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Comentário de Acórdão Direito Urbanismo - prof JM

Direito do Urbanismo (Universidade de Lisboa)

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Anotação ao Acórdão do STA de 24/09/2020


(Proc. Nº 01768/13)
Aluno: Francisco Cancela de Abreu Ribeiro Ferreira
Turma/Subturma: A/1
Cadeira: Direito do Urbanismo

Introdução:

1. No presente comentário de jurisprudência, procurarei analisar criticamente a


decisão do Supremo Tribunal Administrativo, tomada no âmbito da apreciação de
um recurso de uma decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.

2. Nas linhas que se seguem, começarei por expor brevemente o litígio e a base
factual que o desencadeou. De seguida densificarei três questões jurídicas
abordadas pelo tribunal: em primeiro lugar, a questão da caducidade da licença de
loteamento pela falta de declaração de compatibilidade com Plano Regional
posterior; em segundo lugar a questão da obrigação de lotear e os ónus do loteador;
por fim, a questão central do acórdão - a exigência de uma prévia licença de
licenciamento como parâmetro de validade de uma posterior licença de construção.

Breve análise do litígio e das alegações das partes:

3. No presente acórdão, o STA concedeu provimento a um recurso interposto pela


Câmara Municipal de Odemira, revogando a sentença do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa que declarava a nulidade de uma deliberação em que esta
aprovara o alvará de construção nº 37/99.

4. A questão foi desencadeada quando particular (A) requeriu à CM de Odemira um


alvará de construção para uma operação urbanística que consistia na construção de
um “bloco de apartamentos”. O alvará foi concedido a 16 de dezembro de 1998 pelo
respetivo órgão, mas o problema surgiu porque a operação urbanística se situava
numa zona que tinha sido sujeita a um loteamento, mas o alvará de loteamento
havia caducado e a sua caducidade havia sido declarada pela Câmara em junho
desse ano.

5. Subjacente à caducidade do alvará de loteamento nº 7/89 esteve o


incumprimento pelo requerente da obrigação de pedir a declaração de conformidade
desta com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano
(PROTALI), aprovado a 27 de agosto de 1993. Esta exigência vem prevista no art 1º
do Decreto-Lei 351/93, que faz depender as licenças de loteamento anteriores à
entrada em vigor de um Plano Regional da obtenção de uma declaração de
conformidade com o mesmo, sob pena da respetiva caducidade.

6. A deliberação da CM de Odemira que aprovou o alvará de construção foi tomada


após a declaração da Câmara que declarava a caducidade do alvará de loteamento
e sem que tivesse sido previamente deliberada a aprovação de um novo alvará de
loteamento ou a renovação do anterior.

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7. Assim, o Ministério Público (MP) argumenta que a aprovação de uma licença de


construção para uma operação urbanística sem que existisse prévio alvará de
loteamento, já que o existente caducara, seria nula, segundo o art. 52º/1 b) do DL
445/91 (comina expressamente a nulidade para atos de licenciamento que violem o
disposto em instrumentos de planeamento como o alvará de loteamento). Estes
argumentos foram seguidos pelo Tribunal da primeira instância, que entendeu que
“a ausência de alvará de loteamento constitui facto impeditivo do direito ao
licenciamento da construção válido”, violando assim o art. 1º/1 do DL 448/91.

8. Por seu lado, o município discorda do entendimento segundo o qual a existência


de um prévio alvará de loteamento deva ser considerada condição de validade de
uma posterior licença de construção e veio naturalmente a recorrer da sentença.
Argumenta, no essencial, que ao tempo dos factos os Decretos-Lei nº 445/91
(Regime de Licenciamento de Obras Particulares) e nº 448/91 (Regime Jurídico dos
Loteamentos Urbanos) autonomizavam as operações de loteamento de operações
de licenciamento de obras de particulares e que o art. 52º/1 do primeiro apenas
previa como causa de nulidade da licença de construção a desconformidade com
um alvará de loteamento em vigor.

9. O STA centrou a sua análise na questão de saber se, pelo facto do alvará de
loteamento ter caducado, a posterior emissão de uma licença de construção
enfermaria o vício de nulidade previsto no art. 52º/1 b) do DL 448/91, vindo a
entender que tal não acontecia e declarando a existência do erro de julgamento
alegado pela recorrente.

1ª Questão – A caducidade da licença de loteamento por incompatibilidade


com um Programa Regional

10. Apesar desta questão não ser central na decisão do caso em concreto, uma vez
que tanto o Tribunal como as partes dão como assente a caducidade da licença de
loteamento nº 7/89, tendo esta sido inclusivamente declarada pela CM de Odemira
numa deliberação de 17 de junho de 1998. Esta nulidade teve origem, como acima
referido, no facto do titular da licença não ter obtido a declaração de conformidade
da sua licença com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral
Alentejano (PROTALI), que havia sido aprovado a 27 de agosto de 1993.

11. Esta exigência, tal como acima referido, vinha prevista no art. 1º do DL 351/93,
que prescrevia que licenças de loteamento devidamente tituladas e emitidas em
data anterior à entrada em vigor de Planos Regionais de Ordenamento do Território
(entretanto designados Programas Regionais pelo novo RJIGT) ficavam “sujeitas a
confirmação da respetiva compatibilidade com as regras de uso, ocupação e
transformação do solo” desse mesmo plano. O facto do titular do alvará não ter
requerido a respetiva declaração de conformidade com o PROTALI levou à
caducidade do mesmo. Existirá de facto uma “condição resolutiva implícita” 1, na
medida em que cada titular de uma licença de loteamento está sujeito a vê-la
caducar se entretanto for aprovado um Plano Regional que abranja a sua área e

1 Designação usada pelo Acórdão 0288/17, de 28 de setembro de 2017 do STA

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não solicite atempadamente a declaração de compatibilidade prevista no Decreto-


Lei em questão.

12. Este preceito levanta, no entanto, diversas dúvidas de constitucionalidade, sob


as quais o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar,
inclusivamente em sede de fiscalização sucessiva abstrata, no acórdão 517/99 2. Em
primeiro lugar, pelo facto deste regime de caducidade vir permitir a extinção de
situações jurídicas de particulares validamente constituídas a partir de atos
legislativos posteriores, indo contundir com a proibição da retroatividade de normas
restritivas de direitos, liberdades e garantias do art. 18º/3 CRP e “pondo em causa a
confiança dos cidadãos na unidade da ordem jurídica, enquanto corolário da
consagração do Estado de Direito (art. 2º CRP)” 3; simultaneamente, ela representa
uma ingerência dos poderes do Governo sobre os Municípios, já que os PROTs são
aprovados pelo Governo e esta faculdade desrespeitaria a limitação da tutela das
Autarquias Locais pelo Estado à tutela de legalidade.

13. No referido acórdão, o Tribunal entende que este regime de caducidade de


licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção, do art. 1º do
Decreto-lei nº 351/93, não é inconstitucional. Refere, de forma surpreendentemente
vaga, que o direito de propriedade previsto no art. 62º da lei fundamental se exerce
“nos quadros definidos pela Constituição e pela lei” e alega genericamente que “o
interesse geral não pode deixar de atender às necessidades de ordenamento do
território”4. Ora, apesar de ser indiscutível que o direito de propriedade admite
limitações impostas pela lei, o escopo da tutela constitucional é garantir que os atos
ablativos deste direito são sempre exercidos através de um procedimento típico,
subordinado à lei e acompanhados de uma justa indemnização (62º/2 CRP). O
Tribunal invoca ainda uma noção muito estrita do que é uma lei restritiva de direitos,
liberdades e garantias com eficácia retroativa proibida pelo art. 18º/3 da
Constituição, entendendo que esta só será inconstitucional quando afetar “de forma
inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expectativas
legitimamente fundadas dos cidadãos”.

14. Contudo, a fundamental razão para a inconstitucionalidade do preceito é, a meu


ver, orgânica. Isto porque, subscrevendo o entendimento do juíz José Manuel
Cardoso da Costa, admitindo-se o direito de propriedade como um direito de
natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, a sua limitação é objeto de
reserva relativa parlamentar. O problema não está apenas no facto dos direitos dos
particulares validamente constituídos serem retroativamente destruídos, mas no
facto de o serem através de um ato do Governo, neste caso um Programa Regional.
E entendendo a licença de loteamento como um “ato administrativo constitutivo de
direitos e interesses legalmente protegidos” 5, gozará da proteção relativamente à
sua revisão e quanto aos efeitos retroativos de outros atos administrativos,
regulamentares ou legislativos.

2 http://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_main.php?ficha=8724&pagina=289&nid=3434
3 Ibidem, ponto 6.2
4 Ibidem, ponto 6.1
5 Loteamentos urbanos e dinâmica de normas de planeamento: revisitando o tema a propósito do Parecer da
Procuradoria Geral da República n.º 33/2016, Fernanda Paulo Oliveira, in Direito do Urbanismo, Jurisdição
Aministrativa e Fiscal, CEJ, setembro de 2020

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15. Na verdade, como afirma o Ministério Público, este regime prevê duas formas de
extinção de licenças: a caducidade, no caso do particular não pedir a declaração de
conformidade, e uma autêntica revogação administrativa se a declaração de
conformidade for pedida mas recusada.

16. No caso em concreto, a questão foi apenas liminarmente abordada pelo tribunal,
o que é compreensível, uma vez que a própria Câmara havia declarado a sua
caducidade, pois já tinham decorrido os 90 dias concedidos pelo art. 2º/1 do DL para
ser solicitada a declaração de conformidade com o PROTALI e não havia nenhum
justo impedimento, pelo que já não era possível ao operador urbanístico obter a
declaração de conformidade.

17. Quanto à compatibilidade do próprio alvará de construção com o PROTALI, ela


também não é verdadeiramente discutida pelo tribunal. Não só porque o alvará foi
aprovado estando o PROTALI já em vigor, e por isso não estava sujeita à exigência
do art. 1º do DL nº 351/93, mas também porque a construção a realizar estava
incluída no Plano de Urbanização de Vila Nova de Milfontes (PGU).

2ª questão – A obrigação de lotear e os ónus do loteador

18. Outra questão fundamental da decisão refere-se à obrigação de lotear e aos


ónus do loteador. Para isso, cumpre referir os traços gerais desta operação
urbanística e do instrumento jurídico do seu licenciamento.

19. As operações de loteamento são importantes formas de transformação dos


solos e têm repercussões relevantes no ordenamento do território, no ambiente e na
qualidade de vida dos cidadãos. Traduzem, no seu essencial, uma projeção de
criação de novos espaços destinados à habitação através de uma operação de
fracionamento ou reconfiguração fundiária. Foi em 1965, com a aprovação do
Decreto-Lei nº 46.673, que pela primeira vez se regulou este tipo de operações,
sendo até então entendidas como estando compreendidas pelo escopo do direito de
propriedade privada e dispensadas de intervenção pública. Atualmente vêm
previstas no art. 2º/1 i) do Decreto-Lei nº 555/99 (RJUE) e abrangem tanto as
operações típicas de divisões de prédios, como os reparcelamentos (reconfiguração
de prédios para a criação de lotes destinados à edificação urbana 6). Os
emparcelamentos (aglutinação de prédios urbanos com o objetivo de neles
implantar uma edificação urbana) estavam previstos no conceito do RJUE mas
foram entretanto retirados pela Lei nº 60/2007. Como pontos em comum das
operações de loteamento temos, nas palavras da prof. Fernanda Paula Oliveira:
uma conduta voluntária (e não desencadeada por factos naturais ou atos da
Administração) determinadora de uma divisão ou reconfiguração predial, que dá
origem à formação de unidades prediais autónomas (designados lotes) destinados
imediata ou subsequentemente à edificação urbana.

20. O seu regime jurídico específico sempre teve por objetivo garantir que a criação
de núcleos de edifícios para a habitação fosse acompanhada das necessárias
infraestruturas e equipamentos coletivos (redes de saneamento, redes viárias,
espaços verdes coletivos, etc.), obstando à criação de “núcleos habitacionais que
6 Entrada “Reparcelamento Urbano” no Lexionário DRE

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contrariem o racional desenvolvimento urbano do território” 7. Esta exigência traduz o


princípio da “precedência da urbanização sobre a edificação” 8, exigindo que o
operador particular garanta que o seu projeto se coaduna com as exigências da vida
comum em cidade e que seja ele a comparticipar nas infraestruturas urbanas
necessárias ao aproveitamento pelos futuros moradores dos lotes da sua habitação.
Atualmente, esta exigência vem prevista no art. 43º do RJUE e constitui um
autêntico “ónus” imposto ao loteador. Outro ónus atualmente imposto aos loteadores
é o que vem previsto no art. 44º do RJUE e que se traduz na cedência ao domínio
municipal de parcelas do terreno a lotear, para a implantação dos espaços verdes
públicos e outras infraestruturas públicas, na lógica do princípio da igualdade na
contribuição para os encargos públicos.

21. Estas exigência têm por base o facto das operações de loteamento serem, na
sua larga maioria, promovidas por particulares, com intuito de, após as obras de
edificação, vender as frações e obter vantagens económicas através do produtos
das vendas. E por isso se classificam, no entender do prof. João Miranda, como
uma “acção privada de interesse público”9 de âmbito urbanístico. E estas concretas
imposições conciliam-se com a própria instância de fiscalização que é a tramitação
para aprovação do alvará de loteamento pela Câmara Municipal, que antecipa para
esta fase do projeto do loteamento a verificação da sua conformidade com a lei e
com os planos aplicáveis. Adicionalmente, a intervenção da AP não deve ser
entendida como de estrito controlo prévio, mas deve ser olhada como uma autêntica
“forma de conjugação de vontades entre os sujeitos público e privado na
programação do ordenamento de uma zona”10.

22. Relevante para a decisão do acórdão foi o facto de, à altura em que foi aprovado
o alvará de construção, o âmbito da “obrigação de lotear” e da aplicação dos ónus
do loteador ser mais restrito do que prevê o atual RJUE e nesse sentido não
abranger a operação em causa. O Decreto-Lei nº 448/91, apesar de já prever o
regime específico do loteamento e dos ónus do loteador, colocava como critério
fundamental para a aplicação do regime, no entender do tribunal, a realização de
uma operação de fracionamento de um ou vários prédios em divisões autónomas.
Só com o RJUE se passou a colocar a tónica na transformação no solo urbano
provocada pela reconfiguração e autonomização de frações, vindo-se
consequentemente prever no art. 57º/5 a aplicação dos arts. 43º e 44º (ónus do
loteador) a obras com “impactes semelhantes a uma operação de loteamento”. Esta
disposição vinha prevenir exatamente que operações que não correspondessem ao
conceito legal de operação de loteamento, mas cujas implicações no uso do solo
fossem semelhantes, como a construção numa fração autonomizada, se
escapassem aos encargos específicos do regime dos loteamentos urbanos.

23. Contudo, o tribunal reconheceu, e no meu entender corretamente, que o regime


em vigor à data da aprovação da licença não permitia impor ao particular as
exigências que caracterizam os loteamentos urbanos, pois o que estava em vigor
era um “conceito normativo determinado” de loteamento. As insuficiências das
soluções legislativas funcionam contra a Administração Pública e querer resolvê-las

7 Preâmbulo do Decreto-Lei nº 46.673 de 29 novembro de 1965


8 Parecer da PGR nº 33/2016
9 A Função Pública Urbanística e o seu Exercício por Particulares, João Miranda, 2012, pg. 214
10 Ibidem, pg. 216

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de alguma forma virtual representaria sempre um desrespeito pelo Estado de Direito


e pela vinculação da Administração Pública à legalidade (arts. 2º e 266º CRP). Mas
este facto não deve ser entendido como garantindo ao particular total liberdade,
pois, tal como argumenta a Câmara Municipal e refere o tribunal, a obra em causa
teria sempre de ver a sua validade e conveniência avaliada à luz dos planos
municipais em vigor, neste caso o Plano Geral de Urbanização de Vila Nova de
Milfontes, o que no caso concreto se havia respeitado.

3ª questão - A nulidade do alvará de construção por inexistência de prévio


alvará de loteamento

24. Apesar da relevância das questões acima referidas, o acórdão centra a sua
análise e a decisão no problema de perceber se o alvará de loteamento era um
pressuposto legal necessário da emissão da licença de construção, pois foi este o
fundamento invocado na sentença recorrida para a declaração de nulidade da
deliberação camarária. Cumpre clarificar os instrumentos de licenciamento
municipal em causa e as suas relações, analisar a fundo os argumentos trazidos
pelas partes na defesa das suas pretensões e pronunciar-me sobre a decisão do
tribunal.

25. Em primeiro lugar cumpre esclarecer que estamos perante diferentes atos
administrativos de licenciamento. O alvará de loteamento concede uma autorização
a operações que “tenham por objeto ou por efeito a constituição de um ou mais
lotes, destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulte
da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento” (art. 2º i) RJUE) e
como já vimos, as operações de loteamento, pelas implicações específicas que têm
no projeto urbano, estão sujeitos a especiais encargos, bem como a trâmites
especiais (em particular a exigência de consulta de entidades interessadas, nos
termos do art. 12º do DL 448/91, que passou a ser um parecer da CCDR nos termos
do art. 42º do RJUE). Por seu lado, o alvará de construção vem conceder
licenciamento a obras de particulares, como de reconstrução, ampliação, reparação
ou demolição de particulares e que não sejam enquadradas numa operação de
loteamento (estas apenas estão sujeitas a comunicação prévia – art. 4º/4 c) RJUE).
Existe, por isso, uma maior simplicidade do procedimento de licenciamento de obras
dos particulares, que se deve ao seu âmbito mais concreto e com menos
implicações a nível da organização do tecido urbano do que as operações de
loteamento. Apesar do RJUE ter concentrado os dois procedimentos num só
diploma, as diferenças que justificavam a divisão em dois diplomas distintos
(Decreto-Lei nº 445/91 para licenciamento de obras de particulares e nº 448/91 para
loteamentos urbanos) subsistem.

26. A decisão recorrida declarou a nulidade da deliberação camarária que aprovava


o alvará de construção nº 37/99 por entender que a “ausência de alvará de
loteamento constitui facto impeditivo do direito ao licenciamento da construção
válido”, violando assim o art. 1º/1 do Decreto-Lei 448/91. O Ministério Público
sustentava esta decisão nas suas contra-alegações com o facto da caducidade do
alvará de loteamento, para além de subtrair o ex-titular de qualquer direito dele
decorrente, fazer extinguir da ordem jurídica todos os efeitos dele decorrentes,
“deixando de ser possível o licenciamento de construção ao abrigo desse

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loteamento”. O Ministério Público sustentava a sua posição com o decidido no


Acórdão do STA de 17 de maio de 1994, que recorria a um argumento a fortiori, não
como fundamento da nulidade, mas da indeferimento, pelo 63º/1 do Decreto-Lei n.º
445/91. Assim, se a lei previa como causa de indeferimento a desconformidade com
alvará de loteamento em vigor, deve-se entender que não pode deixar de ter querido
abranger a situação mais grave de inexistência do loteamento, o mesmo devendo
servir para a cominação de nulidade em causa. O ato seria nulo pelo art. 52º/1 do
Decreto-Lei nº 445/91, em respeito do art. 133º/1 CPA que exige que para além dos
casos enunciados, só serão nulos os atos para os quais a lei comine expressamente
essa forma de invalidade.

27. A Câmara Municipal traz, contudo, vários argumentos contra este entendimento,
defendendo que existência prévia de um alvará de loteamento não é pressuposto da
emissão de um alvará de construção. Refere, em primeiro lugar, que os Decretos-
Lei nº 445/91 e nº 448/91 autonomizavam operações de loteamento do
licenciamento de obras de particular e não previam em qualquer lugar a exigência
de que um deles exista para o outro possa ser válido. A este argumento acresce o
facto das operações de loteamento serem, na sua larga maioria, impulsionadas por
particulares e estarem longe de ser um instrumento imprescindível para o
planeamento urbano a pequena escala, existindo para tal os Planos de Urbanização
e os Planos de Pormenor. São operações específicas pelas quais não é essencial
que qualquer terreno a urbanizar passe. Em segundo lugar a CM invoca que no art.
52º/1 b) do DL 445/91 apenas se apresenta como causa de nulidade a
desconformidade do alvará de construção com o alvará de loteamento e que,
mesmo com a entrada em vigor do RJUE, continua a não ser pressuposto de uma
licença de construção a existência de um alvará de loteamento e apenas a
desconformidade entre estes dois é causa de nulidade (68º a).

28. O Tribunal não se pronuncia diretamente sobre esta questão, não rejeitando
nem aceitando o entendimento de que, em abstrato, a existência prévia de um
alvará de loteamento é condição de validade de posterior licença de construção.
Antes, e a meu ver de forma correta, procura indagar se no caso concreto existia ou
não a obrigação de lotear, ou seja, de sujeitar a obra do particular aos requisitos
específicos do loteamento, acabando por concluir que tal não ocorria, pelas razões
acima expostas. Conclui a sua argumentação referindo que, mesmo que o promotor
pretendesse renovar a licença de loteamento caducada, o resultado seria
semelhante ao que ocorreu na prática. Isto porque o particular podia requerer
apenas uma operação de destaque (5º do Decreto-Lei 448/91), que se limitaria ao
controlo da legalidade e da compatibilidade com o PGU. E ainda porque o facto do
alvará de loteamento ter entrado em vigor e só posteriormente ter caducado, leva a
presumir que os encargos que legalmente são impostos ao loteador se teriam
consolidado na ordem jurídica. Exigir que o particular renovasse a licença de
loteamento seria um formalismo sem qualquer consequência prática relevante,
contrariando o objetivo de evitar a burocratização presente no art. 267º/1 CRP.

29. Apesar do Tribunal não o declarar expressamente, parece-me de recusar a ideia


de que seria possível arguir a nulidade de uma licença de construção por
inexistência de um alvará de loteamento. É que, seguindo a linha de argumentação
do Ministério Público até às suas últimas consequências, não só se verificaria a
nulidade de licenças de construção em zonas sujeitas a uma licença de loteamento

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que haja caducado, mas de qualquer licença de construção prevista em plano


municipal que ocorra em zona em que não se tivesse verificado uma anterior
operação de loteamento e o consequente licenciamento. O que contunde
claramente com a natureza eventual dos loteamentos urbanos e da autonomia dos
particulares na tomada de decisão relativamente à realização da operação, bem
como a centralidade dos planos enquanto instrumentos de planeamento territorial.
De resto, tanto o art. 52º b) do Decreto-Lei 448/91 como o 68º a) do RJUE são
bastante claros quando cominam com a nulidade licenças que violem “alvará de
loteamento em vigor”. E é nesta linha que se deve recusar argumento a fortiori do
Acórdão do STA de 17 de maio de 1994 (na fórmula “se é proibido o menos,
também será proibido o mais”). De facto, a inexistência de um alvará de loteamento
não é necessariamente uma situação materialmente mais gravosa do que a
desconformidade. E isto porque o alvará de loteamento é um instrumento cuja
existência não é exigida pela lei, diferentemente, por exemplo, do Plano Diretor
Municipal (95º/4 RJIGT).

CONCLUSÃO

O Tribunal entendeu, a meu ver corretamente, dar provimento ao recurso interposto


pela CM de Odemira e revogar a sentença que anulava a deliberação que aprovava
a licença de construção n.º 37/99. Seria a única decisão aceitável em face do
regime das operações de loteamento aplicáveis temporalmente ao caso, pois as
soluções que o RJUE veio trazer para este tipo de casos ainda não tinha entrado
em vigor. Atualmente, contudo, a lei previne que este tipo de operação urbanística
se evada aos encargos impostos ás operações de loteamento, nomeadamente
quanto à previsão de que as futuras habitações poderão usufruir de infraestruturas
públicas, equipamentos coletivos e espaços verdes e que a urbanização se faz de
forma racional e coordenada. Contudo, face do caso concreto, não poderia o
julgador recorrer a outra solução, tanto porque a lei não o previa, como pelo facto do
titular da operação em causa não pôr em causa de forma grave os interesses que o
licenciamento dos loteamentos urbanos exige.

Francisco Cancela de Abreu Ribeiro Ferreira


Lisboa, 18 de abril de 2021

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