delia Costituzione, a cura di Branca-Rapporti civili (art. 13-
20), p. 99. Como, então, pode conciliar-se o disposto no artigo 1216.º do Código de
Processo Civil (suposto mesmo — o que, aliás, é altamente questionável — que a
restrição nele estabelecida se situa pura e simplesmente no último domínio referido)
com a garantia constitucional do artigo 34.º, n.os 1 e 4.º?
Certo que o preceito do artigo 1216.º do Código de Processo Civil não é
original ou exclusivo do direito falimentar português. Assim, por exemplo, no artigo 48.º
da Lei de Falências italiana consigna-se, analogamente ao que ocorre na nossa lei
processual, a regra taxativa da entrega ao administrador (curatore) da correspondência
dirigida ao falido; por sua vez, no § 121 da Konkursordnung alemã-federal prevê-se a
faculdade de o juiz da falência ordenar ao serviço dos correios a entrega ao
administrador de toda a correspondência (incluindo a telegráfica) dirigida ao falido, para
ser aberta por aquele. E tais preceitos não deixam, evidentemente, de ser apontados, nos
dois ordenamentos, como restrições ao direito fundamental ao sigilo da correspondência
(ou ao sigilo postal e da correspondência), consignado, respectivamente, no artigo 15.º
da Constituição italiana e no artigo 10.º da Grundgesetz. Mas também aí — e por isso
mesmo — não deixam igualmente de levantar-se interrogações jurídico-constitucionais
acerca do seu âmbito de operatividade, e inclusivamente da sua validade, (v., para o
direito alemão, Oehler, ob. cit., p. 618, considerando que «um preceito tão intensamente
limitador» do segredo da correspondência «deve ser estritamente interpretado»; e, para o
direito italiano, A. Pace, ob. cit., pp. 102 e segs., que fala da «perplexidade» que pode
suscitar a obrigação do artigo 48.º da Lei de Falências, não a considerando a mais
coerente com o sistema e o princípio constitucional, e cita mesmo um autor que sustenta
a tese da inconstitucionalidade da disposição). Só que, se é assim, acontece, em todo o
caso, que em ambos os mencionados ordenamentos a consagração legal da restrição ou
restrições em causa depara com menores dificuldades do que entre nós, uma vez que em
qualquer deles o respectivo preceito constitucional ressalva, genericamente, as
limitações ao direito impostas «por acto fundamentado da autoridade judiciária,
observadas as garantias estabelecidas pela lei» (Constituição Italiana), ou as limitações
impostas «com base numa lei» (Grundgesetz).
Não é uma fórmula ampla e genérica deste tipo a que se contém no artigo
34.º, n.º 4, da Constituição Portuguesa — mas antes, como se viu, uma fórmula que
unicamente prevê restrições (legais) do direito em apreço «em matéria de processo
criminal». Ora, este confronto — ou esta divergência — só corrobora e acentua quanto
pode questionar-se hoje em dia (na vigência da Constituição de 1933, como bem recorda
o M.mo Juiz a quo, a situação também era diferente, já que no seu artigo 8.º, n.º 6.º, o
sigilo da correspondência só era garantido «nos termos que a lei determinar») a
conformidade constitucional, em geral, do artigo 1216.º, do Código de Processo Civil.
Tal conformidade — negada, e com ponderosas razões (como decorre do
que antes se disse), pela sentença recorrida — só poderá salvar-se, eventualmente, se se
puder aceitar que, apesar do expresso teor do artigo 34.º, n.º 4, outras restrições ao sigilo
da correspondência serão ainda constitucionalmente admissíveis, e isso enquanto
implicitamente assumidas pela norma constitucional. Para chegar aí, porém, haverá
desde logo, e além do mais, que ultrapassar o obstáculo do n.º 2 do artigo 18.º da lei fun-
damental, o qual apenas admite a restrição legal aos direitos, liberdades e garantias «nos
casos expressamente previstos na Constituição». Ora, parecendo não bastar para tanto,
no caso, uma leitura «ampla» do artigo 18.º, n.º 2 (abrangendo ainda a possibilidade da
previsão expressa «indirecta» de restrições: assim, Gomes Canotilho-Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.a ed., 1.º vol., Coimbra, 1984, artigo
18.º, anot. VI, p. 167), a possibilidade de ultrapassar tal obstáculo é certamente muito
controversa. (Concedendo-a, em todo o caso, e em geral, v. Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 80 e
seg., pelo recurso ao artigo 16.º, n.º 2, combinado com o artigo 29.º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem).

3 — Não se torna aqui necessário, todavia, esclarecer o problema ou


problemas por último aventados e, com isso, dilucidar em definitivo a questão da
compatibilidade em geral (ou em princípio) do artigo 1216.º do Código de Processo
Civil com o artigo 34.º da Constituição. E isto porque, ainda que se conclua, com o M.mo
Juiz a quo, pela negativa (atento o conjunto de tópicos atrás expostos), essa conclusão
nunca poderá valer — contrariamente, agora, ao que se entendeu na doutra sentença
recorrida — nas hipóteses em que o preceito questionado se aplique a uma sociedade
comercial.
Não que se conteste, em geral, a afirmação de que o direito ao sigilo da
correspondência não é incompatível com a natureza das pessoas colectivas e de que,
portanto, este é um direito fundamental de que também tais pessoas gozam, nos termos
do n.º 2 do artigo 12.º da Constituição. Ao contrário: não apenas se compartilha o
asserto, como podem mesmo invocar-se, em abono dele, vários apoios doutrinais, tanto
na literatura nacional como na estrangeira. Assim: V. Andrade, ob. cit., p. 176, nota 68;
G. Canotilho-V. Moreira, ob. cit., artigo 12.º, anot. IV, p. 146; Oehler, ob. cit., p. 611; e
ainda A. Pace, ob. cit., p. 98.
Simplesmente, a «aplicação» dos direitos fundamentais às pessoas colectivas
não pode deixar de levar em conta a particular natureza destas — e de tal modo que
seguramente tem de reconhecer-se que ainda quando certo direito fundamental seja
compatível com essa natureza, e portanto susceptível de titularidade «colectiva» (hoc
sensu), daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar
exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre
relativamente às pessoas singulares. Tem a doutrina chamado a atenção para o ponto, e
designadamente para o facto de o «conteúdo» dos direitos fundamentais poder ser
diferente (e mais estreito) quando o respectivo titular for uma pessoa colectiva, antes
que uma pessoa singular (assim, V. Andrade, ob. cit., pp. 176 e seg.).
Ora, se não for exactamente isto (uma diferença de «conteúdo») que se
verifica no caso do direito ao sigilo de correspondência, certo é, de todo o modo, que a
própria estrutura da personalidade colectiva exclui que esse direito, enquanto direito de
uma sociedade comercial, se possa dizer violado ou ilegitimamente restringido pelo
disposto no artigo 1216.º do Código de Processo Civil (ainda que assim devam entender-
se as coisas quando esteja em causa um falido singular). Pois o facto é que nesse caso —
de aplicação da citada norma processual a uma sociedade comercial — nem sequer
chega a ocorrer qualquer restrição (legítima ou ilegítima) ao direito ao sigilo da
correspondência dessa entidade colectiva — ou seja, e em boa verdade, não chega
sequer a verificar-se uma «quebra» de tal sigilo.

4 — Para concluir que assim é não se torna necessário recorrer à tese da


«personificação» da massa falida — tese aventada pelo digno magistrado recorrente,
mas que, como o próprio reconhece, não possui entre nós qualquer tradição, nem
corresponde aos dados do nosso direito substantivo (cf., por todos, e por último, Mota
Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.a ed., Coimbra, 1985, pp. 246 e segs.). Basta
simplesmente não esquecer que, no caso da falência de uma sociedade comercial, de
qualquer modo, a massa falida, na medida em que é integrada pelo património social, já
antes se encontrava «personificada» na pessoa colectiva que é a sociedade — e assim,
justamente, autonomizada do património dos sócios. E basta, por outro lado, atentar em
que, tratando-se do direito ao sigilo da correspondência de uma pessoa colectiva, o seu
exercício, ao fim e ao cabo, há-de sempre competir, como é óbvio, a determinada ou
determinadas pessoas singulares, as quais serão o administrador ou administradores da
pessoa colectiva em causa (ou os representantes em quem estes delegarem).
Ora, o que acontece, quando é declarada a falência de uma sociedade
mercantil, é que esta, entrando em dissolução, nos termos do artigo 120.º, n.º 4, do
Código Comercial, e ficando apenas a ter existência jurídica para efeito de liquidação
(artigo 122.º do mesmo Código), passa a ser administrada, para esse efeito, pelo
administrador da massa. Este, pois, passa a ser verdadeiramente o administrador da
sociedade — ou seja, a pessoa ou entidade singular à qual cabe gerir os interesses e o
património e exprimir a vontade da pessoa colectiva em liquidação. É o que resulta logo
do artigo 131.º do Código Comercial, o qual, tratando da nomeação dos liquidatários,
em caso de dissolução da sociedade, expressamente ressalva «as disposições especiais
para o caso de falência»; e, depois, dos artigos 1210.º e seguintes (especialmente artigos
1210.º a 1212.º) do Código de Processo Civil, que são inteiramente aplicáveis ao caso da
falência de sociedades comerciais. E tudo isto, que se diz para as sociedades em geral,
vale igualmente para as sociedades por quotas (como é o caso nos presentes autos), em
vista do preceituado no artigo 42.º da respectiva lei, e uma vez, bem assim, que nada em
contrário se extrai da remissão feita pelo artigo 43.º do mesmo diploma (a entender-se
que tal remissão ainda mantém actualidade, por se dever reportá-la agora aos preceitos
do Código de Processo Civil correspondentes aos artigos aí mencionados do primitivo
Código de Falências).
É certo que no § único do artigo 122.º do Código Comercial se diz que no
caso de dissolução por falência «os administradores da sociedade continuarão a
representá-la […] até final conclusão da quebra». Mas esta disposição — a determinação
de cujo exacto sentido e alcance não tem sido objecto, aliás, da preocupação dos
comentaristas — não pode, de qualquer modo, ser entendida como significando que,
declarada a falência da sociedade, a «administração» desta, em geral, continue, até à
conclusão do processo, confiada aos administradores: é óbvio que tal seria contraditório,
no fundo, com o próprio objecto e função do processo falimentar. Assim, a
«representação» da sociedade, de que se fala no preceito em apreço, há-de consistir em
algo de diverso, e mais limitado, do que a sua administração, ou gestão, em geral. Do
que se tratará é de assegurar a representação daquela para outros efeitos, e
designadamente para os da sua intervenção, como entidade falida (tal-qualmente sucede
com o falido singular), no processo de falência — ou seja, para os efeitos previstos
(quanto às sociedades de responsabilidade limitada) no artigo 1289 ° do Código de
Processo Civil. Na verdade, dispõe-se neste último — em termos que devem considerar-
se, afinal, da maior importância, se não decisivos, para o esclarecimento do alcance do
artigo 122.º, § único, do Código Comercial — que «os directores, administradores ou
gerentes de sociedades de responsabilidade limitada ficam sujeitos às obrigações que no
processo de falência incumbem ao falido singular; devem ser ouvidos no caso em que se
exige que o seja o falido e têm legitimidade para opor embargos à falência e para
interpor os mesmos recursos que competem ao falido singular».
Seja como for, temos que o § único do artigo 122.º do Código Comercial se
diz não destrói a conclusão, antes avançada, de que, declarada a falência, a
administração da sociedade passa, para o efeito da liquidação falimentar, para o
administrador judicialmente nomeado. Quando muito, resultará desse preceito,
conjugado com os princípios e disposições processuais atrás referidos, que a partir de
então — a partir da declaração da falência — se verifica uma partilha da representação
social, a que continua confiada, para certos efeitos (aliás residuais), aos administradores
primitivos, mas é deferida, quanto a outros, ao administrador da massa. Este último,
porém, sempre passará a ser um representante da sociedade, ao lado dos primitivos
administradores — e o representante dela, de todo o modo, para o efeito da respectiva
gestão, enquanto esta possa e deva ainda prosseguir.
Mas, se é assim, então concluir-se-á — voltando ao específico problema ora
em apreço — que a entrega ao administrador da massa, para ser por ele aberta, da
correspondência dirigida à sociedade falida, nos termos do artigo 1216.º do Código de
Processo Civil, de modo algum representa a ingerência ou intromissão de um terceiro,
independentemente ou mesmo contra a vontade do destinatário, no conhecimento dessa
correspondência. Antes justamente significa que a correspondência da sociedade é en-
tregue a quem, para o efeito da respectiva gestão, passou a representá-la — ou seja, à
pessoa ou entidade singular (ou, pelo menos, a uma das pessoas ou entidades singulares)
com legitimidade para, em nome da sociedade, reivindicar a reserva do conhecimento da
respectiva correspondência, reserva essa em que se traduz o direito que também a entes
desse tipo é reconhecido e garantido pelo artigo 34.º da Constituição.
Eis por que realmente a norma do artigo 1216.º do Código de Processo Civil,
quando aplicada no caso da declaração de falência de uma sociedade mercantil, não
viola o disposto no preceito constitucional citado, e em especial no seu n.º 4.

5 — Claro que — restará dizê-lo para terminar — contra tal conclusão não
valerá invocar qualquer eventual interesse dos sócios em manterem reservado a si
próprios (ou aos administradores por eles designados ou nomeados no pacto social) o
conhecimento da correspondência da sociedade — em vista, designadamente, da
preservação de segredos de indústria ou comércio relativos à actividade da empresa. A
verdade é que, constituída uma sociedade, tais segredos são-no desta última, que não dos
respectivos sócios (ainda que a algum ou alguns destes pudessem inicialmente
pertencer) — são, por outras palavras, elementos integradores do aviamento da empresa
social. Assim, relativamente à preservação dos mesmos, só o interesse da sociedade,
titular da empresa, e não qualquer outro, pode assumir relevo, para o efeito de acautelá-
lo através do direito da sociedade — pois apenas este está em causa — ao sigilo da sua
correspondência. Tal interesse e tal direito, porém, não podem dizer-se postergados,
como se viu, pelo acesso do administrador da massa falida a essa correspondência.

Por outro lado, e por último, também não valerá invocar, contra a conclusão
a que se chegou, o facto de ao administrador da massa dever ser entregue toda a
correspondência dirigida à sociedade, e não apenas a que tenha a ver com o objecto e a
actividade sociais — isto é, com o «comércio» exercido por aquela. É que, por força da
própria natureza e função da personalidade colectiva e do «princípio da especialidade»
das pessoas colectivas, a distinção a que se alude não tem qualquer sentido quanto a
estas pessoas, em geral, e quanto às sociedades comerciais, em particular; por definição,
toda a correspondência das sociedades é correspondência social, ou comercial. Tal
distinção só terá cabimento quanto aos comerciantes em nome individual — é dizer, aos
falidos singulares.

III — Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, concede-se provimento


ao recurso, revogando-se a sentença recorrida enquanto julgou inconstitucional a norma
do artigo 1216.º do Código de Processo Civil na parte aplicável à falência de uma
sociedade comercial e determinando-se que a mesma sentença seja reformada de
harmonia com o julgamento ora proferido sobre a questão de constitucionalidade
suscitada.
Lisboa, 30 de Outubro de 1985. — José Manuel Cardoso da Costa —
Messias Bento — Mário Afonso — Mário de Brito — Luís Nunes de Almeida — José
Magalhães Godinho — Armando Manuel Marques Guedes.

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