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Crime de descaminho de direitos, sob a forma tentada, previsto e punido pelas disposições

conjugadas dos artigos 12.º, 41.º e 43.º do Contencioso Aduaneiro

No início da audiência de discussão e julgamento, o digno representante do Ministério


Público requereu que o Tribunal se declarasse incompetente e remetesse o processo
às autoridades administrativas, em virtude de, entretanto, haver sido publicado o
Decreto-Lei n.º 187/83, de 13 de Maio, o qual, no seu artigo 22.º, qualificava como
mera contra-ordenação os factos de que a ré vinha acusada.

Tendo prosseguido a audiência de discussão e julgamento, veio o Ministério Público a


requerer ainda que se declarasse extinto o procedimento contra a ré por, entretanto,
ter decorrido o prazo prescricional de dois anos aplicável às contra-ordenações, sendo
certo que os factos àquela imputados, como tal deviam ser considerados, face ao
disposto no já citado Decreto-Lei n.º 187/83.
Tal requerimento foi igualmente indeferido, agora por se entender que o mencionado diploma
era inconstitucional, porquanto tratava «de matéria da exclusiva competência da Assembleia
da República [cf. artigo 168.º, n.º 1, alíneas c) e d), da CRP] e, não obstante a existência da
autorização legislativa contida no artigo 19° da Lei n.º 2/83, de 18 de Fevereiro, esta, nos
termos estabelecidos pelo n.º 4 do artigo 168.º da Constituição, havia caducado com a
dissolução da Assembleia da República». Também desta decisão foi interposto recurso pelo
Ministério Público.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Junho de 1984, veio, todavia, a julgar
improcedentes ambos os recursos, confirmando, consequentemente, os despachos recorridos.

Naquele aresto, começa-se por sustentar que o diploma em questão se enquadra no


âmbito das matérias previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, e
isto porque, «se é verdade que o exercício da actividade legislativa em matérias
contravencionais ou contra-ordenacionais faz parte da competência própria do
Governo [artigos 201.º e 202.º, alínea c), da Constituição], não é menos certo que, no
caso concreto, e de acordo com a posição expendida pelo próprio recorrente, se terá
processado uma conversão do ilícito de certos actos, que terão deixado de ser crimes
para passarem a ser contra-ordenação». E, assim, prossegue-se, «essa natureza
complexa da actividade legislativa, neste caso, corresponderá, portanto, no campo
lógico, a uma fase de descriminalização de certas condutas como ilícitos contra-
ordenacionais», constituindo o primeiro daqueles aspectos uma das facetas da figura
«definição dos crimes», a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Lei
Fundamental.
Seguidamente, e depois de proceder a uma análise do sentido e alcance do n.º 4 do mesmo
artigo da Constituição, o acórdão da Relação de Lisboa, tendo verificado que a Lei
n.º 2/83, onde se encontraria a autorização legislativa que podia credenciar a edição do
Decreto-Lei n.º 187/83, fora publicada em 18 de Fevereiro, já depois de dissolvida a
Assembleia da República por decreto de 4 do mesmo mês, concluiu pela inconstitucionalidade
orgânica do mesmo diploma.

Decisão :
O Tribunal da Relação julgou organicamente inconstitucional o Decreto-Lei n.º 187/83.
Todavia, da sua própria fundamentação se extrai que, com interesse para o
caso concreto, apenas julgou inconstitucional a norma constante do
artigo 22.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma que qualifica como contra-ordenação
factos anteriormente qualificados como crime pelo Decreto-Lei n.º 31
664 (Contencioso Aduaneiro).
É, por isso, à questão da inconstitucionalidade de tal norma que
se circunscreve o âmbito do presente recurso.

Não merece censura o acórdão recorrido quando considera a norma em


apreço abrangida pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República,
face ao disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º da Lei Fundamental («definição
dos crimes»).
Efectivamente, tal resulta do facto de o artigo 22.º do Decreto-Lei n.º
187/83, ao mandar punir determinadas condutas como contra-ordenações, estar,
simultânea e implicitamente, a eliminá-las do elenco legal dos crimes, sempre que,
anteriormente, como tal eram qualificadas pela legislação em vigor

Esta competência exclusiva da Assembleia da República não se exerce


apenas pela positiva, isto é, não se confina à modelação, por via legislativa, de crimes e
penas em sentido próprio.
Realiza-se, também, e em termos altamente significativos, pela negativa,
isto é, pela supressão do quadro criminal de tipos de ilícito. Seria, na verdade, ilógico e
inconsequente que esta última competência lhe não coubesse por inteiro, por várias
razões

Em primeiro lugar, a alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição não


faz qualquer distinção. Em segundo lugar, a não se entender assim, a competência da
Assembleia da República para criar tipos-crime e penas reduzir-se-ia a zero, sempre
que o Governo, e de imediato, lhe revogasse as leis penais que editasse, o que resultaria
inadmissível. Em terceiro lugar, a implementação do quadro geral de ilícitos criminais e
penas, em sentido estrito, reclama que, analisada detidamente a realidade social, se
seleccionem, especifiquem e graduem segundo parâmetros de referência constitucional,
os comportamentos humanos infractores de bens jurídicos essenciais e se estabeleçam
penas proporcionadas a cada facto, daí que a simples eliminação de um modelo de
crime reflexamente altere todo o quadro, o que equivale a dizer que, neste campo, a
competência negativa tem, ao cabo e ao resto, profundos efeitos positivos.
Por estes motivos, e muito em especial pelo facto de estas duas vertentes da
competência, a positiva e a negativa, não serem perfeitamente separáveis, impõe-se a
interpretação de que só a Assembleia da República pode intervir legislativamente em
todo este domínio.

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