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Enrique Leff

Epistemologia Ambiental

5 a edkáo
2' reimpressáo

Traduáo de
Sandra Valenzuela

®EDIT OrRA
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL
Enrique Leff

Capa: DAC
Preparacdo de originais:Agnaldo Alves
Revisdo técnica da traduvdo:Paulo Freire Vieira
Composiedo: Linea Editora Ltda.
Coordenacdo editorial: Danilo A. Q. Morales

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do autor e do editor.

2000 by Enrique Leff para esta edicáo em língua portuguesa no Brasil.

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Impresso na India — fevereiro de 2014


A Ignacy Sachs, quem iluminou o caminho pelo
qual haveria de andar, em minha busca infinita,
ao encontro do ambiente.
C— EDIT<«SRra 7

SUMÁRIO

Prólogo á zia edigáo 9


1. Sobre a articulagáo das ciéncias na relagáo natureza-sociedade 23
2. Interdisciplinaridade, ambiente e desenvolvimento sustentável 61
3. Pensamento sociológico, racionalidade ambiental e
transformagóes do conhecimento 109
4. Saber ambiental: do conhecimento interdisciplinar ao diálogo de
saberes 159
5. Pensar a complexidade ambiental 191
Bibliografia 227
@EDITORP 9

PRÓLOGO ÁA ED00
*

A publicagáo deste livro — formado por cinco textos escritos entre 1980 e
2000 — suscitou urna preocupagáo: a de justificar a coeréncia do pensamento
epistemológico desenvolvido nos capítulos que o constituem, em seus diferen-
tes momentos de reflexáo, na transigáo e nos saltos epistémicos desde seus fun-
damentos no estruturalismo teórico e no racionalismo crítico dos trés primeiros
capítulos, até o pensamento pós-estruturalista e pós-modernos dos dois últimos
capítulos do livro; da coeréncia entre a epistemologia althusseriana aplicada á
articulagáo das ciéncias, as estratégias de poder no saber ambiental fundadas na
arqueologia de Michel Foucault, a categoria de racionalidade de Max Weber, a
ontologia existencial de Martin Heidegger, a ética da outridade de Emmanuel
Lévinas e o pensamento desconstrucionista de Jacques Derrida.
Os motivos dessas transigóes e da extemalizagáo contínua (descontínua)
do ambiente no trajeto seguido por essa epistemologia ambiental foram o tema
da aula inaugural para a qual fui convidado pelo Centro de Desenvolvimento
Sustentável da Universidade de Brasília em agosto de 2003, e em seguida trans-
crita e publicada em um pequeno livro'. Náo haveria sentido em repetir aqui as
argumentagóes afi expostas e remeto os leitores interessados a esse texto. Em-
bora afi tenham sido esbogados as paisagens e os cenários de cada urna das
órbitas desse percurso, e expostos seus saltos e transigóes, ainda faltava justifi-
car a coeréncia desse pensamento ao longo de seu trajeto: o "abandono" do
estruturalismo marxista de meus primeiros escritos; minha falta de submissáo
ás teorias de sistemas e ao pensamento da complexidade; minha inclinagáo para
a política do saber, a atragáo pela sociologia weberiana, minha sedugáo pelo
pensamento da pós-modernidade, e até a possível queda em um ecletismo injus-
tificável. Se retomo o tema náo é para me explicar e me justificar diante das
possíveis críticas (mais imaginadas que recebidas), e sim porque a coeréncia do

1
10 ENRIQUE LEFF

pensamento da complexidade, do saber e da racionalidade ambiental é urna ques-


táo imprescindível densa epistemologia ambiental: a de se pensar criticamente.
O livro é constituído por textos que foram escritos durante um período de
20 anos. Ao reuni-los neste volume tomei a decisáo de náo reformulá-los, atualizá-
los ou complementá-los, de náo apagar sua própria história como momentos
datados de escrita e expressáo de um pensamento que náo tem o objetivo de se
completar, e sim o de se manter vivo, abrindo caminho a partir do que faltava
para pensar em cada urna de suas etapas. Este prólogo deve ser lido, portanto,
como uma reflexáo sobre a coeréncia das aventuras e desventuras desse trajeto
epistemológico através de seus saltos epistémicos. É urna pergunta obrigatória,
sobretudo guando nossas referéncias no estudo da história das ciéncias vém de
Bachelard, Canguilhem, Althusser, Foucault e Kuhn, que em sua "física quántica"
da ciéncia mostraram que o conhecimento náo avanga em urna evolugáo contí-
nua, mas por rupturas epistemológicas e mudangas de paradigmas. Do mesmo
modo que se esquadrinhou o fio que une a física mecánica á física quántica ou á
física relativista, ou o evolucionismo á mutagáo genética, perguntamo-nos se
entre os círculos de exteriorizagáo do saber ambiental há ruptura ou continuida-
de, extensáo lógica de um método de pensamento e urna linha teórica, ou aber-
tura para urna nova compreensáo que anularia ou superaria o valor epistemoló-
gico da abordagem anterior.
Os saltos e deslocamentos seguidos por esse itinerário estáo unidos mais
por um certo espírito questionador que por um método de produgáo de conheci-
mentos. Poderíamos afirmar que, em sua coeréncia, está subjacente urna co-
herano, no sentido de que algo desse espírito crítico é transmitido e incorpora-
do no tecido vital do novo círculo de reflexáo que emerge (da visáo complexa
do concreto como síntese de múltiplas determinagóes de Marx ao estruturalis-
mo crítico; entre a idéia de totalidade complexa de Lukács e a complexa ordem
de racionalidade no todo social de Weber; da dissociagáo entre o ente e o ser de
Heidegger á diferenga de Derrida e á outridade de Lévinas. Co-heranga na críti-
ca a todo o pensamento metafísico e científico que herda e funda a modernida-
de, e que antecede a manifestagáo da crise ambiental corno crise do conheci-
mento2. A coeréncia reside mais em posicionar esse questionamento a partir de
fora do pensamento estabelecidó do que em um "modo de pensar", que certa-
mente náo poderia ser identificado com o de um pensamento complexo no qual
as esferas de pensamento se ligam e se entrelagam através de um sistema de
convergéncias, inter-relagóes e retroalimentagóes. Essa coeréncia se verifica por
urna via hermenéutica que ressignifica e atualiza o sentido de proposigóes inse-
ridas em diferentes doutrinas de pensamento que atravessam os tempos de refle-
xáo filosófica.
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 11

O recurso á metáfora pode ser-nos útil para compreender essa busca teóri-
ca. E talvez a analogia da concepgáo do átomo na física quántica possa prestar
um bom servigo epistemológico. A primeira órbita é a de menor energia, porém
a mais próxima do núcleo positivista em torno do qual gira o saber ambiental.
Nesse sentido, o estruturalismo teórico de Althusser permite urna crítica mais
próxima, ainda com as ferramentas do pensamento científico objetivo. Esse es-
pírito crítico impulsiona o pensamento ambiental para suas novas órbitas.
O saber ambiental que emerge dessa crise de civilizagáo e da racionalidade
do mundo moderno plasma-se no espato de exterioridade do pensamento meta-
físico e do conhecimento científico que procurara abarcá-lo e atraí-lo para seu
centro de gravidade. Foi essa a vontade das teorias de sistemas, dos métodos
interdisciplinares e das ciéncias da complexidade que emergem nessa encruzi-
lhada do pensamento. No entanto, o saber ambiental é expulso do núcleo da
racionalidade científica por urna foro centrífuga que o impulsiona para fora,
que o impede de se fundir no núcleo sólido das ciéncias duras e objetivas, de se
subsumir em um saber de fundo, de se engrenar no círculo das ciéncias e se
dissolver em urna reintegragáo interdisciplinar de conhecimentos. O saber am-
biental está em fuga; mantém-se em um processo contínuo de demarcagáo, de-
limitagáo, disjungáo, desconstrugáo e diferenciagáo do conhecimento verdadei-
ro, do saber consabido, deslocando-se para a exterioridade dos paradigmas esta-
belecidos, libertando-se do jugo do propósito totalitário de todo pensamento
global e unificado. Essa é a vocagáo do saber ambiental que une as diferentes
órbitas de seu pensamento epistemológico.
Ao longo do livro, o saber ambiental se mantém nesse espato exterior ao
núcleo das ciéncias. Essa vontade de exteriorizagáo permanente se verifica em
um processo de demarcallíes sucessivas. A renúncia ao fechamento dogmático,
ao conformismo do pensamento e á finalizagáo do saber é o fio condutor desta
epistemologia ambiental, o que permite extraditar o pensado em cada momento
e abrir as portas do pensamento para novos horizontes do saber, para o que ainda
falta pensar em sua tarefa questionadora, sabendo que náo existe retorno para o
porto originário e que nunca terminará de sulcar os mares do conhecimento.
No entanto, sua coeréncia náo se contenta com essa vontade de exteriori-
zagáo. Esta terá de ser confirmada na organizagáo de suas argumentagóes em
cada urna de suas etapas: no racionalismo crítico aplicado ao estudo da interdis-
ciplinaridade no campo do saber ambiental; sobre os saltos epistémicos na ar-
queologia do saber e a configuragáo das estratégias de poder no saber que se
inscrevem nessas formagóes discursivas; sobre o encadeamento e a confronta-
gáo de diferentes racionalidades; sobre o pensamento da complexidade e a con-
12 ENRIQUE LEFF

figuragáo de entes e identidades híbridos; sobre as relagóes de outridade e o


diálogo de saberes em urna política da difereno.
Será preciso, portanto, elucidar a coeréncia desta epistemologia ambiental
em evolugáo, em que cada temática se solta, se desdobra e se desloca para novos
campos de reflexáo pelas perguntas geradas pelo pensamento final de cada eta-
pa, abrindo-se para novos horizontes em resposta ao impulso epistemofílico que
a anima e ás pulsaglies que batem no próprio sangue dos textos. O ambiente
como saber, foco ardente desta reflexáo, langa o pensamento para a exteriorida-
de de seu objeto de estudo. O avango do saber ambiental, desde o espato de
exterioridade que ocupa diante da racionalidade das ciéncias, vai descobrindo
novas facetas em seu caminho; ao mesmo tempo, adquire novas formas de ex-
pressáo no diálogo que se estabelece com outros autores, com outras categorias
filosóficas e outros jogos de linguagem.
Esses fios invisíveis, que unem o tecido discursivo dos diferentes capítu-
los, sáo os que dáo ao livro sua consisténcia teórica corno proposta integrada e
náo apenas como um compéndio de fases e facetas sucessivas de um pensamen-
to. A pergunta pela coeréncia do livro leva a pensar os fios que ligam o estrutu-
ralismo teórico e o racionalismo crítico aplicados ao conhecimento no campo
ambiental emergente nos anos 1970 (a teoria de sistemas, a problemática da
interdisciplinaridade e a articulagáo das ciéncias, o pensamento da complexida-
de) com as estratégias de poder no saber no interior do discurso e a geopolítica
do desenvolvimento sustentável, com a reflexáo sobre os saberes culturais e a
significagáo da natureza, sobre a complexidade ambiental e a emergéncia de entes
híbridos — de vida, tecnologia e símbolos —, a reinvengáo das identidades, a
ética da outridade e a política da diferenga. Esse questionamento transcende a
tradigáo filosófica, epistemológica, gnosiológica, cognitiva e ética; abre a relagáo
do ser com o saber, do diálogo de saberes a partir de seres culturalmente diferen-
ciados e da constituigáo de atores sociais na reapropriagáo social da natureza.
É nesse amplo campo de solidariedades e demarcagóes teóricas que se
propbe a pergunta sobre a relagáo entre a epistemologia de Althusser e
Canguilhem, a ontologia de Heidegger e a ética de Lévinas, passando pelo pen-
samento sociológico de Weber, a arqueologia do saber de Foucault, e a filosofia
pós-moderna iniciada por Nietzsche e seguida por Derrida, Deleuze, Guattari e
Baudrillard. Como entender a coeréncia do encadeamento e articulagáo dessas
construgejes teóricas que no campo do pensamento filosófico aparecem como
rupturas epistémicas, demarcagóes teóricas e posigóes teóricas irreconciliáveis?
Esta é a provocagáo que fazem as aventuras e desventuras desta epistemo-
logia ambiental: a Odisséia de um pensamento que, saindo do porto do raciona-
lismo crítico, se vé impelido a navegar, levado por sua vontade de saber, para
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 13

novos horizontes onde o pensamento metafísico e o logos científico — todo


pensamento naturalista, ecologista, sistémico — se desvanecem, para dar lugar
á construgáo de urna nova racionalidade social.
A mudanga civilizatória anunciada pela crise ambiental nos anos 1960
coincide com urna mudanga epistémica no campo da filosofia, da ciéncia e do
saber: a transigáo do estruturalismo e da racionalidade da modernidade para o
ecologismo, o pensamento da complexidade e a filosofia da pós-modernidade.
Que pontes se estendem entre essa mudanga de época? Que encontros e vín-
culos se produzem entre essas rupturas epistemológicas? Nessa encruzilhada se
ligam os autores que foram convocados ao campo do pensamento ambiental. Na
época em que Althusser publica Lire le Capital e Pour Marx (1965), Derrida
escreve De la Grammatologie e L'Écriture et la Différence. Sáo também os
anos da publicagáo de Les Mots et les Choses (1966) e de L'Archéologie du
Savoir (1969). Nesse apogeu do estruturalismo como limite do pensamento da
modernidade se encaixa o nascimento do pensamento pós-moderno precedido
por Nietzsche e Heidegger.
O saber ambiental promove o diálogo entre Marx e Heidegger, entre
Althusser e Derrida, entre Foucault e Lévinas, nas margens do pensamento esta-
belecido; questiona o conhecimento a partir de fora do campo de positividade
em que se apresenta a coisa, o ente e o logos, a partir da exterioridade da qual
observa o confinamento de todo pensamento que aspira á unidade, á universali-
dade e á totalidade: da episteme estruturalista e da teoria de sistemas até a
ontologia de um ser genérico e a ecologia generalizada como "ciéncia as cién-
cias". O saber ambiental coloca-se fora da idéia do uno, do absoluto e da totali-
dade; do logocentrismo das ciéncias e das visóes sistémicas do pensamento
complexo. Situado nessa extraterritorialidade e ao longo de sua aventura episte-
mológica, o saber ambiental indaga a partir de sua falta de conhecimento, a
partir do nao-pensado, sem se assimilar, sem se fundir e se dissolver numa
ciéncia integrada, num pensamento unitário ou num paradigma transdisciplinar.
A crise ambiental é urna crise do conhecimento: da dissociagáo entre o ser
e o ente á lógica autocentrada da ciéncia e ao processo de racionalizagáo da
modernidade guiado pelos imperativos da racionalidade económica e instru-
mental. O saber que emerge dessa crise no campo de externalidade das ciéncias
se filtra entre as estruturas teóricas e as malhas discursivas do conhecimento
moderno; a partir dali, questiona os paradigmas estabelecidos, abrindo as portas
para o saber negado. O saber ambiental vai derrubando certezas e abrindo os
raciocínios fechados que expulsam o ambiente dos círculos concéntricos do
conhecimento. A epistemologia ambiental confronta o projeto positivista (uni-
versal, objetivo) do conhecimento e deslinda as estratégias de poder que se
14 ENRIQUE LEFF

entrelagam nos paradigmas científicos e na racionalidade da modernidade. Esta


é sua coeréncia estratégica.
A epistemologia ambiental é uma política do saber que busca a sustentabi-
lidade da vida. Para além do propósito de internalizar o ambiente externalizado
da centralidade do conhecimento e do assédio do poder da ciéncia; para além do
acoplamento da teoria e do pensamento com urna realidade dada, a epistemolo-
gia ambiental muda as formas de ser no mundo na relagáo que o ser estabelece
com o pensar, com o saber e o conhecer. É urna epistemologia política da vida e
da existéncia humana. Com isso em mente, voltemos aos capítulos do livro.
No primeiro capítulo, a epistemologia ambiental questiona a aspiragáo das
teorias de sistemas e do pensamento holístico á unidade, á totalidade e a integra-
QáO do conhecimento — através de suas homologias estruturais e de suas inter-
relagóes ecológico-cibernéticas assim como o caráter técnico e pragmático
do projeto interdisciplinar. Ao mesmo tempo, apresenta as condigóes de possi-
bilidade de urna interdisciplinaridade teórica, ou seja, para a articulagáo dos
objetos de conhecimento de duas ou mais ciéncias, diferenciando-se do empi-
rismo e do logicismo do conhecimento científico. A partir do racionalismo crí-
tico de Bachelard, Canguilhem e Althusser, apresentam-se os obstáculos episte-
mológicos e as racionalidades teóricas que sustentam os paradigmas de conhe-
cimento, que os impedem de abrir suas comportas para internalizar urna "di-
mensáo ambiental" ou de reconfigurar suas disciplinas para constituir um saber
holístico guiado por um método e um pensamento da complexidade. A episte-
mologia estruturalista permite mostrar a ficgáo da proposta interdisciplinar, pois
toda ciéncia e toda disciplina sáo constituídas por estruturas teóricas e estraté-
gias conceptuais (paradigmas) que náo se reintegram em um pensamento holístico
pela vontade de um método ou de urna equipe interdisciplinar. A "dimensáo
ambiental" foi-se desvelando, portanto, como um saber que responde ao impen-
sado pelas ciéncias, que no esquematismo dos enfoques de sistemas se percebe
como urna "externalidade" ao campo de seus paradigmas de conhecimento.
A epistemologia althusseriana estabelece, assim, as condigóes teóricas para
pensar urna articulagáo das ciéncias capaz de oferecer urna explicagáo mais con-
creta (síntese de múltiplas determinagóes) de uma "realidade complexa" na qual
confluem diferentes processos materiais e simbólicos, incluindo as causas da
crise ambiental gerada como efeito da racionalidade económica. Ao mesmo tem-
po, serviu como estratégia teórica para pensar uma nova racionalidade social e
produtiva. Partindo das condigóes epistemológicas propostas por Canguilhem
para a construgáo de um objeto interdisciplinar de conhecimento pela colabora-
gáo de diferentes disciplinas e saberes, elaboramos os princípios de uma nova
teoria da produgáo baleada na articulagáo de processos ecológicos, tecnológi-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 15

cos e culturais e pela contribuigáo de diferentes disciplinas nos campos da eco-


logia, da tecnologia e das etnociéncias. Esse paradigma de produtividade
ecotecnológica contrasta com a racionalidade económica dominante, na qual a
natureza foi externalizada do processo de produgáo e, ao mesmo tempo,
desnaturalizada, ao ser reduzida a um insumo produtivo de recursos naturais e
matérias-primas; por esse motivo ignora-se a entropia como lei limite do pro-
cesso económico e o potencial neguentrópico que emerge de tuna nova raciona-
lidade produtiva: ecologicamente sustentável, culturalmente diferente e social-
mente justa3.
O ambiente vai se configurando no espato externo ao círculo das ciéncias.
Essa externalidade náo é a de um saber emergente que a ciéncia possa acolher
para se completar, se atualizar e se finalizar como um progresso no campo do
conhecimento que avanga negando e subjugando saberes, ignorando o real que é
seu Outro e que náo pode integrar na positividade de sua verdade objetiva. O
exemplo mais notório disso é o desconhecimento, da lei da entropia e das con-
digóes ecológicas de sustentabilidade pela racionalidade económica dominante.
A epistemologia ambiental funda-se a partir de um novo saber que emerge do
limite do real (entropia), do projeto de unificagáo forgada do ser e da epopéia da
ciéncia pela objetividade e transparéncia do mundo. O Ambiente se erige como
o Outro da racionalidade da modernidade, do mundo realmente existente e do-
minante. O saber ambiental problematiza as ciéncias para transformá-las. Dali
emergem disciplinas ecológicas e ambientais; contudo, o saber ambiental náo
se integra ás ciéncias, mas as impulsiona a se reconstituir a partir de outra
racionalidade.
A epistemologia estruturalista diferencia-se de todo empirismo, positivis-
mo e realismo que concebe a verdade como identidade, correspondéncia ou
acoplamento do conceito com a realidade; mostra a diferenga entre a realidade e
o real, entre o objeto real e o objeto do conhecimento; indica a forma como a,
prática teórica desenha objetos de conhecimento, formula conceitos e os entre-
laga em teorias para dar conta do real. Mas o pensamento estruturalista — como
as teorias de sistemas — cai ainda na armadilha do "totalitarismo" e do "racio-
nalismo" da teoria; mantém a ilusáo de se desembaragar da ideologia com a
fundagáo de urna ciéncia a partir de urna revolugáo científica que consegue trans-
cender o domínio das ideologias teóricas que a anteceden e escamoteiam seu
lugar da verdade. Já instalada em seu espato de cientificidade, a teoria se cir-
cunscreve em um "todo estruturado já dado" (Althusser), onde o todo pensado
como síntese de múltiplas determinagóes (Marx, Lukács, Kosik) corresponderia
a urna estrutura determinada do real. A complexidade do mundo fenoménico é
imaginada pelo pensamento complexo.
16 ENRIQUE LEFF

O limite do racionalismo e do estruturalismo deveria levar-nos para urna


nova órbita de reflexáo para pensar a teoria como estratégias conceptuais e a
fungáo do sujeito na mobilizagáo das teorias pela vontade de saber. Assim, a
epistemologia ambiental convoca Michel Foucault para estabelecer uma episte-
mologia política capaz de pensar as estratégias de poder no saber para "interna-
lizar" o saber ambiental nos paradigmas das ciéncias e para elucidar as estraté-
gias de poder que o discurso do desenvolvimento sustentável póe em jogo. Essa
reflexáo, por volta dos inícios dos anos 1980, foi a pedra de toque que serviu de
fundamento para pensar os problemas do conhecimento a partir de uma pers-
pectiva ambienta14.
O conceito de saber de Foucault desloca a política fundada na prática teó-
rica para urna política do saber, para estratégias de poder, em que o sujeito-ator
social se vé modificado por seu saber. Para além de ser um objeto de conheci-
mento ou um objeto teórico interdisciplinar, o ambiente se converte em um
objeto de apropriagáo social que póe em jogo estratégias discursivas e significa-
góes culturais que entrara em um debate de sentidos pela sustentabilidade, que
se inter-relacionara com os efeitos de conhecimento das ciéncias. A problemáti-
ca da interdisciplinaridade desloca-se para as estratégias de poder no saber que
se manifestam nas formagóes teóricas e discursivas plasmadas em urna política
da sustentabilidade e da diferenga. A interdisciplinaridade teórica abre-se para o
diálogo de saberes.
O ambiente náo é um objeto perdido no processo de diferenciagáo e espe-
cificagáo das ciéncias, recuperável pelo intercámbio interdisciplinar dos conhe-
cimentos existentes; náo é o conhecimento positivo que viria completar os para-
digmas científicos que esqueceram a natureza, que ignoraram as relagóes ecoló-
gicas e a complexidade ambiental. O ambiente é a falta irreparável e náo
totalizável de conhecimento onde se abriga o desejo de saber que gera um pro-
cesso interminável de geragáo de saberes orientados pela sustentabilidade eco-
lógica e pela justita social. O saber ambiental orienta agóes, promove direitos e
produz técnicas para construir um mundo sustentável condizente com outros
princípios e valores, reconhecendo outros potenciais, restabelecendo a relagáo
criativa entre o real e o simbólico, abrindo-se para o encontro com a outridade.
O diálogo de saberes abre uma via de compreensáo da realidade a partir de
diferentes racionalidades; estabelece um diálogo intercultural a partir das iden-
tidades coletivas e dos sentidos subjetivos, para além da integragáo sistImica de
objetos fragmentados do conhecimento. A complexidade ambiental náo remete
a um todo — nem a urna teoria de sistemas, nem a um pensamento holístico,
nem a urna conjungáo de olhares multirreferenciais. É, ao contrário, a ruptura da
relagáo do conhecimento com o real para uma nova relagáo entre o real e o
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 17

simbólico. Esta é a chave que desloca e transfere a prática teórica do estrutura-


lismo para o reposicionamento do ser no mundo em relagáo com o saber. A
interdisciplinaridade abre-se para o diálogo de saberes no encontro de identida-
des constituídas por racionalidades e imaginários que configuram as referén-
cias, os desejos e vontades que mobilizam os atores sociais para a construgáo de
urna racionalidade ambiental; que ultrapassa a relagáo teórica entre os conceitos
e os processos materiais e a desloca para as relagóes de significagáo entre o real
e o simbólico em urna política da diversidade cultural.
A epistemologia ambiental transcende um exercício permanente de refle-
xáo, teorizagáo e agáo que constrói e transforma a realidade; que implica mu-
dangas na representagáo da realidade; que convoca diferentes disciplinas e póe
em jogo diferentes visóes de mundo. O saber ambiental permite ver as formas
como o conhecimento — do projeto epistemológico cujo método pretende apreen-
der racionalmente o real — termina construindo, destruindo e transformando o
próprio real e a própria realidade. A complexidade ambiental náo apenas integra
as diferentes epistemologias, racionalidades, imaginários e linguagens que para
ele convergem, mas se constitui pela re-flexáo do pensamento sobre o real. A
epistemología ambiental náo é urna ecologia da mente: porque o desejo e o
poder náo seguem nenhuma lei ecológica; porque o ser humano como ser sim-
bólico se distancia de toda norma de comportamento em relagáo com seu am-
biente que fosse derivada de urna lei objetiva; porque náo podemos fugir de
nossa natureza humana, mesmo que nos revistamos da mais profunda das ecolo-
gias e da ética mais piedosa e caritativa.
O saber ambiental ultrapassa o campo do conhecimento científico para se
inserir na ordem da racionalidade — dos imaginários coletivos, das regras de
pensamento, das formagóes discursivas — que permitem vincular os valores e o
saber com o pensamento e a razáo na constituigáo de atores sociais. Nesse sen-
tido, a relagáo do conhecimento, do pensamento e da agáo social ultrapassa o
quadro do pensamento estruturalista e de urna visáo determinista do conheci-:
mento. O debate ambiental se desloca do raciocínio sobre o modo de produgáo
e dos paradigmas do conhecimento para compreender a crise ambiental como
urna crise da racionalidade da modernidade. A superagáo do estruturalismo náo
leva a recuperar o sujeito (da ciéncia) e a intersubjetividade — táo suspeitos de
ideologia e ilusionismo; táo insidiados pelas visóes sistémicas e estruturais que
determinam as idéias e as agóes sociais por sobre a consciéncia do sujeito e de
toda racionalidade comunicativa —, e sim a construir urna racionalidade am-
biental que emerge no campo das estratégias de poder no saber.
A categoria de racionalidade substantiva proposta por Weber vem questio-
nar a jaula de ferro da racionalidade da modernidade para incluir as racionalida-
18 ENRIQUE LEFF

des subjugadas, os valores que conduzem a outros fins, raciocínios e sentimen-


tos diferentes dos estabelecidos pela racionalidade teórica, formal e instrumen-
tal. Este seria o ponto de ancoragem de urna racionalidade ambiental que, sem
excluir o lugar da racionalidade formal e instrumental na construgáo da susten-
tabilidade, questiona seu teoricismo, assim como a determinagáo inscrita na
racionalidade de fins preestabelecidos e meios eficazes para alcangá-los; ao
mesmo tempo, fundamenta-se em valores e significados culturais que abrem o
caminho para uma diversidade de racionalidades.
A racionalidade ambiental volta a trazer ao palco da história o que está
além da divisáo entre sujeito e estrutura, das regras que orientam e legitimam a
agáo humana através da norma construída e aplicada á sociedade pelo Estado. A
partir da categoria de racionalidade ambiental, passa-se a indagar sobre as for-
mas de compreensáo do mundo e a constituigáo do ator social, para observar a
palavra nova que emerge do ser cultural — a partir da diversidade cultural —,
que abre o círculo concéntrico do logos científico, da racionalidade tecnológica
e da razáo de Estado; para observar as relagóes de poder que se introduzem entre
o ser e o saber, entre o pensamento e a agáo social, na abertura para a diversida-
de cultural e sua relagáo com a natureza.
A dispersáo da racionalidade ambiental em um feixe de matrizes de racio-
nalidade leva a averiguar a relagáo entre o pensamento, a razáo, o saber e o
ser; a pensar a constituigáo das identidades dos atores sociais emergentes pela
reapropriagáo da natureza, a ver o tempo de sustentabilidade a partir da marca
do limite no real (entropia) para questionar a história cristalizada em urna reali-
dade constituída por formas ancestrais de conhecimento e abrir a história para a
construgáo de um futuro sustentável a partir dos potenciais do real e a criativida-
de da cultura em uma política da diferenga e da diversidade cultural. É isso que
expandiria o ambiente para um novo círculo de externalidade, ao pensar o ser-aí
em sua diversidade cultural. Isso haveria de nos levar a pensar a complexidade
ambiental', atraindo e arraigando o pensamento da pós-modernidade na política
da diferenga na qual se constituem atores sociais com identidades próprias e
interesses diferenciados. A epistemologia ambiental alimenta o campo da eco-
logia política para levá-la para um terreno ético: para o encontro com o Outro
que inaugura o futuro por um caminho de responsabilidade, para além do poten-
cial do real e do conhecimento.
Sáo essas as fronteiras que abriram novos horizontes nos quais Nietzsche,
Heidegger, Lévinas, Derrida e Baudrillard foram convocados para construir o
conceito de racionalidade ambiental. A questáo da estrutura e da subjetividade,
da teoria e da práxis, do conceito e do real, em que se plasma o pensamento da
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 19

modernidade, é deslocada para urna reflexáo sobre a relagáo entre o ser, o pen-
sar, o saber, a identidade e a agáo. A complexidade ambiental é pensada como a
construgáo social que emerge da reflexáo (a intervengáo, o efeito, o impacto) do
conhecimento sobre o real e sobre a natureza, para além da visáo objetiva das
ciéncias da complexidade e da visáo ecologista do pensamento complexo. A
complexidade ambiental emerge da hibridagáo entre a ordem físico-biológica,
tecnológico-económica e simbólico-cultural. O imaginário da representagáo, da
verdade como correspondéncia entre o conceito e o real, desloca-se para a rela-
QáO entre o ser e o saber. A identidade quebra o espelho do imaginário metafísi-
co da igualdade para se configurar em relagáo com sua história, seus mundos de
vida e seus futuros possíveis; na reinvengáo de seres individuais e coletivos em
confronto com a ordem global hegemónica, em processos de ressignificagáo e
estratégias de reapropriagáo da natureza.
O diálogo com Derrida leva o conceito de diferáncia para urna política da
diferenga, na qual se constroem os direitos á autonomia, a ser diferente, a náo
subsumir a diferenga em urna ordem universal e homogénea suprema e domi-
nante. O diálogo com a ética de Lévinas desloca a idéia de outridade para um
diálogo de saberes. A complexidade ambiental náo emerge ali da generatividade
da physis, mas das relagóes infinitas que se estabelecem entre o real e o simbó-
lico. A história se abre como um processo de complexificagáo da vida, condi-
cionada pelo real (a entropia), mas conduzida pela ressignificagáo do real atra-
vés da linguagem, de estratégias discursivas e de urna política da diferente, para
um mundo sustentável possível pelo diálogo de saberes, pelo encontro de cultu-
ras diferentes e de atores sociais diferenciados.
Esse é o horizonte para o qual navega a epistemologia ambiental. A exte-
riorizagáo sem fim do ambiente une as órbitas — os saltos quánticos e suas
transigóes — dos capítulos dente livro. Em suas demarcagóes e diferengas teóri-
cas e filosóficas existem lagos de solidariedade e condigóes de possibilidade do
pensamento abertos pela reflexáo do saber ambiental. Dessa maneira, a episte-
mologia althusseriana, que reconhece a especificidade das diferentes ciéncias e
sua relagáo com o real através da construgáo de seus objetos de conhecimento,
náo poderia ter ocorrido sem a revolugáo ontológica heideggeriana, que opóe a
ontologia do ser e a heterogeneidade do real á homogeneidade da realidade
empírica e á unidade do logos da ciéncia positivista. O pano de fundo em que
Althusser inscreve sua epistemologia é tecido numa ontologia da diferenga. Pois,
como afirma Lévinas,

essa diferenga ontológica foi mais importante [...] que a tematizagáo do ser. É
verdade que a diferenciagáo entre ser e ente sempre foi muito importante. Mas
20 ENRIQUE LEFF

sempre foi mais importante que houvesse diferentes regióes do ser, que náo só
se distinguissem essencialmente, mas que fossem diferentes em seu ser. (Lévinas,
La huella del Otro. México: Taurus, 2000, p. 106)

A filosofia de Heidegger prepara as condigóes para desconstruir a unidade


do pensamento metafísico e da ciencia positivista. Foi sobre essa base que o
estruturalismo althusseriano póde combater as homologias estruturais da teoria
de sistemas a partir da especificidade das ciéncias. No entanto, mantém o privi-
légio da relagáo entre a teoria e os processos materiais na compreensáo do mun-
do. O efeito de conhecimento, derivado da significáncia que urna teoria (diante
da ideologia) produz sobre os processos materiais, permite apreender cognosci-
tivamente o mundo, mas náo esgota os sentidos do saber postos em jogo nas
estratégias discursivas e políticas que se abrem a partir da relagáo entre o ser e o
saber.
Também é possível tragar a linha de parentesco que vai da crítica de
Nietzsche á idéia metafísica do Uno e da Unidade, da ratio universal, e sua
abertura para a incomensurabilidade dos valores últimos, com a dissociagáo que
Weber faz da racionalidade para urna pluralidade de valores e formas de racio-
nalidade; com a dissociagáo realizada por Heidegger entre o ser e o ente e o
princípio de différance de Derrida. Esse princípio de diferenga tem suas raízes
na estratégia epistemológica que anima a prática teórica do estruturalismo
althusseriano e foucaultiano. A demarcaliio corno princípio político na filosofia
(LInin) póe em agáo "teórica" a ontologia e a política da difereno ao reconhe-
cer a diferenga como princípio que funda e fundamenta as diferentes regióes
teóricas que conferem sua especificidade ás ciéncias. Foucault reivindica o va-
lor da diferenga na "eficácia do criticismo descontínuo, particular e local", dian-
te do efeito inibidor das teorias totalitárias e sua "repugnáncia em pensar a
diferenga, em descrever as separagóes e suas dispersóes, em dissociar a forma
reafirmadora do idéntico".
Assim, o estruturalismo e o determinismo teórico se encontrara e dialo-
gam com a desconstrugáo do logos e a crítica ao pensamento unitário e totalitá-
rio na transigáo entre o pensamento da modernidade e a filosofia da pós-moder-
nidade na qual vem ao mundo a complexidade ambiental. Heidegger inaugura
um olhar náo-essencialista sobre a diversidade ontológica do ser; para além de
urna compreensáo sistémica das relagóes entre objetos, processos e conceitos, o
ser-aí dirige o olhar para as formas do ser no mundo, o que estabelece outro
caminho para o futuro diferente do que pode ser pensado a partir da evolugáo da
natureza e para além da "transcendéncia" que vai da lógica dialética até a feno-
menologia guiada pela intencionalidade do sujeito. Para além do retorno ao ser
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 21

a partir de sua dissociagáo com o ente (Heidegger), a racionalidade ambiental


reconhece diferentes regióes do ser, que náo apenas se distinguem em suas es-
séncias, mas constituem diferentes formas culturais do ser; um ser que desdobra
a generalidade do ser para a morte em urna multiplicidade do ser que abre a
história para um além da morte na proliferagáo de significagóes culturais da
natureza e de seus mundos de vida, e do diálogo de seus saberes.
Lévinas abandona a idéia da transcendéncia corno relagáo da consciéncia e
do pensamento com o real imanente, pois a relagáo entre Eu e o Outro náo é um
saber; é um reconhecimento do outro que náo implica nem possibilita nenhum
conhecimento. É urna relagáo ética antes de ser urna relagáo ontológica e episte-
mológica. É o salto da ontologia para "outro modo de ser". Esse além do Ser a
partir da relagáo de outridade — a superagáo da metafísica, do empirismo e do
idealismo, do realismo e do cientificismo, do imanentismo e da transcendéncia
— náo poderia fundar e garantir o bem como urna ética isolada de urna com-
preensáo renovada do mundo, do real, do saber, da razáo. A crise do mundo é
urna crise moral e do conhecimento que apela para a ética, que pCle em jogo um
processo estratégico de reapropriagáo do mundo e da natureza que reativa a
relagáo entre o real, o simbólico e o imaginário. O ambiente aparece como o
absolutamente Outro nessa desconstrugáo da racionalidade estabelecida; é ao
mesmo tempo o Outro do óntico, do real, do mais além do ser, e o Outro corno
impensado do conhecimento, da epistemologia, da ciéncia e do saber.
A relagáo entre o simbólico e o real estende e articula as relagóes de outri-
dade para além do encontro do eu-tu, em uma oposigáo do Mesmo e do Outro e
na epifania do rosto. Esse jogo de outridades se traduz em um diálogo de sabe-
res, entendido como um encontro de seres (constituídos por seus saberes) na
heterogeneidade ontológica do ser e na diversidade cultural do ser-aí; tanto na
desconstrugáo da idéia absoluta, do real imanente, do logocentrismo e do círculo
positivista das ciéncias, como no face-a-face que transcende a generalidade do
ser-ali como "ser para a morte"; mas que também se abre para a nudez do encon-
tro com todo Outro como todo próximo, em um mais além da violéncia exercida
pela justita codificada pelo direito positivo, individual e universal.
A esse porto chega a odisséia da epistemologia ambiental, a partir da con-
digáo de externalidade do saber ambiental e de seu impulso por saber. O enca-
deamento de seus capítulos náo deve ser lido como urna sucessáo de textos que
"olham" um mesmo objeto, mas como momentos sucessivos de problematiza-
gáo do conhecimento, em que as fronteiras nas quais chega sua reflexáo abrem
novas perguntas e novos horizontes do saber. Se a epistemologia da tradigáo
ocidental é mobilizada pela forga centrípeta do princípio da razáo universal para
um núcleo originário do saber que produz as transformagóes do conhecimento,
22 ENRIQUE LEFF

a epistemologia ambiental é impulsionada por urna forga centrífuga. Náo a do


Iluminismo da razáo, mas a que emerge da pulsáo interna do saber, que busca a
luz que está no horizonte, mais além do ser, do conhecimento, do já pensando,
para chegar ao que ainda náo existe.
A coeréncia dessa aventura epistemológica náo reside em sua unidade te-
mática, mas no lugar do saber ambiental, em sua postura irredutível ante o fe-
chamento totalitário da razáo, de um paradigma do conhecimento, de um saber
consabido. É isso que vincula e dá consisténcia ao trajeto que vai do racionalis-
mo crítico á ontologia de Heidegger, ao deslocamento da relagáo entre a teoria e
o real para a relagáo do ser com o pensar, do saber com a identidade; á descons-
trugáo do logos científico, da lógica da descoberta científica e da razáo universal
pelo princípio ontológico e político da diversidade e da diferenga, da pluralida-
de de valores e racionalidades; á ética que desloca a questáo do ser e do conhe-
cer para a construgáo do futuro pela criatividade do encontro com o Outro.
A epistemologia ambiental manifesta-se em um desejo infinito de saber,
como um sol que náo gosta de brilhar sempre no mesmo zénite e olha para o
horizonte ao entardecer, que se oculta de sua própria luz no lado escuro do
mundo, que pisca o olho um pouco mais inclinado para o sul que para o norte;
que gosta de variar seus ocasos, ao sabor das estagóes, pintando os céus com
desenhos, cores e luzes cambiantes; que gira a cada noite para reaparecer em um
novo dia.
Assim se pensa o saber ambiental.

ENRIQUE LEFF

Notas

* Tradugáo de Silvana Cobucci Leite.


1. Cf. Enrique Leff, Aventuras da Epistemologia Ambiental. Da articulavao das ciéncias
ao diálogo de saberes. Brasilia: Garamond, 2004 (Série Idéias Sustentáveis).
2. Assim, Nietzsche, refletindo sobre a condigáo de seu mundo e de sua época, tenia
exclamado: "o deserto aumenta". Um século mais tarde, essa intuigáo precursora do ecologismo
tornou-se visível.
3. Cf. Enrique Leff, Ecologia, capital e cultura. Blumenau: Edifurb, 2000.
4. Cf. Enrique Leff, Los problemas del conocimiento y la perspectiva ambiental del
desarrollo. México: Siglo XXI, 1986.
5. Cf. Enrique Leff, "Pensar la complexidade ambiental", in A complexidade ambiental.
Sáo Paulo: Cortez/Edifurb/Pnuma, 2003.
(a CORTEZ
nwEDITORR 23

SOBRE A ARTICUIMO DAS CIENCIAS


NA REIMO NATUREZA-SOCIEDADE

1. História do conhecimento e unidade do saber

1. Na história humana, todo saber, todo conhecimento sobre o mundo e


sobre as coisas, tem estado condicionado pelo contexto geográfico, ecológico e
cultural em que produz e se reproduz urna formagáo social determinada. As práti-
cas produtivas, dependentes do meio ambiente e da estrutura social das diferentes
culturas geraram formas de percepgáo e técnicas específicas para a apropriagáo
social da natureza e da transformagáo do meio. Mas, ao mesmo tempo, a capaói-
dade simbólica do homem possibilitou a construgáo de relagóes abstratas entre
os entes que conhece. Desta forma, o desenvolvimento do conhecimento teórico
acompanhou seus saberes práticos. Quando surge a geometria nas primeiras
sociedades agrícolas como urna necessidade de racionalizar a produgáo da terra
através de um sistema de medigóes, desenvolve-se o conhecimento matemático
de suas relagóes abstratas. Desde entáo um objeto de trabalho transforma-se
também em objeto de um saber empírico e de um conhecimento conceitual'.
2. Estas relagóes entre o conhecimento teórico e os saberes práticos acele-
ram-se com o advento do capitalismo, com o surgimento da ciéncia moderna e
da institucionalizagáo da racionalidade económica. Com o modo de produgáo
24 ENRIQUE LEFF

capitalista produz-se a articulagáo efetiva entre o conhecimento científico e a


produgáo de mercadorias através da tecnologia. O processo interno e expansivo
da acumulagáo capitalista gera a necessidade de ampliar o ámbito natural que,
como objetos de trabalho, apresenta ao mesmo tempo como objetos cognoscí-
veis. A necessidade de elevar a mais-valia relativa dos processos de trabalho
traduz-se numa necessidade de incrementar sua eficiencia produtiva, o que in-
duz a substituigáo progressiva dos processos de mecanizagáo por urna
cientifizagáo dos processos produtivos. Mas a ciencia moderna náo se consti-
tuiu como conseqüéncia direta da transformagáo da natureza em objetos de tra-
balho e da demanda crescente de conhecimentos tecnológicos. Esta emergiu
como resultado das transformagóes ideológicas vinculadas com a dissolugáo do
sistema feudal e do surgimento do capitalismo que estabeleceram um novo campo
epistemológico para a produgáo de conhecimentos: Copérnico deslocou a Terra
do centro do Universo; Descartes produziu o sujeito da ciencia como princípio
produtor, autoconsciente de todo conhecimento.
3. Estas condigóes económicas e ideológicas sobre o progresso das cien-
cias e das técnicas náo bastam para entender a emergencia dos corpos teóricos
mais importantes da ciencia moderna, que conhecemos sob os nomes de Newton,
Darwin, Ricardo, Marx, Freud ou Einstein. A produgáo dos conceitos destas
teorias náo provém da aplicagáo progressiva de um "método científico" nem da
necessidade de fracionar o conhecimento das coisas para elevar a eficácia técni-
ca de sua transformagáo como objetos de trabalho; náo é o resultado de urna
simples apreensáo empírica e pragmática do mundo externo nem da formaliza-
gáo dos dados da realidade. A emergencia destas ciencias é resultado de um
longo esforgo de produgáo teórica a partir do saber herdado, para apreender
teoricamente a materialidade do real; é sobretudo o produto de urna luta teórica
e política no campo do conhecimento para vencer os efeitos do encobrimento
ideológico no qual sáo gerados os saberes úteis para a exploragáo do trabalho e
para o exercício do poder das classes dominantes. Corpérnico e Galileu debate-
ram-se contra a teologia medieval 2 ; o conhecimento biológico teve de desfazer-
se das concepgóes mecanicistas da vida 3 ; o saber marxista e freudiano teve de
livrar-se das marcas de conceitualizagóes naturalistas e humanistas sobre a or-
dem histórica e simbólica'.
4. A busca de urna unidade do real e de seu conhecimento aparece desde o
alvorecer do pensamento filosófico. O reducionismo atomista e a dissolugáo
platónica da realidade na Idéia abrem o caminho a uma filosofia da ciencia que
acompanhou o desenvolvimento histórico do conhecimento. No período clássi-
co, Descartes e Newton' fundam em sua filosofia natural a idéia de urna mathese
geral como urna ciencia totalizadora da ordem da realidade 6. Este campo físico-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 25

matemático haveria de se estender aos domínios da vida e da sociedade, consti-


tuindo-se o saber destas esferas do conhecimento como a organizagáo de um
sistema de similitudes e diferengas dos objetos pertencentes a diversas regióes
empíricas: a gramática geral, a história natural, a análise das riquezas'.
5. A fundamentagáo do racionalismo kantiano nos juízos sintéticos a priori
transformou o discurso analítico-sintético da lógica formal numa lógica transcen-
dental. A questáo tradicional de um acordo entre objeto e sujeito do conhecimento
foi postulada entáo como a adequagáo entre os conceitos puros do entendimento e
a heterogeneidade da realidade empírica. Surgiu assim uma nova divisáo do co-
nhecimento: de um lado, as ciéncias formais e dedutivas fundadas na lógica e na
matemática; de outro, as ciéncias empíricas, fundadas na induQáo de princípios e
relag6es gerais a partir da observagáo. Isto abriu novas perspectivas na busca de
urna unidade do saber através da formalizagáo de todas as ordens empíricas. Dali
haveriam de surgir o projeto positivista e os esforgos por matematizar os diferen-
tes domínios do saber: a economia, a biologia, a lingüística.
6. A lógica transcendental fundou o projeto fenomenológico no qual o ser
do homem transformou-se em princípio do conhecimento sobre o mundo. A
dialética hegeliana estabeleceu o vínculo necessário através da Idéia como prin-
cípio de identidade entre o real e o conhecimento, como unidade entre as cate-
gorias do pensamento e a coisa-em-sis. Desta forma surge a ideologia do huma-
nismo: o saber sobre os entes parte de urna reflexáo ontológica do ser do ho-
mem, cuja finitude limita o conhecimento do mundo. Este subjetivismo huma-
nista encontra sua contrapartida no idealismo ontológico, que reduz as regulari-
dades do real ás leis últimas de urna dialética universal. A emergéncia das cién-
cias da história, da vida, da língua e do inconsciente viria a questionar este
projeto filosófico de fundagáo do conhecimento num idealismo, subjetivismo
ou humanismo, assim corno a busca de urna unidade do real e de sua identidade
com o conhecimento.
7. Por volta do século XVIII transforma-se esta conformagáo epistémica
do saber. A língua, a vida e o trabalho deixam de ser um representaláo da reali-
dade empírica; entes aparecem como a substáncia, os principios e os objetos de
certos processos materiais em torno aos quais se organizam seus campos res-
pectivos de conhecimento. Desta forma, rompe-se o espato unitário da repre-
sentagáo corno unidade da realidade e do saber 9. Durante o século XIX e início
do XX, produzem-se as rupturas epistemológicas que fundam o conhecimento
científico dos processos biológicos, históricos, lingüísticos e inconscientes, ques-
tionando o projeto de unificagáo do conhecimento da vida, do trabalho e da
linguagem. O código genético, as relag6es de produláo, a estrutura da língua, as
formag6es do inconsciente contém as regras e as leis que determinam o campo
26 ENRIQUE LEFF

do possível da evolugáo biológica, dos processos de trabalho, da faculdade da


linguagem, da produgáo de sentido. Estas estruturas, que constituem o objeto
do conhecimento da biologia, do materialismo histórico, da lingüística e da
psicanálise, náo sáo observáveis diretamente no comportamento de um organis-
mo, de um processo concreto de trabalho ou na fala de um sujeito. A irrupgáo
destas ciéncias questiona o projeto filosófico do humanismo e da unidade do
saber, produzindo" urna mudanga fundamental na concepgáo do mundo. O real
aparece como processos materiais diferenciados e náo como coisas; ao mesmo
tempo o sujeito da ciéncia desaparece como princípio produtor do conhecimen-
to destes processos materiais'°. O homem deixa de ser o objeto geral articulador
das "ciéncias humanas e sociais" como sujeito transcendental de seu conheci-
mento. O materialismo histórico e a psicanálise produzem os conceitos teóricos
para analisar a subjetividade e as formas do sujeito, que sáo efeito do desejo
inconsciente e da luta ideológica de classes.
8. Esta perspectiva materialista da produgáo científica náo erradicou, po-
rém, o projeto idealista de unificagáo do saber; este surge no positivismo lógico
— onde o saber sobre o real unifica-se na validagáo das proposigóes formais,
lógico-matemáticas e lingüísticas sobre os objetos empíricos — assim como no
formalismo estruturalista e na teoria geral de sistemas. Ao mesmo tempo, renas-
ce um projeto metodológico que tenta pensar a realidade a partir de certos prin-
cípios e processos fundamentais, constituintes e generalizáveis aos estados "su-
periores" de desenvolvimento da matéria. Desta forma, os princípios da termo-
dinámica ou da evolugáo biológica aparecem como perspectivas epistemológi-
cas do conhecimento da ordem sócio-histórica. Deriva daí a fungáo ideológica
das doutrinas sociobiológicas e da energética social.

2. Objeto real, objeto de trabalho, objeto de conhecimento

9. 0 saber sobre a realidade produz-se como efeito de práticas sociais


diferenciadas. Desde as etapas pré-lingüísticas dos hominídeos, a realidade apa-
rece como o meio que é utilizado e transformado através do conhecimento para
a reprodugáo biológica e cultural de urna populagáo. A emergéncia da fungáo da
linguagem náo produz urna correspondéncia ontológica entre as palavras e as
coisas; a referéncia nominalista emerge sempre das práticas sociais e produtivas
da cultur,', condicionada pelos efeitos de sentido que se produzem nas práticas
discursivas como efeito da ordem simbólica e das formagóes ideológicas de
grupos sociais diversos que atravessam o campo do poder e do saber. Enquanto
a realidade se transforma em objetos de trabalho, afinara-se os mecanismos
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 27

preceptivos e simbólicos que participarla num saber guiado pelos efeitos práti-
cos imediatos, determinados pelo processo de reprodugáo/transformagáo social.
10.As ciéncias náo apreendem diretamente as coisas empíricas, senáo que
estabelecem paradigmas teóricos que permitem dar conta das relagóes funda-
mentais entre os processos que constituem seus diferentes objetos de conheci-
mento. O conceito náo é um significante como os outros, e o efeito de conheci-
mento do real que produz sua articulagáo com os demais conceitos que consti-
tuem urna teoria científica difere dos efeitos de sentido que surgem da articula-
gáo de significantes no discurso inconsciente ou no discurso ideológico. E náo
porque a ciéncia seja externa á ideologia, mas sim pela relagáo específica da
articulagáo conceitual com o real através do objeto de conhecimento de urna
ciéncia. O pensamento conceitual estabelece as relagóes fundamentais do real,
enquanto que o conhecimento técnico permite a apropriagáo produtiva ou ideo-
lógica da realidade. Desta forma, desde a Antiguidade buscava-se conhecer a
substáncia ou a "esséncia" das coisas. Mas o conhecimento do real, entendido
como processos materiais, é urna emergéncia epistémica relativamente recente,
que se remonta á fundagáo das ciéncias da vida, da língua, da história e do
inconsciente. Desde entáo conhecemos o real como efeito de certas estruturas e
processos materiais. Mas nem o real e nem as formas de seu conhecimento
constituem sistemas unitários e homogéneos. O real aparece constituído por
diferentes ordens de materialidade cujas relagóes estruturais sáo objeto de cién-
cias específicas. Já náo é o existente empiricamente, nem um princípio substan-
cial (vida, trabalho, linguagem) o que aparece como objeto de conhecimento;
inversamente, a realidade empírica surge como efeito de um processo invisível
de produgáo que só pode ser apreendida através da produgáo conceitual de cam-
pos teóricos diferenciados.
11.Sáo conceitos destas novas teorias científicas os que dáo conta da pro-
dugáo do real, "concretude de pensamento, síntese de múltiplas determinagóes".
É ao que Marx se refere guando afirma:

"O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinagóes... É por


esse motivo que o concreto aparece no pensamento como processo de síntese,
como resultado e náo como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de
partida e, por conseguinte, também o ponto de partida da intuiláo e da represen-
tagáo"".

O concreto a que Marx se refere náo é nunca a coisa. Apenas é concreto o


processo material que é síntese de múltiplas determinagóes. E este concreto real
só pode ser apreendido no conhecimento pela produgáo teórica dos conceitos
28 ENRIQUE LEFF

que integram a síntese de múltiplas determinagóes e constituem, ao mesmo


tempo, o princípio do processo real. Esta epistemologia materialista náo se con-
funde com o pragmatismo epistémico atribuído a Marx, no qual o conhecimen-
to se reduziria ao saber sobre as coisas enquanto objetos de trabalho' 2, nem á
concepgáo da produgáo teórica como o simples reflexo do real no pensamento.
12. É neste sentido que o conceito de valor — o tempo de trabalho social-
mente necessário — é síntese de múltiplas determinagóes — da produtividade
da terra, da produtividade do trabalho, da produtividade tecnológica — e como
tal se transforma no princípio de um processo de formagáo de valor enquadrado
nas relagóes sociais da produgáo capitalista' 3 . Como tal, o conceito de valor,
articulado aos demais conceitos que formam o corpo teórico de O capital, dá
conta do real do processo capitalista de produgáo e dos efeitos ideológicos que
permitam coisificar o existente, fazendo aparecer a realidade como relagóes en-
tre coisas' 4.
13. As ciéncias através da constitukáo de seus objetos teóricos e de seus
sistemas conceituais dáo conta de processos reais. O "conceito" de um objeto
empírico (uma mesa, um homem) náo é objeto de nenhuma ciéncia. Os entes
empíricos sao, sem dúvida, objetos de percepgóes em que se funda um processo
de abstragáo de suas "esséncias", do que deriva tanto um saber formal, como um
saber prático, técnico, operacional sobre as coisas. Mas os objetos de conheci-
mento das ciéncias sáo as relagóes estruturais do real, dos processos materiais que
produzem como efeito todas estas coisas, objetos de um saber empírico. O objeto
empírico é efeito de múltiplas determinagóes mas náo é o ponto de convergéncia
ou de articulagáo das ciéncias. A história, a biologia ou a psicanálise náo discor-
rem sobre o homem, assim como a física e a química náo tém a urna mesa por
objeto científico. Os objetos das ciéncias sáo trans-individuais, trans-objetais".
14. Assim como o objeto da ciéncia náo é um objeto empírico — urna
coisa — tampouco existe um sujeito da ciéncia na forma de um indivíduo, um
homem, que produziria um ciéncia mediante a observagáo e a interiorizagáo
desses objetos. O sujeito da ciéncia e o do saber emerge como um efeito-sujeito
de processos históricos, inconscientes e lingüísticos que o constituem e que
conhecemos através dos conceitos do materialismo histórico, da lingüística e da
psicanálise' 6.
15. As ciéncias náo sáo urna representagáo subjetiva nem o reflexo imagi-
nário dos processos reais dos que dáo conta. As ciéncias náo sáo as diferentes
visóes subjetivas da realidade. O conhecimento científico é o processo de pro-
dugáo dos conceitos — da concretude do pensamento — que permite a apreen-
sáo cognoscitiva do real. É o objeto das ciéncias o que, em seu efeito de conhe-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 29

cimento, "recorta a realidade a partir de diferentes perspectivas'', o que faz


com que a realidade empírica que constitui o campo de experimentagáo de cada
ciencia tenha um "sentido" diferente. Daí que o recurso natural como objeto de
trabalho do processo económico náo se identifique com o ser orgánico como
objeto biológico, nem que a energia pulsional se confunda com a energia bioló-
gica, o instinto com o desejo.
16. 0 princípio ontológico do primado do ser sobre o pensamento na teo-
ria materialista do conhecimento traduz-se no reconhecimento de esferas de
materialidade do real ás quais correspondem teorias científicas particulares. Isto
náo implica que os conceitos sejam abstragóes ou reflexos de diferentes regis-
tros da realidade empírica. A produgáo de conhecimentos científicos nunca é
um campo neutro onde entram em jogo as possíveis combinagóes de idéias e
nogóes ou a intersegáo de teorias para apreender diferentes relagóes da realida-
de. Estas variantes de um empirismo lógico ou de um racionalismo idealista
esquecem que o efeito de conhecimento de uma teoria científica é produto da
articulag á- o interna de seus conceitos, os quais náo sáo suscetíveis de desarti-
cular-se e acoplar-se pela agáo "livre" do cientista ou do filósofo e pelas neces-
sidades subjetivas, técnicas e ideológicas de ajustá-los a certas porgóes de reali-
dade empírica. As ciéncias náo se geram por urna construgáo ad hoc de objetos
de conhecimento a partir de posigóes observacionais. Náo é possível extrair os
conceitos de sua concretude teórica e fazé-los funcionar dentro de urna "meto-
dologia sistémica", para produzir urna metateoria geral capaz de dar conta de
todas as inter-relagóes possíveis da realidade, ou seja, partir do possível logica-
mente, corno princípio para uma produgáo de conhecimentos delimitada por
seus campos de observagáo. Pelo contrário, é nos limites de sua concretude
teórica de onde surgem as possíveis perspectivas de conhecimento científico
sobre o mundo. Daí desprendem-se diversas formas de apropriagáo subjetiva e
de efeitos-sujeito que estabelecem formas de saber que afetam o processo de
inscrigáo — a práxis — dos sujeitos na história.
17. A articulagáo dos conceitos de urna teoria constituem a concretude do
pensamento. Esta "totalidade" de cada ciéncia náo é o reflexo de nenhuma tota-
lidade empírica. Esta posigáo náo invalida a necessidade da experimentagáo
para verificar a teoria e confirmar a correspondéncia do conceito com o real. As
ciéncias, constituídas pela especificidade de seus objetos científicos e a integra-
gáo de seus conceitos náo sáo momentos acabados, mas processos interminá-
veis de produgáo teórica, que levam a retrabalhar e concretizar seus conceitos
ou inclusive a revolucionar teorias inteiras. Mas este náo é um processo interno
imanente de cada ciéncia; a produgáo científica náo é urna prática teórica ope-
rando num vazio histórico.
30 ENRIQUE LEFF

18. Althusser e Balibar afirmaram que os processos reais produzem-se


independentemente dos processos de seu conhecimento, que a relagáo entre o
pensamento e o real

"é urna relagáo de conhecimento e náo urna relaláo real, entendendo por isso
urna relaQáo inscrita nesse real do qual o pensamento é o conhecimento... a
ciéncia (sua ruptura com a ideologia) inaugura uma nova forma de existéncia e
de temporalidade histórica, que fazem escapar a ciéncia (ao menos em certas
condigóes históricas que asseguram a continuidade real de sua própria histó-
ria...) da sorte comum de urna história única: aquela do 'bloco histórico' da
unidade da estrutura e a superestrutura"".

Desta forma, Althusser e Balibar buscaram demarcar a história das cién-


cias como urna produgáo que náo é o simples reflexo do real de seu objeto de
conhecimento, nem da história geral. Mas a história das ciéncias náo deixa de
ser uma série diferenciada de processos de conhecimento com vínculos e efeitos
de diversos sentidos com os processo do "bloco histórico"; portanto, é necessá-
rio apreender os processos de constituigáo e desenvolvimento das diferentes
ciéncias em suas relagóes com os processos históricos, inclusive enquanto estes
transformam os conceitos do materialismo histórico.
19.0 problema que se propóe é o de entender as interdeterminagóes entre
os processos reais e os processos de conhecimento: corno a dinámica social
determina as formagóes ideológicas, e corno a produgáo do saber e das ciéncias
se inscreve no processo de reprodugáo/transformagáo do modo de produgáo,
isto é, os efeitos desse real imaginário e simbólico sobre as práticas sociais, o
real histórico. Esta interdeterminagáo propóe o problema de entender a produ-
gáo teórica enquanto geradora de um efeito de conhecimento do real, ao mesmo
tempo que induz a uma transformagáo do real que é conseqüéncia desse conhe-
cimento. PropZ5e-se dessa forma um desdobramento do real, no qual o pensa-
mento, as formagóes ideológicas, a produgáo científica, aparecem como parte
desse real. Isto implicaria combater as nogóes empiristas e representacionais do
conhecimento como abstragóes da realidade, bem como o racionalismo de urna
lógica do desenvolvimento interno das ciéncias, abrindo um campo da sociolo-
gia do conhecimento no qual se articulam as condigóes epistemológicas de fun-
dagáo das ciéncias com as condigóes sociais nas quais se inscreve sua constitui-
gáo e seu desenvolvimento 19.
20. Desta forma é possível pensar a historicidade dos conceitos que fun-
dam o Materialismo Histórico — trabalho abstrato, valor, mais-valia — como
um efeito — e nunca como um simples reflexo — do processo real histórico que
produz urna sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral dos produtos
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 31

do trabalho20. Althusser e Balibar aceitam que "o aparato de pensamento, histo-


ricamente constituído, articula-se na realidade social e natural" 21 , mas náo defi-
nem as determinagóes deste processo. Diferindo do conhecimento do real físi-
co-biológico, onde os limites do conhecimento dependem de tuna revolugáo
teórica, no campo do real histórico, os limites do efeito de conhecimento dos
conceitos do materialismo histórico dependem da transformaffio das próprias
formav5es sociais. A mudanga social delimita o efeito de conhecimento dos
conceitos históricos. Embora os conceitos de modo de produgáo ou de ideologia
sejam a-históricos — válidos para qualquer formagáo social — os conceitos de
valor e de mais-valia apenas tém um efeito de conhecimento dentro das relagóes
capitalistas de produgáo e enquanto que a forga de trabalho constituiu o proces-
so fundamental na produgáo de mercadorias. A base histórica e o fundamento
epistemológico destes conceitos sáo questionados tanto pelos efeitos do pro-
gresso científico-tecnológico, como pela crítica ecologista á racionalidade eco-
nómica, incluindo a economia política e o materialismo histórico 22. Isto implica
a necessidade de transformar o conceito de produgáo e de forgas produtivas no
materialismo histórico.
21. Neste sentido, a transformagáo do capital, dos processos de trabalho e
do uso da natureza, provenientes de urna integragáo e aplicagáo crescentes do
conhecimento científico aos processos produtivos, assim como a incorporagáo a
estes das condigóes de sustentabilidade ecológica, problematizam os conceitos
do materialismo histórico. Ao mesmo tempo, confluem no campo da ciéncia da
história outras disciplinas e teorias para ampliar o conhecimento dos processos
sociais (por exemplo, a psicanálise no estudo dos processos ideológicos; a ter-
modinámica de sistemas abertos e a ecologia na construgáo do ecomarxismo). É
entáo necessário diferenciar a articulagáo técnica de diferentes ramos do conhe-
cimentos para a resolugáo dos problemas práticos do capital e seus efeitos no
real histórico objeto do materialismo histórico, com sua articulagáo teórica com
outras ciéncias para explicar o processo atual do capital frente aos desafíos da
globalizagáo e da sustentabilidade ecológicas.

3. Articulnao teórica — articulacao técnica

22.A partir da perspectiva histórica da acumulagáo capitalista, a diversifi-


cagáo e o avango do conhecimento náo aparece como um simples efeito da
divisáo "natural" do trabalho ou como uma evolugáo interna das ciéncias. Avan-
gada a fase da acumulagáo extensiva, fundada na exploragáo de mais-valia abso-
luta, a elevagáo da taxa de lucro exigiu um aumento na eficiéncia produtiva dos
32 ENRIQUE LEFF

processos de trabalho. Isto foi alcangado logo depois da mecanizagáo, com a


cientifizagáo dos processos produtivos, mediante a produgáo e a aplicagáo inte-
grada de diferentes áreas do conhecimento técnico e científico. A articulagáo
funcional do conhecimento á produgáo deu um impulso importante ao desen-
volvimento das ciencias e as inovagóes do conhecimento responderam á neces-
sidade de vencer a lei tendencia) para a redugáo da taxa de lucro devido ao
aumento na composigáo orgánica do capita1 23 . Neste sentido, a acumulagáo do
capital integra em sua dinámica ás histórias diferenciadas das ciencias, e faz
com que os conhecimentos sobre a natureza funcionen como forgas produtivas.
Mas estes efeitos tecnológicos do saber na elevagáo da taxa de mais-valia náo se
transformam em critérios de cientificidade do conhecimento, nem em condi-
góes de possibilidade de suas articulagóes teóricas.
23.A tendencia de integrar a produgáo científica aos processos produtivos
tem levado a instalar unidades de pesquisa científico-tecnológica nas indústrias
e a vincular os sistemas educativos e de pesquisa ao sistema produtivo. Desta
forma, desenharam-se complexos modelos de prospectiva tecnológica que pla-
nej am a produgáo e a aplicagáo de conhecimentos científico-tecnológicos 24. Tudo
isto implica a articulagáo prática de diferentes áreas da ciencia e da técnica no
processo económico e no controle político dos agentes sociais, que permite a
reprodugáo ampliada do capital. Este processo de diferenciagáo das tarefas de
pesquisa propós novos problemas na concepgáo, produgáo e aplicagáo do co-
nhecimento. No entanto, o desprendimento deste processo de desenvolvimento
tecnológico das condigóes de reprodugáo do capital tem levado a imaginar urna
"tecno-logia" como princípio, razáo e legitimizagáo dos problemas da socieda-
de industrial", e a responsabilizar a "ciencia" por ter fracionado o conhecimen-
to da realidade corno um todo. Surgiu daí uma série de tentativas de unificagáo
do conhecimento que vem correspondendo mais a um imperativo ideológico e
tecnológico que a um problema interno do conhecimento 26.
24. Nesta perspectiva, a unificagáo do conhecimento aparece como um
contínuo de saber determinado por suas aplicagóes técnicas. O método experi-
mental surge como a ponte de uniáo dos diferentes níveis do conhecimento e
como legitimagáo de todo conhecimento para um fim prático. Da mesma ma-
neira, as metodologias de planejamento e programagáo para a produgáo de co-
nhecimentos geram urna visáo pragmatista e funcionalista da vinculagáo dos
diferentes registros do saber com a produgáo de mercadorias, algo muito dife-
rente do problema epistemológico da articulagáo teórica das ciencias. O vínculo
necessário entre as construgóes teóricas sobre o objeto de conhecimento e a
transformagáo experimental do objeto real cria um concepgáo errónea sobre a
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 33

fusáo da ciéncia com a tecnologia que reduziria o conhecimento do real a um


saber como transformar, dominar e controlar os objetos da realidade.
25. A articulagáo da produgáo teórica com as práticas sociais de reprodu-
gáo/transformagáo social (processos de trabalho, processos de sujeigáo ideoló-
gica), náo é urna relagáo determinada por um princípio metodológico de produ-
gáo teórica — neste caso pelo método experimental das ciéncias. A luta social
pelo conhecimento determina a produgáo teórica a partir do saber imperante
num momento histórico, assim como a inovagáo tecnológica e suas aplicagóes
sociais e produtivas, ou seja, as formas de exploragáo da natureza e da forga de
trabalho, bem como os processos de vinculagáo ideológica e de poder político.
26. A luta política pelo conhecimento é um debate náo só por demarcar as
ciéncias do campo das formagóes ideológicas, mas por dissolver essa represen-
tagáo imaginária da ciéncia como um processo neutro no qual o conhecimento
se desenvolve como resultado de um lógica interna conduzida pela agáo meto-
dológica de sujeitos conscientes frente a uma realidade objetiva 27. É assim que
as esferas de materialidade do real se dissolvem na "platitude" da realidade
empírica, e que a lógica e a matemática se constituem no sujeito universal do
saber. Daí derivaram também as perspectivas biologistas sobre o conhecimento
em que o sujeito do saber aparece como todo organismo biológico que internaliza
e transforma seu meio ambiente. De forma paralela, surgiram diversas teorias e
metodologias como ferramentas ideológico-tecnológicas para a unificagáo do
saber e para suas aplicagóes técnicas — por exemplo, a Teoria Geral de Siste-
mas e as práticas interdisciplinares. O caráter ideológico dente projeto unificador
das ciéncias impóe uma análise crítica das propostas surgidas, para ver em que
sentido concebem e resolvem o problema teórico de uma suposta unidade da
realidade e do conhecimento.
27. Antes deveremos propor a problemática de articulagáo das ciéncias a
partir de urna perspectiva teórica e náo técnica, para ver se esta constitui um
problema concreto que surge das condigaes da ciéncia moderna. A necessidade
e possibilidade de urna articulagáo científica apenas se justifica se existirem
processos materiais que, náo podendo ser apreendidos a partir dos conhecimen-
tos elaborados por urna só das ciéncias em seu estado atual ou por um paradig-
ma transdisciplinar e integrador, aparecem como regióes do real onde confluem
os efeitos de duas ou mais ordens de materialidade, objeto de diferentes cién-
cias. Esta articulagáo científica náo pode ser pensada como urna fusáo dos obje-
tos teóricos das ciéncias — os quais constituem sua especificidade teórica e dos
quais derivara seu efeito de conhecimento — mas como urna superdeterminagáo
ou urna interdeterminagáo dos processos materiais dos quais as ciéncias produ-
34 ENRIQUE LEFF

zem um efeito de conhecimento pela articulagáo de seus conceitos em seus


respectivos campos teóricos.
28. 0 problema da articulagáo científica náo concerne á constituigáo de
urna ciéncia a partir das formagóes ideológicas que a precedem, ou seja, de
nogóes provenientes de outros campos do conhecimento antes da fundagáo dos
conceitos próprios de urna ciéncia (isto é, o uso de nogóes da mecánica antes da
fundagáo da biologia, ou da biologia e da termodinámica antes da produgáo
freudiana dos conceitos psicanalíticos). As relagóes de articulagáo entre as cién-
cias constituídas tampouco se referem á convergéncia e complementagáo de
conhecimento provenientes de diferentes áreas do saber na fundagáo e desenvol-
vimento de novas disciplinas (físico-química, bioquímica, antropologia ecoló-
gica). Tampouco tém por objetivo as aplicagóes técnicas de diferentes áreas do
saber para resolver problemas internos das ciéncias ou problemas práticos fora
delas, nem as relagóes de um objeto científico com outros objetos empíricos. A
articulagáo científica é um problema alheio ás aplicagóes técnicas e ideológicas
das ciéncias, e concerne apenas a alguns casos de urna problemática transcientífica
e intracientífica, da qual podemos indicar as seguintes formas possíveis:
28a.A importagáo de conceitos de outras ciéncias constituídas para serem
trabalhados e transformados pelas necessidades internas do desenvolvimento do
conhecimento da ciéncia importadora. Exemplo disso é a assimilagáo de con-
ceitos da lingüística pela psicanálise (por exemplo, significante, metáfora,
metonímia), para serem trabalhados e transformados na produgáo de novos con-
ceitos (como significáncia), que, articulados á dinámica do desejo, dáo conta
das formagóes do inconsciente, objeto da psicanálise 28. Este seria um caso de
transcientificidade teórica sem articulagáo científica. Outro caso seria o da im-
portagáo das teorias da termodinámica e da ecologia para reformular os concei-
tos de valor, de relagóes sociais e de forga produtiva no ecomarxismo.
28b.A articulagáo interna dos conceitos e categorias de urna ciéncia como
pontos cruciais da estrutura de uma teoria em torno a seu objeto de conhecimen-
to, onde podem articular-se os conceitos de outras ciéncias. Desta forma, a infra-
estrutura económica articula-se com a superestrutura ideológica, as relagóes
sociais de produgáo enlagam as práticas produtivas, jurídicas, políticas e ideoló-
gicas através da luta de classes, da formagáo de valor, da produgáo de mais-
valia. Esta articulagáo conceitual implica, por sua vez, a integragáo de proces-
sos diferentes no objeto de conhecimento científico. Assim, o conceito de valor
surge como a síntese de processos naturais, de trabalho e tecnológicos, que
estabelecem o tempo de trabalho socialmente necessário e de urna demanda,
efeito ideológico do desejo inconsciente, que permite a realizagáo do valor. O
conceito de mais-valia integra a "infra-estrutura" com a "superestrutura", en-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 35

quanto que a mais-valia é a articulagáo da luta económica e ideológica de das-


ses. Esta problemática intracientífica é condigáo da articulagáo entre ciéncias
mas náo a implica.
28c. A confluéncia dos efeitos de dois ou mais processos materiais, objeto
de diferentes ciéncias, num fenómeno empírico, que ao náo pertencer ao objeto
de conhecimento de nenhuma de suas ciéncias, náo implica a inclusáo dos efei-
tos de um processo no outro nem a articulagáo dos conceitos de suas ciéncias.
Este seria o fundamento teórico de urna problemática intercientífica, mas que
náo implica um processo de articulagáo teórica. Um exemplo disto sáo os estu-
dos demográficos ou de natalidade. As taxas de reprodugáo bem como os carac-
teres físicos e psicológicos da populagáo náo sáo o objeto de urna ciéncia privi-
legiada. Nestes fenómenos convergem os efeitos de diversos processos determi-
nados pela estrutura genética de urna populagáo, por suas condigóes de adaptagáo
biológica ao meio, pela demanda de foro de trabalho que gera a dinámica econó-
mica e pelo desejo de reprodugáo vinculado ás formagóes do inconsciente, pro-
cessos que sáo o objeto da biologia, da economia política e da psicanálise.
28d. A articulagáo dos efeitos de processos materiais objeto de urna ou
mais ciéncias sobre processos que sáo objeto de outra ciéncia, o que implica
urna determinagáo de processos externos que, embora náo sejam absorvidos
conceitualmente pela ciéncia afetada e náo modifiquen seu objeto de conheci-
mento, condicionara de tal forma os processos que analisa, que estes só podem
ser entendidos como urna superdeterminagáo ou urna articulagáo dos efeitos dos
processos objeto destas ciéncias. Vários problemas da articulagáo natureza-so-
ciedade exemplificam este caso. A evolugáo e sucessáo dos ecossistemas natu-
rais sáo objeto da biologia e da ecologia; mas os processos de transformagáo
dos ecossistemas náo dependen táo somente das leis biológicas da evolugáo,
senáo que se véem afetados e superdeterminados pela apropriagáo económica
dos recursos naturais. A reprodugáo do capital náo pode integrar-se no objeto
da ecologia. Por isso, o estudo da transformagáo dos ecossistemas implica a
articulagáo dos efeitos do modo de produgáo sobre os efeitos naturais e biológi-
cos provenientes da estrutura funcional de cada ecossistema. Este é um caso de
superdeterminacilo na articulaváo científica. Outro caso de articulagáo é o da
organizagáo cultural das formagóes socioeconómicas "náo-capitalistas", objeto
da antropologia e da etnologia. Ali articulara-se os efeitos da língua, da organi-
zagáo dos ecossistemas em que habitam e das estruturas sociais que constituem,
na explicagáo de suas práticas produtivas e ideológicas. É um caso de co-deter-
minaffio múltipla no processo de articulaffio.
28e. A articulagáo de duas ou mais ciéncias no conceito de um efeito-
suporte de seus objetos de conhecimento respectivos. Um exemplo disto é a
36 ENRIQUE LEFF

articulagáo do materialismo histórico, a psicanálise e a lingüística na produgáo


de um efeito de sujeiváo, onde se articulam os processos significantes determi-
nados pelas formagóes do inconsciente, pelas lutas ideológicas de classe inseri-
das numa formagáo social e pelos efeitos simbólicos de uma linguagem especí-
fica. Estas posigóes subjetivas náo sáo geradas simplesmente pela dinámica eco-
nómica do modo de produgáo (a lei do valor, a mais-valia), preenchendo um
lugar predisposto pelas condigóes de um sujeito do inconsciente e da língua,
como o homem biológico é pressuposto da forga de trabalho. A constituigáo
dente efeito de sujeigáo produz-se na regiáo na qual se articulam os efeitos dos
objetos do materialismo histórico e da psicanálise, enquanto que transforma-
góes na estrutura social afetam as formagóes do inconsciente e seus efeitos so-
bre as formagóes ideológicas. Esta articulagáo científica apresenta-se entáo como
urna interdeterminaqáo de processos materiais.
29. Para que exista articulagáo entre ciéncias num sentido forte, é necessá-
rio que a materialidade de certo nível náo seja mero sustentáculo, pressuposto
ou condigáo dos processos de outra ciéncia — isto é, o ser biológico do homem
como suporte dos processos de trabalho ou de seus processos simbólicos —
mas que suas estruturas materiais tenham efeitos determinantes nos processos
em que se articulam — ou seja, os efeitos do modo de produgáo sobre os pro-
cessos ecológicos, dos processos significantes nas formagóes ideológicas. As
estruturas biológicas, neurológicas e lingüísticas, que sáo condigáo da história,
náo se transformam com as mudangas históricas, mas a história superdetermina
os efeitos de suas estruturas: a produgáo simbólica corno efeito da luta ideológi-
ca de classes, a transformagáo ecossistémica como efeito da acumulagáo de
capital. Estes efeitos determinantes de urna ciéncia em outra devido á sua arti-
culagáo náo significam a existéncia de relagóes de constituigáo de urna ciéncia
em outra, em cujo caso a ciéncia constituída náo seria senáo um ramo ou regido
da ciéncia dominante. O caráter constitutivo da matemática na física e o método
experimental que vincula a produgáo teórica com suas aplicagóes tecnológicas
correspondem á especificidade epistemológica da física. A diferenga entre as
ciéncias naturais e as ciéncias histórico-sociais náo consiste em que a relagáo
constituigáo e aplicagáo da matemática a estas últimas seja "mais exterior, e
portanto, muito mais técnica" 29. A diferenga náo é o grau. A formalizagáo mate-
mática da história produz mais um efeito ideológico que um fundamento de seu
conhecimento científico.
30. A articulagáo das ciéncias náo se limita a uma prática teórica fransdis-
ciplinar; consistente na importagáo de conceitos e paradigmas, ou na aplicagáo
de objetos teóricos de um campo do conhecimento ao outro. Os objetos teóricos
de cada ciéncia atribuem-lhe especificidade e sáo intransferíveis, inaplicáveis.
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 37

A articulagáo de ordens de materialidade do real, o que autoriza a pensar numa


articulagáo das ciéncias, náo surge dos pressupostos que explicam a génese evo-
lutiva e a emergéncia de novos níveis do real — a emergéncia da organizagáo
biológica a partir de suas bases físicas ou do simbólico e do cultural como
epifenómeno da ordem vital —; tampouco se fundamenta nas impossíveis rela-
góes de constituigáo de urna ciéncia em outra. A articulagáo da ciéncia dá-se
como urna articulagáo dos efeitos dos processos materiais dos quais estas dáo
conta através de seus objetos de conhecimento. A necessidade de apreender tais
processos em sua especificidade é o que obriga a reelaborar os conceitos teóri-
cos de cada ciéncia e a produzir novos conceitos a partir da transformagáo de
conceitos importados de outras ciéncias.

4. Articulacáo de ciéncias — Interdisciplinaridade — transdisciplinaridade

31. A partir dos anos 70 surgiram duas problemáticas novas no terreno da


epistemologia e da metodologia das ciéncias: a produgáo interdisciplinar de
conhecimento e sua aplicagáo no planejamento do desenvolvimento económi-
co. O desenvolvimento das ciéncias gerou novas especialidades que se encon-
tram na fronteira entre duas ou mais disciplinas (biofísica, bioquímica,
biossociologia) propondo a problemática interdisciplinar. Por sua vez, a aplica-
gáo progressiva das ciéncias e das técnicas no sistema produtivo faz confluir
urna diversidade de atividades de pesquisa num projeto de desenvolvimento
económico-social, propondo o problema da organizagáo de projetos multidisci-
plinares orientados a um objetivo comum. No entanto, deste nível prático de
articulagáo de conhecimento, pretendeu-se fundamentar o desenvolvimento da
ciéncia e garantir sua eficaz aplicagáo aos problemas globais e á dinámica dos
sistemas complexos emergentes, através de urna "prática interdisciplinar". Sem
definir adequadamente um objeto de pesquisa ou um objetivo de desenvolvi-
mento, constituem-se equipes multidisciplinares de pesquisadores. Suas difi-
culdades atribuem-se á novidade destes projetos, num ambiente científico do-
minado pelos estereótipos próprios de cada especializagáo profissional, o raro
diálogo entre disciplinas, ou a falta de urna linguagem comum entre estas. Con-
tudo, o mais importante foi a falta de definigáo de objetivos e necessidades de
pesquisa, das possibilidades de integragáo técnica de diferentes disciplinas cien-
tíficas ou de articulagáo teórica das ciéncias, e de urna análise crítica da factibi-
lidade de sua aplicagáo a projetos sociais determinados.
32. A interdisciplinaridade surge como urna necessidade prática de articu-
lagáo dos conhecimentos; mas constitui um dos efeitos ideológicos mais impor-
38 ENRIQUE LEFF

tantes sobre o atual desenvolvimento das ciéncias, justamente por apresentar-se


como o fundamento de uma articulagáo teórica. Fundada num princípio positi-
vista do conhecimento, as práticas interdisciplinares desconhecem a existéncia
dos objetos teóricos das ciéncias; a produgáo conceitual dissolve-se na formali-
zagáo das interagóes e relagóes entre objetos empíricos. Desta forma, os fenó-
menos náo sáo captados a partir do objeto teórico de urna disciplina científica,
mas surgem da integragáo das partes constitutivas de um todo visível.
33. Desta postura ideológica surgem os problemas de aplicagáo de um
método da interdisciplinaridade. No campo teórico, propóe-se a legalizagáo de
"dados" pertencentes á disciplina "x" a partir das leis que regem a disciplina
"y". Mas, em que sentido pode a realidade, as coisas, os dados pertencerem a
urna disciplina? O real pertence a urna ciéncia náo como objetos isolados, mas
como o conjunto de determinagóes de seus processos, as quais náo podem ser
legalizadas por outra ciéncia sem serem absorvidas por ela. A importagáo
analógica das leis de urna ciéncia para descrever os fatos de urna disciplina náo
científica é um caso comum da história do conhecimento, como o é também a
adaptagáo das formalizagóes matemáticas de um processo real a outros fenóme-
nos empíricos. Mas isso náo funda novas ciéncias nem permite sua articulagáo
interdisciplinar. Esta visáo do conhecimento e do real faz surgir um projeto
pedagógico, "como propósito de treinar inteligéncias capazes de apreender quase
á maneira da filosofia da Gestalt, a unidade da realidade"". Partindo deltas
premissas, a interdisciplinaridade propós-se como urna metodologia tanto para
o avango do conhecimento como para a resolugáo de problemas práticos. Daí
produziu-se uma série imaginária de "ciéncias ambientais", que sendo um legue
de disciplinas, especializagóes e técnicas para uma prática de ecodesenvolvi-
mento, náo possuem objetos científicos propriamente ditos 31 .
34. A metodologia interdisciplinar propós-se também como a busca das
homologias estruturais entre diversas disciplinas que respondem a diferentes
processos da realidade, e se formalizou numa Teoria Geral de Sistemas (TGS).
O isomorfismo matemático que estabelece as similitudes formais entre sistemas
teóricos que respondem a diferentes ordens de materialidade é o que permitiria
pensar em sua unidade 32. A TGS formula modelos aplicáveis a diferentes estru-
turas teóricas, mas ao reduzir a especificidade dos processos reais a suas carac-
terísticas formais comuns, desconhecem-se os princípios materiais — "a natu-
reza dos elementos ou forga do sistema" — dos quais dáo conta as diferentes
ciéncias e que permitam apreender as causas e formas de articulagáo de seus
efeitos, bem corno a transformagáo destes fenómenos ao modificar-se as estru-
turas materiais que os produzem. Daí o caráter ideológico da utilizagáo da TGS
como ferramenta conceitual para compreender a dinámica dos processos histó-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 39

ricos. Ao aplicar-se a TGS para analisar os limites do crescimento do sistema


capitalista", extrapola os efeitos de urna racionalidade social historicamente
determinada, como se esta fosse urna realidade invariável, sem explicar as cau-
sas do crescimento capitalista que leva ao esgotamento de recursos, nem a pos-
sível transformagáo da racionalidade económica para evitar estes efeitos
ecodestrutivos. Assim, as transformagóes sociais, as inovagóes científico-tecno-
lógicas e a construgáo de urna racionalidade ambiental permitiráo mudar os
efeitos do processo produtivo sobre a oferta natural de recursos, o equilibrio
ecológico, o crescimento demográfico e a poluigáo ambiental.
35. Os princípios desta prática interdisciplinar como uma metodologia
unificadora do saber foram transferidos para o campo da teoria, pretendendo
fundar neles o desenvolvimento do conhecimento científico. Desta forma surgi-
ra uma prática transdisciplinar, ou seja, a aplicagáo de metodologias de urna
ciéncia em outro campo científico, a formalizagáo matemática das ciéncias na-
turais e sociais, ou o transplante de conceitos e teorias próprias de um objeto
científico a outro. Neste caso, mais que a ampliagáo de um campo da ciéncia,
geraram-se ideologias teóricas que velam o objeto teórico das ciéncias assim
"exploradas", constituindo um obstáculo para o conhecimento 34. Daí todos os
"ismos" surgidos no campo da ciéncia: mecanismo, biologismo, economicis-
mo, formalismo etc. O problema da articulagáo das ciéncias náo consiste em
forjar um fio condutor, uma metodologia, conceitos ou estruturas analógicas
comuns, ou uma metalinguagem que permitam integrar e unificar o conheci-
mento da realidade 35 . A matéria é diversa e só pode ser apreendida pela especi-
ficidade conceitual dos corpos teóricos que dela dáo conta. O importante é ana-
lisar como confluem num processo determinado os efeitos de diferentes estrutu-
ras do real, onde o concreto só é analisável a partir da especificidade de cada
urna das ciéncias legitimamente constituídas.
36. A análise estruturalista em antropologia náo apenas fundou-se com a
transposigáo analógica do método da lingüística para o estudo das relagóes de
parentesco. Mais ainda, seu propósito era descobrir a correspondéncia entre as
diferentes esferas constitutivas da cultura — o intercámbio económico, o inter-
cámbio de mulheres, o intercámbio de mensagens — a partir da analogia ou a
homologia de suas estruturas, o que abriria uma via heurística para desentranhar
as estruturas profundas, "inconscientes", determinantes do processo cultura1 36.
O método estruturalista apresenta duas limitagóes fundamentais na perspectiva
do conhecimento científico: por um lado, a impossibilidade de fazer surgir as
estruturas fundamentais de um processo a partir das homologias formais de suas
manifestagóes fenomenológicas; por outro lado, a redugáo da explicagáo destes
processos a urna estrutura gerativa ou determinante — por exemplo, a explica-
40 ENRIQUE LEFF

gáo dos processos epigenéticos e de desenvolvimento a partir do DNA; a expli-


cagáo da história a partir das estruturas económicas''. Esta formalizagáo das
ciéncias, correspondente ao estado de elaboragáo de análises estruturais compa-
rativas, difere da articulagáo das esferas de materialidade com que o materialis-
mo histórico articula as relagóes sociais de produgáo com o processo de desen-
volvimento das forgas produtivas, bem como com as formagóes ideológicas e as
regras de casamento que normatizam a reprodugáo social. Também difere das
respostas possíveis que podem surgir para o problema da interdeterminagáo das
estruturas genéticas, as regras de organizagáo cultural, as relagóes sociais de
produgáo e as formagóes do inconsciente, a partir da perspectiva da articulagáo
das ciéncias correspondentes a cada uma destas esferas de materialidade e a
suas respectivas ordens de racionalidade.
37. Outra solugáo ideológica para o problema da articulagáo dos diferen-
tes níveis de materialidade do real provém da busca de um princípio originário
e constitutivo destes que, ao mesmo tempo, funcione como princípio
transcientífico, capaz de unificar ou articular as ciéncias e de servir-lhe como
método para o desenvolvimento do conhecimento. Este projeto de unificagáo
transdisciplinar do conhecimento produziu-se por diferentes caminhos. Por um
lado, aparece na forma de princípios gerais abstratos (lei de unidade de contrá-
rios, leis de organizagáo da matéria)". É neste sentido que foi formulado o
materialismo dialético como as leis fundamentais da matéria e do pensamento
científico. No entanto, a concepgáo dos fenómenos físicos e biológicos em ter-
mos de uma contradigáo dos elementos constitutivos de suas estruturas foi
sobrepesada pela produgáo de seus objetos e conceitos científicos; no social, o
princípio de contradigáo só pode ser concretizado no conceito de luta de classes
articulado aos conceitos que dáo conta das determinagóes de urna formagáo social
na qual se inscreve e as contradigóes discursivas das formagóes ideológicas.
38. A história recente das ciéncias gerou paradigmas transdisciplinares e
enfoques metodológicos sobre sistemas complexos que oferecem a possibilida-
de de integrar diversos processos materiais e ordens do real (a termodinámica de
sistemas abertos de Prigogine). Entretanto, o projeto transdisciplinar caracteri-
zou-se também pela transferéncia analógica dos conceitos e teorias pertencentes
a urna ciéncia a diferentes disciplinas, gerando um efeito ideológico ou um
reducionismo do saber devido á aplicagáo dos conceitos científicos fora do cam-
po específico do real no qual se produzem seus efeitos de conhecimento. A
especificidade e a "natureza" dos processos de que dáo conta as diferentes cién-
cias náo podem ser entendidas como entes ordenados em níveis hierárquicos
nos quais seus processos possam ser absorvidos pelo nível "superior", ou ser
reduzidos a seus níveis fundamentais numa ordem epigenética de evolugáo da
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 41

matéria. O físico, o biológico, o lingüístico, o histórico, o inconsciente, como


objetos científicos sáo autónomos e náo formam urna hierarquia fundada em
sua génese histórica. A antropologia e a história náo podem ser reduzidas a urna
psicologia, assim corno esta náo é em última instáncia urna biologia. Os conhe-
cimentos produzidos numa ciéncia de ordem "superior" ou com urna capacidade
de compreensáo transdisciplinar podem afetar o desenvolvimento de diversas
disciplinas, impulsionando a ampliagáo e generalizagáo de suas leis e regulari-
dades, sem implicar urna importagao de conceitos ou urna articulagao de seus
objetos científicos. Desta maneira, a termodinámica de sistemas abertos coloca
a possibilidade de se unificar a ordem física e biológica e torna-se possível
transferir os conceitos de entropia e as análises de fluxo de energia para o campo
da economia e da antropologia; da mesura forma, procurou-se estender as leis
da genética e da evolugáo biológica para o campo da história e da sociedade,
gerando urna sociobiologia39. Mas nem o biológico se reduz a urna termodiná-
mica generalizada, 40 nem é possível explicar a história como um processo de
evolugáo biológica. Náo existe urna metalinguagem capaz de fundir ou unificar,
por meio de um nível geral de formalizagáo, as especificidades conceituais de
cada ciéncia para apreender as diferentes ordens de materialidade do real.
39. 0 projeto interdisciplinar proposto pela TGS dá assim continuidade ao
das filosofias que tentaram encontrar um princípio unificador da realidade empíri-
ca e urna unidade conceitual das ciéncias. Este reaparece como urna "revolugáo
metodológica" qué busca descobrir os princípios físicos gerais de evolugáo da
matéria a partir da auto-organizagáo da physis, fundado numa lei geral de desor-
dem-interagóes-ordem-organizagán". Morin critica a Teoria Geral de Sistemas
por dessubstancializar os objetos científicos e busca descobrir a "natureza da na-
tureza" no princípio da geratividade organizacional, que postula corno princípio
metodológico a ernergéncia das diferentes formas de organizagáo da matéria.
Contudo, Morin náo consegue concretizar as leis deste princípio material gerativo
da physis, nem especificar as estruturas materiais que váo-se constituindo no
referido processo. Desse princípio náo se derivam leis gerais da matéria nem
leis particulares de cada um de seus níveis organizacionais. Esta é a limitagáo de
toda tentativa por fundar urna categoria geral, um método onicompreensivo ou
urna teoria transdisciplinar para articular o físico, o biológico e o social 42 .
40. A descoberta das bases genéticas dos sistemas vivos levou a concebé-
las corno uma estrutura fundamental, determinante dos processos evolutivos.
Os fenómenos de desenvolvimento apareciam assim fundados na reprodugáo de
certas estruturas genéticas conformadas ao acaso; de seu desenvolvimento
ontogenético, de seu processo evolutivo, da produgáo ao acaso de mutagóes
genéticas e de sua selegáo por assimilagáo ao meio ambiente. O processo
42 ENRIQUE LEFF

teleonómico assim constituído afasta-se das concepgóes vitalistas e animistas,


enquanto que a emergencia de novidades biológicas náo está predeterminada
nas estruturas genéticas iniciais ou por um fim predestinado, "pois se o DNA é
o suporte molecular da emergéncia, é por si mesmo inerte e desprovisto de
propriedades teleonómicas" 43. As mutagóes produzidas ao acaso conformam
novas estruturas que determinam o aparecimento de espécies e processos que
náo estáo contidos nas estruturas prévias. Por outro lado, as estruturas genéticas,
ao combinar-se com as proteínas alostéricas e por meio de "novas redes de coor-
denagáo" em nível celular, dáo lugar á emergéncia de novos processos funcionais
no desenvolvimento morfogenético dos organismos vivos. Desta forma, consti-
tuem-se os diferentes níveis epigenéticos no desenvolvimento da matéria viva".
41. As descobertas da biologia molecular e da genética moderna permiti-
ram desta forma combater o individualismo metodológico que teria surgido da
nogáo de "adaptagáo do mais apto". A selegáo natural apareceu como efeito de
populagóes definidas por suas estruturas genéticas e náo como a agáo de indiví-
duos biológicos sobre seu meio ambiente. Esta descoberta fundamental no cam-
po da biologia alimentou, porém, as ilusóes reducionistas de entender os níveis
epigenéticos de desenvolvimento determinados por urna estrutura genética 45 ou
pelos mecanismos próprios do desenvolvimento biológico46 . Contudo, a
morfogénese avangou, com as contribuigóes da topologia, na formalizagáo dos
processos epigenéticos".
42. Para o estruturalismo genético, a ordem simbólica, cultural e histórica
emerge como níveis epigenéticos superiores de organizagáo, analogamente a
seu surgimento no desenvolvimento biológico". Assim, a teoria biológica cons-
titui-se em teoria geral de diferentes esferas do real. Nesta epistemologia biolo-
gista, o sujeito apreende o objeto de conhecimento num processo de assimila-
gáo-transformagáo de seu meio ambiente, de forma análoga á fungáo evolutiva
dos organismos vivos em seu meio ecológico, desconhecendo os efeitos no pro-
cesso de desenvolvimento psicológico, da língua, das formagóes do inconscien-
te, da ordem simbólica e ideológica e das relagljes sociais de produgáo, como
esferas de materialidade, cujos efeitos determinam o processo ontogenético de
todo ser humano.
43. No campo científico, os novos fundamentos genéticos da biologia fun-
cionam como ideologias teóricas ao serem utilizados como o princípio organi-
zador dos processos culturais e históricos. Neste sentido, surgiu urna sociobio-
logia, como urna tentativa de síntese teórica, capaz de tragar as determinagóes
filogenéticas do comportamento social". O projeto de Wilson funda-se em sua
certeza de que "a história está guiada até um ponto mais que desprezível pela
evolugáo biológica que a precedeu (... e que...) as diregóes que pode tornar esta
'F
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 43

mudanga e seus produtos finais estáo sufocados pelas predisposigóes do com-


a
portamento geneticamente influenciadas, que constituíram as primeiras, sim-
é
ples adaptagóes dos seres humanos pré-letrados". Embora considere que "a reli-
e
giáo e a estrutura de classes sáo transmutagóes táo grandes que só os recursos
combinados da antropologia e a história podem esperar (descobrir) sua filogenia
e
cultural a partir dos rudimentos do repertório dos catadores-coletores (pensa
s,
que...) ainda estes poderiam com o tempo submeter-se a urna caracterizagáo
r-
estatística com a biologia" 50.
is
i- 44. Náo há dúvida de que as características biológicas do ser humano im-
[. puseram através de toda a história constrangimentos a seu comportamento so-
cial. Estas condigóes sáo um pressuposto da evolugáo cultural e da história e
podem ser entendidas como a limitagáo do campo onde se manifesta o possível
la
da cultura e da história. Mas o característico das sociedades humanas sáo os
efeitos da língua, do inconsciente e da história sobre estas bases genéticas que
geram processos que náo estáo "guiados" por suas condigóes filogenéticas. A
cultura e a história náo sáo determinatóes sincrónicas e diacrónicas do desen-
u
volvimento evolutivo das estruturas genéticas que deram origem ao homo sapiens.
a
Mais ainda, a emergéncia destas novas esferas de materialidade — a língua, a
organizagáo social, as formagóes do inconsciente — fazem da história um pro-
cesso que determina a estrutura genética das populagóes biológicas, enquanto
que seus efeitos sobre toda formagáo social condicionam a transformagáo de
seu meio ambiente, assim como a conformagáo de regras de casamento e das
relagóes sociais entre os homens, de onde surgem suas normas de fecundidade,
de reprodugáo social e de evolugáo biológica. O objeto da antropologia e do
materialismo histórico sáo os processos de reprodugáo/transformagáo das cultu-
ras e das formagóes sociais, distanciados de urna preocupagáo pela origem
filogenética de suas estruturas 51 . O estudo das práticas sociais e dos processos
simbólicos que caracterizam a história náo encontra um denominador comum
no "comportamento social", entendido como as operagóes adaptativas de um
indivíduo ou de urna populagáo biológica a seu meio ambiente.

5. Articulnáo de conhecimentos e materialismo histórico

45. Toda possível articulagáo entre ciéncias depende do sentido de seus


conceitos teóricos, do que derivam seus efeitos de conhecimento, as possibili-
dades de intemalizar os processos materiais que sáo objeto de outros campos do
saber, e a necessidade de trabalhar cenos conceitos para ser assimilados a novas
corpos teóricos. O materialismo histórico surge como um todo teórico consti-
44 ENRIQUE LEFF

tuído por dois níveis estruturais (infra-estrutura produtiva, superestrutura ideo-


lógica); como urna articulagáo de regióes ou instáncias (económica, política,
jurídica, ideológica). Mas só a concretude teórica que produz a articulagáo dos
conceitos do materialismo histórico estabelece a diferenciagáo, a autonomia
relativa e a interdeterminagáo destes níveis, instáncias, esferas ou regióes, como
um processo complexo de reprodugáo/transformagáo social.
46. Urna visáo holística do mundo produziu a Revolugáo de Copérnico
pelo desejo de ver "o todo (corresponder) com suas partes com uma simplicida-
de maravilhosa" 52. A epistemologia materialista funda-se na articulagáo dos
conceitos de uma teoria como a necessidade pensada do real que produz um
efeito de conhecimento de uma realidade complexa e náo como uma integragáo
das partes da realidade empírica. O princípio epistemológico materialista de
urna articulagáo teórica foi pensado por Marx nos termos metafóricos de urna
Gliderung53 ; Althusser e Balibar propuseram isso como "a estrutura de um
todo orgánico hierarquizado (onde) os níveis ou instáncias diferentes e relativa-
mente autónomas que coexistem na unidade estrutural complexa do todo social
articulam-se urnas sobre as outras segundo modos de determinagáo específicos,
fixados em última instáncia pela instáncia económica" 54. Este projeto epistemo-
lógico implica a existéncia de corpos teóricos específicos de cada urna das re-
gióes e instáncias do todo social. Mas isso náo significa que o materialismo
histórico seja apenas a ciéncia da instancia económica que haveria de ser com-
pletada por ciéncias das superestruturas. A articulagáo dos processos específi-
cos de cada regiáo — ideológicos, jurídicos, políticos — estabelece-se pela
articulagáo dos conceitos da teoria que dá conta do processo da luta de classes
na produgáo e nas formagóes superestruturais. As categorias de contradigáo e
superdeterminagáo sáo incapazes de dar conta dente processo complexo, en-
quanto que, embora demarquem uma problemática teórica, náo produzem ne-
nhum efeito concreto de conhecimento sobre seu funcionamento 55 . A categoria
filosófica de "determinagáo em última instáncia" náo pode "fixar a diferenga
real das outras instáncias, sua autonomia relativa e seu próprio modo de eficácia
sobre a sua própria base" 56. Apenas a concretude teórica dos conceitos científi-
cos como síntese de múltiplas determinagóes, permite apreender as inter-rela-
góes do processo histórico real como um todo.
47. A concepgáo do materialismo histórico como um corpo teórico arti-
culado de regióes com uma autonomia relativa abriu urna possibilidade de pen-
sar o todo concreto de pensamento e a realidade como uma articulagáo dos
processos específicos de cada esfera, ou como a resultante da visáo do todo a
partir da perspectiva de alguma de suas instáncias ou registros. Mas, como Marx
indica na Introduffio de 1857, o efeito de conhecimento náo surge da conver-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 45

géncia das visóes possíveis sobre um objeto de conhecimento, senáo que é o


todo concreto, articulado dos conceitos de urna teoria, o que constitui o princí-
pio do conhecimento do processo real, objeto do materialismo histórico e das
práticas diferenciáveis e articuladas do todo. A produgáo do conhecimento con-
creto "síntese de múltiplas determinagóes" náo é urna integragáo gestáltica de
percepgóes, nem a integragáo das homologias estruturais provenientes da for-
malizagáo dos elementos empíricos das diferentes regióes que engloba o objeto
de conhecimento da história.
)S 48. A problemática marxista da articulagáo interna das instancias do todo
111 social para dar conta do processo de reprodugáo cultural nas "sociedades primi-
ío tivas" levou a utilizar os fundamentos do estruturalismo e do funcionalismo sob
le o predomínio da "determinagáo em última instáncia do económico", como ga-
la rante o princípio do materialismo histórico. Neste sentido, Godelier deslocou
esta problemática para a busca — em cada caso histórico e em cada modo de
a- produgáo — da estrutura que adota a fungáo dominante como relagóes de pro-
al dugáo. Desta maneira, postulou que nas "sociedades primitivas" as relagóes de
s. parentesco, a religiáo e as relagóes imaginárias funcionam como infra-estrutura,
e que tanto o pensamento como a linguagem sao partes desta, enquanto funcio-
nam como forgas produtivas. A distingáo ontológica entre infra-estrutura e su-
perestrutura transforma-se dessa forma numa diferenciagáo funcional".
49. Nesta perspectiva teórica, o que importa é descobrir a instáncia que
funciona como relagóes de produgáo, de maneira que "todas as relagóes sociais
la aparecem como tantos aspectos e efeitos deltas". Mas esta concepgáo do fun-
cionamento do social deixa sem resposta o problema de saber como, nos dife-
e rentes estádios históricos, o complexo de processos que conformam a organiza-
gáo social se produz como um efeito das estruturas ecológicas, as regras da
cultura e as relagóes de produgáo, que em cada caso ocupam a fungáo dominan-
te na infra-estrutura, assim como as determinagóes das esferas da superestrutura
.a — religiáo, mitos, representagóes simbólicas e formagóes discursivas — e seu
la funcionamento como infra-estrutura através do "arcabougo" de práticas produ-
tivas, ideológicas e políticas de urna formagáo social. Desta forma, a complexi-
dade cultural é reduzida aos efeitos de uma estrutura dominante, sem dar plena
conta da articulagáo histórica das diferentes esferas de materialidade que lhe
conferem sua especificidade a uma racionalidade social determinada. O pensar
as "superestruturas" e os processos ideológicos como aspectos constitutivos das
relagóes sociais de produgáo ajuda a romper com um esquematismo estrutural
imaginário da teoria marxista; mas esta relativizagáo funcionalista náo explica a
articulagáo de estruturas invisíveis que produzem o processo de produgáo/repro-
dugáo/ transformagáo social em suas relagóes com a cultura e com a natureza58.
46 ENRIQUE LEFF

50. A soma das visóes parciais do processo histórico náo produzem a inte-
gragáo dos conceitos específicos das diferentes regióes ou instancias do todo
social. Os conceitos do materialismo histórico sáo já conceitos que articulara as
práticas diferenciáveis dessas regióes e dos efeitos de seus processos materiais.
O conceito de valor náo só integra os processos naturais, os processos de traba-
lho e os processos científico-tecnológicos para transformar-se em princípio do
processo económico. Toda formagáo de valor, o estabelecimento de um tempo
de trabalho socialmente necessário, implica tanto o desgaste de energia da forga
de trabalho como a realizagáo das mercadorias produzidas. Neste sentido, o
processo ideológico produzido pelas posigóes subjetivas dos agentes sociais
integra-se ao processo económico gerando sujeitos de consumo, traduzindo o
desejo numa demanda de mercadorias que permite a realizagáo do valor". Desta
forma, se a constituigáo biológica da forga de trabalho apresenta limitagóes para
a elevagáo da mais-valia absoluta, a acumulagáo capitalista pode prosseguir seu
ritmo de expansáo gragas á produgáo de uma mais-valia relativa proveniente do
processo de inovagáo científico-tecnológico, e da possibilidade de realizar esta
produgáo em expansáo, agindo sobre a insaciabilidade do desejo inconsciente.
O conceito de mais-valia indica a luta de classes no processo de trabalho 60, e o
conceito de luta de classes atravessa todas as práticas sociais: as práticas produ-
tivas e de consumo de mercadorias; as práticas teóricas e tecnológicas, as práti-
cas discursivas61 .
51. 0 materialismo histórico náo é, portanto, a articulagáo das "ciencias"
de suas diferentes "instancias" e "regióes": a economia política náo é a ciéncia
da estrutura produtiva, frente á psicanálise como ciéncia da superestrutura ideo-
lógica, a antropologia de sua organizagáo cultural e a ecologia de suas bases
naturais. As formagóes ideológicas náo pertencem a urna regido do imaginário
desvinculada do processo económico, o que impediria a compreensáo da auto-
nomia relativa de cada regido e romperia a interdeterminagáo das partes consti-
tutivas do todo social. A luta de classes é sempre urna luta ideológica enquadra-
da em relagóes sociais de produgáo específicas. Porém, o que interessa destacar,
o que é objeto de trabalho para o materialismo histórico e sua integragáo com
outras ciencias — ecologia, antropologia, psicanálise — é a produgáo concei-
tual que permite explicar os efeitos do modo de produgáo capitalista sobre suas
formagóes ideológicas e culturais, e sobre suas bases ecológicas de sustentabili-
dade. Isto obriga a rediscutir o problema da articulagáo de instancias e regióes
relativamente autónomas, porto que a superestrutura ideológica, política e jurí-
dica, assim como as bases ecológicas e culturais sáo, mais que condigóes gerais
da produgáo, parte constitutiva do processo económico, processos ativos no
desenvolvimento das forgas produtivas.
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 47

52.As diferentes práticas sociais náo sáo processos autónomos a partir dos
quais se integra a realidade do todo social. Pelo contrário, é o processo comple-
xo da reprodugáo/ transformagáo do modo de produgáo, o qual gera um conjun-
to de práticas diferenciadas como efeito da divisáo do trabalho e das manifesta-
góes da luta de classes em cada urna destas esferas. Estas práticas náo sáo produ-
zidas livremente, e sim encaixam-se num campo do possível que depende das
determinagóes estruturais do modo de produgáo e das condigóes que surgem dali
para a prática política, prática teórica, prática produtiva e as práticas discursivas.
53. 0 modo de produgáo capitalista, o objeto do materialismo histórico, é
um modelo abstrato sobre o real. Mas seu efeito de conhecimento náo depende
táo-somente da possibilidade de completar a teoria do capital através de urna
análise empírica, por conceitos observacionais e por nogóes intermediárias en-
tre o nível teórico e a realidade concreta. De cada modo de produgáo derivam
leis e condigóes gerais que organizam urna formagáo social, ou seja, as determi-
nagóes que permitam conhecer as situagóes concretas. Estas determinagóes ge-
rais devem ser completadas náo só por seu ajustamento ás diferentes condigóes
de desenvolvimento e adaptagáo do modo de reprodugáo ao meio geográfico e á
história cultural de cada formagáo social que dáo especificidade a estas leis
gerais, como efeito de sua articulagáo com as determinagóes de outras forma-
góes sociais — a articulagáo de modos de produgáo e formagóes socioeconómi-
cas. Neste sentido, a nogáo de formagáo social enriquece e torna mais concretas
as determinagóes abstratas do modo de produgáo, para dar conta do processo de
constituigáo, de reprodugáo ou de transformagáo da sociedade 62. Entretanto, a
teoria da produgáo deve ser completada incorporando esferas de materialidade
que ficaram fora da ordem complexa de condigóes de sustentabilidade ecológica
que determinam a reprodugáo do modo de produgáo capitalista e de toda forma-
gáo social onde convergem as histórias diferenciais das línguas, a heterogeneida-
de dos sistemas ecológicos e a diversidade de organizagóes culturais. Toda forma-
gáo social constitui assim como "sínteses de múltiplas determinagóes".
54. A nogáo de formagáo económico-social (FES) surgiu no pensamento
marxista como urna necessidade de subtrair as tendéncias economicistas e me-
canicistas que buscavam dar conta da complexidade da organizagáo cultural em
termos de urna articulagáo de modos de produgáo, fundado nas estruturas pro-
dutivas e nas relagóes sociais de produgáo 63. Este problema teórico náo se resol-
via fazendo funcionar as relagóes de parentesco, a língua ou a estrutura ecológi-
ca do meio geográfico como relagóes sociais de produgáo das formagóes pré-
capitalistas. Com a nogáo de FES, o processo de reprodugáo social aparece
corno um todo articulado dos processos económicos e dos processos superestru-
turais. Estes últimos deixam de ser um epifenómeno da infra-estrutura, uma
48 ENRIQUE LEFF

determinagáo em última instáncia pelo económico. Mas a nogáo de formagáo


social náo atribui novos conceitos que tornem mais concreta a articulagáo entre
as relagóes sociais de produgáo e as formagóes ideológicas. Neste sentido, esta
nogáo resulta insuficiente para compreender os efeitos das estruturas ecológi-
cas, da língua e das relagóes de parentesco na conformagáo das culturas "primi-
tivas", bem como para apreender o processo de transformagáo das sociedades
pré-capitalistas sob o domínio do modo de produgáo capitalista, ou para resol-
ver o problema teórico da transigáo do modo de produgáo capitalista para a
construgáo de urna racionalidade ambiental geral, a constituigáo de formagóes
socioambientais e o estabelecimento de unidades ambientais de produgáo.
55. Para compreender a articulagáo das formagóes sociais pré-capitalistas
ao modo de produgáo capitalista náo basta "ajustar" o conceito de modo de
produgáo (MP) ao de FES, "especificando-o na realidade e mostrando suas va-
riedades históricas, geográficas e `regionais' "64 Este problema requer dar conta
.

da forma como os processos diferenciáveis de reprodugáo/transformagáo ecoló-


gica e cultural se inscrevem nas formagóes sociais pré-capitalistas e funcionam
no ámbito de suas relagóes de produgáo e de suas formagóes ideológicas; o
modo de produgáo aparece assim como um processo complexo que implica a
articulagáo dos referidos níveis de materialidade do real. A dominagáo do capi-
tal sobre as formagóes sociais náo-capitalistas é exercida náo só através do in-
tercámbio mercantil, mas implica também um complexo de práticas de sujeigáo
mediante os aparelhos ideológicos do Estado: integragáo numa língua e numa
religiáo nacionais, nos partidos políticos e num sistema educativo oficiais, nas
normas jurídicas do Estado e na restrigáo ao acesso e gestáo dos recursos natu-
rais sancionado e legitimado pelas regras da ordem económica internacional.
56. 0 propósito de integrar as diferentes instancias que conformam o todo
social e seus processos de reprodugáo/transformagáo gerou um problema teóri-
co e metodológico ainda náo resolvido pelo marxismo: o que se refere á articu-
lagáo dos processos naturais com as estruturas sociais (produtivas, ideológicas,
jurídicas, políticas) na caracterizagáo dos MP e das FES atuais. A estrutura e
dinámica de todo MP ou FES estabelecem-se numa articulagáo específica entre
cenas relagóes sociais de produgáo e desenvolvimento das forgas produtivas.
Todo MP e toda FES estabelecem conexóes com a natureza através dos objetos
e meios "naturais" de trabalho dos processos produtivos que ali se desenvol-
vem. Contudo, há uma dificuldade náo resolvida para compreender as determi-
nagóes do meio na estruturagáo das relagóes sociais e técnicas de produgáo e
para incorporar os processos ecológicos nos processos produtivos globais e no
desenvolvimento das forgas produtivas da sociedade.
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 49

57. Talvez o esforgo mais acabado por construir urna categoria de análise
sociológica a partir do conceito de FES é o realizado por Fossaert 65 . Este autor
constrói, a partir de uma caracterizagáo do tipo de trabalhadores, proprietários,
meios de produgáo, que constituem um conjunto de modos e lógicas de produ-
gáo, toda urna tipologia de FES fundada em sua combinatória. Entretanto, esta
diversidade tipológica náo chega a romper com um certo esquematismo e
estatismo da análise estrutural, que dificulta a análise dinámica dos processos
de mudanga, a transigáo para novas racionalidades produtivas e a incorporagáo
dos processos culturais e ecológicos que participarla na conformagáo das relagóes
de produgáo e das forgas produtivas que devem caracterizar as formagóes sociais
que funcionam e produzem dentro de unidades ambientais determinadas.
58. O processo de reprodugáo/transformagáo do modo de produgáo capita-
lista, como um processo em escala mundial, depende das formas particulares que
adota seu predominio em nivel nacional, ou seja, de sua articulagáo com o com-
plexo de formagóes sociais diferenciadas, que através das relagóes de poder regu-
ladas pelo Estado, constituem urna "formagáo social nacional". Esta manifesta-se
como um complexo de práticas ao nível produtivo e ao nível superestrutural,
como o efeito das lutas de classes que refletem através dos aparelhos de Estado
a determinagáo exercida pelo modo de produgáo dominante. Por outro lado,
estas relagóes de poder náo resultam de urna determinagáo das estruturas que
sustentam os atores sociais passivos. Neste sentido, Balibar assinala que
"náo é o modo de produgáo (e seu desenvolvimento) que `reproduz' a formagáo
social e `gera' de alguma forma sua história; (...) é a história da formagáo social
que reproduz (ou náo) o modo de produgáo no qual se baseia e explica seu
desenvolvimento e suas transformagóes. A história da formagáo social, isto é, a
história das diferentes lutas de classes que ah se integram e de sua 'resultante'
em conjunturas históricas sucessivas" 66.

59. Neste sentido, a reprodugáo do modo de produgáo capitalista depende


das condigóes dos diferentes meios ecológicos e culturais — gerando formas
desiguais de desenvolvimento, de acumulagáo, de localizagáo e de especializa-
gáo dos capitais em escala mundial — bem corno do efeito das lutas de classes
que ali se desenvolvem por transformar a lei absoluta do valor e do mercado e
constituir uma racionalidade alternativa.

6. Biologia, história natureza e sociedade


-

60. Natureza e sociedade sáo dual categorias ontológicas; náo sáo nem
conceitos nem objetos de nenhuma ciéncia fundada e portanto náo constituem
50 ENRIQUE LEFF

os termos de uma articulagáo científica. Estas categorias estáo presentes tanto


na ciencia biológica como no materialismo histórico. Na primeira, o processo
evolutivo se produz pela determinagáo genética das populaglíes biológicas e de
seu processo de selegáo-adaptagáo-transformagáo em sua interagáo com seu meio
ambiente; na ciéncia da história, a natureza aparece como os objetos de trabalho
e os potenciais da natureza que se integram ao processo global de produgáo
capitalista e, em geral, os processos produtivos de toda formagáo social, como
um efeito do processo de reprodugáo/transformagáo social.
61. Podemos distinguir quatro problemas nas relagóes entre a biologia e a
história:
61a.A produgáo de conhecimentos sobre os processos físicos, a evolugáo
biológica ou a organizagáo ecológica da natureza. Neste sentido, o objeto de
conhecimento é um objeto externo á história, mas o conhecimento sobre tais
processos é um processo histórico de produgáo científica.
61b. O conhecimento de processos biológicos (evolugáo e transformagáo
ecossistemas naturais), onde o objeto natural está superdeterminado por proces-
sos sócio-históricos. Neste sentido, a articulagáo entre natureza e sociedade —
entre a ciéncia biológica e o materialismo histórico — dá-se comó a articulagáo
dos efeitos de ambos os objetos teóricos num processo real: a transformagáo
concreta dos ecossistemas e as condigóes ecológicas da produgáo.
61c. A absorgáo da natureza no processo capitalista de produgáo, en-
quanto que, como objetos do trabalho, de recursos e fenómenos naturais ou de
produtividade ecológica, a natureza incorpora-se tecnologicamente ao proces-
so produtivo.
61d. O estudo de urna formagáo social "náo-capitalista". Esta análise faz
convergir tanto os efeitos do meio ambiente particular na divisáo do trabalho, da
linguagem e da estrutura social, bem como os efeitos da sociedade capitalista
através do intercámbio mercantil e sua integragáo através dos aparelhos do
Estado á sociedade nacional.
62. Cada ciéncia funda os conceitos nos quais se absorve "o natural" e "o
social" em seu objeto de conhecimento. Os processos naturais estáo presentes
no materialismo histórico na nogáo de objeto de trabalho e os conceitos de valor
e renda diferencial, que articularla os processos naturais com o processo de pro-
dugáo de mais-valia. Como nao existe urna ciéncia geral da história, nenhuma
nogáo geral pode servir como conceito científico da articulagáo entre natureza e
sociedade. O processo de trabalho, a transformagáo do objeto de trabalho em
valor de uso, é a condigáo geral de que todo modo de produgáo mas, em sua
generalidade, as nogóes de trabalho ou de valor de uso náo podem explicar as
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 51

determinagóes específicas dos processos de trabalho de um modo de produgáo,


nem suas conseqüéncias na transformagáo da natureza.
63. Os processos naturais sáo objeto da biologia enquanto fenómenos evo-
lutivos e de desenvolvimento ontogenético. Desde o momento em que natureza
— do meio ambiente até a natureza orgánica do homem — é afetada pelas
relagóes sociais de produgáo, estes processos biológicos sáo superdeterminados
pelos processos históricos em que o homem ou a natureza se inserem. Fenóme-
nos parciais da natureza podem constituir objetos de conhecimento de diferen-
tes disciplinas biológicas (a fisiologia de plantas, o metabolismo de animais ou
a caracterizagáo dos ecossistemas). Mas desde que a natureza se transforma
num processo geral, em objeto de uma ciéncia — a evolugáo biológica, a diná-
mica dos ecossistemas estes objetos biológicos devem incluir os efeitos das
relagóes sociais de produgáo que os afetam. E estes efeitos devem ser considera-
dos em suas determinagóes sócio-históricas específicas, náo na redugáo do so-
cial e da história em processos naturais ou ecológicos. Desde que a natureza se
transforme em objeto de processos de trabalho, o natural absorve-se no objeto
do materialismo histórico. Isto náo nega que operem as leis biológicas dos orga-
nismos que participam no processo, inclusive do homem e sua forga de traba-
lho; mas o natural se transforma no biológico superdeterminado pela história.
Nem o recurso natural, nem a forga de trabalho se referem ao metabolismo
biológico ou ao desgaste energético dos organismos vivos. O recurso natural e a
forga de trabalho náo sáo entes naturais existentes independentemente do so-
cial, mas sáo já o biológico determinado pelas condigóes de produgáo e repro-
dugáo de urna dada estrutura socia1 67 .
64. O conceito de valor — o tempo de trabalho socialmente necessário
para a produgáo de mercadorias — é um conceito no qual a produtividade natu-
ral da terra, a produtividade do trabalho através de urna tecnoestrutura, a produ-
tividade dos ecossistemas através do conhecimento científico e as lutas para
redugáo da jornada de trabalho, conjugam-se para estabelecer um tempo de tra-
balho socialmente necessário para produzir os diferentes valores de uso inter-
cambiáveis. O conceito de renda diferencial náo implica o efeito do natural na
produgáo de urna porgáo da mais-valia. No marxismo ortodoxo náo existe urna
renda diferencial "natural" independente da formagáo de valor e de pregos que
fixam a taxa média de lucro. Somente guando estas variáveis económicas foram
determinadas pelas leis do valor e dos pregos do mercado, é que as diferentes
fertilidades do solo podem dar urna renda diferencial a seu proprietário, da mes-
ma forma como um avanco tecnológico busca para seu possuidor urna mais-
valia relativa, com base no incremento da produtividade da forga de trabalho,
isto é, em sua maior "fertilidade tecnológica". A determinagáo dos processos
52 ENRIQUE LEFF

ecológicos na produgáo de urna renda diferencial é táo pouco natural como a


forga de trabalho na produgáo de mais-valia. Valor e renda diferencial sao já os
conceitos em que a história absorve e articula o natural, fazendo intervir as
foros naturais na produgáo de ganhos como um efeito superdeterminado pelas
relagóes sociais de produgáo. Desta forma, a formagáo de valor e a produgáo de
renda diferencial da terra estáo articuladas, com urna interdependéncia que au-
menta com o desenvolvimento capitalista. A aplicagáo de urna tecnologia ecoló-
gica que afeta as condigóes de produtividade de um ecossistema e de sustentabi-
lidade ecológica do processo produtivo, transforma os processos naturais em
processos tecnológicos. A partir dense momento, integra-se a produtividade na-
tural á produtividade tecnológica, a renda da terra aos lucros do capital". Isso
leva á transformagáo dos conceitos do materialismo histórico para internalizar
as condigóes ecológicas da produgáo.
65.A ecologia articula-se dessa forma ao materialismo histórico explican-
do a produgáo de valores de uso como um efeito da produtividade natural. Os
próprios conceitos de O capital — valor, renda diferencial, forgas produtivas —
deveráo ser reelaborados para articular o processo social de produgáo com o
meio natural no qual necessariamente se desenvolve. O valor de uso náo só se
refere á substáncia material aos fluxos de energia que intervém em sua elabora-
gáo, senáo que implica uma demanda e um processo de consumo que é efeito
do complexo processo social no qual se produz o valor de troca das mercado-
rias. Entretanto, a produgáo de valores de uso e valores de troca náo pode des-
vincular-se dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais que estabelecem
condigóes gerais da produgáo.
66. O postulado de uma biossociologia, como uma ciéncia virtual encarre-
gada de analisar as formas de interdeterminagáo entre a legalidade biológica e a
legalidade social, surgiu como urna necessidade de fundar urna base teórica e
metodológica para conduzir urna estratégia de ecodesenvolvimento a partir de
urna epistemologia materialista — do reconhecimento de esferas específicas de
materialidade do real e de suas respectivas ciéncias 69 Desta forma queríamos
.

deixar para trás as concepgóes naturalistas onde o social é absorvido no biológi-


co como um ecossistema e as concepgóes "marxistas" onde esta diferenciagáo/
articulagáo de processos aparece corno uma mediagáo entre valor de uso (meta-
bolismo ecológico) e valor de troca (metabolismo social) 70. Esta biossociologia
emergiu como urna estratégia epistemológica para pensar a problemática teóri-
ca da articulagáo biosocial a partir das condigóes históricas que produziram as
crises ecológicas como efeito da crise do capital. Todavia, surgiria mais corno
urna via metodológica para o estudo concreto de comunidades rurais e para a
implementagáo de práticas de ecodesenvolvimento que como urna ciéncia ou
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 53

como uma teoria geral da articulagáo das ciéncias. Neste sentido, a biologia
tendia a convergir para o ecológico e o materialismo histórico, para a economia
política. Conseqüentemente, a separagáo entre o biológico e o social apareceria
como urna redugáo da cultura ás leis do ecossistema e da história ás leis do
intercámbio mercantil. Esta postura teórica permitiu demarcar o terreno de urna
teoria materialista do ambiente; contudo náo constitui urna teoria geral das rela-
góes entre natureza e sociedade nem um princípio epistemológico para o estudo
científico das sociedades "primitivas" e das sociedades camponesas.
67. A articulagáo entre natureza e sociedade, entre ecologia e capital náo
poderia se estabelecer corno urna relagáo entre intercámbio ecológico/valor de
uso e intercámbio económico/valor de troca. Urna empresa agrícola capitalista
produz valor de troca no próprio processo em que transforma os valores de uso
naturais em valores de uso para o consumo, na integragáo do intercámbio de
matéria do processo produtivo com o intercámbio ou metabolismo ecológico.
Seja nesta forma direta ou por sua articulagáo com formagóes sociais rurais,
todo modo de produgáo determina os processos de intercámbio material com a
natureza. No mesmo sentido, a energia humana atua como supone da forga de
trabalho; porém, a materialidade histórica desta náo se funda em seu caráter
natural ou biológico, mas nas condigóes sociais em que opera. Por isso, nas
sociedades agrárias e ainda nas comunidades de autoconsumo, a análise da ra-
cionalidade da produgáo e de reprodugáo social fundada no cálculo energético"
é útil para planejar as práticas do ecodesenvolvimento, mas tem um valor expli-
cativo limitado, enquanto que desconhece os efeitos das estruturas materiais
constitutivas da cultura e do ecossistema nas práticas de uso dos recursos, que
determinam os fluxos de matéria e energia.
68. A análise dos processos ecológicos, sociais e culturais, em termos de
sua racionalidade energética, surge da aplicagáo a estes campos dos princípios
da física, da entropia e da termodinámica de sistemas abertos. Neste sentido,
Lotka 72 pretendeu fundar o processo de sucessáo ecológica e de selegáo natural
no princípio de fluxo máximo de energia e Schródinger rediscutiu o fenómeno
vital a partir das leis da física e da termodinámica 73 Os princípios da termodi-
.

námica e os balangos de energia tém sido aplicados no campo da antropologia,


da ecologia e do social. Ainda, pretendeu-se fundar urna energética social a
partir dos princípios da energia, como um paradigma transdisciplinar e corno
urna substancia material capaz de aplicar-se a vários campos empíricos 74 Ten-
.

tou-se explicar assim tanto o funcionamento das "sociedades primitivas", como


a evolugáo das sociedades agrícolas para a sociedade industrializada, através de
um processo de complexizagáo da estrutura social que implicaria a necessidade
de incrementar o consumo de energia para manter a coesáo social dentro das
54 ENRIQUE LEFF

formas de poder cada vez mais complexos ". Mais recentemente, a conceituali-
zagáo do processo económico como um processo entrópico levou a uma crítica
radical da teoria do crescimento económico e a tratar de fundamentar a econo-
mia na ecologia, "por ser esta urna ciéncia muito mais complexa" 76. Estes argu-
mentos demonstram a irracionalidade energética e ecológica dos princípios
mecanicistas nos quais fundou-se a racionalidade económica dominante, mas
náo dáo conta da articulagáo da ordem económica com os processos estrutura-
dores ou desestruturadores do meio ambiente e das organizag6es culturais de
onde surge um potencial neguentrópico para a construgáo de outra racionalida-
de produtiva. Desta forma, a exploragáo crescente da energia da forga de traba-
lho e o desenvolvimento tecnológico caracterizado por sua tendéncia exponencial
para o consumo de recursos naturais, para a degradagáo dos ecossistemas e para
a entropia crescente da organizagáo social e dos processos produtivos, aparece
corno urna lei sociológica universal, encobrindo o efeito das tendéncias para a
maximizagáo da taxa de lucro do capital, fundado num modo de produgáo que
nada tem de natural ou de universal. Se o incremento do consumo das fontes
náo renováveis e da degradagáo da energia fosse urna lei geral de evolugáo cul-
tural, da organizagáo social e do desenvolvimento das forgas produtivas, esta lei
náo poderia ser revertida pelos princípios éticos e pelas normas morais postula-
das pelos paladinos do crescimento zero e da economia estacionária para produ-
zir urna mudanga social e impedir a catástrofe ecológica, ainda se isso implicas-
se a inviabilidade da sobrevivéncia do homem no planeta.
69. A forma particular de articulagáo das determinagóes do ecossistema, a
língua, a cultura, um modo de produgáo, é específico de cada formagáo social.
A conformagáo de seu meio ambiente, a história de suas práticas produtivas e
sociais, seus intercámbios culturais na história, determinaram a capacidade pro-
dutiva dos ecossistemas, a divisáo do trabalho, os níveis de autoconsumo e a
produgáo de excedentes comercializáveis. A intervengáo mais ou menos forte
do capital e dos Estados nacionais modificam estas modalidades de transforma-
00 do meio ambiente e dos estilos culturais pela introdugáo de novas técnicas e
modelos produtivos. Isto transforma as formagóes sociais náo capitalistas em
objetos complexos que se definem pelas interdeterminagóes entre processos
naturais, técnicos e culturais. Em todo caso, estes processos culturais náo po-
dem ser explicados mediante um esquema imaginário que reduz suas
interdeterminagóes a um modelo n-dimensional de variáveis. A articulagáo de
determinagóes que explicam as relagóes sociedade-natureza de uma formagáo
cultural, náo pode limitar-se á análise dos intercámbios energéticos nos proces-
sos produtivos ou a um princípio físico generalizável a partir dos processos
biológicos até os processos históricos. Tampouco pode reduzir-se a um esque-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 55

ma formal que recorte a realidade em sistema arbitrariamente escolhidos (a tec-


nologia, a cultura, a economia, o ecossistema) sem urna integragáo das discipli-
nas ecológicas e etnológicas que dáo conta de seus processos materiais".
70. No caso das sociedades agrárias, a articulagáo do natural e do social
náo pode ser resolvido pela redugáo da formagáo camponesa de autoconsumo a
um "ecossistema humano" inserido no ecossistema geral e articulado com o
capital. Esta articulagáo náo se concretiza simplesmente na superdeterminagáo
do capital sobre a cultura e seu meio ambiente, a partir do intercámbio mercan-
til. Urna formagáo camponesa pode ser considerada urna "entidade mediadora"
entre o modo de produgáo capitalista e a natureza; no entanto, possui urna estru-
tura própria que especifica esta "mediagáo". O problema reside em entender
como se articulara os processos e potenciais da natureza, dependentes da estru-
tura do ecossistema, com as leis sociais e as formas de organizagáo cultural que
regulam os processos produtivos e as condigóes de acesso e apropriagáo da
natureza, articulados por sua vez com os efeitos do modo de produgáo capitalis-
ta ou de outras formagóes sociais dominantes.

Notas

1. Leff, E. Ciencia, técnica y sociedad. México, ANUIES, 1977.


2. Cf. Kuhn, T. S. La révolution copernicienne. Paris, Fayard, 1973. Koyré, A. Études
galiléennes. Paris, 1966. Idem. Études d'historie de la pensée scientifique. Paris, Gallimard,
1973.
3. Cf. Canguilhem, G. La connaissance de la vie. Paris, J. Vrin, 1971.
4. Cf. Althusser, L.; Balibar, E. Lire le capital. Paris, F. Maspero, 1973. Lacan. Escritos.
México, Siglo XXI, 1976.
5. Cf. Koyré, A. Études newtoniennes. Paris, Gallimard, 1968.
6. Para A. Koyré, as transformagóes na visáo do mundo que surgem corno efeito da "revo-
lugáo do século XIII" podem caracterizar-se como "a destruigáo do cosmos e a geometrizagáo
do esparz o; isto é, a substituigáo da concepgáo do mundo como um todo finito e bem ordenado,
no qual a estrutura espacial incorporava urna hierarquia de perfeigáo e valor, pela de um
universo indefinido ou ainda infinito que já náo estava unido por subordinagáo natural, mas se
unificava táo comente mediante a identidade de suas leis e componentes últimos e básicos".
In: KOYRÉ, A. Del mundo cerrado al universo infinito. México, Siglo XXI, 1979. p. 2.
7. Cf. Foucault, M. Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1969.
8. A lógica hegeliana formulou o "discurso do ser no sentido em que é o próprio ser quem
se diz — e diz a si mesmo — em e pelo discurso do sujeito... ultrapassando a separagáo
estabelecida arbitrariamente entre o lógico pensado e o ser pensado. Esta proporá sua identi-
dade". In: Lecourt, D. Une crise et son enjeu. Paris, F. Maspero, 1973. p. 58.
9. "0 que no horizonte de todas as representagóes atuais se indica em si mesmo corno o
fundamento de sua unidade sáo esses objetos jamais objetiváveis, essas representagóes jamais
56 ENRIQUE LEFF

completamente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis,


essas realidades que estáo em retirada na medida em que fundam o que se dá e avanga para
nós: a poténcia do trabalho, a forga da vida, o poder de falar... Buscam-se assim as condigóes
de possibilidade do objeto e de sua existéncia, enquanto que na reflexáo transcendental iden-
tificavam-se as condigóes de possibilidade dos objetos da experiéncia com as condigóes de
possibilidade da própria experiéncia. In: Foucault, ibid., p. 257.
10. Estas transformagóes fundamentais no saber científico moderno foram entendidas
pela filosofia materialista do final do século passado. Desta forma, Engels assinalava que "a
grande idéia fundamental segundo a qual o mundo náo deve se considerar como um complexo
de coisas acabadas, mas como um complexo de processos... penetrou táo profundamente na
consciéncia comum, sobretudo após Hegel que quase náo encontra já contraditores sob essa
forma geral". In: Engels, E Ludwig Feuerbach et la fin de la Philosophie classique allemande.
Paris, Editions Sociales, 1966. p. 61. Nietzsche apontava para as implicagóes anti-subjetivistas
dente saber: "A linguagem pertence em sua origem á idade da forma mais rudimentar de
psicologia: encontramo-nos em meio a um rude fetichismo guando buscamos na mente as
pressuposigóes básicas da metafísica da linguagem — ou seja, da razdo. É isto o que vé em
todas as partes agá'o e ator; isto o que cré na vontade como causa em geral; isto que profeta sua
crenga na substáncia-ego para todas as coisas — apenas cria assim o conceito de `coisa' ".
Nietzsche, Friederich. Twilight of the idols. sil, Penguin Books, 1968, p. 38.
11. Marx, K. "Introduction générale á la critique de l'économie politique". In: Marx, K.
Oeuvres, Economie 1. Paris, Gallimard, 1965. p. 255
12.Sobre urna pretensa epistemologia pragmatista em Marx, ver A. Schmidt, El concepto
de naturaleza en Marx, México, Siglo XXI, 1976, assim como minha crítica a este: LEFF,
Alfred Schmidt y el fin del humanismo naturalista. In: Antropología y marxismo. n. 3, Méxi-
co, 1980. p.139-152.
13. "Esse tempo náo é acessível como entrecruzamento complexo de diferentes tempos...
mas em seu conceito... É preciso construir os conceitos dos diferentes tempos históricos... a
partir da natureza diferencial e da articulagáo diferencial de seus objetos na estrutura do todo".
Althusser, L.; Balibar, E. Lire le capital. Op. cit. p. 128-9.
14.Marx, K. "Le capital". In: Oeuvres. Op. cit. cap. I.
15."Náo é somente a forma da sistematicidade que faz a ciéncia, mas apenas a forma da
sistematicidade das 'esséncias' (dos conceitos teóricos) e náo a sistematicidade dos fenóme-
nos brutos (dos elementos do real)... ou a sistematicidade das 'esséncias' e os fenómenos
brutos". In: Althusser, L.; Balibar, E. Lire Le capital. Op. cit., p. 102.
16.Cf. Braunstein, N.; Saal, F. "El sujeto en el materialismo histórico, en el psicoanálisis
y en la Lingüística". In: Leff, E. Biosociología y Articulación de las Ciencias. México, UNAM,
1981. Publicado também em: Braunstein, N. Hacia Lacan. México, Siglo XXI, 1980.
17. Seria necessário precaver-se contra o uso acrítico, que vai além do sentido metafórico
desta formulagáo das teorias de sistemas, o que poderia remeter a um certo empirismo ao
postular urna realidade preexistente que estaria ah para ser recortada pelas diferentes visóes
dos cientistas experts que definem o que fica dentro e fora de um sistema construído intencio-
nalmente.
18.Althusser, L.; Balibar, E. Lire le Capital, Op cit., p. 107, 170.
19.Cf. Olivé, L. La explicación social del conocimiento. México, UNAM, 1985. Leff, E.
"Sociología y ambiente: formación socio-económica, racionalidad ambiental y transformaciones
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 57

del conocimiento". In: Leff, E. (Coord.). Ciencias sociales y formación ambiental. Barcelona,
GEDISA/UNAM/PNUMA, 1994 (ver Cap. 3 neste volume).
20. "Esta abstragáo do trabalho em geral náo é o resultado mental de uma totalidade
concreta de trabalho... o trabalho transformou-se... náo apenas enquanto categoria, mas na
própria realidade, num meio de produzir a riqueza em geral". Marx, K. "Introduction". Oeuvres,
op. cit. p. 259.
21. Althusser, L.; Balibar, E. Lire le Capital, Op. cit., p. 47.
22. Leff, E. "La teoría del valor en Marx frente a la revolución científico-tecnológica".
In: Leff, E. (ed.) Teoría del valor. México, UNAM, 1980.
23. Leff, E. "Ciencia y tecnología en el desarrollo capitalista". In: Historia y sociedad, n.
6. México, 1975. p. 75-87.
24. Cf. Jantsch, E. Technological Forecasting in perspective. Paris OCDE, 1967. Hetman,
F. Society and the assessment of technology. Paris, OCDE, Paris, 1973.
25. Cf. Marcuse, H. L'homme unidimensionnel. Paris, Éditions du Minuit, 1968.
26. Cf. Leff, E. "El sistema de ciencia y tecnología en el proceso de desarrollo
socioeconómico". In: Comercio exterior, v. XXVI, n. 11. México, 1976, pp. 1334-41. Sobre a
fungáo ideológica das aplicagóes técnicas das ciencias, ver Habermas, J. La technique et la
science comme idéologie. Paris, Gallimard, 1973, cap II.
27. Cf. Popper, K. La logique de la découverte scientifique. Paris, Payot, 1973.
28. Cf. Lacan, J. Escritos, op. cit. e Las formaciones del inconsciente. Buenos Aires,
Nueva Visión, 1977.
29. Althusser, L. Curso de filosofía marxista para científicos. sil, Diez, 1975. p. 38.
30. Boisot, M. "Disciplina e interdisciplinariedad". In: Apostel, L. et al. Interdisciplina-
riedad. Problemas de la enseñanza y de la investigación en las universidades. México, ANUIES,
1975. (reimpressáo em 1979, p. 108-9).
31.Leff, E. "Biosociología y ecodesarrollo". In: Leff, E. (ed.) Memorias del primer simposio
sobre ecodesarrollo. México, Asociación Mexicana de Epistemología, 1977. p. 52-71.
32. A teoria geral de sistemas de von Bertalanffy parte de urna nogáo de sistema que
"alude a características muito gerais compartilhadas por grande número de entidades que
costumam ser tratadas por diferentes disciplinas. Daí a natureza interdisciplinar da teoria
geral de sistemas; seus enunciados afetam a comunidades formais ou estruturais, deixando de
lado a `natureza dos elementos ou forra do sistema', de que se ocupam as ciéncias especiais...
A unidade da ciéncia náo é assegurada por urna redugáo das ciéncias a física e química, mas
pelas uniformidades estruturais que se estabelecem entre os diferentes níveis da realidade".
Von Bertalanffy, L. Teoría general de los sistemas. México/Buenos Aires, Fondo de Cultura
Económica, 1976. p. 263-90.
33.Meadows, D.; Meadows, J.; Randers, J.; Behrens III, W. W. Los límites del crecimiento.
México, Fondo de Cultura Económica, 1972.
34. Ver: Fichant, M. Pécheux, M. Sur l'histoirie des sciences. Paris, Maspero, 1971.
Lecourt, D. Pour une critique de l'épistémologie. Paris, F. Maspero, 1972.
35. Sobre o uso de um método analógico para a integragáo dos processos biológicos e
culturais, ver: Gerard, R. W.; Kluckohn, C.; Rapoport, A. "Biological and cultural evolution.
Some analogies and explorations", in Behavioral Science (1)1:6-34.
36. Lévi-Strauss, C. Structural anthropology. Londres, Allen Lane, The Penguin Press,
1968.
58 ENRIQUE LEFF

37. René Thom delimitou o alcance da metodologia estruturalista nos seguintes termos:
"Do ponto de vista estruturalista, náo se tenta explicar uma morfologia por redugáo a elemen-
tos emprestados de outra teoria — supostamente elementar ou fundamental... trata-se apenas
de melhorar a descrigáo da morfologia empírica exibindo suas regularidades, suas simetrias
ocultas, mostrando sua unidade interna através de um modelo matemático formal que pode ser
gerado axiomaticamente. Nesse sentido, o 'estruturalismo' é urna teoria modesta, já que seu
único propósito é melhorar a descrigáo... Por isto está táo mal fundada a atual explicagáo da
morfogénese pelo código genético na biologia. É tanto como dizer que basta decifrar o alfabe-
to de urna linguagem desconhecida para entendé-la". Thom, R. "Struturalism and biology".
In: Waddington, C. H. Towards a theoretical biology. Chicago, Aldine Publishing Company,
1968 (reimpressáo 1969 e 1970). V. 3. (Rascunhos) p. 68-82.
38. Engels, F. Dialectique de la nature. Paris, Editions Sociales, 1968.
39. Ver: Wilson, E. O. Sociobiology. The new synthesis. Cambridge, Mass., Londres. The
Belknap Press of Harvard University Press, 1975.
40. Ver. Monod, J. Chance and necessity. Vintage Books, 1972. WADDINGTON et al.,
Hacia una biologia teórica. Madri, Alianza, 1976.
41. Ver Morin, E. La méthode. T. 1, La nature de la nature. Paris, Du Seuil, 1977.
42. Ver: Waddington, C. H. "Las ideas básicas de la Biología". Hacia una biología teóri-
ca. Op. cit., p. 17-65.
43. Monod, J. "Lección inaugural de la cátedra de biología del Collége de France". In: Del
idealismo "físico" al idealismo "biológico". Cuadernos Anagrama. Barcelona, 1972. p. 24.
44. Waddington, C. H. New patterns in genetics and development. Nova lorque/Londres,
Columbia University Press, 1962.
45. Para una crítica al reduccionismo geneticista, ver as intervengóes de W. H. Waddington
em Hacia una biología teórica, op. cit.
46. É neste sentido que Monod concebe a "noosfera"- "o reino das idéias e do conheci-
mento — corno urna emergéncia da biosfera. Cf. Monod, J. "Lección inaugural", op. cit. Ver
a crítica que Louis Althusser em seu Curso de filosofía para científicos. s/1, Editorial Diez,
1975.
47. "Em todo processo natural nos esforgamos primeiro por isolar as partes do domínio
nas quais é estruturalmente estável, os "creodos" de processo, ilhas de determinismo separa-
dos por zonas em que está indeterminado ou é estruturalmente instável. Mediante a introdu-
00 dos modelos dinámicos, nos esforgamos a seguir em analisar cada creodo em "creodos
elementares", associados ao que chamo "catástrofes elementares", depois em relacionar a
organizagáo destes creodos elementares numa figura global estável pela agáo de uma singula-
ridade implícita da dinámica, o "centro organizador". Thom, R. "Una teoría dinámica de la
morfogénesis". In: Waddington, C. H. Hacia una Biología.... Op. cit., p. 185. No entanto, o
próprio Thom reconhece que "o problema é de natureza essencialmente teórica e conceitual",
e que com seus modelos topológicos "náo está manipulando urna teoria científica, e sim, mais
precisamente, um método". Thom, R. Modelos topológicos en biología. Ibid. p. 499-529.
48. Cf. Piaget, J. Biología y conocimiento. México, Siglo XXI, 1972.
49. "A sociobiologia define-se como o estudo sistemático das bases biológicas de todo
comportamento social... Também concerne á disciplina o comportamento social do homem
primitivo e os caracteres adaptativos da organizagáo nas sociedades humanas contemporáneas
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 59

mais primitivas". Neste sentido, esta "síntese moderna" aparece como urna expressáo da "teo-
ria evolutiva neodarwinista, na qual os fenómenos sáo considerados quanto a seu significado
adaptativo e logo relacionados com os princípios básicos da genética de populagóes... A meta
principal de urna teoria geral de sociobiologia deveria ser urna habilidade para predizer carac-
teres de organizacáo social a partir do conhecimento de seus parámetros populacionais com-
binados com informagáo sobre os constrangimentos impostos no comportamento pela consti-
tuicáo genética da espécie (...) (de maneira que fosse possível) (...) monitorar as bases genéti-
cas do comportamento social". Este projeto sociobiológico englobaria as sociedades humanas
estudando "as regras pelas quais os seres humanos individuais aumentam sua aptidáo darwiniana
através da manipulagáo da sociedade... considerando a hipótese de que os genes que promo-
vem a flexibilidade no comportamento social sáo fortemente selecionados ao nivel indivi-
dual". Wilson, E. O. Sociobiology... Op. cit., p. 4-5, 549, 575. Para urna análise crítica desta
sociobiologia e da biologia evolutiva, ver o ensaio de José Sarukhán, "Los límites biológicos
de la sociobiología". In: Leff, E. Biosociología y articulación de las ciencias. Op. cit.
50. Wilson, E. O. On human nature. Harvard University Press, 1978. p. 82, 89.
51. Neste sentido, pudemos afirmar que "sobre o plano histórico náo ternos os elementos
que permitam fazer um estudo genético, propriamente dito. Porque ainda as hordas os pig-
meus tal como podemos observá-los hoje, estáo em relagáo com outras sociedades. Entáo, náo
se sabe em que medida foram alterados. Abandono assim logo de saída o estudo de urna
génese da história...". In: Meillassoux, C. Terrains et théories. Op. cit., p. 96.
52. Copérnico, N. Des révolutions des orbes célestes. Paris, Librairie Scientifique et
Technique A. Blanchard, 1970.
53. Marx, K. "Introduction...". Op. cit.
54. Althusser, L.; Balibar, E. Lire le Capital, Op. cit. p. 122.
55. Althusser, L. "Contradiction et surdétermination". In: Pour Marx. Paris, F. Maspero,
1965.
56. Althusser, L. "Defensa de tesis en Amiens". In: Posiciones. México, Grijalbo, 1977.
57. Cf. Godelier, M. Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. Méxi-
co, Siglo XXI, 1974. Idem. Some historical and theoretical remarks on the emergence and
development of Marxism in anthropology in France, 1976. mimeo.
58. Claude Meillassoux tentou dar resposta a estas interrogalóes, rejeitando metodolo-
gias estruturalistas e construindo modelos operativos ("modos de produgáo", "modos de ex-
ploracáo" da terca) a partir de observagóes sobre o terreno, que Ihe permitam dar conta das
práticas produtivas; das relagóes de parentesco e das regras de casamento; da organizagáo
económica, social, política e religiosa; das representagóes ideológicas. Mas a falta de concei-
tos e teorias que permitam conhecer as leis de funcionamento interno dos diferentes "modos
de produgáo" das sociedades agrárias e de auto-subsisténcia, estas descrigóes tipológicas náo
podem oferecer as categorias de determinagáo dos processos que pretendem explicar. Cf.
Meillassoux, C. Terrains... Op. cit.
59. "Os sujeitos, corno sujeitos de necessidades, dáo suporte á atividade dos sujeitos
corno produtores de valores de uso, intercambistas de mercadorias e consumidores de valores
de uso". Althusser, L.; Balibar, E. Lire le Capital, Op. cit. t. 2. p. 29.
60. Cf. Balibar, E. "Plusvalue et classes sociales". In: Cinq etudes du matérialisme
historique. Paris, F. Maspero, 1974.
60 ENRIQUE LEFF

61. Cf. Pécheux, M. Les vérités.... Op. cit. Neste sentido, as lutas ecologistas redefinem
o conceito de valor ao internalizar as contribuigóes e constrangimentos dos processos naturais
á produgáo; ainda, os movimentos ambigntalistas transmitem os díreitos e custos ecológicos
ao cálculo da mais-valia e do lucro, redefinindo o desenvolvimento das forgas produtivas a
partir das condigóes e potenciais do ambiente.
62. Sobre este ponto, ver o ensaio de Roger Bartra, "Sobre la articulación de modos de
producción en América Latina". In: Historia y sociedad. n. 5. México, 1975. p. 5-9.
63. Cf. Rey, P. P. Les alliances de classes. Paris, F. Maspero, 1973. Assim como a polémi-
ca em torno da nogáo de formagáo económico-social publicada em La pensée, n. 159, Paris.
64. Dhoquois, G. "La formation economico-sociale comme combinaison de modes de
production". La pensé, n. 159. Paris.
65. Fossaert, R. La société. Les structures economiques. Paris, Editions du Seuil, 1977.
66. Balibar, E. "Acerca de la dialéctica histórica, algunas observaciones críticas con
respecto a 'Leer El Capital'". Revista Mexicana de Ciencia Política. n. 78. México, 1974.
67. Cf. Leff, E. "Alfred Schmidt y el fin del humanismo naturalista". Op. cit.
68. Cf. Leff, E. "Ecología y capital. Una reflexión teórica". Antropología y marxismo. n.
3. México, 1980. p. 67-75. Ver cap. IV de meu livro Ecología y capital, México, Siglo XXI
Editores, 1994.
69. Cf. Leff, E. "Biosociología y ecodesarrollo". Op. cit.: "A biosociologia que propo-
mos é a ciéncia do campo de intersegáo de dois níveis diferentes de organizagáo da matéria, da
`oposigáo' e conjungáo de suas legalidade, as quais regem o desenvolvimento da matéria na
articulagáo entro o biológico e o social". p. 59.
70. Cf. Schmidt, A. El concepto de naturaleza en Marx. Op. cit. Toledo, V. M. "Intercambio
ecológico e intercambio económico en el proceso productivo primario. In: Leff, E. Biosociología
y articulación de las ciencias. Op. cit. 1
71. Rappaport, R. A. Pigs for the ancestor: ritual in the ecology of New Guinea people.
Yale University Press, 1967. Idem. "The flow of energy in an agricultural society". In: Scientific
American. n. 25. 1971. p. 117-32.
r
72. Lotka, A. J. "Contribution to the energetics of evolution". Proceedings of the National
s
Academy of Sciences. v. 8. Inglaterra, 1922, p. 147-51.
73. Cf. Schródinger, E. What is life? The physical aspect of the living cell. Londres/Nova r
Iorque, Cambridge University Press, 1944. (Reimpressáo de 1969)
74. Cf. White, L. "Energy and the evolution of culture". In: American anthropologist. v.
45, n. 3, 1943. Idem. "The energy theory of cultural development". In: Fried, M. H. (org.) v. s
II. Readings in anthropology. Nova Iorque, Thomas Y. Cromwwell, 1959. p. 139-46. ODUM, e
H. T. Environment, power, society. Nova Iorque, Wiley, 1971. Pimentel, D. e Pimentel, M..
Food, energy and society. Londres, Arnold, 1979.
75. Adams, R. Energy and structure. Austin, Texas University Press, 1975.
76. Cf. Georgescu-Roegen, N. "Energía y mitos económicos". In: Trimestre económico. d
v. XLII (4), n. 168. México, 1975. p. 779-836. Assim como "Economice and entropy". In: The
ecologist. jul. 1972. p. 13-8.
77. Cf. Leff, E. "Etnobotánica, biosociología y ecodesarrollo". In: Nueva antropología,
n. 6. México, 1977. p. 99-108. Ver cap. III de meu livro Ecologia, capital e cultura. Blumenau,
Edifurb, 2000. d
e
TÓRG 61

INTERDISCIPLINARIDADE, AMBIENTE
E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

1. A questáo ambiental e o desenvolvimento do conhecimento

A problemática ambiental — a poluigáo e degradagáo do meio, a crise de


recursos naturais, energéticos e de alimentos — surgiu nas últimas décadas do
século XX como urna crise de civilizaecio, questionando a racionalidade econó-
mica e tecnológica dominantes. Esta crise tem sido explicada a partir de urna
diversidade de perspectivas ideológicas. Por um lado, é percebida como resulta-
do da pressáo exercida pelo crescimento da populagáo sobre os limitados recur-
sos do planeta. Por outro, é interpretada como o efeito da acumulagáo de capital
e da maximizagáo da taxa de lucro a curto prazo, que induzem padróes tecnoló-
gicos de uso e ritmos de exploragáo da natureza, bem como formas de consumo,
que vém esgotando as reservas de recursos naturais, degradando a fertilidade
dos solos e afetando as condigóes de regeneragáo dos ecossistemas naturais.
A problemática ambiental gerou mudangas globais em sistemas socioam-
bientais complexos que afetam as condigóes de sustentabilidade do planeta,
propondo a necessidade de intemalizar as bases ecológicas e os princípios jurí-
dicos e sociais para a gestáo democrática dos recursos naturais. Estes processos
estáo intimamente vinculados ao conhecimento das relagóes sociedade-nature-
62 ENRIQUE LEFF

za: náo só estáo associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e


estratégias conceituais que orientam a construgáo de urna racionalidade produ-
tiva sobre bases de sustentabilidade ecológica e de eqüidade social. Desta forma
a crise ambiental problematiza os paradigmas estabelecidos do conhecimento e
demanda novas metodologias capazes de orientar um processo de reconstrugáo
do saber que permita realizar urna análise integrada da realidade.
Urna das principais causas da problemática ambiental foi atribuída ao pro-
cesso histórico do qual emerge a ciéncia moderna e a Revolugáo Industrial. Este
processo deu lugar á distingáo das ciéncias, ao fracionamento do conhecimento
e á compartamentalizagáo da realidade em campos disciplinares confinados,
com o propósito de incrementar a eficácia do saber científico e a eficiéncia da
cadeia tecnológica de produgáo'. A partir dessa premissa, iniciou-se a busca por
um método capaz de reintegrar esses conhecimentos dispersos num campo uni-
ficado do saber. Desta forma a análise da questáo ambiental exigiu urna visáo
sistémica e um pensamento holístico para a reconstituigáo de urna realidade
"total". Daí propós um projeto para pensar as condigóes teóricas e para estabe-
lecer métodos que orientem as práticas da interdisciplinaridade 2.
A problemática ambiental na qual confluem processos naturais e sociais
de diferentes ordens de materialidade náo pode ser compreendida em sua com-
plexidade nem resolvida com eficácia sem o concurso e integragáo de campos
muito diversos do saber. Embora esta afirmagáo fosse dificilmente questionável
em sua formulagáo geral, menos claro foi o caminho teórico e prático seguido
para poder discernir e concretizar os níveis e as formas de integragáo do conhe-
cimento com o propósito de: a) explicar as causas históricas da degradagáo
ambiental, b) diagnosticar a especificidade de sistemas socioambientais com-
plexos, e c) construir urna racionalidade produtiva fundada no planejamento
integrado dos recursos.
A distingáo destes níveis de tratamento é necessária para implementar urna
estratégia de desenvolvimento com urna concepgáo integrada dos processos his-
tóricos, económicos, sociais e políticos que geraram a problemática ambiental,
bem corno dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais que permitiriam
um aproveitamento produtivo e sustentável dos recursos.
Neste sentido, é preciso diagnosticar os efeitos do processo de acumula-
gáo e as condigóes atuais de reprodugáo e expansáo do capital, os impactos
ambientais das práticas atuais de produgáo e consumo e os processos históricos
nos quais articularan-se a produgáo para o mercado com a produgáo para o
autoconsumo das economias locais e as formagóes sociais dos países "em de-
senvolvimento" para a valorizagáo e exploragáo de seus recursos. Estes proces-
EFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 63

se sos históricos transformaram as práticas produtivas e degradaram a produtivida-


u- de de seus ecossistemas, afetando as capacidades produtivas da populagáo, sua
a dependéncia tecnológica e cultural, suas formas de sujeigáo ideológica e suas
e motivagóes para a inovagáo produtiva.
ao As possíveis formas de aproveitamento sustentável dos recursos que po-
dem ser adotadas no momento atual estáo, sem dúvida, determinadas pelas con-
To- digóes de expansáo da economia de mercado. Mas estas dependem, por sua vez,
ste do grau de rigidez que apresentam as estruturas tecnológicas e institucionais,
to bem como os princípios teóricos e os avangos científicos nos quais se apóia esta
os, racionalidade económica para internalizar as bases e condigóes de um desenvol-
da vimento sustentável. Assim, as estratégias políticas orientadas á solugáo da pro-
or blemática ambiental e á geragáo de um desenvolvimento sustentável, fundado
ni- num aproveitamento integrado de recursos requerem urna análise teórica das
áo causas profundas das crises do capital e de suas próprias estratégias de sobrevi-
de véncia (por exemplo, as atuais políticas neoliberais, a expansáo dos mercados
be- regionais, a liberalizagáo do comércio mundial e os avangos recentes da ciéncia
e da tecnologia).
iais Contudo, a construgáo de urna racionalidade produtiva alternativa náo só
►i-
depende da transformagáo das condigóes económicas, tecnológicas e políticas
pos que determinam as formas dominantes de produgáo. As estratégias do ecode-
ivel senvolvimento estáo sujeitas também a certas ideologias teóricas e delimitadas
ído por paradigmas científicos que obstaculizam as possibilidades de reorientar as
be- práticas produtivas para um desenvolvimento sustentável.
-w áo Assim, colocar em prática princípios e estratégias do ecodesenvolvimento
Int- provou ser mais complexo e dificil que a simples internalizagáo de urna "dimen-
nto sao" ambiental dentro dos paradigmas económicos, os instrumentos do planeja-
mento e das estruturas institucionais que sustentam a racionalidade produtiva
i prevalecente. Estas consideragóes defendem a necessidade de fundar a concepgáo
uta da problemática ambiental assim como novas práticas de uso integrado dos re-
ais- cursos numa correta teoria sobre as relagóes sociedade-natureza. Isso abriu urna
ital, reflexáo sobre as bases epistemológicas para pensar a articulagáo das ciéncias e
iam da produgáo de conhecimentos requerida por esta teoria para a construgáo de
urna racionalidade ambiental'.
'la- Embora a possibilidade de transformar a racionalidade produtiva que de-
:tos grada o ambiente dependa de um conjunto de condigóes económicas e políticas,
cos colocar em prática os princípios do ecodesenvolvimento requer também um
ao trabalho teórico e urna elaboragáo de estratégias conceituais que apóiem práti-
de- cas sociais orientadas a construir esta racionalidade ambiental para alcangar os
CS- propósitos do desenvolvimento sustentável e igualitário.
64 ENRIQUE LEFF

As estratégias conceituais para gerar os instrumentos teóricos e práticos para


a gestáo ambiental do desenvolvimento sob condigóes de sustentabilidade e eqüi-
dade, náo podem surgir dos paradigmas económicos dominantes e das práticas
tradicionais do planejamento. A problemática ambiental generalizou-se, indu-
zindo a urna série de efeitos no avango e orientagáo de um conjunto de discipli-
nas para solucioná-la. Daí a importáncia de analisar os efeitos da emergéncia da
questáo ambiental sobre a produgáo de conhecimentos e o processo de interna-
lizagáo do saber ambiental emergente dentro de diferentes paradigmas científi-
cos, bem como de elaborar bases conceituais que permitam pensar a articulagáo
de processos socioambientais para construir outra racionalidade produtiva.
Do que já dissemos, depreende-se a necessidade de estabelecer princípios
epistemológicos e metodológicos para poder diferenciar e articular os conheci-
mentos científicos e técnicos em trés níveis de integragáo — diacrónico,
sincrónico e prospectivo —, referentes a suas fungóes de explicagáo histórica
das relag5es entre natureza e sociedade, de diagnóstico das condigóes presentes
das formas de exploragao dos recursos e de planejamento do aproveitamento
integrado e sustentável a longo prazo.
Esta refiexáo deve passar por urna análise crítica dos próprios conceitos de
meio e de ambiente e das formagóes ideológicas que dificultara o avango dos
conhecimentos aberto pela perspectiva ambiental do desenvolvimento.

2. Estratégia epistemológica para a construláo de uma racionalidade ambiental

A problemática ambiental náo é ideologicamente neutra nem é alheia a


interesses económicos e sociais. Sua génese dá-se num processo histórico do-
minado pela expansáo do modo de produgáo capitalista, pelos padróes tecnoló-
gicos gerados por urna racionalidade económica guiada pelo propósito de maxi-
mizar os lucros e os excedentes económicos a curto prazo, numa ordem econó-
mica mundial marcada pela desigualdade entre nagóes e classes sociais. Este
processo gerou assim efeitos económicos, ecológicos e culturais desiguais so-
bre diferentes regióes, populagóes, classes e grupos sociais, bem corno perspec-
tivas diferenciadas de análises.
As visóes ecologistas e as solugóes conservacionistas dos países do Norte
resultam inadequadas e insuficientes para compreender e resolver a problemáti-
ca ambiental dos países do Sul. A diversidade cultural e ecológica das nagóes
"subdesenvolvidas" abrem perspectivas mais complexas de análises das rela-
góes sociedade-natureza para pensar a articulagáo de processos ecológicos, tec-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 65

nológicos e culturais que determinam o manejo integrado e sustentável de seus


recursos. Toda estratégia teórica para apreender e agir sobre os processos am-
bientais está vinculada a uma estratégia prática (social, ecológica e tecnológica)
de desenvolvimento e náo se erige em princípio de urna epistemologia geral, em
condigáo de possibilidade de desenvolvimento das ciéncias, ou numa regula-
mentagáo das possíveis fertilizagóes intercientíficas ou interdisciplinares para
gerar avangos no conhecimento. Se toda verdade científica no terreno do saber
está inscrita em formagóes ideológicas e em processos discursivos determina-
dos, os princípios epistemológicos para o estudo dos processos materiais que
integram um sistema sóc¡o-ambiental se desprenden de urna estratégia concei-
tual que apresenta efeitos concretos nas práticas sociais de ambientalismo.
Esta estratégia epistemológica cobra sentido corno urna luta no campo do
conhecimento contra as ideologias teóricas geradas por urna ecologia generali-
zada e um pragmatismo funcionalista, que náo apenas desconhecem o processo
histórico de distingáo, constituigáo e especificidade das ciéncias e dos saberes,
mas também as estratégias de poder no conhecimento que cobrem o terreno
ambienta1.4 Assim, esta estratégia conceitual em torno da constituigáo do saber
ambiental combate os principais efeitos ideológicos do reducionismo ecologis-
ta e do funcionalismo sistémico, a saber:
a) Pensar o homem corno indivíduo e as formagóes sociais corno popula-
góes biológicas inseridas no processo evolutivo dos ecossistemas, o
que leva a explicar a conduta humana e a práxis social através de suas
determinagóes genéticas ou de sua adaptagáo funcional ao meios. Estas
teorias sociobiológicas desconhecem a especificidade das relagóes so-
ciais de produgáo, das regras de organizagáo cultural e das formas de
poder político e ideológico nas quais se inscrevem as mudangas sociais
e as formas de uso dos recursos produtivos.
b) Metodologizar a ecologia como disciplina por exceléncia das inter-re-
lagóes, para transformá-la numa "teoria geral de sistemas", numa "cien-
cia das ciéncias" capaz de integrar as diferentes ordens do real, os dife-
rentes processos materiais como subsistemas de um ecossistema glo-
bal. Assim, a ecologia generalizada6 promete a reconstrugáo da reali-
dade como um todo pela integragáo dos diversos ramos do saber num
processo interdisciplinar, obstaculizando a reconstrugáo do real histó-
rico a partir da especificidade e da articulagáo de processos de orden
natural e social: económicos, ecológicos, tecnológicos e culturais.
c) Uniformizar os níveis ontológicos do real por meio de urna Teoria Ge-
ral de Sistemas que estabelega os isomorfismos e as analogias estrutu-
66 ENRIQUE LEFF

rais através da análise formal de processos de diferentes ordens de ma-


terialidade', deixando de fora o valor da diferenga e o potencial do
heterogéneo 8.
d) Legitimar e orientar a produgáo de conhecimentos por meio do critério
de eficácia e eficiéncia na integragáo de um sistema científico-tecnoló-
gico a um sistema social dado, como um instrumento de otimizagáo,
controle e adaptagáo funcional da ciencia, sujeitando a esse propósito o
potencial crítico, criativo e propositivo do conhecimento. Busca-se as-
sim o acoplamento de um saber holístico e sistémico sem fissuras para
um todo social sem divisóes.
e) Confundir o níveis e as condigóes teóricas para a produgáo de conheci-
mentos interdisciplinares sobre os processos materiais que confluem
em sistemas socioambientais, com a aplicagáo e integragáo de saberes
técnicos e práticos no processo de planejamento e gestáo ambientais.
f) Reduzir o estudo das determinagóes estruturais e dos sistemas de orga-
nizagáo de diferentes ordens de materialidade do real, a urna energética
social, a um cálculo de fluxos de matéria e energia, que embora seja
útil tanto num esquema integrador transdisciplinar, como também na
avaliagáo do potencial produtivo dos ecossistemas e de certas práticas
culturais, náo se constitui no princípio último de conhecimento sobre a
organizagáo dos processos ecológicos e processos económicos, das re-
lagóes entre a natureza, a técnica e a cultura.

Contra entes efeitos reducionistas e empiristas, erguem-se os princípios


epistemológicos que atribuem sua especificidade ás ciéncias e ás formas de ar-
ticulagáo da ordem histórica, simbólica e biológica.
Os efeitos combinados destes processos convergem sobre urna problemá-
tica ambiental, mas sua "materialidade" náo é visível na realidade empírica dos
fluxos de energia do ecossistema, nem na utilidade de seus recursos como obje-
tos de trabalho. A materialidade destes processos define-se pela especificidade
do real do qual dáo conta os conceitos teóricos de diferentes ciéncias, de um
real presente e atuante, embora náo visível na realidade perceptível pelo sujeito
psicológico.
Esta asseveragáo carrega implicitamente urna definigáo do conhecimento
científico dentro do campo do saber ambiental que estamos considerando. As
ciéncias sáo corpos teóricos, integragáo de conceitos, métodos de experimenta-
gáo e campos de validagáo do conhecimento, que permitem apreender cognos-
citivamente a estruturagáo e organizagáo de certos processos materiais, para
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 67

entender as leis e regularidades de seus fenómenos, para estabelecer os pará-


metros e o campo dos possíveis eventos nos processos de reprodugáo e trans-
formagáo do real que constituem seus objetos científicos específicos: proces-
sos de produgáo, de reprodugáo e de transformagáo social; processos de adapta-
gáo-transforrnagáo-mutagáo biológica; processos de simbolizagáo cultural e de
significagáo ideológica.
Todos estes sáo processos gerais, mas irredutíveis, que determinara no
nível de seus efeitos práticos a articulagáo dos processos produtivos com os
processos de conservagáo, desestruturagáo, regeneragáo dos ecossistemas, valo-
rizagáo cultural dos recursos, com os processos ideológicos e discursivos nos
quais se inscrevem as inovagóes do conhecimento científico e dos meios tecno-
lógicos, e com os processos políticos que abrem as possibilidades do acenso e
apropriagáo social dos recursos naturais. Sáo os efeitos destes processos mate-
riais os que se articulam e se tornam visíveis nos padróes tecnológicos e nas
formas particulares de organizagáo produtiva; nos circuitos da produgáo, distri-
buigáo e consumo; na organizagáo institucional do poder; na eficácia dos méto-
dos de produgáo, difusáo e aplicagáo do conhecimento; nas atitudes quanto á
a inovagáo tecnológica e mudanga social, e na retórica das práticas discursivas
s sobre o desenvolvimento sustentável e conservagáo da natureza.
A materialidade desses processos forja-se entre o real do objeto de conhe-
cimento de suas ciéncias e a realidade onde seus efeitos sáo perceptíveis. Os
conceitos teóricos apreendem as causas determinantes e os princípios atuantes
dessa organizagáo do real, a partir de onde é possível explicar a dinámica destes
os processos, sua potencialidade e seus efeitos concretos sobre a realidade empíri-
Ir- ca. Esta produgáo de conhecimentos náo se constitui a partir da simples indugáo
da realidade sensível, da formalizagáo dos dados "puros" da realidade, dos enun-
ciados e proposigóes sobre os fenómenos observáveis, ou pela sistematicidade
das possíveis relagóes lógicas e matematizáveis. Neste sentido, esta estratégia
e- epistemológica para caracterizar as ciéncias e suas possíveis articulagóes no
e campo ambiental resulta oposta ao positivismo lógico e a todo idealismo empirista
e subjetivista.
Claramente, os princípios anteriores náo conformam um referencial teóri-
co nem constituem urna metodologia geral das ciéncias; estes se apresentam
ato como postos de vigiláncia epistemológica frente ás tendéncias idealistas quanto
Ns á dissolugáo das ciéncias num campo unitário do conhecimento e contra a redu-
a- ( gáo da organizagáo específica dos diferentes níveis de materialidade do real em
Is- princípios gerais ou supostamente fundamentais de seu funcionamento estrutu-
ra ral — e náo só de sua génese histórica ou evolutiva.
68 ENRIQUE LEFF

O propósito de unificagáo dos discursos científicos, de homogeneizagáo


de suas estruturas conceituais, conformou urna prática interdisciplinar fundada
numa Teoria Geral de Sistemas. Seu objetivo unificador e reducionista, compar-
tilhado com o positivismo lógico, reaparece em certas explicagóes fisicalistas e
biologistas dos processos históricos, surgidos do desejo de encontrar um mes-
mo e único princípio organizador da matéria 9, "como se (...) se experimentarse
urna singular repugnáncia a pensar a diferenga, a descrever as separagóes e suas
dispersóes, a dissociar a forma reafirmante do idéntico" 10. Estes sistemas desco-
nhecem a integridade conceitual de cada ciéncia, a partir de onde é possível
pensar sua integragáo com outros campos do saber, sua articulagáo com outros
processos materiais.
As ciéncias náo vivem num vazio ideológico. Tanto por sua constituigáo a
partir das ideologias teóricas e as cosmovisóes do mundo que plasmam o terre-
no conflitivo das práticas sociais dos homens, como pelas transformagóes tec-
nológicas que se abrem a partir das condigóes económicas de aplicagáo do co-
nhecimento, as ciéncias estáo inseridas dentro de processos ideológicos e dis-
cursivos onde se debatem num processo contraditório de conhecimento/desco-
nhecimento, do qual derivam sua capacidade cognoscitiva e seu potencial trans-
formador da realidade. A articulagáo destes processos de conhecimento com os
processos institucionais, económicos e políticos que condicionam o potencial
tecnológico e a legitimidade ideológica de suas aplicagóes, está regida pelo
confronto de interesses opostos de classes, grupos sociais, culturas e nagóes.
Por estas formas de insergáo das ciéncias no campo do saber ambiental, os
princípios materialistas para a produg á- o e aplicagáo dos conhecimentos consti-
tuem urna estratégia conceitual, mais do que critérios de validagáo ou falsifica-
gáo dos conhecimentos. As ciéncias emergem e avangam por um campo contra-
ditório de formal 6- es ideológicas que regem a tomada de consciéncia e que
mobilizam as agóes dos agentes sociais, bem como as práticas produtivas de
técnicos e cientistas, para a construgáo de urna racionalidade ambiental.
A produgáo científica está sujeita a estas condigóes ideológicas, náo só
porque o cientista, corno sujeito do conhecimento é sempre um sujeito ideológi-
co, mas porque suas práticas de produgáo de conhecimento estáo estritamente
vinculadas com as ideologias teóricas e plasmadas no tecido do saber do qual
emergem as ciéncias, debatendo-se permanentemente, num processo interminá-
vel de emancipagáo, de produgáo e especificagáo de seus conhecimentos. Neste
sentido, as ideologias sobre a igualdade dos homens, fundamento jurídico das
sociedades democráticas, vincula-se com as ideologias teóricas que dissolvem a
especificidade das ciéncias com o propósito de gerar um campo unitário do
conhecimento. Sua fungáo ideológica é a de ocultar os interesses em conflito na
FF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 69

io legalidade dos direitos individuais, na unidade do saber sobre urna realidade


la uniforme.
tr- Estas formagóes ideológicas aparecem no terreno da problemática ambiental
e como processos de significagáo que tendem a "naturalizar" os processos políti-
cos de dominag'áo e a ocultar os processos económicos de exploragáo prove-
se nientes das relagóes sociais de produgáo e das formas de poder que regem o
as processo de expansáo do capital. Desta maneira, pretende-se explicar e resolver
()- a problemática ambiental através de urna análise funcional da sociedade, inserida
el como um subsistema dentro do ecossistema global do planeta.
os
As formagóes ideológicas que cobrem o terreno ambiental geram práticas
discursivas que tém por fungáo neutralizar na consciéncia dos sujeitos o confito
a dos diversos interesses que ali entram em jogo. Desta forma, a consciéncia ideo-
e- lógica sobre os limites do crescimento, ao propor a responsabilidade comparti-
lhada de "todos os homens que viajam na nave Terra", encobre, sob o véu uni-
p- tário do sujeito do enunciado, as relagóes de poder e de exploragáo, fonte de
desigualdades entre os companheiros de viagem.
s-
Diante destas ideologias dominantes, os valores, princípios e propósitos
s
das formagóes ideológicas do ambientalismo aparecem como utopias no senti-
al do de Mannheim11 , isto é, corno crengas que mobilizam uma agáo política con-
10
tra os interesses estabelecidos e para a construgáo de urna racionalidade social
alternativa. Assim, o discurso ambientalista insere-se numa estratégia de mu-
danos tecnológicas e sociais, que estimula urna produgáo de conhecimentos
capazes de ser aplicados a formas alternativas de organizagáo social e produtiva.
Neste sentido, embora náo haja ciéncias "de classe", a produgáo e aplica-
gáo de conhecimentos é sempre um processo inserido no ámbito das lutas por
certa autonomia cultural, pela autogestáo tecnológica dos recursos das comuni-
dades, pela propriedade das terras e por uma populagáo; pela produgáo e aplica-
gáo de certos conhecimentos que permitam urna apropriagáo igualitária dos re-
cursos naturais, urna produgáo sustentável e urna distribuiláo mais equitativa da
•Ió
,1-
riqueza, para satisfazer as necessidades básicas dos homens e elevar sua quali-
te
dade de vida.
al A problemática ambiental induz assim um processo contraditório de avan-
i- go/retrocesso do saber para apreender os processos materiais que plasmam o
te campo das relagóes sociedade-natureza; daí surgem obstáculos e estímulos para
is a produgáo de conhecimentos pelo efeito de interesses sociais opostos, abrindo
a possibilidades alternativas para a reorganizagáo produtiva da sociedade e o apro-
lo veitamento dos recursos. As diferentes percepgóes da problemática ambiental
a — sobre as causas da crise de recursos, sobre as desigualdades do desenvolvi-
70 ENRIQUE LEFF
E

mento económico, sobre a distribuigáo social dos custos ecológicos — , geram


3
demandas diferenciadas de conhecimentos teóricos e práticos. Desta forma, a
"crise ecológica" mobilizou um amplo processo ideológico e político de produ-
gáo, apropriagáo e utilizagáo de conceitos "ambientais", que se reflete nas estra-
tégias para o aproveitamento e exploragáo dos recursos'.
Assim, diante das explicagóes neomalthusianas desta crise a partir da pres-
sáo exercida pela explosáo demográfica — sobretudo das populagóes pobres —
sobre os recursos limitados do planeta'', outros estudos demonstraram que a
escassez e esgotamento dos recursos deve-se sobretudo ás formas de produgáo e
aos padróes de consumo dos países industrializados e grupos privilegiados da
sociedade' 4. Commoner mostrou assim como as inovagóes tecnológicas do sis-
tema capitalista para alcangar incrementos marginais na taxa de lucros induzem
unta exploragáo crescente dos recursos naturais e do consumo de energia' 5 . Ao
mesmo tempo, as estratégias das empresas multinacionais transferem a polui-
gáo para os países "subdesenvolvidos" 16.
Entretanto, o discurso ambiental e suas aproximagóes metodológicas náo
expressam consistentemente os interesses dos grupos sociais em conflito. Desta
maneira, o discurso do desenvolvimento sustentável busca gerar um consenso e
urna solidariedade internacional sobre os problemas ambientais globais, apa-
gando interesses opostos de nagóes e grupos sociais em relagáo ao usufruto e
manejo dos recursos naturais para o benefício das populagóes majoritárias e
grupos marginalizados da sociedade".
Para poder implementar políticas ambientais eficazes é necessário reco-
nhecer os efeitos dos processos económicos atuais sobre a dinámica dos ecos-
sistemas. É preciso avahar as condigóes ideológicas, políticas, institucionais e
tecnológicas que determinam a conservagáo e regeneragáo dos recursos de uma
regiáo; os modos de ocupagáo do território, as formas de apropriagáo e usufruto
dos recursos naturais e de divisáo de suas riquezas; bem como o grau e as manei-
ras de participagáo comunitária na gestáo social de suas atividades produtivas.
Do que dissemos, depreende-se a necessidade de estabelecer critérios e
princípios para analisar a articulagáo destes processos. Também é preciso estu-
dar os efeitos da problemática ambiental sobre as transformagóes metodológi-
cas, as transferéncias conceituais e a circulagáo terminológica entre as diferen-
tes disciplinas que participam na explicagáo e diagnóstico das transformagóes
socioambientais, assim como a forma como entes paradigmas produzem e assi-
milam um conceito de meio ou de ambiente. Do estudo destas mudangas
epistémicas surge a possibilidade de produzir conceitos práticos para orientar
urna transformagáo produtiva fundada nos princípios da gestáo ambiental do
desenvolvimento e do manejo sustentável dos recursos.
FE
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 71

3. 0 ambiente é um objeto científico interdisciplinar?

0 propósito de integrar diferentes ramos do conhecimento científico e téc-


nico em torno a um objetivo comum é anterior á demanda de produgáo de um
saber interdisciplinar que propóe a problemática ambiental do desenvolvimen-
es-
to. Na verdade, a partir do momento em que a acumulagáo do capital exige a
articulagáo funcional das ciéncias aos processos produtivos para elevar sua efi-
ea
oe ciéncia, os conhecimentos científicos náo apenas surgem numa relagáo de ver-
da dade ou de conhecimento do real, mas também como forga produtiva do proces-
is- so económico. A tecnologia constitui-se no meio eficaz para a aplicagáo dos
em conhecimentos científicos á produgáo de mercadorias.
Ao Enquanto os processos produtivos se desagregaram em suas diferentes fun-
góes, o conhecimento científico foi-se ramificando em diferentes disciplinas, de
maneira que suas aplicagóes se tornassem eficazes e operativas na elevagáo da
tláo produtividade do capital. Assim, a cientifizagáo da produgáo transformou os
psta
I
processos tecnológicos em objetos de urna integragáo multidisciplinar do saber
oe científico e técnico, antes que a problemática ambiental exigisse participagáo de
4)a- diversas disciplinas para compreender e agir sobre um objeto prático complexo:
k) e o ambiente.
se As transformagóes produtivas a partir da Revolugáo Industrial até a atual
cientifizagáo da produgáo desencadearam um vasto potencial de aplicagóes prá-
co- ticas das ciéncias, gerando um processo de planejamento das atividades de pes-
os- quisa dentro das empresas, bem corno dentro dos macroprojetos das grandes
se poténcias: de seus programas bélicos, de seus projetos espaciais. A orientagáo
ma das ciéncias para a produgáo levou a desenvolver técnicas e modelos de progra-
to magáo das atividades de pesquisa aplicada e desenvolvimento tecnológico, abrin-
et- do um campo de estudos de prospecgáo científica e tecnológica orientada pela
demanda de conhecimentos do processo económico e á resolugáo dos proble-
se mas que este gera. Desta demanda social de conhecimentos surgiram novos
tu- desafíos teóricos e novas necessidades de conhecimentos que resultaram num
gi- impulso de grande importáncia para a produgáo científica.
en- Contudo, estes campos de integragáo de conhecimentos, estas problemáti-
ies cas nas quais confluem diversos saberes, náo constituem objetos científicos in-
si- terdisciplinares. Na maior parte dos casos, tampouco deram lugar a um trabalho
as teórico interdisciplinar entendido como o intercámbio de conhecimentos que re-
tar sulta numa transformagáo dos paradigmas teóricos das disciplinas envolvidas, ou
do seja, numa "revolugáo dentro de seu objeto" de conhecimento ou inclusive numa
"mudanga de escala do objeto de estudo por urna nova forma de interrogá-lo"18.
72 ENRIQUE LEFF

Apesar disso, a interdisciplinaridade é proclamada hoje em dia náo só


como um método e uma prática para a produgáo de conhecimentos e para sua
integragáo operativa na explicagáo e resolugáo dos cada vez mais complexos
problemas do desenvolvimento; além disso aparece com a pretensáo de promo-
ver intercámbios teóricos entre as ciéncias e de fundar novos objetos científicos.
Entretanto, a interdisciplinaridade teórica — entendida como a construgáo de
um "novo objeto científico" a partir da colaboragáo de diversas disciplinas, e
náo apenas como o tratamento comum de urna temática — é um processo que se
consumou em poucos casos da história das ciéncias. Estes casos, porém, náo
sáo generalizáveis ao ponto de permitirem depreender uma metodologia aplicá-
vel para produzir efeitos similares em outros campos do conhecimento e da
pesquisa científica'.
Assim especificada a problemática interdisciplinar no campo das relagóes
teóricas da produgáo de conhecimentos — e náo de cuas práticas — esta náo
deve ser confundida com o aparecimento de um conjunto de conhecimentos
nem com os diferentes saberes, técnicas e instrumentos que sáo suporte de um
campo de análises e que possibilitam urna prática de experimentagáo.
A história das ciéncias da vida oferece urna prova exemplar de interdisci-
plinaridade teórica no processo de reconstrugáo do objeto científico da biologia.
Trata-se de um caso de interdisciplinaridade intracientífica, isto é, das rupturas
e reformulagóes do objeto teórico que concerne a um nível de materialidade do
real: ao conhecimento sobre a estrutura e as fungóes da matéria viva. É assim
que a partir da construgáo do modelo de um cristal de DNA foi possível "a
conjungáo progressiva e coordenada dos resultados de várias disciplinas bioló-
gicas com os da genética formal. A citologia, a microbiologia e a bioquímica
para comegar. Mas esta conjungáo foi fecunda apenas na medida em que a jus-
taposigáo dos resultados comandava a refundigáo das relagóes entre as discipli-
nas que nos haviam proporcionado".
Certamente, esta refundigáo interdisciplinar náo teria sido possível sem a
assimilagáo multidisciplinar da teoria da informagáo e da cibernética ao campo
da biologia, bem como por urna série de avangos da experimentagáo científica e
do instrumental de pesquisa: "Sem o estudo das estruturas cristalinas por difragáo
dos raios X, sem a microscopia eletrónica, sem o emprego de radioisótopos,
teria sido impossível empreender o conjunto de pesquisas que permitiram loca-
lizar nas macromoléculas do ácido desoxirribonucleico a fungáo conservadora e
a fungáo inovadora da heranga (...). Este novo objeto da biologia situa-se na
intersegáo das técnicas de macroextragáo e de microdisecgáo, da álgebra combi-
natória, do cálculo estatístico da ótica eletrónica, da química das enzimas. Mas
o novo objeto biológico tem por correlato urna nova biologia, urna biologia
E[[11 EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 73

o só nascida do trabalho que gerou seu objeto (...). A constituigáo deste novo objeto
k sua da biologia (aparece como) um objeto policientífico ou intercientífico (entendi-
exos do náo como) um objeto tratado em comum por diversas disciplinas, mas (como)
)mo- um objeto construído expressamente como efeito de sua elaboras o" 20.
icos. Existem também exemplos de estudos interdisciplinares nos quais concor-
Lo de rem especialidades provenientes de diferentes campos científicos. Um caso ilus-
as, e trativo é o da etnobotánica. Intervém al a ecologia para explicar as condigóes
ue se naturais de produgáo e regeneragáo do meio vegetal; as disciplinas etnológicas
náo (etnotecnologia, etnoecologia e etnolingüística) para explicar o processo cultu-
ilicá- ral de aproveitamento dos recursos do meio; a antropologia ecológica para ava-
1e da liar o condicionamento ecológico sobre a organizagáo social e produtiva das
culturas; a antropologia estrutural para explicar o sistema de representagóes de
Kóes urna cultura sobre seu meio e, portanto, a significagáo de seus vegetais; as dis-
• náo ciplinas históricas para explicar os processos de transculturagáo que afetam as
ntos práticas produtivas e a utilizagáo dos recursos dos poyos, enfim, a história eco-
um nómica recente e a análise do sistema económico dominante, para dar conta das
determinagóes que impóem as condigóes de valorizagáo e exploragáo dos recur-
isci- sos sobre as práticas tradicionais de reconhecimento e aproveitamento de seu
gia. ambiente'.
uras Embora a etnobotánica delimite uma problemática no espato das possí-
e do veis relagóes entre ecologia, cultura, história e economia, observa-se que ela
ssim resulta num processo interdisciplinar menos forte que o exposto anteriormente,
1 "a visto que seu objeto constitui-se corno um campo de aplicagáo de diferentes
oló- ciéncias nas quais náo se propóe urna transformagáo de seus objetos de conhe-
ica cimento. O mermo ocorre com outras especialidades como a antropologia da
jus- alimentagáo, "onde convergem e freqüentemente se enfrentara os inventários do
ipli-
botánico e do zoólogo, as quantificagóes do nutricionista, as descrigóes do
etnógrafo, as teorias do etnólogo e as especulagóes do simbolista 22.
ma
Tanto no caso dos estudos etnobotánicos como da antropologia da alimen-
po
tagáo, diversas disciplinas concorrem em torno a certos campos delimitados das
ca e
relagóes sociedade-natureza. Em nenhum destes casos pretendeu-se que as dis-
n'a()
ciplinas que participam na construído desses domínios de estudo se transfor-
pos,
mem em "ciéncias etnobotánicas" ou "ciéncias alimentares". Apenas no caso da
oca-
ira e interdisciplinaridade intracientífica, que levou á descoberta do DNA, é possível
e na pensar numa inter-relagáo de ciéncias biológicas que participam na formagáo e
bi- transformagáo do objeto teórico da biologia, da caracterizagáo do fenómeno vital.
Mas Percebe-se o quanto estáo distantes estes princípios da interdisciplinarida-
ogia de científica do projeto conformado pela colaboragáo de supostas "ciéncias
74 ENRIQUE LEFF
EF

ambientais", encarregado de analisar o campo generalizado das relagóes socie-


dade-natureza. A própria história das ciéncias demonstrou a impossibilidade de P'
generalizar os objetos científicos e os campos de produgáo de conhecimentos,
111
bem como aplicar um método totalizador e geral (por exemplo, o materialismo
dialético ou o estruturalismo genético). Por sua vez, a problemática ambiental
evidenciou tanto a posigáo de externalidade e inclusive de exclusáo de um con- ni
junto de disciplinas frente á explicagáo e resolugáo dos problemas ambientais,
como os obstáculos que apresentam os paradigmas científicos para reorientar
suas preocupagóes teóricas, seus instrumentos de análise e seus métodos de c(
pesquisa rumo a um objetivo comum conformado pelo meio ambiente. d.
O ambiental aparece como um campo de problematizagáo do conhecimen- Pi
to, que induz um processo desigual de "internalizagáo" de certos princípios,
valores e saberes "ambientais" dentro dos paradigmas tradicionais das ciéncias.
Este processo tende a gerar especialidades ou disciplinas ambientais, métodos st
de análise e diagnóstico, assim como novos instrumentos práticos para norma-
tizar e planejar o processo de desenvolvimento económico sobre bases ambien- al
tais. Entretanto, esta orientagáo "interdisciplinar" referente a objetivos ambien-
tais náo autoriza a constituigáo de um novo objeto científico — o ambiente — zi.:
como domínio generalizado das relagóes sociedade-natureza. ci
No entanto, náo é fácil abandonar a tendéncia a pensar o ambiente como a
um campo de atragáo e convergéncia do conhecimento, de submissáo das cién-
cias ante um propósito integrador. O meio, no final das contas, é uma rede de
relagóes capaz de capturar todo o saber em busca de seu objeto, é o plasma onde
se dissolve ou coagula aquele excedente de saber que ultrapassa o campo do as
conhecimento científico.
ol
lo
4. 0 conceito de meio e a articulagáo das ciéncias re
a
A generalizagáo e globalizagáo da problemática sócio-ambiental impón gi
sobre diversas disciplinas científicas o imperativo de internalizar em seus para- re
digmas metodológicos e teóricos um conjunto de efeitos críticos e problemas
práticos do desenvolvimento económico. É assim que a antropologia ecológica
orientou-se para a análise dos fluxos energéticos nas práticas produtivas das
ti,
comunidades rurais; que a ecologia funcional incorporou o estudo da eficiéncia e
energética no manejo dos recursos e na produtividade biótica dos ecossiste- n1
mas, e que a economia neoclássica busca internalizar as externalidades am-
d(
bientais do desenvolvimento. O surgimento de novos fenómenos físicos e so-
tri
ciais, que ultrapassam a capacidade de conhecimento e os efeitos previsíveis
si
[Ehh
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 75

pelos paradigmas das disciplinas tradicionais e que escapam de seu controle por
1 de
meio dos mecanismos do mercado, provocou o surgimento de uma noffio de
tos.
meio ambiente associada á degradagáo dos ecossistemas produtivos, á poluigáo
ano
pela acumulagáo de dejetos, ao esgotamento ou superexploragáo dos recursos
ntal
naturais, á deterioragáo da qualidade de vida e á desigualdade na distribuigáo
dos custos ecológicos do desenvolvimento.
Atar Esta nogáo de ambiente, gerada pelas externalidades do processo económi-
de co, náo é alheia á conceitualizagáo do meio que se produziu com a constituigáo
das ciéncias e das disciplinas — cuja intervengáo se exige agora para resolver a
en- problemática ambiental. Assim, Etienne Geoffroy Saint-Hilaire usou a nogáo de
os, meio ambiente em 1831 para referir-se ás circunstáncias que afetam urna "forma-
ias. gáo centrada"23. Desta forma, o conhecimento da vida, da cultura, da produgáo,
dos surge no campo das ciéncias modernas pela constituigáo de objetos de conheci-
lla- mento que operam como centros organizadores de processos materiais que sáo
'en- afetados por um meio que limita e condiciona a realizagáo destes processos.
len- É nesse sentido que, embora as variagóes das formagóes vitais se produ-
e— zam pelas mutagóes dos organismos dos seres vivos, o meio seleciona as espé-
cies, indivíduos e populagóes, condicionando a evolugáo biológica. Mesmo que
a língua e as relagóes de parentesco aparegam como estruturantes de urna forma-
ie'n° gáo cultural, de suas produgóes práticas e ideológicas e do processo de significa-
de gáo dos seus recursos e de simbolizagáo de seu ambiente, a conformagáo de seu
onde meio geográfico condiciona a divisáo do trabalho, os desenvolvimentos técnicos e
1 do as práticas produtivas que constituem a base material de toda formagáo social.

1 No materialismo histórico, se a formagáo de valor surge como o centro


organizador dos processos produtivos do capital, seu meio está conformado pe-
los processos ecossistémicos de produgáo e de regeneragáo de um sistema de
recursos que, ao náo incorporar trabalho vivo, sáo carentes de valor. Entretanto,
a dotagáo de recursos, sua capacidade de regeneragáo e sua produtividade ecoló-
yús gica, os limites para as taxas e os ritmos de exploragáo dos recursos fixados pela
Kira- resiliéncia e a capacidade de carga do meio, condicionam o processo de valori-
zagáo, de acumulagáo de reprodugáo do capital'.
O conceito de meio está implícito desta forma no objeto da biologia evolu-
das
tiva, da antropologia estrutural e da economia política. Este conceito surgiu
:ncia explicitamente dentro do campo da organizagáo biológica que caracteriza o fe-
iste-
nómeno vital ao ser importado por Lamarck da mecánica newtoniana. A nogáo
am- de meio que aparece ali como o éter ou o fluido intermediário entre dois corpos,
so-
transformou-se mais tarde no entorno ou no ambiente conformado como um
veis
sistema de conexóes que circundam e englobam os centros organizadores de
76 ENRIQUE LEFF

certos processos materiais (biológicos, económicos, culturais). É este sentido


mecanicista do meio o que foi assimilado pelos enfoques holistas do pensamen-
to ecologista atual 25 .
É a partir deste sentido originário do conceito de meio que Auguste Comte
pensou a relagáo do organismo com seu meio, como urna fungáo sujeita a um
conjunto de variáveis suscetíveis de serem estudadas experimentalmente e
quantificadas. Georges Canguilhem adverte que:

"A partir daí podemos compreender o prestígio da nocáo de meio para o pensa-
mento científico moderno. O meio transforma-se num instrumento universal de
dissolugáo das sínteses orgánicas individualizadas no anonimato dos elementos
e dos movimentos universais (...). O meio é na verdade um puro sistema de
relagóes sem supones'''.

Esta concepgáo do meio corno um sistema de relagóes entre organismos e


entres entes e seu entorno, precedeu o conceito de ecossistema, objeto da ecolo-
gia. Por sua vez, a nogáo de meio tem estado associada com as análises sistémicas
aplicadas ao estudo das inter-relagóes de um conjunto de objetos, variáveis,
fatores e processos. Contudo, o meio náo constituí propriamente o objeto de
nenhuma ciéncia, nem é o campo de articulagáo das ciéncias centradas em seus
objetos de conhecimento, organizadores de processos materiais específicos. Por
isso as pretendidas ciéncias ambientais sáo inexistentes".
O que dissemos náo implica que o processo de internalizagáo teórica do
meio náo tenha enriquecido as ciéncias com o conhecimento dos fatores que
afetam e condicionam os processos materiais que surgem de seus centros orga-
nizadores (formagáo de valor, evolugáo da vida, reprodugáo da cultura). Daí a
importancia para a biologia evolutiva dos estudos ecológicos sobre os processos
de adaptagáo e equilibrio das espécies e populagóes biológicas a partir das con-
digóes impostas pelas transformagóes do meio. Ainda, abriu-se a possibilidade
de enriquecer os conceitos do materialismo histórico (produtividade das forgas
sociais de produgáo, formagáo de valor e as relagóes sociais e técnicas de produ-
gáo) a partir da incorporagáo do potencial ecológico, as condigóes ambientais e
os valores culturais na organizagáo dos processos produtivos 28 .
Porém, esta visáo do meio náo redefine os objetos de conhecimento das
ciéncias como o materialismo histórico, a biologia evolutiva ou a antropologia
estrutural. Náo é o enfoque holístico da ecologia o que renova as bases teóricas
da biologia evolutiva, mas as pesquisas interdisciplinares que levaram á desco-
berta do DNA no campo da genética 29. Náo é a naturalizagáo do valor pela
submissáo da lógica do valor de troca a um metabolismo de intercámbios orgá-
LEFI - EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 77

tido nicos o que viria a completar o materialismo histórico com urna concepgáo
aen- ecossistémica da relagáo sociedade-natureza'.
A produgáo conceitual no terreno das ideologias complementa o conheci-
nnte mento do processo de valorizagáo do capital com urna teoria da significagáo e
• um codificagáo do meio, onde a lógica do valor-signo insere-se na racionalidade do
te e valor de troca". A natureza, que resiste a submeter-se á lei do valor e aos meca-
nismos do mercado (e se degrada como externalidade do processo económico),
é recuperada pelo processo de significagáo do entorno. Desta forma, o ambiente
nsa- pode inserir-se na lógica do valor de troca ou mobilizar mudangas sociais para
1 de transformar as relagóes de produgáo e desenvolvimento das forgas produtivas
ntos sobre bases de sustentabilidade ecológica, eqüidade social e diversidade cultu-
de ral. A valorizagáo e a significagáo da natureza corno objetos de trabalho e recur-
sos produtivos entram assim num espato de complementaridade com os pro-
cessos produtivos, transformando o paradigma da produgáo e construindo um
los e novo objeto da economia política'.
olo- O objetivo da ecologia náo é caracterizar os fenómenos vitais nem explicar
ticas a emergéncia de formagóes orgánicas. Náo compreende o processo de formagáo
eis. de valor ou de produgáo de significagáo. Seu campo problemático tem raízes
de mais práticas, relacionadas com a dinámica, estabilidade e produtividade dos
eus ecossistemas, a ordenagáo da paisagem, o cultivo de espécies biológicas, a fi-
Por siologia do crescimento e o comportamento dos organismos vivos".
A partir de seus aspectos funcionais, as análises ecossistémicas confor-
do mam um campo de estudo suscetível de ser internalizado pela problemática de
que diferentes disciplinas científicas. Desta forma o saber ecológico pode comple-
rga- mentar as análises tanto da economia, como da biologia e da antropologia. As-
aí a sim, as condigóes de equilibrio dinámico do ecossistema e seus processos de
ssos sucessáo explicam as condigóes de adaptagáo e de selegáo dos organismos no
()n- meio e, portanto, de sua dinámica evolutiva, enquanto tais processos estáo asso-
ade ciados com a regulagáo, coexisténcia e/ou concorréncia das populagóes biológi-
os cas pelos "recursos" do meio. Por sua vez, a capacidade de carga e a resiliéncia
du- de um ecossistema, associadas com o potencial biótico e a taxa de crescimento
se natural do ecossistema, determinam a capacidade de exploragáo económica dos
recursos naturais dentro de diferentes racionalidades produtivas, estabelecendo
das as condigóes do meio para a formagáo de valor, para a produgáo de lucros e para
gia a regeneragáo dos recursos a longo prazo. De forma similar, a estrutura funcio-
cas nal dos ecossistemas condiciona a racionalidade das práticas produtivas de urna
co- organizagáo cultural.
ela Embora os objetos de conhecimento da biologia e do materialismo histó-
gá- rico sejam inarticuláveis — visto que a evolugáo das espécies náo determina o
78 ENRIQUE LFFF

processo de valorizagáo do capital nem a dinámica económica explica os pro-


cessos de organizagáo vita1 34 — a questáo ambiental impulsionou a emergéncia
de novos campos do saber onde se articulam certas disciplinas teórico-práticas,
bem como a construgáo de objetos interdisciplinares de corthecimento. A partir
desta perspectiva, os estudos da ecologia sáo integráveis aos objetivos de um
planejamento económico para incorporar as condigóes ecológicas aos processos
produtivos, definindo limites e potenciais no ordenamento produtivo dos ecos-
sistemas e das taxas de reprodugáo e exploragáo sustentável dos recursos natu-
rais. Neste sentido, a ecologia e a termodinámica oferecem bases para a refor-
mulagáo dos paradigmas da economia e do materialismo histórico.
A fertilizagáo transdisciplinar e os intercámbios teóricos tém estado pre-
sentes no desenvolvimento das ciéncias. Assim, a ecologia importou conceitos
da cibernética e da termodinámica para caracterizar os estados de equilibrio
homeostático e dinámico dos ecossistemas; da teoria da informagáo para esta-
belecer as relagóes entre diversidade específica e estabilidade das comunidades
bióticas com seu meio, e conceitos provenientes da economia para dar conta da
produtividade biótica e agronómica dos ecossistemas, de sua eficiéncia ecológi-
ca e dos rendimentos de diferentes cultivos. Estes conceitos e métodos permi-
tem modelar o comportamento do ecossistema e simular com finalidades de
manejo alternativo seu funcionamento estrutural.
Estes processos transdisciplinares náo só se caracterizara pela importagáo
e assimilagáo de conceitos, nogóes e métodos de estudo entre campos constituí-
dos do saber, mas também pela geragáo de urna descentralizacáo e deslocamen-
to dos objetos teóricos das ciéncias para a constituiváo de objetos teórico-
práticos de conhecimento. É assim que a ecologia e um conjunto de disciplinas
etnológicas articulam-se aos processos económicos de aproveitamento dos re-
cursos produtivos da sociedade e á construgáo de urna racionalidade ambiental
para alcangar um desenvolvimento sustentável. O entorno é funcionalizado como
um "cálculo racional de significagáo" (Baudrillard) no processo de valorizagáo
dos recursos, ao mesmo tempo que os recursos naturais e humanos, assim como
as externalidades ambientais sáo internalizadas ao paradigma neoclássico como
um capital naturale um capital humano. Desta forma, o ambiente impulsiona a
construgáo de um novo objeto da economia e da produgáo sobre princípios de
sustentabilidade ecológica e de eqüidade social.
O descentramento produzido pela constituigáo e desenvolvimento da eco-
logia no campo da biologia gera também possibilidades e condigóes para a arti-
culagáo do conhecimento sobre a dinámica ecossistémica com outras ciéncias.
Os estudos ecológicos progrediram da análise da relagáo entre organismos e seu
meio, para o comportamento das populagóes poliespecíficas ou comunidades e
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 79

seu meio ambiente. Assim, chegaram a propor como objeto de estudo a estrutu-
ra funcional da biosfera, entendida como o conjunto de relagóes entre as popu-
lagóes biológicas e seu entorno físico. Isto leva a pensar os ecossistemas como
- superorganismos" complexos, com suas dinámicas de estabilidade e de repro-
r
a dugáo, dissolvendo nesta aproximagáo holística e sistémica a relagáo dual entre
organismo e meio, característica da teoria biológica".
Todavia, esta compreensáo inclusiva e totalizante da vida e do meio náo
pode eludir a necessidade de articular a dinámica ecossistémica com o conjunto
de fenómenos físicos e processos sociais que afetam seu funcionamento estrutu-
ral, cujos efeitos externos estáo excluídos do objeto da ecologia (salvo para as
tendéncias globalizantes e totalizadoras do pensamento ecologista), demandan-
do seu conhecimento urna articulagáo delta com outras ciéncias".
o Desta forma, a dinámica dos processos ecossistémicos implica a análise
1- dos efeitos de certos fenómenos geofísicos e atmosféricos (catástrofes naturais,
mudangas climáticas, inundagóes) e de certos processos sócio-históricos (mo-
la dos de produgáo, racionalidade económica, organizagóes culturais, sistemas
políticos), que afetam seu comportamento. Isto demanda a articulagáo da ecolo-
gia com a geologia, geofísica, antropologia, economia e história.
O paradoxo e a "armadilha" que a nogáo de meio propóe surge da tendén-
cia do desenvolvimento teórico e experimental da ecologia a suplantar seu papel
o no espato de complementaridade dos objetos das ciéncias, para constituir-se
como um objeto generalizado de análise. A pretensáo totalizante do pensamento
ecologista está associada com a emergéncia dos enfoques sistémicos e interdis-
ciplinares onde as variáveis e fungóes circulam livremente dentro de um sistema
ts conformado intencionalmente, recortado sobre urna realidade homogénea e um
campo unitário do conhecimento. O meio pode ser reabsorvido no sistema e o
al sistema pode transformar-se num campo interdisciplinar das "ciéncias ambien-
tais", onde as externalidades ecológicas e sociais seriam internalizadas no terre-
io
no das práticas do planejamento 37.
io
Daí surge o sentido ideológico da nogáo de meio ambiente. O ambiente se
a esfumara junto com a especificidade das ciéncias e dos conflitos sociais na trans-
le paréncia das práticas interdisciplinares e do planejamento ambiental do desen-
volvimento. Porém, a nogáo de meio ressurge de seu espato de exclusáo como
um conceito relativo e contextual ao processo de complementaridade e articula-
gáo das ciéncias, cobrando um sentido estratégico no processo político de su-
s. pressáo das "externalidades do desenvolvimento"— a exploragáo económica da
u natureza, a degradagáo ambiental, a desigualdade na distribuigáo social dos cus-
e tos ecológicos, a marginalizagáo social etc. —, que persistem apesar da possível
80 ENRIQUE LEFF

ecologizagáo dos processos produtivos, da capitalizagáo da natureza e da


sistematicidade interdisciplinar do saber.
O ambiente náo é um objeto perdido no processo de diferenciagáo e especi-
ficagáo das ciencias, nem um espago reintegrável pelo intercámbio interdiscipli-
nar dos conhecimentos existentes. O ambiente é a falta insuperável do conheci-
mento, esse vazio onde se aninha o desejo de saber gerando urna tendencia inter-
minável para a completude das ciencias, o equilíbrio ecológico e a justiga social.

5. Articulaláo de ciencias e gestáo ambiental do desenvolvimento

O planejamento de políticas ambientais para um desenvolvimento susten-


tável, baseado no manejo integrado dos recursos naturais, tecnológicos e cultu-
rais de uma sociedade, conduz á necessidade de compreender as inter-relagóes
que se estabelecem entre processos históricos, económicos, ecológicos e cultu-
rais no desenvolvimento das forgas produtivas da sociedade. Isto obriga a pen-
sar nas relagóes de interdependencia e multicausalidade entre os processos so-
ciais e ecológicos que condicionam o potencial produtivo dos recursos de urna
formagáo social, seus níveis de produtividade e as condigóes de preservagáo e
regeneragáo dos recursos naturais.
O potencial ambiental de urna regido náo está determinado táo-somente
por sua estrutura ecossistémica, mas pelos processos produtivos que nela desen-
volvem diferentes formagóes socioeconómicas. As práticas de uso dos recursos
dependem do sistema de valores das comunidades, da significagáo cultural de
seus recursos, da lógica social e ecológica de suas práticas produtivas e de sua
capacidade para assimilar a estas conhecimentos científicos e técnicos moder-
nos". Assim, o vínculo sociedade-natureza deve ser entendido como urna rela-
QáO dinámica, que depende da articulagáo histórica dos processos tecnológicos
e culturais que especificam as relagóes sociais de produgáo de urna formagáo
socioeconómica, bem como a forma particular de desenvolvimento integrado
ou de degradagáo destrutiva de suas forgas produtivas.
Neste sentido, a caracterizando da relagáo sociedade-natureza, referida á
problemática da gestáo ambiental do desenvolvimento, obriga a pensar nas con-
digóes de articulagáo dos processos materiais que definem urna racionalidade
ambiental do processo de desenvolvimento e urna estratégia de manejo integra-
do dos recursos e, conseqüentemente, na articulagáo das ciencias que os expli-
cam, que dáo conta de suas especificidades e de suas interdeterminagóes.
Na concepgáo de um socioecossistema produtivo convergem diversos pro-
cessos, gerando um conjunto de relagóes complexas. Surge assim a necessidade
FE EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 81

de produzir e articular teorias e conceitos sobre novos objetos teórico-práticos


de conhecimento onde confluam processos de diferentes ordens de materialida-
de, com diferentes formas e níveis de articulagáo e que náo podem ser explica-
li- dos pelo estado atual de conhecimentos das ciéncias. Esse é o caso das doutri-
nas económicas que excluíram as contribuigóes da ecologia e da cultura da pro-
r-
dugáo. A reconceitualizagáo da produgáo implica a reconstrugáo do objeto da
economia política para analisar a produgáo e distribuigáo de riqueza como um
processo constituído sobre bases de produtividade, equilibrio e sustentabilidade
ecológica. A relagáo dos processos ecológicos, económicos, tecnológicos e cul-
turais náo pode ser pensada como urna conexáo dos objetos teóricos das cién-
cias num campo comum do conhecimento, nem através da assimilagáo da cien-
cia mais fraca dentro da mais poderosa (por exemplo, a ecologizagáo da econo-
tu- mia ou a capitalizagáo da natureza). A relagáo de conhecimento desta articula-
íes gáo de processos dá-se como urna interdeterminagáo ou urna superdeterminagáo
tu- dos processos materiais inscritos nas estruturas teóricas de cada ciencia e pelos
ar efeitos de conhecimento produzidos pela articulagáo de seus conceitos na re-
;o- construgáo de seu objeto de conhecimento".
na Isto ocorre guando emerge urna regiáo do real onde confluem os efeitos de
)e dois ou mais níveis de materialidade, objeto das ciéncias constituídas.
A articulagáo dos objetos de urna ou mais ciéncias implica que os proces-
sos materiais do campo do conhecimento científico de um deles — o funciona-
mento estrutural e a dinámica dos fenómenos que este estuda — sáo afetados,
os condicionados ou superdeterminados pelos processos e efeitos materiais de
e outro(s). Neste sentido, a evolugáo e transformagáo dos ecossistemas naturais
a — objeto da ecologia — estáo determinados pelas necessidades de exploragáo
r- de suas matérias-primas, o que gera o processo de acumulagáo de capital, bem
a- como pelos efeitos das relagóes sociais de produgáo e das práticas produtivas de
os urna formagáo económica sobre os modos e técnicas de aproveitamento dos
o recursos naturais do ecossistema. Isto obriga a pensar nas condigóes de interna-
eo lizagáo destas condigóes históricas e económicas no objeto de estudo da ecolo-
gia a partir da especificidade das disciplinas sociais e náo por meio de urna
"ecologizagáo" dos processos sociais.
n- Por sua vez, a estrutura funcional de um ecossistema, a distribuigáo terri-
e torial de solos, climas e espécies, bem como a dinámica de seus ciclos naturais
condicionam as práticas sociais e os processos produtivos das comunidades. A
conformagáo do meio incide na constituigáo e evolugáo das culturas e nos de-
senvolvimentos técnicos4°, assim corno na caracterizagáo de urna formagáo eco-
nómico-social, de suas formas de subsisténcia, autodeterminagáo e desenvolvi-
ee mento. Assim, o modo étnico de aproveitamento do ambiente por uma cultura
82 ENRIQUE LEFF

está superdeterminado por seu estado de dependéncia e dominagáo, pelas for-


mas de exploragáo de seus recursos e de sua forga de trabalho, pelos processos
económicos e as estruturas de poder nacionais e internacionais, que condicio-
nam seus processos de reprodugáo social. Por sua vez, os valores culturais que
regem as práticas produtivas de urna formagáo social estáo condicionados por
certos efeitos da língua sobre suas relagóes de parentesco e sua organizagáo so-
cial, e por certos efeitos do inconsciente sobre seus processos de simbolizagáo e
significagáo, que afetam sua percepgáo sobre seus recursos, o acesso socialmente
sancionado a seu uso e usufruto e suas formas de consumo. Desprendem-se daí os
processos ideológicos que condicionam as mudangas nas formas de organizagáo
produtiva das formagóes sociais e que delimitam a eficácia de toda estratégia de
gestáo ambiental e aproveitamento sustentável dos recursos naturais.
Como se vé, a gestáo ambiental do desenvolvimento, fundada no poten-
cial ecológico e na conservagáo da diversidade de modos culturais de aproveita-
mento de seus recursos, requer uma caracterizagáo da organizagáo específica de
urna formagáo social. Esta estabelece-se através da articulagáo entre diversos
processos ecológicos, culturais e históricos, o que obriga a pensar nas comple-
xas relagóes entre cultura e inconsciente 41 ; entre ecologia, economia e cultura 42 ;
entre diferentes disciplinas antropológicas, como antropologia estrutural, antro-
pologia cultural, antropologia ecológica.
Em muitos casos, o reconhecimento e a avaliagáo das práticas tradicionais
das culturas sobre o manejo de seus recursos torna necessário recorrer a um
conjunto de disciplinas etnológicas (etnobotánica, etnoecologia, etnolingüística,
etnotécnica) para descobrir o tragado de seu processo de constituigáo e desapa-
recimento. Por sua vez, estas disciplinas articulam-se com outros ramos do co-
nhecimento etnológico para entender as formas de controle e aplicagáo das téc-
nicas tradicionais, sujeitas ás normas dos valores culturais e o estilo étnico de
urna formagáo social'''. Por outro lado, as determinagóes da língua sobre as
relagóes sociais de urna comunidade e as formagoes simbólicas de urna organi-
zagáo cultural produz efeitos sobre a percepgáo e valorizagáo de seus recursos,
sobre seu comportamento produtivo e sobre as motivagóes e agóes da populagáo
para a reapropriagáo de seu património de recursos naturais e culturais e a reo-
rientagáo de suas práticas para um desenvolvimento sustentável.
A caracterizagáo destes processos culturais náo é possível a partir da obser-
vagáo das práticas visíveis, nem é recuperável através de uma análise superficial
de suas manifestagóes discursivas. Por isso é necessário pensar nas formas teó-
ricas de articulagáo entre diferentes ciéncias e disciplinas no campo dos proces-
sos históricos, económicos, etnológicos e ecológicos para apreender suas com-
plexas relagóes de determinagáo e de causalidade, bem como as condicionantes
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 83

que delimitam e caracterizara as relagóes entre urna populagáo, sua tecnologia e


o uso de seus recursos.
A demanda de conhecimentos gerada pela problemática ambiental e o
manejo integrado e sustentável dos recursos vai além da necessidade de amalga-
mar as disciplinas científicas existentes. Na realidade, o ambiente, desde seu
espato de externalidade á racionalidade científica e social dominantes, induziu
um processo de transformagóes teóricas e metodológicas num conjunto de cién-
cias, a partir do imperativo de internalizar em suas estruturas conceituais e seus
instrumentos de análises, os efeitos socioambientais negativos que esta raciona-
lidade gera e que estáo diretamente associados ao conhecimento limitado e
fracionado de seus paradigmas teóricos.
Este processo de transformagóes científicas náo desemboca na produgáo
de "ciéncias ambientais" nem na constituigáo do ambiente como um objeto
le teórico intercientífico. No entanto, a conformagáo do ambiental como um cam-
Ís po problemático do saber gera um conjunto de efeitos sobre as orientagóes e
aplicagóes das ciéncias. Abre-se ali urna nova perspectiva de análise sociológica
R. de desenvolvimento do conhecimento, como urna problematizagáo dos paradig-
mas teóricos e metodológicos estabelecidos a partir de um complexo processo
transdisciplinar que induziu a emergéncia do saber ambiental, como urna de-
manda generalizada de conhecimentos para a construgáo de uma racionalidade
produtiva alternativa.
Neste sentido, as estratégias epistemológicas para a articulagáo das cién-
cias no campo ambiental e os processos de fertilizagáo inter e transdisciplinar
de conhecimentos oferecem urna explicagáo mais concreta (síntese de múltiplas
-
determinagóes) da crise ambiental gerada pela racionalidade económica. As con-
e tribuigóes positivas deste processo transcientífico sobre a articulagáo dos pro-
5 cessos materiais que confluem em diversos processos socioambientais, abrem
ao mesmo tempo possíveis transformagóes históricas para a construgáo de uma
nova racionalidade produtiva orientada a um desenvolvimento sustentável e um
D
manejo integrado de recursos.

6. Transdisciplinaridade, articulaláo de processos e emergencia do saber ambiental

A complexidade dos problemas ambientais gerados pela racionalidade


económica dominante e a necessidade de analisá-los como sistemas socioam-
bientais complexos criaram a necessidade de integrar a seu estudo um conjunto
de conhecimentos derivados de diversos campos do saber. A convergéncia de
84 ENRIQUE LEFF

conhecimentos de um conjunto de disciplinas envolvidas na problemática am-


biental numa análise integrada da realidade gerou um processo de intercambio
teórico, metodológico, conceitual e terminológico. Desta forma, a transferéncia
mimética e a generalizagáo de metodologias, o uso metafórico de nogóes, a
importagáo analógica e a ressignificagáo estratégica de conceitos entre diferen-
tes teorias, sempre manifestada na história das ciéncias", é agora reforgada e
condicionada pelo potencial aplicativo do conhecimento.
A partir do que afirmamos anteriormente, o estudo destes intercambios
teóricos transformou-se num trabalho necessário para avahar os efeitos de co-
nhecimento e desconhecimento que esse processo transdisciplinar teve sobre a
capacidade de diferentes disciplinas para apreender e resolver problemas am-
bientais concretos. Interessam em especial os avangos teóricos, metodológicos
e técnicos que incorporaram a economia, a ecologia, a antropologia, a sociolo-
gia, a geografia, o urbanismo, o direito, a arquitetura, o planejamento etc. e suas
contribuigóes na instrumentalizagáo de políticas alternativas de organizagáo so-
cial e produtiva.
Embora a problemática ambiental exija urna integragáo de conhecimentos
e urna retotalizagáo do saber, as aproximagóes sistémicas, holísticas e interdis-
ciplinares, limitadas á reorganizagáo do saber disponível, sao insuficientes para
satisfazer esta demanda de conhecimentos. Mesmo que a estratégia epistemoló-
gica de urna articulagáo de ciéncias permita analisar os problemas teóricos que
resultam das relagóes de interdependéncia entre diferentes processos materiais,
a questáo ambiental requer novos conhecimentos teóricos e práticos para sua
compreensáo e resolugáo. Desta forma, a questáo ambiental induziu transfor-
magóes teóricas e um desenvolvimento do conhecimento em diversas discipli-
nas científicas.
A transdisciplinaridade pode ser definida como um processo de intercam-
bios entre diversos campos e ramos do conhecimento científico, nos quais uns
transferem métodos, conceitos, termos e inclusive corpos teóricos inteiros para
outros, que sao incorporados e assimilados pela disciplina importadora, indu-
zindo um processo contraditório de avango/retrocesso do conhecimento, carac-
terístico do desenvolvimento das ciéncias.
Os efeitos mais negativos deste processo transdisciplinar surgem do des-
conhecimentos dos objetos específicos das ciéncias e dos campos de aplicagáo
de seus conhecimentos, da transgressáo dos significados teóricos e práticos de
seus conceitos, por um desejo de unificagáo dos níveis de materialidade do real,
ou pelos objetivos de urna eficiéncia funcional guiados pela racionalizagáo tec-
nológica crescente da sociedade. Esta visáo reducionista conduziu a urna busca
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 85

de princípios ontológicos ou leis gerais da matéria, de certas bases fundamen-


tais de sua génese e evolugáo, de urna linguagem comum e unívoca. Isto levou
á transposigáo analógica de conceitos e métodos fora do campo teórico onde
produzem seus efeitos de conhecimento e sua eficácia prática, gerando um uso
retórico ou ideológico do discurso científico.
Num sentido positivo, o processo transdisciplinar contribui para o avango
do conhecimento enquanto que os conceitos e metodologias importadas de ou-
bs tras ciéncias, bem como certas categorias filosóficas e termos técnicos, sáo
o- retrabalhados pela ciéncia importadora até adquirir um sentido próprio no teci-
do teórico que serve para especificar seu objeto de conhecimento e para explicar
os processos materiais de seu campo de experiéncia. Desta forma, os efeitos
positivos dos intercámbios conceituais entre disciplinas científicas e a internali-
zagáo do saber ambiental dentro de seus paradigmas teóricos podem contribuir
para compreender melhor a articulagáo dos processos ecossistémicos, geográfi-
cos, económicos, culturais e sociais que caracterizam uma problemática am-
biental concreta.
Esta perspectiva de análise das relagóes transdisciplinares abre um amplo
campo de estudo sobre os intercámbios realizados entre diferentes áreas do co-
nhecimento. Aqui apenas indicaremos, a título de exemplo, alguns casos signi-
ficativos. Entre eles, cabe assinalar a influéncia positiva que tém apresentado o
desenvolvimento da ecologia nas disciplinas antropológicas, bem como o estu-
do das organizagóes culturais em fungáo dos fluxos de matéria e energia, e da
racionalidade ecológica de suas práticas produtivas".
No terreno da economia, a internalizagáo do ambiente implicou também
esforgos teóricos e metodológicos. Assim, dentro da escola neoclássica, gerou
métodos de análise e avaliagáo de impactos ambientais com o propósito de in-
corporar "fungóes de dano" ás fungóes de produgáo, bem como para valorizar os
recursos naturais, atualizar as preferéncias dos futuros consumidores e em geral
para internalizar as externalidades ambientais do sistema económico". Além
desta resposta á demanda de conhecimentos gerada pelos problemas ambien-
tais, surgiram contribuigóes críticas da teoria económica que questionam suas
bases mecanicistas, propondo vias alternativas para avahar os processos produ-
tivos em fungáo dos princípios da termodinámica e das leis da entropia que
regem a conservagáo e transformagáo da matéria e da energia 47 .
A avaliagáo dos efeitos de conhecimento gerados por estes processos trans-
disciplinares apenas podem ser feitos a partir de critérios de cientificidade de
cada teoria e dentro da especificidade de sua prática científica. Desta forma,
cada disciplina implie suas condigóes de aceitagáo ou rejeigáo, assim como suas
86 ENRIQUE LEFF

formas possíveis de incorporagáo e assimilagáo de teorias e métodos externos.


Em alguns casos, como é o da antropologia cultural, ocorreram formas favorá-
veis para urna "ecologizagáo" das teorias culturais". Outros paradigmas, como
os da economia, sao mais resistentes e apresentam obstáculos epistemológicos
mais fortes para internalizar os princípios de urna racionalidade ambiental".
As consideragóes ambientais propiciam também o enriquecimento do pen-
samento e das categorias de análise do marxismo sobre as causas da "crise eco-
lógica" e sobre as perspectivas ambientais para orientar as mudangas históricas
para a construgáo de urna nova racionalidade produtiva. A problemática am-
biental nao só abre novas perspectivas para o estudo dos movimentos sociais,
como também questiona e leva a reelaborar os conceitos fundamentais do mate-
rialismo histórico. Desta forma, a consideragáo dos processos ecológicos dentro
da dinámica do capital obriga a repensar o conceito de foro produtiva para
incorporar o potencial produtivo dos ecossistemas. Por sua vez, enriquece o
conceito de formagáo social ao conceber as formagóes ideológicas e as práticas
produtivas das comunidades como urna nova rede de relagóes socioambientais.
Mais ainda, a construgáo de um paradigma ambiental de produgáo requer um
complexo processo de reelaboragóes teóricas e o desenvolvimento de conheci-
mentos científicos e tecnológicos que déem suporte a urna racionalidade social
alternativa.
A falta de bases epistemológicas sólidas para pensar as condigaes de arti-
culagáo das ciencias e dos processos transdisciplinares, nos quais se difundem e
se retrabalham as nogóes, conceitos e métodos das ciencias, gerou urna deman-
da de unificagáo terminológica na temática ambiental. Esta exigencia manifes-
ta-se como urna necessidade de estabelecer uma "comunicagáo interdisciplinar"
através de conceitos unívocos. Esta demanda — que vem sendo divulgada e
vulgarizada no discurso ambiental — desconhece a materialidade dos processos
discursivos (científicos e ideológicos) que determinaram a multiplicagáo e in-
clusive a ambigüidade dos conceitos em suas fungóes teóricas e práticas (por
exemplo, a nogáo de desenvolvimento sustentável ou sustentado, ou a polivaléncia
dos conceitos de valor, recurso e produtividade).
Por outro lado, a análise histórica dos intercambios transdisciplinares rea-
lizados entre diferentes ciencias e que incidem sobre urna problemática teórica
e uma prática do ambiental permitiria

"ressaltar os pontos onde se póde efetuar a projeQáo de um conceito sobre outro,


de fixar o isomorfismo que permitiu uma transferéncia de métodos ou de técni-
cas, de mostrar as proximidades, as simetrias ou as analogias que permitiram as
generalizalóes; em resumo, de descrever o campo de vetores e de receptividade
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 87

diferencial que, para o jogo de intercámbios, foi urna condigáo de possibilidade


histórica (...)".

Ainda, permitiria
"descrever (...) o papel que desempenha o discurso estudado em relagáo a aque-
les que lhe sáo contemporáneos e vizinhos. É preciso estudar entáo a economia
da constelagáo discursiva a que pertence. Com efeito, pode desempenhar o pa-
s
pel de um sistema formal do qual os outros discursos seriam as aplicagóes a
diversos campos semánticos (...). O discurso estudado pode estar também em
relagáo de analogia, de oposigáo ou de complementaridade com certos outros
discursos (...). Enfim, podem ser descritas entre diversos discursos relagóes de
delimitagáo recíproca onde cada um se atribui as marcas distintivas de sua sin-
D gularidade pela diferenciagáo de seu domínio, de seus métodos, de seus instru-
a mentos, de seu domínio de aplicagáo" (...).

Assim,

3
"podemos determinar as vias que de um domínio ao outro asseguram a circula-
gáo, a transferéncia, as modificagóes dos conceitos, a alteragáo de sua forma ou
a mudanga de seu terreno de aplicagáo" 50.
1
O processo de "assentamento", de especificagáo e assimilagáo de cada
conceito no terreno próprio de cada disciplina resulta do trabalho teórico de
cada ciéncia, independentemente de suas possíveis homologias estruturais ou
dos esforgos por reduzir sua polivaléncia com o fim de gerar termos unívocos
para facilitar o processo de comunicagáo e incrementar a eficácia prática do
planejamento ambiental.
A análise dos processos de assimilagáo e especificagáo dos conceitos nos
intercámbios transdisciplinares permitiria assim precisar o sentido de certos
conceitos que, tendo transitado por diferentes teorias científicas, surgem agora
como conceitos para urna prática de planejamento ambiental (isto é, os concei-
tos de valor, recurso, produtividade, meio). Embora no sentido prático destes
conceitos e suas regras de utilizagáo estejam inscritos na racionalidade ideoló-
gica e prática do discurso da gestáo ambiental, náo pode desconectar-se de suas
origens teóricas, visto que as agóes de planejamento e de gestáo ambientais
apóiam-se em teorias económicas, ecológicas ou tecnológicas, enquanto que as
transformagóes ecossistémicas e produtivas do desenvolvimento afetam os pro-
cessos que sáo matéria de análise teórica densas ciéncias.
O conceito de racionalidade ambiental sustenta-se entáo nas transforma-
góes do conhecimento que induz a problemática ambiental sobre um conjunto
88 ENRIQUE LEFF

de paradigmas científicos, mobilizando, articulando e intercambiando um con-


junto de saberes técnicos e práticos, associados ao reconhecimento, valorizagáo
e formas de uso dos recursos naturais. Assim, os intercámbios transdisciplina-
res permitem dar conta da articulagáo de processos que confluem na dinámica
de sistemas socioambientais complexos. Ao mesmo tempo, sentara as bases
teóricas para a produgáo de conceitos práticos interdisciplinares e de indicado-
res interprocessuais, capazes de servir á construgáo e avaliagáo de um paradig-
ma ambiental de desenvolvimento.

7. Articulagáo de processos ecológicos, tecnológicos e culturais: o conceito de


produtividade ecotecnológica"

A racionalidade económica caracteriza-se pelo desajuste entre as formas e


ritmos de extragáo, exploragáo e transformagáo dos recursos naturais e das con-
digóes ecológicas para sua conservagáo, regeneragáo e aproveitamento sustentá-
vel. A aceleragáo em ritmos de rotagáo do capital e na capitalizagáo da renda do
solo para maximizar os lucros ou os excedentes económicos no curto prazo
gerou urna crescente pressáo sobre o meio ambiente. Esta racionalidade econó-
mica está associada com padróes tecnológicos que tendem a uniformizar os
cultivos e a reduzir a biodiversidade. Desta forma, a transformagáo de ecossis-
temas complexos em pastagens ou em campos de monocultura conduziu a
urna superexploragáo do solo, baseada em insumos industriais e energéticos
crescente e cuja produtividade (sobretudo nos ecossistemas tropicais) declina
rapidamente.
Estes padróes produtivos geram, por sua vez, níveis de poluigáo de ríos,
lagos e mares que afetam a produtividade sustentada de recursos naturais nos
ecossistemas terrestres e aquáticos. Os processos de desmatamento e erosáo dos
solos acarretaram o esgotamento progressivo dos recursos bióticos do planeta, a
destruigáo das estruturas edafológicas e a desestabilizagáo dos mecanismos
ecossistémicos que dáo supone á produgáo e regeneragáo sustentável dos recur-
sos naturais.
A tecnologia desempenhou urna importante fungáo instrumental dentro da
racionalidade económica, estabelecendo a relagáo de eficácia entre conhecimento
e produgáo. Assim, a tecnologia, entendida como a organizagáo do conheci-
mento para a produgáo, inseriu-se nos "fatores da produgáo", determinando a
produtividade dos meios de produgáo e da forga de trabalho e excluindo dente
processo o homem e a natureza.
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 89

A produgáo e aplicagáo de conhecimentos com o fim de satisfazer as ne-


cessidades sociais das comunidades rurais, respeitando seus valores culturais e
desenvolvendo o potencial produtivo de seus ecossistemas e de seus saberes
práticos, implica a necessidade de construir novos princípios de produtividade
sustentável, integrando ao conceito de produgáo os processos ecológicos e cul-
turais que lhe servem de suporte. Urna racionalidade ambiental, fundada nas
condigóes ecológicas para aproveitar a produtividade primária dos ecossistemas
e de dar bases de sustentabilidade aos processos de industrializagáo, deve inte-
grar os processos ecológicos que geram os valores de uso natural, com os pro-
cessos tecnológicos que os transformam em valores de uso socialmente neces-
sários através da produgáo e apropriagáo dos conhecimentos, saberes e valores
culturais das comunidades para a autogestáo de seus recursos produtivos.
Daí é possível construir um paradigma produtivo alternativo, fundado na
e produtividade ecotecnológica que emerge da articulagáo dos níveis de produti-
vidade ecológica, tecnológica e cultural no manejo integrado dos recursos pro-
í- dutivos. Esta produtividade ecotecnológica difere necessariamente da produti-
[c, vidade económica tradicional e de sua avaliagáo em termos de pregos do merca-
,o do. As racionalidades produtivas que sustentarla entes conceitos de produtivida-
de também induzem percepgóes e formas diferentes de aproveitamento dos re-
1s cursos naturais. Assim, a racionalidade económica delimita o reconhecimento e
valorizagáo de cenos recursos, enquanto que outros sáo superexplorados, trans-
a formados ou destruídos como resultado das demandas do mercado. Outros re-
cursos, reconhecidos ou nao, sáo devastados como efeito da exploragáo comer-
a cial de recursos náo-renováveis e de cultivos, e outros recursos potenciais fo-
ram ignorados por seu baixo valor de troca ou porque as tecnologias disponíveis
tornam impossível seu aproveitamento com fans lucrativos.
Um processo produtivo construído sobre o conceito de produtividade
ecotecnológica conduz necessariamente á análise das condigóes ecológicas, tec-
a nológicas, económicas e culturais que toman factível um aproveitamento e trans-
formagáo dos recursos naturais, preservando e maximizando o potencial produ-
tivo dos ecossistemas — que depende de sua produtividade primária, sua capa-
cidade de carga e suas condigóes de resiliéncia, bem como dos arranjos produ-
a tivos que determinam suas taxas ecológicas de exploragáo 52 — minimizando a
o superexploragáo e esgotamento dos recursos naturais, assim como a descarga e
acumulagáo no ambiente de subprodutos, resíduos e dejetos dos processos de
produgáo e de consumo.
Por sua vez, os conceitos de produtividade ecotecnológica e de racionali-
dade ambiental, assim como as estratégias de manejo integrado de recursos,
90 ENRIQUE LEFF

induzem processos de pesquisas sobre propriedades e usos de recursos poten-


ciais, mediante a inovagáo de processos mais eficientes de transformagáo
fotossintática, fitoquímica e biotecnológica, de novas tecnologias de materiais e
novas fontes de energia. Ainda, esta perspectiva de desenvolvimento leva a
revalorizar, resgatar e melhorar um conjunto de técnicas tradicionais e a desen-
volver novos saberes práticos e conhecimentos científicos.
Certamente as aplicagóes práticas da ciéncia e do progresso tecnológico tém
sido orientadas pelas demandas da racionalidade económica dominante. Náo obs-
tante, o desenvolvimento do conhecimento científico-tecnológico gerou um po-
tencial inovador, fundado no conhecimento da natureza, que pode orientar-se ao
desenvolvimento de novos recursos naturais e tecnológicos, ao aproveitamento de
fontes alternativas de energia e ao desenho de novos produtos, dando suporte a
um projeto de civilizagáo e a urna estratégia de desenvolvimento que incorpo-
rara as condigóes de conservagáo e o potencial ecológico e cultural de diferentes
formagóes sociais. Abre-se assim a possibilidade de organizar um processo eco-
nómico a partir do desenvolvimento das forgas ecológicas, tecnológicas e so-
ciais de produgáo, que náo está sujeito á lógica de economias concentradoras,
de poderes centralizados e da maximizagáo de lucros de curto prazo, abrindo a
via para um desenvolvimento igualitário, sustentável e sustentado.
Um processo produtivo fundado na geragáo de urna tecnoestrutura mais
complexa, dinámica e flexível, articulada ao processo ecológico global de pro-
dugáo e reprodugáo de recursos naturais, oferece opgóes mais versáteis para um
desenvolvimento sustentável, que o que surge da valorizagáo dos recursos atra-
vés dos signos do mercado e de um planejamento económico setorializado. Além
disso, permite urna melhor distribuigáo espacial dos recursos produtivos e um
acesso social mais igualitário á riqueza social.
A racionalidade ambiental e a produtividade ecotecnológica emergem as-
sim do potencial produtivo que gera a organizagáo ecossistémica dos recursos e
a inovagáo de novos sistemas de tecnologia ecológica. Esta racionalidade gera e
irradia novas forgas produtivas através do ordenamento ecológico, da distribui-
gáo territorial e da reorganizagáo social das atividades produtivas. Este processo
necessariamente afeta a quantidade, qualidade e distribuigáo da riqueza através
da socializagáo da natureza, da descentralizagáo das atividades económicas, da
gestáo social da produtividade ecológica e dos meios tecnológicos, do respeito
pela diversidade cultural dos poyos e do estímulo a projetos alternativos de
desenvolvimento sustentável.
As complexas inter-relagóes que se estabelecem entre esses níveis de pro-
dutividade social requerem uma conceitualizagáo mais ampla da articulagáo
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 91
.EFF

sincrónica e diacrónica dos processos culturais, ecológicos e tecnológicos que a


constituem como suporte do aproveitamento integrado dos recursos naturais e
ao sociais para um desenvolvimento económico sustentável. Do ponto de vista
se meramente sincrónico, ocorre a articulagáo destes trés processos: definigáo do
a sistema de recursos de urna formagáo social a partir de sua oferta ecológica, de
sua percepgáo e valorizagáo cultural e da factibilidade tecnoeconómica de seu
aproveitamento.
nl
Além da análise sincrónica que delimita o sistema de recursos naturais,
s- processos tecnológicos e valores culturais, a articulagáo destes tres níveis de
-
produtividade social produz um efeito sistémico de geraCáo de novos potenciais
lao produtivos. A articulagáo de processos culturais, ecológicos e tecnológicos apa-
de
rece a partir de urna perspectiva diacrónica corno a integragáo da evolugáo eco-
a
lógica, a inovagáo tecnológica e as mudangas sociais, num processo de transfor-
'po
magóes do conhecimento e de suas aplicagóes á produgáo. Neste sentido, a arti-
tes
culagáo destes processos de ordem natural e social constitui-se numa fonte gera-
dora de recursos potenciais para um desenvolvimento sustentável e sustentado.
A partir desta perspectiva, o manejo integrado dos recursos náo só se sus-
a tenta na articulagáo dos níveis de produtividade cultural, ecológica e tecnológi-
ca. Ou, melhor, estes processos produtivos se constituem, se sustentam e fun-
cionam como um sistema articulado de recursos culturais, naturais, tecnológi-
cos e económicos. É este efeito de articulacéro de processos o que dá seu suporte
ro-
1m
material ao conceito de produtividade ecotecnológica.
ra O conhecimento dos diferentes níveis de articulagáo destes processos ma-
ém teriais inscreve-se assim dentro de urna estratégia conceitual gerada com o pro-
pósito de guiar um conjunto de affies sociais para a construffio de urna racio-
nalidade ambiental, entendida como uma racionalidade social alternativa, ca-
s- paz de ser contrastada com a racionalidade capitalista e de ir objetivando suas
e condigóes institucionais e seus instrumentos operativos através de um processo
e histórico de transformagóes produtivas e sociais.
i-
so
8. A produláo de conceitos práticos interdisciplinares
és
da
to A implementagáo de uma estratégia ambiental de desenvolvimento impli-
de ca a necessidade de transformar e enriquecer urna série de conceitos teóricos
provenientes de diferentes campos científicos, assim como de produzir os concei-
tos práticos interdisciplinares e indicadores processuais, necessários para con-
To _
duzir, normatizar e avahar um processo de planejamento e gestáo ambiental
92 ENRIQUE LEFF

orientado pelo conceito de produtividade ecotecnológica, para um manejo inte-


grado dos recursos naturais.
A natureza náo só aparece como objeto das ciéncias naturais; para conhe-
cer a dinámica de transformagáo dos sistemas ecológicos é preciso considerar a
superdeterminagáo que sobre eles exercem as práticas produtivas geradas pela
racionalidade económica. Mais ainda, os processos ecológicos e os fenómenos
naturais emergem como forras produtivas, o que implica a necessidade de arti-
cular suas condigóes de produtividade e regeneragáo — e todo um conjunto de
legalidades dos processos naturais — ao desenvolvimento das foros produti-
vas, bem como sua integragáo nos instrumentos de planejamento ambiental e do
desenvolvimento sustentável. Isto apresenta urna série de conseqüéncias para a
reelaboragáo de conceitos teóricos e práticos associados á construgáo de urna
racionalidade alternativa de produgáo.
Dentro da racionalidade capitalista, as forgas produtivas fundam-se no pre-
domínio dos processos tecnológicos que alimentaram um processo de acumula-
gáo do capital marcado por urna extrema divisáo do trabalho, bem como por
uma centralizagáo económica e urna concentragáo do poder, desconhecendo os
potenciais ecológicos e erodindo as bases de sustentabilidade do processo eco-
nómico. Dentro dos objetivos de urna racionalidade ambiental, o desenvolvi-
mento das forgas produtivas incorpora as condigóes ecológicas de produgáo e
regeneragáo de recursos assim como os valores culturais e as motivagóes sociais
no reconhecimento, valorizagáo, defesa e o "colocar em produgáo" recursos
sociais potenciais. Estes processos especificam e delimitam as forgas produti-
vas de uma formagáo social. No processo de construgáo das condigóes da pro-
dutividade ecotecnológica, a ecologizagáo e culturizagáo dos processos produti-
vos transformam as relagóes sociais de produgáo (fundadas na separagáo do
trabalhador assalariado dos meios de produgáo capitalistas e condicionadas pe-
las relagóes técnicas geradas pelos processos de acumulagáo), tecendo-as com
diferentes organizagóes culturais e com as inter-relagóes ecológicas que susten-
tam suas práticas produtivas.
Neste sentido, a avaliagáo do processo de construgáo das forgas produtivas
fundadas na produtividade ecotecnológica, requer a elaboragáo de novos indica-
dores sobre os processos ambientais que ali intervérn — incluindo o património
de recursos naturais e culturais — cujos parámetros tornam-se incomensuráveis
com as medigóes de urna produtividade do capital ou do trabalho". Este proces-
so implica a necessidade reconceitualizar as condigóes de formagáo dos valores
de uso, já que, longe de estabelecer-se simplesmente pela inversáo de um tempo
de trabalho através das condigóes técnicas da produgáo num processo acumulativo
de capital, está condicionado pela articulagáo de um conjunto de temporalida-
FF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 93

des — o tempo de formagáo, de maturagáo e de regeneragáo ecossistémica dos


recursos; o tempo de inovagáo, de assimilagáo e nova mudanga de conhecimen-
tos para a implementagáo de práticas culturais de produgáo etc. -- que estaria
a associado com o período de transigáo para urna racionalidade ambiental e o
la colocar em prática os princípios da produtividade ecotecnológica.
)s Esta nova racionalidade produtiva náo só implica o enriquecimento do
conceito económico de valor pela incorporagáo dos processos naturais e das
le dinámicas ecológicas na produgáo de mercadorias, mas também, que o campo
conceitual do valor articula um conjunto de conceitos diferenciados com dife-
lo rentes significados teóricos, práticos e ideológicos. Aí funcionara conceitos tais
a como o de valor com seu significado motivacional, bem como o de valor como
la princípio ético e moral. A distingáo dos conceitos de valor integram-se na defi-
nigáo de um sistema de recursos fundado na valorizagáo cultural dos mesmos e
na valorizagáo económica de sua exploragáo, ao mesmo tempo, representa a
a- contradigáo entre urna tendéncia á autodeterminagáo, auto-suficiéncia e inde-
)1- pendéncia de urna formagáo social a partir da "colocagáo de valor" de seus
recursos, frente a urna tendéncia a sua exploragáo, ao subordinar seu valor de
uso á valorizagáo do mercado.
Como se vé, os problemas teóricos propostos pela questáo ambiental refe-
rem-se á construgáo, especificagáo e articulagáo de conceitos e náo á elaboragáo
de termos unívocos, que, apesar do propósito de fazé-los funcionar dentro de
perspectivas alternativas de desenvolvimento, resultam ineficazes pelo desco-
nhecimento dos processos materiais e simbólicos que determinam urna situagáo
concreta e motivam as agóes que conduzem a sua transformagáo. Neste sentido,
náo se trata de eliminar o "caos conceitual" mediante urna definigáo "objetiva"
dos valores entendidos como "coisas ou fenómenos identificados de acordo com
sua habilidade para satisfazer as necessidades específicas de um sistema dado"".
O manejo integrado dos recursos de uma formagáo social entende-se e é aborda-
da pela correta articulagáo entre os valores culturais (determinagáo cultural), os
valores motivacionais (determinagáo ideológica, política, inconsciente) e a va-
lorizagáo económica sobre os processos produtivos (determinagáo económica).
Neste sentido, o planejamento do uso sustentável dos recursos implica a
necessidade de urna política do conhecimento, que promove a articulagáo de
ciéncias e a integragáo de saberes das diferentes disciplinas que intervém nestes
processos (a integragáo das partes de um todo fracionado e disperso pela prática
de urna manejo "desintegrada") e que induz um processo de produgáo interdis-
ciplinar de conceitos práticos. Isto implica reconhecer este processo interdisci-
plinar inserido num processo histórico, onde se geram as condigóes para a emer-
94 ENRIQUE LEFF

géncia ou para o desuso de certas práticas produtivas, bem como das teorias,
conceitos e termos que as sustentara".
Este processo de produgáo de conceitos práticos interdisciplinares pode
ser exemplificado por meio de urna reflexáo sobre a elaboragáo dos conceitos de
produtividade ecotecnológica e de racionalidade ambiental; estes surgiram da
articulagáo de conceitos diferenciados de produtividade provenientes de diver-
sos campos de conhecimento (ecologia, economia, tecnologia) importados para
o campo do planejamento ambiental. No entanto, a síntese prática dos mesmos
implicou um processo de transformagáo e reformulagáo conceitual.
O conceito de produtividade ecológica é mais complexo que o conceito de
produtividade primária dos ecossistemas naturais, medido como urna taxa de
formagáo de biomassa 56. Desta forma, a produtividade ecológica inclui as trans-
formagóes secundárias das cadeias tróficas e processos biotecnológicos de trans-
formagáo, bem corno as tecnologias ecológicas que intervém no manejo inte-
grado de recursos e as relagóes agroindustriais que definem para o sistema re-
cursos naturais num momento dado. Além disso, há diferengas quanto á avalia-
gáo da produtividade primária e da produtividade ecológica: enquanto a primei-
ra é medida como um incremento anual ou urna taxa de formagáo de biomassa,
a produtividade ecológica deve ser avaliada como um nível determinado — mas
dinámico e mutante — de produgáo de valores de uso "naturais".
Certamente, esta produtividade ecológica pode ser medida e quantificada
sobre urna base temporal e espacial como uma produtividade agronómica. Po-
deriam ainda produzir-se indicadores sobre a contribuigáo do capital investido e
a forga de trabalho aplicada na geragáo de uma "colheita ecossistémica". Mas
esta náo pode ser avaliada em termos de seu prego de mercado. A produtividade
ecológica de um sistema de recursos naturais pode estar sujeita a urna análise de
diversos processos de otimizagáo, mas esta náo está guiada pelo objeto de al-
cangar um clímax ecológico, um equilíbrio estável ou um aproveitamento
otimizado dos fluxos de energia do ecossistema; está menos ainda orientada á
maximizagáo de excedentes económicos ou á construgáo de um modelo de pro-
dugáo acumulativa.
O paradigma ecotecnológico de produgáo conduz a um processo histórico
de transformagóes ecossistémicas, fundado em padróes variáveis de aproveita-
mento sustentável de recursos, através de inovagóes científico-tecnológicas e
reorganizagóes produtivas. Neste processo poderáo ser melhoradas a quantida-
de e qualidade dos valores de uso produzidos, conservando certas condigóes
fundamentais para urna oferta ecológica sustentada de recursos. Mas o sistema
de recursos naturais náo pode orientar-se a um estado homeostático de máxima
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 95

,as, produtividade ecológica; menos ainda pode conceber-se ou avaliar-se esta ofer-
ta dentro de um processo de reprodugáo expansiva. Tal sistema está fundado
ode sobre urna taxa básica de produgáo ecossistémica que depende dos ritmos de
s de extragáo e das condigóes de regeneragáo de seus recursos em padróes alternati-
da vos de aproveitamento.
ver- O comportamento de tal ecossistema produtivo pode ser monitorado e es-
)ara timado através de seus intercambios e balangos de matéria e energia em diferen-
[nos tes estratégias de ordenamento ecológico dos recursos. Entretanto, estas análi-
ses náo seriam suficientes para avahar os aspectos qualitativos apresentados por
de um sistema de recursos naturais assim construído sobre a satisfagáo das neces-
sidades básicas de urna comunidade sobre sua qualidade de vida e sobre a distri-
de
buigáo social dos custos e beneficios das diferentes práticas produtivas.
ns-
ns- A produtividade tecnológica — em sentido estrito e independentemente
te- do capital que incorpora — é avaliada em termos de sua eficiéncia mecánica e
re- sobretudo termodinámica dos processos produtivos. Contudo, a produtividade
Ea- está associada com a eficácia do processo social de construgáo, funcionamento
de um sistema tecnológico apropriado, cujo custo deve ser avaliado em fungáo
ei-
de sua contribuigáo á preservagáo dos servigos ambientais e á elevagáo da pro-
sa, dutividade sustentável de recursos bióticos. A avaliagáo socioambiental da pro-
as dutividade social de esta tecnoestrutura é mais complexa que a medigáo do
balango de matéria e energia relacionado com o cálculo económico sobre o
ada custo no mercado das tecnologias e dos meios de produgáo importados do siste-
Po- ma produtivo.
l oe
Dentro da racionalidade capitalista, a produtividade tecnológica está asso-
as ciada a um processo de revalorizagáo do capital, através do progresso técnico
ade gerado por urna constante "destruigáo criativa" dos meios de produgáo orienta-
de do á maximizagáo dos lucros, no qual se omitem os efeitos destrutivos sobre os
al- recursos naturais e a qualidade ambiental. A racionalidade ecotecnológica im-
n to plica a avaliagáo e construgáo de urna tecnoestrutura mais estável e multifuncio-
la á nal para o manejo integrado dos recursos, orientada a um desenvolvimento sus-
pro- tentado e náo acumulativo. Neste sentido, a produtividade tecnológica está as-
sociada com os custos sociais implícitos no tempo e recursos necessários para a
bc o inovagáo, assimilagáo e implementagáo de tal sistema tecnológico.
Eita- No entanto, a produtividade cultural", gerada a partir da reconstrugáo das
os e práticas produtivas e dos processos de trabalho a partir dos valores culturais que
ida- regulam a organizagáo produtiva de urna formagáo social, náo pode ser avaliada
róes em termos da produtividade do capital, do trabalho e da tecnologia investidas no
ama processo produtivo. O desenvolvimento das forgas produtivas de urna formagáo
pma social a partir da criatividade, as habilidades e motivagóes da comunidade, bem
96 ENRIQUE LEFF

como dos valores culturais inscritos nas práticas de cooperagáo no trabalho, de


reciprocidade e de intercambio simbólico (que incluem atividades "náo-produ-
tivas" de caráter ritual, lúdico e recreativo), sao impossíveis de serem medidas
como taxas anuais de produgáo e de serem avaliadas em termos de racionalida-
de e de eficiéncia económica; táo-somente pode-se dar conta desta dimensáo
cultural da produgáo através de seus efeitos sobre um processo sustentado de
desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida das comunidades avaliada
em termos de seus próprios valores".
A complexidade das relagóes estabelecidas por esses múltiplos objetivos
do desenvolvimento com a conexáo dos processos de construgáo e funciona-
mento de seus instrumentos operativos, requer a elaboragáo de conceitos inter-
disciplinares e de indicadores interprocessuais capazes de traduzir a análise con-
ceitual do aproveitamento integrado de recursos a formas práticas de implemen-
tagáo. Isso abre o campo para a elaboragáo de indicadores sobre o património de
recursos naturais e culturais, bem como sobre a qualidade de vida e de desenvol-
vimento sustentável.

9. Processos interdisciplinares e unificnáo terminológica

A diversidade e complexidade dos processos que intervém na problemática


ambiental do desenvolvimento propóem a necessidade de integrar diversos cam-
pos do conhecimento científico e técnico para seu diagnóstico e para construir
urna racionalidade ecotecnológica de produgáo. Isto introduziu o problema da
formagáo de equipes multi ou interdisciplinar de especialistas, abrindo um campo
de discussáo sobre os métodos e técnicas mais eficazes para seu funcionamento.
Estas práticas "interdisciplinares", entendidas como a selegáo de variáveis
e dimensóes significativas para apreender urna problemática a partir dos enfo-
ques de diferentes disciplinas, sao necessárias para o diagnóstico da articulagáo
dos efeitos gerados pela convergéncia de fenómenos naturais, de fatores tecno-
lógicos, de mecanismos económicos e de condigóes políticas e institucionais
sobre uma problemática ambiental. Desta maneira, cada especialista pode cap-
tar, a partir de sua especialidade, os aspectos mais significativos que incidem
nesta e trazer os conhecimentos úteis para seu controle ou para a implementagáo
de programas alternativos de gestáo ambiental. A análise destes fatores dentro
de um enfoque sistémico gera uma visáo mais compreensiva sobre a génese e as
opgóes de transformagáo desta problemática, oferecendo diagnósticos e solu-
góes mais integrado que as surgidas de um tratamento unidimensional ou
setorializado.
E LEI I EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 97

), de O campo problemático do meio ambiente transformou-se assim no objeti-


odu- vo de diversos estudos multi e interdisciplinares. Estes enfoques sistémicos sáo
lidas importantes, já que é necessária a análise integrada de certas políticas do Esta-
lida- do, do funcionamento de certos mecanismos económicos, normas jurídicas e
nsáo formas de poder, para caracterizar um conjunto de processos institucionais que
O de geram uma problemática ambiental e para instrumentalizar agóes práticas para
liada sua resolugáo.
Sáo estes fatores os que num momento dado dáo conta dos instrumentos
tivos práticos de sujeigáo ideológica de urna populagáo, dos mecanismos de controle
ona- político de urna comunidade, dos padróes de transformagáo tecnológica de seus
nter- recursos, dos circuitos de distribuigáo de recursos financeiros e captagáo de
con- excedentes económicos, das condigóes de divisáo ou afetagáo de terras, do pro-
nen- cesso de expansáo da fronteira agrícola ou de concessáo de direitos de explora-
'[() de gáo de recursos naturais e dos meios de intervengáo e exploragáo e das empresas
multinacionais.
A articulagáo destes fatores da realidade atuante pode chegar a condicio-
nar urna situagáo de forma tal que diminua o grau de "intervengáo explicativa"
dos processos mais gerais, provenientes das ordens ontológicas do real, tais
como a racionalidade económica, a dinámica dos ecossistemas e os processos
culturais na génese e solugáo de urna problemática ambiental determinada; por
ática sua vez, a estruturagáo destes efeitos numa formagáo social, estabelece suas
formas particulares de integragáo aos processos económicos e institucionais ao
Int i I nível nacional, bem como ás condigóes gerais da produgáo e reprodugáo do
a da capital e aos mecanismos do mercado em nível global.
'Tipo Porém, a hierarquizagáo e o estabelecimento das determinagóes causais de
nto. um conjunto de fatores sobre uma problemática estruturada torna necessária a
veis vinculagáo deste nível de análise com o estudo teórico dos processos históricos,
nfo- ecológicos ou económicos mais gerais, apreendidos num nível mais abstrato
wáo pelas condigóes de articulagáo de suas ciéncias.
no- O intercámbio de idéias que gera um processo interdisciplinar faz com que
ais surjam perguntas a partir de urna especialidade para outras; estes questionamen-
ap- tos náo só apresentam inquietagóes sobre o potencial aplicativo dos conheci-
iem mentos destas disciplinas, mas também pode levar a reformular problemas teó-
LCáo ricos e práticos que náo surgem do desenvolvimento interno dos paradigmas das
ntro ciéncias e do saber disciplinar normal, induzindo assim um desenvolvimento do
e as conhecimento ambiental. Entretanto, as ciéncias náo progridem apenas a partir
olu- das demandas de aplicagáo de seus conhecimentos, mas dependem do trabalho
ou teórico que se produz dentro dos complexos processos históricos, ideológicos e
discursivos de onde emergem e se desenvolvem as ciéncias.
98 ENRIQUE LEFF E

A eficácia da prática interdisciplinar no diagnóstico e resolugáo de proble- E


mas concretos desprende-se dos processos que ocorrem em forma simultánea: a E
comunicagáo intersubjetiva dos especialistas reunidos por um projeto e a orga- r
nizagáo dos conhecimentos científicos e técnicos trazidos pelas disciplinas pre-
sentes. O primeiro processo extrapola o terreno estritamente disciplinar dos es- c
pecialistas congregados. Certos efeitos de eficácia sáo gerados mais por tragos
de personalidade e por urna especial disposigáo para o trabalho em grupo, ou- c
tros pelas capacidades inquisidoras e organizativas de alguns indivíduos. Neste c
sentido, a dinámica grupal produz estímulos para o avango do conhecimento
inclusive dentro de cada disciplina. Daí o interesse de congregar massas críticas
de pesquisadores para maximizar a eficácia do trabalho intradisciplinar em di-
ferentes campos da ciéncia.
No segundo caso assinalado, a eficácia do processo interdisciplinar é pro- j
duto da integragáo organizada dos saberes, habilidades, métodos e técnicas par- d
ticulares das diferentes especialidades, orientadas ao estudo de certos proble- e
mas teórico-práticos específicos e a partir de seus campos de aplicagáo defini- i]
o
dos. Daí deriva o valor do trabalho especializado. Neste sentido, o edafólogo
t(
possui instrumentos de análise específicos e uma percepgáo da natureza diferen-
d
tes daquela do ecólogo, assim como a "sensibilidade" para os problemas sociais
é diferente no campo da economia, sociologia ou da antropologia.
c
A especificidade de cada disciplina é importante para o diagnóstico de tt
urna problemática concreta, mas adquire maior releváncia guando sua resolugáo
torna necessária sua "tradugáo" num programa multidisciplinar de pesquisas, f
capaz de gerar os conhecimentos necessários para implementar formas alterna- e
tivas de aproveitamento sustentavel dos recursos naturais. Neste momento, cada d
especialista remete-se a conhecimentos, métodos e instrumentos de suas disci-
plinas, a suas técnicas de laboratório e a seus campos de experimentagáo, para d
produzir explicagóes científicas e inovagóes tecnológicas concretas. 1-1
As experiéncias interdisciplinares mostraram os benefícios, mas também s
as dificuldades do diálogo e da comunicagáo intersubjetiva entre especialistas. p
Neste terreno, defendeu-se o projeto de gerar um discurso homogéneo interdis-
ciplinar e se manifestaram os obstáculos para produzir urna visáo holística dos n
processos ambientais a partir dos pontos de observagáo de cada especialista e de
seus interesses disciplinares, de sua vontade de domínio sobre outras teorias e
enfoques metodológicos e do medo de perder sua identidade profissional na
entropia do intercámbio interdisciplinar de saberes. c
Surgiu daí urna demanda de homogeneizagáo conceitual e de unificagáo tf
terminológica püa gerar urna linguagem comum e tornar claro o diálogo entre J(
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 99

de- especialistas. Isto, sem dúvida, é efeito de cenas tendéncias á unidade do real e
l.: a do conhecimento no terreno epistemológico, mas também explica-se pela acele-
ga- ragáo com a qual certos conceitos e termos viajara de urna disciplina para outra,
Te- dos níveis teóricos ao discurso ideológico, gerando mais caos que ordem nas
es- discussóes interdisciplinares. Assim, nem os ramos das ciéncias chegam a en-
¡os trelagar-se nem se conectara os vasos comunicantes do saber. Os conceitos per-
DU- dem sua significagáo teórica, adquirindo um sentido retórico dentro de um dis-
Iste curso ideológico.
nto O projeto de unificagáo terminológica, os esforgos por regular o significa-
Fas do e o uso dos termos empregados no planejamento ambiental, justifica-se pela
di- multiplicidade de sentidos com os quais estes sáo empregados nos diferentes
discursos teóricos e práticos. Contudo, isto náo autoriza a empreender um pro-
To- jeto de homogeneizagáo conceitual das ciéncias e de unificagáo terminológica
lar- das diferentes formagóes discursivas do ambientalismo, que só um extremo
empirismo poderia sustentar". A almejada clareza de uma comunicagáo
ini- interdiscursiva apenas pode provir do sentido teórico dos conceitos e das cate-
go gorias fundamentais de cada ciéncia, bem como de seu uso nocional e
v- terminológico em seus diversos campos de aplicagáo prática; de urna avaliagáo
ais dos processos de resignificagáo teórica tal como se geram depois de urna ruptu-
ra epistemológica de seus objetos científicos ou em suas articulagóes teóricas
com outros conceitos em diferentes campos do saber, de onde derivam seu po-
tencial cognoscitivo e explicativo 60 ; dos diferentes sentidos que abrem o espato
para aplicagóes técnicas das ciéncias e dos discursos práticos utilizados com
'as. fins ideológicos de conscientizagáo ou de gestáo ambiental. Isso conduz a urna
a especificagáo conceitual e terminológica em cada disciplina e em cada nível
da discursivo a partir náo de sua unidade, mas de sua significáncia diferenciada.
se i-
O sentido dos conceitos e termos surge assim de sua fungáo semántica
ora
dentro de diferentes paradigmas teóricos e estratégias discursivas através das
relagóes de inclusáo ou exclusáo que se estabelecem entre estes bem como de
nem suas relagóes com todo um conjunto de práticas náo-discursivas (organizagáo
as. produtiva, processos económicos, mudangas institucionais).
1s- As regras internas de funcionamento de cada urna das esferas institucio-
os nais onde circulam os conceitos determinam também suas formas de articula-
de gáo em suas práticas discursivas, gerando um rigor teórico, urna estratégia se-
ts mántica e um estilo retórico que dáo sua significagáo aos termos utilizados.
na Neste sentido, ganha importáncia a análise das significagóes diferenciadas dos
conceitos e termos tal e corno estes se inscrevem nas estratégias discursivas do
ráo texto científico, do ensaio literário, do documento de trabalho, do artigo de
tre jornal e do discurso político. Daí surge todo um sistema de dispersáo, justaposi-
100 ENRIQUE LEFF EPA

gáo, complementaridade e oposigáo nos discursos que atravessam as formagóes


teóricas e ideológicas do ambientalismo e da sustentabilidade. M
Desta forma, a especificidade dos conceitos no discurso ambiental das fo
diferentes disciplinas associam-se com as estratégias e agóes políticas em torno na
do confito ambiental. Assim, podemos identificar, ao menos, as seguintes for- ta
mas contraditórias de integragáo do saber ambiental: ló
a) a coincidéncia .ou dissidéncia de percepgóes disciplinares diferencia- en
das; as dispersó- es, homologias e complementaridades de diferentes pa-
radigmas ideológicos, teóricos e metodológicos na explicagáo e resolu- ris
gáo de uma problemática ambiental determinada; da
b) as oposigóes, diferengas e aliangas possíveis das estratégias conceituais cá
e discursivas de grupos e classes sociais em relagáo ás estratégias alter- se
nativas de apropriagáo, uso e manejo dos recursos e frente ao propósito ci(
globalizador e unificador do "desenvolvimento sustentável"; cu
c) a contradkáo ou complementaridade entre os enunciados explicativos, a(
descritivos e prescritivos de diferentes discursos ambientalistas. Assim, en
o valor do conhecimento destes discursos pode náo legitimar o valor de cil
justita das agóes que se induzem através dos enunciados prescritivos que co
daí se desprendam; os princípios explicativos da ciéncia podem náo ta(
coincidir com os princípios morais nos quais se fundamentam.
de
Abre-se entáo um campo de estudo sobre as diferentes perspectivas de su
análise da problemática ambiental a partir das relagóes de poder (do poder real qu
e do poder do saber), enquanto que estas geram urna razáo teórica, uma raciona- "a
lidade produtiva e urna racionalizagáo ideológica. Deriva daí, por sua vez, um 111(
processo "interdisciplinar" no qual se produz um "interdiscurso" através do con- vi(
curso de diferentes ramos do saber, que por um lado afeta o discurso das cien- a(
cias e, por outro, o recurso de cuas aplicagóes práticas. pro
di
10. A fuina. ° do sujeito na articulaláo de conhecimentos
rec
As teorias materialistas do conhecimento debateram-se sempre contra a e(
tenacidade das diversas formas que as concepgóes idealistas adotaram no curso nel
da história. Embora o surgimento do conhecimento científico moderno tenha cei
implicado o deslocamento das correntes espiritualistas predominantes, ao mes- un
mo tempo fundou A Ciéncia na consciéncia do sujeito que, como sujeito da tifi
ciéncia, constitui-se no princípio produtor do processo de conhecimento. du
_EFE EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 101

5es A descentralizagáo da Terra no Universo e de um Deus Todo-Poderoso no


Mundo conduziram a um antropocentrismo e a um humanismo fundados nas
las formas de ser do sujeito. Este processo histórico do saber transita pelo racio-
mo nalismo da lógica transcendental para a fenomenologia, mas también alimen-
'or- ta al positivismo lógico, onde o sujeito da ciéncia reaparece nas proposigóes
lógico-matemáticas e no formalismo lingüístico sobre o universo dos objetos
:ia- empíricos.
pa- A esta história do conhecimento moderno sobreviveram as fórmulas empi-
ristas mais vulgares do saber, aquelas fundadas na reconstituigáo cognoscitiva
da realidade a partir da aproximagáo sistémica do sujeito psicológico com rela-
rais gáo aos dados do mundo que o circunda, das observagóes diretas dos objetos de
ter- seu entorno. Este idealismo subjetivista é questionado pela constituigáo das
iito ciéncias mais distantes dos campos de aplicagáo da formalizagáo matemática e
cujo objeto de conhecimento está mais afastado da realidade empírica; afi onde
los, a organizagáo do real está constituída por processos materiais e náo por objetos
empíricos: ciéncia da vida, mas sobretudo da história e do inconsciente. Estas
de ciéncias geram os conceitos teóricos para explicar a subjetividade do homem
ue como um efeito do desejo inconsciente e da luta ideológica de classes, manifes-
aáo tada através de suas formagóes discursivas.
É neste sentido que a partir do materialismo histórico aparece o processo
de conhecimento como um "processo sem sujeito" (Althusser), isto é, onde o
de sujeito psicológico está ausente como princípio produtor do conhecimento, tese
al que é complementada com a proposigáo lacaniana que questiona a ciéncia como
"a ideologia da supressáo do sujeito", e que introduz no processo do conheci-
mento náo o sujeito autoconsciente, mas o sujeito do inconsciente, aquele mo-
en- vido pelo desejo de saber 61 . É esta fungáo do sujeito, sua pulsáo epistemofílica,
n-
a que interessa destacar em seus efeitos sobre a integragáo dos conhecimentos
produzidos sobre a articulagáo possível das ciéncias, sobre os processos trans-
disciplinares e interdisciplinares.
Todo conhecimento que náo seja palavra morta e documento sepultado
requer um processo de assimilagáo subjetiva que, mais do que a leitura repetitiva
a e o discurso dogmático que levam a urna aprendizagem mimética, implicam a
so necessidade de urna interpretagáo dos textos para pronunciá-los em fungáo de
a certos interesses, para utilizá-los numa prática profissional, para aplicá-los a
s- urna prática política. Aparecem assim certas posigóes subjetivas, formas de iden-
da tificagáo e contra-identificagáo com um terreno teórico a partir do qual se pro-
duzem tendéncias á especificagáo, generalizagáo, transferéncia e assimilagáo de
102 ENRIQUE LEFF

conceitos 62 , que resultam férteis para o desenvolvimento de novos conhecimen-


tos e que permitem a realizagáo de um cogito científico.
No processo de articulagáo das ciéncias — ainda nos casos onde reconhe-
cemos a impossível articulagáo de seus objetos de conhecimento 63 - é claro
que a articulagáo de cenos efeitos de seus processos materiais sobre urna pro-
blemática concreta náo estáo desenvolvidos nem se encontram explícitos em
seus discursos teóricos. Tanto na problemática teórica sobre as condigóes de
produgáo de sentido na consciencia dos homens como na problemática ambien-
tal, a articulagáo de conceitos provenientes de diferentes ciéncias para com-
preender a integragáo de efeitos destes processos materiais está motivada por
estratégias conceituais que pliem em funcionamento suas articulagóes possíveis
a partir das regularidades discursivas previamente enunciadas, das estruturas
conceituais elaboradas e onde o desejo de saber de um sujeito ideológico se
insere no campo da produgáo de conhecimentos e de sua aplicagáo em urna
estratégia de mudangas históricas.
É este sujeito ideológico que, condicionado pela potencialidade do que é
possível pensar e dizer no terreno de urna teoria e no campo da luta de classes
pelo conhecimento, entrelaga saberes, transplanta conceitos, combate dou-
trinas. Isto evita que as ciéncias estejam constituídas como monumentos
para a contemplagáo mítica ou religiosa, para o ritual dogmático das teorias
elaboradas.
O sujeito pode assim profanar o templo do saber, ressuscitar mediante a
exegese o documento arquivado para tomá-lo ciéncia viva, ciéncia política ins-
crita nas estratégias conceituais e discursivas que surgem das interpretagóes
possíveis do conhecimento a partir da oposigáo de interesses, de visóes do mun-
do, de hierarquias e fungóes sociais. Assim se produz urna contra-identificagáo
com os saberes legitimados e se geram as condigóes de "des-sujeitamento" ideo-
lógico dos homens, para induzir novos conhecimentos capazes de promover um
projeto diferente de civilizagáo, para gerar urna estratégia discursiva que produ-
za novas formas de identificagáo, novas possibilidades de significagáo, novos
estilos de vida, novos projetos de desenvolvimento.
Náo sáo os conceitos e métodos de urna ciéncia os que sáo desterrados de
seu campo de conhecimento e forgados a implantar-se em outras regióes do
saber. Sáo os sujeitos teóricos quem, imersos em processos ideológicos e movi-
dos por seus interesses disciplinares e políticos, assimilam subjetivamente um
saber, o colocam em circulagáo em diferentes estratégias discursivas e ensaiam
novos inxertos conceituais. Alguns deles sáo rejeitados pelo corpo de conheci-
mentos de urna ciéncia; outros sáo assimilados e contribuem ao seu desenvolvi-
I,EI EiI
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 103

iint_11-
mento. Neste sentido, o sujeito náo apenas aparece como suporte das estruturas
teóricas as ciencias constituídas, mas como um agente que, projetado pelo
nhe- desejo de saber, mobiliza os processos discursivos e transporta conceitos, mé-
claro todos e teorias fora do objeto de conhecimento de sua ciéncia e a outras re-
pro- gióes do saber".
s em Neste sentido, a fungáo dos sujeitos é análoga á fungáo ecológica dos inse-
es de tos que, ao coadjuvar no processo de polinizagáo, fertilizara os códigos genéti-
bien-
cos inscritos nas populagóes botánicas e mobilizam a evolugáo do ecossistema
com-
produtivo. Assim, os sujeitos servem á realizagáo do potencial produtivo de
a por
conhecimento inscrito nas estruturas conceituais das teorias científicas.
síveis
turas Na medida em que o processo de conhecimento está orientado a suas apli-
co se cagóes práticas, o desejo de saber que move os sujeitos vé-se reforgado por um
urna desejo de poder através do saber, do potencial produtivo da ciéncia através de
suas aplicagóes tecnológicas, do controle social a partir do potencial de predizer
da teoria, da capacidade para planejar e concertar agóes orientadas a certos fins.
que é
O que este processo póe também em funcionamento é a constituigáo do ser do
asses
homem através de seu saber, de sua identidade na mestria de certas habilidades,
dou-
de seu reconhecimento a partir do suporte oferecido por uma disciplina, de sua
entos
produgáo de conhecimentos dentro e contra os paradigmas estabelecidos.
orias
É este processo que gera um sujeito técnico através de uma disciplina de
aprendizagem que o incorpora a uma especialidade, que o constitui pela assimi-
nte a
lagáo de um conjunto de valores associados a sua identificagáo com um saber. É
a ins- a partir da apropriagáo subjetiva desses saberes que pode se propor uma prática
nóes interdisciplinar como o de colocar em jogo um espectro de visóes e interesses a
1111111-
partir de diferentes perspectivas disciplinares e que a problemática ambiental
agá° pode gerar um processo intersubjetivo de integragáo dos discursos que podem
ideo- pronunciar a partir de suas posigóes disciplinares diversos especialistas para
um compreender e resolver um problema comum.
rodu-
ovos Assim, enquanto a estratégia epistemológica de urna articulagáo de cien-
cias estabelece o campo de possibilidade da articulagáo de suas teorias, concei-
tos e temáticas para a construgáo de urna racionalidade ambiental, o processo
s de interdisciplinar gera o campo de integragáo dos sujeitos — das subjetividades
s do produzidas por certas práticas técnicas, científicas e políticas — num processo
irnovi- contraditório de identificagóes e confrontos ante objetivos comuns e diferencia-
te um
dos; de subjetividades que a partir de um mesmo desejo de saber dividem-se em
isaiam
suas demandas de conhecimento conforme os diferentes interesses disciplinares
nheci-
e políticos que atravessam o movimento teórico e as práticas do ambientalismo
Nolvi-
e do desenvolvimento sustentável.

1
104 ENRIQUE LEFF

Notas

1.Cf. Bernal, J. Science in History. Inglaterra, Pelikan Books, 1969. 4 vol. Leff, E. Ciencia
y tecnología en el desarrollo capitalista", op. cit., 1975. IDEM, Ciencia, técnica y sociedad,
op. cit., 1977.
2. Cf. Apostel, L. Interdisciplinariedad, op. cit. Para urna aproximagáo crítica, ver: Follari,
R. Interdisciplinariedad. Los avatares de la ideología. México, Universidad Autónoma Me-
tropolitana-Azcapotzalco, 1982.
3. Ver Cap. 1 supra e Cap. 3 infra.
4. Nesta diregáo, Foucault refere-se ao "sentido de instabilidade e á supreendente eficá-
cia do criticismo descontínuo, particular e local" diante do "efeito inibidor das teorias totali-
tárias" e dos paradigmas globalizadores. Estaríamos assim testemunhando a "insurreigáo dos
saberes subjugados" dos "conteúdos históricos que foram enterrados e disfargados numa coe-
réncia funcionalista ou numa sistematizagáo formal". FOUCAULT, M. Power/knowledge. Nova
Iorque, Pantheon Books, 1980.
5. Cf. Wilson, E. O. Sociobiology, the new synthesis, op. cit.
6. Morin, E. La méthode, la vie de la vie. Paris, Editions du Seuil, 1980.
7. Von Bertalanffy, L. Teoría general de los sistemas, op. cit.
8. Ganha sentido a observagáo de A. Lichnerowicz, apontando as limitas es do isomorfismo
na apreensáo de objetos ontológicos diferentes: "O matemático trabalha sempre com um di-
cionário quase perfeito e amiúde identifica sem escrúpulos objetos de natureza diferente guando
um (...) isomorfismo assegura-lhe que apenas estaria dizendo a mesma coisa duas vezes em
duas línguas diferentes. O isomorfismo toma o lugar da identidade. O Ser encontra-se coloca-
do entre parénteses e é precisamente esta característica nao-ontológica a que atribui ás cien-
cias exatas seu poder, sua fidelidade e sua polivaléncia (...). Podemos tecer urna matemática
de uma textura arbitrariamente fechada, mas a onda ontológica escorre necessariamente ne-
las". Lichnerowicz, A. "Matemáticas e interdisciplinaridade", in: Apostel, A. et al., op. cit., p.
147-8.
9. Morin, E. La méthode, la nature de la nature, op. cit., 1977.
10. Foucault, M. L'archéologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969. p. 21.
11. Mannheim, K. Ideology and utopia. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1936.
(reimpressáo 1972).
12. "0 discurso (...) aparece como um bem - acabado, limitado, desejável e útil - que
possui suas regras de surgimento, mas também suas condigóes de apropriagáo e de colocagáo
em prática; um bem que levanta em conseqüéncia a partir de sua existéncia (e nao só em suas
aplicagóes práticas) a questáo do poder. Um bem que é, por natureza, o objeto de urna luta e de
urna luta política" (Foucault, M. L'archéologie du savoir, op. cit., p. 158).
13. Cf. Erlich, P. The population bomb. Nova Iorque, Ballantine Books, 1968.
14. Herrera, A. O. et al. Catastrophe or new society: a Latin American model. Otawa,
IDRC, 1976.
15. Commoner, B. "Dos enfoques de la crisis ambiental", op. cit.
16. Brailovsky, A. E.; Foguelman, D. "Multinacionales y medio ambiente", in: Nexos.
México, mar. 1980.
17. Cf. WCED. Our common future. Oxford, Comiss'áo Bruntland, 1987. É necessário
analisar os efeitos ideológico-políticos do discurso do desenvolvimento sustentável em seu
LE1 EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 105

propósito de unificar os interesses de nagóes e grupos sociais frente á questáo ambiental e o


processo de apropriagáo deste conceito dentro das estratégias do neoliberalismo e do
ecologismo. Sobre esta disjuntiva, ver mi libro Ecologia, capital e cultura, Edifurb, Blumenau,
9/chi
2000. Ver também: Redclift, M. Sustainable development. Exporting the contradictions. Lon-
dad,
dres/Nova Iorque, Methuen, 1987.
18. Canguilhem, G. Idéologie et rationalité dans l'histoire des sciences de la vie. Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1977. p. 119.
Me-
19. Nestes casos, como nos de toda "especialidade bem trabalhada, bem praticada (...),
podemos abstrair regras de produgáo de conhecimentos, regras suscetíveis de urna extrapola-
gáo prudente. Neste sentido, podemos dizer mais propriamente que o método pode ser amplia-
fica-
do ao invés de generalizado. Mas náo poderia ser estendido a outros objetos da história das
)tali-
ciéncias sem urna ascese preparatória para a delimitagáo de seu novo campo de aplicagáo"
dos
(Canguilhem, G. Op. cit., p. 24).
eoe-
ova
20. Ibid., p. 110-5.
21. Cf. Barrau, J. "L'ethnobotanique au carrefour des sciences naturelles et des sciences
humaines", in: Bul. Soc. Bot. Fr., n. 118, 1971, p. 242. LEFF, E. "Ethnobotanics and
anthropology as tools for a cultural conservation strategy", in: MC NEELY, J. A.; PITT, D.
(comp.) Culture and conservation. Grá Bretanha, Billing and Sons/VVorcester, 1985. Ver tam-
bém o cap. 3 de meu livro Ecologia, capital e cultura, Op. cit.
smo
22. "É que esses alimentos náo sáo para serem comidos e náo sáo apenas materiais vege-
di-
tais ou animais consumidos para satisfazer necessidades fisiológicas; também servem para
ndo
pensar (...) sáo pretextos de símbolos, aproximagáo do imaginário e justificativas de práticas
em
sociais. Estamos aqui na interface do biológico e do social, em plena dialética do real e do
oca-
imaginário" (Barrau, J. "Essai d'écologie des méthamorphoses de l'alimentation et des
ién-
fantasmes du goút", in: Social Science Information, v. 18, n. 3, 1979. p. 421-2).
"tica
ne-
23. Canguilhem, G. La connaissance de la vie. Op. cit., 1971.
t.. p. 24. Ver cap. 4 de meu livro Ecología y Capital, México, Siglo XXI Editores, 1994.
25. "A origem (das nogóes) comanda o sentido e o sentido comanda o uso" (Canguilhem,
G. Op. cit., 1971. p. 132).
26. Ibid., p. 134.
36. 27. Leff, E. "Las disciplinas científicas y la problemática ambiental". Serie Opciones,
fascículo 1 sobre ciencia y medio ambiente. Madri, CIFCA, 1982.
que 28. Leff, E. "Marxism and the environmental question: from the critical theory of
aCáo production to an environmental rationality for sustainable development", in: Capitalism, nature,
suas socialism. v. 4, n. 1, 1993, p. 44-66. (ver cap. XIII de meu livro Ecología y Capital, op. cit.).
e de 29. Canguilhem, G. Op. cit., 1977.
30. Ver LEFF, E., "Alfred Schmidt y el fin del humanismo naturalista". In: Antropologia
y marxismo. n. 3, México, 1980. p.139-152, bem como o Cap. 3 de Ecología y Capital, op. cit.
tawa. 31. Baidrillard, J. Crítica de la economía política del signo. México, Siglo XXI, 1974.
32. Baudrillard chega inclusive a propor o esgotamento do paradigma da economia política
fundado no valor-trabalho - e nos "conceitos ideológicos" de produgáo, modo de produgáo,
uos. relagóes de produgáo, forgas produtivas - e sua substituigáo por urna teoría do intercámbio
simbólico. Cf. Baudrillard, J. The mirror of production. St. Louis, Telos Press, 1973.
iário 33. Gallopín, G. "Ecología y ambiente", in: Leff, E. Los problemas del conocimiento...,
seu op. cit.
106 ENRIQUE LEFF

34. Neste sentido, o dictum interdiciplinar, defendendo que as diferentes disciplinas náo
fazem senáo perceber urna merma realidade a partir de diferentes perspectivas, é falso.
35. Para um estudo da história da ecologia, a partir de sua emergéncia corno urna discipli-
na das relagóes entre organismos vivos e o ambiente, até a constituigáo de urna "ecologia
global", ver : Deléage, J. P. Histoire de l'ecologie. Paris, La Découverte, 1991.
36. Neste sentido, as mudangas ambientais globais demandara novas metodologias para o
estudo integrado dos processos de ordem física, biológica, económica e cultural que afetam os
processos de aquecimento global, de perda e preservagáo da biodiversidade e, em geral, das
relagóes da ordem económica mundial com as mudangas ecossistémicas globais, a transigáo
demográfica e os processos de degradagáo sócio-ambiental.
37. "Para os especialistas do enfoque de sistemas, o meio ambiente está constituído por
tudo o que náo faz parte do sistema intencional estudado e que afeta seu comportamento
(Churchman). Na medida em que o sistema dispóe de políticas referentes ao meio ambiente,
este último estreita-se; o éxito de tais políticas avaliam-se (...) pelo desaparecimento do con-
ceito de meio ambiente, que termina por ser assimilado ao sistema (...). Na verdade, a longo
prazo, o meio ambiente, assimilado como dimensáo permanente do campo de visáo do plane-
jador, está destinado a desaparecer como domínio concreto de agáo" (Sachs, I. Ecodesarrollo.
Desarrollo sin destrucción. México, El Colegio de México, 1982. p. 36, 53).
38. Leff, E. "La dimensión cultural del manejo integrado, sustentable y sostenido de los
recursos naturales", in: Leff, E.; Carabias, J. Cultura y manejo sustentable de los recursos
naturales. México, CIIH-UNAM/M.A./Porrúa, 1993.
39. Ver cap. 1, supra.
40. Leroi-Gourhan, A. L'homme et la matiére. Paris, Albin Michel, 1943. Idem. Milieu et
techniques. Paris, Albin Michel, 1945.
41. Safouan, M. "El Edipo es universal?", in: Estudios sobre Edipo. México, Siglo XXI,
1977.
42. Godelier, M. Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. Op. cit.,
1974. Meillassoux, C. Terrains et théories. Op. cit., 1977. Toledo, V. M. "Intercambio ecológico
e intercambio económico en el proceso productivo primario", op. cit., 1981.
43. Ver meu livro Ecologia, capital e cultura, op. cit.
44. Assim, o que Foucault encontra em suas descobertas arqueológicas do saber "sao
sobretudo séries de vazios e misturas, jogos diferenciais, separagóes, substituigáo, transfor-
magóes (...) conceitos que diferem pela estrutura e pelas regras de utilizagáo, que se ignoram
ou se incluem uns aos outros e que náo podem entrar na unidade de uma arquitetura lógica (...)
(assim como) possibilidades estratégicas diversas que permitem a ativizagáo de temas incom-
patíveis ou ainda, a inclusáo de um mesmo tema dentro de conjuntos diferentes" (Foucault,
M. Op. cit., 1969. p. 52).
45. Vessuri, H. "Antropología y ambiente", in: Leff, E. Los problemas del conocimiento...,
op. cit., 1986.
46. CEPAL/PNUMA. "Incorporación de la dimensión ambiental en la planificación",
Revista Interamericana de planificación, v. XVIII, n. 69, mar. 1984, p. 9-51. Ver também o
cap. V de meu livro Ecología, capital e cultura, op. cit.
47. Georgescu-Roegen, N. The enthropy law and the economic process. Harvard Univer-
sity Press, 1971. Martinez Alier, J.; Schlüpmann, K. La ecología y la economía. México,
Fondo de Cultura Económica, 1991.
JE LEN
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 107

nao
48. Vessuri, H., op. cit. Sandoval, J. M. "Materialismo cultural y materialismo histórico
en los estudios de la relación sociedad-naturaleza", in: Antropología y marxismo, n. 3. México,
li- 1980, p. 11-33.
gia 49. Cf. Gutman, P. "Economía y ambiente", in: Leff, E. Los problemas del conocimiento...,
op. cit. Naredo, J. M. La economía en evolución: historia y perspectivas de las categorías
o fundamentales de la ciencia económica. Madri, Siglo XXI, 1987.
os 50. Foucault, M. Op. cit., 1969. p. 211, 89, 82.
das 51. Esta segáo e a seguinte abordam o conceito de produtividade ecotecnológica para
igáo exemplificar a aplicagáo de nossa estratégia espistemológica na produgáo de conceitos práti-
cos interdisciplinares aplicados no aproveitamento integrado de recursos e na construgáo de
o por uma racionalidade ambiental. A elaboragáo destes conceitos foi documentada em trabalhos
ento anteriores (cf. Leff, E. "Hacia un proyecto de ecodesarrollo", in: Comercio exterior, v. XXV,
iente. n. 1, México, 1975. Leff, E., "Racionalidad ecotecnológica y manejo integrado de recursos",
con- in: Revista Interamericana de planificación, v. XVIII, n. 69, México, p. 70-85). Ver também o
longo Cap. IV de meu livro Ecologia, capital e cultura, op. cit.
lane- 52. Gallopín, G. "Tecnología y sistemas ecológicos". CIFCA, Serie Opiniones, fascículo
1 sobre' tecnologia e meio ambiente. Madri, 1983. Ver também o Cap. II de meu livro Ecolo-
gia, capital e cultura, op. cit.
e los 53. Sobre os avangos na elaboragáo destes indicadores, ver: CEPAL. Inventarios y cuentas
del patrimonio natural en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile, 1991.
54. Sicinski, A. "The concepts of `need' and `value' in the light of the systems approach",
in: Social science information, v. 17, n. 1, 1978, p. 84.
Vett el 55. Neste sentido, Barrau (1979) assinala como a "atual agronomia (...) esfumaga as
nogóes de "terroir" ("pedago de terra") e de "cru" (a colheita do pedago de terra), bem como
XXI. se erode a diversidade de formas de nossas plantas cultivadas".
56. No capítulo II de meu livro Ecologia, capital e cultura, desenvolvem-se as bases da
produtividade primária dos ecossistemas e sua importáncia numa estratégia de ecodesenvolvi-
ógico mento.
57. A construgáo do "conceito prático" de produtividade cultural pode surgir como uma
heresia teórica, ao vincular em forma adjetivada (dominada) o conceito de cultura — geral-
"sao mente utilizado para designar formagóes sociais e atividades humanas pouco caracterizáveis
sfor- em termos de uma tendéncia ao incremento da produgáo — com o de produtividade, próprio
oran] de unta racionalidade económica que, na comercializagáo e capitalizagáo dos produtos cultu-
a (...) rais das sociedades "primitivas" e das artes e ofícios modernos veio destruindo a estrutura
coni- social que dá suporte a esses valores culturais e suas práticas tradicionais. Entretanto, as
eault. práticas da gestáo ambiental geram "conceitos práticos interdisciplinares" através da transfor-
magáo e integragáo de conceitos teóricos para apreender processos sócio-ambientais comple-
nto...,
xos. Assim, o conceito de produtividade cultural permite dar tonta da forga produtiva de uma
comunidade a partir de sua percepgáo e das formas de aproveitamento produtivo de seus re-
, in:
cursos, de suas motivagóes para a produgáo e da reorganizagáo de suas atividades produtivas e
em o
de sua capacidade para gerar e assimilar novos conhecimentos a suas práticas produtivas tra-
dicionais. De forma análoga, o conceito de produtividade primária, proveniente da ciencia
ecológica, é transformado num conceito de produtividade ecológica para os fins práticos do
niver-
manejo integrado de recursos.
xico,
58. Neste sentido, a racionalidade cultural que subjaz neste nível de produtividade, náo
poderá reduzir-se em termos de forga de trabalho ou de potencial produtivo — do específico
108 ENRIQUE LEFF

conceito de racionalidade do horno economicus: de uma racionalidade técnica, energética ou


ecológica — á compreensáo e racionalizagáo da organizagáo cultural. A racionalidade produ-
tiva das sociedades "tradicionais" náo poderá ser analisada sob os princípios de racionalidade
da economia política e do modo de produgáo capitalista.
59. Como assinala Lyotard, "O vínculo social é de linguagem, mas náo está feito de uma
fibra única. É urna textura onde se entrecruzam (...) um número indeterminado de jogos de
linguagem que obedecem a regras diferentes (...). Náo há na ciéncia uma metalinguagem geral
dentro da qual todas as outras possam ser transcritas e avaliadas" (cf. Lyotard, J. F. La condition
postmoderne. Paris, Les Editions du Minuit, 1979.). Já o racionalismo crítico mostrou a inco-
mensurabilidade de conceitos cujos significados teóricos derivam do contexto teórico no qual
estáo inseridos, advertindo ainda que cada linguagem teórica determina o sentido dos termos
e enunciados de sua linguagem observacional (cf. Lakatos, I.; Musgrave, A. [eds.] La crítica y
el desarrollo del conocimiento. Barcelona/Buenos Aires/México, Ediciones Grijalbo, 1975.).
60. "As análises de G. Canguilhem (...) demonstram que a história de um conceito náo é
(...) o de sua afinagáo progressiva, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradi-
ente de abstragáo, mas a de seus diversos campos de constituigáo e validagáo, a de suas regras
sucessivas de uso, dos múltiplos meios teóricos onde continua e se acaba sua elaboragáo"
(Foucault, 1969:11). 0 próprio Canguilhem (1977: 21,27) assinala que náo devem "ser toma-
das as persisténcias de termos pelas identidades de conceitos, invocagóes de fatos de observa-
gáo análogos por parentescos de métodos e de questionamento (...), o progresso científico por
ruptura epistemológica impóe a refundagáo freqüente da história de urna disciplina que náo
pode dizer que seja exatamente a mesma, visto que sob um mesmo nome usual, perpetuado
por inércia lingüística, trata-se de um objeto diferente". Assim, "pelo fato do descobrimento
da estrutura do DNA (...) (introduzem-se) na biologia novos conceitos, seja sob os termos
conservados como organizagáo, adaptagáo, heranga, seja sob termos inéditos como mensa-
gem, programa, teleonomia" Estes critérios, válidos no campo da história das ciéncias, podem
se mostrar úteis e necessários para a análise crítica dos termos e conceitos que atravessam a
temática ambiental.
61. Cf. Lacan, J. Escritos, op. cit.
62. "Assim, os homens, no interior de urna mesma prática discursiva, falam de objetos
diferentes, tém opinióes opostas, fazem escolhas contraditórias" (Foucault, 1969: 261).
63. Ver cap. I, supra.
64. "Assim, o enunciado circula, serve, esquiva-se, permite ou impede a realizagáo de um
desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das respostas e das lutas, apresenta um
tema de apropriagáo ou de rivalidade" (Foucault, 1969: 138).
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PENSAMENTO SOCIOLÓGICO,
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ensa-
TRANSFORMAOES DO CONHECIMENTO
dem
am a

1. Introdugáo
jetos
As mudangas ambientais globais revolucionaram os métodos de pesqui-
sa e as teorias científicas para poder apreender urna realidade em vias de com-
1.1111
plexizagáo que ultrapassa a capacidade de compreensáo e explicagáo dos pa-
a um
radigmas teóricos estabelecidos. A problemática ambiental propóe a necessi-
dade de internalizar um saber ambiental emergente em todo um conjunto de
disciplinas, tanto das ciéncias naturais como sociais, para construir um conhe-
cimento capaz de captar a multicausalidade e as relagóes de interdependéncia
dos processos de ordem natural e social que determinam as mudangas so-
cioambientais, bem como para construir um saber e uma racionalidade social
orientados para os objetivos de um desenvolvimento sustentável, eqüitativo e
duradouro.
Daí veio surgindo um pensamento da complexidade e uma metodologia de
pesquisa interdisciplinar, bem como uma epistemologia capaz de fundamentar
110 ENRIQUE LEFF

as transformagóes do conhecimento induzida pela questáo ambiental. Esta es-


tratégia epistemológica parte de um enfoque prospectivo orientado á construgáo
de urna racionalidade social, aberta á diversidade, ás interdependéncias e á com-
plexidade, e oposto á racionalidade dominante, com tendencia á unidade da
ciencia e homogeneidade da realidade.
A construgáo desta racionalidade ambiental aparece como um processo
de produgáo teórica, desenvolvimento tecnológico, mudangas institucionais e
transformagáo social. Entretanto, um diagnóstico sobre os programas de forma-
gáo ambiental ao nível universitário na América Latina e Caribe e um estudo
sobre a incorporagáo da "dimensáo ambiental" nas ciéncias sociais mostraram
que as ciéncias sociais, e entre elas a sociologia, encontram-se entre as discipli-
nas mais resistentes a transformar seus paradigmas de conhecimento e a abrir
seus temas privilegiados de estudo com relagáo á problemática ambiental
(PNUMA, 1985; Leff, 1987, 1988 a). Ainda náo se constituiu urna sociologia
ambiental, entendida como uma disciplina com um campo temático, conceitos
e métodos de pesquisa próprios, capaz de abordar as relagóes de poder nas ins-
tituigóes, as organizagóes, as práticas, os interesses e os movimentos sociais
que atravessam a questáo ambiental, e que afetam as formas de percepgáo, aces-
so e usufruto dos recursos naturais, assim como a qualidade de vida e os estilos
de desenvolvimento das populagóes. Este conjunto de processos sociais deter-
minam a possibilidade de construir urna racionalidade social, de transitar para
urna economia global sustentável e de constituir formagóes económicas funda-
das nos princípios e potenciais ambientais.
Isso coloca a necessidade de abordar a relagáo entre o saber sociológico e
a problemática ambiental. Logo após analisar as orientagóes dominantes do pen-
samento sociológico, apresentam-se contribuigóes conceituais de trés teorias
que aparecem como campos férteis para compreender os processos sociais que
constituem uma racionalidade ambiental: o conceito de formagáo socioeconó-
mica em Marx, o conceito de racionalidade em Weber e o conceito de saber em
Foucault. A partir desses conceitos, desenvolverei as categorias de formal.cio
socioambiental, de racionalidade ambiental e de saber ambiental, correspon-
dendo a trés esferas que articulam as relagóes entre a organizagáo produtiva de
urna formagáo socioeconómica, as formagóes teóricas e ideológicas, a produgáo
de conhecimentos e as práticas sociais induzidas pelos princípios de racionali-
dade ambiental. O desenvolvimento deltas categorias leva-me a tratar o concei-
to de qualidade de vida e a urna reflexáo sociológica sobre o movimento am-
bientalista como temas privilegiados para a pesquisa sociológica no campo do
ambiental.
EFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 111

2. Processos sociais e a problemática ambiental


á0
In- A questáo ambiental é urna problemática de caráter eminentemente social:
da esta foi gerada e está atravessada por um conjunto de processos sociais. Entre-
tanto, as ciéncias sociais náo transformaram seus conceitos, métodos e paradig-
;so mas teóricos para abordar as relagóes entre estes processos sociais e as mudan-
se gas ambientais emergentes.
la- Esta asseveragáo, que irá sendo justificada ao longo deste capítulo, é ne-
ido cessária para deslocar o campo do ambiental, a partir das perspectivas de urna
am ecologia generalizada e das solugóes tecnológicas, para o terreno dos processos
li- de ordem social que o caracterizam e constituem. Com efeito, embora tenham
rir sido propostas as conexóes entre o meio ambiente, os estilos de desenvolvimen-
tal to e a ordem económica mundial (Sachs, 1982; WCED, 1987), muitos progra-
a mas internacionais de pesquisa sobre as mudangas ambientais globais, minimizam
os ou reduzem a especificidade dos processos sociais em suas análises. A conexáo
s- entre o social e o natural limitou-se ao propósito de internalizar normas ecológi-
ais cas e tecnológicas ás teorias e ás políticas económicas, deixando á margem a
s- análise do confito social e o terreno estratégico do político que atravessam o
os campo do ambiental.
er- Os processos de destruigáo ecológica mais devastadores, bem como a de-
a gradagáo socioambiental (perda de fertilidade dos solos, marginalizagáo social,
desnutrigáo, pobreza e miséria extrema) tém sido resultado das práticas inade-
quadas do uso do solo, que dependem de padróes tecnológicos e de um modelo
depredador de crescimento e que permitem maximizar lucros económicos no
n- curto prazo, revertendo seus custos sobre os sistemas naturais e sociais (García
as et al., 1988 a, b). Contudo, as transformagóes ambientais futuras depender á- ° da
ue inércia ou da transformagáo de um conjunto de processos sociais que determina-
6- rán as formas de apropriagáo da natureza e suas transformagóes tecnológicas atra-
m vés da participagáo social na gestáo de seus recursos ambientais (Leff, 1986 a).
"do A resolugáo dos problemas ambientais, assim corno a possibilidade de
n- incorporar condigóes ecológicas e bases de sustentabilidade aos processos eco-
de nómicos — de internalizar as externalidades ambientais na racionalidade eco-
ao nómica e os mecanismos do mercado — e para construir urna racionalidade
li- ambiental e um estilo alternativo de desenvolvimento, implica a ativagáo e obje-
el- tivagáo de um conjunto de processos sociais: a incorporagáo dos valores do
ambiente na ética individual, nos direitos humanos e na norma jurídica dos
atores económicos e sociais; a socializagáo do acesso e apropriagáo da natureza;
a democratizagáo dos processos produtivos e do poder político; as reformas do
112 ENRIQUE LEFF

Estado que lhe permitam mediar a resolugáo de conflitos de interesses em torno


da propriedade e aproveitamento dos recursos e que favoregam a gestáo partici-
pativa e descentralizada dos recursos naturais; o estabelecimento de urna legis-
lagáo ambiental eficaz que normatiza os agentes económicos, o governo e a
sociedade civil; as transformagóes institucionais que permitam urna administra-
gáo transetorial do desenvolvimento; e a reorientagáo interdisciplinar do desen-
volvimento do conhecimento e da formagáo profissional. Estes processos im-
plicam a necessidade de abrir a reflexáo e a pesquisa sociológica ao campo dos
problemas ambientais.
A construgáo de urna racionalidade ambiental é um processo político e
social que passa pelo confronto e concerto de interesses oportos, pela reorienta-
gáo de tendéncias (dinámica populacional, racionalidade do crescimento econó-
mico, padróes tecnológicos, práticas de consumo); pela ruptura de obstáculos
epistemológicos e barreiras institucionais; pela criagáo de novas formas de or-
ganizagáo produtiva, inovagáo de novos métodos de pesquisa e produgáo de
novos conceitos e conhecimentos.
O saber ambiental está vinculado com a solugáo prática de problemas
(problem-solving) e com a elaboragáo de novas políticas e estratégias de desen-
volvimento (policy-making) (Walker, 1987). Alguns autores véem a problemáti-
ca ambiental associada sobretudo ás mudangas institucionais requeridas pela
incorporagáo da dimensáo ambiental nas práticas de planejamento dos governos
(Dwivedi, 1986). Embora, num sentido mais crítico e propositivo, a questáo
ambiental orienta-se para a construgáo de uma nova racionalidade produtiva,
através de processos políticos de concerto e mobilizagáo de um conjunto de
processos sociais.
As formagóes teóricas e ideológicas, bem como as práticas do ambienta-
lismo, emergem com um sentido prospectivo, reorientando valores, instrumen-
talizando normas e estabelecendo políticas para construir urna nova racionalida-
de social. Neste sentido, o saber ambiental adquire um sentido estratégico e
prático na reconstrugáo da realidade social (Mannheim, 1936, 1940). 0 saber
ambiental vai-se configurando a partir de seu espato de externalidade e negati-
vidade, como um novo campo epistemológico no qual se desenvolvem as bases
conceituais e metodológicas para abordar uma análise integrada da realidade
complexa na qual se articulam processos de diferentes ordens de materialidade
e racionalidade (física, biológica, social, cultural). Mais ainda, o saber ambien-
tal orienta-se numa perspectiva construtivista para fundamentar, analisar e pro-
mover os processos de transigáo que permitem viabilizar uma nova racionalida-
de social, que incorpore as condigóes ecológicas e sociais de um desenvolvi-
mento eqüitativo, sustentável e duradouro.
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 113

Irno Nesta perspectiva construtivista inscreve-se o estudo da contribuigáo das


ciéncias sociais á compreensáo da questáo ambiental e se delimitam os proble-
mas emergentes da realidade propostos pelas novas temáticas á pesquisa socio-
ea lógica e á formagáo ambiental.
tra-
1
s en-
3. 0 pensamento sociológico e o saber ambiental
dos
Tem-se afirmado que as ciéncias sociais tém sido as mais resistentes a
oe incorporar a "dimensáo ambiental" dentro de seus paradigmas teóricos, seus
nta objetos de conhecimento e seus métodos de análise da realidade (Unesco/
nó- PNUMA, 1988). Entretanto, é possível identificar algumas áreas nas quais o
ulos saber ambiental foi penetrando num processo diferenciado e desigual. Tal é o
or- caso de disciplinas da antropologia, da economia e do direito, nas quais é possí-
) de vel identificar processos de "fertilizagáo" que resultaram no avango do saber
ambiental e em sua incorporagáo aos paradigmas das ciéncias sociais (Leff et al.,
as 1986/2000), bem como a emergéncia de novas disciplinas como a ecogeografia
en- ambiental (Gongalves, 2001) e a ecología política (Martínez Alier, 1995) que se
ati- colocam como verdadeiros paradigmas e saberes interdisciplinares.
pela Existem outros campos das ciéncias sociais nos quais náo se abordou ain-
nos da de forma sistemática esta questáo. Esse é o caso do pensamento sociológico,
stáo no qual é difícil definir um objeto de conhecimento ou um espato próprio de
iva, reflexáo do saber ambiental, com temáticas e métodos de pesquisa que possam
de caracterizar-se como "ambientais". Isto náo significa que náo hajam nas proble-
máticas clássicas e nas temáticas emergentes da sociologia categorias, concei-
nta- tos e métodos que oferegam aproximagóes e elementos para a análise dos pro-
nen- cessos socioambientais. Porém, o pensamento sociológico desenvolveu-se den-
[ida- tro de enfoques e problemas teóricos que náo sáo capazes de internalizar facil-
ro e mente estes processos emergentes, tanto por sua complexidade como por seu
áber caráter de novidade, e pelas inter-relagóes entre processos de ordem física, bio-
gati- lógica e social:
ases
Jade "Historicamente, a escolha das grandes dimensóes analíticas na ciéncia social
jade fez-se em grande parte sem referéncia a consideragóes ecológicas: a nocáo
den- hegeliana sobre a racionalidade encarnada pelo Estado; a visáo marxista sobre a
pro- luta de classes como 'o motor da história'; os estados `naturais' de desenvolvi-
Lida- mento de Compte; os `ótimos' de Pareto (...). Em conseqüéncia, na interface
plvi- vital homem-ambiente, a análise de vínculos entre fenómenos do ambiente na-
tural e da atividade socioeconómica humana é radicalmente incompleta. Á par-
114 ENRIQUE LEFF El

te dos consideráveis avangos da ecologia humana (...) náo há nenhum paradig- 4


ma teórico acordado (...). Como resultado direto, as metodologias de pesquisa
tendem a ser, seja ad hoc (...) ou indesejavelmente rígidas para sua aplicagáo a
fenómenos do 'mundo real' (...)" (Walker, 1987: 760).

Neste sentido, problemas emergentes como o surgimento de novos atores


da sociedade, a cultura política da democracia e da igualdade social, a legitimi- c
dade do Estado e de suas instáncias partidistas e corporativas de representagáo,
bem como os novos direitos ambientais e as ordenagóes jurídicas para a resolu-
2
gáo pacífica dos conflitos ambientais, e os processos de conscientizagáo e mobi-
lizagáo social a que conduzem os novos valores da cultura ecológica, parecem
ultrapassar os paradigmas normais do pensamento sociológico. A rigidez e o
apriorismo da ciéncia social impedem vislumbrar os problemas ambientais e os
processos de mudanga social que estáo em germe na ética e nos objetivos do
movimento ambientalista, obstaculizando urna praxeologia que oriente o movi-
mento ambiental para a construgáo de urna nova racionalidade social.'
Diante destes obstáculos e limitagóes do pensamento sociológico, é neces-
sário desenvolver novas aproximagóes que permitam analisar os processos so-
ciais emergentes vinculados á problemática ambiental, ás mudangas globais e á
gestáo social dos recursos naturais. A sociologia ambiental apresenta-se como
um campo em gestagáo que apenas será constituído através de novos conceitos
teóricos e métodos de pesquisa.
A seguir demarcarei alguns conceitos da teoria social que se apresentam
como campos férteis para desenvolver um saber sociológico ambiental, bem
como para elaborar novos conceitos e enfoques sociológicos para pesquisar os
processos socioambientais emergentes. Será impossível neste espato fazer urna
revisáo exaustiva das referéncias do pensamento sociológico á problemática
ambiental e ás relagóes sociedade-natureza. Meu propósito é identificar e
retrabalhar alguns conceitos e aproximagóes privilegiados, constituintes das bases
de urna teoria sociológica, que integrem os processos sociais participantes na
compreensáo e resolugáo da problemática ambiental. Náo se trata, assim, de
destilar os elementos "ambientais" dissolvidos no pensamento sociológico, nem
de sistematizar os estudos sociológicos afins á temática ambiental, mas de de-
marcar campos da sociologia que se abrem á constituigáo de um saber e de urna
política ambientais. Entre eles cabe destacar os seguintes:
a) Marx e o conceito de formagáo económica e social;
b) Weber e o conceito de racionalidade;
c) Foucault e o conceito de saber.
LEPE EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 115

rdig 4. Marx e o concedo de formnáo económica e social


pisa
áo a
Os problemas emergentes do mundo moderno caracterizam-se por urna
crescente complexidade, demandando para seu estudo novos instrumentos teó-
ores ricos e metodológicos para analisar processos de natureza diversa que incidem
imi- em sua estruturagáo, em sua dinámica de transformagáo. A questáo ambiental
propóe assim a necessidade de um pensamento holístico e sistémico, capaz de
olu- perceber as inter-relagóes entre os diferentes processos que incidem e caracteri-
obi- zam seu campo problemático. Esta demanda estimulou o desenvolvimento de
;Tm teorias para encontrar as homologias comuns de diferentes lógicas, para articu-
eo lar diversos saberes em métodos interdisciplinares de pesquisa para a análise de
e os sistemas socioambientais complexos (von Bertalanffy, 1976; Morin, 1977, 1980;
do García, 1986, 1994).
svi- Enquanto os problemas práticos do mundo atual exigem um pensamento
complexo e integrativo, o desenvolvimento do pensamento científico e filosófi-
es- co moderno tem estado marcado por urna tendéncia pela busca de uma síntese e
so- urna unidade conceitual, mais do que pela análise da articulagáo destes proces-
eá sos a partir da própria especificidade de sua organizagáo material e teórica.
mo Dentro densa tendéncia geral do pensamento positivista, o pensamento
tos marxista, o materialismo histórico e dialético, abriu um campo para o estudo
dos processos históricos e económicos e para a análise das estruturas e dos
am processos que integram o todo social, com urna visáo mais abrangente de suas
em diferentes instáncias e processos. A teoria marxista abre-se inclusive a uma per-
K os cepgáo das conexóes entre sociedade e natureza a partir da centralidade (da
¡lita
determinagáo em última instancia) da produgáo material e dos processos econó-
pica micos (Leff, 1993a).
'Ir e A forma mais acabada do materialismo histórico como ciéncia da história
ises é a caracterizagáo do modo de produgáo capitalista. Este encerra o conhecimen-
na to da estrutura produtiva fundamental que determina a racionalidade do proces-
de so económico a partir da Revolugáo Industrial. Apesar de seus efeitos alcanga-
tem rem diferentes esferas da vida social e os seus impactos sobre a destruigáo da
de- natureza serem induzidos pela lógica do lucro, o conhecimento deste processo
tina económico náo explica as condigóes ecológicas dé constituigáo e reprodugáo do
modo de produgáo, nem suas relagóes "superestruturais" através das representa-
góes ideológicas e as normas sociais de significagáo, o acesso sancionado e os
processos de apropriagáo da natureza. Estas relagóes dos processos ecológicos
com a racionalidade económica váo além do campo de explicagáo da estrutura e
dinámica do modo de produgáo capitalista.
116 ENRIQUE LEFF

Para "completar" este conhecimento das estruturas económicas e suas re-


lagóes com as "superestruturas", propós-se dentro do marxismo um projeto de
articulagáo de diferentes modos de produgáo. Assim, o marxismo avangou pela
construgáo de um conceito de formavcio económica e social (FES), com o pro-
pósito de compreender a riqueza, variedade e autonomia das diferentes práticas
superestruturais e suas interdeterminagóes com diferentes modos de produgáo
(MP). Entretanto, a aplicagáo prática da categoria de FES náo se limita a "ajus-
tar" o conceito de MP especificando-o na realidade e mostrando suas variedades
históricas, geográficas e regionais, ou reduzindo-a a urna combinagáo de modos
de produgáo (Dhoquois, 1971).
Tratar-se-ia é de poder especificar e integrar os diferentes processos supe-
restruturais (sistemas jurídicos, científicos, educativos; formagóes teóricas e
ideológicas; estruturas institucionais; organizagáo do Estado e estruturas de poder;
organizagóes e formagóes culturais etc.) que dáo sua organicidade ao processo
histórico e social em seu conjunto, sem perder a centralidade e determinagáo
fundamental do processo material de produgáo. Porém, a própria categoria de
FES enfrentou dificuldades em sua definigáo. Como assinala Herzog (1971):

"Náo me é possível definir precisamente o conceito de formagáo social, pelo


qual se designa freqüentemente um conjunto de relagóes que dáo lugar a urna
superestrutura específica. Náo pode ser definida pela unidade da superestrutura
(em vista da luta de classes, a superestrutura é heterogénea), nem pela existen-
cia de um aparelho de Estado particular. O conceito deve refletir um conjunto
de formas específicas, compreendidas as socioeconómicas, que conhecem uma
relativa autonomia de reprodugáo e movimento".

A categoria de FES náo só foi aplicada para completar o estudo do "todo


social" na sociedade capitalista moderna, mas também para o estudo das socie-
dades tradicionais ou "primitivas", utilizando os fundamentos do estruturalis-
mo sob o predomínio da "determinagáo em última instáncia do económico"
(Althusser), como garante o materialismo histórico. Neste sentido, para Godelier
(1974, 1976), esta problemática se desloca para a busca, em cada caso histórico,
em cada modo de produgáo, da estrutura que adota a fungáo dominante nas
relagóes de produgáo. Desta maneira postula que nas sociedades "primitivas",
as relagóes de parentesco, a religiáo e as formagóes ideológicas ou imaginárias
funcionam como infra-estrutura, isto é, integram as relagóes sociais de produ-
gáo e a organizagáo de suas forgas produtivas.
O propósito de integrar as diferentes instáncias que conformara o todo
social e seus processos de reprodugáo/transformagáo gerou um problema teóri-
LEFf- EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 117

re- co e metodológico ainda náo resolvido pelo marxismo: o relativo á articulagáo


de dos processos naturais com as estruturas sociais (produtivas, ideológicas, jurídi-
pela cas, políticas) na caracterizagáo dos modos de produgáo e as formal 6- es econó-
5ro- mico-sociais atuais. A estrutura e dinámica de todo MP ou FES se estabelecem
Leas numa articulagáo específica entre certas retal 6- es sociais de produgáo e o desen-
Cáo volvimento das forgas produtivas. Todo MP e toda FES estabelecem conexóes
jus- com a natureza através dos objetos e meios "naturais" de trabalho dos processos
des produtivos que daí se desenvolvem. Contudo, existe urna dificuldade náo resol-
dos vida para compreender as determinagóes do meio na estruturagáo das relagóes
sociais e técnicas de produgáo e para incorporar os processos ecológicos nos
pe- processos produtivos globais e no desenvolvimento das forgas produtivas da
se sociedade.
A relagáo entre sociedade e natureza foi abordada no estudo das socieda-
jsso des agrárias e "primitivas", nas quais prevalece urna racionalidade que tende á
conservagáo da cultura e do equilíbrio ecológico com o meio; isso determina a
de divisáo social e familiar do trabalho e o intercámbio mercantil simples de exce-
dentes com o exterior (Meillassoux, 1977). Para o estudo das sociedades tradi-
cionais atuais aplicou-se um enfoque ecológico e energético para caracterizar e
lelo avahar a racionalidade de suas práticas produtivas (Rappaport, 1971). Mais ain-
ima
era
da, desenvolveram-se esforgos teóricos e metodológicos para caracterizar mo-
U- dos de produgáo vigentes nos meios rurais atuais (um modo de produgáo cam-
nto ponés), para articular as relagóes de propriedade e posse da terra, as práticas de
ana produgáo e apropriagáo do produto e as práticas culturais particulares de cada
formagáo social que permitem um certo reconhecimento e valorizagáo do meio
(Toledo, 1980). Será necessário identificar as vias pelas quais estes esforgos
do possam desembocar em caracterizagóes operativas para o estudo de casos atuais
ie- e no desenvolvimento de metodologias para a gestáo ambiental, delimitando
unidades ambientais de produgáo e manejo sustentável dos recursos naturais,
que integrem os diversos processos naturais e sociais que conformam sua estru-
ier tura e determinam seu funcionamento produtivo.
Fossaert (1977) construiu uma tipología das FES com base em na "relagáo
ras entre a sociedade e a natureza" ou a "transformagáo da matéria natural que a
apropria ás necessidades humanas". Assim, as referéncias aos processos natu-
Las rais tornam-se manifestas sobretudo nos modos de produgáo "mais antigos",
Lu- vinculados á terra e á produgáo de valores de uso. Nos modos de produgáo
"mais evoluídos", o poder da ciéncia, como controle sobre a natureza, pareceria
do emancipar a produgáo dos processos naturais diretos. Fossaert reconhece a ne-
ri- cessidade de articular as estruturas económicas com as naturais para caracteri-
118 ENRIQUE LEFF

zar a maneira mais completa os processos produtivos, mas deixa aos geógrafos
a resolugáo das questóes náo estritamente económicas, limitando assim a neces-
sária integragáo interdisciplinar no estudo das formagóes económicas e sociais:

"os MP que compóem urna FE manifestam-se num ámbito natural, dadas as


capacidades de ocupagáo e de adaptagáo que lhe sao próprias. O estudo dos
processos económicos deveria prestar urna atengáo igual aos dos termos do pro-
blema (...) e a suas interagóes: o aspecto natural e as capacidades próprias dos
MP. Por simplificagáo, restringir-me-ei ao segundo termo (...) deixando aos
geógrafos o cuidado de elaborar mais precisamente urna teoria dos processos
económicos (ou políticos, ou ideológicos) que desempenham um papel impor-
tante em sua disciplina" (Fossaert, 1977: 351).

Todavia, o que se propóe hoje em dia é a definigáo de formagóes económi-


co-sociais como formagóes socioprodutivas nas quais se articulara os processos
ecológicos, os valores culturais, as mudangas técnicas, o saber tradicional e a
organizagáo produtiva, na conformagáo de novas relagóes socioambientais e
forgas ecotecnológicas de produgáo, orientadas á maximizagáo de uma produ-
gáo sustentável de valores de uso e valores de troca, bem como a articulagáo
destas economias autogestionárias e de auto-subsisténcia, com urna economia
global de mercado (Leff, 2000b).
A partir de outras aproximagóes do marxismo, construiu-se a categoria de
trabalho, como a condigáo necessária e geral que estabelece a relagáo entre so-
ciedade e natureza; daí se desprende urna metáfora do intercambio ecológico
aplicado aos intercambios económicos e á produgáo de valor. Alfred Schmidt
(1976) afirma assim que "com o conceito de stoffwessel, Marx descreve o pro-
cesso social segundo o modelo de um fenómeno natural". Seguindo este argu-
mento, o processo de formagáo de valor e de produgáo de mais-valia se reduzi-
ria ao intercambio de matéria que estabelecem os processos de trabalho com a
natureza na produgáo de valores de uso.
A caracterizagáo de uma FES deve servir náo só como urna categoria clas-
sificatória, mas como um processo de elaboragáo teórica que permita articular a
dinámica de urna organizagáo social com as estruturas e fungóes dos processos
naturais que lhe subjazem como base natural e suporte material de seus proces-
sos produtivos, incorporando suas condigóes restritivas e seu potencial de oferta
de "valores de uso naturais" dentro das forgas produtivas e das relagóes técni-
cas, culturais e sociais de produgáo que conformam urna FES. Isso deverá levar
a elaborar categorias operativas que permitam analisar a inscrigáo de diferentes
estratégias ambientais de produgáo e gestáo dos recursos dentro de estruturas
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 119
LEFF

afos
económicas, políticas e sociais determinadas e de estilos alternativos de desen-
ces- volvimento.
iais:

s as
5. Tipologias de atores sociais e racionalidades produtivas: para um conceito de
dos formaláo económico-socioambiental
ro-
dos Os esforgos de complexizagáo da análise estrutural a partir da categoria de
aos FES abrem-se para a construgáo de urna categoria operativa para a pesquisa e
sos gestáo ambiental, que permita integrar os diversos processos que conformam
or urna unidade ambiental de ordenamento produtivo e sustentável dos recursos ou
dos processos de reprodugáo/transformagáo social, num espato geográfico e
económico delimitado. O conceito de formagáo económico-socioambiental
i- (FESA) articula os processos ecológicos, tecnológicos e culturais que operam
sos ao nível local ou regional, com os aparelhos do Estado, os regimes políticos e os
ea processos económicos que operam ao nível nacional, e com a ordem económica
se mundial que gera os padróes de valorizagáo e uso dos recursos e que determina
u- os processos de transformagáo socioambiental.
ao A necessidade de elaborar categorias mais operativas para especificar es-
la tas formagóes ambientais e para compreender a racionalidade do uso dos recur-
sos naturais, conduziu á elaboragáo de tipologias de produtores rurais. Estas
de permitem caracterizar suas relagóes com o meio através das formas de proprie-
so- dade da terra, das formas sancionadas de acesso e uso dos recursos, das técnicas
/ico de produgáo e das formas de apropriagáo do ambiente (Gutman, 1985). Deste
bidt modo, busca-se encontrar na heterogeneidade dos atores rurais, certas regulari-
oro- dades na racionalidade dos processos produtivos e construir urna metodología
gu- para orientar a pesquisa e promover novas estratégias de manejo sustentável dos
recursos. Busca-se assim um método prático e a elaboragáo de categorias con-
ha a cretas de análises dos processos socioambientais que váo além de
conceitualizagóes demasiadamente abstratas para sua contrastagáo no terreno e
las-
de tipologias empíricas carentes de uma organizagáo conceitual.
ir a Esta tipologia apresenta a seguinte classificagáo dos produtores rurais,
tsos privilegiando sua relagáo com o capital, a propriedade da terra e sua vinculagáo
les- com o ambiente rural:
!rta • a propriedade especulativa;
• a grande empresa extra-rural estrangeira;
var
• a grande empresa extra-rural nacional;
ttes
Iras • a grande exploragáo de base rural;

120 ENRIQUE LEFF

• a empresa rural;
• pequen produtor náo-camponés;
• produtor camponés;
• produtor itinerante.

Gutman propóe desagregar estas tipologias utilizando nove critérios de


classificagáo, em fungáo de sua vinculagáo com a terra, a forga de trabalho
extra-familiar, os mercados de destino, o tamanho dos terrenos, a intensidade do
uso do solo e dos recursos, as tecnologias utilizadas, a disponibilidade de capi-
tal e o tipo de produto. Sugere-se que estes critérios "resultam apropriados para
delimitar grupos e classes sociais entre os produtores rurais da América Latina,
explorar diferentes características de cada grupo e colocar em relagáo estas tipo-
logias com os problemas ambientais que gera a ocupagáo e exploragáo do meio
rural, a fim de reconhecer comportamentos e causalidades diferentes de acordo
ao tipo de produtor envolvido" (Gutman, 1985: 23).
Dentro da perspectiva de uma gestáo ambiental dos recursos naturais, esta
tipologia dos diferentes produtores rurais é útil para caracterizar sua racionali-
dade produtiva, estabelecendo suas relagóes com os meios de produgáo, os re-
cursos naturais e os produtos, articulando os processos de produgáo e de distri-
buigáo com os processos culturais, o contexto político e as condigóes económi-
cas e ecossistémicas de urna regiáo determinada. Estas trazem elementos para o
estudo das relagóes sociedade/natureza em espagos geográficos e culturais de-
terminados, bem corno para a delimitagáo de "unidades ambientais" e avaliagáo
de seu potencial ambiental, 2 no intuito de dar andamento a projetos de manejo
de recursos ao nível regional e local. Isto propóe a necessidade de elaborar
esquemas de análise capazes de articular estas racionalidades com os processos
naturais, sociais, culturais e tecnológicos que constituem as bases e potenciais
dos processos produtivos, numa perspectiva dinámica e diacrónica, que trans-
cende o estatismo das classificagóes dos modos de produgáo e das tipologias
dos atores sociais.
Isso é necessário sobretudo na perspectiva da construgáo de urna raciona-
lidade ambiental, que náo só assegure condigóes de sustentabilidade ecológica,
mas que gere um potencial ambiental de desenvolvimento a partir dos princí-
pios materiais de urna produtividade ecotecnológica, fundada na articulagáo dos
níveis de produtividade cultural, ecológica e tecnológica que gera urna forma-
gáo socioambiental. Esta aproximagáo metodológica e conceitual deverá possi-
bilitar a definigáo de formagóes económico-socioambientais (FESA), como
unidades produtivas nas quais se articulam as diferentes relagóes de produgáo
.EFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 121

estabelecidas pelas tipologias dos produtores com novas forgas produtivas, que
emergem de um processo de construgáo social do potencial ambiental e da pro-
dutividade ecotecnológica para o desenvolvimento sustentável (Leff, 2000b).
A constituigáo do conceito de FESA e o funcionamento de unidades de
produgáo ambiental deveráo incorporar-se aos programas de pesquisa das uni-
de versidades para experimentá-las em diferentes estudos de caso e em programas
ho de pesquisa participativa, na colocagáo em prática de projetos de gestáo am-
do biental e manejo sustentável de recursos naturais.
pi-
ara
na, 6. Weber e o conceito de racionalidade

Urna racionalidade social define-se como o sistema de regras de pensa-


.do mento e comportamento dos atores sociais, que se estabelecem dentro de estru-
turas económicas, políticas e ideológicas determinadas, legitimando um con-
sta
junto de agóes e conferindo um sentido á organizagáo da sociedade em seu
tli-
conjunto. Estas regras e estruturas orientam um conjunto de práticas e proces-
re-
sos sociais para certos fins, através de meios socialmente construídos, refletin-
[ri-
do-se em suas normas morais, em suas crengas, em seus arranjos institucionais
ni-
e em seus padróes de produgáo.
ao Segundo Aron (1967), é possível distinguir quatro tipos de aeóes- racio-
Je- nais no pensamento weberiano:
a) agáo racional com respeito a um fim,
ejo b) agáo racional com respeito a um valor,
rar
c) agáo afetiva ou emocional,
ios
ais
d) agáo tradicional, marcada por hábitos, costumes e crengas que obede-
b-
cem práticas enraizados em valores culturais.
ias
A partir da perspectiva das formas de racionalidade ás quais dáo lugar
estas agóes, Weber define os seguintes tipos de racionalidade — teórico-formal,
a- instrumental e substantiva — que operam sobre as esferas institucionais da eco-
a, nomia, do direito e da religiáo (Gil Villegas, 1984; Zabludowsky, 1984).
í-
A racionalidade formal e teóricapermite o controle consciente da realida-
s de através da constituigáo de conceitos cada vez mais precisos e abstratos, que
a- podem chegar a traduzir-se em cosmovisóes do mundo que regem os modos de
produgáo e de vida. Estas concepgóes gerais se refletem na esfera jurídica nas
o regras processuais abstratas do direito; na esfera económica se traduzem em
o teorias sobre os processos produtivos e em princípios do cálculo económico,
122 ENRIQUE LEFF

que determinam as formas sociais de apropriagáo da natureza, de exploragáo


dos recursos e degradagáo do ambiente.
A racionalidade instrumental ou zweckrationalitdt implica a consecugáo
metódica de determinado fim prático através de um cálculo preciso de meios
eficazes. Na esfera económica, traduz-se na produgáo e uso de técnicas eficien-
tes de produgáo e em formas eficazes de controle e racionalizagáo do comporta-
mento social para alcangar cenos fins (económicos, políticos); na esfera do di-
reito, reflete-se em ordenagóes legais que normatizam a conduta dos agentes
sociais.
A racionalidade substantiva ordena a agáo social em padróes baseados em
postulados de valor; estes variam em compreensividade, conteúdo e consisten-
cia interna e sáo irredutíveis a um esquema de relagóes entre fins e meios efica-
zes. A racionalidade substantiva propóe o pluralismo cultural, a relatividade
axiológica e o confito social frente a valores e interesses diversos.
O conceito de racionalidade em Weber abre importantes perspectivas á
análise da problemática ambiental, náo por sua referencia direta á relagáo entre
processos sociais e naturais, mas porque permite pensar de maneira integrada os
diferentes processos sociais que dáo coeréncia e eficácia aos princípios mate-
riais e aos valores culturais que organizam uma formagáo social ambientalmen-
te sustentável. Estes articulam-se a processos discursivos, ideológicos, teóricos,
técnicos e institucionais, que orientam e legitimam o comportamento social
frente á natureza, bem como as agóes que se projetam para a construgáo de urna
racionalidade ambiental e a colocagáo em prática de um processo de gestáo
participativa da sociedade sobre seus recursos produtivos, orientada aos fins de
um desenvolvimento sustentável.
Na análise da conduta humana, Weber acentua o conceito da significagáo
vivida ou de sentido subjetivo, diferentemente de Pareto que os descarta como
desvios ou resíduos da conduta lógica ideal. Weber abre assim a possibilidade
de incorporar ao estudo da racionalidade social urna multiplicidade de motiva-
góes e foros sociais de mudano para analisar a transigáo para urna sociedade
construída sobre os valores do ambientalismo. Enquanto Pareto busca o cons-
tante, Weber trata de apreender os sistemas sociais e intelectuais dentro de suas
características singulares. Neste sentido, o pensamento weberiano abre-se á aná-
lise da diversidade cultural que caracteriza toda racionalidade ambiental, aos
sentidos subjetivos que definem a qualidade de vida e ás motivagóes dos atores
sociais do ambientalismo.
Com o conceito de racionalidade substantiva, Weber rejeita a validade de
urna hierarquia universal de fins, contrapondo a diversidade de valores e estabe-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 123
JE I ro
lecendo a incomensurabilidade de fins e meios entre diferentes racionalidades.
rnáo
Para Weber, "a defesa do pluralismo cultural baseia-se num pluralismo axiológico
primigénio, onde cada valor representa urna forma especial táo válida corno
1.100
qualquer outra" (Gil Villegas, 1984: 46). Esta posigáo é afim com os princípios
eios de pluralidade política e diversidade cultural do ambientalismo.
O conceito de racionalidade, como um sistema de valores, normas, agóes e
lona-
relagóes de meios e fins, permite analisar a coeréncia de um conjunto de proces-
lo cli-
sos sociais que se abrem á construg'áo de urna teoria da produgáo e organizagáo
entes
social, fundada nos princípios do ecodesenvolvimento, da gestáo ambiental e do
desenvolvimento sustentável. Esta teoria em construgáo encontra-se sustentada
s em num conjunto de proposigóes náo formalizadas e axiomatizadas. O conceito de
tén- racionalidade ambiental permitiria sistematizar os princípios materiais e axioló-
fica- gicos do discurso ambientalista, organizando desta maneira a constelagáo de
dade argumentos que sustentam o saber ambiental, e permitiria também analisar a
consisténcia e eficácia de um conjunto de agóes para o éxito de seus objetivos.
as á O pensamento ambiental elaborou um conjunto de princípios morais e
ntre conceituais que sustentam urna teoria alternativa do desenvolvimento. Embora
a os estes náo constituam um paradigma acabado, fundado num conhecimento posi-
ate- tivo e formal, se conformou urna percepgáo holística e integradora do mundo
en- que reincorpora os valores da natureza e da democracia participativa em novos
cos, esquemas de organizagáo social. Esta teoria está legitimando um conjunto de
cial valores e direitos que normatizam o comportamento social, mobilizando pro-
uma cessos materiais e agóes sociais para gerar padróes alternativos de produgáo,
stáo bem como novos estilos de consumo e de vida. A implementagáo dos princípios
s de do ambientalismo exigem a elaboragáo de instrumentos eficazes para a gestáo
ambiental. Assim, foram-se elaborando ordenagóes legais e inovagóes técnicas
para o controle da poluigáo e da avaliagáo de impacto ambiental que normati-
orno zam as agóes sociais e os processos produtivos; ainda, propón-se a necessidade
idade de elaborar contas do património dos recursos naturais e culturais, bem como
)ti\ a- indicadores capazes de incorporar as externalidades ambientais e os processos
.clade
ecológicos aos instrumentos do cálculo económico e de avahar práticas alterna-
ons-
tivas de uso produtivo dos recursos.
suas Os princípios de racionalidade económica e tecnológica teráo assim de ser
aná- redefinidos e normatizados pelas condigóes ecológicas e políticas do desenvol-
aos vimento e pelos princípios de diversidade cultural e de eqüidade social do am-
ores bientalismo. Assim como a racionalidade capitalista está dominada por urna
racionalidade formal e instrumental, a racionalidade ambiental estará fundada
em urna racionalidade teórica e substantiva, que inclui os valores da diversidade
_e de
étnica e cultural e a prevaléncia do qualitativo sobre o quantitativo. Estes valo-
tabe-
124 ENRIQUE LEFF

res articulara-se com novos princípios materiais e potenciais produtivos para


sustentar um desenvolvimento alternativo sobre bases de produtividade, e náo
só de urna confrontagáo dentre valores humanitários e eficiéncia produtiva (Leff,
1990). Isso implica a necessidade de elaborar os instrumentos de avaliagáo e
execugáo desta nova racionalidade ambiental, e dos meios que assegurem a efi-
cácia das estratégias políticas, das transformagóes produtivas e das agóes so-
ciais para alcancar seus objetivos.
A constituigáo de urna racionalidade social fundada nos princípios da
gestáo ambiental e do desenvolvimento sustentável passa por processos de
desconstrugáo da racionalidade económica dominante, bem como de transfor-
magáo das instituigóes e dos aparelhos ideológicos que a sustentam e legiti-
mara. Desta forma, propós-se a necessidade de elaborar urna economia ecológi-
ca; de promover a administragáo transsetorial do Estado e a gestáo participativa
da sociedade; de desenvolver um saber ambiental interdisciplinar, e de incorpo-
rar normas ambientais ao comportamento dos agentes económicos e ás condu-
tas individuais.

7. A construláo do conceito de racionalidade ambiental

O discurso ambientalista ainda em suas formas menos radicais — orienta-


das a refuncionalizar a racionalidade económica dominante incorporando a ló-
gica dos processos naturais dentro dos mecanismos do mercado — aponta para
um conjunto de mudangas institucionais e sociais necessárias para conter seus
efeitos ecodestrutivos e assegurar um desenvolvimento sustentável.
No entanto, a problemática ambiental questiona muito mais a fundo a ra-
cionalidade da civilizagáo moderna. A sociedade capitalista gerou um crescente
processo de racionalizagáo formal e instrumental que moldou todos os 'ámbitos
da organizagáo burocrática, os métodos científicos, os padróes tecnológicos, os
diversos órgáos do corpo social e os aparelhos jurídicos e ideológicos do Esta-
do. A questáo ambiental náo só propóe a necessidade de introduzir reformas no
Estado, de incorporar normas ao comportamento económico, de legitimar no-
vos valores éticos e procedimentos legais e de produzir técnicas para controlar
os efeitos poluidores e dissolver as externalidades sociais e ecológicas geradas
pela racionalidade do capital; a problemática ambiental questiona os beneficios
e as possibilidades de manter urna racionalidade social fundada no cálculo eco-
nómico, na formalizagáo, controle e uniformizagáo dos comportamentos so-
ciais e na eficiéncia de seus meios tecnológicos, que induziram um processo
global de degradagáo socioambiental, socavando as bases de sustentabilidade
EFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 125

era do processo económico e minando os princípios de eqüidade social e dignidade


nao humana. Num sentido propositivo, a questáo ambiental abre assim novas pers-
eff. pectivas ao desenvolvimento, descobrindo novos potenciais ecológicos, tecno-
oe lógicos e sociais, e propondo a transformagáo dos sistemas de produgáo, de
efi- valores e de conhecimento da sociedade, para construir urna racionalidade pro-
so- dutiva alternativa.
A partir da perspectiva dos fins de um manejo integrado e sustentável dos
da recursos naturais, as contradigóes entre a lógica do capital e os processos ecoló-
de gicos náo se apresenta como urna simples oposigáo de duas lógicas abstratas
for- contrapostas; sua solugáo náo consiste em subsumir o comportamento econó-
iti- mico na lógica dos sistemas vivos ou em internalizar esta lógica como um siste-
ígi- ma de normas e condigóes ecológicas, na dinámica do capital (Passet, 1979). As
Lis/a contradigóes entre a racionalidade ambiental e a racionalidade capitalista é urna
po- confrontagáo de interesses opostos arraigados em estruturas institucionais, pa-
do- radigmas de conhecimento, e processos de legitimagáo que enfrentara diferen-
tes agentes, classes e grupos sociais. Por isso, as agóes e políticas ambientais
náo podem circunscrever-se nos princípios de urna racionalidade ecológica pois,
embora a evolugáo biológica seja um processo finalizado (teleonomia), faltam-
lhe seus órgáos de legitimagáo. A "lógica" da unidade económica camponesa e
o "estilo" étnico de urna cultura remetem a racionalidades sociais constituídas
ita- como sistemas complexos de ideologias-comportamentos-agóes-práticas, que
I.
16- sáo irredutíveis a urna lógica comum e unificadora.
ara
eus
Urna racionalidade ambiental náo é a expressáo de urna lógica, mas o
II
efeito de um conjunto de práticas sociais e culturais diversas e heterogéneas,
que dáo sentido e organizam os processos sociais através de certas regras, meios
m- e fins socialmente construídos, que ultrapassam as leis derivadas da estrutura de
ote
um modo de produgáo. Por isso, o propósito de resolver as contradigóes entre a
os
lógica do capital, a dinámica dos processos ecossistémicos e as leis biológicas,
os
ta-
deve se prevenir contra urna fácil analogia entre a organizagáo dos sistemas
o
sociais e os sistemas biológicos. Como assinala acertadamente Canguilhem:
o-
"A regulagáo social tende á regulagáo orgánica e a imita, sem por isso deixar de
ar
estar composta mecanicamente. Para poder identificar a composigáo social com
as o organismo social, no sentido próprio deste termo, seria necessário poder falar
os das necessidades e das normas de vida de um organismo sem resíduo de ambi-
o- güidade (...). Porém, basta que um indivíduo se interrogue numa sociedade qual-
o- quer acerca das necessidades e das normas desta sociedade e as impugne, sinal
so de que estas necessidades e essas normas náo sáo as de toda a sociedade, para
e que se capte até que ponto a norma social náo é interior, até que ponto a socie-
126 ENRIQUE LEFF

dade, sede de dissidéncias contidas ou de antagonismos latentes, está longe de


propor-se como um todo. Se o indivíduo se questiona sobre a finalidade da
sociedade, por acaso náo é esse o sinal de que a sociedade é um conjunto mais
unificado de meios, carentes precisamente de um fim com o qual se identificaria
a atividade coletiva permitida pela estrutura?" (Canguilhem, 1971: 202-3).

Para além da ecologizagáo dos processos sociais, a resolugáo da proble-


mática ambiental e a construgáo de uma nova racionalidade produtiva propóem
a intervengáo de um conjunto de processos sociais: a formag á- o de urna cons-
ciéncia ecológica ou ambiental, a transformagáo democrática do Estado que
permita e apóie a participagáo direta da sociedade e das comunidades na auto-
gestáo e co-gestáo de seu património de recursos, a reorganizagáo transsetorial
da administragáo pública e a reelaboragáo interdisciplinar do saber. A gestáo
participativa e democrática dos recursos ambientais vai além da incorporagáo
dos critérios de racionalidade ecológica dentro dos instrumentos da racionalida-
de económica (Carrizosa, 1985), implicando a internalizagáo densas racionali-
dades "objetivas" na racionalidade dos atores sociais que orientam o movimen-
to ambientalista e as práticas da gestáo ambiental.
A racionalidade ambiental náo é a expressáo de uma lógica (do mercado,
da natureza) ou de urna lei (do valor, do equilibrio ecológico); é a resultante de
um conjunto de normas, interesses, valores, significagóes e agóes que náo se
dáo fora das leis da natureza e da sociedade, mas que náo as imitam simples-
mente. Trata-se de uma racionalidade conformada por processos sociais que
ultrapassam suas atuais estruturas.
Assim, a dialética teórica entre lógicas opostas se traduz numa dialética
social que induz transformagóes do conhecimento e das bases materiais dos
processos produtivos. A colocagáo dos princípios da gestáo ambiental ou a pos-
sível transigáo de urna racionalidade capitalista para urna racionalidade ambien-
tal, dá-se através de uma série de processos políticos, da confrontagáo de inte-
resses oportos e o concerto de objetivos comuns de diversos setores sociais que
incidem em todas as instáncias dos aparelhos do Estado (Althusser, 1970). Es-
tes configuram o campo conflitivo da questáo ambiental, que prevalece apelar
do discurso ambiental que tende a dissolvé-los num consenso mundial em torno
aos propósitos da "mudanga global", de "urna só terra" e de um "futuro co-
mum" da humanidade (WCED, 1987).
O saber ambiental emerge assim como urna consciéncia crítica e avanga
com um propósito estratégico, transformando os conceitos e métodos de urna
constelagáo de disciplinas, e construindo novos instrumentos para implementar
projetos e programas de gestáo ambiental. Embora o saber ambiental surja trans-
E LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 127

e de formando os conteúdos e orientagóes teóricas de um conjunto de disciplinas,


e da orienta-se, por sua vez, com um fim prático para a resolugáo de problemas con-
mais cretos e para a implementagáo de políticas alternativas de desenvolvimento.
caria
Isso conduz á construgáo de urna racionalidade ambiental entendida como
o ordenamento de um conjunto de objetivos, explícitos e implícitos; de meios e
instrumentos; de regras sociais, normas jurídicas e valores culturais; de siste-
óem mas de significagáo e de conhecimento; de teorias e conceitos; de métodos e
ons- técnicas de produgáo. Esta racionalidade funciona legitimando agües e estabele-
que cendo critérios para a tomada de decisóes dos agentes sociais; orienta as políti-
áuto- cas dos governos, normatiza os processos de produgáo e consumo e conduz as
orial agóes e comportamentos de diferentes atores e grupos sociais, para os fins de
lestáo desenvolvimento sustentável, eqüitativo e duradouro.
A categoria de racionalidade ambiental, ao integrar processos de raciona-
lida- lidade teórica, instrumental e substantiva, constitui um instrumento para anali-
sar a consisténcia dos princípios do ambientalismo em suas formagóes discursi-
nen-
-
vas, teóricas e ideológicas; a eficácia dos movimentos sociais, das reformas do
Estado, as transformagaes institucionais e os programas governamentais, para
ado, alcangar os objetivos implícitos e explícitos da gestáo ambiental e o desenvolvi-
e de mento sustentável. A categoria de racionalidade ambiental possibilita uma aná-
o se Irse integrada das bases materiais, os instrumentos técnicos e legais e as agóes e
les- programas orientados para estes fins. Neste sentido, a categoria de racionalida-
que de ambiental é proposta como um conceito heurístico, dinámico e flexível para
analisar e orientar os processos e as agóes "ambientalistas".
ética Esta caracterizagáo do saber ambiental e da categoria de racionalidade
dos ambiental náo se propóe como um princípio epistemológico geral para a reuni-
pos- ficagáo do saber ou para a integragáo interdisciplinar das ciéncias. A racionali-
bien- dade ambiental se constrói e se concretiza por múltiplas inter-relagóes entre a
iinte- teoria e a práxis. A problemática gnoseológica e epistemológica do ambientalis-
que mo, surge no terreno prático de urna problemática social generalizada, que orienta
Í. Es- o saber e a pesquisa para o campo estratégico do poder e da agáo política. As-
pesar sim, a categoria de racionalidade ambiental náo só resulta útil para sistematizar
(orno os enunciados teóricos do discurso ambiental, mas também para analisar sua
co- coeréncia em seus momentos de "expressáo", isto é, o poder transformador do
conceito — e de sua própria construgáo — através de suas aplicagóes. 3
lama A racionalidade capitalista tem estado associada a uma racionalidade
luma científica que incrementa a capacidade de controle social sobre a realidade, e
ntar urna racionalidade tecnológica que assegura uma eficácia crescente entre meios
ans- e fins. A problemática ambiental questiona a legitimidade da racionalidade
128 ENRIQUE LEFF

social construída sobre as bases de urna racionalidade científica entendida


corno o instrumento mais elevado de racionalidade, capaz de resolver a partir
de seu crescente poder de predizer, as "irracionalidades" ou externalidades do
sistema. 4
Diante desta pretensáo da razáo científica moderna, o saber ambiental se
propóe a compreender urna realidade complexa, aberta á indeterminagáo e á
interdependéncia dos processos, ao risco e á mudanga, como um saber atraves-
sado pelo conflito social e fundada numa epistemologia política, na qual os
valores e os interesses estáo imbricados com o conhecimento (O'Connor, 1989;
Funtowics e Ravetz, 1993).
A categoria de racionalidade ambiental propóe a necessidade de definir os
termos para avahar a eficácia dos diversos processos que participara em sua
concretizagáo prática e de seu tránsito através da racionalidade social estabele-
cida, aceitando o caráter relativo e inclusive oposto de ambas as racionalidades,
pois, como aponta Marcuse,

"No desenvolvimento da racionalidade capitalista, a irracionalidade se trans-


forma em razáo: razáo como desenvolvimento desenfreado da produtividade,
conquista da natureza, ampliagáo da masca de bens, mas irracional, porque o
incremento da produtividade, do domínio da natureza e da riqueza social se
transformam em forgas destrutivas" (Marcuse, 1972: 207).

As externalidades da racionalidade capitalista (superexploragáo dos recur-


sos naturais e da forga de trabalho, degradagáo ambiental, deterioragáo da quali-
dade de vida) de problemas marginais (embora funcionais) para o sistema eco-
nómico, foram adquirindo em seu processo acumulativo e expansivo do capital
um caráter crítico para seu crescimento. Daí o propósito de internalizar as exter-
nalidades ambientais como um processo de refuncionalizagáo da racionalidade
económica e de seus paradigmas de conhecimento.
No conceito de racionalidade ambiental subjaz um conceito de "adapta-
gáo" que predomina sobre o conceito de "domínio" da natureza no qual se apóia
a racionalidade capitalista e os paradigmas da ciéncia moderna. Além disso, os
princípios, valores e processos que constituem urna racionalidade ambiental sáo
incomensuráveis com urna racionalidade capitalista e irredutíveis a um padráo
unitário de medida (Kapp, 1983); nem as preferéncias dos consumidores futu-
ros, nem os processos ecológicos de longo prazo, nem os valores humanos e
direitos ambientais sáo traduzíveis a valores monetários atuais (Gutman, 1986;
Martínez-Alier, 1995; Leff, 2000b).
,..t ...iii EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 129

idiela A racionalidade ambiental nao pode ser definida a partir de uma pesquisa
partir de operagóes orientada a "realizar a melhor combinagáo de meios limitados
s do para alcangar um objetivo quantificável" (Godelier, 1969: I, 21). Neste sentido,
a racionalidade ambiental implica urna crítica á racionalidade da civilizagáo
1 se moderna. Assim também a construgáo de urna racionalidade ambiental se pro-
duz na desconstrugáo da racionalidade económica fundada no princípio de es-
ves -
cassez e movida pela máo invisível das forgas cegas do mercado para construir
1 os outra racionalidade, fundada em outros valores e princípios, em outros forgas
989; materiais e outros meios técnicos, através da mobilizagáo de recursos humanos,
naturais, culturais e gnoseológicos.
ir os Para além do problema da incomensurabilidade entre os princípios, pro-
1 Slla cessos e objetivos de racionalidades diferentes, a construgáo de urna racionali-
bele- dade ambiental propóe a questáo sobre a possibilidade de transitar para ela, e
ades, que esta possa funcionar como urna praxeologia, com meios eficazes para a
consecugáo de seus objetivos. Trata-se de ver se urna estratégia ambiental de
desenvolvimento funciona "como toda atividade finalizada com possibilidade
'Tans- de possuir urna 'lógica' que lhe assegure a eficácia frente a urna série de restri-
ade. góes" (Godelier, 1969: I, 18). Isso tem releváncia para compreender o processo
ue o social de construgáo de um paradigma de produtividade ecotecnológica, bem
1 se como para analisar a eficácia do movimento ambientalista para reverter os cus-
tos sociais e ambientais da racionalidade económica dominante e para construir
outra racionalidade social.
cur- A racionalidade ambiental incorpora novos princípios e valores que impe-
ali- dem que suas estratégias possam ser avaliadas em termos do modelo de raciona-
eco- lidade gerado pelo capitalismo. Trata-se de analisar os processos de legitimaqcio
pital e as possibilidades de realizagáo dos propósitos e os objetivos "ambientais"
xter- frente ás restrigóes que antepóe a seu processo de construgáo, a institucionaliza-
dade gáo dos mecanismos do mercado, dos interesses económicos, da razáo tecnoló-
gica e da lógica do poder estabelecidos.
tpta- A racionalidade ambiental constrói-se assim mediante a articulagáo de
póia quatro níveis de racionalidade:
), os a) uma racionalidade substantiva, que é o sistema axiológico dos valores
1 sáo que normatizam as agóes e orientam os processos sociais para a cons-
dráo trugáo de uma racionalidade ambiental fundada nos princípios de um
btu- desenvolvimento ecologicamente sustentável, socialmente eqüitativo,
)s e culturalmente diverso e politicamente democrático;
186; b) uma racionalidade teórica que constrói os conceitos que articulam os
valores da racionalidade substantiva com os processos materiais que

130 ENRIQUE LEFF

dáo suporte a urna racionalidade produtiva fundada numa produtivida-


de ecotecnológica e um potencial ambiental de desenvolvimento;
c) urna racionalidade técnica ou instrumental que produz os vínculos fun-
cionais e operacionais entre os objetivos sociais e as bases materiais do
desenvolvimento sustentável através de um sistema tecnológico ade-
quado, de procedimentos jurídicos para a defesa dos direitos ambien-
tais e de meios ideológicos e políticos que legitimem a transigáo para
urna racionalidade ambiental, incluindo as estratégias de poder do mo-
vimento ambiental;
d) urna racionalidade cultural, entendida como um sistema de significa-
góes que produzem a identidade e integridade internas de diversas for-
magóes culturais, que dáo coeréncia a suas práticas sociais e produti-
vas; estas estabelecem a singularidade de racionalidades ambientais
heterogéneas que náo se submetem a urna lógica ambiental geral e que
cobram sentido e realidade ao nível das agóes locais.

7.1. Racionalidade substantiva

A questáo ambiental emerge como urna problemática social de desenvol-


vimento, propondo a necessidade de normatizar um conjunto de processos de
produgáo e consumo que, sujeitos á racionalidade económica e á lógica do mer-
cado, degradaram o ambiente e a qualidade de vida. Desta consciéncia ambien-
tal surgiram novos valores e foros materiais para reorientar o processo de de-
senvolvimento. Assim, foi-se configurando urna cultura ecológica e democráti-
ca associada aos objetivos do desenvolvimento sustentável, fundado nos se-
guintes princípios:
a) os direitos humanos a um ambiente sadio e produtivo e os direitos das
comunidades autóctones á autogestáo de seus recursos ambientais para
satisfazer suas necessidades e orientar suas aspiragóes sociais a partir
de diferentes valores culturais, contextos ecológicos e condigóes eco-
nómicas;
b) o valor da diversidade biológica, a heterogeneidade cultural e a plurali-
dade política, bem como a valorizagáo do património de recursos natu-
rais e culturais dos poyos;
c) a conservagáo da base de recursos naturais e dos equilibrios ecológicos
do planeta como condigáo para um desenvolvimento sustentável, que
satisfaga as necessidades atuais das populagóes e preserve seu poten-
cial para as geragóes futuras;
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 131
Uf 111- 1-

ivida- d) a abertura para urna diversidade de estilos de desenvolvimento susten-


;
tável, fundados nas condigóes ecológicas e culturais de cada regido e
cada localidade;
S t'un-
ais do e) a satisfagáo das necessidades básicas e a elevagáo da qualidade de vida
acle- da populagáo, partindo da eliminagáo da pobreza e da miséria extrema,
[bien- e seguindo com a melhoria da qualidade ambiental e do potencial am-
para biental, através da democratizagáo do poder e da distribuigáo social dos
) [no- recursos ambientais;
f) a distribuigáo da riqueza e do poder através da descentralizagáo econó-
ifica- mica e da gestáo participativa dos recursos;
s for- g) o fortalecimento da capacidade de autogestáo das comunidades e da
)duti- autodeterminagáo tecnológica dos poyos, com a produgáo de tecnolo-
ntai s gias ecologicamente adequadas e culturalmente apropriáveis;
que
h) a valorizagáo da qualidade de vida e do desenvolvimento das capacida-
des de todos os homens e mulheres, sobre os valores quantitativos da
produgáo para o mercado e do consumo;
i) a percepgáo da realidade a partir de uma perspectiva global, complexa
e interdependente, que permita articular os diferentes processos que a
vol- constituem, entender a multicausalidade das mudangas socioambien-
s de tais e sustentar um manejo integrado dos recursos.
mer-
ien- Estes critérios, princípios e valores devem ser sistematizados e operacio-
de- nalizados através de conceitos, teorias e técnicas que os articulem com suas
ráti- bases materiais (mobilizagáo de processos naturais, tecnológicos e sociais), atra-
se- vés da organizagáo de políticas científicas, a organizagáo de movimentos so-
ciais e estratégias políticas e a elaboragáo de instrumentos tecnológicos e nor-
das mas jurídicas, que permitam sua tradugáo em processos produtivos alternativos
para para a gestáo dos recursos ambientais das comunidades e um desenvolvimento
Dartir sustentável ao nível planetário.
eco-

7.2. Racionalidade ambiental teórica


trali-
Datu-
A racionalidade ambiental náo pode ser definida táo-somente em termos
de sua racionalidade substantiva, mas se funda em princípios materiais e em
iicos
que
processos produtivos que dáo suporte aos valores qualitativos que orientam a
Dten- reconstrugáo da realidade. Estes princípios gerais orientaram a elaboragáo de
uma teoria emergente sobre a racionalidade ambiental do desenvolvimento sus-
132 ENRIQUE LEFF EPIS

tentável a partir das estratégias do ecodesenvolvimento (Sachs, 1982) e a cons- qu(


trugáo do conceito de produtividade ecotecnológica (ver Cap. 2 acima). mc
A racionalidade ambiental teórica apresenta-se como urna produgáo con-
ceitual orientada para construgáo de urna racionalidade produtiva alternativa. pai
Ao dar congruéncia aos postulados e princípios ambientais, permite ativar um en
conjunto de processos materiais que dáo supone a novas estratégias produtivas tal
fundadas no potencial que oferece o ambiente. Neste sentido coloca-se a possi- nal
bilidade de conformar um novo "paradigma" de produgáo fundado na articula-
gáo de níveis de produtividade ecológica, cultural e tecnológica, dentro de um ira
processo dinámico e prospectivo que orienta as práticas científicas, tecnológi- ins
cas e culturais para construir e objetivar esses níveis de produtividade. Propóe- de
se, dessa forma, a articulagáo de um sistema de recursos naturais com um siste- me
ma tecnológico apropriado e com sistemas culturais, políticos e económicos tiv
que condicionara e normatizam a construgáo de ecossistemas produtivos inte- me
grados ás forgas produtivas e ás relagóes sociais, políticas e económicas de dife- inc
rentes formagóes ambientais (Leff, 2000b).
de
A categoria de racionalidade ambiental teórica responde ao processo de
sistematizagáo que dá coeréncia aos postulados de valor das formagóes ideoló-
reE
gicas do discurso ambientalista e organiza os diferentes processos naturais e
sociais que constituem o suporte material de urna racionalidade produtiva am-
biental, constrastável, em seus espagos de aplicagáo e em fungáo de seus objeti- tru
vos diversos, com as práticas produtivas derivadas da racionalidade económica qu
ou tecnológica dominante. Desta forma, a racionalidade teórica gera as bases
para elaborar os instrumentos de avaliagáo de projetos e estilos alternativos de pul
desenvolvimento.
7.
7.3. Racionalidade ambiental técnica ou instrumental

A racionalidade técnica ou instrumental estabelece os meios que conferem se


sua eficácia á gestáo ambiental, incluindo as tecnologias ambientais e ecotécnicas, tes
as ordenagóes jurídicas, os instrumentos legais e os arranjos institucionais das tác
políticas ambientais, bem como as formas de organizagáo do movimento am- sei
biental para gerar as forgas sociais necessárias para transformar a racionalidade foi
económica dominante. da
O propósito de internalizar os custos ecológicos e as externalidades ambien- cic
tais no cálculo económico e de gerar um potencial ambiental para um desenvolvi-
mento sustentável, propóe a necessidade de gerar um conjunto de instrumentos
técnicos, ordenagóes legais, processos de legitimagáo e organizagóes políticas, ira
E I.EFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 133

ions- que traduzam os objetivos da gestáo ambiental em agóes, programas e mecanis-


mos concretos que dé= eficácia á construgáo da racionalidade ambiental.
on- A ineficácia dos processos de gestáo ambiental tem residido em grande
iva. parte no fato de que se fundaram num "juízo racional independente" (Mannheim)
um e num discurso crítico (Marcuse) para reverter os efeitos da racionalidade capi-
ivas talista, mas térn carecido dos instrumentos de sua racionalidade técnica, funcio-
ssi- nal e operativa.
ula- O planejamento ambiental do desenvolvimento propóe limitagóes para
um implementar projetos de gestáo ambiental com os instrumentos e dentro das
ígi- instituigóes da racionalidade económica e política dominantes Daí a necessida-
oe-
de de elaborar novos instrumentos económicos, jurídicos e técnicos para imple-
ste-
mentar projetos de gestáo ambiental e dar eficácia a urna racionalidade alterna-
cos
tiva: métodos de avaliagáo de impacto ambiental, inventários e contas do patri-
te-
mónio natural e cultural (Gligo, 1986; Sejenovich y Gallo Mendoza, 1996),
ife-
indicadores sobre o potencial ambiental de desenvolvimento e sobre a qualidade
de vida e procedimentos legais em defesa dos valores e os direitos ambientais.
de
ló- A racionalidade instrumental implícita num processo de gestáo ambiental,
se realga o fato de que a racionalidade social náo é táo-somente a expressáo de urna
m- lógica abstrata (do mercado, do valor) ou a expressáo sobredeterminada da es-
eti- trutura económica, mas a resultante de um conjunto de normas e agóes sociais
ica que limitara o uso da lei (do mercado) por uma classe e buscam conciliar inte-
ses resses ambientais opostos e elevar o bem comum pela intervengáo do Estado e a
de participagáo da sociedade civil.'

7.4. Racionalidade ambiental cultural

A categoria de racionalidade ambiental implica a diversidade étnica. Esta


kem se integra por diversas organizagóes culturais e pelas racionalidades das diferen-
pas, tes formagóes socioeconómicas que constituem urna formagáo nacional. A ges-
das táo ambiental implica a participagáo direta das comunidades na apropriagáo de
Em- seu património natural e cultural e no aproveitamento de seus recursos. Desta
de forma, a racionalidade cultural náo é apenas um argumento a mais da racionali-
dade substantiva, e sim constitui também um princípio que normatiza toda ra-
rvni cionalidade instrumental.
Os valores culturais implícitos nas práticas tradicionais de diferentes for-
¡tos magóes sociais, náo só incorporam princípios de racionalidade ecológica, mas
tas, imprimem o selo da cultura na natureza através das formagóes ideológicas que
134 ENRIQUE LEFF
EPI

determinam os processos de significagáo do meio, as formas de percepgáo da


SU
natureza e os usos socialmente sancionados dos recursos, vinculados a necessi-
CC
dades definidas culturalmente. A racionalidade cultural multiplica e diversifica
as formas racionais de aproveitamento dos recursos de urna comunidade para
satisfazer suas necessidades fundamentais e sua qualidade de vida. Neste senti- P1
do, a racionalidade cultural organiza e confere sua especificidade ao processo de
mediagáo entre a sociedade e a natureza, entre as técnicas de produgáo e as TU

normas de aproveitamento dos recursos naturais. eS


re
d
7.5. Racionalidade ambiental/racionalidade económica

A construgáo de urna racionalidade ambiental surge assim corno um con-


junto de processos de "racionalizagáo", com diferentes "instáncias de racionali- ti
dade" que conferem legitimidade á tomada de decisóes com respeito á transfor-
magáo da natureza e do uso dos recursos, dando funcionalidade a suas opera-
góes práticas e eficácia a seus processos produtivos. Estas diferentes instáncias i
e processos sáo suscetíveis de serem sistematizados e priorizados, mas náo é
possível estabelecer neles urna ordem de racionalidade superior: u
ti
"A história náo pode sujeitar-se ao significado transcendental do inexorável avan-
a
g0 dialético da `Razáo' hegeliana ou das leis evolucionistas de qualquer tipo ou
ao eixo de uma só esfera institucional, tal corno a Economia" (...). "A historia é F
um labirinto de processos de racionalizagáo que chegam a constituir-se em or-
dena legítimas dentro de urna sociedade. Alguns destes processos convergen,
outros chocam, outros mais se dividen para coincidir num momento futuro e e
alguns chegam a translapar-se, surgindo e lutando com outros processos em
diversas esferas. Por esta razáo, os diferentes processos náo podem hierarquizar- E
se num padráo legal de evolugáo" (Gil Villegas, 1984: 44). e

A construgáo de urna racionalidade ambiental implica a realizagáo e


concregáo de uma utopia. Entretanto, esta náo é a materializagáo de princípios
ideais abstratos, mas sim emerge como um projeto social de resposta a outra
racionalidade que teve seu período histórico de construgáo, legitimagáo, ins-
trumentalizagáo e de tecnologizagáo. A racionalidade ambiental emerge de
outros princípios, debatendo-se e avangando no real da racionalidade capita-
lista que plasma a realidade económica, política e tecnológica dominante. O
processo que vai desta emergéncia até a consolidagáo de uma racionalidade
alternativa, é um processo de transiqáo caracterizado pelas oposigóes de pers-
pectivas e interesses envolvidos em ambas as racionalidades, mas também por
UE 1E11
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 135

ao da
c essi- suas estratégias de transformagáo, suas táticas de negociagáo e seus espagos de
sifica complementaridade.
para O processo de constituigáo e transigáo a urna racionalidade ambiental im-
senti- plica processos políticos e sociais que transcendem á confrontagáo de duas "ló-
so de gicas" opostas. É um processo transformador de formagóes ideológicas, insti-
e as tuigóes políticas, fungóes governamentais, normas jurídicas, valores culturais,
estruturas tecnológicas e comportamentos sociais, que se insere na rede de inte-
resses de classes, grupos e indivíduos que mobilizam ou obstaculizara as mu-
dancas históricas para construir esta nova racionalidade social.
Cada racionalidade social está constituída por diversas "esferas" articuladas
de racionalidade. Assim, a racionalidade técnica ou instrumental concerne ao cál-
con- culo, á eficiéncia e á otimizagáo dos processos que conduzem a urna fungáo obje-
nali- tivo, enquanto que a esfera da "racionalidade ideológica" legitima e mobiliza as
for- agóes que conduzem a cenos fins. Ambas as instáncias articulam-se e comple-
ra- mentaria suas formas de dominagáo e sobredeterminagáo em diferentes raciona-
cias lidades e em diferentes momentos de sua construgáo e de seu funcionamento.
-oé
Na racionalidade capitalista, as racionalidades técnica e formal adquirem
urna fungáo dominante, fundamentando e legitimando-se nos valores da produ-
avan-
tividade e da eficiéncia. Daí que o modo capitalista de produgáo tenha chegado
'po ou a se conceber como a manifestagáo de urna "razáo tecnológica" (Marcuse, 1968).
ória é Por sua vez, a racionalidade ambiental apoiou-se mais na legitimagáo de seus
m or- valores (pluralidade étnica, fortalecimento de economias autogestionárias náo-
rgent, acumulativas), que em seus meios instrumentais. O conceito de qualidade vida
turo e e de qualidade ambiental como objetivos da estratégia ambiental de desenvolvi-
S em mento funda sua racionalidade nos valores qualitativos de seus objetivos, numa
uizar- racionalidade substantiva entendida como um sistema de significagóes, valores
e normas culturas caracterizadas por sua diversidade e relatividade.
áo e As diferengas defendidas por estas duas racionalidades (seu caráter inco-
ípios mensurável) váo além da possibilidade de transformar os fins do desenvolvi-
Ioutra mento aos que apontam os propósitos da racionalidade ambiental com os meios
ins- da racionalidade económica e seus instrumentos tecnológicos. Urna produtivi-
re de dade ecotecnológica construída pela articulag á- o de processos de diferentes or-
pita- dene de materialidade — com sua expressáo em diferentes espacialidades e tem-
te. O poralidades — bem como os princípios de diversidade cultural e de eqüidade
Idade social em torno a objetivos de caráter mais qualitativo, impede reduzir e avahar
pers- a gestáo ambiental do desenvolvimento com urna fungáo objetivo generalizável
1 por e quantificável. Neste sentido, a racionalidade ambiental implica "outra razáo"
que parte da crítica á racionalidade tecnológica e do cálculo económico, que
136 ENRIQUE LEFF

conformam o instrumental da civilizagáo moderna orientada pelos princípios do


lucro, da eficiencia e da produtividade imediatas.
Da mesma forma que cada ciencia apresenta diferentes obstáculos episté-
micos para transformar-se ao serem problematizados seus paradigmas de co-
nhecimento pelo saber ambiental emergente, assim cada nagáo, cada Estado,
cada economia, cada poyo, tem suas particulares condigóes para desmontar a
maquinaria tecnológica e desarmar os aparelhos ideológicos gerados e movidos
pelas forgas do mercado, com o propósito de construir urna racionalidade social
alternativa a partir de outros princípios e bases materiais.
A racionalidade ambiental constrói-se densa maneira no contexto e no
contrafluxo da racionalidade capitalista dominante em todas as ordens da vida
social.6 Entretanto, a desconstrugáo desta racionalidade no sentido de uma transi-
gáo para urna racionalidade ambiental torna necessário analisar náo só as contra-
digóes e oposigóes entre ambas as racionalidades, mas também, e num sentido
estratégico, suas formas de articulagáo e suas complementaridades possíveis.

8. 0 concedo de saber em Foucault e o discurso ambiental

A problemática ambiental gerou um amplo processo de transformagóes do


saber, abrindo um novo campo á sociologia do conhecimento. Este náo se dá
como um desenvolvimento interno das ciencias, mas corno um questionamento
social generalizado á racionalidade dominante, que implica a crítica a seus mo-
delos de racionalidade científica e que induz urna desconstrugao de diferentes
paradigmas do conhecimento para internalizar um saber ambiental, de natureza
"inter-disciplinar". A complexidade dos problemas sociais associados com as
mudangas ambientais globais, abriu o caminho para um pensamento da comple-
xidade e para métodos interdisciplinares de pesquisa, capazes de articular dife-
rentes disciplinas para compreender as múltiplas relagóes, causalidades e inter-
dependencias que estabelecem processos de diversas ordens de materialidade:
física, biológica, cultural, económica, social. No entanto, a demanda de um
saber integrado para a compreensáo dos processos socioambientais náo se esgo-
ta nos isomorfismos provenientes da formalizagáo e matematizagáo dos proces-
sos objeto de diferentes campos do conhecimento e numa teoria geral de siste-
mas (Bertalanffy, 1976). Tampouco se restringe aos métodos para integrar os
conhecimentos, disciplinas e saberes existentes.
O saber ambiental enfrenta a compartamentalizagáo e fracionamento do
conhecimento derivado da racionalidade social e científica dominantes. Contu-
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 137

do do, este saber náo se constitui no meio que circunda os objetos de conhecimen-
to, mas que emerge de urna problemática social que ultrapassa o campo da
racionalidade do conhecimento. A questáo ambiental emerge de urna problemá-
*sté-
tica económica, social, política, ecológica, como urna nova visáo do mundo,
co-
propondo uma verdadeira revolugáo ideológica e cultural que problematiza toda
tado,
uma constelagáo de paradigmas do conhecimento teórico e de saberes práticos.
Mar a
Neste sentido, a perspectiva ambiental da transformagáo do conhecimento ins-
ividos
creve-se num "programa forte de sociologia do conhecimento". Mais ainda,
social
pelo caráter global desta problematizagáo social de conhecimentos e saberes, e
pelos processos gnoseológicos e sociais que induz o sujeito do conhecimento e
e no os atores sociais do ambientalismo, a questáo ambiental inscreve-se numa pers-
vida pectiva da sociologia do conhecimento. 7
ansi-
As perspectivas foucaultianas sobre o saber e o conhecimento nos permi-
ntra- tem ver a irrupgáo do saber ambiental como efeito destes processos de mudanga
ntido social, da emergéncia de urna nova consciéncia e de novos valores. Este saber
s. inscreve-se nas formagóes ideológicas do ambientalismo e nas práticas discursi-
vas do desenvolvimento sustentável, incorporando os princípios de diversidade
cultural, sustentabilidade ecológica, eqüidade social e solidariedade transgera-
cional. Este saber ambiental, crítico e propositivo, entretecido de um conjunto
de práticas discursivas, mobiliza urna série de mudangas institucionais na or-
s do dem económica mundial; a inovagáo de tecnologias "limpas", adequadas e apro-
e dá priadas para o uso ecologicamente sustentável dos recursos naturais; a recupera-
ento gáo e melhoria das práticas tradicionais (ecologicamente adaptadas) de uso dos
mo- recursos para a autogestáo comunitária dos recursos; o ámbito jurídico dos no-
tes vos direitos ambientais, da normatividade ecológica internacional e da legisla-
za gáo nacional em matéria ecológica no campo das políticas ambientais; a organi-
as zagáo de um movimento ecologista sustentado nos princípios do ambientalis-
mple- mo; a internalizagáo da "dimensáo ambiental" nos paradigmas do conhecimen-
dife- to, nos conteúdos curriculares e nas práticas pedagógicas; a emergéncia de no-
inter- vas disciplinas ambientais (Leff, 1987; 1988a).
darle: A partir desta perspectiva de análise, é possível ver o surgimento das for-
um magóes discursivas do saber ambiental como um efeito do "poder" no conheci-
sgo- mento; ver a circulagáo e transformagáo (manipulagáo e legitimagáo) de seus
xes- conceitos através do jogo de interesses opostos de países, instituigóes e grupos
iste- sociais. Ao mesmo tempo, nos permite entender o saber ambiental náo como
ar os uma doutrina homogénea, fechada e acabada, mas como um campo em constru-
gáo de formagóes ideológicas e teóricas heterogéneas, abertas e dispersas, cons-
o do tituídas por urna multiplicidade de práticas sociais: o saber camponés e das
mtu- comunidades indígenas sobre seu ambiente e seus recursos, integrado a suas
138 ENRIQUE LEFF
E PI

formagóes ideológicas, seus valores culturais e cuas práticas tradicionais de uso


dos recursos; a dispersáo do saber ambiental inscrito no discurso do ecodesen- e
volvimento e do desenvolvimento sustentável e sua apropriagáo desigual pelo ve
discurso da globalizagao económica, pelo discurso e pelas práticas do movi- ca
mento ambientalista, pelo discurso oficial do Estado e pela ordenagáo jurídica de
da legislagáo ambiental. Assim é possível apreender o saber ambiental a partir pe
dos interesses em conflito que atravessam o campo ambiental; captar sua inser- di,
gáo em diferentes domínios institucionais e campos de aplicagáo; ver como se ci
incorpora aos diferentes domínios do conhecimento sociológico e das ciencias da
sociais em geral, induzindo transformagóes diferenciadas nos objetos científi- nc
cos, campos temáticos e práticas disciplinares do conhecimento (Foucault, 1969). e
so

9. 0 saber ambiental e a sociologia do conhecimento


trL
na
A questáo ambiental aparece como sintoma da crise da razáo da civiliza-
gáo moderna, como uma crítica da racionalidade social e do estilo de desenvol- a
vimento dominantes, e como uma proposta para fundamentar um desenvolvi- pr
mento alternativo. Este questionamento problematiza o conhecimento científi- gr
co e tecnológico que foi produzido, aplicado e legitimado pela referida raciona- se
lidade e se abre a novos métodos, capazes de integrar as contribuigóes de dife- se
rentes disciplinas para gerar análises abrangentes e integradas de uma realidade de
global e complexa na qual se articulam processos sociais e naturais de ordens pe
diversas de materialidade e de racionalidade. Por sua vez, aponta para a geragáo á
de novos conhecimentos teóricos e práticos para construir uma racionalidade
produtiva alternativa.
fe
A atengáo sobre os problemas gnoseológicos propostos pela problemática
ambiental concentrou-se em seus aspectos axiológicos e metodológicos. Assim, de
propón-se o estudo dos valores que impulsionam a consciencia ambiental e sur-
giu a preocupagáo de elaborar um método e um pensamento da complexidade,
capazes de apreender as inter-relagóes entre processos naturais e sociais que
determinam as mudangas ambientais globais. No entanto, menos atengáo mere-
ceram as transformagóes do conhecimento que induz a problemática ambiental.
A questáo ambiental surge como uma problemática social e ecológica ge-
neralizada de alcance planetario, que atinge todos os ámbitos da organizagáo
social, os aparelhos do Estado e a todos os grupos e classes sociais. Isso induz
um amplo e complexo processo de reorientagáo e transformagóes do conheci-
mento e do saber, das ideologias teóricas e práticas, dos paradigmas científicos
LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 139

le uso
lesen- e das práticas de pesquisa. Estes processos náo sáo produzidos pelos desen-
1 pelo volvimentos internos das ciéncias nem se referem apenas ás políticas científi-
movi- cas e tecnológicas, ou seja, á aplicagáo dos conhecimentos existentes aos fans
rídica do desenvolvimento sustentável. Através do conflito social colocado em jogo
partir pela crise ambiental, problematizam-se os interesses disciplinares e os para-
inser- digmas estabelecidos do conhecimento, sobretudo no terreno das ciéncias so-
mo se ciais, que sáo as formagóes teóricas e ideológicas que legitimam urna racionali-
Indas dade social determinada (por exemplo, o direito privado e a racionalidade eco-
ntífi- nómica que legitimaram e institucionalizaram as formas de acesso, propriedade
969). e exploragáo dos recursos naturais e que surgem como causa da degradagáo
1
socioambiental).
I Desta perspectiva, a construgáo de urna racionalidade ambiental implica
transformagóes dos conceitos e métodos de diversas ciéncias e campos discipli-
nares do saber, nos sistemas de valores e das crengas de diversos grupos sociais.
iliza-
Estas transformagóes ideológicas e epistémicas náo sáo efeitos diretos tragáveis
nvol-
a partir do posicionamento de diferentes classes sociais. Implicam a análise de
olvi-
processos mais complexos que colocam em jogo os interesses de diferentes
ntífi-
grupos de poder em relagáo com a apropriagáo dos recursos naturais, os interes-
iona-
ses institucionalizados de urna administragáo pública setorializada e os interes-
dife-
ses disciplinares associados com identificagáo e apropriagáo de um saber dentro
dade
do qual se desenvolvem as carreiras científicas e profissionais. Neste sentido é
dens
possível propor que a emergéncia do saber ambiental abre urna nova perspectiva
náo
á sociologia do conhecimento.
dade
A problemática ambiental induz efeitos desiguais na transformagáo de di-
ferentes disciplinas e paradigmas científicos e na produgáo, integragáo e aplica-
ática
gáo de conhecimentos. O saber ambiental emerge, problematiza e reorienta o
sim,
desenvolvimento do conhecimento em trés níveis:
sur-
ade,
a) A orientagáo da pesquisa e da aplicagáo dos conhecimentos científicos
que
e técnicos através das políticas científico-tecnológicas.
ere- b) A integragáo interdisciplinar de especialidades diversas e de um con-
ntal. junto de saberes existentes em torno a um objeto de estudo e a urna
problemática comuns e a elaboragáo de um conhecimento integrado
ge-
através de um método de análise de sistemas complexos (García, 1986).
náo
duz c) A problematizagáo dos paradigmas teóricos de diferentes ciéncias, pro-
eci- pondo a reelaboragáo de seus conceitos, a emergéncia de novas áreas
icos temáticas e a constituigáo de novos objetos de conhecimento e discipli-
nas ambientais.
140 ENRIQUE LEFF

O saber ambiental, a partir de sua posigáo de externalidade ao desenvolvi-


mento "interno" das ciéncias, gera urna demanda de saber que repercute na
orientagáo, desenvolvimento e aplicagáo dos conhecimentos. O propósito de
internalizar a "dimensáo ambiental" na teoria e práticas da economia, exige a
implementagáo de políticas científicas e tecnológicas para produzir os instru-
mentos eficazes para urna refuncionalizagáo ecológica da racionalidade econó-
mica prevalecente, para conseguir um melhor balango entre conservagáo e cres-
cimento e para gerar um processo de desenvolvimento sustentável sobre bases
ecológicas de sustentabilidade e processos tecnológicos apropriados.
As técnicas despoluidoras, os processos de reciclagem de detritos e resí-
duos e a inovagáo de "ecotécnicas" podem gerar um sistema tecnológico ade-
quado ou apropriado, mas náo transformam os princípios teóricos e metodoló-
gicos das ciéncias físicas ou biológicas. A incorporagáo de "fungóes de dano
ecológico" nas fungóes de produgáo e a elaboragáo do conceito de capital natu-
ral, orientam-se á avaliagáo das externalidades dos processos produtivos, mas
náo questionam o edifício paradigmático da economia neoclássica. A conscien-
cia ambiental produz mudangas na percepgáo da realidade social, nas crengas,
comportamentos e atitudes dos atores sociais, mas náo transforma os métodos
das ciéncias sociais. Nesta perspectiva apenas é possível estabelecer um "pro-
grama fraco" para a sociologia ambiental do conhecimento.
A partir da perspectiva da racionalidade ambiental, entendida como o con-
junto de valores, processos materiais e finalidades que orientam a construgáo de
uma racionalidade produtiva alternativa, propóe-se um processo de transforma-
góes teóricas, que problematiza toda urna constelagáo de conhecimentos. Isto
permite propor um "programa forte" de sociologia do conhecimento através da
globalidade e profundidade dos efeitos no desenvolvimento e aplicagáo de dife-
rentes conhecimentos a partir de uma problemática externa, complexa e genera-
lizada que induzem, através de interesses e condigóes sociais opostos, urna série
de efeitos diferenciados nas estruturas teóricas de diversas ciéncias. Este pro-
grama de sociologia do conhecimento constrói-se sobre novas bases epistemo-
lógicas, enquanto que a problemática ambiental produz um objeto de conheci-
mento complexo que ultrapassa o campo de referéncia das disciplinas tradicio-
nais. Isto náo apenas demanda novas metodologias para a integragáo dos sabe-
res existentes e a colaboragáo de diferentes disciplinas para a explicagáo desta
realidade complexa, mas induz a produgáo de novos conceitos e, inclusive, a
desconstrucción e ruptura de certos paradigmas estabelecidos do conhecimento.
Estas mudangas epistémicas náo só dependeráo do questionamento externo ás
ciéncias, mas das próprias estruturas do conhecimento em cada campo do saber,
UE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 141

volvi que as tornam mais dúcteis ou rígidas para incorporar e amalgamar um saber
Ite na ambiental.
ito de O saber ambiental náo é um saber onicompreensivo e totalizante que seria
rige a internalizado pelos diferentes paradigmas teóricos. Pelo contrário, o saber am-
nstru- biental vai-se configurando como um campo de externalidade específico a cada
conó- um dos objetos de conhecimento das ciéncias constituídas. Neste sentido, a
cre s - contribuigáo das ciéncias sociais á definigáo de um "paradigma ambiental" é
base s um processo dialético no qual ao mesmo tempo que as ciéncias sociais se orien-
tam e integram para conformar um conceito de ambiente e um campo ambiental
resí- do conhecimento, um saber ambiental emergente vai-se internalizando dentro
ade- dos paradigmas teóricos e das temáticas tradicionais das ciéncias sociais para
oló- gerar um conjunto de disciplinas "ambientais".
dano As disciplinas que resultam mais profundamente questionadas pela pro-
atu- blemática ambiental sáo as ciéncias sociais e as ciéncias naturais mais próximas
mas ás relagóes entre sociedade e natureza, como a geografia, a ecologia e a antropo-
ién- logia. Náo se trata táo-somente de revalorizar disciplinas como a etnobotánica e
a etnotécnica para a recuperagáo dos saberes técnicos das práticas tradicionais
odos de uso dos recursos, mas da internalizagáo do saber ambiental emergente nos
`pro- paradigmas destas ciéncias sociais.
Neste sentido, a antropologia ecológica "evoluiu" da antropologia cultural
con- de Steward — que via no "nível de integragáo sociocultural" a especificidade da
o de articulagáo da organizagáo cultural com as condigóes de seu meio ambiente —
rma- e da "lei básica de evolugáo de White" que viu esta em termos de incremento no
Isto controle e uso de energia na medida em que evolui a organizagáo cultural (Adams,
s da 1975; Rappaport, 1971), para um neofuncionalismo e um neoevolucionismo
dife- que incorporam os princípios da racionalidade energética e ecológica, de adapta-
era- gáo funcional de populagóes ao meio e á "capacidade de carga" dos ecossiste-
série mas na explicagáo da organizagáo cultural (Vessuri, 1986). A ecologia funcional
pro- gerou conceitos como resiliéncia, taxa ecológica de exploragáo e capacidade de
rno- carga, que respondem á necessidade de internalizar os efeitos das práticas pro-
ec i - dutivas e dos processos económicos na estrutura e funcionamento dos ecossiste-
cio- mas (Gallopín, 1986).
abe- A geografia e a ecologia buscaram seus campos de uniáo e colaboragáo
esta (Bertrand, 1982; Tricart, 1978 e 1982; Tricart e Killian, 1982), permitindo
e, a "espacializar" a ecologia e dar escalas temporais á geografia, de maneira a po-
nto. der captar os mecanismos de apropriagáo dos recursos naturais através dos pro-
o ás cessos de produgáo rural e construir unidades operacionais de manejo susten-
ber, tável dos recursos naturais. Daí surgiram os novos ramos da geografia física e
142 ENRIQUE LEFF

da ecologia da paisagem, bem como a geografía e a ecologia humana, além de


novos métodos que permitem integrar a análise cartográfica da geo-grafia
descritiva com as explicagóes dos processos dinámicos dos ecossistemas da
eco-logia (Toledo, 1994).
A economia neoclássica respondeu ao desafio ambiental construindo os
conceitos de capital natural, de "fungáo de dano", máximo rendimento sustentá-
vel" ou "máxima capacidade de exploragáo" de um recurso dentro de urna eco-
nomia neoliberal dos recursos naturais. Ainda, o ecomarxismo iniciou um pro-
cesso crítico de reformulagáo dos conceitos do materialismo histórico para in-
corporar os processos naturais na dinámica do capital e no desenvolvimento de
suas forgas produtivas (Leff, 1993 a, O'Connor, J., 1998).
Estes processos de transformagáo ambiental dos paradigmas das ciéncias
náo se produzem por um desenvolvimento interno de seus programas de pesqui-
sa, mas por urna demanda externa. Este processo tampouco pode ser explicado
como urna "finalizagáo das ciéncias" (Bóhme et al., 1976), no sentido de que a
partir de sua maturagáo se abririam a uma multiplicagáo de suas aplicagóes
técnicas para solucionar problemas socioeconómicos. Certamente nestas trans-
formagóes do conhecimento influenciou fortemente a emergéncia e maturagáo
dos campos teóricos da ecologia e da termodinámica dos sistemas abertos. Ambos
os campos aparecem com um enorme potencial para gerar um processo de trans-
disciplinaridade, no sentido de que a partir de sua capacidade de compreensáo e
inter-relagáo de múltiplos processos, se estendem para outros campos do conhe-
cimento.
Contudo, este potencial de fertilizagáo transdisciplinar e de finalizagáo
depende da estrutura teórica de cada urna das ciéncias que sáo convocadas —
demandadas — pela questáo ambiental. Desta forma, a antropologia mostrou-se
como um campo particularmente aberto e dúctil a sua ambientalizagáo. Isso náo
depende táo-somente do fato "natural" de que seu objeto de estudo — a organi-
zagáo cultural — esteja sustentada por um hábitat de ordem natural, onde se
desenvolvem suas práticas produtivas e suas formagóes ideológicas que lhes
permite viver nesse meio — o mesmo poderia argumentar-se da dependencia
(embora cega) da economia de sua base natural de sustentagáo. É o estabeleci-
mento e maturagáo de urna antropologia evolucionista e funcionalista o que as
torna mais suscetíveis de acolher urna demanda de "ambientalizagáo" á qual,
sem dúvida, tem sido mais resistente a antropologia estrutural.
Por sua vez, os paradigmas da economia fundados numa epistemologia e
urna metodologia mecanicista tém sido muito mais resistentes a incorporar os
princípios ambientais. Certamente tem havido urna importante contribuigáo crí-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 143
E LEFF

de tica destes paradigmas a partir da percepgáo dos processos económicos como


afia processos entrópicos (Georgescu-Roegen, 1971; 1975). Entretanto, náo tem sido
s da fácil internalizar as normas e condigóes ecológicas de uma economia sustentá-
vel, os processos de longo prazo, os valores culturais, os direitos ambientais e
os princípios da gestáo ambiental participativa dos recursos naturais aos para-
o os digmas tradicionais da economia náo obstante a pressáo da demanda externa
ntá- para construir uma economia sustentável e igualitária, e o inquestionável grau
eco- de maturagáo do paradigma neoclássico. Daí estáo surgindo os novos paradig-
pro- mas da economia ecológica, da bioeconomia e do ecomarxismo, mas que sur-
a in- gem mais como uma expressáo dos limites da racionalidade económica domi-
o de nante que como fundamento de urna racionalidade produtiva alternativa.
O propósito de dar bases ao desenvolvimento sustentável e á construgáo
cias de urna racionalidade ambiental dos processos produtivos exige redefinir os
gui- paradigmas da economia e elaborar urna nova lógica da produgáo que permitam
ado a constituigáo de formagóes económico-socioambientais e a delimitagáo de uni-
ue a dades ambientais, que incorporem o potencial natural de recursos naturais, os
qlíes ciclos e tempos ecológicos de regeneragáo e conservagáo e os níveis de produti-
ans- vidade ecológica nos processos produtivos.
Oo As categorias de racionalidade ambiental e de saber ambiental aparecem
bos como construgóes teóricas delta sociologia "ambiental" do conhecimento, en-
ans- quanto articulam um conjunto de processos "superestruturais" (formagóes ideo-
"áo e lógicas e discursivas; cremas e comportamentos sociais, legitimagáo e institu-
nhe- cionalizagáo do saber) com a racionalidade interna das ciencias e com a aplica-
gáo de novos conhecimentos e técnicas ao controle e desenvolvimento das for-
cao gas produtivas da sociedade. A análise sociológica do saber ambiental levaria
is — assim a discernir a coeréncia interna dos enunciados explicativos, valorativos e
tu-se prescritivos do discurso ambiental, sua capacidade de produgáo de sentido, de
náo mobilizagáo social, de transformagáo política do Estado, de legitimagáo e de
gani - institucionalizagáo de novas formas de organizagáo produtiva, que se concreti-
le se zam na práxis da gestáo ambiental e na construgáo de formagóes económico-
lhes sociais fundadas em princípios de racionalidade ambiental.'
Incia Emerge assim urna nova perspectiva de análise das relagóes entre produ-
acei- gáo e conhecimento. É neste sentido que podemos pensar as relagóes entre o
te as saber ambiental, a emergencia das disciplinas ambientais, a constituigáo de urna
qual, racionalidade ambiental e a construgáo de um paradigma produtivo fundado nos
processos materiais que dáo supone a urna produtividade ecotecnológica, orien-
gia e tado pelos objetivos de um desenvolvimento eqüitativo, sustentável e duradou-
tr os ro, rompendo com a relagáo mecanicista entre a economia, o desenvolvimento
crí- das ciencias e suas aplicagóes tecnológicas.9
144 ENRIQUE LEFF

O saber ambiental surge entáo como o conjunto de paradigmas de co-


nhecimento, disciplinas científicas, formagóes ideológicas, sistemas de valo-
res, cremas e conhecimentos e práticas produtivas sobre os diferentes proces-
sos e elementos — naturais e sociais — que constituem o ambiente, suas
relagóes e seus potenciais. Este saber se plasma num discurso teórico, ideológi-
co e técnico, e circula dentro de diferentes esferas institucionais e ordens de
legitimagáo social. Desta forma, o saber ambiental está refletido nas teorias
científicas sobre o ambiente, no discurso político e nos planos oficiais, nas ex-
pressóes da consciéncia cidadá e nos princípios de suas organizagóes e de seus
programas de agáo, nas ordenagóes ambientais e nas técnicas e tecnologias para
a gestáo ambiental.
Urna racionalidade ambiental como fundamento de um desenvolvimento
alternativo se constrói num sentido prospectivo num processo de transforma-
góes históricas e mudangas sociais onde teoria e práxis seguem de máos da-
das; isto significa que o conhecimento desta racionalidade se produz em cién-
cias e disciplinas sociais que váo-se constituindo no próprio processo de re-
construgáo da realidade da qual dáo conta. Isto propóe a questáo da cientificida-
de das ciéncias sociais a partir da perspectiva ambiental e de sua contribuigáo á
explicagáo dos processos sociais que convergem para a realizagáo os objetivos
de urna racionalidade ambiental. Neste sentido, a cientificidade das ciéncias
sociais náo só se apresenta como um conhecimento objetivo sobre a realidade
social cristalizada através do processo histórico passado, como as condigóes de
verificagáo ou falsificagáo das utopias ambientais diante da realidade que ne-
gam. O saber ambiental propóe-se em relagáo com a confirmagáo das bases
materiais que sustentam seu potencial transformador, em sua eficácia na mobi-
lizagáo dos princípios materiais para a construgáo de urna racionalidade social
alternativa, na verificagáo histórica de sua verdade como poténcia: na produtivi-
dade ecotecnológica das práticas de manejo sustentável dos recursos, na legiti-
magáo dos princípios de racionalidade ambiental, na eficácia do movimento
ambiental.
A limitagáo para conduzir urna estratégia ambiental de desenvolvimento
sobre a base de urna racionalidade substantiva (os valores e direitos ambientais)
gerou a necessidade fundar os princípios do ambientalismo sobre bases mate-
riais e teóricas consistentes e sobre meios técnicos eficazes. Daí o sentido do
conceito de racionalidade ambiental, capaz de avahar, orientar e mobilizar os
processos materiais que conduzem á realizagáo de seus fins. Neste sentido, a
racionalidade substantiva ambiental gera um processo de racionalizagáo teórica
e técnica, que lhe conferem sua coeréncia conceitual e sua eficácia instrumental.
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 145

CO- Isto permite ao "paradigma ambiental" confrontar-se e contrastar-se com o real


B10- da racionalidade social prevalecente, verificando-se no processo de construgáo
OS- de seu referente, através de processos de racionalizagáo gerados pelas mudangas
tias sociais que levam consigo transformagóes axiológicas, gnoseológicas institu-
ógi- cionais e produtivas.
de O saber ambiental é mobilizado a partir dos "momentos" de problematiza-
ias
gáo do conhecimento disciplinar prevalecente. Por um extremo, é "empurrado"
ex-
pelas causas da crise ecológica, que implica um questionamento ao saber teóri-
eus
co e instrumental da racionalidade económica e social prevalecente. Do outro
ara
lado, o saber ambiental é "puxado" por urna racionalidade social alternativa, por
um saber prospectivo que projeta urna nova visáo da realidade, reorientando os
Int° avangos do conhecimento para seus objetivos.
ma-
da-
O saber ambiental emerge num processo diferenciado dentro de esferas
ién-
disciplinares específicas. A percepgáo do ambiental náo só provém dos interes-
re- ses envolvidos numa problemática determinada, ou pela desigual distribuigáo
a social dos custos ecológicos. A consciéncia ambiental constitui-se em condi-
oá góes culturais, geográficas, políticas e económicas específicas que afetam os
os diferentes grupos sociais e nagóes onde se produzem problemáticas ambientais
ias diversas. A percepgáo de urna problemática ambiental depende também das pers-
de pectivas de análises e das aproximagóes teóricas e ideológicas a partir de onde
de se busca explicá-las e resolvé-las (ecologia humana, energetismo social, análi-
ne- ses sistémicas, neomalthusianismo, marxismo). Daí a existéncia de múltiplos
nes métodos de análises e de toda uma gama de consciéncias ambientais que reper-
bi- cuten em forma diferenciada na produgáo de conhecimentos teóricos e instru-
ial mentais. Articulam-se assim as estratégias epistemológicas e conceituais do
vi ambientalismo com as políticas de pesquisa científica e os programas de educa-
iti- gáo e formagáo ambientais.
o A questáo ambiental gera assim urna complexa dialética entre realidade e
conhecimento. O saber ambiental náo é táo-somente uma resposta teórica mais
to adequada a um real social (a um referente empírico) mais complexo a partir de
s) novas aproximagóes holísticas e sistémicas. O saber ambiental questiona as teo-
te- rias sociais que legitimaram e instrumentalizaram a racionalidade social preva-
do lecente e defende a necessidade de elaborar novos paradigmas do conhecimento
os para construir outra realidade social. Estas características do saber ambiental,
,a de seus efeitos nas crengas e comportamento dos agentes sociais, bem como no
ca desenvolvimento das ciéncias e disciplinas sociais, aduba o terreno para fundar
al. urna sociologia ambiental do saber sociológico.
146 ENRIQUE LEFF

10. Análise sociológica de temáticas ambientais emergentes

A questáo ambiental gerou novas problemáticas sociais, que, por sua vez,
abrem novos espagos temáticos para a pesquisa interdisciplinar das ciéncias
sociais — e da sociologia em particular — , tocando fronteiras com outras dis-
ciplinas, como economia, psicologia, antropologia e filosofia. Entre estas temá-
ticas emergentes, destacam-se as seguintes:
a) a nogáo de qualidade de vida;
b) a ecologia política e os movimentos ambientalistas.
Nesta primeira abordagem será impossível esgotar a análise deltas novas
temáticas. Tenta-se apenas ir delineando os elementos que conformara entes
novos espagos para a reflexáo sociológica, dar alguns avangos conceituais, e
esbogar orientagóes para o desenvolvimento de estudos nestas áreas.

10.1. A nolao de qualidade de vida

A nogáo de qualidade de vida constituiu-se num "conceito" central dos


objetivos perseguidos pela gestáo ambiental do desenvolvimento. Contudo, tem
sido mais fácil sua incorporagáo no discurso político e inclusive na linguagem
comum, do que na elaboragáo de um conceito abrangente ou de uma categoria
analítica que permita sua instrumentalizagáo em projetos de pesquisa e ou em
políticas de desenvolvimento. A nogáo de qualidade de vida relativiza e contex-
tualiza a questáo das necessidades humanas e do processo social para satisfazé-
las, demarcando este problema das consideragóes tradicionais das necessidades
na economia convencional (leia-se a economia do bem-estar) numa nova pers-
pectiva; entretanto, pouco se avangou na sistematizagáo e operacionalizagáo do
conceito.
A nogáo de qualidade de vida emerge no momento em que a sociedade
"opulenta" parecia libertar-se da etapa na qual o processo económico era cons-
truído como um processo de produgáo de riqueza fundamentado no conceito de
escassez, bem como da economia forgada, como necessidade para a acumulagáo
de excedentes e a expansáo do capital. A énfase nos aspectos qualitativos das
condigóes de vida representa a percepgáo da degradagáo do bem-estar gerada
pela crescente produgáo de mercadorias, a deterioragáo dos bens naturais co-
muns e dos servigos públicos básicos e a homogeneizagáo dos padróes de con-
sumo. Isso aponta a urna avaliagáo do sentido da existéncia, da qualidade do
LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 147

consumo, e da qualidade do trabalho produtivo, que vai além dos problemas de


emprego, salário real e da desigualdade na distribuigáo da riqueza.
ez,
ias A questáo da qualidade de vida irrompe no momento em que converge a
s- massificagáo do consumo e a concentragáo da abundáncia, com a deterioragáo
a- do ambiente, a degradagáo do valor de uso das mercadorias, o empobrecimento
crítico das maiorias e as limitagóes do Estado para prover os servigos básicos a
urna crescente populagáo marginalizada dos circuitos da produgáo e consumo.
Ao tempo que a ampliagáo dos mercados gera a uniformizagáo dos bens de
consumo, gerou-se um processo de degradagáo ambiental pela variedade de
vas condigóes ecológicas e culturais e a canalizagáo de importantes recursos econó-
tes micos para promover o consumo (para a realizagáo das mercadorias), gerando
,e um processo de produgáo ideológica de necessidades e desencadeando o desejo
para uma demanda inesgotável de mercadorias. Dá-se neste complexo processo
urna situagáo de satisfagáo/insatisfagáo, de identificagóes subjetivas e
marginalizagóes culturais através do consumo.
A nogáo de qualidade de vida sugere uma complexizagáo do processo de
produgáo e de satisfagáo de necessidades, que tende a superar a divisáo simplis-
os ta entre necessidades objetivas e necessidades de caráter subjetivo, ou inclusive
em a dicotomia entre fatores biológicos e psicológicos, incorporando a determina-
em gáo cultural das necessidades. Em sua análise imbricam-se as nogóes de bem-
Aria estar, nível de renda, condigóes de existéncia e estilos de vida; tecem-se proces-
(em sos económicos e ideológicos na definigáo de demandas simbólicas e materiais,
lex- na imposigáo de modelos de satisfagáo através de efeitos de demonstragáo e na
é- manipulagáo publicitária do desejo.
es
Os valores culturais determinam a estruturagáo das necessidades e da de-
rs-
manda social, bem como dos meios para satisfazé-la. Existem assim vias dife-
I do
renciadas para estabelecer urna qualidade de vida, que vai das formas mais mís-
ticas e menos materiais, baseadas no ceticismo e na abstinéncia, até as formas
cle mais refinadas de cultura do gosto, corno poderia se exemplificar entre a quali-
ns- dade de vida do faquir e do monge budista, frente aos prazeres sofisticados do
1 de gourmet ou do melómano.
.áo
As consideragóes sobre a qualidade de vida propóe assim um questiona-
idas
mento sobre a homogeneizagáo de meios massificados para produzir e satisfa-
¡ida
zer as necessidades de diferentes culturas, bem corno suas relagóes com o am-
o-
biente. Estas se manifestam em relagáo com os processos culturais de definigáo
n-
de necessidades e os meios ecológicos para satisfazé-las. Exemplo disso sáo os
do
sistemas de medicina tradicionais, de moradia ecológica e de práticas alimenta-
148 ENRIQUE LEFF

res de acordo com a cultura e com o meio, e que tém sido atingidos pelos pro-
cessos massificados de produgáo e consumo.
A qualidade de vida, pelos elementos que a definem, náo permitem gene-
ralizar as necessidades sociais, nem sequer por estratos ou grupos sociais. A
qualidade de vida é um processo no qual diversas circunstancias incidem num
indivíduo (urna mesma condigáo externa náo se conjuga da mesma maneira e no
mesmo tempo com outras para incidir na satisfagáo de um indivíduo). Por sua
vez, implica urna abertura do desejo e das aspiragóes que váo além da satisfagáo
das necessidades básicas.
A qualidade de vida repropóe os valores associados com a restrigáo do
consumo e o estímulo ao crescimento económico, a satisfagáo das necessidades
individuais diante dos requerimentos para a reprodugáo social; questiona os
benefícios alcangados pelas economias de escala e de aglomeragáo e da raciona-
lidade do consumo que tende a maximizar o benefício presente e descontar o
futuro. A satisfagáo das necessidades de urna sociedade opulenta, ou de urna
sociedade altamente estratificada e polarizada, requer maiores recursos e exerce
urna maior pressáo sobre o ambiente do que urna sociedade igualitária (Herrera
et at., 1976).
Com o conceito de qualidade de vida fizeram-se esforgos por "humanizar"
o consumo e por explicitar e hierarquizar as necessidades básicas (Gallopín,
1982; Mallmann, 1982; Milbraith, 1982). Porém, muitos destes esforgos náo
parecem sair do ámbito da racionalidade produtiva dominante para questioná-la
e repropor a qualidade de vida na perspectiva ambiental. Desta maneira, por
exemplo, se reconhece a importáncia do acesso a um trabalho produtivo, a cer-
tas amenidades recreativas e á participagáo na tomada de decisóes, mas náo se
propóem estas necessidades como necessidades de autogestáo dos recursos, do
rompimento dos padróes de consumo produzidos e implantados de fora para
dentro, e das implicagóes macroeconómicas que geraria urna maior auto-sufi-
ciéncia das comunidades fundadas num consumo diversificado. Isto leva a uma
redefinigáo das necessidades básicas: nutrigáo, saúde, moradia, vestimenta, edu-
cagáo, emprego e participagáo.
A qualidade de vida está necessariamente conectada com a qualidade do
ambiente, e a satisfagáo das necessidades básicas, com a incorporagáo de um
conjunto de normas ambientais para alcangar um desenvolvimento equilibrado
e sustentado (a conservagáo do potencial produtivo dos ecossistemas, a preven-
gáo frente a desastres naturais, a valorizagáo e preservagáo da base de recursos
naturais, sustentabilidade ecológica do habitat), mas também de formas inéditas
de identidade, de cooperagáo, de solidariedade, de participagáo e de realizagáo,
UF LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 149

pro- bem como de satisfago de necessidades e aspiragóes através de novos proces-


sos de trabalho.
gene- Urna questáo importante para a análise da qualidade de vida é a percepgáo
tis. A do sujeito de suas condigóes de existéncia. Neste sentido, há urna tenso entre
num certas condigóes "objetivas" e a forma de internalizá-las, de tomar consciéncia
e no das mesmas. Entram aqui urna série de mecanismos psicológicos de compensa-
sua gáo/apropriagáo/rejeigáo. Por exemplo, comunidades urbanas e rurais podem
faqáo perceber o acesso a urna moradia construída com os padróes mínimos de
habitabilidade e disfuncionalidade frente ao meio ambiente, mas que incorpo-
áo do ram elementos que representam signos de status e de modernidade, corno urna
dades melhoria na qualidade de vida, sem perceber os "desatisfatores", "desadaptagóes"
Ina os e inclusive riscos para a saúde ou á própria vida trazida por estes modelos. Neste
iona- sentido, a percepgáo das "condigóes de existéncia" gera sej a processos de adapta-
ntar o gáo a situagóes impostas, ou de mobilizagáo social de protesto incorporando em
urna suas lutas demandas por novas formas de satisfago de necessidades fora das
xerce normas estabelecidas pelos beneficios da economia de mercado e do planeja-
rrera mento nacional.
Certamente avangou-se na elaboragáo de indicadores de qualidade de vida
izar" que tendem a deslocar os indicadores tradicionais de bem-estar (Milbraith, 1982).
opín, Entretanto, estes no conseguem vencer facilmente a limitagáo imposta pelos
no indicadores "objetivos" á produgáo de indicadores qualitativos de qualidade de
ná-la vida. Enquanto alguns sociólogos preocuparam-se por introduzir estimativas
, por sobre as percepgóes subjetivas e sobre os sistemas de valores que incidem na
cer- qualidade de vida, os conceitos sobre esses processos se mantém num nível
o se distante de urna sociologia empírica capaz de derivar indicadores instrumentali-
s, do záveis para a gesto ambiental (Smith, 1978).
para
sufi-
urna 10.2 A ecologia política e os movimentos ambientalistas
edu-
A crise ambiental no só propóe limites da racionalidade económica, mas
e do também a crise do Estado, de urna crise de legitimidade e de suas instancias de
• um representagáo, de onde emerge urna sociedade civil em busca de um novo para-
rado digma civilizatório. Esta demanda de democracia e participagáo da sociedade
ven- obriga a rever os paradigmas económicos, mas também as análises clássicas do
rsos Estado e as próprias concepgóes da democracia no sentido das demandas emer-
ditas gentes de sustentabilidade, solidariedade, participagáo e autogestáo dos proces-
sos produtivos e políticos.
150 ENRIQUE LEFF

Desta forma, surgiram novos atores e movimentos sociais que povoaram a


cena política. Estes "movimentos de base", organizados tipicamente como re-
des de interagáo de agrupamentos autónomos, segmentados, policéfalos, em
estruturas náo-hierárquicas, descentralizadas e participativas (Gerlach & Hine,
1970; Gunderlach, 1984), aparecem como "portadores de urna cultura política
democrática (...) trazendo novos valores, perspectivas, métodos e aproximagóes
á arena política" (Mainwaring e Viola, 1984). Estes novos movimentos distin-
guem-se por suas formas "apolíticas" de fazer política e por suas novas deman-
das de participagáo social, pela obtengáo de bens simbólicos e pela recuperagáo
de estilos tradicionais de vida, mas também pela defesa de novos direitos étni-
cos e culturais e de reivindicagáo de seu ancestral património de recursos am-
bientais; de lutas pela dignidade e pela democracia, contra a opressáo e superex-
ploragáo de grupos sociais, e pelos direitos de reapropriagáo e autogestáo de
seus recursos naturais.
Assim, as estratégias de luta destes novos movimentos sociais propóem
uma ruptura com as formas tradicionais de organizagáo e com os canais de
intermediagáo política. Estes processos estáo dinamizando e transformando as
formas de sustentagáo, de exercício e de luta pelo poder ao abrir novos espagos
de confrontagáo, negociagáo e concerto relacionados com os conflitos e a toma-
da de decisóes relativa á apropriagáo da natureza e a participagáo social na ges-
táo ambiental.
Neste sentido, os movimentos ambientalistas emergem como transmisso-
res de mudangas sociais através de conflitos que náo podem ser resolvidos me-
diante os procedimentos jurídicos estabelecidos nem analisáveis dentro dos pa-
radigmas dominantes do pensamento sociológico próprio das sociedades capi-
talistas (Gunderlach, 1984; Nedelmann, 1984). Neste contexto surgem os movi-
mentos de protesto pela deterioragáo ambiental e destruigáo dos recursos natu-
rais, pelo desmatamento desenfreado, pelos efeitos ambientais e sociais gerados
pelos processos de pecuarizagáo, pela agricultura altamente tecnologizada, pela
hiperconcentragáo urbana e pelos megaprojetos de desenvolvimento regional,
pelos perigos das usinas nucleares, bem como a favor da conservagáo dos recur-
sos naturais, da diversidade genética, e da melhoria do ambiente, do desenvolvi-
mento de novas tecnologias e a promogáo de processos de autogestáo e de par-
ticipagáo na tomada de decisóes.
Dentro dos novos movimentos da sociedade civil (religiosos, feministas,
juvenis, estudantis e das minorias étnicas), incluem-se os movimentos ecologis-
tas ou ambientalistas. Embora entes movimentos compartilhem muitas caracte-
rísticas, também se diferenciam tanto por seus móbiles e objetivos, como por
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 151
LIE LEFF

suas formas específicas de organizagáo. Os movimentos ambientalistas emer-


iram a gem como resposta da sociedade á crescente deterioragáo ambiental. Contudo,
no re- náo se está produzindo um estudo sistemático dos mesmos na América Latina.
em Isso se explica tanto por sua novidade, dinamismo e heterogeneidade, como a
Hine, suas diversas formas de organizagáo, expressáo política e eficácia de suas agóes,
Dlítica o que dificulta sistematizar suas experiéncias, tipificar suas estratégias e deter-
LaOes minar suas tendéncias.
Cman- Um importante aspecto da análise destes movimentos emergentes é o da
eficácia de suas formas de organizagáo e de luta. O princípio de autonomia e
individualidade no qual se fundam suas formas de organizagáo e sua cautela em
étni-
inscrever-se nos procedimentos políticos estabelecidos, pode confiná-los em
s am-
espagos de "solidariedade marginal" carentes de meios para gerar um processo
Derex-
generalizado de transformagóes sociais e institucionais (Gunderlach, 1984), ou
á'o de
a radicalizar os meios da agáo política, ao romper os canis institucionais de
intermediagáo entre os indivíduos e o Estado, através das organizagóes e parti-
Ipó- em dos políticos convencionais (Nedelmann, 1984).
lis de
Porém, ante estas limitagóes, os novos movimentos ambientalistas mos-
ldo as
tram um maior grau de flexibilidade, adaptabilidade, capacidade de resposta a
cacos
possibilidades de radicalizar suas demandas, o que lhes oferece vantagens estra-
¡orna-
tégicas frente ás organizagóes políticas institucionalizadas, partidos políticos e
ges-
sindicatos. Os novos movimentos políticos tém diferenciado assim as formas de
agáo e de comportamento político.
Disso-
Diferentemente de muitos dos novos movimentos políticos que surgem
s me-
em torno de demandas morais e cada vez mais individualizadas e destinadas a
fs pa-
grupos definidos da populagáo (grupos religiosos, juvenis, estudantis, sexuais),
capi-
os movimentos ambientalistas nos países subdesenvolvidos estáo diretamente
novi-
associados com as condigóes de produgáo e de satisfagáo das necessidades bási-

rp
natu-
cas da populagáo. Isto outorga a estes movimentos urna perspectiva social e
ados
política mais global, apesar da heterogeneidade dos diferentes grupos ambienta-
pela
listas, de suas diferentes perspectivas sociais; estratégias políticas e práticas
onal,
concretas de agáo.
ecur-
olvi- Os movimentos ambientalistas podem ser caracterizados por uma série de
par- objetivos explícitos em seus programas de organizagáo e pelas manifestagóes de
seus planos de agáo, bem corno pela organizagáo em torno de problemas con-
cretos e a incorporagáo de valores e conceitos — muitos vezes náo explícitos —
istas,
que levam á busca de novos canais de expressáo e estratégias de luta. Urna
is- síntese dos princípios organizadores dos movimentos ambientalistas sáo os se-
cte-
guinte s :
or
152 ENRIQUE LEFF

a) Maior participagáo nos assuntos políticos e económicos, particularmente


na autogestáo dos recursos ambientais.
b) Sua insergáo nos movimentos pela democratizagáo do poder político e
da descentralizagáo económica.
c) Defesa de seus recursos e seu ambiente, para além das formas tradicio-
nais de luta pela terra, por emprego e salário.
d) Busca de novos estilos de vida e padróes de consumo afastados dos
modelos urbanos e multinacionais.
e) Busca de sua eficácia através de novas formas de organizagáo e luta,
longe dos sistemas institucionalizados e corporativistas do poder po-
lítico.
f) Organizagáo em torno a valores qualitativos (qualidade de vida) por
cima dos beneficios que podem derivar da oferta do mercado e do Esta-
do de bem-estar.
g) Crítica á racionalidade económica fundada na lógica do mercado, da
maximizagáo do lucro, da eficiéncia e produtividade tecnológica e dos
aparelhos associados de controle económico e ideológico.

Propae-se, dessa forma, o problema da capacidade do movimento ambien-


talista para incorporar velhas demandas populares de participagáo e contra a
desigualdade, marginalizagáo, exploragáo e submissáo que produzem os pro-
cessos económicos e políticos prevalecentes; assim, as demandas imediatas de
melhorias salariais, de propriedade da terra, do direito á moradia e aos servigos
públicos podem redefinir-se dentro das lutas pela defesa dos recursos naturais,
da qualidade ambiental e de vida e as perspectivas de um desenvolvimento sus-
tentável, para incidir na tomada de decisóes sobre novos padróes de uso dos
recursos, modelos de urbanizagáo, formas de assentamento humano, inovagáo
de processos e condigóes de trabalho mais satisfatórios etc. Estes movimentos
podem gerar uma forga social capaz de internalizar as reivindicagóes ambienta-
listas nos programas do Estado e dos partidos políticos tradicionais, abrindo
novas perspectivas e espagos de participagáo á sociedade civil para a gestáo
ambiental.
A questáo ambiental náo só incide sobre o problema da distribuigáo do
poder e da renda, da propriedade formal da terra e dos meios de produgáo, e da
incorporagáo da populagáo aos mecanismos de participagáo dos órgáos corpora-
tivos da vida económica e política. As demandas ambientais discutem a questáo
da participagáo democrática da sociedade na gestáo de seus recursos atuais e
EFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 153

[te potenciais, bem como no processo de tomada de decisóes para a escolha de


novos estilos de vida e a construgáo de futuros possíveis sob os princípios de
1e independéncias política, eqüidade social, diversidade étnica, sustentabilidade
ecológica, equilibrio regional e autonomia cultural (Leff, 1998; Leff, 2000b
o- caps. 6-10).
A problemática ambiental questiona urna série de ideologias teóricas e
práticas: náo apenas os valores e comportamentos associados com as práticas de
consumo derivadas da sociedade pós-industrial ou pós-moderna e aos interesses
disciplinares que obstaculizara a análise integrada da realidade e a implementa-
gáo de programas de aproveitamento integrado dos recursos e desenvolvimento
sustentado, mas também as ideologias que orientam as demandas e reivindica-
góes das classes trabalhadores e dos movimentos populares para satisfazer suas
or necessidades básicas através da propriedade social dos meios de produgáo, do
:a- acesso ao mercado de trabaiho e da distribuigáo da renda.
A incorporagáo das classes trabalhadoras e das populagóes rurais ás vias
da abertas pelo progresso a pela modernidade, em muitos casos significou a degra-
dagáo de suas condigóes de existéncia: perda das raízes culturais, emigragáo
territorial, marginalizagáo social, exploragáo económica, desemprego,
inacessibilidade aos servigos públicos, destruigáo de seus recursos naturais, aban-
dono de suas práticas culturais de uso dos recursos e perda de seus meios de
subsisténcia. Em muitos casos, os mecanismos da economia do mercado e as
compensagóes derivadas das políticas económicas e sociais do Estado foram
incapazes de satisfazer as necessidades básicas mínimas das maiorias e incre-
SS
mentaram as manifestagóes da pobreza crítica (Leff, 1994). Esta situagáo é mais
s, notória nos grupos marginalizados do processo económico nacional, mais de-
s- pendentes de suas condigóes de arraigo territorial e de sua integragáo cultural ao
s nível local, para definir suas necessidades materiais e espirituais e encontrar os
o meios de satisfazé-las. Nenhum salário compensa a perda de integridade cultu-
ral dos poyos e a degradagáo irreversível o potencial produtivo de seus recursos.
Assim, para além das deficiéncias e insuficiéncias do sistema produtivo para
satisfazer as demandas dos consumidores, o movimento ambientalista propóe
urna crítica radical das necessidades e novas reivindicagóes a respeito do con-
ceito de qualidade de vida.
As demandas de transetorializagáo da administragáo pública, de abertura
de novos espagos autogestionários, de reorganizagáo interdisciplinar do saber e
de distribuigáo territorial das atividades produtivas, questionam todo um con-
o junto de práticas ideológicas, políticas administrativas e económicas que se de-
e senvolvem dentro dos aparelhos do Estado. O ambientalismo é um movimento
154 ENRIQUE LEFF

que problematiza os padróes de produgáo e consumo, os estilos de vida e as


orientagóes e aplicagóes do conhecimento no processo de desenvolvimento. O
ambientalismo abre-se assim para um novo projeto de civilizagáo que implica a
construgáo de uma nova racionalidade produtiva e urna nova cultura. Isto induz
urna série de reformas e transformagóes do Estado, como "lugar" de confronta-
gáo de interesses contraditórios de diferentes grupos sociais.
A questáo ambiental gera novas aliangas populares, táticas novas de con-
certo do Estado com grupos empresariais, políticos e com a sociedade civil para
resolver os problemas ambientais, bem corno negociagóes políticas no interior
da administragáo pública para induzir os mecanismos de coordenagáo que de-
manda o planejamento transsetorial para a gestáo ambiental. Estas processos
sociais e políticos emergentes obrigam a rever alguns esquemas de análise do
conflito político, tais como a "questáo clássica durkheimiana" da intermedia-
QáO entre indivíduos, organizagóes políticas e governo (Nedelmann, 1984), e
propóe a necessidade de incorporar o estudo destes processos políticos dentro
do campo tradicional da sociologia política, agrária e dos movimentos urba-
no-populares.
Os grupos ambientalistas náo se identificam com urna classe, um partido
ou um estrato social. É um movimento que atravessa com diferentes tensóes
todo o tecido social. Por outro lado, o movimento ambiental articula-se com
outros movimentos e organizagóes políticas dentro das organizagóes populares
e das classes trabalhadoras, de camponeses, operários, grupos indígenas e clas-
ses médias. O ambientalismo vai além da adigáo de novas reivindicagóes dentro
das demandas e formas tradicionais de negociagáo. Incorpora novos critérios
para a agáo social, novas formas de participagáo, novos objetivos e valores para
o desenvolvimento humano, novas estratégias económicas para a satisfagáo das
necessidades materiais, através da ativagáo de outros princípios e forgas natu-
rais, tecnológicas e sociais. O ambiental revela-se corno urna nova forga produ-
tiva e urna nova forga política.
O estudo dos movimentos ambientais faz surgir urna série de interroga-
góes para a análise sociológica e politológica sobre:
a) o impacto democratizante destes movimentos nas estruturas políticas
estabelecidas;
b) 1s formas nas quais o discurso ambientalista, seus propósitos, seus va-
lores e suas práticas concretas influenciam na legitimidade das forma-
góes ideológicas, do discurso político e das políticas macroeconómicas
prevalecentes;
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 155
LEFF

c) as estratégias políticas destes movimentos emergentes diante do Esta-


as do, dos partidos, dos sindicatos e suas aliangas com outros movimen-
1. O tos da sociedade civil;
:a a
d) a nova cultura política, nao só de maior pluralidade e tolerancia, mas
duz
que permita mediar e resolver os crescentes conflitos que surgem na
nta-
transigáo de uma sociedade hierarquizada e desigual para uma socieda-
de igualitária e democrática.
1:in-
)ara A sistematizagáo do conceito de racionalidade ambiental permite avahar o
rior "caráter ambiental" de urna série de movimentos sociais. A incorporagáo dos
de- princípios ambientais nas práticas produtivas e nas estratégias políticas do am-
;sos bientalismo, só podem ser definidas em fungáo de um conjunto de fans e meios
do que conformam urna racionalidade ambiental, com referéncia á qual podem ser
aia- avaliadas as agóes e movimentos sociais que se inscrevem e participam em seu
), e processo de constituigáo. Os atos de consciéncia e seus efeitos na organizagáo
tro social e na mobilizagáo política sao "ambientais" enquanto internalizarem um
ba- certo "paradigma ambiental", e enquanto processos sociais, práticas produtivas
e agóes políticas constituam atos de "racionalidade ambiental". Sem esta pers-
ido pectiva metodológica no estudo dos movimentos ambientais, corre-se o risco de
es reduzir o campo de percepgáo a aqueles grupos que se autodenominam "ecolo-
om gistas", ou perder de vista o caráter ambientalista de outros movimentos (cam-
es poneses, indígenas, populares) que nao se reconhecem como parte do movi-
as- mento ambientalista nem incorporam de maneira explícita reivindicagóes eco-
tro
lógicas em suas demandas políticas.
ios Neste sentido, o movimento ambientalista é um meio para a realizagáo
ara destas metas nao só através de suas manifestagóes antinucleares, sua luta contra
as a poluigáo e sua defesa dos recursos naturais, mas também por sua eficácia na
transformagáo da setorializagáo da administragáo pública e dos interesses inter-
disciplinares estabelecidos, na promogáo de conhecimentos científicos e tecno-
lógicos e sua aplicagáo na implementagáo de projetos de autogestáo, de apro-
veitamento sustentavel dos recursos, na elaboragáo de novos instrumentos para
a gestáo ambiental e na melhoria das condigóes de existéncia e qualidade de
vida de diferentes grupos sociais (Leff, 1988b).

Notas

1. "Urna boa parte da teoria sociológica está orientada á estrutura e nao aos processos, e
tende receber um enfoque ás instituigóes. Isto levou a tras problemas específicos: os de esta-
156 ENRIQUE LEFF

bilidade e mudanga, os de fronteiras e os de inflexibilidade. A sociologia tem dificuldade para


abordar a mudanga porque seus modelos tém sido estáticos e porque suas aproximagóes aos
processos de mudanga social tém sido a priori. Tem apresentado problemas com as fronteiras
porque a énfase nas instituigóes levou a urna tendéncia de enfocar processos dentro e entre
elan e ignorar a riqueza das interagóes informais. Sua inflexibilidade é resultado disto; fre-
qüentemente foi incapaz de explicar fenómenos bem comprovados, porque náo se enquadram
em nenhum de seus paradigmas explicativos" (Walker, 1987: 774).
2. Definirei o potencial ambiental de desenvolvimento como o conjunto de forgas físicas,
ecológicas, tecnológicas e sociais que se conjugara para determinar a oferta sustentável de
recursos (de valores de uso) naturais, técnicos e humanos e que se traduz através de sua
ordanagáo ecológica, da inovagáo de sistemas tecnológicos apropriados e de processos de
trabalho, numa oferta e produtivade sustentada de bens sociais para satisfazer as necessidades
básicas e elevar a qualidade de vida das pessoas. O potencial ambiental está fundado na alta
produtividade primária dos ecossistemas diversos e complexos e leva a propor o processo
geral de produgáo como a articulagáo de um sistema de recursos naturais, um sistema tecno-
lógico para sua transformagáo e um sistema de valores culturais. Assim, o ambiente reordena
as relagóes sociais de produgáo e reorienta o desenvolvimento das forgas produtivas da socie-
dade (Leff, 2000b).
3. "A riqueza de um conceito científico mede-se por seu poder deformador. Esta riqueza
náo pode ser designada a um fenómeno isolado do que lhe seria reconhecida urna riqueza cada
vez maior de caracteres, e seria cada vez mais rico em compreensáo (...). Deverá deformar os
conceitos primitivos, estudar suas condigóes de aplicagáo e sobretudo incorporar as condi-
ebes de aplicaccio de um conceito no próprio sentido do conceito. É nesta última necessidade
que reside (...) o caráter dominante do novo racionalismo, correspondente a urna forte unido
da expressáo e da razáo" (Bachelard, 1938: 61).
4. "Outro argumento racionalista da suposta comunidade da ciéncia afirma que a ciéncia
proporciona um controle de predizer acumulativo do meio ambiente e que sua posigáo eviden-
temente privilegiada neste sentido sobre todos os outros sistemas de crengas conhecidos é
urna pedra fundamental universal de racionalidade" (Hesse, in: Olivé, 1985: 174).
5. É de fora do discurso ambiental de onde surgiu urna concepgáo do "planejamento de
situagóes" (Matus, 1980), que se concebe em termos de uma estratégia de transformagáo da
racionalidade social através do concerto de agóes para a mudanga social. Esta proposta, sem
dúvida interessante, apresenta problemas de ordem teórica e prática para conceber um plane-
jamento para a mudanca, isto é, sobre a natureza da mudanga e dos meios planejados para
serem alcangados (a teoria revolucionária mobiliza e produz elementos para a urna estratégia
política de mudanga, mas o planejamento foi um processo de racionalizagáo de um regime
estabelecido).
6. Esta crítica ambiental á racionalidade económica e do capital estende-se também á
racionalidade social construída pelo marxismo, ao hipostasiar os conceitos de produgáo, tra-
balho e necessidade corno urna metafísica antropológica do homem: "As necessidades e o
trabalho é a dupla potencialidade do homem ou sua dupla qualidade genérica. Esta é a mesma
corrente antropológica na qual o conceito de produgáo é esbogado como o `movimento funda-
mental da existéncia humana', definindo urna racionalidade e uma socialidade apropriada
para o homem" (Baudrillard, 1973).
7. Foucault distingue o saber do conhecimento da seguinte forma: "Quando uso a palavra
saber, o fato para distingui-la de um conhecimento. O primeiro é o processo através do qual o
:FF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 157

ira sujeito se encontra modificado pelo que conhece, ou melhor, pelo trabalho realizado para
os conhecer. É o que permite a modificagáo do sujeito e a construgáo do objeto. Conhecimento é
o processo que permite a multiplicagáo dos objetos cognoscíveis, o desenvolvimento de sua
tre inteligibilidade, a compreensáo de sua racionalidade, enquanto que o sujeito que faz a pesqui-
re- sa permanece sempre o mesmo" (Foucault, 1991).
im 8. Esta análise obviamente seria frutífera para ver as inconsistencias entre a teoria e a
prática do paradigma económico prevalecente. Neste sentido, as regras formais da economia
as, neoclássica — por exemplo, a "regra de Hotelling", que estabelece que os custos de extragáo
de da unidade marginal do recurso deve crescer a urna taxa igual á taxa de juros do mercado,
ua regulando assim o balango entre equilíbrios ecológicos e económicos e aproximando-os a um
de ótimo social —, foi refutada na realidade das políticas económicas que geraram um acelerado
les desequilíbrio ecológico e degradagáo ambiental (Cf. Gutman, 1986: 180)
9. "Segundo Foucault, é por esta via que devemos pensar a insergáo de urna ciencia numa
iso formagáo social, é por esta via que se evita ao mesmo tempo o idealismo para o qual a ciencia
lo-
cai do céu, e o mecanismo-economicista para o qual a ciencia náo é senáo um reflexo da
na
produgáo" (Lecourt, 1972:131).
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SABER AMBIENTAL: DO CONHECIMENTO


INTERDISCIPLINAR AO DIÁLOGO DE SABERES

1. Conhecimento, ambiente e complexidade

A globalizagáo da degradagáo socioambiental impós a diversas disciplinas


científicas o imperativo de internalizar valores e princípios ecológicos que asse-
guram a sustentabilidade do processo de desenvolvimento. Neste contexto, sur-
giram novos enfoques metodológicos para apreender a multicausalidade e o
potencial sinergético de um conjunto de processos de ordem física, biológica,
tecnológica e social. Em sua articulagáo, entes processos conformam sistemas
complexos que reembasam a capacidade de compreensáo e agáo a partir dos
paradigmas unidisciplinares de conhecimento.
O ambiente emerge impulsionado pelas diferentes ordens do real que fo-
ram externalizadas e dos saberes subjugados pelo desenvolvimento das ciéncias
modernas (Foucault, 1980). 0 ambiente está integrado por processos, tanto de
ordem física como social, dominados e excluídos pela racionalidade económica
dominante: a natureza superexplorada e a degradagáo socioambiental, a perda
de diversidade biológica e cultural, a pobreza associada á destruigáo do patri-
mónio de recursos dos poyos e a dissolugáo de suas identidades étnicas; a distri-
buigáo desigual dos custos ecológicos do crescimento e a deterioragáo da quali-
160 ENRIQUE LEFF

dade de vida. Ao mesmo tempo, o ambiente emerge como um novo potencial


produtivo, resultado da articulagáo sinergética da produtividade ecológica, a
inovagáo tecnológica e a organizagáo cultural.
O ambiente náo é o meio que circunda as espécies e as populagóes bioló-
gicas; é urna categoría sociológica (e náo biológica), relativa a urna racionalida-
de social, configurada por comportamentos, valores e saberes, bem como por
novos potenciais produtivos. Neste sentido, o ambiente do sistema económico
está constituído pelas condigóes ecológicas de produtividade e regeneragáo dos
recursos naturais, bem como pelas leis termodinámicas de degradagáo de maté-
ria e energia no processo produtivo. O ambiente estabelece potenciais e limites
ás formas e ritmos de exploragáo dos recursos, condicionando os processos de
valorizagáo, acumulagáo e reprodugáo do capital.
O saber ambiental é um saber sobre esse campo externalizado pela racio-
nalidade económica, científica e tecnológica da modernidade; mas por sua vez
conota os saberes marginalizados e subjugados pela centralidade do logos cien-
tífico. As ciéncias avangaram desconhecendo seus saberes precursores, buscan-
do estabelecer um círculo de racionalidade, uma estrutura determinante dos pro-
cessos dos quais davam conta através da construgáo de objetos de conhecimen-
to. Inclusive o racionalismo crítico da epistemologia bachelardiana pensou a
constituigáo das ciéncias como um rompimento epistemológico com as ideolo-
gias teóricas precedentes. neste processo ficaram interrompidos e abandonados
urna série de processos de conhecimento: a produtividade da natureza no siste-
ma económico dos fisiocratas deslocado pelo sistema de valor-trabalho na eco-
nomia clássica; o sentido do anagrama relegado pela relagáo estrutural entre
significante e significado; ao sentido enigmático e a sedugáo da palavra domi-
nado pelo método de interpretagáo e a estrutura dos processos inconscientes. Os
conceitos transformados em signos foram transitando a partir de sua vontade de
interpretar a realidade até alcangar um efeito de construqcio da realidade á ima-
gem e semelhanga de seu modelo teórico (Baudrillard, 1979).
Althusser rompe com a relagáo especular da verdade científica no sistema
representacional que identifica o conceito com o real, com a construgáo do obje-
to de conhecimento e sua diferenciagáo do objeto real. Sua epistemologia estru-
turalista abriu vias para pensar a articulagáo das ciéncias (ver cap. 1), mas des-
conheceu e descartou das ideologias tudo aquilo que circunda ou náo é reconhe-
cível pelos objetos científicos legítimos e cuas estruturas conceituais.
Náo se trata apenas que o método científico falhe em seu afá absolutista de
alcangar a verdade e identidade entre a razáo e a facticidade do objeto e dos
fatos, que deixe fora a subjetividade e o saber pessoal. Náo é que essa "subjeti-
■11

EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 161


IE LEFF

ncial vidade" seja o fator determinante das descobertas científicas, mas que os para-
ca, a digmas científicos se afirmam negando suas falhas, tudo o que náo explicam ou
que desconhecem. O conhecimento prático se esquece do real, dos objetos das
ciéncias, e todo sistema reduz a realidade, deixando muitas coisas de fora,
ioló-
externalizando processos, subjugando saberes, desconhecendo racionalidades e
dida-
ignorando a complexidade ambiental de suas inter-relagóes, tudo isto que náo é
) por
reintegrável por um método sistémico nem por urna prática interdisciplinar.
mico
) dos O conhecimento, ao fragmentar-se analiticamente para penetrar nos entes,
naté- separa o que organicamente está articulado; sem saber, sem intengáo expressa,
pites gera uma sinergia negativa, um círculo vicioso de degradagáo ambiental que o
)s de conhecimento já náo compreende nem contém. Essa forma de conhecimento,
que quer apreender os entes em sua objetividade, indagando suas esséncias,
construíram um "objeto" complexo que já náo se atém á multicausalidade dos
vez processos que os gerou. O transobjeto que gera esta transgénese demanda urna
cien- transdisciplinaridade que já náo é o conhecimento sistémico da interdisciplina-
Kan- ridade, o saber holístico. Movimento perverso do conhecimento que em vez de
pro- avangar transcendendo a ignoráncia numa "dialética da iluminagáo", vai geran-
knen- do suas próprias sombras, construindo um objeto transgénico que já náo se
Ion a reconhece no saber das ciéncias.
olo- Desta maneira, o ambiente configura o campo de externalidade das cién-
cias que náo é reintegrável — internalizável — por extensáo e a racionalidade
científica a estes espagos negados e saberes esquecidos. O ambiente é o Outro
eco- do pensamento metafísico, do lógos científico e da racionalidade económica.
ntre Nesta perspectiva, o propósito de internalizar a "dimensáo ambiental" nos para-
omi- digmas do conhecimento se propóe como um confronto de racionalidades e
. Os tradigóes, como um diálogo aberto á outridade, á diferenga e á alteridade.
le de
ima-
2. A "internaliznáo da dimensáo ambiental"
tema
)bje- A problemática ambiental promoveu a transformagáo dos conhecimentos
stru- teóricos e práticos nos quais se funda a racionalidade social e produtiva domi-
des- nante. Os requerimentos de conhecimentos para a construgáo de urna racionali-
nhe- dade ambiental dependem da perspectiva ideológica e política na qual se gera
sua demanda. Esta determina as estratégias conceituais e metodológicas para a
ta de produgáo de conhecimentos, reorientando a pesquisa e o desenvolvimento tec-
dos nológico. O anterior náo implica que todos os paradigmas científicos vejam-se
)jeti- questionados pelas diferentes perspectivas ideológicas dentro das quais se pro-
162 ENRIQUE LEFF

pó'e a problemática ambiental, ou que os recursos provenientes dos conheci-


mentos especializados existentes náo possam ser aplicados á solugáo de proble-
mas ambientais pontuais: análises de toxicidade, tratamento de águas, recicla-
gem de resíduos, tecnologias "limpas" e de economia de energia.
Muitos programas de pesquisa necessários para induzir um aproveitamen-
to sustentável de recursos náo questionam os paradigmas, métodos e técnicas de
diversos ramos científicos. Assim, os estudos sobre a capacidade de carga dos
ecossistemas, sobre sua produtividade ecológica e as condigeíes de regeneragáo
de seus recursos submetidos a regimes alternativos de manejo integrado e de
cultivos combinados, náo problematizam as teorias e métodos correntes da eco-
logia. Da mesma forma, o estudo de recursos potenciais, de sua produtividade
biológica e suas formas de aproveitamento, gera novos objetos de pesquisa, mas
náo novos objetos teóricos ou métodos de experimentagáo para a fitologia, bio-
tecnologia, toxicologia ou para a tecnologia de processos.
Entretanto, na análise das causas, os fatores condicionantes e as vias nao-
técnicas de resolugáo da problemática ambiental, articulam-se processos de di-
versas ordens de materialidade que remetem á construgáo do conhecimento. A
partir desta perspectiva, a problemática ambiental demanda a produgáo de um
corpo complexo e integrado de conhecimentos sobre os processos naturais e
sociais que intervém em sua génese e em sua resolugáo. Neste sentido, o po-
tencial ambiental de cada regido integra as condigóes ecológicas, culturais e
tecnológicas que reorganizam a produgáo na perspectiva de um desenvolvimen-
to sustentável.
A construgáo de urna racionalidade ambiental demanda a transformagáo
dos paradigmas científicos tradicionais e a produgáo de novos conhecimentos, o
diálogo, hibridagáo e integragáo de saberes, bem como a colaboragáo de dife-
rentes especialidades, propondo a organizagáo interdisciplinar do conhecimen-
to para o desenvolvimento sustentável. Isso gera novas perspectivas epistemoló-
gicas e métodos para a produgáo de conhecimento, bem como para a integragáo
prática de diversos saberes no tratamento de problemas socioambientais. Apre-
sentam-se dessa maneira novas estratégias teóricas para a produgáo científica e
inovagáo tecnológica, orientadas pelos problemas da gestáo ambiental e pelas
perspectivas do desenvolvimento sustentável (Leff et al., 1986/2000).
A necessidade de compreender a complexidade da problemática ambien-
tal, bem corno os múltiplos processos que a caracterizam, gerou um questiona-
mento do fracionamento e compartimentalizagáo de um saber disciplinar, inca-
paz de explicar e resolver tal problemática. No entanto, a "retotalizagáo do sa-
ber" exigido pela problemática ambiental, náo é a soma nem a integragáo dos
Q UE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 163

Inheci- conhecimentos disciplinares disponíveis. A inter e transdisciplinaridade que


Noble- demanda o saber ambiental náo é a busca de um paradigma globalizante do
ecicla- conhecimento, a organizagáo sistémica do saber, e a uniformizagáo conceitual
por meio de urna metalinguagem interdisciplinar. Além do propósito de gerar
lamen- um paradigma onicompreensivo, de ecologizar o saber ou de formular urna
icas de metodologia geral para o desenvolvimento do conhecimento, o saber ambiental
ya dos problematiza o conhecimento, mas sem desconhecer a especificidade das dife-
teragáo rentes ciéncias historicamente constituídas, ideologicamente legitimadas e so-
lo e de cialmente institucionalizadas (ver Cap. 2).
Ja eco- O saber ambiental está num processo de construgáo. Em muitos campos
[vidade ainda náo se constituiu como um conhecimento acabado que possa integrar-se a
;a, mas pesquisas interdisciplinares ou desagregar-se em conteúdos curriculares para
ia, incorporar-se a novos programas de formagáo ambiental. O saber ambiental
tampouco constitui urna "dimensáo" neutra e homogénea para ser assimilada
nao- pelos paradigmas atuais de conhecimento. Pelo contrário, o saber ambiental
de di- depende do contexto ecológico e sociocultural no qual emerge e se aplica. É um
nto. A saber que nasce diferenciado, em relagáo com o objeto e o campo temático de
de um cada ciéncia, questionando e induzindo urna transformagáo desigual de seus
ais e conceitos e seus métodos. A questa-o ambiental gera assim um processo de fer-
o po- tilizagóes transdisciplinares através da transposigáo de conceitos e métodos en-
rais e tre diferentes campos do conhecimento. Nesse processo vai-se definindo o "am-
imen- biental" de cada ciéncia centrada em seu objeto de conhecimento, que leva a sua
transformagáo para internalizar o saber ambiental que emerge em seu entorno.
agáo SAo esses corpos transformados de conhecimento os que se estendem para urna
tos, o articulagáo interdisciplinar do saber ambiental.
dife- O que a problemática ambiental prop5e ás ciéncias — quanto á produgáo
Innen- de conhecimentos — e ás universidades — quanto á formagáo de recursos hu-
moló- manos — transcende a criagáo de um espato académico formado pela integra-
ragáo gáo das disciplinas tradicionais ou da geragáo de um campo homogéneo e tota-
Apre- lizador das "ciéncias ambientais", de valor universal. A incorporagáo do saber
fica e ambiental nas práticas científicas e docentes vai além de um requerimento de
pelas atualizagáo dos currículos universitários a partir da internalizagáo de urna "di-
mensAo" ambiental generalizável aos diferentes paradigmas do conhecimento.
bien- O saber ambiental náo emerge de uma reorganizagáo sistémica dos conhe-
ona- cimentos atuais. Este se gesta através da transformagáo de um conjunto de para-
inca- digmas do conhecimento e formagóes ideológicas, a partir de urna problemática
o sa- social que os questiona e os ultrapassa. O saber ambiental constrói-se por um
dos conjunto de processos de natureza diferente, cuja diversidade de ordens ontoló-
164 ENRIQUE LEFF

gicas, de racionalidades, de interesses e de sentidos náo pode estar contida num


modelo global, por mais holístico e aberto que este seja. A lógica dos processos
ecológicos, culturais e tecnológicos que conformam urna racionalidade ambien-
tal está integrada por formagóes teóricas, instrumentos técnicos, valores, princí-
pios produtivos, estruturas institucionais e interesses sociais diversos, onde se
mobiliza e se concretiza o potencial que dá suporte e conduz as práticas do
desenvolvimento sustentável.
A transformagáo do conhecimento que induz o saber ambiental é um pro-
cesso mais complexo que o da internalizagáo de urna nova "dimensáo" no corpo
das diferentes disciplinas científicas e técnicas estabelecidas. Cada ciéncia, cada
disciplina impóe suas condigóes teóricas e institucionais para a produgáo e in-
ternalizagáo de um saber ambiental, num processo desigual e heterogéneo do
qual emergem as disciplinas ambientais. Algumas formagóes teóricas resultam
mais dúcteis á miscigenagáo e amálgama de saberes, como o demonstram os
atuais paradigmas das disciplinas antropológicas que incorporaram os concei-
tos e métodos das análises energéticas e ecossistémicas nos estudos da organi-
zagáo produtiva e das sociedades tradicionais (Vessuri, 1986/2000). Outros pa-
radigmas, como os da economia, apresentam estruturas conceituais mais resis-
tentes á incorporagáo dos processos ecológicos, corno o longo prazo, os valores
humanos e as significagóes culturais no cálculo económico (Gutman, 1986/2000).
A produgáo do saber ambiental é, pois, um processo estratégico, atraves-
sado por relagóes de poder. As transformagóes do conhecimento induzidas pela
problemática ambiental dependem das condigóes de assimilagáo do saber am-
biental dentro dos paradigmas legitimados do conhecimento, da emergéncia de
novos conceitos e métodos das disciplinas ambientais e da elaboragáo de méto-
dos pedagógicos para a transmissáo do saber ambiental.

3. Interdisciplinaridade nas relalóes sociedade natureza


-

A construgáo do saber ambiental passa pela constituigáo de seu conceito e


um espato para sua objetivagáo prática. Sua formagáo produz-se através de rela-
góes de poder que obstaculizam ou promovem a gestagáo, emergéncia e realiza-
gáo de seu potencial transformador das relagóes entre as formagóes sociais e seu
entorno natural. Este saber ambiental emerge de um processo de transformagáo
do conhecimento que se estabelece em relagáo direta com suas condigóes de
aplicagáo. A racionalidade ambiental, como urna estratégia alternativa de de-
senvolvimento, articula assim as esferas de racionalidade substantiva, teórica,
JE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 165

num instrumental e cultural (ver Cap. 3); é um processo social, síntese de teoria e
essos práxis: de transformagóes teóricas, movimentos sociais e mudangas institucio-
bien- nais que incidem na concregáo do conceito de ambiente.
rincí- O saber ambiental impulsionou novas aproximagóes holísticas e a busca
de se de métodos interdisciplinares capazes de integrar a percepgáo fracionada da rea-
as do lidade que nos legou o desenvolvimento das ciéncias modernas. Contudo, entre
o dictum interdisciplinar e o factum da integragáo da realidade — a internaliza-
i pro- gáo dos valores da natureza e os potenciais ecológicos num novo conceito de
:orpo produgáo, as práticas interdisciplinares de pesquisa e gestáo trans-setorial do
, cada desenvolvimento sustentável — abriu-se um caminho que antes de ter chegado
e in- a seu ideal reunificador, topou com a falácia de suas pretensóes.
N) do A interdisciplinaridade proposta pelo saber ambiental implica a integragáo
ultam de processos naturais e sociais de diferentes ordens de materialidade e esferas
un os de racionalidade. A especificidade destes processos depende tanto das condi-
incei- góes epistemológicas que fundamentam sua apreensáo cognitiva, como das con-
gani- digóes políticas que levam a sua expressáo na ordem do real. É, pois, urna ques-
s pa- táo de poder que atravessa as ciéncias e os saberes. Isso implica a formulagáo de
esis- novas estratégicas conceituais para a construgáo de uma nova ordem teórica e
lores um novo paradigma produtivo, e novas relagóes de poder, que questionam a
00). racionalidade económica e instrumental que legitimou a hegemonia homoge-
ves-
neizante da modernidade.
pela A interdisciplinaridade, aplicada ao campo ambiental, levou a formula-
am- góes gerais que orientara urna visáo holística e integradora do processo de de-
ia de senvolvimento, mas deixa de fora a especificidade dos processos materiais e
éto- simbólicos que o constituem. Desta maneira, passou-se de urna concepgáo da
complexidade como a ecologizagáo da visáo do mundo por ser a ecologia "a
ciéncia por exceléncia das inter-relagóes", a caracterizar o ambiente como con-
juntos muito gerais de relagóes e agregados de processos: sociedade-natureza;
populagáo-recursos; ambiente-desenvolvimento.
Neste nível de generalidade, o enfoque interdisciplinar abre um olhar inte-
ito e grador dos processos socioambientais. No entanto, estas categorias gerais e esta
ela- delimitagáo de temáticas globais, embora apontem no sentido de uma nova vi-
iza- sáo das inter-relagóes de diversos processos, sáo insuficientes para concretizar
seu metodologias interdisciplinares de pesquisa. Na prática, programas concebidos
sob estas categorias genéricas caem facilmente num reducionismo teórico ao
s de adotar paradigmas pretensamente transdisciplinares para atravessar a ponte en-
de- tre o natural e o social. Neste sentido, o social pode ser absorvido por enfoques
ica, ecologistas e visóes biologistas, ou por um energetismo social que pretende
166 ENRIQUE LEFF

unificar os processos biossociais em fungáo de seus fluxos energéticos. Perde-


se assim de vista a especificidade dos processos materiais de ordem física, bio-
lógica, simbólica, económica, política e tecnológica, que conformara sistemas
socioambientais complexos.
As teorias de sistemas complexos abriram diversas vial metodológicas
para integrar entes processos de diferentes ordens ontológicas. Neste sentido, a
Teoria Geral de Sistemas busca unificar esta diversidade de processos através de
suas homologias estruturais. Por outro lado, o pensamento da complexidade
funda-se num processo de auto-organizagáo da matéria — a partir da ordem
física até alcangar a ordem social — propondo a complexizagáo ontológica do
real (Morin, 1977). Da perspectiva da termodinámica de sistemas abertos, pro-
puseram-se métodos interdisciplinares que diluem as barreiras que separam as
ciencias e seus objetos de conhecimento. Estes métodos buscam hierarquizar e
articular os diferentes subsistemas que interagem dentro de um sistema comple-
xo, definindo suas condigóes de contorno num processo interativo de
constrastagáo das hipóteses de pesquisa com a realidade (García, 1986, 1994).
A análise de sistemas socioambientais implica a necessidade e a possibili-
dade de articular processos de diferentes ordens de materialidade, que náo é
apreensível por um processo indutivo a partir apenas dos dados da realidade
empírica, mas que tampouco se reduzem a um paradigma transdisciplinar ou a
um enfoque generalizador ou unificador do saber. A abordagem investigativa de
tais sistemas requer a elaboragáo de categorias conceituais, bem como a defini-
gáo de temáticas e problemáticas específicas, capazes de apreender processos
concretos. Esta análise do complexo-concreto remete aos paradigmas teóricos
que mediara a apreensáo de urna realidade que se significa através de conceitos
teóricos e práticos.
O anterior propóe o desafio da interdisciplinaridade para o estudo das rela-
góes entre processos naturais e sociais, depende da capacidade das ciéncias para
articular-se, oferecendo uma visáo integradora da realidade. No entanto, a
somatória das ciéncias náo constitui um paradigma de ciéncias ambientais.
Embora possa haver complementaridade entre algumas disciplinas, estas defi-
nem racionalidades teóricas específicas, com objetos próprios de conhecimen-
to, que náo se articulam por um ditado metodológico em torno a problemas
socioambientais (ver Cap. 1).
A análise interdisciplinar das relagóes sociedade-natureza surge da espe-
cificidade dos processos socioambientais corno sistemas complexos: por um
lado, trata-se de apreender uma realidade multidimensional na qual confluem
processos nao-lineares, de diferentes níveis de espacialidade e temporalidade,
UE LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 167

,Perde- com diferentes formas de interdependéncia, de onde emergem novos proces-


a, bio- sos que estabelecem variadas sinergias e retroalimentagóes, tanto positivas
temas como negativas.
O saber ambiental problematiza as ciéncias para transformar seus paradig-
ilógicas mas tradicionais e incorporar urna nova "dimensáo", de caráter complexo. Este
ntido, a saber ambiental emergente náo é unívoco, nem se encontra já elaborado para ser
ravés de absorvido pelas diferentes disciplinas. O saber ambiental veio sendo gerado
exidade através de processos ideológicos que se expressam num campo discursivo dis-
1 ordem
perso e heterogéneo (a preservagáo do ambiente; a sustentabilidade do desen-
igica do
volvimento), mas que vai-se limitando e concretizando em torno de cada uma
Os, pro-
das ciéncias e as disciplinas constituídas.
ram as
uizar e A reintegragáo do mundo náo remete, entáo, a um projeto de reunificagáo
mple- do conhecimento. A emergéncia do saber ambiental rompe o círculo "perfeito"
vo de das ciéncias, a crenga numa Idéia Absoluta e a vontade de um conhecimento
1994). unitário, abrindo-se para a dispersáo do saber e para a diferenga de sentidos
sibili- existenciais. Desta maneira, os corpos teóricos, os conceitos e métodos das no-
náo é vas disciplinas "ambientais" emergem de um processo de produgáo teórica que
*dade responde á problematizagáo das ciéncias; sáo estas ramificagóes ambientais do
ou a conhecimento, entretecidas com saberes e práticas "náo-científicas", as que per-
*va de mitem enlatar novos saberes, assim como integrar processos de diferentes or-
fini- dene de materialidade e novas matrizes de sentido, para constituir urna nova
essos racionalidade teórica, social e produtiva.
ricos
eitos
4. As estratégias conceituais do saber ambiental

s rela- A emergéncia da questáo ambiental no campo do desenvolvimento e da


as para interdisciplinaridade no campo do conhecimento surgem como duas problemá-
nto, a ticas contemporáneas em resposta a urna crise da racionalidade económica e
entais.
teórica da modernidade. O desenvolvimento adquire urna complexidade que
s defi-
ultrapassa as possibilidades de compreensáo e resolugáo a partir de urna pers-
cimen-
pectiva disciplinar e setorial. Surge daí a consciéncia sobre a fragmentagáo do
lemas
conhecimento que nos legou a ciéncia moderna, exigindo um enfoque sistémico
e um conhecimento holístico, capazes de reunificar uma realidade escindida
espe- pela destruigáo ecológica e pela desigualdade social. Entretanto, a interdiscipli-
r um naridade adquiriu um caráter técnico na refuncionalizagáo dos saberes existen-
uem tes, levados por urna política de ajustes do conhecimento para reordenar a reali-
dade, dade existente.
168 ENRIQUE LEFF

O saber ambiental náo constitui um campo discursivo homogéneo para ser


assimilado pelas diferentes disciplinas científicas. O saber ambiental emerge de
urna razáo crítica, configurando-se em contextos ecológicos, sociais e culturais
específicos e problematizando os paradigmas legitimados e institucionalizados.
Esse saber náo é homogéneo nem unitário. É um saber que vai-se constituindo
em relagáo com o objeto e o campo temático de cada ciéncia. Nesse processo
define-se o ambiental de cada ciéncia, transformando seus conceitos e métodos,
abrindo espagos para a articulagáo interdisciplinar do saber ambiental, gerando
novas teorias, novas disciplinas e novas técnicas.
A interdisciplinaridade ambiental náo se refere á articulagáo das ciéncias
existentes, á colaboragáo de especialistas portadores de diferentes disciplinas e
á integragáo de recortes selecionados da realidade, para o estudo dos sistemas
socioambientais. Trata-se de um processo de reconstrugáo social através de urna
transformagáo ambiental do conhecimento.
A pobreza, o desmatamento e a erosáo, bem corno os índices de poluigáo
do ar sáo observáveis da realidade. Porém, a perspectiva a partir da qual se
explicam as causas destes processos e se oferecem agóes alternativas, depende
de estratégias conceituais que levam a reformular as ideologias, valores, sabe-
res, conhecimentos e paradigmas científicos que geram os dados observáveis da
realidade. Por isso, o saber ambiental náo poderia surgir da conjungáo dos co-
nhecimentos que externalizaram e negado o ambiente. O discurso ambiental
questiona os paradigmas estabelecidos das ciéncias para internalizar um saber
orientado pela construgáo de uma nova racionalidade social.
O saber ambiental ultrapassa o campo da racionalidade científica e da ob-
jetividade do conhecimento. Este saber está-se conformando dentro de urna nova
racionalidade teórica, de onde emergem novas estratégias conceituais. Isso pro-
póe a revalorizagáo de um conjunto de saberes sem pretensáo de cientificidade.
Frente á vontade de resolver a crise ecológica por um controle racional do am-
biente", questiona-se a "irracionalidade" da razáo científica (Feyerabend, 1974).
O saber ambiental é afim com a incerteza e a desordem, com o campo do
inédito, do virtual e dos futuros possíveis, incorporando a pluralidade axioló-
gica e a diversidade cultural na formagáo do conhecimento e na transformagáo
da realidade.
A racionalidade ambiental inclui novos princípios teóricos e novos meios
instrumentais para reorientar as formas de manipulagáo produtiva da natureza.
Esta racionalidade está sustentada por valores (qualidade de vida, identidades
culturais, sentidos da existéncia) que náo aspirara a alcangar um status de cien-
tificidade. Abre-se dessa forma um diálogo entre ciéncia e saber, entre tradigáo
UE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 169

ara ser e modernidade. Este encontro de saberes implica processos de hibridagáo cultu-
Irge de ral (García Canclini, 1990), onde se revalorizam os conhecimentos indígenas e
Iturais os saberes populares produzidos por diferentes culturas em sua coevolugáo com
zados. a natureza.
tuindo O saber ambiental propóe a questáo da diversidade cultural no conheci-
ocesso mento da realidade, mas também o problema da apropriagáo de conhecimentos
;todos, e saberes dentro de diferentes ordens culturais e identidades étnicas. O saber
erando
ambiental náo só gera um conhecimento científico mais objetivo e abrangentes,
mas também produz novas significagóes sociais, novas formas de subjetividade
iéncias e de posicionamento ante o mundo. Trata-se de um saber que náo escapa á
finas e questáo do poder e á produgáo de sentidos civilizatórios.
temas
e urna
O ambiente, como condigáo da sustentabilidade, deve assimilar-se a diver-
sos paradigmas teóricos para internalizar os custos ecológicos do crescimento
económico, a eficiéncia energética dos processos produtivos, a racionalidade
luigáo ecológica das sociedades tradicionais e os valores conservacionistas do compor-
ual se tamento humano. O saber ambiental problematiza assim o conhecimento para
pende refuncionalizar os processos económicos e tecnológicos, ajustando-os aos obje-
sabe- tivos do equilibrio ecológico, á justita social e á diversidade cultural. Neste
eis da sentido, o saber ambiental emerge como um processo de revalorizagáo das iden-
os co- tidades culturais, das práticas tradicionais e dos processos produtivos das popu-
iental lagóes urbanas, camponesas e indígenas; oferece novas perspectivas para a rea-
saber propriagáo subjetiva da realidade; abre um diálogo entre conhecimento e saber
no encontro do tradicional e do moderno.
a ob-
O saber ambiental reconhece as identidades dos poyos, suas cosmologias
nova
e seus saberes tradicionais como parte de suas formas culturais de apropriagáo
o pro-
de seu património de recursos naturais. Assim, inscreve-se dentro dos interesses
idade.
diversos que constituem o campo conflitivo do ambiental. Emergem daí novas
o am-
formas de subjetividade na produgáo de saberes, na definigáo dos sentidos da
974).
existéncia e na qualidade de vida dos indivíduos, em diversos contextos cultu-
po do
ioló-
rais. Neste sentido, mais que reforgo da racionalidade científica prevalecente, o
agáo
saber ambiental impulsiona novas estratégias conceituais para construir uma
nova racionalidade social.
meios
reza. 5. Interdisciplinaridade, retotalizagáo do conhecimento e subversáo do sujeito
dades
cien- No transito da modernidade para a pós-modernidade, as tendéncias da epis-
gáo temologia das ciéncias, orientada pelo logocentrismo e a busca da unidade e da

170 ENRIQUE LEFF

objetividade do conhecimento, encontram-se e se confrontam com os efeitos da


valorizagáo da diversidade e da diferenga na teoria e pelo lugar que ocupam as
posigóes subjetivas no campo da interdisciplinaridade e das esferas do saber.' A
partir desta perspectiva foi possível desvelar as causas inconscientes do saber
totalitário que promove e ao que aspira a ciéncia moderna. O sujeito — que é o
sujeito do conhecimento, da ciéncia moderna — dividido por seu desejo incons-
ciente, diferenciado por sua sociedade, aspira a cobrir sua falta em ser com o
imaginário de um corpo teórico total, ocultando seu desconhecimento sob o
manto unitário da Ciéncia, integrado pelos retalhos dos saberes disciplinares
que produziu o projeto positivista inaugurado por Descartes. A nostalgia de
urna totalidade originária, a ambigáo de um saber absoluto, marcam um retorno
mítico a um saber total, de um método interdisciplinar capaz de transcender a
divisáo constitutiva do desejo de conhecer.
A ciéncia moderna avangou fracionando e especializando o saber com o
propósito de penetrar mais eficazmente no conhecimento das coisas. Paradoxal-
mente, este processo de simplificagáo do mundo gerou a emergéncia da com-
plexidade. A interdisciplinaridade surgiu com o propósito de reorientar o co-
nhecimento para reapreender a unidade da realidade e para solucionar os com-
plexos problemas gerados pela homogeneizagáo forgada que induz a racionali-
dade económico-tecnológica dominante. Este projeto busca fundamentar-se num
método capaz de fazer convergir os olhares dispersos dos saberes disciplinares
sobre urna realidade homogénea, racional e funcional, eliminando as divisóes
estabelecidas pelas fronteiras dos territórios científicos, cancelando o espato
próprio de seus objetos de conhecimento, para reconstruir um mundo unitário.
A especificidade teórica das ciéncias absorve-se assim num sistema gene-
ralizado de conhecimentos, que busca complementar suas estruturas teóricas e
dar vazáo a um intercámbio analógico de conceitos num campo terminológico
unificado. Daí o propósito de construir urna tecnologia interdisciplinar orienta-
da por um objetivo prático, comum a diferentes campos do saber. A redugáo do
sentido e a especificidade dos conceitos que integra urna teoria, privilegiando
suas homologias estruturais — corno propóe a Teoria Geral de Sistemas —,
associou-se dessa forma á internacionalizagáo de conceitos globalizadores e sua
implantagáo tecnológica nos mais diversos contextos ecológicos e culturais.
Esta racionalidade científico-tecnológica constituiu um projeto oposto á produ-
tividade do heterogéneo, ao potencial do diferenciável, á integridade do especí-
fico e á articulagáo do diverso, que e fundamental a racionalidade ambiental.
Desta maneira, a produtividade primária dos recursos naturais, que gera
sua complexa organizagáo dos ecossistemas, veio se degradando pela uniformi-
UE LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 171

os da zagáo da colheita de mercadorias submetidas ao cálculo univalente do benefício


as económico. De forma similar, a produtividade dialógica dos sentidos teóricos
ti A que gera o encontro dos discursos científicos, reduz-se á síntese lógica de seus
saber enunciados, á analogia de seus significados sintáticos, ao isomorfismo de suas
eéo estruturas conceituais. A produtividade potencial do intercámbio disciplinar dis-
ons- solve-se assim no consentimento de urna linguagem comum e um discurso
om o globalizador —o discurso do desenvolvimento sustentável e da ecologia gene-
sob o
ralizada— para a produgáo unidimensional de idéias e da cultura de estilos de
linares
vida homogéneos.
gia de
torno Nesta solugáo utilitária esfumam-se as complexas estruturas ecológicas e
oder a culturais construídas durante um longo processo de coevolugáo e heterogénese
histórica. O triunfo do progresso unitário submete a resignificagáo do mundo ás
consignas do pragmatismo ideológico dominante, gerando um processo de des-
om o
territorializagáo das etnias, extermínio da diversidade cultural, de degradagáo
oxal-
do ambiente vital, de erosáo do solo habitado. Desta forma, inverte-se o proces-
com-
so neguentrópico fundado na complexidade, produtividade e criatividade das
o co-
estruturas materiais constitutivas da matéria inerte, da substáncia viva e da or-
com- dem simbólica.
nali-
num O projeto interdisciplinar surge como um mecanismo de controle e de
ares solugáo das crises energéticas, de recursos e de valores que abatem a civilizagáo
sóes tecnológica de nosso tempo, e como uma norma sobre a produgáo de saberes. A
spago interdisciplinaridade busca construir urna realidade multifacética mas homogé-
itário. nea, cujas perspectivas sáo o reflexo das luzes que sobre ela projetam os dife-
rentes enfoques disciplinares. O conhecimento global ao qual aspira se confor-
gene- ma na convergéncia de um conjunto de vis=es parciais que se integram organi-
icas e camente como um código de objetos-signos do saber. No entanto, este "sistema
ógico holístico" carece da organicidade da "totalidade" característica do pensamento
lenta- simbólico; ainda, desintegra o corpo articulado de conceito de onde derivam os
ao do discursos científicos seu sentido próprio, constitutivo de seus objetos de conhe-
ando cimento e de estruturas teóricas indissociáveis em partes, variáveis, fatores e
s dimensóes.
e sua
O holismo ao qual aspira o pensamento interdisciplinar aparece como urna
rais.
visáo projetada para um objeto teórico inexistente, para um objeto imaginário
rodu-
que levita sobre os campos delimitados de suas aplicagóes técnicas. O pretendi-
pecí-
do "holismo" se precipita em seu vazio ontológico antes de conseguir consti-
tal.
tuir-se num paradigma oniabrangente, de alcangar seu ente totalizador, de ver-se
gera refletido em seu ser totalitário. Talvez o sentido mais profundo do holismo náo
rmi- esteja em sua expressáo manifesta, mas em sua queda a esse vazio de significa-
172 ENRIQUE LEFF

gáo como signo do limite e impossibilidade de sua vontade totalizadora. A par-


tir de sua impoténcia emerge sua sedugáo evocando outro saber, dando novo
impulso ao desejo de conhecer.
Contudo, o que continua dominando o campo do conhecimento é a busca
de um lógos homogeneizador que colonizou o pensamento científico: logicismo,
biologismo, ecologismo. Esta aspiragáo generalizadora traduz-se numa estraté-
gia totalitária do poder do saber sobre as condigóes de emergéncia, produgáo e
articulagáo das ciéncias. A vontade de urna totalidade sistémica como projeto
metodológico afoga o processo de produgáo dos objetos de conhecimento das
ciéncias, a historicidade do saber que depende das lutas ideológicas pelo conhe-
cimento, o caráter emancipatório do saber e da impulsáo epistemofílica do su-
jeito da ciéncia.
A sistematizagáo do saber, a normalizagáo das agóes sociais, a uniformi-
zagáo dos estilos culturais, surgem corno o signo unitário do regime totalitário
do valor de troca que tende a estabelecer seu regime de equivaléncia recodificando
e reduzindo o mundo a objetos similares, equiparáveis. Esta mistificagáo do
mundo objetivado e coisificado pela intervengáo da ciéncia reaparece na Teoria
Geral dos Sistemas que pretende englobar os diferentes campos do conheci-
mento sob um signo analógico de identidade, ocultando a especificidade teórica
que produz a organizagáo e a integridade conceitual das ciéncias. A sedugáo
deste objeto puro, sem esséncias diferenciadoras produz a fascinagáo por um
sistema transdisciplinar que ultrapassa as fronteiras do conhecimento para pro-
mover a livre transferéncia de conceitos entre continentes científicos. Assim o
sistema monetário intervém no campo do conhecimento legitimando a plena
substituigáo de saberes, o livre intercámbio de mercadorias-conhecimento que
acompanham a capitalizagáo da natureza.
A lei do valor que outrora parcelara as tarefas produtivas para igualar toda
forga de trabalho frente aos meios de produgáo do capital, impóe agora sua
legalidade corno norma para o trabalho intelectual; estabelece urna regra de
equivaléncias entre os modos de pensar, sobre os métodos de pesquisar, sobre as
formas de conhecer, sobre as alternativas sociais de aplicagáo do saber, levando
á desvalorizagáo do conhecimento ante os imperativos pragmáticos do capital.
O eficientismo tecnológico, como meio e finalidade do progresso, elimina as
contradigóes e a polissemia dos discursos científicos. A equivaléncia de todos
os saberes no intercámbio disciplinar reduz a ambivaléncia simbólica do con-
ceito para construir operadores nocionais e terminologias funcionais para um
fluxo contínuo do saber, para o desenho de urna perfeita circularidade das cién-
cias, para a promogáo de um comércio sem fronteiras dos produtos intelectuais,
técnicos, ideológicos.
QUE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 173

A par- A produtividade dialógica e dialética dos discursos científicos esgota-se,


) novo dessa forma, no reconhecimento especular e no sentido especulativo dos sabe-
res uniformizados por urna linguagem comum, no uso tautológico dos concei-
[ busca tos. O saber homogeneizado, dessubstantivado, desreferencializado, acopla-se á
cismo, eqüidade desdiferenciada dos homens frente ao valor unitário da mercadoria,
Istraté- único objeto que deve ser renovado, diversificado e multiplicado continuamente
klgáo e para ser consumido num ato massivo, para alcangar todos os olhares divergen-
projeto tes, para burlar a satisfagáo da demanda sempre latente, para devorar o insaciá-
no das vel desejo de ser.
conhe- Mas a história do conhecimento náo se desdobra numa superfície recober-
do su- ta com os mosaicos de diferentes disciplinas científicas e técnicas. Náo é a área
1 de confluéncia dos saberes dados. Náo é o ponto de convergéncia de suas utili-
formi- dades práticas. Náo é a relagáo de urna demanda social imposta corno juízo final
O itário sobre o desenvolvimento das ciéncias para a resolugáo dos problemas económi-
cando cos e socioambientais imediatos. A dialética do conhecimento náo é um proces-
áo do so de identificagáo ou um lugar de coincidéncia dos saberes, mas um princípio
Teoria de dissidéncia, de divergéncia e dispersáo dos discursos científicos, que tende a
nheci- preencher a falta "impreenchível" de conhecimento. Náo é um círculo tautológico
eórica do conhecimento codificado que funda a metafísica da representagáo — a dialé-
ugáo tica da dialética, a história da história, a produgáo da produgáo — mas um
or um espato de expansáo do saber a partir das ressignificagóes teóricas sobre proces-
ra pro- sos materiais, esferas ontológicas e ordens simbólicas diferenciadas. Neste pro-
ssim o cesso, a criatividade do pensamento e as mudangas sociais se entrelagam na
I plena
busca de novos sentidos civilizatórios, alternativas de organizagáo cultural e
to que formas de conhecimento.
O projeto interdisciplinar inscreve-se dentro da ressignificagáo da vida e
ir toda
da reconstrugáo do mundo atual. Mas náo seráo os princípios de urna totalidade
ra sua
holística ou de urna visáo sistémica os que dissolveráo a divisáo do ser e resol-
gra de
veráo os problemas sociais gerados pelo encadeamento tecnológico, a cegueira
bre as
do mercado ou a opressáo do poder totalitário. A prática interdisciplinar pode
vando
fazer confluir urna multiplicidade de saberes sobre diversos problemas teóricos
e práticos; mas náo se pode saturar os vazios do conhecimento nem dar ás cién-
apital.
cias urna compreensáo totalizante do real. Poderáo edificar-se torres de observa-
ina as
gáo pluridisciplinares sobre um campus universitario, porém a convergéncia
todos
dos olhares num objetivo prático náo conseguirá construir um desejado objeto
) con-
unitário e universal da Ciéncia.
a um
5 cién- A interdisciplinaridade náo é um princípio epistemológico para legitimar
tuais, saberes, nem urna consciéncia teórica para a produgáo científica, nem um méto-
do para a articulagáo de seus objetos de conhecimento. É urna prática intersub-
174 ENRIQUE LEFF

jetiva que produz urna série de efeitos sobre a aplicagáo dos conhecimentos das
ciéncias e sobre a integragáo de um conjunto de saberes nao-científicos; sua
eficácia provém da especificidade de cada campo disciplinar, bem corno do jogo
de interesses e das relagóes de poder que movem o intercambio subjetivo e
institucionalizado do saber.
O questionamento inquisidor sobre urna ciéncia a partir do olhar externo e
estranho de outra disciplina ou a partir dos efeitos produzidos por suas aplica-
góes em seus campos experimentais e na transformagáo da realidade, pode pro-
por alguns problemas teóricos e gerar um processo de assimilagáo de novos
conceitos e metodologias de pesquisa, mas o objeto teórica de cada ciéncia e a
especificidade disciplinar de cada especialidade, imporáo as condigóes do que
pode ser repensado teoricamente, o que pode ser retrabalhado na prática de
pesquisa, o que pode ser entretecido numa estrutura de conhecimento.
O processo interdisciplinar mobiliza a produgáo de novos conhecimentos
enquanto reste ás disciplinas particulares um potencial a desenvolver em seu
intercambio com outros saberes para compreender e resolver os problemas so-
ciais de nosso tempo; enquanto os sujeitos do saber conservaren um impulso
por conhecer o desconhecido, a necessidade de descobrir e construir um mundo
além do restrito horizonte de visibilidade da realidade e dos fatos; enquanto
existir urna capacidade para conjeturar o que nao é dedutível a partir da análise
do dado; enquanto a necessidade emancipatória do ser humano nao levar á cons-
trugáo de novas utopias e á exploragáo de alternativas além das opgóes ofereci-
das pelos referenciais teóricos herdados pela tradigáo do pensamento metafísico
e do método científico, enquanto continuar viva a pulsagáo pelo saber, o pensa-
mento crítico e o movimento criador das idéias.
O projeto de interdisciplinaridade busca, assim, a construgáo de novos
objetos de conhecimento que abrem novas concepgóes e compreensiíes do mun-
do, por exemplo, o tránsito da biologia evolutiva á biologia genética que relata
Canguilhem (1971) no conhecimento da vida. A interdisciplinaridade teórica
nao se circunscreve a urna vontade de produtividade científica, de compreensáo
totalitária do mundo, de eficácia transformadora e de controle da complexidade
ambiental. A pulsagáo pelo conhecimento é inconsciente, e o inconsciente é
indisciplinar. Como afirma Baudrillard:

"nosso verdadeiro inconsciente está talvez nessa poténcia irónica de desistén-


cia, de nao desejo, de nao saber, de siléncio, de absorgáo de todos os poderes de
expulsáo de todos os poderes, de todas as vontades, de todas as luzes, de todas
as profundidades do sentido sobre as instancias aureoladas por urna coisa de
IE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 175

s das urna luz enlouquecida. Nosso inconsciente (...) estaria feito desta expulsdo gozosa
; sua de todas as superestruturas obstaculizantes do ser e da vontade" (Baudrillard,
jogo 1983: 108).
ivo e
A complexidade ambiental náo só defende a necessidade de articular as
ciencias existentes para compreender a multicausalidade dos processos, sua
oe
aleatoridade, sua probabilidade. A complexidade ambiental emerge do diálogo
lica-
entre saberes e conhecimentos, da produgáo de novos entes e ordens híbridas
pro-
que provém da projegáo metafísica do mundo e da intervengáo tecnológica da
Vos
vida. O saber ambiental forja-se nesta abertura do mundo objetivado e do co-
ea
nhecimento racional, que introjeta o silencio do sujeito e seu nao saber: a incer-
que
teza, o impensado e o enigmático. Para além da incomensurabilidade entre do-
a de
mínios conceituais que correspondem a diferentes ordens do real, propóe-se a
disjungáo de saberes que nunca se encontram num objeto articular, que náo se
ntos complementam na compreensáo de um processo de um sistema complexo — tal
seu o caso da impossibilidade de conjugar a quantificagáo do valor económico
so- com as valorizagóes da cultura; os ciclos energéticos, os fluxos ecológicos e a
ulso circulagáo do valor.
ndo
Além do problema de internalizar a multicausalidade dos processos atra-
anto vés da articulagáo das ciencias e da abertura das ciéncias para o conhecimento
álise náo-científico — uma hibridagáo entre ciéncias, técnicas e saberes — a comple-
ons- xidade ambiental emerge da superobjetivagáo do mundo, de um processo de
reci- externalizagáo do ser que ultrapassa toda compreensáo e contengáo possível
ísico pela agáo de um sujeito, por uma teoria de sistemas, um diálogo interdiscipli-
nsa- nar, uma ética ecológica ou urna moral solidária. A complexidade ambiental é
convocada a sua existencia por urna hibridagáo de diversas ordens do real que
ovos foi determinara por urna racionalidade científica e económica que gera um mun-
un- do objetivado e coisificado que ultrapassa todo referencia) possível do conheci-
elata mento e do saber; que desencadeia urna reagáo em cadeia náo controlável por
rica meio de urna gestáo científica do ambiente.
nsáo Neste sentido, o saber ambiental abre urna relagáo escatológica com o ser
dade e com a história:
te é
"A escatologia póe em relagáo com o ser, para além da totalidade ou da histó-
ria, e náo com o ser para além do passado e do presente. Náo com o vazio que
stén- rodeia a totalidade e no qual se poderia, arbitrariamente, acreditar no que se
s de quiser e promover assim os direitos de urna subjetividade livre como o vento. É
odas a relagáo com uma excedéncia sempre exterior a totalidade, como se a totalida-
a de de objetiva náo completasse a verdadeira medida do ser, como se outro conceito
176 ENRIQUE LEFF

— o conceito de infinito — devesse expressar essa transcendéncia com relagáo


á totalidade, náo-englobável numa totalidade e táo original como ela (...). A
idéia escatológica de juízo (...) implica que os seres tém uma identidade antes
da eternidade, antes da consumagáo da história, antes de que os tempos sejam
cumpridos, enquanto ainda há tempo; implica que os seres existem em relagáo,
mas a partir de si e náo a partir da totalidade (...). A relagáo com o infinito náo
poder certamente expressar-se em termos de experiencia, porque o infinito ul-
trapassa o pensamento que o pensa. Neste ultrapassar produz-se precisamente
sua infinitude, de tal modo que será necessario aludir a relagáo com o infinito de
outro modo que em termos de experiéncia objetiva. Porém, se experiéncia signi-
fica precisamente relagáo com o absolutamente outro — isto é, com o que sem-
pre ultrapassa o pensamento — a relagáo com o infinito leva a cabo a experién-
cia por exceléncia" (Lévinas, 1977: 49, 51).

Isso abre o caminho para novas estratégias de poder no saber para a cons-
trugáo de urna racionalidade ambiental, que passa por novas formas de pensa-
mento, de interrogagáo e sedugáo do mundo no intercambio simbólico e no
diálogo de saberes.

6. Da interdisciplinaridade ao diálogo de saberes

A problemática ambiental ultrapassou o campo dos paradigmas científi-


cos e do conhecimento disciplinar. O ambiente emerge como conseqüéncia das
formas de conhecimento do mundo, da objetivagáo da realidade e do domínio
da natureza através da imposigáo de um lógos, de urna razáo que dominou o
homem e superexplorou a natureza, subjugando culturas e saberes, pela imposi-
gáo de uma racionalidade económica, científica e tecnológica sobre o ser do
real, sobre o ser humano. A sustentabilidade náo é um fim alcangável por urna
reintegragáo interdisciplinar do conhecimento como fundamento de uma ges-
táo científica do desenvolvimento ou pela economizagáo e mercantilizagáo da
natureza.
As estratégias de poder das ciencias, em sua intervengáo e apropriagáo da
natureza, em seu afá desvelados de suas esséncias e suas causas determinantes,
desencadearam a rebeliáo de seus efeitos. Hoje a natureza-objeto parece vingar-
se do sujeito do conhecimento que quer apreendé-lo e dominá-lo; a natureza
elude e ultrapassa o controle da ciencia. A crise ambiental — o colapso ecológi-
co, o aquecimento global, a entropizagáo da vida — sao a revanche do real
diante da objetivagáo forgada da natureza:
1E LEFF U EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 177

laláo "O objeto analisado triunfa hoje por toda parte (...) sobre o sujeito da análise.
.). A Ele escapa por toda parte e o 'ano a sua posigáo inexistente de sujeito. Por sua
antes complexidade náo só o ultrapassa, mas anula as questfies que o outro pode pro-
,ejam por-lhe. Ao tornar-se reversíveis, ainda os processos materiais burlam toda soli-
asao, citagáo (a reversibilidade é a arma absoluta contra a determinagáo (...) mas náo
) náo elimina a indeterminagáo, já que a reversibilidade náo é da ordem do aleatório,
o ul- e sim mais precisamente uma sorte de exata determinagáo inversa e simultánea,
nente de contra-determinagáo perversa)" (Baudrillard, 1983: 91).
to de
■ igni - A atomizagáo do social e o fracionamento do conhecimento náo sáo
sem - reintegráveis por um método sistémico, por um método interdisciplinar ou pelo
/den - livre mercado. Náo é urna reunificagáo e homogeneizagáo concertados num re-
gime de diferengas dessubstancializadas. O esvaziamento de sentido de sujeito
e de "eus" dessubstancializados e equiparáveis é o correlato ao vazio ontológico
ons- da Teoria Geral de Sistemas, obcecado pelas homologias estruturais do conheci-
nsa - mento formal. A racionalidade ambiental confronta assim o logocentrismo da
no ciencia positivista, á racionalidade formal e instrumental da modernidade e ao
projeto de interdisciplinaridade teórica e técnica que busca recompor essa lógi-
ca fundacional da civilizagáo moderna. A racionalidade ambiental convoca á
construgá'o de um saber fundado numa constelagáo de diversidades arraigadas
na cultura e na identidade.
Ao final dessa busca da humanidade por nomear, codificar e tocar o real,
tífi- por apreender, compreender e dominar a natureza; por soletrar o infinito; logo
das de todo esse périplo pelo mundo da gramática, das ciencias, da hermenéutica,
nio nos encontramos sendo pensados por outro, pelo conhecimento como um Ou-
uo tro, externo, que pensa o ente e nos pensa, mas náo compreende o ser; que nos
osi- deixa nus diante do saber e ávidos de sentido. Talvez ceja a angústia ante o
do esvaziamento de sentidos existenciais e essa sede de vida a que expressam tanto
ma as lutas das etnias pela reafirmagáo de suas identidades, como o drama desse ser
es- solitário, cujo grito provém do legado de urna metafísica, um lógos, urna gra-
da mática e urna epistemologia que náo sustentam o ser e ultrapassam o real; de um
verbo e um tempo que nos pensa, nos impóe sua verdade e nos segura. Esse
da sujeito fala e diz:
tes,
"(...) náo pode pensar o infinito (...). Mas pense que vocé pode sofré-lo porque
gar-
ele pensa em vocé, pensa sem cessar, quer vocé saiba ou náo. E isso náo é mais
eza que o início, o mero início do início. Vocé é pensado. E porque é pensado, deve
gi- pensar que voces pensa. Vocé deve; náo pode escapar. Só que há uma margem
eal entre o pensamento que pensa vocé e o que vocé pensa que pensa (...). Faz falta
uma estrela para ver a negrura? (...) O que é o uso do tempo? Fornicagáo perpé-
178 ENRIQUE LEFF

tua com o verbo eterno. Gestando o momento da verdade. Irrupgáo pontual na


duragáo, relámpago de um presente mais para cá de toda gramática, revelagáo
das palavras como matéria milagrosa, da língua como lugar e vínculo de trans-
substanciagáo. Todo nome é urna assinatura em branco (...) todas essas lingua-
gens estranhas, essas singulares construgóes gramaticais. Línguas? Regras? (...)
Normas, máximas, preceitos; modelos, fungóes, equagóes; postulados, teoremas,
corolários (...); protocolos, métodos, propriedades, sistemas; leis, fórmulas, no-
menclaturas etc., louco carrossel que gira, gira, gira (...) até guando? Com que
finalidades? E a que prego? Palavras que remetem sem repouso de urna a outra
e que parecem tender á mesma significagáo inefável, cachoeira de palavras que
se regula por si mesma, formando um colar ao redor de urna lei secreta, náo
expressa, quigá inexpressável, quigá infernal, estas palavras que compóem urna
sarabanda, urna chamando a outra e a outra á seguinte e arrastam num baile,
para urna certa consumagáo, esperanga de término, de satisfagáo, se estas pala-
vras que se unem como se prometessem a paz interior e a paz social, a paz de
um siléncio permanente, enfim, a paz verdadeira, a que se realiza guando o
espírito humano — se é que ainda existe algo semelhante — pode estar certo de
ter-se embarcado nesse trem automaticamente programado, táo conhecido, táo
reconhecível, a ponto de que se chama 'o conhecimento', que farsa! Propor,
reunir, demonstrar. Estas palavras táo cativantes, táo assombrosas, táo
adormecedoras por sua aptidáo para a uniformidade, estas palavras, no fim das
contar, sáo semelhantes, táo semelhantes e intercambiáveis como parecem ser?
Semelhantes... talvez para tornar-nos semelhantes? Na verdade semelhantes (...)
Idénticos, sinónimos, similares, analógicos? Ou ainda, pastiches, simulacros,
ilusóes de ótica? Reprodugóes fac-símiles, réplicas? Ou imitagóes, mímicas,
paródias, disfarces, caricaturas, plágios?... Inclusive contrafeitos, simulagóes,
embustes e, portanto, ilusóes, armadilhas, mistificagóes. Isomorfas, isotermas,
isóbaras! Equivalentes, equiláteras, equívocas (...) Oh grandiosa e grotesca es-
tafa da língua que brinca conosco enquanto nós acreditamos usá-la!" (André,
2000: 20, 33-35).

É nesta ruptura, neste limite, nesta desconstrugáo do logos e rebeliáo do ser,


neste sacudida e desencadeamento do poder imposto pelo conhecimento, que a
interdisciplinaridade se inscreve num projeto de reconstrugáo do saber, na via
da reconstituigáo das identidades e do diálogo com outros saberes, no propósito
de construir um futuro aberto para o infinito, a outridade e a alternativa.
A estreiteza do cerco epistemológico das ciencias ao diálogo de saberes na
complexidade ambiental náo responde simplesmente ás falhas do método cien-
tífico, ao desmoronamento do racionalismo como via incontrovertível para a
verdade, justita e progresso, ou a urna vontade anarquizante ou democratizante
para flexibilizar e relativizar o conhecimento (Feyerabend, 1974, 1982). A rei-
E LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 179

al na vindicagáo de unta racionalidade ambiental e o diálogo de saberes que ali con-


lnáo corre, náo implicam desconhecer e abandonar a poténcia do conhecimento que
trans-
geram as ciéncias, mas o reconhecer os saberes que ficaram externalizados. O
ngua-
que está em jogo na construgáo da racionalidade ambiental, na gestáo ambien-
? (...)
emas, tal, sáo valores, interesses e fins que náo sáo imanentes á racionalidade científi-
s, no- ca, que portanto implicam a confluéncia de saberes que ultrapassam o campo do
conhecimento científico. Os conflitos ecológicos e a crise ambiental náo podem
.14 que
outra ser resolvidos mediante urna administragáo científica da natureza.
s que
, náo
A confluéncia de saberes na construgáo da racionalidade ambiental náo
urna deve ser confundida com as propostas que vém ganhando forga em anos recen-
baile, tes pela democratizagáo do conhecimento e pela gestáo participativa do desen-
pala- volvimento sustentável. Contra a glorificagáo da ciéncia e a absolutizagáo do
az de racionalismo, Feyerabend argumentou que nem o juízo racional nem o método
do o foram a rota mais certeira para as descobertas científicas, seu estabelecimento e
to de
validagáo como paradigmas de conhecimento e a legitimagáo de suas aplicagóes
, tilo
Iropor,
práticas. 2 A racionalidade da ciéncia náo mostrou ser urna racionalidade ima-
', tilo nente, náo leva implicitamente nenhuma garantia de que sua ética, seu método e
in das sua razáo conduzam de maneira natural e incontrovertível para o bem comum.
ii ser? Hoje também náo é claro que levam á sustentabilidade da vida nem ao desenvol-
s (...) vimento sustentável. A penetragáo da ciéncia no núcleo do átomo e mais recen-
peros, temente no núcleo genético da vida — as aplicagóes da energia nuclear e da
picas, engenharia genética — mostraram os riscos da ciéncia, convocando a sociedade
ItOes,
a debater suas orientagóes e suas aplicagóes e a tomar partido para a superviso
amas,
r,:a es- e controle de seus riscos, sustos e seus benefícios sociais.
indré, Desta maneira, abriu-se um debate pela democratizagáo do conhecimento
e o direito ao conhecimento, que permita urna participagáo informada da socie-
dade sobre os efeitos sociais da ciéncia, ao mesmo tempo em que a globalizagáo
D ser. económica incrementa o processo de privatizagáo e monopolizagáo da ciéncia e
que a da tecnologia, gerando uma sociedade do desconhecimento. Entretanto, a de-
a vi a mocratizagáo do conhecimento náo deve ser confundida com um anarquismo e
osito o relativismo epistemológico, no sentido em que "vale tudo", que qualquer opi-
niáo ou argumento é tilo válido e legítimo — no campo do conhecimento —
s na como a teoria científica mais contundente. Isso náo significa que um confito
ien- ambiental náo possa dirimir-se a favor de valores coletivos sem fundamentos
aa científicos, que a opiniáo da cidadania valha mais que a de uma comunidade de
ante experts e que a objetividade dos argumentos científicos náo adquiram valor
rei- decisório (Funtowicz e Ravetz, 1993; Funtowicz e De Marchi, 2000).
180 ENRIQUE LEFF

O diálogo de saberes ao qual convoca a complexidade ambiental náo é um


relativismo e um ecletismo epistemológico, mas o encontro de tradigóes e for-
mas de conhecimento legitimadas por diferentes matrizes de racionalidade, por
saberes arraigados em identidades próprias que náo só entram em jogo num
processo de tomada de decisóes, mas que "se hibridam" na co-determinagáo de
processos materiais. Hoje em dia, a evolugáo biológica e as mutagóes genéticas
já náo sáo resultado de um processo estritamente biológico. Nas sociedades
tradicionais, a natureza foi conservada e transformada através de formas cultu-
rais de valorizagáo e de significagáo, de maneira que a evolugáo biológica foi
"guiada" pela intervengáo do homem na selegáo das espécies — maneira que é
mais próprio falar de urna coevolugáo ecológico-cultural orientada por saberes e
práticas tradicionais — ; hoje a vida está sendo intervinda — determinada —
pela tecnologia e pela economia. O que está em jogo nas estratégias de poder
em torno á conservagáo ecológica no processo de globalizagáo na confrontagáo
da via marcada pela apropriagáo científica e a valorizagáo mercantil (os direitos
de propriedade intelectual e económica), frente aos diversos significados cultu-
rais destinados á natureza.

7. Verdade e conhecimento. Saber e poder

O espato de externalidade do lógos científico, dos paradigmas de conheci-


mento "realmente existentes", náo é reintegrável, internalizável, estendendo e
expandindo o campo da racionalidade científica até os confins dos saberes mar-
ginais, normalizando-os, matematizando-os, capitalizando-os. A problemática
que propóe a complexidade ambiental e o saber ambiental náo é a da historici-
dade de um devir científico que avanga rompendo obstáculos epistemológicos e
deslocando e levando a sua exteriorizactio infinita o lugar da verdade (Balibar,
1995). 3 Mais precisamente:

"trata-se de saber se o lugar da verdade deve ser ao mesmo tempo pensado como
o lugar da eterna repetigáo dos efeitos de domínio (ou se for possível adotar)
aquela variante particular do nominalismo (...) que inverte as perspectivas, eli-
minando o nome da verdade enquanto tal, náo para proibir de falar do verdadei-
ro, mas para identificar o verdadeiro com a multiplicidade infinita, que excede
qualquer denominagáo unívoca, de suas próprias ocorréncias no real, no pensa-
mento ou na linguagem (...) A hipótese nominalista e democrática tem um obje-
tivo anti-hierárquico bem manifesto: fazer de modo que a verdade se nomeie em
seu próprio lugar ideológico, sem que surja nunca a menor palavra-mestra. Esta
hipótese nos parece uma aporta. Se pretendemos que desaparega a palavra-mes-
E LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 181

é11111 tra, ou que se dissolva na massa, náo aniquilamos o discurso? Salvo que vin-
E for- culemos o desaparecimento, o eclipse da palavra-mestra com outras enuncia-
por O-es, com outros efeitos de verdade" (Balibar, 1995: 70).
num
áo de O desenvolvimento do conhecimento náo é entáo um desdobramento do
1ticas lógos, prefigurado no ser das coisas ou nas categorias a priori da razáo. O co-
Jades nhecimento avanga gerando a objetivagáo do mundo, mas náo está predetermi-
:ultu- nado pela objetividade da realidade. Esta abertura para o infinito, o impensável,
;a foi o que ainda náo é — mas que está na ordem do real e do pensamento — é o
que é espato do saber, que neste ponto encontra sua diferenga com o conhecimento
tres e objetivante no investimento que faz o sujeito configurado por urna identidade,
la — antecipando o possível na ordem do ser e do conhecimento:
poder
Lagáo "A distáncia frente ao ser (...) produz-se como tempo e como consciéncia ou
estos ainda como antecipagáo do possível. Através desta distáncia do tempo, o defini-
ultu- tivo náo é definitivo, o ser ao mesmo tempo que é, náo é ainda, permanece
I suspenso e pode, em todo momento, comegar. A estrutura da consciéncia ou da
temporalidade — da distáncia e da verdade deve-se a um gesto elementar do ser
que rejeita a totalizagáo. Esta rejeigáo produz-se como relagáo com o náo-
englobável, como o recebimento da alteridade (...). O tempo no qual se produz o
ser ao infinito vai mais além do possível. A distáncia da fecundidade frente ao
heci - ser, entrega-se por inteiro no real; consiste numa distáncia frente ao próprio
Ido e presente que escolhe suas possíveis, mas que se realizou e envelheceu de certo
mar- modo e que, em conseqüéncia, paralisado como realidade definitiva, já sacrifi-
cou suas possíveis (...). O transcendente é aquilo que náo poderia ser englobável
ática
(...). A defasagem absoluta da separagáo que a transcendéncia supóe, náo pode-
Drici-
ria expressar-se melhor que pelo termo criagáo, no qual, ao mesmo tempo, se
::os e afirma o parentesco dos seres entre eles, mas também sua heterogeneidade radi-
bar, cal, sua exterioridade recíproca..." (Lévinas, 1977: 288-9, 297).

O diálogo de saberes náo é a historicidade da verdade em seu devir lógico-


orno
experimental, mas propóe a confrontagáo de verdades arraigadas em identida-
otar)
des e tradigóes. Para além do enfrentamento de paradigmas de conhecimento
eli-
tdei- nos quais algum haveria de vencer pela contundéncia de sua verdade, propóe-se
-ede o encontro das verdades legitimadas por sua história de constituigáo e domínio,
nsa- com as verdades subjugadas, com a verdade do que foi e assentado no real e na
lbje- realidade, e com a verdade como poténcia; processo que se valida na confronta-
.! em gáo do pensamento com o real, mas onde a "objetividade" nunca tem a última
Esta palavra porque é na justita onde se desempenha a transcendéncia do mundo e o
nes- sentido da vida.4
182 ENRIQUE LEFF

A verdade abre o campo do possível fundado na potencialidade do real, no


arraigo das identidades e na projegáo do ser:

"Partindo do real e apontando a ele, se introduz na forma da espera o possível no


real (...). Para a constituigao do ser do 'ser aí' é inerente a projegáo, o ser abrin-
do-se, relativamente a seu 'poder ser'. O 'ser aí' pode, como compreensor, com-
preender-se pelo 'mundo' e os outros ou por seu mais peculiar 'poder ser' (...). O
`estado de aberto' mais original e sem dúvida mais próprio no qual o 'ser aí'
pode ser enquanto 'poder ser', é a verdade da existéncia" (Heidegger, 1927/
1951: 286, 242).

A história da verdade e o diálogo de saberes náo se reduzem á dialética


entre razáo e verdade, mas á forma como a verdade se estabelece em relagóes de
poder no saber, á forma como a verdade se faz corpo e arraiga na identidade.
Nietzsche condensa nos seguintes parágrafos a história do encontro entre sabe-
res e conhecimento, de saberes tradicionais e conhecimentos pessoais; o con-
fronto do pensamento metafísico, os saberes pré-científicos e o conhecimento
moderno; a incorporagáo de valores, saberes, ciéncias ao campo da verdade e ao
corpo da vida:

"Por imensos períodos de tempo, o intelecto só produziu erros (...). Estes artículos
erróneos de fé, que eram herdados continuamente, até que quase chegaram a ser
parte dos dons básicos da espécie, incluem os seguintes: há coisas duradouras;
há coisas iguais; há coisas, substáncias, corpos; urna coisa é o que parece que é;
nosso vontade é livre; o que é bom para mim é bom em si mesmo. Foi já muito
tarde guando tais proposigóes foram postas em dúvida e rejeitadas; foi já mui-
to tarde guando emergiu a verdade — como a forma mais fraca de conhecimen-
to. Parecia corno se fóssemos incapazes de viver com isso: nosso organismo
estava preparado para o oposto; todas as suas fungóes superiores, sentido, per-
cepgáo e todo tipo de sensagáo trabalhavam com esses erros básicos, que tinham
sido incorporados desde tempo imemoráveis (...) no domínio do conhecimento,
estas proposigóes se transformaram em normas de acordo com as quais se deter-
minou o "verdadeiro" e o "nao verdadeiro — até as regióes mais remotas da
lógica (...). Assim, a forra do conhecimento náo depende de seu grau de verda-
de, mas em sua idade, no grado no qual foi incorporada, em seu caráter como
urna condigáo de vida. Onde a vida e o conhecimento pareciam opor-se, nunca
houve uma disputa real, mas que a negagáo e a dúvida foram consideradas sim-
plesmente loucura (...) era possível viver em acordo com esses opostos (mas
para isso) inventaram o sábio como o homem que era imutável e impessoal, o
homem da universalidade da intuigao que era Uno e Todo ao mesmo tempo,
com urna capacidade especial para seu conhecimento investido: tinham fé em
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 183

no que seu conhecimento era também o princípio da vida. Mas para afirmar tudo
isto, tiveram de enganar a si mesmos sobre seu próprio estado; tiveram de atri-
buir-se de maneira fictícia a impessoalidade e a duragáo imutável; tiveram de
el no desconhecer a natureza do conhecedor; tiveram de negar o papel dos impulsos
brin- no conhecimento; e em geral, tiveram de conceber a razáo como urna atividade
completamente livre e espontánea. Fecharam os olhos para o fato de que eles
.). O também tinham chegado a suas proposigües opondo-se ao senso comum, ou
aí' devido a um desejo de tranqüilidade, apenas pela posse ou para dominar (...) a
927/ honestidade e o cepticismo surgiram guando dois enunciados contraditórios
pareciam ser aplicáveis á vida porque ambos eram compatíveis com os erros
básicos (...). Gradualmente, o cérebro humano se encheu de tais juízos e convic-
Itica góes, e nesta confusáo de desenvolveu um fermento, luta e cobiga pelo poder.
Náo só utilidade e desfrute, mas qualquer tipo de impulso tomou partido nesta
ps de
disputa sobre "verdades". Da luta intelectual veio uma ocupagáo, urna atragáo,
ade. urna profissáo, um dever, algo digno — e eventualmente o conhecimento e a
abe- busca da verdade encontraram seu lugar como urna necessidade entre outras.
con- Daí em diante, náo apenas a fé e a convicgáo, mas também o escrutínio, a nega-
ento gáo, a desconfianga e a contradigáo se transformaram num poder: todos os ins-
le ao tinto 'malignos' foram subordinados ao conhecimento, empregaram-se em seu
servigo, e adquiriram o esplendor do que é permitido, honrado e útil — e even-
tualmente inclusive o olho e inocencia do que é bom (...). Assim, o conhecimen-
ulos to tornou-se urna pega da própria vida, e em conseqüéncia um poder continua-
1 ser mente crescente — até que eventualmente o conhecimento chocou-se com esses
tras; erros básico primigénios: duas vidas, dois poderes, ambos no mesmo ser huma-
e é; no. Um pensador é agora esse ser em quem o impulso pela verdade e esses erros
uito preservadores da vida chocam para sua primeira luta, depois de que o impulso
nui- pela verdade provou ser também um poder preservador da vida. Comparado
nen- com a significáncia desta luta, todo o demais é questáo de indiferenga: a ques-
smo táo última sobre as condigóes da vida foram aqui expostas, e confrontamos a
per- primeira tentativa de responder esta pergunta experimentando. Até que ponto a
ham verdade pode suportar o ser incorporada? Essa é a interrogagáo; esse é o experi-
,nto, mento" (Nietzsche, 1974: 169-171).
ter-
da O diálogo de saberes na gestáo ambiental, num regime democrático, im-
r da- plica a participagáo das pessoas no processo de produgáo de suas condigóes de
) mo existencia. Por isso é o encontro entre a vida e o conhecimento, a confluencia de
inca identidades e saberes. A encruzilhada pela sustentabilidade é urna disputa pela
im-
mas
natureza e urna controvérsia pelos sentidos alternativos do desenvolvimento
1, o sustentável. Isso faz com que a sustentabilidade tenha corno condigáo ineludível
t po, a participagáo de atores locais, de sociedades rurais e comunidades indígenas, a
em partir de suas culturas, seus saberes e suas identidades.
184 ENRIQUE LEFF

Nesta perspectiva, a interdisciplinaridade ambiental ultrapassa o campo


científico, académico e disciplinar do conhecimento formal certificado e se abre
a um diálogo de saberes, onde se dá o encontro entre o conhecimento codificado
das ciéncias e os saberes organizados pela cultura. A abertura para o diálogo de
saberes náo só é a historicidade das ciéncias que desloca a verdade nem uma
hermenéutica que distribui as interpretagóes e os sentidos do saber; náo é urna
tecnologia que multiplica os campos aplicativos do conhecimento. É a passa-
gem de urna interdisciplinaridade marcada pelo propósito de retotalizagáo sisté-
mica do conhecimento, a um saber marcado pela diversidade de saberes e pela
diferenciagáo dos sentidos do ser.
O ambiente é o campo de externalidade da racionalidade económica e cien-
tífica dominantes na modernidade. O saber ambiental é externo do conhecimen-
to objetivamente que impulsiona a coisificagáo do mundo; mas também toma
distancia do diálogo introspectivo que incita á liberagáo íntima do sujeito. O
saber ambiental ressignifica os sentidos existenciais e reconfigura identidades
individuais e coletivas, e leva a reconstituir o mundo objetivo, a realidade que é
produzida pelo saber.
A complexidade ambiental irrompe no tempo atual, marcando o tránsito
da modernidade para a pós-modernidade. A modernidade, em seu ara' unificador,
universalizante e homogeneizante, foi gerando em suas falhas urna abertura para
a diferenga onde foi-se consolidando o germe da heterogeneidade e da diversi-
dade. Nesse processo, veio sendo gerada uma ordem díspar, dispersa e contradi-
tória. Por um lado, as diferentes ordens da racionalidade modernizadora — eco-
nómica, tecnológica, jurídica — articularam-se e se reforgam para gerar o regi-
me globalizante da unificagáo do mundo pelo mercado. Por outro lado, deram
lugar ao modernismo na arte, como urna tendéncia que buscando desprender-se
da tradigáo e desencadear uma revolugáo permanente da novidade, levou á mul-
tiplicagáo das modas e do consumo. Em sua busca da igualdade, a democracia
enfrenta as hierarquias de urna sociedade estratificada e normalizada; mas ao
mesmo tempo promoveu a emancipagáo pessoal do sentido e do individualismo
contemporáneo, abrindo as comportas á era do vazio e da cultura da desesperan-
(Lipovetsky, 1986).
No campo das ciéncias e no seio do logocentrismo que configura o projeto
positivista, a epistéme da ciéncias modernas estabelece um regime de domínios
diferenciados do conhecimento — ciéncias formais e empíricas; ciéncias da
matéria, da vida e da cultura (Foucault, 1969). A sociedade democrática moder-
na rompe com a complexidade homogénea das sociedades tradicionais para pro-
duzir urna diferenciagáo e heterogeneidade de suas ordens internas — como o
propuseram Marx e Weber em suas análises da articulagáo de instáncias e racio-
LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 185

nalidade na sociedade capitalista — baseados em lógicas antinómicas — hedo-


bre nismo, eficácia, igualdade (Bell, 1979), bem como a articulagáo-disjungáo das
ado ordens tecno-económica, política e cultural, com suas racionalidades e tempo-
de ralidades diferenciadas.
ima O saber ambiental ultrapassa o campo estabelecido pelo logos moderniza-
tina dor que legitima a racionalidade unificante e a ordem disciplinar do conheci-
;sa- mento objetivo. Neste sentido, implica um rompimento com o conhecimento
né- universal e disciplinar que implanta o regime de dominagáo da natureza através
ela da ciéncia e que se situa acima dos saberes e das identidades culturais. No en-
tanto, o saber ambiental náo suplanta o regime da socializagáo disciplinar do
Il - conhecimento pela individuagáo de um saber "pessoal". Pois a personalizagáo
n- abre a porta para a autosedugáo do desejo: "Quando o significado deixa espato
a para jogos do significante, e o próprio discurso para a emogá'o direta, guando as
O referéncias exteriores caem, o narcisismo já náo encontra obstáculos e pode
es realizar-se em todo o seu radicalismo" (Lipovetsky, 1986: 55).
eé O saber ambiental é um saber identitário, conformado por e arraigado em
identidades coletivas que dáo sentido a racionalidades e práticas culturais diferen-
ito ciadas. A identidade transtemporal, ou a temporalidade da identidade transcen-
or, dem a dialética da coisa e do eu, essa fonte subterránea, subcutánea e subcons-
ra ciente que irrompe no eu para instalá-lo num presente iluminado pelas cegueiras
si- do inconsciente. O eu é um ser dessubstancializado, sem território nem referentes,
di- espato flutuante, indeterminado. A identidade está feita de significagóes simbóli-
o- cas, relacionadas com práticas sociais que arraigara num ser coletivo, cuja memó-
ria viaja no tempo, langando raízes na terra e no céu, no material e no simbólico.
O diálogo de saberes ao qual convoca a complexidade ambiental náo é um
se relaxamento do regime disciplinar na ordem do conhecimento para dar lugar á
ul- alianga de lógicas antinómicas o a um jogo indiferenciado de linguagens; á
ia produgáo democrática ou ao consumo massificado de conhecimentos; ou a urna
ao personalizagáo subjetiva e individualizada do conhecimento, capazes de coabitar
o com suas contradigóes. O saber ambiental forja-se no encontro (enfrentamento,
entrecruzamento, hibridagáo, complementagáo e antagonismo) de saberes dife-
renciados por matrizes de racionalidade-identidade-sentido que respondem a
to estratégias de poder pela apropriagáo do mundo e da natureza.
os
da
r- 8. 0 saber ambiental: entre o conhecimento e a utopia
o-
o A crise ambiental abre novos espagos de participagáo e de governabilidade
democrática na gestáo social do processo de desenvolvimento. O discurso da
186 ENRIQUE LEFF

sustentabilidade se abre assim num campo de estratégias teóricas e práticas pela


apropriagáo da natureza, propondo a questáo do poder no saber ambiental. Frente
ao propósito homogeneizador do real que emerge da capitalizagáo do homem,
da cultura e da natureza, a construgáo de uma racionalidade ambiental defende
urna ordem social fundada na produtividade ecológica e na diversidade cultural.
Esta visáo tem afinidade com um projeto epistemológico, que em vez de consi-
derar o conhecimento num propósito unificador das ciéncias, abre a produgáo
de múltiplos saberes, o diálogo entre valores e conhecimentos, a hibridagáo de
práticas tradicionais e tecnologias modernas.
A necessidade de gerar métodos interdisciplinares para analisar os siste-
mas socioambientais complexos, e a exigéncia por democratizar o conhecimen-
to como base de um processo autogestionário de desenvolvimento sustentável,
impulsionou a emergéncia do saber ambiental. Em contraste com o conheci-
mento unificado, matematizável, quantitativo, exato e preditivo da ciéncia for-
mar, os paradigmas heurísticos da "ciéncia pós-normal" (Funtowicz e Ravetz,
1993, 1994) buscam apreender os efeitos sincrónicos e sinergéticos que emer-
gem da articulagáo de processo naturais e sociais, incomensuráveis e irredutí-
veis aos valores do mercado. Esta forma de conhecimento está de acordo com
um processo de apropriagáo subjetiva e coletiva, capaz de induzir um processo
participativo de tomada de decisóes, onde as pessoas deixem de estar controla-
das (alienadas, manipuladas) pelos mecanismos cegos do mercado e pelas leis
científicas que governam processos automáticos, acima de sua consciéncia e
seu entendimento. A racionalidade ambiental guía a reconstrugáo de conheci-
mentos, saberes e práticas, a partir da crítica da racionalidade formal e instru-
mental da civilizagáo moderna.
Diante da pretendida objetividade e universalidade da ciéncia, o saber am-
biental revaloriza o conhecimento singular, subjetivo e pessoal. Para além do
debate epistemológico sobre o sentido do conhecimento pessoal (Polanyi, 1958;
Villoro, 1982), os princípios de racionalidade ambiental promovem a formagáo
de saberes pessoais onde se inscrevem subjetividades diferenciadas na constru-
gáo de um mundo diverso. Estes saberes se constituem num processo dialético
de validagáo com a realidade e um processo dialógico, de comunicagáo e con-
fronto com o outro. Desta maneira, a consisténcia e coeréncia do saber se pro-
duz numa permanente prova de objetividade com a realidade e numa práxis de
construglo do real social que confronta interesses contrapostos e muitas vezes
antagónicos, inseridos nos saberes pessoais e coletivos sobre o mundo.
Neste sentido, o conhecimento náo se constrói apenas em suas relagóes
de validagáo com a realidade externa e numa justificagáo intersubjetiva do
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 187
EFE

ela saber num campo objetivo neutro (de um discurso consensual e homogéneo).
Inte Todo saber aparece inscrito numa rede de relagóes e tensóes com a outridade,
cm, com o potencial do real e com a construgáo de utopias através da agáo social;
nde isso confronta a objetividade do conhecimento com as diversas formas de
iral. significagáo e de assimilagáo de cada sujeito e de cada cultura, gerando um
nsi processo que concretiza e arraiga o conhecimento em saberes individuais e
cáo
coletivos.
) de O saber ambiental forja-se na pulsáo por conhecer, na falta de saber das
ciéncias e no desejo de preencher essa falta impreenchível. A partir daí impul-
ste- siona-se um processo de objetivagáo de urna utopia como construgáo do real a
en- partir de uma multiplicidade de sentidos coletivos, mais que como urna arti-
el, culagáo de ciéncias, de intersubjetividades e de saberes pessoais. O saber am-
ei- biental busca saber o que as ciéncias ignoram porque seus campos de conheci-
or- mento langam sobras sobre o real e avangam subjugando saberes. O saber am-
etz, biental, mais que urna hermenéutica e um método de conhecimento do esqueci-
er- do, mais que o conhecimento do consabido, é urna inquietude sobre o nunca
utí- sabido, o que resta por saber sobre o real, o que ainda náo é. 5 Nesse sentido, o
om saber ambiental leva a construir novas identidades, novas racionalidades e no-
sso vas realidades.
la- A globalizagáo económica e o discurso dominante da sustentabilidade, em
leis sua esquizofrenia discursiva e sua cegueira institucionalizada, desvalorizara es-
ae tes esforgos por construir um saber que integre conhecimentos e valores. O
ci- conhecimento, corno urna forma de relagáo com o mundo, foi cooptado pelo
ru- interesse prático; o saber se reduz ao propósito de resolver os problemas am-
bientais através de instrumentos tecnológicos e económicos. Neste sentido avan-
am-
gam os projetos de comunicagáo e informagáo ambiental, buscando estabelecer
um diálogo consensual e urna linguagem comum. Ali se dissolve a especificida-
a do
de dos saberes e conhecimento num fluxo indiferenciado de dados, numa cons-
958:
ciéncia comum, onde náo cabem os diversos interesses sociais pela apropriagáo
agá()
da natureza, nem tampouco o sentido teórico e estratégico dos conceitos. O
3tru -
propósito de gerar consensos sociais através de um projeto de comunicagáo
!tico
aniquila a utopia e o conhecimento. Pois como bem afirma Bataille:
con-
pro- "Tentamos comunicar-nos, mas entre nós nenhuma comunicagáo poderá supri-
is de mir urna diferenga primeira (...). A única coisa que podemos fazer é sentir em
zes comum a vertigem do abismo (...). Os obstáculos que se °pelan á comunicagáo
da experiéncia (...) obedecem á proibiqcio que a fundamenta e á duplicidade (...)
oes que provém de conciliar aquilo que por princípio é inconciliável: o respeito á lei
do e sua violagáo, a proibigáo e a transgressáo" (Bataille, 1957/1997: 17,41).
188 ENRIQUE LEFF

E essa vertigem do abismo do ser, essa tensáo entre a indiferenga diante do


ser e a diferenciagáo do ser, entre a sobre-objetivagáo do mundo e a desreferencia-
lidade do conhecimento, náo poderá ser salva por um projeto comunicacional:

"Hoje náo há mais transcendéncia, mas a superfície imanente do desenvolvi-


mento das operagóes, superfície lisa, operacional, da comunicagáo. O período
fáustico, prometéico, da produgáo e do consumo dá lugar á era protéica das
redes, á era narcisista e proteiforme da conexáo, do contato, da contigüidade, da
retroalimentagáo, da interface generalizada (...). As mutagóes decisivas dos obje-
tos e do meio ambiente moderno provém de urna tendéncia á abstragáo formal,
operacional, dos elementos e das fungóes, a sua homogeneizagáo num único
processo virtual, ao deslocamento das gestualidades, dos corpos, dos esforgos
nos comandos elétricos ou eletrónicos, á miniaturizagáo no tempo e no espato
de processos cuja verdadeira cena (...) é a da memória infinitesimal e dos micro-
processos" (Baudrillard, 1983: 72).

O saber ambiental rediscute a relagáo entre realidade e conhecimento: náo


só busca completar o conhecimento da realidade existente, mas orientar a cons-
trugáo de outra organizaláo social que náo seria a projegáo para o futuro das
tendéncias atuais. É neste sentido que a utopia ambiental abre novas possibili-
dades a partir do reconhecimento de potenciais ecológicos e tecnológicos, onde
se amalgamam os valores morais, os saberes culturais e o conhecimento cientí-
fico da natureza na construgáo de urna racionalidade ambiental.
O saber ambiental vai além da ambientalizagáo do conhecimento existente
— a internalizagáo de urna "dimensáo" ambiental — que viria a completar a
epopéia da racionalidade científica por alcangar um conhecimento objetivo e
unitário da realidade. O saber ambiental transforma o conhecimento para cons-
truir urna nova ordem social. O saber ambiental está comprometido com a uto-
pia, através de novas formas de posicionamento dos sujeitos da história frente
ao conhecimento. Trata-se de um saber que náo só articula as ciencias existen-
tes, mas forja novas ideologias e teorias, que geram novas solidariedades e sen-
tidos, que mobilizam agóes sociais orientadas pelos princípios de racionalidade
ambiental. Esta náo só gera novos conhecimentos, mas induz um diálogo de
saberes onde se forjam novas formas de organizagáo social e apropriagáo subje-
tiva da realidade através das estratégias de poder no saber e pelo conhecimento.
O saber ambiental constitui assim novas identidades onde se inscrevem os
atores sociais que mobilizam a transigáo para urna racionalidade ambiental. Neste
sentido, o saber ambiental se produz numa relagáo entre teoria e práxis. O co-
nhecer náo se encerra em sua relagáo objetiva com o mundo, e sim abre-se á
E LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 189

e do produgáo de novos sentidos civilizatórios. Isso implica a necesidade de des-


icia- construir a racionalidade que fundou e construiu o mundo, no limite da razáo
nal: modernizadora que a conduziu a urna crise ambiental, para gerar um novo saber
no qual se reinscreve o ser no pensar e se reconfiguram as identidades mediante
olvi- um diálogo de saberes, na dimensáo aberta pela complexidade ambiental para o
íodo re-conhecimento e a re-apropriagáo do mundo.
das
e, da
)bje- Notas
•mal.
jnico
1. Sem dúvida, foi Nietzsche quem jogou a primeira pedra, quem langou as primeiras
Nos luzes e desta maneira inaugura (de forma prematura e visionária) o tránsito para as filosofías
atuais da pós-modernidade, ao declarar a morte de Deus — e com isso de toda a metafísica
cro- que funda o pensamento moderno — abrindo o caminho da desconstrugáo do lagos e da re-
construgáo do mundo: "O lonco (...) gritou: 'Onde está Deus?' Eu vou lhe dizer. Nós o mata-
mos — vocé e eu. Mas como o fizemos? Como pudemos engolir o mar? Quem nos deu a
nao esponja para apagar o horizonte inteiro? Que estávamos fazendo guando desprendemos esta
ns- terra de seu sol? Para onde ela se moya agora? Para onde nos movemos? Distanciando-nos de
todos os sóis? Nao estamos nos afundando continuamente? Para trás, para os lados, para fren-
das
te, em todas as diregeies? Existe ainda um em cima e um embaixo? Nos vamos á deriva como
através de um nada infinito? Nao sentimos o hálito do espato vazio?" (Nietzsche, 1974: 181).
nde 2. Contra o método, a favor da criatividade e da paixáo do conhecimento, e reconheci-
ntí- mento do caráter existencial do saber, Nietzsche teria afirmado: "Quem quer que olhe dentro
de si como dentro de um vasto esparzo e carregue galáxias, também sabe o quanto irregulares
sáo as galáxias; das levam ao caos e ao labirinto da existéncia". E como elogia ao valor da
nte crítica acrescenta: "Negamos e devemos negar porque algo em riós quer viver e afirmar-se —
ra algo que talvez nao conhegamos e que ainda náo vemos" (Nietzsche, 1994: 254, 246).
Oe 3. "A historicidade interna ao confito interminável da ciéncia e da ideologia confronta a
ns- filosofia com urna "experiéncia" de pensamento (...). Ambas a obrigam a superar a alternativa
o- entre uma incompatibilidade entre a verdade e a história e entre uma identificagáo pura e
simples da história com a verdade (o que) constitui (...) para o pensamento outro espato
nte diferente ao ideológico (...) Mais que um espato é (...) um tempo ou um movimento. Pensar
en- sua constituigáo é pensar urna historicidade ou temporalidade "experimental", original no
en- teórico, feita do imprevisível e do irreversível (...) esta historicidade é a da produgáo e objeti-
ade vagáo das condigóes impensadas do pensamento (...) é urna dialética da exteriorizaedo infinita
de da verdade" (Balibar, 1995: 14).
4. "Ideologizagáo/desideologizagáo (...) caracteriza o trabalho do conceito (...) como o
je- movimento incessante do pensamento que, no mesmo momento em que se avanga para o
to. desconhecido, no elemento da linguagem, o expóe á influéncia do imaginário (o da espécie ,
os do indivíduo, da instituigáo); mas, precisamente, para oferecer, por fim, este imaginário á
ste crítica e á elaborag'áo conceituais. A ciéncia em sua história constitui, deste modo, o processo
infinito que escapa da repetigáo mas que carece de um fim designável, que projeta as condi-
co- g6es 'internas' do pensamento (inconscientes ou implícitas) para a exterioridade e para a
eá discursividade, para poder libertar-se delas por meio da objetividade" (Balibar, 1995: 138).
190 ENRIQUE LEFF

"O sentido de todo o nosso discurso consiste em colocar em dúvida a inextirpável con-
vicg'áo de toda a filosofía que afirma que o conhecimento objetivo é a última relagáo da trans-
cendéncia, que o Outro — embora diferente das coisas — deve ser objetivamente conhecido,
mesmo guando sua liberdade frustre essa nostalgia de conhecimento (...) náo tem nenhum
sentido falar aqui de conhecimento ou de ignoráncia, porque a justita, a transcendéncia por
exceléncia e a condigáo do saber náo é de forma alguma, como se pretende, urna noesis
correlativa a um noema" (Lévinas, 1977: 112).
5. Em favor do porvir do conhecimento e das verdades por vir, Nietzsche teria afirmado:
"Meus pensamentos, disse o viajante a sua sombra, deveriam mostrar-me onde estou de pé;
mas náo deveria revelar-me aonde vou. Amo a minha ignoráncia do futuro e náo gostaria de
perecer de impaciéncia e de gostar das coisas prometidas antes do tempo" (Nietzsche, 1994:
230). É essa caricia ao mundo de Lévinas, que espera tudo e nada: "A carícia náo sabe o que
busca. Este `náo saber', esta desordem fundamental, lhe é essencial. É como um jogo com
algo que se escapa, um jogo absolutamente sem plano nem projeto, náo com aquilo que pode
transformar-se em nosso ou transformar-se em nós mesmos, mas com algo diferente, sempre
outro, sempre inacessível, sempre por vir. A carícia é a espera desse puro porvir sem conteú-
do. Está feita do aumento da forre, de promessas cada vez mais ricas que abrem novas pers-
pectivas sobre o inapreensível" (Lévinas, 1993: 133).
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PENSAR A COMPLEXIDADE AMBIENTAL

1. Crise ambiental e re-conhecimento do mundo

A crise ambiental é a crise de nosso tempo. O risco ecológico questiona o


conhecimento do mundo. Esta crise apresenta-se a nós como um limite no real,
que resignifica e reorienta o curso da história: limite do crescimento económico
e populacional; limite dos desequilíbrios ecológicos e das capacidades de sus-
tentagáo da vida; limite da pobreza e da desigualdade social. Mas também crise
do pensamento ocidental: da "determinagáo metafísica" que, ao pensar o ser
como ente, abriu o caminho para a racionalidade científica e instrumental que
produziu a modernidade como uma ordem coisificada e fragmentada, corno for-
mas de domínio e controle sobre o mundo. Por isso, a crise ambiental é acima
de tudo um problema de conhecimento (Leff, 1986/2000), o que nos leva a
repensar o ser do mundo complexo, a entender suas vias de complexificagáo (a
diferenga e o enlagamento entre a complexificagá'o do ser e o pensamento) para,
a partir daí, abrir novas pistas para o saber no sentido da reconstrugáo e da
reapropriagáo do mundo.
A crise ambiental, entendida como crise de civilizagáo, náo poderia en-
contrar urna solugáo por meio da racionalidade teórica e instrumental que cons-
trói e destrói o mundo. Apreender a complexidade ambiental implica um pro-
cesso de desconstrugáo e reconstrugáo do pensamento; remete-nos ás suas ori-
192 ENRIQUE LEFF

gens, á compreensáo de suas causas; implica considerar os "erros" da história


que se enraizaram em certezas sobre o mundo com falsos fundamentos; desco-
brir e reavivar o ser da complexidade que foi "esquecido" com o surgimento da
cisáo entre o ser e o ente (Platáo), do sujeito e do objeto (Descartes), para apreen-
der o mundo coisificando-o, objetivando-o, homogeneizando-o. Esta racionali-
dade dominante descobre a complexidade a partir de seus limites, a partir de sua
negatividade, a partir da alienagáo e da incerteza do mundo economizado, arras-
tado por um processo incontrolável e insustentável de produgáo. 1
A hermenéutica ambiental náo constitui uma exegese de textos em busca
dos precursores do saber ambiental, e sim um olhar que assume a perspectiva da
complexidade ambiental — entendida como expressáo da crise civilizatória
a partir da qual se desenraizam as origens e as causas desta crise, e a partir da
qual se proj eta um pensamento (da complexidade) orientado no sentido da re-
construgáo do mundo. A hermenéutica abre os sentidos bloqueados pelo
hermetismo da razáo. 2
Com base nesta crítica radical das causas da crise ambiental nas formas de
conhecimento do mundo, projeta-se um futuro aberto, a partir da diferenciagáo
dos sentidos do discurso ambientalista. Esta reconstrugáo social se funda num
novo saber, a partir da pergunta sobre as origens desta racionalidade em crise,
sobre o conhecimento do mundo que tem sustentado a construgáo de um mundo
insustentável.
A crise ambiental problematiza o pensamento metafísico e a racionalidade
científica, abrindo novas vias de transformagáo do conhecimento através do
diálogo e da hibridizagáo de saberes. No saber ambiental flui a seiva epistémica
que reconstitui as formas do ser e do pensar para apreender a complexidade
ambiental.
Se o que caracteriza o homem é essa ambivaléncia entre o ser e o pensar, a
questáo da complexidade náo se reduz ao reflexo de uma realidade complexa no
pensamento. A complexificagáo do mundo é o encontro do ser, em vias de com-
plexificagáo, com a construgáo do pensamento complexo. Isto implica repensar
toda a história do mundo a partir da cisáo entre o ser como ente, do "erro plató-
nico" que ofereceu fundamentos falsos á civilizagáo ocidental: que engendrou a
ciéncia moderna como dominagáo da natureza; que produziu a economizagáo
do mundo e implantou a lei globalizadora e totalizadora do mercado.
Esta perspectiva de análise da questáo ambiental questiona o pensamento
da complexidade (Morin, 1993), concebido como uma evolugáo óntica do ser,
como processo de auto-organizagáo da matéria, que alcangaria sua totalizagáo e
finalizagáo pela emergéncia de urna noosfera vista corno urna ética e urna cons-
!UE LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 193

istória ciéncia ecológica, que viriam completar e recompor o mundo fragmentado e


lesco- alienado, construído e herdado delta civilizagáo em crise, através de um pensa-
nto da mento sistémico e complexo.
Dreen-
onal -
Para sair da complexidade sistémica, totalizante, paralisante, e autodestru-
de sua
tiva; para reconstruir o mundo nas trilhas da utopia, da possibilidade, da poten-
arras-
cialidade do real, das sinergias da natureza, da tecnologia e da cultura; para
restabelecer o vínculo entre o ser e o pensar, Heidegger propóe um salto para
fora do ser e do pensar representativo, que funda todo ente enquanto ente; náo
busca apenas um salto para o vazio do náo pensado, mas um reencontro neste domínio
va da onde "o homem e o ser se encontraram sempre em sua esséncia [...] A porta de
a —, entrada do domínio onde isto acontece, harmoniza e determina pela primeira
ir da vez a experiéncia do pensar"' (Heidegger, 1957/ 1988:79).
a re-
pelo Esta via de compreensdo da complexidade ambiental emerge por meio da
desnaturalizagáo da história "natural", que havia culminado na tecnificagáo e
economizagáo do mundo, com base nas quais o ser e o pensar se encontram
de relacionados pelo cálculo e pela planificagáo, pela determinagáo e pela legalida-
gáo de; deste mundo dominado e assegurado que chega a seu limite com o caos e a
num incerteza.
se,
do Para o pensamento crítico, a complexidade ambiental náo se limita á com-
preensáo da evolugáo "natural" da matéria e do homem até este encontro com o
mundo tecnificado. Esta história é produto da intervengáo do pensamento no
idade mundo. Somente assim é possível darmos o salto para fora do ecologismo natu-
és do ralista e nos situarmos no ambientalismo como política do conhecimento, no
1mica campo do poder embutido no saber ambiental, num projeto de reconstrugáo
idade social a partir do reconhecimento da outridade.
Se a sustentabilidade constitui a marca de uma crise de urna época, isto
sar, a nos induz a interrogar as origens de sua presenta no tempo atual e também a
xa no projegáo no sentido de um futuro sustentável. Como pensar a intervengáo nesta
com- marca no ser que permita a construgáo de urna racionalidade alternativa, fora do
ensar campo da metafísica, do logocentrismo e do cientificismo da modernidade que
>lató- acabaram produzindo um mundo insustentável?
rou a
,aláo Isto nos conduz á reconstituigáo de identidades através do saber. Aprender
a aprender a complexidade ambiental permite-nos internalizar urna reapropria-
gáo do mundo a partir do ser e no ser; um reaprender mais profundo e radical
lento que a aprendizagem das "ciéncias ambientais", que buscam internalizar a com-
) ser, plexidade ambiental no ámbito de urna racionalidade em crise. Neste sentido, o
láo e saber ambiental retorna a questáo do ser no tempo e do conhecer na história; do
ons- poder embutido no saber e da vontade de poder que constitui um querer saber.
194 ENRIQUE LEFF

Mais do que urna crise ecológica, a problemática ambiental diz respeito a


um questionamento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epis-
temologia através das quais a civilizagáo ocidental tem compreendido o ser, os
entes e as coisas; da ciéncia e da razáo tecnológica através das quais ternos
dominado a natureza e economicizado o mundo moderno.
Transformagóes catastróficas na natureza ocorreram nas diversas fases da
evolugáo geológica e ecológica do planeta. Pela primeira vez, a crise ecológica
atual náo constitui urna transformagáo natural; é uma transformagáo da natureza
induzida pela concepgáo metafísica, filosófica, ética, científica e tecnológica do
mundo.
Neste sentido, a solugáo da crise ambiental — crise global e planetária —
náo poderá surgir apenas através de uma gestáo racional da natureza e dos riscos
da mudanga global. A crise ambiental leva-nos a interrogar o conhecimento do
mundo, a questionar este projeto epistemológico que tem buscado a unidade, a
uniformidade e a homogeneidade; este projeto que anuncia um futuro comum,
negando o limite, o tempo, a história; a diferenga, a diversidade, a outridade. A
crise ambiental expressa um questionamento sobre a natureza da natureza e do
ser no mundo, com base na flecha do tempo e na entropia vistas como leis da
matéria e da vida, e da morte vista como lei limite da cultura, que constitui a
ordem simbólica, do poder e do saber.
A idéia monoteísta, a invengáo de um Deus único e invisível, da imutabi-
lidade do tempo na reencarnagáo e na transcendéncia — a resposta religiosa do
ser humano frente á marca do limite na cultura e á finitude da existéncia — foi
transferida para o campo do conhecimento como um lógos regente 4 do mundo.
Isto condicionou o surgimento de um projeto de unificagáo através da idéia
absoluta de urna razáo ordenadora e dominadora. Esta última passou da disso-
ciagáo do ser e do ente, que inaugurou a reflexáo ontológica e epistemológica
do pensamento metafísico e filosófico, para a dissociagáo entre objeto e sujei-
to que fundou o projeto científico da modernidade: ali se pode forjar urna 1
ciéncia económica num ideal mecanicista, nas leis cegas do mercado que tém
condicionado a economizagáo do mundo e o predomínio da razáo instrumen-
tal sobre as leis da natureza e sobre os sentidos da cultura, desembocando na
crise ambiental.
O monoteísmo e a idéia absoluta, como princípios invisíveis que regem a
vida, foram transferidos para o mercado, para a ordem económica e tecnológica,
gerando o fracionamento do mundo, o desconhecimento da diversidade, a de- 4
sintegragáo das etnias e das culturas, a subjugagáo dos saberes pelo poder do
conhecimento. Predominou a obsessáo pela unidade, o pensamento unidimen-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 195
UE LEFF

tto a sional e a unificagáo do mundo, como urna estratégia de conhecimento, domí-


epis- nio e controle, corno base de certezas e predigóes de um mundo assegurado.
er, os Deus — a idéia invisível, a imagem irrepresentável, o ser incomensurável
ternos — é a invengáo para salvar um poyo da escravidáo. O mercado se apresenta
como um novo deus, capaz de salvar a humanidade da escravidáo da necessida-
ses da
de e da pobreza. A máo invisível que governa o mundo se faz visível, representável
e mensurável, construindo, codificando e coisificando o mundo segundo suas
lógica
regras e valores. Este deus-mercado (bezerro de ouro) infinito e eterno, abstrato
tureza e real, onipotente e humano, erige-se acima das leis da natureza e do sentido da
lca do existéncia. O desconhecimento da lei provoca o desencadeamento do imaginá-
rio, o bacanal dos sentidos (Schónberg).
ária — A crise ambiental é um resultado do desconhecimento da lei (entropia),
riscos que tem desencadeado no imaginário economicista urna "manía de crescimen-
nto do to", de urna produgáo sem limites. A crise ambiental anuncia o limite de tal
dade, a projeto. Mas justamente por isto, sua solugáo náo poderia basear-se no refina-
omum, mento do projeto científico e epistemológico que tem fundado o desastre ecoló-
ade. A gico, a alienagáo do homem e o desconhecimento do mundo. Daí emerge um
za e do projeto de desconstrugáo da lógica unitária, da busca da verdade absoluta, do
leis da pensamento unidimensional, da ciéncia objetiva; do crescimento do conheci-
sti tui a mento, do controle crescente do mundo, do domínio da natureza e da gestáo
racional do ambiente. A complexidade ambiental abre urna nova compreensáo
utabi- do mundo, incorporando o limite do conhecimento e da incompletude do ser.
e sa do Implica saber que a incerteza, o caos e o risco, sáo ao mesmo tempo efeito da
— foi aplicagáo do conhecimento que pretendia anulá-los, e condigáo intrínseca do ser
undo. e do saber.
idéia A complexidade ambiental inaugura urna nova refiexáo sobre a natureza
disso- do ser, do saber e do conhecer, sobre a hibridagáo de conhecimentos na interdis-
ógica ciplinaridade e na transdisciplinaridade; sobre o diálogo de saberes e a insergáo
sujei- da subjetividade, dos valores e dos interesses nas tomadas de decisáo e nas
urna estratégias de apropriagáo da natureza. Mas questiona também as formas pelas
e tém quais os valores permeiam o conhecimento do mundo, abrindo um espato para
men- o encontro entre o racional e o moral, entre a racionalidade formal e a raciona-
do na lidade substantiva.
A complexidade emerge como resposta a este constrangimento do mundo
gem a e da natureza pela unificagáo ideológica, tecnológica e económica. A natureza
lógica, explode para destravar-se e liberar-se do logocentrismo, abrindo os caminhos da
a de- história com base nos potenciais da natureza complexa, na atualizagáo do ser
er do através da história e na sua projegáo para o futuro, através das possibilidades
imen- abertas pela construgáo de utopias a partir da fecundidade da outridade.
196 ENRIQUE LEFF

Neste sentido, a complexidade ambiental implica uma revolugáo do pen-


samento, urna mudanga de mentalidade, urna transformagáo do conhecimento e
das práticas educativas, para se construir um novo saber, uma nova racionalida-
de que orientem a construgáo de um mundo de sustentabilidade, de eqüidade, de
democracia. É um re-conhecimento do mundo que habitamos. A crise ambien-
tal remete-nos a urna pergunta sobre o mundo, sobre o ser e o saber que nos leva
a repensar e a reaprender o mundo. Pois como indica Heidegger, "estamos a
servil() do pensar apenas guando nos voltamos com o pensar para o já pensado"
(Heidegger, 1957/1988: 97), e "aprender é sempre aprender a conhecer"
(Heidegger, 1962/1975:67). Aprender a aprender a complexidade ambiental
implica urna nova compreensáo do mundo que problematiza os conhecimentos
e saberes arraigados em cosmologias, mitologias, ideologias, teorias e saberes
práticos que se encontram nos alicerces da civilizagáo moderna, no sangue de
cada cultura, no rosto de cada pessoa.
Neste saber do mundo — sobre o ser e as coisas, sobre suas esséncias e
atributos, sobre suas leis e sua existencia em toda esta tematizagáo ontológi-
ca e epistemológica, subjazem nogóes fundamentais que tém dado sentido ao
conhecimento e que tém se enraizado nos saberes culturais e pessoais da popu-
lagáo. Neste sentido, apreender a complexidade ambiental implica um processo
de "desconstrugáo" do pensado para se pensar o ainda náo pensado, para se
desentranhar o mais entranhável de nossos saberes e para dar curso ao inédito,
arriscando-se a desmanchar nossas últimas certezas e a questionar o edifício da
ciencia. O saber ambiental consiste em saber que o caminho no qual vamos
acelerando o passo é urna corrida desenfreada na diregáo de um abismo inevitá-
vel; a partir delta compreensáo do caráter da crise ambiental, náo resta outra
alternativa a náo ser nos sustentarmos na incerteza, conscientes de que devemos
refundamentar o saber sobre o mundo em que vivemos a partir do pensado na
história e do desejo de vida que se projeta no sentido da construgáo de futuros
inéditos por meio do pensamento e da agáo.
A concepgáo do mundo náo emerge de categorias a priori do pensamento;
se os conceitos (espato, tempo) indicam as condigóes de possibilidade do ser,
da coisa, do mundo, temos que entender as condigóes do ser e das coisas que
tem nos levado a instaurar as concepeóes do mundo que construíram o mundo.
Dessa forma, o ambiente náo poderia ser concebido corno urna intuigáo, mas
sim como um conceito que abre a possibilidade do ser como construgáo social.
Se as formas de conhecimento através das quais chegamos a apreender o real
estáo sujeitas a cenas formas "humanas" de entendimento (a espacialidade e a
temporalidade dos fenómenos e das coisas), devemos ver como se constroem as
JE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 197

pen- categorias conceituais e as ideologias teóricas que internalizam o interesse so-


Int° e cial nas formas de entendimento da realidade.
alida- Percebemos e vivemos no mundo a partir das condigóes mesmas de nossas
Je, de "formas de ser", a partir de identidades próprias que se configuram no quadro
[bien- das limitagóes e condigóes colocadas ao entendimento do nosso mundo no en-
5 leva contro com os fenómenos reais que buscamos compreender. O planeta e os
hos a astros náo sabem nada sobre sua espacialidade e sua temporalidade. Os seres
cado" vivos vivem no tempo e se movimentam no espato; mas suas formas de "enten-
ecer" dimento" e "intuigáo" do tempo e do espato diferem daquelas dos seres huma-
iental nos. Somente a partir do limite de sua experiéncia e de seu entendimento, a
entos partir de seu ser na diferenga e na outreidade, o ser humano elabora categorias
beres para apreender o real; e neste processo cria seu mundo de vida e constrói uma
ue de
4 realidade. Esse saber esteve sempre marcado pelo inacabamento do ser, perver-
tido pelo poder do saber e mobilizado pela relagáo com o Outro.5
las e Na epopéia do ser humano para salvar sua falta em ser através do conheci-
lógi- mento, ele tem procurado satisfazer seu inacabamento com uma idéia absoluta,
o ao com uma razáo ordenadora, com uma certeza e uma autoconsciéncia de seu
' pu- lugar no mundo. Nesta busca de compreensáo, de ordenamento, de dominagáo e
esso controle, tem coisificado o mundo, desestruturado a natureza e acelerado o de-
a se sequilíbrio ecológico; ao submeter a natureza ás leis de suas certezas e seu con-
i to, trole, abriu as comportas do caos e da incerteza.
o da Esta é a crise do nosso tempo; daí a necessidade de entender suas raízes no
mos pensamento, para aprender a aprender a complexidade ambiental que oriente a
vitá- reconstrugáo do mundo atual.
utra
mos
o na 2. Dialética e totalidade. Ecologia e sistema
uros
O pensamento ocidental tornou-se obcecado pela busca das esséncias das
nto; coisas e da imutabilidade do tempo. O "ideal clássico da ciéncia" tem sido
ser, aquele de um mundo sem tempo, sem memória e sem história (Prigogine, 1997).
que Todavia, o pensamento filosófico, de Heráclito a Hegel, foi também seduzido
ndo.
pela idéia do devir e da dialética; por uma concepgáo do mundo em transforma-
mas gáo constante, atraído pelo sentido do ser, pela direcionalidade do tempo, pela
ial. fecundidade do infinito e da outridade (Lévinas, 1977). 6
real O evolucionismo darwinista estabeleceu o sentido do tempo na história
ea natural, e este foi reconfirmado pela segunda lei da termodinámica (a entropia
as como medida da flecha do tempo). Neste século, os descobrimentos de partícu-
198 ENRIQUE LEFF

las instáveis, do universo em expansáo, dos processos de auto-organizagáo da


matéria, das estruturas dissipativas e do caos determinista, vieram confirmar que
vivemos num mundo guiado pela mudanga e pela irreversibilidade do tempo.
O materialismo dialético buscou estabelecer um método para unificar o
pensamento e a matéria, e urna racionalidade capaz de fazer frente á lógica
formal e ao positivismo lógico vistos como base epistemológica de urna política
de dominagáo (Engels, 1968). Entretanto, também o pensamento dialético e sua
apropriagáo pelo ecologismo de nosso tempo deverá ser questionado nesta des-
construgáo do logocentrismo que tem imperado na civilizagáo que agora chega
a seu limite, para que possamos construir urna nova racionalidade social, funda-
da na complexidade ambiental.
O pensamento dialético encontrou um solo fértil no campo da ecologia e
na teoria dos sistemas. Autores como Lukács, Goldmann e Kosik renovaram o
método dialético fundado nos princípios de negagáo e contradigáo social, privi-
legiando o caráter revolucionário da categoria de totalidade. 7
A categoria de totalidade converteu-se no cavalo-de-tróia pelo qual a Idéia
Absoluta foi reintroduzida no território do materialismo dialético. Com a teoria
geral dos sistemas (von Bertalanffy, 1968), vista como um método transdisci-
plinar para a articulagáo das ciéncias, a categoria de totalidade perdeu seu senti-
do revolucionário. A teoria geral dos sistemas tendeu para um enfoque positi-
vista ao desprender-se de suas bases ontológicas; em contrapartida, hipostasiou
a ecologia como base material e conhecimento de um processo de auto-organi-
zagáo que se desenvolve "dialeticamente" no sentido de um estado crescente de
completude e totalidade (Bookchin, 1990).
A evolugáo dos ecossistemas naturais, o comportamento dos sistemas com-
plexos e a totalidade do pensamento dialético compartilham princípios comuns,
como a emergéncia da novidade. Todavia, ao subsumir a dialética, vista como
método de pensamento e argumentagáo (a negagáo, a alteridade, a oposigáo dos
contrários), na ecologia, a razáo crítica se dissolve nos princípios da evolugáo
biológica. Desta maneira, Bookchin estabelece um paralelo entre pensamento
orgánico e dialética, opondo-os ao pensamento analítico e á abstragáo formal. O
pensamento orgánico-dialético seria superior á teoria dos sistemas, precisamen-
te porque o primeiro pode explicar os processos materiais diferenciados que sáo
reduzidos pela teoria dos sistemas a suas estruturas analógicas comuns. 8
Bookchin indicou o caráter a-ontológico e reducionista da teoria dos siste-
mas. Mas seu reconhecimento da diferenciagáo de processos materiais náo é
coerente com o monismo ontológico que postula. Bookchin busca fundamentar
sua argumentagáo num naturalismo dialético capaz de apreender a especificida-
UE LEFF
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 199

áo da
que de dos diferentes processos que emergem com a evolugáo da natureza, desde a
po. matéria física até a ordem simbólica, desde a organizagáo biológica até a auto-
consciéncia dos sujeitos de urna nova sociedade ecológica. Nesta visáo de de-
icar o senvolvimento da matéria (que gera urna maior complexidade e processos de
lógica diferenciagáo), se desconhece a constituigáo de novas ordens ontológicas — a
lítica ordem simbólica, cultural, histórica e social — , bem como as formas específi-
e sua cas de conhecimento que lhes correspondem, vale dizer, o problema epistemo-
ta des- lógico da relagáo entre o ser e o conhecer. As diferentes ordens do real sáo
chega apreendidas mediante conceitos teóricos específicos, e náo pela extensáo dos
funda- princípios da biologia evolutiva e dos sistemas ecológicos á sociedade e ás for-
mas do conhecimento.
logia e A compreensáo do mundo como "totalidade" coloca o problema de como
'varara o integrar os diferentes níveis de materialidade que constituem o ambiente como
privi- sistema complexo, e a articulagáo do conhecimento destas ordens diferenciadas
do real, para dar conta destes processos. Nesta construgáo epistémica, o pensa-
a Idéia mento dialético foi seduzido pelo pensamento organicista, pela teoria de sistemas,
la teoria e pelo estruturalismo genético, de onde a evolugáo do pensamento e dos conceitos
insdisci- científicos parecem emergir do desenvolvimento complexo da matéria.
upsoe:tt i i Numa visáo que integraria o estruturalismo genético ao pensamento dialé-
tico, Kosik (1970) pensou a diferenciagáo ontológica da matéria e do ser como
tasiou uma hierarquia de níveis de complexidade de diferentes estruturas na transfor-
gani- magáo evolutiva da totalidade concreta. Entretanto, terminou adotando urna vi-
nte de sáo evolutiva do conhecimento ao afirmar que a complexidade emergente da
matéria se reflete num processo evolutivo de produgáo dos conceitos. Desta
com- maneira, argumenta que para se apreender processos materiais de complexidade
muns, crescente (matéria física, sistemas vivos, ordem simbólica), as categorias que se
como aplicam aos primeiros níveis (aqueles relativos a processos mecánicos), servi-
- o dos ráo como urna primeira aproximagáo que pode ser enriquecida através da utili-
lugáo zagáo de categorias lógicas mais elaboradas. 9
mento Todavia, os conceitos teóricos náo evoluem num processo progressivo de
mal. O adequagáo do pensamento á realidade. Como mostra a epistemologia crítica, os
isamen- conceitos mecanicistas e organicistas tém funcionado como obstáculos episte-
que sáo mológicos (Bachelard, 1938/1972) na construgáo de conceitos que correspon-
8
dem á organizagáo da ordem simbólica e social. Assim, a aplicagáo de urna
Ds siste- visáo mecanicista aos sistemas biológicos velou a inteligibilidade da vida
s náo é (Canguilhem, 1971/1977); de maneira similar, na medida em que os princípios
amentar organizadores da vida e dos processos ecológicos sáo estendidos á sociedade
Sticida- humana, se desconhece a especificidade das ordens históricas e simbólicas, do
poder, do desejo e do conhecimento (Lacan, 1971; Foucault, 1969, 1980).
200 ENRIQUE LEFF

A diferenciagáo da matéria e dos conceitos (única maneira de apreender o


concreto da articulagáo dos processos que constituem o ambiente) náo se pode
reduzir a emergencia de novos tragos, caracteres e fungóes na auto-organizagáo
da matéria viva. A "evolugáo" do ser traz consigo a emergencia de formas dife-
rentes de organizagáo da matéria e do pensamento, que náo podem ser reduzidas
a um monismo ontológico baleado na generalizagáo de princípios ecológicos
de organizagáo da matéria. Coloca-se assim a diferenciagáo entre o processo de
complexificagáo da matéria e a "complexidade reflexiva" (Funtowicz e De
Marchi, 2000) entendida como a complexidade da ordem simbólica; urna dife-
renciagáo da complexidade óntica e da complexidade epistemológica, quer di-
zer, da produgáo de conceitos para se apreender a especificidade de diferentes
ordens do real. Estes conceitos náo podem reduzir-se ás categorias gerais da
dialética, nem subsumir-se na biologia evolutiva vista corno urna teoria orgáni-
ca, sistémica e transdisciplinar, capaz de unificar o natural e o social. Estes
princípios ontológicos e epistemológicos constituem condigóes necessárias para
se apreender a articulagáo das diferentes ordens do real: física, biológica, histó-
rica e simbólica.
A totalidade, vista corno categoria epistemológica que nos permite apreen-
der a complexidade, pode aplicar-se como princípio metodológico a diferentes
ordens ontológicas. Neste sentido, a totalidade concreta aparece no pensamento
como categoria para apreender a síntese das determinagóes múltiplas (as causas
essenciais) de um processo (Marx, 1965). Para que o conceito represente o con-
creto, deve haver urna forma de correspondéncia objetiva com o real. Esta
concregáo náo emerge dos feitos e dos dados "puros" da realidade; tampouco
resulta de um reflexo da natureza na consciéncia subjetiva. A natureza, a maté-
ria e o ser, se organizam em ordens ontológicas distintas, que náo possuem
nenhuma "consciéncia de si" (o sujeito psicológico náo tem uma consciencia
"orgánica" de seus processos inconscientes). A totalidade concreta destas or-
dens materiais aparece no pensamento conceitual através da produgáo de obje-
tos teóricos de conhecimento, que nos permite apreender o real. Este processo
epistemológico da sentido, significado e valor ao real. O conceito apreende a
realidade em sua "correspondencia" com os processo materiais, dando conta da
especificidade das diferentes ordens ontológicas do real. Todavia, esta relagáo
entre o conceito e o real, entre o objeto de conhecimento e a realidade empírica,
náo pode reduzir-se a um monismo ontológico, a partir do qual a mente desco-
briria sua natureza verdadeira, lógica e essencial na auto-reflexáo de um proces-
so biológico evolutivo.
Neste sentido, a ecologia e a teoria de sistemas, antes de serem urna res-
posta a um real em vias de complexificagáo que os reclama, constituem a se-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 201
UE LEFF

der o qüéncia do pensamento abstrato e da teoria que, desde sua origem, sáo solida-
e pode rios da generalidade e da totalidade. Como modo de pensar, estas teorias inau-
nzaláo guram um modo de produgáo do mundo que, afinado com o ideal de universali-
1S dife-
dade e unidade do pensamento, levam á generalizagáo de urna lei totalizadora. É
luzidas neste sentido que a lei do mercado, mais do que refletir na teoria a generalizagáo
Lógicos do intercámbio mercantil, produz a economizagáo do mundo, recodificando o
Isso de real em termos de valores de mercado, e induzindo a globalizagáo do mercado
z e De como forma de totalizagáo do ser no mundo.
ia dife- O saber ambiental emerge como um questionamento a esta tendéncia, abrin-
uer di- do urna reflexáo sobre a densidade histórica do pensamento ecologista e das
ere ntes teorias de sistemas que, a partir de sua vontade de totalidade, forjam um mundo
ais da que tende para a globalizagáo e a generalizagáo de suas leis unitárias, com seus
rgáni- impactos na natureza e na sociedade.
Estes Diante do predominio da racionalidade instrumental da ciéncia moderna

íspara
histó-
com relagáo ao caráter revolucionario do racionalismo crítico, o ecologismo
aparece como um pensamento emancipador, capaz de "restaurar e inclusive trans-
cender o estado libertador das ciéncias e filosofias tradicionais" (Bookchin,
lpreen- 1971:80). Porém, nem a ecologia generalizada, nem a teoria geral dos sistemas
erentes resultam "revolucionárias" em fungáo do seu enfoque integrador e de sua vonta-
amento de de totalidade. Ao contrário, a ecologia tem se estendido até os domínios da
causas história — da ordem simbólica e social —, sem compreender a especificidade
o con- da natureza humana — relagóes de poder, interesses sociais, desejo humano,
1. Esta organizagáo social, racionalidade económica —, que náo podem subsumir-se
lipouco no ámbito de urna ordem ecológica.
maté- A vontade de totalidade do monismo ontológico subjacente á ecologia
s suem generalizada, em sua pretensáo para consentir a urna teoria da complexidade
iéncia ambiental, é questionada pelo estruturalismo crítico, pelas teorias pós-estrutu-
t as or- ralistas e pelo discurso da pós-modernidade. Da perspectiva da organizagáo cul-
obje- tural e da ordem simbólica — do sentido e dos valores; do inconsciente e do
ocesso desejo —, resulta impossível aspirar á totalidade. O ambiente pode ser
ende a conceitualizado como urna estrutura socioecológica holística que internaliza as
nta da bases ecológicas da sustentabilidade e as condigóes sociais da eqüidade e da
elaláo democracia. Entretanto, os princípios e valores que guiam a reorganizagáo da
pírica, sociedade sáo mobilizados por um desejo — uma vontade de poder — que
esco- induz um processo interminável de transformagóes do saber e do ser que ne-
oces- nhum conhecimento — por mais holístico que seja — pode saciar. Esta "falta
em ser" e "falta de conhecimento" náo podem ser satisfeitas com o progresso da
res- ciéncia, do poder da tecnologia, ou com a atualizagáo da natureza orgánica na
laa se- consciéncia humana.
202 ENRIQUE LEFF

Do ponto de vista da hermenéutica do ser, a complexidade ambiental ques-


tiona a busca da verdade vista como a identidade entre um saber holístico e urna
realidade total. A vontade que anima o ideal de unidade e totalidade do conheci-
mento tem encantado e aprisionado os seres humanos num mundo homogéneo
e instrumental, reprimindo a produtividade do heterogéneo, o sentido da dife-
renga, a vitalidade do conhecimento, a diversidade da cultura e a fecundidade do
desejo.
O projeto de se fundar a dialética num conceito abstrato (idealista) de
totalidade, e a vontade de estender seu domínio de aplicagáo a um campo
onicompreensivo que inclua todas as ordens da natureza, da matéria e do ser no
domínio de um pensamento ecologista, reproduz esta vontade de totalidade e
generalidade alheios á complexidade ambiental. Neste sentido, torna-se neces-
sário revalorizar a contribuigáo do pensamento dialético e da complexidade
emergente ao conhecimento crítico, para que se possa construir urna racionali-
dade ambiental e urna sociedade eco-comunitária (Leff, 1999).
O pensamento da complexidade inaugurou novas abordagens para se en-
tender a articulagáo de processos materiais, para além dos limites de compreen-
sáo que nos oferecem os paradigmas científicos e a razáo instrumental, incorpo-
rando os valores ao saber e internalizando o risco e a incerteza na concepgáo de
urna ciéncia pós-normal (Funtowicz e Ravetz, 1994). No entanto, a complexi-
dade emergente náo inclui de forma natural ao conhecimento crítico os interes-
ses sociais e as formagóes ideológicas que orientam a construgáo de uma "so-
ciedade ecológica" e de urna racionalidade ambiental. Frente aos "métodos da
complexidade" que emergem da ecologia e da cibernética, que explicara a reali-
dade corno sistemas de inter-relagóes, interdependéncias, interagóes e
retroalimentagóes, o pensamento dialético proporciona a fertilidade da contra-
digáo discursiva, a diversidade do ser e a confrontagáo de interesses que mobi-
lizam o processo de construgáo de urna racionalidade ambiental.
Se quisermos reorganizar a sociedade, internalizando as condigóes ecoló-
gicas de sustentabilidade, no sentido da criagáo de um sistema de eco-comuni-
dades descentralizadas, teremos que pensar criticamente a transigáo para urna
nova ordem social. Enquanto a política do consenso trata de compor os interes-
ses de diferentes atores sociais e de orientá-los para um "futuro comum" (WCED,
1987) dentro da insustentável ordem económica dominante, a análise do discur-
so e das lutas ambientalistas revela a oposigáo de forgas e de interesses na apro-
priagáo social da natureza. O pensamento complexo oferece urna via heurística
para se analisar processos interrelacionados que determinam as mudangas so-
cioambientais, ao passo que a dialética, vista como pensamento utópico, orienta
QUE LEFF
EPISTEMOLOCIA AMBIENTAL 203

ques-
urna revoluqd o permanente no pensamento que mobiliza a sociedade para a
) e urna
construgáo de urna racionalidade ambiental.
pnheci-
ogéneo No campo do conhecimento, a complexidade manifesta a impossibilidade
la dife- da unidade da ciéncia, da idéia absoluta, de todo tipo de pensamento homoge-
jade do neizante e hegemónico. A diferenga é o signo que marca a impossibilidade de se
estabelecer eqüivaléncias entre processos incomensuráveis; de se pensar a igual-
dade e a eqüidade como o elo final da cadeia significante numa unidade
sta) de
emsimesmada. A complexidade leva-nos a urna reconstituigáo de identidades,
campo
que se separam do idéntico para forjar o inédito. Identidades híbridas e identifi-
ser no
cagóes solidárias na diferenga, na singularidade, de onde se constituem aliangas
dade e
estratégicas para a satisfagáo de interesses comuns; mas que náo buscam sua
neces-
homologagáo num futuro sem origens, sem ancoragens no ser e no tempo, que
lxidade
dissolveria as diferengas na entropia de urna cidadania global sem identidade.
rionali-
O significado de urna racionalidade ambiental que integre os potenciais da
natureza, os valores humanos e as identidades culturais em práticas produtivas
se en- sustentáveis, inclui as inter-relagóes complexas de processos ideológicos e ma-
preen-
teriais diferenciados. Os fundamentos epistemológicos e ontológicos do saber
[Worm- ambiental adquirem assim sentido para se conceber uma estratégia capaz de
Klio de construir urna nova ordem social (Leff, 1994b).
plexi-
nteres-
O estruturalismo identificava um determinismo sistémico na natureza e na
a "so-
história — no sujeito e em sua consciéncia. A faléncia de todo determinismo e
idos da
de toda certeza faz renascer o pensamento utópico e a vontade da liberdade, náo
a reali-
no vazio histórico — sem referentes nem sentidos — que anuncia a pós-moder-
Oes e
nidade, mas como urna nova racionalidade a partir da qual se fundem o rigor da
contra-
razáo e a desmesura do desejo, a racionalidade e os valores, o pensamento e a
sensualidade. A complexidade ambiental anuncia urna erotizagáo do mundo que
mobi-
invade o saber, levando á transgressáo da ordem estabelecida que implie a proi-
bigáo de ser (Bataille, 1957/1997).
ecoló-
A complexidade do mundo e do pensamento inaugura um novo debate
muni-
entre necessidade e liberdade, entre a lei e o acaso. O pensamento da complexi-
urna
dade náo é o corolário do niilismo pós-moderno que anuncia o fim dos projetos
teres-
CED,
(Fischer, Retzer, e Schweizer, 1997). Trata-se da reabertura da história vista
corno complexificagáo do mundo, desde o potencial ambiental até a construgáo
discur-
do possível, ou seja, de um ser náo totalitário que náo apenas é mais que a soma
a apro-
de suas partes; mas que, para além do real existente, abre-se através de relagóes
rística
de alteridade á fecundidade do infinito, ao porvir, ao que ainda náo é. Este
as so-
"todo" combate o totalitarismo da globalizagáo económica e da unidade do co-
orienta
nhecimento.
204 ENRIQUE LEFF

O anterior leva-nos a pensar a dialética social do campo ambiental de urna


perspectiva náo essencialista, náo positivista, náo objetivista. Se abandonarnos
o essencialismo, náo seria para cairmos num relativismo ontológico, mas para
pensarmos a diferenga a partir do ser na reapropriagáo do mundo. A dialética da
complexidade ambiental desloca-se do terreno ontológico e metodológico para
um campo de interesses antagónicos orientados no sentido da apropriagáo da
natureza; um campo onde qualquer totalidade é concebida como um conjunto
de relagóes de poder constituído por valores e sentidos diferenciados.
Neste sentido, a construgáo do campo ambiental implica "um movimento
estratégico complexo que requer a negociagáo entre superfícies discursivas
mutuamente contraditórias" (Laclau e Mouffe, 1985:83). 10 A complexidade am-
biental desloca-se do terreno epistemológico — onde o ambiente é concebido
como urna totalidade configurada por um espato teórico constituído por dife-
rentes paradigmas transformados pelo saber ambiental —, para o campo polí-
tico, onde as estratégias diferenciadas de apropriagáo da natureza estáo imbri-
cadas em estratégias discursivas que váo desde a teorizagáo e os imaginários
sobre a natureza, até as práticas de apropriagáo, produgáo e transformagáo do
ambiente orientado pelos princípios da sustentabilidade. O ambiente, visto
como campo da articulagáo de ciéncias numa totalidade "objetiva", dá se-
qüéncia a uma articulagáo de saberes, práticas e estratégias discursivas num
campo antagónico de interesses opostos, de identidades diferenciadas, de rela-
góes de outridade.
Este campo discursivo da sustentabilidade náo surge como o desenvolvi-
mento de urna esséncia, mas como efeito de um limite: o da racionalidade eco-
nómica, científica e instrumental que pretende objetivar o mundo e dominar a
natureza. Desde as margens e na externalidade da racionalidade dominante emerge
o ambiente como essa falta de conhecimento (falta em ser) que mobiliza as
posigóes diferenciadas voltadas á apropriagáo da natureza (do mundo) no cam-
po conflitivo do desenvolvimento sustentável. Mas este campo discursivo náo
essencialista náo se estabelece através de um jogo de linguagens sem ancora-
gem no real. Os sentidos diferenciados da natureza a ser apropriada dependem
de contextos ecológicos, geográficos, culturais, económicos e políticos especí-
ficos. É neste sentido que as leis limite da natureza e da cultura, que as catego-
rias de território, de hábitat, estabelecem o vínculo entre um real sem esséncias
e atores sociais que configuram e forjam estratégias diferenciadas para a apro-
priagáo social da natureza (Escobar, 1999a; Gongalves, 2000).
O saber ambiental emerge assim como a marca de urna diferenqa, a falta
de um conhecimento, o feixe no qual se temporalizam e convergem os sentidos
JE LEFF EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 205

urna passados da relagáo cultura-natureza e de onde divergem os sentidos polémicos


amos e antagónicos dos discursos da sustentabilidade: projetando num futuro insus-
para tentável as inércias do logocentrismo e a racionalidade económica dominante,
ea da ou introjetando a lei limite da entropia e os sentidos da diversidade cultural na
para construgáo de urna racionalidade ambiental.
ío da A transcendéncia no sentido de um futuro sustentável náo surge como a
junto retotalizagáo do mundo numa consciéncia emergente, como finalidade do uno,
mas sim como fecundidade do mundo a partir da disjungáo do ser e do encontro
lento com o outro. Dialética sem síntese hegeliana do uno desdobrando-se em seu
sivas contrário e reencontrando-se no uno mesmo da unidade e na idéia absoluta. A
am- transcendéncia do saber ambiental é a fecundidade do Outro, vista como produ-
flpido tividade da complexidade, antagonismo de interesses e ressignificagáo do mun-
'dife- do ante aos desafíos da sustentabilidade, da eqüidade e da democracia.
polí-
nbri-
arios 3. Emergéncia do saber ambiental na complexidade, a diferenla e a outridade
o do
visto A complexidade ambiental náo é a ecologizagáo do mundo. O pensamento
se- complexo desborda a visáo cibernética de urna realidade que se estrutura e evo-
num lui através de um conjunto de inter-relagóes e retroalimentagóes, como um pro-
rela- cesso de desenvolvimento que vai da auto-organizagáo da matéria á ecologiza-
gáo do pensamento (Morin, 1977, 1980, 1986). A complexidade náo é apenas a
olvi- incorporagáo da incerteza, do caos e da possibilidade na ordem da natureza
eco- (Prigogine, 1997). 0 saber ambiental rompe a dicotomia entre sujeito e objeto
ar a do conhecimento para reconhecer as possibilidades do real e para incorporar
erge valores e identidades no saber. O saber ambiental internaliza as condigóes da
a as subjetividade e do ser, o que levanta urna série de implicagóes para urna episte-
am- mologia e para urna pedagogía da complexidade ambiental.
náo O ambiente é a falta de conhecimento que nos impele ao saber. É o outro
ora- — o absolutamente outro — frente ao espírito totalitário da racionalidade domi-
dem nante. O saber ambiental projeta-se no sentido do infinito do impensado — o
ecí- que está para ser pensado — reconstituindo identidades diferenciadas em traje-
go- tórias antagónicas de reapropriagáo do mundo." A complexidade ambiental con-
cias figura um reposicionamento do ser através do saber.
pro- A complexidade ambiental aparece como potencialidade a partir da potén-
cia do real e da mobilizagáo do desejo que transcende o mundo totalitário. O
falta ambiente é o outro complexo na ordem do real e do simbólico, que transgride a
idos realidade unidimensional e sua globalidade homogeneizante, para dar curso ao
206 ENRIQUE LEFF

porvir de um futuro sustentável, atraído pela relagáo com o outro e aberto a um


processo infinito de criagáo e diversificagáo.
O ambiente complexo náo é apenas um outro fático e um pensamento
alternativo que internalizariam as externidades económicas e os saberes subju-
gados na retotalizagáo de um mundo ecologizado. A complexidade ambiental
gera o inédito no encontro de outridades, no enlagamento de diferengas, na com-
plexificagáo de seres e na diversificagáo de identidades. Subjacente ao ambiente
encontram-se urna ontologia e urna ética opostas a todo princípio homogenei-
zante, a todo conhecimento unitário, a toda globalidade totalizante. Inaugura-se
assim urna política que vai além das estratégias de dissolugáo de diferengas
antagónicas num campo comum e sob o jugo de urna lei universal. A política
ambiental é convivéncia no dissenso.
É possível reconhecer neste processo de constituigáo do saber ambiental
diversas vias de complexificagáo do real e do conhecimento, da produgáo, do
tempo, das identidades e do ser.

a) A complexificagáo do real.
A complexificagáo da matéria é urna complexificagáo do real: o entrelaga-
mento das ordens física, biológica e cultural; a hibridagáo entre a economia, a
tecnologia, a vida e o simbólico. Esta complexificagáo do real náo resulta da
aplicagáo de urna visáo holística a um mundo que sempre foi complexo, mas
cuja complexidade permanecia invisível para os paradigmas disciplinares. O
real em si complexificou-se. Mais além da auto-organizagáo da matéria (da "evo-
lugáo" do mundo cósmico á organizagáo dos seres vivos e á ordem simbólica),
a matéria tem se complexificado através da re-flexdo do conhecimento do mun-
do sobre o real. O conhecimento passou do entendimento das coisas a urna
intervengáo sobre o real que culminou na tecnologizagáo e na economizagáo do
mundo. Neste sentido, deveríamos reconhecer náo só a fusáo do ideal e do ma-
terial na ordem da cultura, e das sociedades "tradicionais" (Godelier, 1984). Na
modernidade, o ser biológico chegou a hibridizar-se com a razáo tecnológica e
com a ordem discursiva. Os cyborgs sáo entes feitos de organismo, tecnologia e
signos (Haraway, 1991, 1997; Escobar, 1995, 1999a).
O real sempre foi complexo; as estruturas dissipativas sempre existiram e
sáo mais naturais que os processos reversíveis e em equilíbrio.' 2 Mas a ciéncia
simplificadora, ao desconhecer o real, construiu urna economia mecanicista e
urna racionalidade tecnológica que negaram os potenciais da natureza; as apli-
cagóes do conhecimento fragmentado, do pensamento unidimensional, da tec-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 207

nologia produtivista aceleraram a degradagáo entrópica do planeta, complexifi-


cando a complexidade ambiental em conseqüéncia de suas sinergias negativas.
A partir da crise ambiental, vista como sintoma dos limites da racionalida-
de científica e instrumental, a complexidade ambiental emerge como o poten-
cial da articulagáo sinergética da produtividade ecológica, da organizagáo social
e da poténcia tecnológica para gerar urna racionalidade ambiental e uma ordem
produtiva sustentável (Leff, 2000b).

b) A complexificagáo do conhecimento.
A crise ambiental anuncia a emergéncia da complexidade, mas náo de
uma evolugáo dos sistemas naturais no sentido de urna complexidade crescente
que conteria em si mesma urna via de solugáo que passa por urna "consciéncia
ecológica". A construg á- o de uma racionalidade ambiental constitui uma estraté-
gia conceitual nos domínios do poder no saber (Foucault, 1980) que náo corres-
ponde a nenhuma evolugáo natural orientada para o alcance de níveis superiores
de autoconsciéncia. Neste sentido, náo poderíamos falar de catástrofes e mu-
danos ecológicas nas etapas pré-hominídeas do planeta, e inclusive na história
pré-moderna, em termos de crises ambientais. As pestes e as catástrofes
epidemiológicas resultaram da ignoráncia e da dominagáo. A crise ambiental é
a primeira crise do mundo real produzida pelo desconhecimento do conheci-
mento; da concepgáo do mundo e do domínio da natureza que geram a falsa
certeza de um crescimento económico sem limites, até a racionalidade instru-
mental e tecnológica vista como sua causa eficiente.
A crise ecológica tem sido acompanhada pela emergéncia do pensamento
da complexidade, da teoria dos sistemas, da teoria do caos e das estruturas dis-
sipativas. O fracionamento do corpo das ciéncias confronta a complexidade do
mundo indicando a necessidade de se construir um pensamento holístico
reintegrador das partes fragmentadas do conhecimento, para a retotalizagáo de
um mundo globalizado; os paradigmas interdisciplinares e a transdisciplinari-
dade do conhecimento surgem como antídotos á divisáo do conhecimento gera-
do pela ciéncia moderna.
O projeto positivista buscava implantar-se no mundo através da promogáo
de um tipo de conhecimento destinado a emancipar o homem da ignoráncia e
aproximá-lo da verdade. A ciéncia — que se pensava libertadora do atraso e da
opressáo, do primitivismo e do subdesenvolvimento — gerou um desconheci-
mento do mundo, um tipo de conhecimento que náo sabe de si mermo; que
governa um mundo alienado do qual desconhecemos seu conhecimento espe-
cializado e as regras do poder que o governam. O conhecimento já náo represen-
208 ENRIQUE LEFF

ta a realidade; pelo contrário, construiu urna hiper-realidade na qual se vé refle-


tido (Baudrillard, 1976, 1983). A ideologia já náo é o falso e a ciéncia o verda-
deiro. Ambas compartilham urna concepgáo do mundo que construiu urna reali-
dade que, em sua manifestagáo empírica, confirma sua verdade absoluta, atem-
poral e incomovível. Neste sentido, as estratégias fatais que destila a hiper-
realidade do mundo pós-moderno constituem o reflexo do poder que cimentou
a civilizagáo ocidental, desde a compreensáo metafísica do mundo até as arma-
duras do conhecimento positivista.
Se desde Hegel e Nietzsche a náo-verdade aparece no horizonte da verda-
de, a ciéncia foi descobrindo as lacunas do projeto científico da modernidade,
da irracionalidade do inconsciente (Freud) e o princípio da indeterminagáo
(Heisenberg), até encontrar a seta do tempo e a estrutura dissipativa (Prigogine).
O pensamento da complexidade e o saber ambiental integram a incerteza, a
irracionalidade, a indeterminagáo e a possibilidade no campo do conhecimento.
Do campo de externalidade da racionalidade modernizante; dos núcleos
do conhecimento que tem configurado os paradigmas das ciéncias, seus objetos
de conhecimento e seus métodos; das margens do logocentrismo emerge um
novo saber, marcado pela diferenga (Derrida, 1989).' 3 Náo se trata aqui da reto-
talizagáo do conhecimento a partir da conjungáo interdisciplinar dos paradig-
mas atuais. Pelo contrário, trata-se de um saber que, com base na falta de conhe-
cimento das ciéncias, problematiza seus paradigmas científicos para "ambienta-
lizar" o conhecimento, para gerar urna face de saberes nos quais se enfeixam
diferentes vias de sentido.' 4
Neste sentido, para além das teorias onicompreensivas, transdisciplinares
e totalizantes que se postulam a partir dos avangos do conhecimento (a teoria
geral dos sistemas, a ecologia generalizada, o método estruturalista), o saber
ambiental vem fertilizando diversos campos de conhecimento: economia ecoló-
gica, economia ambiental, antropologia cultural e ecológica, saúde ambiental,
urbanismo ecológico. Ao mesmo tempo, abre-se um diálogo de saberes e urna
hibridagáo entre ciéncias, tecnologias e saberes populares que atravessam o dis-
curso e as políticas de desenvolvimento sustentável (Leff, 1998). Das margens
do logos científico, o saber ambiental desloca o corpo rígido e o sentido unívoco
do discurso científico, olha para os horizontes invisíveis da ciéncia, abre os
caminhos do impensável da racionalidade modernizadora e consegue ouvir no-
vas harmonias na música do mundo.' 5

c) A complexificagáo da produgáo.
Apenas um princípio chegou a ser táo universal quanto a idéia de Deus: o
mercado. O conceito de mercado (da máo invisível que governa os intercambios
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 209

mercantis), generalizou-se, construindo o mundo á sua imagem e semelhanga.


O mercado move e constrói um mundo globalizado e ao mesmo tempo se insere
em nossa epiderme, em cada poro de nossas sensibilidades, de nossa razáo e dos
nossos sentidos. O horno economicus substitui o horno sapiens na fase suprema
da evolugáo rumo ao fim da história. O ser economicizado já náo precisa pensar
para existir. Basta-lhe reconhecer-se nos ditames da lei suprema do mercado.
A hegemonia homogeneizante do mercado, vista como razáo última do
progresso, associou-se á unificagáo do lógos, á superespecializagáo da ciéncia e
á eficiéncia tecnológica. 16 O fracionamento do conhecimento em suas aplica-
góes práticas para o domínio da natureza induziu assim a interrupgáo da com-
plexidade ecossistémica para a apropriagáo discreta dos recursos naturais vistos
como matéria prima e objetos de trabalho.
O vínculo da ciéncia com a produgáo tem orientado o desenvolvimento do
conhecimento no sentido de um processo económico regido pela globalizagáo
do mercado. A racionalidade tecnológica e económica que guiam este processo
tendem para uma totalidade homogeneizadora que integra o mundo através da
recodificagáo de todas as ordens ontológicas com base nas "leis" do mercado.
Este processo de economizagáo do mundo implicou náo apenas o esquecimento
do ser em favor do ente, um processo de objetivagáo e coisificagáo do mundo;
além disto, tem apartado a natureza e a cultura da ordem da produgáo, alimen-
tando um tipo de desenvolvimento das forgas produtivas fundadas no dominio
da ciéncia e da tecnologia. Este projeto chega a seus limites com a crise ambien-
tal. Surge daí o reconhecimento da necessidade de se internalizar as condigóes
de sustentabilidade do processo económico.
A complexidade ambiental na ordem da produgáo implica a internalizagáo
de suas "externalidades" náo económicas. Mas este projeto náo poderia realizar-
se mediante a economicizagáo destas ordens (naturais, culturais) negadas pela
economia, vale dizer, mediante a recodificagáo económica do mundo e a mer-
cantilizagáo da natureza. A complexidade ambiental implica o reconhecimento
do ambiente como um potencial produtivo, fundado na capacidade produtiva de
valores de uso naturais que geram os processos ecológicos; da produtividade
tecnológica vista como organizagáo do conhecimento para um processo susten-
tável de produgáo; da produtividade cultural que emerge da criatividade, da
inovagáo e da organizagáo social, fundada náo apenas em critérios produtivos,
mas nos processos simbólicos que doam sentido e balizam as formas de conhe-
cimento e as práticas de uso da natureza; em mecanismos de solidariedade so-
cial e em sentidos existenciais que definem identidades culturais diversificadas
e estratégias múltiplas de aproveitamento sustentável dos recursos naturais (Leff,
1993, 2000b).
210 ENRIQUE LEFF

Neste sentido, a complexificagáo da produgáo implica a desconstrugáo do


lógos globalizador do mercado, da compreensáo mecanicista dos equilíbrios
macroeconómicos e dos fatores produtivos, da lei do valor que tem desconheci-
do a natureza e a cultura. A produtividade da complexidade ambiental emerge
da articulagáo da natureza, da tecnologia e da cultura, da sinergia de processos
de diferentes ordens materiais e gnoseológicas. Neste sentido, a produtividade
ecotecnológica está guiada pelos princípios de urna racionalidade ambiental (ver
Cap. 2).
O ser humano é um ser "entropizante" náo apenas pela necessidade de
sobrevivéncia ou pela busca irrefreável de acumulagáo de capital e riqueza, mas
também por essa falta em ser, que o impele, no erotismo, a urna busca de conti-
nuidade e totalidade, a um investimento sem reservas, do ponto de vista da sua
condigáo existencial, em face da sexualidade, da vida e da morte. 17 Quem pode-
ria entáo condenar o homem pelo fato de abrigar em seu ser este impulso incontido
para o desperdício, de encarnar a contradigáo de urna vida insustentável? Essa
relagáo entre natureza e cultura desvela uma estranha dialética na qual o homem
inaugura sua história colocando limites á natureza desbordante de sua sexuali-
dade, para chegar ao "fim da história" reconduzindo o desejo pela via da econo-
micizagáo do mundo arrastada por urna mana de crescimento e por uma dissi-
pagáo ilimitada de recursos." Esta espiral inflacionária tem feito com que as
leis da natureza (entropia) imponham seus limites á cultura da modernidade.
Desse limite do crescimento e da entropizagáo do mundo, é que emerge a neces-
sidade de transgredir essa desordem organizada pela racionalidade económica,
que permita construir urna ordem produtiva sustentável, fundada em urna racio-
nalidade ambiental.' 9
A sustentabilidade implica alcangar um equilibrio entre a tendéncia para
a morte entrópica do planeta, gerada pela racionalidade do crescimento eco-
nómico, e a construgáo de urna produtividade neguentrópica baleada no pro-
cesso fotossintético, na organizagáo da vida e na criatividade humana. A sus-
tentabilidade é a marca da proibigáo na ordem económica. A racionalidade
ambiental induz essa internalizagáo do limite e da proibigáo no terreno da
produgáo. Mas ao mesmo tempo, o saber ambiental constitui uma reerotizagáo
do mundo diante da deserotizagáo do pensamento objetivador e da tendéncia á
economicizagáo da natureza. A racionalidade ambiental transgride a ordem
dominante para reintroduzir os princípios de urna desordem organizada
(neguentropia). Esta é a fungáo que opera o saber ambiental na ordem da
produgáo (Leff, 1997).
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 211

d) A complexificagáo do tempo.
O saber ambiental introduz um novo campo de nexos interdisciplinares
entre as ciéncias e um diálogo de saberes; trata-se da hibridizagáo entre urna
ciéncia objetivadora e um saber que condensa os sentidos que tém se forjado no
ser através do tempo. A complexidade reabre a reflexáo sobre o tempo no real
— a flecha do tempo — (Prigogine) e no ser (Heidegger). É neste sentido que o
saber ambiental constitui o entrecruzamento de tempos; dos tempos cósmicos,
físicos e biológicos, mas também dos tempos que tém configurado as concep-
góes e as teorias sobre o mundo, e as cosmovisóes das diversas culturas através
da história. 2°
A ciéncia moderna náo apenas tem negado o tempo da matéria, mas tam-
bém o da história. Hoje o tempo se manifesta na irreversibilidade dos processos,
distanciados do equilíbrio e do tempo, que se aninhou no ser cultural que atual-
mente renasce do jugo da dominagáo e da opressáo, expressando-se pelo silén-
cio, que tem sido o grito eloqüente de urna violéncia que paralisou a fala dos
povos. 2 '
Hoje, os movimentos de emancipagáo dos poyos indígenas e das nagóes
étnicas estáo descongelando a história; suas águas fertilizara novos campos do
ser e fluem para oceanos cujas marés abrem novos horizontes do tempo. Náo é
táo-somente o entrecruzamento dos tempos objetivados na história, das
historicidades diferenciadas do real, das historicidades diferenciadas do real, da
historicidade do pensamento que se tem feíto História real, do encontro sinergético
de processos que nos conduziram á catástrofe ecológica. Trata-se da emergéncia
de novos tempos, de urna mutagáo histórica onde se articulam as modificagóes
transgénicas da vida — a hibridizagáo do real no sentido da qual confluem a
natureza física e biológica, a tecnologia e a ordem simbólica — com a atualiza-
gáo de tempos vividos, na emergéncia de novos mundos de vida.
Hoje, a história está se refazendo no limite dos tempos modernos; na
reemergéncia de velhas histórias e na emancipagáo dos sentidos reprimidos por
urna história de conquista, de submissáo e holocausto. Estas histórias ances-
trais, que em sua quietude pareciam haver perdido sua memória, despenan' para
uma atualidade que ressignifica suas tradigóes e suas identidades, abrindo novas
trilhas no fluxo da história."

e) A complexificagáo das identidades


A atualizagáo do ser frente á complexidade ambiental coloca o problema
da identidade. Náo se trata apenas de repensar o princípio de identidade formal
— que afirma a mesmice do ente — frente á complexidade que anuncia a diver-
212 ENRIQUE LEFF

sidade e a pluralidade do ser. A identidade na perspectiva da complexidade am-


biental implica dar um salto para fora da lógica formal, para se pensar um mun-
do configurado por urna diversidade de identidades, que constituem formas di-
ferenciadas do ser e entranham os sentidos coletivos dos poyos. Neste sentido, o
saber e pensar a partir da identidade resiste e enfrenta a imposigáo de um pensar
externo sobre seu próprio ser — a partir das etnociéncias, o conhecimento cien-
tífico e os processos de etnobioprospecgáo vistos como apropriagáo do ser dos
poyos (de seus saberes) com base na lógica da globalizagáo ecológica-económi-
ca (Leff, 1998, cap. 21).
Náo é a identidade abstrata do ente com o ente, ou do ser e do pensar
(Parménides). A configuragáo das identidades e do ser na complexidade am-
biental se dá como o posicionamento do indivíduo e de um poyo no mundo; na
construgáo de um saber que orienta estratégias de apropriagáo da natureza e da
construgáo de mundos de vida diversos.
E é nesta relagáo do ser e do pensar que ganha sentido pleno o princípio de
identidade entendido como um processo de construgáo social no saber (mais do
que na idéia de um saber pessoal que incorpora a subjetividade do ser cognos-
cente no seu conhecimento). É a partir da identidade que se coloca o diálogo de
saberes na complexidade ambiental, como a abertura, a partir do ser constituído
por sua história até o inédito, o impensado; até urna utopia enraizada no ser e no
real, construída com base nos potenciais da natureza e nos sentidos da cultura.
A reconfiguragáo das identidades na complexidade ambiental rompe a inér-
cia do "eterno retorno" á consciéncia ambiental (como consciéncia individual
ou "consciéncia" de toda a espécie) que nos remete á metafísica da presenta, á
reafirmagáo de um sujeito autoconsciénte ou á emergéncia de urna consciéncia
coletiva que resultaria do desenvolvimento de um telos ecológico.
As identidades na complexidade sáo constituídas no sistema de diferengas
e de antagonismos pela apropriagáo da natureza á que nos remete o discurso da
sustentabilidade: da sustentabilidade corno marca de urna lei limite e como a
fecundidade que geram as sinergias da complexidade ambiental. Isto promove o
encontro das identificagóes dos sujeitos sociais com diferentes discursos sobre a
sustentabilidade, mas também a construgáo de atores sociais nas trilhas da com-
plexificagáo óntica, epistemológica e produtiva do ambiente, transgride o dis-
curso dominante do desenvolvimento sustentável.
O chamado ao ser na complexidade dissolve o sentido da identidade vista
como igualdade do pensamento formal e da mesmice vista como o encontro do
ser no mundo; a identificagáo do sujeito preso ao seu eu subjetivo, marcado pelo
limite e pela morte. No pensamento da complexidade, deveríamos pensar-se o
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 213

ser para além de sua condigáo existencial geral (elemento constitutivo de todo
ser humano) para penetrar no sentido das identidades coletivas que se consti-
tuem sempre a partir da diversidade cultural e da diferenga, mobilizando aos
atores sociais para a construgáo de estratégias alternativas de reapropriagáo da
natureza, frente aos sentidos antagónicos da sustentabilidade.
Na perspectiva da complexidade ambiental, as identidades sáo constituí-
das por um processo de reapropriagáo do mundo. Num mundo globalizado, isto
implica náo só um processo de miscigenagóes culturais, mas também a recons-
trugáo da identidade liberada de todo tipo de essencialismo que nos remeta a
uma raiz imutável e a uma cultura sem história. A identidade na complexidade
ambiental carrega um sentido reconstitutivo do ser coletivo que, a partir de urna
origem e de urna tradigáo, reconfigura-se frente ás estratégias de poder da globa-
lizagáo económico-ecológica como formas de resisténcia cultural; mas também
como estratégias de construgáo de urna nova racionalidade social imbricada com
as condigóes da natureza (o real) e com os sentidos da cultura (o simbólico).
A reconfiguragáo das identidades na complexidade ambiental suscita urna
interrogagáo sobre os pontos de assentamento do ser coletivo num território e
também de ancoragem na cultura; estimula-nos a contemplar sua resisténcia e
permanéncia no tempo; a questionar essas formas de identidade que, sem deixar
de existir e de ser designada a partir de sua origem constitutiva (étnica, nacional,
religiosa) — ser judeu, tzeltal ou kosovar — se complexifica num processo de
miscigenagóes étnicas e de mutagóes culturais, para constituir identidades iné-
ditas, que se váo configurando através de estratégias de poder para se enraiza-
rem num território e para se apropriarem de um mundo.
No jogo democrático e no espato da complexidade, a identidade náo é
apenas a reafirmagáo do uno na toleráncia aos demais; trata-se da reconstituigáo
do ser pela introjegáo da outridade — a alteridade, a diferenga, a diversidade
na hibridizagáo da natureza e da cultura, por meio de um diálogo de saberes.
Este é o sentido do jogo dialógico: a abertura á complexificagáo de um indiví-
duo no encontro com os outros nos leva a compreender a identidade como con-
servagáo do uno e do mesmo na incorporagáo do outro num processo de com-
plexificagáo no qual as identidades sedentárias se tornam transumantes, híbri-
das, virtuais.
Surge assim a pergunta sobre as condigóes de constituigáo de toda identi-
dade na pós-modernidade. Da perspectiva de urna ontologia náo essencialista,
como falar de identidades enraizadas no ser e num território, de identidades que
sáo mais que a afirmagáo do eu frente a um outro e que surgem do antagonismo
constitutivo do social náo suturado e nem saturado. Se frente á falta em ser, se
214 ENRIQUE LEFF

por meio da linguagem exprimimos a existéncia num eu que fala e se afirma em


identidades individuais, errantes e passageiras, como pensar as miscigenagóes
culturais e as hibridizagóes genéticas nas quais seria delinear os tragos de ori-
gem, a esséncia constitutiva da identidade cultural? Hoje, guando o sujeito indi-
vidualizado está sempre em processo de deixar de ser uno para fundir-se no
anonimato coletivo; como as moedas que se fundem num signo económico uni-
tário, como as mercadorias que se confundem no padráo ouro e no dinheiro
circulante.
Isto leva-nos a pensar a constituigáo de identidades sem apego á terra e á
tradigáo; a emergéncia dessas identidades que se assentam na invocagáo de um
eu, onde toda identidade estaria em processo de ser outra, onde a diferenga entre
o próprio e o alheio náo se estabelece a partir do ser no tempo, e sim a partir da
afirmagáo do "eu" — de um sujeito sem ser, sem raízes, sem referéncias, sem
território e sem história — frente a um "outro".

f) A complexificagáo das interpretagóes


Diante do conhecimento objetivante, da verdade fundada sobre os feitos
duros da realidade e do saber visto como dominagáo da natureza, a hermenéuti-
ca abre os caminhos que nos levam á compreensáo dos sentidos do discurso
ambientalista. O ambiente surge, assim, como um campo heterogéneo e conflitivo,
no qual se confrontam saberes e interesses diferenciados, e se abrem as perspec-
tivas do desenvolvimento sustentável a partir da diversidade cultural.
Em sua crítica ao projeto epistemológico positivista que busca a verdade
entendida como a adequagáo entre o conceito e a realidade, a hermenéutica
desvela urna multiplicidade de sentidos na interpretagáo do real. Náo se trata do
abandono da idéia de verdade, mas apenas um deslocamento de seu sentido: da
verdade como adequagáo do conceito ao real pré existente, passa-se á constru-
gáo do mundo mobilizado pela verdade como causa (Lacan), do desejo que abre
o ser para o infinito, para o inédito, para o que ainda náo é. De urna verdade que
se forjará na pulsáo por dizer-se e fazer-se, na necessidade de dizer o indizível,
que transitará pelo pensamento, pelo saber e pela agáo, e á qual sempre faltará a
palavra para dizer sua verdade final, definitiva e total.
O sentido verdadeiro do mundo constrói-se discursivamente a partir de
interesses sociais diferenciados. Todavia, esta irradiagáo de verdades náo cons-
titui urna mera dispersáo de certezas subjetivas, de saberes pessoais. Como ver-
dades virtuais, estáo situadas num campo de tensóes criado pelas potencialida-
des do real e pela forga dos sentidos do ser construídos e transmitidos através do
tempo; de um ser que constrói seus discursos verdadeiros sobre a natureza a
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 215

partir de seus códigos culturais, a partir de sentidos coletivos e significagóes


pessoais.
As verdades, como mundos de vida possíveis, se constroem por uma bus-
ca de consisténcia entre as limitagóes e potencialidades do real e a construgáo de
utopias carregadas de sentidos; entre as explicagóes do mundo tornado realida-
de e a compreensáo de um mundo náo pré determinado; de um mundo feito de
muitos mundos a partir de urna diversidade de sentidos.
A construgáo de sentidos dá-se como reconstituigáo do ser, marcado por
um tempo complexificado, conformando-se no mundo complexo. O ser situa-se
construindo sentidos que, por sua vez, constroem o mundo. Este é o sentido do
saber ambiental que, a partir do náo saber das ciéncias, as reconstrói, enquanto
se funde com sentidos da cultura e com as potencialidades da natureza.
A hermenéutica ambiental constitui urna exegese do siléncio: interpreta-
gáo da introjegáo de urna violéncia repressiva, da palavra perdida, da ocultagáo
de saberes e verdades entendida como forma de resisténcia e estratégia de luta
frente a um outro que atenta contra sua identidade e sua autonomia.
A hermenéutica ambiental náo constitui o descobrimento de tuna intencio-
nalidade vista como projegáo a partir de uma interioridade; náo pode ser identi-
ficada a urna racionalidade comunicativa que construiria urna verdade comum
entendida como síntese de controvérsias e diferengas argumentativas. Trata-se
do enlagamento de sentidos diferenciados que se originam de seres diversos,
que se fecundam e se hibridizam no presente, projetando-se no futuro sem po-
der a cada vez exprimir suas intengóes, recuperar sua memória passada e anteci-
par suas identidades futuras.

g) A complexificagáo do ser
Voltamos assim á pergunta pelo ser: o ser do ente, das coisas, do mundo,
do ser humano. Do ser que permanece e ao mesmo tempo submete-se ao devir,
se reconstitui e se projeta num mundo em vias de complexificagáo. O ser
complexifica-se pela complexificagáo do real, do pensamento, do tempo e das
identidades. •
Que significa ser um indígena atualmente?
O indígena, esse ser marginalizado, dominado, subjugado. Esse ser forja-
do numa sociedade "tradicional", numa sociedade fria, sem tempo; num mundo
no qual perdeu sua memória na história de dominagáo, onde sua fala foi repri-
mida no siléncio da submissáo. Esse ser, objeto de estudos antropológicos, revive
no tempo atual transportando seus tempos imemoráveis, reinserindo-se em seu
216 ENRIQUE LEFF

território, relocalizando-se no mundo globalizado a partir de suas lutas de resis-


tencia e de suas estratégias de reapropriagáo da natureza.
O ser indígena torna-se objeto de estudos genéticos; seus saberes tornam-
se objeto de projetos de etnoprospecgáo para que seu conhecimento sobre a
biodiversidade seja apropriado. O indígena ressignifica sua história e re-situa
seu ser num mundo complexificado como o Outro da globalizagáo económica e
da ecologia generalizada. Frente ás estratégias de capitalizagáo da natureza e da
cultura, o ser indígena procura situar-se no ámbito do discurso da sustentabili-
dade, da globalizagáo, da democracia; ele se posiciona frente ás estratégias de
controle de seu território biodiverso e de seus instrumentos normativos — as
convengóes e protocolos internacionais, as legislagóes nacionais, os mecanis-
mos de "desenvolvimento limpo" e de implementagáo conjunta, de compensa-
gáo de danos — para reafirmar suas identidades, seus direitos, reclamando auto-
nomia como o direito de ser, o direito á identidade, o direito ao território.
Neste processo, os poyos indígenas estáo reconstituindo suas identidades
num processo que náo apenas recupera sua história e sua memória, suas identi-
dades coletivas e suas práticas tradicionais, mas também recoloca, para os mes-
mos, a necessidade de se reconfigurar o ser frente á globalizagáo económica.
Náo se trata apenas de uma exigéncia de compensagáo pelo dano ecológico a
que foram submetidos, da reivindicagáo de urna dívida ecológica entendida como
dívida histórica de conquista e submissáo.
Trata-se do direito de ser diferente, do direito á autonomia, de sua defesa
frente á perspectiva de serem reintegrados á ordem económico-ecológica globa-
lizada, á sua unidade dominadora e á sua igualdade ineqüitativa. Do direito a
um ser próprio e coletivo que reconhece seu passado e projeta seu futuro; que
reconhece sua natureza e restabelece seu território; que recupera o saber e a fala
para localizar-se a partir de seu lugar e para dizer sua palavra no contexto do
discurso e das estratégias da sustentabilidade. Para construir sua verdade a par-
tir de um campo de diferengas e autonomias que se entrelagam na solidariedade
de identidades coletivas diversas.
Este é o sentido da complexidade do ser: confluencia de processos e de
tempos que tém bloqueado a complexidade num pensamento unidimensional
(Marcuse, 1968), que rompeu a complexidade ecossistémica e erodiu sua ferti-
lidade; que subjugou as identidades múltiplas da raga humana e alienou as cons-
ciencias. Crise de sujeigáo, submissáo, de desconhecimento do real complexo,
do tempo complexo, do ser complexo.
A partir deste forgamento da razáo e do real, emerge a forga da complexi-
dade, a sinergia do encontro do ser complexo do mundo onde se enlagam tem-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 217

pos, onde se entretecem identidades, onde se amalgamam culturas, onde se


hibridizam a natureza, a cultura e a tecnologia, onde se bifurcam processos
com sentidos diversos até a diferenciagáo do ser. É o feixe que libera um
conjunto de luzes multicoloridas, em diferentes freqüéncias, na diregáo de um
universo infinito.

4. Para urna Pedagogia da Complexidade Ambiental

Torna-se impossível conceber hoje em dia o real e a história independente-


mente do conhecimento e do saber que constróem o mundo e o destróem, desde
as origens do pensamento metafísico, até as aplicagóes tecnológicas do conhe-
cimento científico. A crise ambiental nao é crise ecológica, mas crise da razáo.
Os problemas ambientais sao, fundamentalmente, problemas do conhecimento.
Daí podem ser derivadas fortes implicagóes para toda e qualquer política am-
biental — que deve passar por urna política do conhecimento —, e também para
a educagáo. Apreender a complexidade ambiental nao constitui um problema de
aprendizagens do meio, e sim de compreensáo do conhecimento sobre o meio.
A compreensáo do ser no saber, a compenetragáo das identidades nas cul-
turas, incorporam um princípio ético que se traduz num guia pedagógico; para
além da racionalidade dialógica, da dialética da fala e da escuta, da disposigáo
para compreender e para "se colocar no lugar do outro", a hibridizagáo de iden-
tidades e o diálogo de saberes implica a internalizagáo do outro no uno, num
jogo de mesmices que introjetam outreidades sem renunciar a seu ser individual
e coletivo. A constituigáo de identidades híbridas nao significa sua diluigáo na
entropia do intercambio subjetivo e comunicativo, mas antes a afirmagáo de
seus sentidos diferenciados.
O questionamento da racionalizagáo crescente do conhecimento e da obje-
tivagáo do mundo tem suscitado a emergéncia da temática dos valores e da
subjetividade do saber. Esta relagáo entre ética e conhecimento deve levar-nos a
distinguir diferentes níveis de incorporagáo de valores ao conhecimento, no
ámbito das relagóes de poder no saber.
1. Os valores relativos aos impactos da ciencia na sociedade e no ambien-
te físico-biológico, que nao alteram os paradigmas do conhecimento e
nem o próprio núcleo do saber. Por exemplo, o debate ético sobre as
aplicagóes da energia atómica e sobre os avangos da engenharia genéti-
ca, que nao altera as descobertas realizadas pela física nuclear e pela
biotecnologia.
218 ENRIQUE LEFF

2. Os valores sociais e a racionalidade económica que orientam os desen-


volvimentos das ciencias e propiciam os avangos do conhecimento teó-
rico. Neste sentido, a política científica responde a um imperativo de
utilidade económica e funcionalidade social que opera de maneira irre-
fletida sobre seus fundamentos no plano do conhecimento.
3. A questáo do saber pessoal (Polanyi, 1958) que, para além da inscrigáo
da subjetividade do científico no desenvolvimento da ciéncia, questio-
na o "modo pelo qual o ser cognoscitivo tem abordado o real" (Lévinas,
1977:88).
4. A fusáo de valores e significados diversos na própria construgáo dos
objetos de conhecimento, na orientagáo do saber, na legitimagáo e vali-
dagáo de paradigmas de conhecimento, incluindo-se nisto a inscrigáo
dos interesses e sentidos investidos no saber segundo formas diferen-
ciadas e antagónicas de apropriagáo do mundo e da natureza.

O acabamento da modernidade, a totalizagáo do conhecimento, a finaliza-


QáO da ciéncia, o fim da história, resultam numa complexificagáo do mundo;
emerge daí um chamado, a partir do real e a partir do sentido do ser, ao conhe-
cimento fundado no determinismo e na certeza, inaugurando um saber da his-
tória vista como poténcia, criatividade e possibilidade. A crise ambiental cons-
titui um chamado á reconstrugáo social do mundo: a apreender a complexidade
ambiental.
A educagáo ambiental é um processo no qual todos somos aprendizes e
mestres. Os bons mestres sempre foram aprendizes até alcangarem a maestria
de artes e ofícios. Mas esse processo de transmissáo de saberes sempre se deu
no ámbito de relagóes de poder daquele quem detém um saber; de relagóes de
dominagáo professor-aluno; de relagóes de autoridade e de prestígio exercidas
na busca de apropriagáo de um saber codificado, certificado.
A complexidade ambiental implica náo só o aprendizado de fatos novos
(de maior complexidade); além disso, inaugura um saber que desconstrói os
princípios epistemológicos da ciencia moderna e funda urna nova pedagogia,
por meio de urna nova racionalidade que significa a reapropriagáo do conheci-
mento a partir do ser do mundo e do ser no mundo; a partir do saber e da
identidade que se forjam e se incorporam ao ser de cada indivíduo e de cada
cultura.
Este apreender o mundo dá-se através de conceitos e categorias de pensa-
mento com os quais codificamos e significamos a realidade; por meio de forma-
góes e articulagóes discursivas que constituem estratégias de poder para a apro-
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 219

priagáo do mundo. Toda aprendizagem é apreensáo e transformagáo do conheci-


mento a partir do saber que constitui o ser. Toda aprendizagem é uma reapro-
priagáo subjetiva do conhecimento. 23
A pedagogia da complexidade ambiental reconhece que o ato de apreen-
der o mundo parte do próprio ser de cada sujeito; que se trata de um processo
dialógico que desborda toda racionalidade comunicativa construída sobre a base
de um possível consenso de sentidos e verdades. Para além de urna pedagogia
do meio — na qual o indivíduo concentra o olhar no seu entorno, na sua cultura
e na sua história para se reapropriar do seu mundo a partir de suas realidades
empíricas — a pedagogia da complexidade ambiental reconhece o conhecimen-
to, contempla o mundo como poténcia e possibilidade, entende a realidade como
construgáo social mobilizada por valores, interesses e utopias.
Diante da incerteza, a pedagogia da complexidade ambiental náo se iden-
tifica com o conformismo, com o viver ao sabor do momento, com a sobrevi-
véncia. Ao contrário, trata-se da indugáo da imaginagáo criativa e da agáo soli-
dária, da visáo prospectiva de urna utopia fundada na construgáo de um novo
saber e de urna nova racionalidade; aposta na agáo dos potenciais da natureza e
na fecundidade do desejo. 24
Se a ciéncia perdeu suas certezas e suas capacidades preditivas, se foi eli-
minada a possibilidade de se construir um mundo planejado de maneira centra-
lizada e com base numa racionalidade científica e numa racionalizagáo dos pro-
cessos sociais, entáo a educagáo deve preparar as novas geragóes náo apenas
para que aceitem a incerteza (urna educagáo como preparagáo face ao desastre
ecológico e como criagáo de capacidades de resposta diante do imprevisto); ela
deve preparar também novas mentalidades, capazes de compreender as comple-
xas ínter-relagóes entre os processos objetivos e subjetivos que constituem seus
mundos de vida, para gerar habilidades inovadoras tendo em vista a construgáo
do inédito. Trata-se de urna educagáo que permite que os indivíduos se prepa-
rem para a construgáo de urna nova racionalidade; náo para urna cultura de
desesperanga e alienagáo, mas pelo contrário, para um processo de emancipagáo
que permita o surgimento de novas formas de reapropriagáo do mundo.
A pedagogia da complexidade ambiental constrói-se assim na forja de um
pensamento náo pensado, num porvir que ainda náo se atualizou, no horizonte
de urna transcendéncia para a alteridade e a diferenga, na transigáo para a sus-
tentabilidade e a justita. Daí se destacam os seguintes princípios epistemológi-
cos e pedagógicos para apreender a complexidade ambiental:
a) A externalidade do ambientalismo complexo náo é o fático, o real; náo
é o mundo "de fora" nem urna pura subjetividade e interioridade do ser.
220 ENRIQUE LEFF

O ambiente é a natureza externalizada, as identidades desterritorializadas;


o real negado e os saberes subjugados pela razáo totalitária, o lógos
unificador, a globalidade homogeneizante, a lei universalizarte, a eco-
logia generalizada.
b) A complexidade ambiental é um processo de hibridizagóes ónticas, on-
tológicas e epistemológicas; é a emergéncia de um pensamento com-
plexo que apreende um real em vias de complexificagáo. O ambiente é
objetividade e subjetividade, exterioridade e internalidade, falta em ser
e falta de saber, que náo se ajusta a um conhecimento objetivo, a um
método sistémico e a um saber totalitário.
c) Além de ser um objeto complexo, o ambiente está integrado por iden-
tidades múltiplas. Constitui uma aposta por saber e náo apenas por
conhecer. É um saber que constitui o ser, na articulagáo do real comple-
xo e do pensamento complexo, no entrecruzamento dos tempos e da
reconstituigáo das identidades.
d) A pedagogia da complexidade ambiental implica um re-conhecimento
do mundo a partir das leis limite da natureza (entropia) e da cultura (a
finitude da existéncia frente á morte; a proibigáo do incesto). Trata-se
de apreender o ambiente a partir do potencial ecológico da natureza e
dos sentidos culturais que mobilizam a construgáo social da história.
e) O pensamento complexo náo é apenas interdisciplinaridade, senáo diálo-
go de saberes que náo saldam suas diferengas numa racionalidade comu-
nicativa. Implica convivéncia com o outro, que náo é internalizável
(neutralizável) num mesmo indivíduo. É ser em e com o absolutamente
outro, que aparece como criatividade, alteridade e transcendéncia, que
náo é completude do ser, reintegragáo do ambiente, nem retotalizagáo
da história, senáo pulsáo de vida, fecundidade do ser no tempo.
f) Este processo de complexificagáo implica urna desconstrugáo do pen-
samento disciplinar, simplificador, unitário. Pressupóe um debate per-
manente frente a categorias e formas de pensamento que foram forja-
das em formas do ser e do conhecer moldadas por um pensamento
unidimensional, que reduziu a complexidade para ajustá-la a racionali-
dades totalitárias que nos remetem a uma vontade de unidade, homoge-
neidade e globalizagáo. Implica a desconstrugáo de certezas insustentá-
veis e a aventura na construgáo de novos sentidos do ser.
g) A complexidade ambiental constrói-se e se apreende num processo
dialógico, no intercambio de saberes, na hibridizagáo da ciéncia, da
tecnologia e dos saberes populares. É o reconhecimento da outridade e
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 221

de sentidos culturais diferenciados, náo apenas como urna ética, senáo


como urna ontologia do ser, plural e diverso.
h) O saber ambiental náo é um sentido comum fundado no reconhecimen-
to ideológico do consabido, mas sim da construgáo de sentidos coleti-
vos e de identidades compartidas, que constituem significagóes cultu-
rais diversas na perspectiva de pensar o que ainda náo é. A complexida-
de ambiental é a configuragáo de urna globalidade alternativa, como
um mosaico de diferengas, como confluéncia e convivéncia de mundos
de vida em permanente processo de hibridizagáo e diferenciagáo.
i) A pedagogia da complexidade ambiental é aprender um saber ser com
a outridade, que vai mais além do "conhece-te a ti mesmo", como a
arte da vida. O saber ambiental integra o conhecimento do limite e o
sentido da existéncia. É um saber chegar a serno sentido de saber que
o ser é num devir no qual existe a marca do já sido, sempre aberto ao
que ainda náo é. É incerteza vista como impossibilidade de conhecer o
sendo e a certeza de que o ser náo se contém no conhecimento prefixa-
do das certezas do sujeito da ciéncia, da norma, do modelo, do contro-
le. É um ser que se constitui na incompletude do conhecimento e na
pulsáo de saber.
i) A complexidade ambiental incorpora um processo de construgáo cole-
tiva do saber, no qual cada qual aprende a partir de seu ser particular.
Este ser, diverso por "natureza", ressignifica e recodifica o saber am-
biental para conferir-lhe seu selo pessoal, inscrever seu estilo cultural e
reconfigurar identidades coletivas. A pedagogia da complexidade am-
biental abre o encontro infinito de seres diversos dialogando a partir de
cuas identidades e diferengas.
k) Pensar a complexidade ambiental situa-se na dimensáo do "por pen-
sar", mas que apenas se torna pensável a partir do já pensado. É um
pensamento que se constrói através de estratégias de reapropriagáo do
mundo; é urna compreensáo que segue as trilhas do ser com a natureza,
de urna complexificagáo óntica e epistemológica, das hibridizagóes do
real, das articulagóes do conhecimento e do diálogo de saberes. A com-
plexidade ambiental inscreve-se no terreno do poder que atravessa todo
saber, do ser que sustenta todo saber e do saber que configura identida-
des diferenciadas.

A complexidade ambiental abre o caminho infinito no qual se inscrive o


ser num devir complexificante. Um ser sendo, pensando e atuando no mundo.
222 ENRIQUE LEFF

Notas

1. "As idéias, esta espécie de eternidade construída a partir do tempo, construíram o meio
a partir do qual tudo pode ser compreendido, isto é, organizado, e, como complemento, produ-
zido [...]. Essa dimensáo operativa da idéia nasce em conseqüéncia da irrupcáo da metafísica,
que provocou uma cisáo no mundo real, urna diferenga entre o contexto da verdade e as coisas.
Mas, por sua vez, no ámbito desse meio das idéias produz-se urna divisáo do próprio meio em
partes (classes, idéias), de tal modo que o universo da verdade acaba sendo organizado de
maneira compartimentada. Cada compartimento pode ser denominado um "tipo de ser"; e,
assim, podemos falar de "ser natural", "ser histórico" [...1. Mas a questáo é: Quem decide
sobre a divisáo do ser? [...]. Ela emerge do próprio ser? A resposta afirmativa [...] equivaleria
a pressupor que o espectro das ciéncias [...] que se ocupam da totalidade do mundo das coisas
individuais, foi dado pela própria natureza do ser. Mas obviamente náo foi assim, e sobre as
ciéncias que surgem dessa divisáo o que se pode dizer é que foram decididas "de maneira
humana" no transcurso da sucessáo que denominamos "história". [...]. Desse modo, por meio
da divisáo do ser em marcos do conhecimento, assegurados pelo próprio significado principal
do ser como ser ideal, o que está aberta é a possibilidade para o domínio controlado de cada
coisa. O que é cada coisa, e em geral uma coisa, já vem decidido pela ciéncia correspondente.
e náo a partir da coisa mesma [...]. Conhecimento passa a significar "dominacáo" [...]. Nossa
história é metafísica porque levamos adiante aquilo que pensou a metafísica: realizamos o
mundo das idéias ao configurarmos a realidade física de acordo com a "permanéncia" (iden-
tidade), e temos [...] unificado o mundo diverso, produzindo um todo, se bem que este tenha a
forma da producáo [...]. Na história da metafísica, o pensamento desencadeou-se operativa-
mente até realizar um todo (a sociedade única) no qual espírito, matemáticas e trabalho dáo-
se as máos neste complexo unificado, que podemos continuar chamando capitalismo. Náo
estamos em nosso ser, mas fora dele. Nesse sentido, o estranhamento conseguiu alcancar seu
grau máximo, porque o abrasamos em todos os domínios da vida" (Leyte, 1988: 20-39).
2. "A hermenéutica ambiental, seguindo a busca de Heidegger, "consiste precisamente
em revelar corno cada conceituacáo está articulada de modo metafísico, como por detrás de
cada sistema, categoria ou projeto encontra-se urna determinacáo metafísica que alcanca toda
a história real e condiciona todo possível dizer" (Leyte, 1988: 13).
3. "Ignoraremos obstinadamente esta mútua perterwa que prevalece no homem e no ser,
enquanto continuarmos representando tudo comente com base em ordenacóes e mediagóes,
com ou sem dialética. Desse modo, encontramos sempre conexóes que foram enlatadas, pre-
cisamente a partir do ser, precisamente a partir do homem, e que apresentam a mútua pertenca
de homem e ser como um entrelagamento [...]. Prestemos atengáo á chamada sob cujos influ-
xos encontra-se em nossa época náo só o homem, mas todo ente, natureza e história, em
relagáo com seu ser [...] em todas as partes nosso existir é provocado [...] a dedicar-se ao
planejamento e ao cálculo de tudo [...]. Resultaria isso apenas de um capricho do homem? Ou
o ente mesmo vem até nós de tal maneira que nos fala de sua capacidade de planejamento e
cálculo? E, nesse caso, o ser encontrar-se-ia provocado a deixar surgir o ente no horizonte da
capacidade de cálculo? [...]. Certamente, e náo apenas isto. Na mesma medida em que o ser, o
homem encontra-se [...] capacitado a colocar em lugar seguro o ente que se dirige até ele,
como a substáncia de seus planos e cálculos, e a estender de forma ilimitada tal disposicáo"
(Heidegger, 1957/1998: 77, 82-83).
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 223

4. No original em espanhol rector, literalmente traduzível também como reitor. (N.T.)


5. "0 ser no limite [...] um discurso que se chamou filosofia [...] sempre quis dizer o
limite. [...]. Ela o reconheceu, concebeu, situou, declinou de todos os modos possíveis [...]
para dispor melhor dele, transgrediu-o [...] E [...]. tratar-se-ia de trabalhar sobre o conceito de
limite e no limite do conceito [...]. Afirmaremos a partir desse momento que aquilo que resiste
aqui é o impensado, o reprimido, o rechagado da filosofia? [...] urna elaboragáo conceitual
deve introduzir al um novo jogo da oposigáo, da articulagáo da diferenga [...] a différance [...]
a `diferenga' entre o e e o a [...] sugere [...] que é preciso deixar-se ir aqui na diregáo de urna
ordem que resista á oposigáo, fundadora da filosofia, entre o sensível e o inteligível [...].
Interroga-se assim o limite que sempre nos constrangeu [...] a nós, os falantes de urna língua
e de um sistema de pensamento, a formar o sentido do ser em geral como presenga ou ausén-
cia, nas categorias do ser e da entidade" (Derrida, 1989: 17, 23, 34, 41, 45).
6. "0 desejo metafísico [...] deseja o que está mais além de tudo o que pode simplesmen-
te satisfazé-lo [...] relagáo cuja positividade provém do distanciamento, da separagáo, na me-
dida em que se nutre [...] da fome. Distanciamento que é radical apenas se o desejo náo for a
possibilidade de antecipar o desejável, se náo o pensa previamente, se vai até ele para a aven-
tura, quer dizer, rumo a urna alteridade absoluta, impossível de se antecipar, como se vai para
a morte. O desejo é absoluto, se o que deseja é mortal, e o desejado, invisível. A invisibilidade
náo indica urna auséncia de relagáo; implica relagóes com o que náo está dado, com aquilo do
qual náo se tem airada idéia. A visáo é uma adequagáo entre a idéia e a coisa: compreensáo que
engloba. A inadequagáo náo designa uma simples negag'áo ou urna obscuridade da idéia, e,
sim, fora da luz e da noite, fora do conhecimento que mede os seres, a desmesura do desejo. O
Desejo é desejo do absolutamente Outro" (Lévinas, 1977: 58).
7. "Náo é o predomínio dos motivos económicos na explicagáo da história que distingue
de maneira decisiva o marxismo da ciéncia burguesa, e sim o ponto de vista da totalidade. A
categoria de totalidade, o predomínio universal e determinante do todo sobre as partes consti-
tui a esséncia do método que Marx tomou de empréstimo a Hegel e transformou de maneira
original para fazer dele o fundamento de urna ciéncia completamente nova [...]. O predomínio
da categoria de totalidade constitui o suporte do principio revolucionário na ciéncia"(Lukács,
1923/1960: 47-48).
8. "0 poder da tradigáo orgánica ocidental — mais precisamente da dialética — [...]
repousa na construgáo da diferenga entre fenómenos naturais e sociais a partir do que está
implícito nos níveis abstratos — náo na [...] redugáo de sua rica concregáo articulada a "da-
dos" abstratos e logicamente manipuláveis [...]. A dialética [...] procura compreender o desen-
volvimento dos fenómenos a partir de seu nível de "homogeneidade" abstrata, latente na rica
diferenciagáo que marcará sua maturidade, ao passo que a teoria de sistemas procura reduzir
os fenómenos de sua particularidade altamente articulada ao nivel de abstragáo homogénea,
táo necessária á simbolizagáo matemática. A dialética [...] constitui uma lógica da evolugáo
que vai da abstragáo á diferenciagáo; a teoria dos sistemas constitui urna lógica de involugáo
que vai da diferenciagáo á abstragáo" (Bookchin, 1990: 133).
9. Kosik viu "a reunificagáo do real por meio das analogias estruturais entre os mais
diversos domínios da realidade"; até o nivel em que "todas as esferas da realidade objetiva
constituem sistemas ou agregados de elementos que exercem, uns sobre os outros, uma influ-
éncia recíproca [...] apenas uma concepgáo dialética dos aspectos ontológicos e epistemológi-
cos de urna estrutura e de um sistema pode oferecer uma solugáo fértil e evitar os extremos do
224 ENRIQUE LEFF

formalismo matemático e de uma ontología metafísica [...]. As analogias estruturais entre as


diferentes formas das relagóes humanas (linguagem, economia, parentesco, etc.) podem levar
a uma compreensáo mais profunda e a uma explicagáo da realidade social apenas se respeita-
rem tanto as analogias estruturais quanto a especificidade dos fenómenos considerados [...1.
No pensamento dialético, a realidade é concebida e representada pela totalidade, que náo é
apenas um conjunto de relagóes, fatos e processos, mas inclui também sua criagáo, sua génese
e sua estrutura" (Kosik, 1970: 31, 34).
10. "Podemos falar de uma complexidade e de uma fragmentagáo crescentes das socieda-
des industriais avangadas [...] no sentido de que estáo constituídas em torno de uma assimetria
fundamental [...] entre uma proliferagáo de diferengas — um excedente de sentido do 'social'
— e as dificuldades que encontra qualquer discurso que trate de fixar essas diferengas como
momentos de uma estrutura articuladora estável [...]. Os objetos articulam-se [...] porque a
presenta de alguns nos outros impede a suturagáo da identidade de qualquer um deles [...1. A
relatividade dos valores constitui a melhor prova de que dependem uns dos outros na sincronia
de um sistema que está sendo sempre ameagado, que está sendo sempre restaurado [...] todos
os valores sáo valores de oposigáo e sáo definidos somente pela sua diferenga" (Laclau e
Mouffe, 1985: 96, 104, 106).
11. "0 infinito é próprio de um ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é
absolutamente outro" (Lévinas, 1977: 73).
12. "0 éxito da termodinámica do equilíbrio retardou o descobrimento das novas propri-
edades da matéria — como a auto-organizagáo das estruturas dissipativas — associadas ao
náo-equilíbrio. Analogamente, o éxito da teoria clássica das trajetórias retardou a extensáo da
dinámica ao nível estatístico que permite incorporar a irreversibilidade na descrigáo funda-
mental da natureza" (Prigogine, 1997: 98).
13. "Pode-se tratar de filosofia (a metafísica, inclusive a onto-teologia) sem se deixar
impor, com esta pretensáo de unidade e unicidade, a totalidade inatacável e imperial de urna
ordem? [...]. Poderemos, pois, denominar diferenqa essa discórdia "ativa", em movimento, de
forgas diferentes e de diferenga de forgas que opóe Nietzsche a todo o sistema da gramática
metafísica em todas as partes onde governa a cultura, a filosofia e a ciéncia [...]. A diferancia
[...] náo é mais estática do que genética, náo é mais estrutural do que histórica [...] é o que faz
com que o movimento da significagáo náo seja possível mais do que se cada elemento chama-
do "presente", que aparece na cena da presenga, se relaciona com outra coisa, conservando em
si a marca do elemento passado e deixando-se já fundir pela marca de sua relagáo com o
elemento futuro [...] constituindo o que se chama presente por esta mesma relagáo com o que
ele náo é [...] quer dizer, nem sequer um passado ou um futuro, mas presentes modificados. É
preciso que o separe um intervalo do que náo é para que seja ele mesmo [...] é o que podemos
chamar espagamento, tornar-se-espato do tempo ou tornar-se-tempo do espato (temporaliza-
gáo) [...] síntese "originária" e irredutivelmente náo-simples [...] náo-originária de marcas, de
rastros, de retengóes e de pretensóes [...1" (Derrida, 1989: 23, 33, 48).
14. "A palavra feixe parece mais adequada para explicitar que o agrupamento proposto
tem a estrutura de uma intricagáo, de um tecido, de um cruzamento que deixa escapar de novo
os diferentes fios e as distintas linhas de sentido — ou de forga —, como se estivesse pronto
para atar outras" (Derrida, 1989: 40).
15."Onde passou o corpo do texto guando a margem já náo é uma virgindade secundária,
e sim urna reserva inesgotável, a atividade estereográfica de um ouvido completamente distin-
to? Desborda e estilhaga [...] desloca o corpo mesmo dos enunciados em sua pretensáo á
EPISTEMOLOGIA AMBIENTAL 225

rigidez unívoca ou á polissemia regulada [...] faz nascer da lesáo sem sutura urna partitura náo
escutada" (Derrida, 1989: 30-32).
16. A metafísica levou á construgáo de "um mundo cuja melhor compreensáo consiste
em entendé-lo como processo de produgáo [...] isto é, desligado de todo controle e ordem
exterior, porque ele mesmo é esta ordem suprema. O aumento que caracteriza este movimento
da vontade se realiza como aumento constante da escala de produgáo, com a finalidade única
de continuar produzindo para náo desaparecer [...] deste reino da produgáo, nada fica fora, e
todas as formas subjetivas [...] sáo apenas figuras derivadas que resultam necessárias para
[seu] funcionamento, como objetos. Naturalmente, para esta produgáo torna-se constitutiva
urna destruigáo" (Leyte, 1988: 36).
17. "0 desejo de produzir com pouco gasto é pobremente humano. Da mesma forma, na
humanidade, o principio estreito do capitalista, do administrador de urna sociedade ou do
individuo isolado que revende com a esperanga de engolir no final os beneficios acumulados.
Se levarmos em consideragáo a vida humana em sua globalidade, veremos que esta aspira á
prodigalidade [...] até o limite em que a angústia já nao é tolerável. O resto é ferro-velho de
moralista" (Bataille, 1957/1997: 64).
18. "Se nas proibigóes essenciais vemos a recusa que opóe o ser á natureza entendida
como dissipagáo de energia viva e como orgia de aniquilamento, já náo podemos estabelecer
diferengas entre a morte e a sexualidade. A sexualidade e a morte sáo apenas momentos agu-
dos de urna festa que a natureza celebra com a inesgotável multidáo dos seres; e aqui sexuali-
dade e morte tem o sentido do ilimitado desperdicio que promove a natureza, num sentido
contrário ao desejo de durar próprio de cada ser [...]. As proibigóes nas quais tomou forma
uma reagáo única com duas finalidades distintas [...] formam um complexo indivisível. Como
se o homem houvesse captado inconscientemente, e de urna só vez, o que a natureza tem de
impossível (o que nos é dado) guando exige seres os quais induz a participar desta fúria
destruidora que a anima e que nada poderá jamais saciar [...]. A possibilidade humana depen-
des do momento em que, acometida de uma vertigem insuperável, um ser se esforgou para
dizer nao" (Bataille, 1957/1997: 65-66).
19."0 efeito mais constante do impulso a que dou o nome de transgressáo é o de organi-
zar aquilo que é essencialmente desordem. Pelo fato de que comporta o rebaixamento no
sentido de um mundo organizado, a transgressáo é o princípio de urna desordem organizada"
(Bataille, 1957/1997: 125).
20. "0 que constitui a própria originalidade da era planetária no século XX, a constitui-
gáo de um espato-tempo planetário complexo em que as sociedades tomadas num mesmo
tempo vivem tempos distintos: tempo arcaico, tempo rural, tempo industrial, tempo pós-in-
dustrial, etc. Tudo isso deve levar-nos a romper com a idéia segundo a qual, daqui para a
frente, devemos alinhar todas as sociedades no tempo mais rápido, o tempo cronometrado, o
tempo ocidental. Isto deve levar-nos, antes, a viver a complementaridade dos distintos tem-
pos, a conter a invasáo do tempo cronometrado, a desacelerar o tempo ocidental" (Morin e
Kern, 1993: 185).
21. Heidegger viu essa resisténcia do ser na "quietude do acontecer que náo é auséncia da
história, e sim urna forma básica de sua presenta. O que conhecemos geralmente como passa-
do e o que nos representamos em primeira instáncia enquanto tal, é quase sempre apenas a
`atualidade' de um momento passado [...] o que pertence sempre á história mas que náo é
propriamente história. O mero passado náo esgota o que foi. Este está presente todavia, e sua
forma de ser é urna quietude peculiar do acontecer, cuja forma se determina a partir daquilo
226 ENRIQUE LEFF

que acontece. A quietude é apenas um movimento que se detém em si, e é com freqüéncia
mais inquietante que este" (Heidegger, 1962/1973: 44-45).
22. "Comego e fim, como pontos do tempo universal, remetem o eu á sua terceira pessoa
tal como designa o sobrevivente. A interioridade está essencialmente ligada á primeira pessoa
do eu. A separagáo só é radical se cada ser tem seu tempo [...] se cada tempo náo é absorvido
pelo tempo universal [...]. O real náo deve ser determinado somente por sua objetividade
histórica, mas também a partir do segredo que interrompe a continuidade do tempo histórico
a partir de intengóes interiores. O pluralismo da sociedade só se torna possível a partir deste
segredo" (Lévinas, 1977: 81).
23. "0 verdadeiro aprender é um apreender muito notável, no qual aquele que apreende,
apreende apenas aquilo que, no fundo, já tem. O ensinar corresponde a este aprender. Ensinar
é um doar, um oferecer, mas no ensinar náo se oferece o aprendível; ao aluno é oferecida táo-
somente a indicagáo de tomar para si o que ele já tem. Quando o aluno adota unicamente algo
oferecido, ele náo aprende. Chega a aprender guando experimenta o que apreende como aqui-
lo que ele mesmo já tem. Um verdadeiro aprender ocorre somente afi onde o apreender aquilo
que já se tem constitui um dar-se a si mesmo e se experimenta como tal. Dessa forma, ensinar
náo é outra coisa senáo deixar aprender aos outros, quer dizer, induzir-se mutuamente a apren-
der" (Heidegger, 1962/ 1973: 69).
24. "A idéia do infinito náo parte pois de Mim, nem de uma necessidade no Eu que mede
exatamente seus vazios. Nela, o movimento parte do pensado e náo do pensador. É o único
conhecimento que apresenta esta inversáo, conhecimento sem a priori. A idéia do Infinito
revela-se, no sentido forte do termo [...]. Mas este conhecimento excepcional náo é em fungáo
desse objetivo. O infinito náo é "objeto" de um conhecimento — o que o reduziria á medida
do olhar que contempla — e sim o desejável, o que suscita o Desejo, quer dizer, o que é
abordável por um pensamento que a todo momento pensa mais do que pensa. O infinito náo é
portanto um objeto imenso, que ultrapassa os horizontes do olhar. O Desejo mede o infinito,
porque é medida tanto quanto é impossibilidade mesma de medida. A desmesura medida pelo
Desejo do rosto" (Lévinas, 1977: 85).
€-EDITORP1 227

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