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Curso Integral - Introducao A Jacques La
Curso Integral - Introducao A Jacques La
3
CANGUILHEM, O normal e o patológico, idem, p. 42
4
LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 247.
do homem é a sua relação com o homem” 5. O que justifica a inclusão das reflexões
sobre a clínica dos fatos mentais em um campo amplo de interseções com outras áreas
das ditas ciências humanas. Um pouco como se conceitos clínicos fossem construídos
não apenas a partir da escuta dos doentes, mas também através da absorção de
elaborações que, muitas vezes, são diretamente exteriores a preocupações clínicas, pois
vindas da tematização demorada de problemas ligados ao campo da reflexão sobre a
cultura, a teoria social e, por que não, a filosofia. Gostaria de mostrar como a
experiência intelectual de Jacques Lacan nos demonstra claramente algo desta natureza.
O que nos leva a dizer que não há clínica cujos conceitos não sejam forjados através do
impacto da experiência sócio-histórica de um época no interior da nossa definição de
normalidade e patologia.
Estrutura do curso
No meu ponto de vista, só é possível dar cabo da maneira com que Lacan
elabora sua metapsicologia e pensa sua experiência clínica através de um movimento
duplo. Trata-se, primeiro de seguir a trajetória da formação dos conceitos lacanianos
centrais. Trajetória complexa, marcada por múltiplos abandonos de rota e retomadas
posteriores. Mas trata-se de seguir tal trajetória de formação levando em conta a
maneira com que esta elaboração conceitual insere-se no interior do debate francês de
sua época. Isto significa reconstruir os debates internos e os processos de importação
entre Lacan e os cenários intelectuais dos quais ele participou. Estratégia que acabará
mostrando, contrariamente ao que ainda tende-se a aceitar nos meios lacanianos, a
relativa autonomia do pensamento lacaniano em relação às elaborações próprias à
psicanálise freudiana.
Como vocês perceberam, eu falei aqui de cenários intelectuais no plural. Este é
um ponto relevante quando o assunto é a trajetória intelectual de Jacques Lacan. Sua
produção estende-se por cinqüenta anos, de 1932 até 1980. Nestes cinqüenta anos, a
França viu, primeiramente, a consolidação de uma fenomenologia receptiva às
articulações entre Heidegger e um certo Hegel muito particular, processo capitaneado
por Alexandre Kojève e que, de uma certa forma chegou até Merleau-Ponty e Jean Paul
Sartre. Ele viu, a partir dos anos 50, o advento do estruturalismo com a antropologia de
Lévi-Strauss, a recuperação de Saussure através da lingüística de Jakobson, o marxismo
de Althusser e a arqueologia filosófica do primeiro Foucault. Por fim, a partir do final
dos anos sessenta o cenário intelectual francês abriu-se para aquilo que convencionamos
chamar atualmente de ‘pós-estruturalismo’ e cujos nomes mais relevantes são Jacques
Derrida, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard e o segundo Foucault. Pensadores
absolutamente singulares entre si mas que teriam em comum uma certa recuperação de
temas nietzscheanos e heideggerianos de crítica à modernidade com suas categorias
filosóficas e seus critérios de verdade.
A peculiaridade de Lacan vem do fato dele ter sido personagem importante dos
três cenários intelectuais. Isto fez com que certos comentadores falassem, por exemplo,
de um Lacan I, de um Lacan II e de um Lacan III quase como se eles fossem pensadores
independentes. Como se Lacan tivesse começado como hegeliano e fenomenólogo, após
tivesse se convertido em estruturalista para finalmente se encontrar em um certo elogio
da multiplicidade irreflexiva. Tal leitura parte do pressuposto de que compreender
5
LACAN, Jacques; Au-delá du ‘principe de réalité’, pag. 88. Esta perspectiva intersubjetiva será
complexificada quando Lacan introduzir a noção de Outro simbólico, conceito distinto do outro
imaginário. Ver, principalmente, o texto: Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano.
Lacan só seria possível através da identificação de uma série de cortes epistemológicos
no interior de sua obra.
A meu ver, trata-se de um erro maior que há muito vem bloqueando um
desenvolvimento mais frutífero da leitura de Lacan. Na verdade, é inegável a existência
de modificações profundas de cartografia conceitual na trajetória lacaniana. O que nos
coloca a questão de saber como ler a obra de alguém cuja trajetória é marcada por uma
produção plástica de conceitos na qual alguns conceitos chegam mesmo a ser
rapidamente abandonados (como, por exemplo, o conceito de Coisa – das Ding).
Talvez, só seja possível ler Lacan se soubermos escutar o ritmo das formações de seus
conceitos, o que nos exige estar atentos à pulsação invariante de suas questões centrais.
Quer dizer, para além das rupturas, faz-se necessário saber compreender o sentido dos
múltiplos retornos de Lacan a motivos que pareciam ultrapassados6.
Ë bem provável que o caso Lacan seja um dos mais indicados para nos explicar
o sentido da noção de ‘ruptura’ no interior de uma experiência intelectual determinada.
Pois a trajetória lacaniana demonstra como uma ruptura deve sempre ser compreendida
através de uma perspectiva dupla na qual o ato de ‘recomeço’ só é legível à luz de uma
certa ‘permanência’. Não há rupturas absolutas, já que uma ruptura é sempre sintoma de
uma situação anterior. No caso lacaniano, tal perspectiva de análise tem o mérito de
mostrar como a peculiaridade de seu pensamento vem da sua capacidade em articular
temáticas e quadro conceituais da fenomenologia, do estruturalismo e do pós-
estruturalismo. Isto explica, por exemplo, como Lacan foi capaz de articular temáticas
aparentemente extemporâneas como ser do sujeito e estrutura, resistência do objeto e
primado de uma Lei simbólica com aspirações transcendentais, experiência do real e
irredutibilidade do fantasma fundamental.
É a fim de compreender a peculiaridade desta costura que proponho um curso
marcado por uma dinâmica historiográfica. Ele será dividido em cinco módulos que
ocuparão, em média, três seções. Cada módulo será marcado pela leitura de um texto
lacaniano e pelo comentário de um conjunto limitado de textos que visam fornecer o
quadro do debate filosófico que serviram a Lacan de referência. Os textos escolhidos
não são necessariamente os mais significativos de Lacan mas, a meu ver, eles, além de
serem extremamente relevantes, oferecem dificuldades menores de leitura se o
compararmos a outros.
É a fim de compreender a peculiaridade desta costura que proponho um curso
marcado por uma dinâmica historiográfica. Ele será dividido em quatro módulos. Cada
módulo será marcado pela leitura de um texto lacaniano e pelo comentário de um
conjunto limitado de textos que visam fornecer o quadro do debate intelectual que
serviu a Lacan de referência. Os textos escolhidos não são necessariamente os mais
significativos de Lacan mas, a meu ver, eles, além de serem extremamente relevantes,
oferecem dificuldades menores de leitura se o compararmos a outros.
Nosso primeiro módulo será dedicado à leitura da tese de doutorado Da psicose
paranóica em sua relação com a personalidade. Trata-se de um texto injustamente
muito pouco lido inclusive por aqueles que se interessam por Lacan. No entanto, ele
estabelece um campo claro de problemas e referências que nortearão o desenvolvimento
da clínica de Jacques Lacan. Orientada pelo psiquiatra Henri Claude, chefe de clínica do
Hospital parisiense de Saint-Anne, a tese não deixava de trazer algumas marcas de seu
orientador: era aberta a uma tentativa de articulação entre psiquiatria e psicanálise e
6
Il y en a plusieurs exemples de ces retours. Ainsi, par exemple, la figure de la parole pleine revient dans
la séance du 10/03/71. De la même façon, la notion de 'personnalité' est reconfigurée en 1974, à l'occasion
d'une conférence à Rome (Le discours analytique)
insistia na autonomia da causalidade dos distúrbios psíquicos em relação aos fenômenos
orgânicos, isto ao menos no caso da análise da psicose paranóica.
A tese de Lacan procurava defender uma perspectiva à época chamada de
“psicogênica” e que consistia em afirmar que: “na ausência de qualquer déficit
detectável pelas provas de capacidade (de memória, de motricidade, de percepção, de
orientação e de discurso), e na ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável,
existem distúrbios mentais que relacionados, segundo as doutrinas, à ‘afetividade’, ao
‘juízo’, à ‘conduta’, são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica” 7. Pois:
“um delírio não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto
doloroso ou um distúrbio motor. Ele traduz um distúrbio eletivo das condutas as mais
elevadas do doente, suas atitudes mentais, seus julgamentos, seu comportamento
social”8. Ou seja, tratava-se de uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um
certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de natureza
orgânica ou funcional. Quadro no qual encontraríamos, de maneira privilegiada, o que a
psicanálise ainda hoje compreende por psicose paranóica.
A fim de analisar o que Lacan compreendia à época por “paranóia” a tese de
doutorado mobiliza conceitos maiores que serão desenvolvidos no decorrer do trajeto
intelectual lacaniano: gênese da personalidade a partir de processos de identificação,
reconsideração das relações entre normal e patológico, sujeito como centro global de
condutas, paralelismo entre mental e social. Veremos como este quadro de reflexão
fornecerá a base para os desdobramentos futuros do pensamento lacaniano.
A fim de esclarecer os debates que perpassam a tese, eu pediria ainda a leitura da
Introdução e do primeiro capítulo de Crítica dos fundamentos da psicologia, de Georges
Politzer, do texto “Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e na
homossexualidade”, de Freud e um capítulo da “Psicopatologia geral”, de Karl Jasper,
intitulado “As conexões compreensíveis da vida psíquica”.
O segundo módulo será dedicado à leitura de O estádio do espelho como
formador da função do eu. Trata-se de um texto fundador da experiência intelectual
lacaniana, proferido em 1936, mas cuja versão escrita que se encontra nos Escritos é de
1949. Há três temáticas maiores que indicam importância deste texto. Da mesma forma,
é importante a leitura das sessões do Seminário I copiladas sob o título de “A tópica do
imaginário”.
Primeiro, Lacan desenvolve uma teoria dos processos de constituição do Eu,
resultante de importações das reflexões da etologia animal sobre o papel formador da
imagem, das experiências psicológicas de Henri Wallon e da leitura kojèveana da
dialética do Senhor e do Escravo. Tal teoria fornece subsídios à crítica ao Eu como
unidade sintética de apercepções ou como sede do sistema percepção-consciência. Esta
crítica não visa apenas a concepção freudiana do Eu (que já havia sido objeto de
discussão por Lacan na sua tese de doutorado, de 1932), mas fundamentalmente : “toda
filosofia diretamente oriunda do cogito”9. Ou Daí a necessidade de acompanharmos a
leitura deste texto com o comentário de outro: A guisa de introdução, de Alexandre
Kojève. Ele servirá também para compreendermos a proximidade entre as concepções
de desejo em Lacan e um certo Hegel.
7
LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, pag. 1. Décadas mais
tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude, como podemos ver nas primeiras
páginas do Seminário III. Mas, neste caso, não se tratava de a noção de uma causalidade não redutível a
processos fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão,
tal como desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da
perspectiva psicogênica à época.
8
LACAN, idem, p. 105
9
LACAN, Escritos, p. 96
Segundo, Lacan desenvolve uma reflexão fundamental sobre a relação entre
experiência de si e imagem do corpo próprio. É através da constituição da imagem do
corpo próprio que o sujeito desenvolve uma instância de auto-referência (o eu). Daí
porque Lacan poderá afirmar que: “a imagem especular parece ser o solo do mundo
visível”10. Neste ponto, faz-se necessário mostrar o debate que Lacan e Henri Wallon
desenvolvem a respeito do esquema mental do corpo próprio. Por isto, sugiro também a
leitura do capítulo “Consciência e individuação do corpo próprio” do As origens do
caráter na criança.
Por fim, tais reflexões sobre o processo de constituição do eu é dedobrada em
suas conseqüências epistêmicas. Lacan deriva da gênese do eu uma teoria do
conhecimento onde a função da imagem, a submissão da percepção às projeções
narcísicas, assim como a compreensão do objeto como pólo de projeções narcísicas são
elementos fundamentais. Isto vai nos permitir compreender os conceitos lacanianos de
Imaginário e de estrutura paranóica do conhecimento.
No terceiro módulo, leremos um dos textos clássicos de Lacan, A instância da
letra ou a razão após Freud, de 1957, assim como as sessões 13,14 e 15 de Seminário
II. Este texto marca aquilo que poderíamos chamar de ‘guinada estruturalista’ de Lacan
e nele se anuncia algumas operações centrais do pensamento lacaniano, como a
definição de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a releitura do
cogito cartesiano, a teoria da linguagem como conjunto fechado de significantes e a
noção de cura como abertura à estrutura simbólica de determinação do desejo do sujeito
através da dissolução das fixações imaginárias. A compreensão deste texto pede o
comentário de alguns escritos-chaves do estruturalismo francês. Eu selecionei dois
textos de Lévi-Strauss ; A eficácia simbólica e Introdução à obra de Marcel Mauss,
alguns trechos do Curso de lingüística geral, de Saussure, dedicados ao problema dos
processos de determinação do valor do signo lingüístico e o texto clássico de Jakobson
“Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”.
Este período da obra lacaniana é o mais conhecido e ele é o responsável pela
imagem, até hoje aceita, de Lacan como responsável pela construção de uma psicanálise
estruturalista. Pretendo mostrar como esta imagem é absolutamente parcial e que, desde
o início, o estruturalismo lacaniano foi ‘impossível’ devido às determinações
contraditórias que ele suportava. Na verdade, pretendo mostrar como Lacan nos
forneceu algumas das críticas mais perspicazes do estruturalismo. Este ponto, Lacan
como crítico do estruturalismo, será o eixo do quarto módulo. Um bom exemplo de
interpretação clínica construída a partir de chave tipicamente estruturalista pode ser
encontrada no texto “O sonho do Licorne”, presente no livro “Psicanalisar” do então
discípulo de Serge Leclaire.
No entanto, é certo que a partir deste momento, Lacan tem as condições para
sintetizar os dois operadores centrais que irão estruturar os processos de simbolização
do desejo no interior da clínica, a saber, o Nome-do-Pai e o Falo. Boa parte deste
módulo será dedicado à explicação do sentido e natureza destes dois operadores, assim
como as questões por eles suscitadas. Para tanto, leremos a intepretação feita por Lacan
do caso freudiano do pequeno Hanns, tal como aparece no seminário IV, As relações de
objeto. Para tanto, uma leitura do texto freudiano, Análise da fobia de um garoto de
cinco anos, se faz necessária.
10
idem, p. 98
Curso Jacques Lacan
Aula 2
Partir da personalidade
Na aula de hoje, começaremos nosso primeiro módulo, este dedicado à leitura da tese de
douturado de Jacques Lacan, defendida em 1932. Gostaria de tratar de algumas questões
centrais capazes de direcionar a leitura da primeira parte do livro, esta intitulada:
“Posição teórica e dogmática do problema”, assim como a Introdução. Da primeira
parte, peço especial atenção para o capítulo “Crítica da personalidade psicológica”.
Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade é o nome de sua
tese de doutorado em medicina, o primeiro livro publicado por Lacan 11. Já seu título
deixa evidente a tentativa de estabelecer uma relação entre análise de estruturas
patológicas (psicose paranóica) e processos gerais de constituição da subjetividade
(personalidade) que coloca a tese, ao mesmo tempo, como uma reflexão clínica e como
indagação sobre fatos que devem ser catalogados no interior de uma teoria geral do
sujeito.
Orientada pelo psiquiatra Henri Claude, chefe de clínica do Hospital parisiense
de Saint-Anne, a tese não deixava de trazer algumas marcas de seu orientador: era
aberta a uma tentativa de articulação entre psiquiatria e psicanálise e insistia na
autonomia da causalidade dos distúrbios psíquicos em relação aos fenômenos orgânicos,
isto ao menos no caso da análise da psicose paranóica. De fato, a dita “Escola de
Claude”, baseada no Hospital de Saint-Anne, foi responsável pelos últimos grandes
trabalhos da escola francesa de psiquiatria. Henri Claude era uma das figuras mais
influentes do meio psiquiátrico de então e havia trabalhado pela introdução de
psicanalistas em serviços de psiquiatria, assim como tentara constituir um quadro
nosográfico híbrido, capaz de reconhecer tanto estruturas causais psíquicas quanto
orgânicas na determinação das doenças mentais. Algo de seu hibridismo continuará nas
concepções “organo-dinamistas” de Henri Ey, outro de seus alunos que influenciará de
maneira decisiva o debate sobre a clínica das doenças mentais na França.
A tese de Lacan procurava defender uma perspectiva à época chamada de
“psicogênica” e que consistia em afirmar que: “na ausência de qualquer déficit
detectável pelas provas de capacidade (de memória, de motricidade, de percepção, de
orientação e de discurso), e na ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável,
existem distúrbios mentais que relacionados, segundo as doutrinas, à ‘afetividade’, ao
‘juízo’, à ‘conduta’, são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica” 12. Pois:
“um delírio não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto
doloroso ou um distúrbio motor. Ele traduz um distúrbio eletivo das condutas as mais
elevadas do doente, suas atitudes mentais, seus julgamentos, seu comportamento
11
Para uma análise exaustiva da tese de doutorado de Lacan, ver o já clássico Richard Simanke,
Metapsicologia lacaniana (São Paulo: Discurso Editorial, 2002) e Bertrand Olgivie, Lacan: a formação
do conceito de sujeito (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988)
12
LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, pag. 1. Décadas mais
tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude, como podemos ver nas primeiras
páginas do Seminário III. Mas, neste caso, não se tratava de a noção de uma causalidade não redutível a
processos fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão,
tal como desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da
perspectiva psicogênica à época.
social”13. Ou seja, tratava-se de uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um
certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de natureza
orgânica ou funcional. Quadro no qual encontraríamos, de maneira privilegiada, o que a
psicanálise ainda hoje compreende por psicose paranóica. De fato, Lacan se baseia em
uma distinção tacitamente aceita à época entre psicose e demência, onde a segunda
estaria necessariamente associada a uma lesão orgânica, já que ela seria uma doença
mental adquirida, de origem exógena pois exterior ao psiquismo (sendo que a aquisição
de uma doença mental poderia se dar por fatores toxi-infecciosos ou por lesões
cerebrais), enquanto a primeira seria a manifestação de distúrbios da síntese psíquica
resultante de doenças mentais congênitas, de origem endógena pois interior ao
psiquismo (não porque são predisposições constitucionais, mas porque indicam sistemas
de reação a situações sociais). Síntese esta que Lacan não temia em chamar de
personalidade. Daí porque, Lacan definirá: “É psicogenético um sintoma – físico ou
mental – cujas causas se exprimem em função dos mecanismos complexos da
personalidade, cuja manifestação os reflete e cujo tratamento pode deles depender”14.
Baseando-se em uma definição clássica, Lacan dirá que a personalidade é uma
categoria construída para dar conta das operações de síntese de nossa experiência
interior, da intencionalidade presente em nossas ações e da responsabilidade resultante
da possibilidade de determinar constâncias para além das variações sentimentais e
modificações de situação. Unidade sintética, sede da imputabilidade e categoria que
expõe a natureza voluntária da ação: eis as três características fundamentais deste
conceito de personalidade.
Por outro lado, no edifício clínico psicanalítico lacaniano, a paranóia é
concebida como uma das três categorias nosográficas próprias à estrutura psicótica (as
outras duas são a esquizofrenia e a melancolia ou psicose maníaco-depressiva).
Estruturas estas cujo sintoma definidor é, principalmente, a produção sistemática de
delírios e alucinações. Atualmente, em manuais diagnósticos de transtornos mentais
como o DSM-IV, a paranóia aparece como um subtipo da esquizofrenia. Fala-se então
em esquizofrenia do tipo paranóide. No entanto, tanto em tais manuais quanto na
literatura psicanalítica, temos um quadro de identificação relativamente simétrico que
vê, na paranóia, um comportamento psicótico marcado pela produção sistemática de
interpretações delirantes (ligadas normalmente a temáticas de perseguição, ciúme,
grandeza e erotomania) e por uma certa ausência de deterioração intelectual (o que
explica o uso relativamente ordenado da linguagem e a consistência da conduta).
Lacan baseava sua análise da paranóia em uma noção relativamente comum à
época que atribuía a gênese da doença a um problema evolutivo da personalidade.
Kraepelin e Krafft-Ebbing, por exemplo, insistiam no fato dos delírios paranóicos
surgirem sem hiato em relação à personalidade anterior, como se “a economia do
patológico parecesse calcada sobre a estrutura normal”15.
Mas caso de Lacan, isto lhe permitia insistir que apenas a compreensão do
processo de formação da personalidade poderia fornecer a inteligibilidade da psicose
paranóica. Uma personalidade que não poderia ser analisada tal como analisamos um
objeto físico que decompomos em várias propriedades separadas. Daí porque ela não
era definida como centro funcional que poderia ser analiticamente decomposto em
faculdades (como sensação, imaginação, entendimento etc.) e funções intencionais
(crenças, desejos, sentimentos, memória etc.) isoladas.
13
LACAN, idem, p. 105
14
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 45
15
Idem, p. 56
A personalidade a que Lacan se referia seria, ao contrário, uma totalidade
indivisível cujas funções e faculdades estariam organicamente relacionadas, até porque
cada ato do indivíduo, cada percepção de objeto atualizaria uma estrutura global de
conduta e de inteligibilidade. Por isto não seria possível apreender o sentido da mais
simples reação ou reflexo sem reportá-lo à totalidade representada pela personalidade
individual. Esta temática do comportamento como uma totalidade funcional,
desenvolvida à época graças principalmente à psicologia da Gestalt, será importante
para Lacan. Ela lhe permitirá lembrar como a personalidade nos coloca diante de um
sistema onde, digamos, o todo não é o resultado da somatória das partes, já que o
sentido de uma função ou faculdade é sempre resultante das interações com o conjunto
do sistema16. Desta forma, a personalidade, ao permitir uma “síntese psíquica”,
forneceria o verdadeiro solo para a compreensão do sentido da conduta e da intenção.
Neste sentido, não é por outra razão que a tese começa com uma citação bastante
clara de Spinoza: “Um afeto qualquer de um indivíduo discrepa do afeto de um outro
tanto quanto a essência de um difere da essência do outro” 17. Spinoza põe tal afirmação
a fim de lembrar que todos os afetos estão relacionados ao desejo (cupiditas) e que o
desejo de um indivíduo (individui) difere do desejo de um outro, tanto quanto a essência
de um difere do outro. Ou seja, só é possível compreender o que está em jogo em um
afeto através da introdução de um conceito que visa fornecer uma perspectiva global de
inteligibilidade da conduta, um conceito que teria o peso de determinação essencial.
Este conceito é o desejo, pensado, como já vemos desde o início, em chave francamente
filosófica.
Esta noção de personalidade está na raiz da recusa lacaniana em dissociar o
diagnóstico das patologias mentais em síndromes separáveis, assim como algo desta
noção será responsável pela sua tendência em sempre trabalhar com “grandes
estruturas” como psicose, neurose e perversão. Pois tais estruturas conseguiriam
articular uma transformação global da personalidade, das relações com o meio
ambiente e da concepção de si mesmo, não se contentando com a descrição de
modificações pontuais de conduta.
Lacan em momento algum ignora o que ele mesmo chama de “bases biológicas
dos fenômenos ditos de personalidade”18 mas ele insiste que o regime de causalidade
de tais fenômenos só pode ser definido por “relações de compreensão”. Com isto, ele se
apoiava em uma distinção maior para a psiquiatria de inspiração fenomenológica da
época, a saber, a distinção entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen).
A distinção, que podemos encontrar na maneira com que Dilthey procura
distinguir o regime de causalidade em operação nas ciências da natureza
(Naturwissenschaft) e nas ciências do espírito (Geistwissenschaft), havia sido
introduzida em psiquiatria por Karl Jasper, isto a fim de distinguir dois regimes de
causalidade dos fenômenos psíquicos. Jasper lembrava que perseguimos na
psicopatologia a identificação de conexões entre fenômenos. No entanto, há conexões
especificas que nos demonstram como um evento psíquico é produzido por outro evento
psíquico. Nestes casos: “O psíquico é ´resultado´ do psíquico de maneira que é para nós
compreensível”19, ou seja, há uma dimensão de reação psicológica que, para ser
apreendida, não exige nada mais do que a determinação de conexões entre estados
16
Como dirá Georges Canguilhem em O normal e o patológico, dez anos mais tarde: “Quando
classificamos como patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo
que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento
individual” (p. 65).
17
SPINOZA, Ética, Livro III, prop. LVII
18
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 14
19
JASPER, Karl; Psicopatologia geral, p. 363
psíquicos. Esta compreensibilidade é sinal de uma evidência provada devido à
experiência em relação às personalidades humanas. No entanto, tal evidência, para se
mostrar real, deve basear-se em pontos de apoio tangíveis, como os conteúdos verbais,
as criações mentais, atos, movimentos expressivos, etc. É ainda passível de
compreensão o desenvolvimento da personalidade que tem por origem somente as
disposições individuais que evoluem, de maneira coerente, durante as épocas da vida.
Esta dimensão da conexão compreensiva não pode ser simplesmente redutível
aos fenômenos que são apreendidos através do desvelamento de conexões causais, ou
seja, de relações estritas de causa e efeito facilmente encontráveis no mundo físico.
Jasper utilizava este modo de conexão causal para dar conta da influência, nos estados
mentais, de processos orgânicos diversos ocasionados por lesões, intoxicações ou
infecções que alteravam os ciclos de evolução típicos do desenvolvimento psíquico. A
partir desta perspectiva: “podemos conceber o estado anímico do perseguido
´colocando-nos em seu lugar´ (fenomenologia) e podemos compreender suas reações de
violência, desespero e medo (compreensão genética); podemos também compreender a
relação entre a idéia elevada que ele faz de si mesmo, sua desconfiança inquieta do
mundo e as injúrias que ele sofre (quer sejam correntes ou estejam em relação direta
com sua própria atitude), por um lado, e o desenvolvimento do delírio, por outro; mas
não podemos compreender o estado anímico permanente a que chamamos ´constituição
paranóica´, referindo-o assim a uma causalidade genética, biológica, hereditária, e a
mecanismos extra-conscientes cerebrais”20. É isto que leva Lacan a dizer que os
fenômenos da personalidade: “tem para nós um sentido (verstehen) sem que tenhamos
necessidade de descobrir neles a lei de sucessão causal que nos é necessária para
explicar (erklären) os fenômenos da natureza física”21.
Como foi dito, a personalidade para Lacan teria um processo de formação que
pode ser compreendido a partir de uma certa coerência, algo que Lacan alude ao falar do
“desenvolvimento regular e compreensível” da personalidade. Tal desenvolvimento
seria, fundamentalmente, o resultado de dinâmicas de socialização visando a
individuação. Este seria o campo da objetividade, por exemplo, dos fatos mentais
ligados aos distúrbios da síntese psíquica. Daí porque Lacan deve lembrar que todo
conceito de personalidade comporta três elementos: um desenvolvimento biográfico,
uma concepção de si mesmo e, sobretudo, uma certa tensão das relações social, já que a
personalidade é, desde o início, um conceito relacional. Desta forma, ela não se funda
nem no sentimento da síntese pessoal, nem na unidade da consciência individual, nem
na extensão dos fenômenos da memória.
Forma-se a personalidade através da socialização do indivíduo no interior de
núcleos de interação como a família, as instituições sociais, o estado. Tal processo de
socialização implica em uma certa gênese social da personalidade que deve servir de
horizonte para a compreensão de patologias que se manifestam no comportamento. O
que não significa negar as bases orgânicas da doença, mas em insistir em um domínio
de causalidade vinculado àquilo que Lacan chama à época de “história vivida do
sujeito” ou ainda “história psíquica”. Por isto, ele pode dizer não ser supérfluo:
Informar-se sobre o conjunto da personalidade do doente”, já que “a concepção
subjacente que ele tem de si mesmo transforma o valor do sintoma”. O que não poderia
ser diferente quando afirmamos que:
Um delírio na verdade não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física,
que um ponto doloroso ou uma perturbação motor. Ele traduz uma perturbação
20
BECHERIE, Paul, Os fundamentos da clínica, p. 265
21
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 38
eletiva das condutas as mais elevadas do doente; de suas atitudes mentais, de
seus julgamentos, de seu comportamento social. Além do que, o delírio não se
exprime diretamente através desta perturbação; ele se significa em um
simbolismo social. Este simbolismo não é unívoco e deve ser interpretado22.
Note-se que não se trata de negar a possibilidade de que estados mentais possam
ser descritos como estados físicos, mas trata-se de negar que descrevemos a
causalidade de tais estados mentais quando encontramos seu paralelo fisiológico.
Este é um ponto importante porque tais considerações sobre a relação entre a
personalidade e as doenças mentais eram, no fundo, animadas por uma verdadeira
questão de método a respeito da objetividade dos fatos psicológicos em geral. Neste
sentido, não devemos esquecer como, a esta época, uma das influências mais visíveis de
Lacan era um pequeno panfleto que marcará o debate epistemológico a respeito da
clínica dos fatos mentais na França a partir dos anos trinta: Crítica dos fundamentos da
psicologia (1928), de Georges Politzer. Panfleto cuja zona de influência se estendeu a
Merleau-Ponty, Sartre, Canguilhem e ao jovem Michel Foucault.
22
LACAN, De la psychose paranoïaque ... . p. 105
23
O termo “concreto”, tão utilizado por filósofos e psicólogos à época indica simplesmente o campo da
experiência sócio-histórica nos quais indivíduos estão inseridos.
concomitantes ou determinantes fisiológicos [como se a fisiologia fosse naturalmente o
espaço causal capaz de orientar os métodos próprios à clínica], seja através de métodos
“bricolados”24. Ou seja, trata-se de colocar em suspeição tudo aquilo que se apresentava
como progresso na fundamentação do conhecimento dos fatos psicológicos desde que
Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsável pelo
primeiro laboratório do mundo dedicado à psicologia experimental.
De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem
realizado de uma trajetória visando livrar a psicologia do penso de noções metafísicas
de “alma” ou da possibilidade de apreensão imediata de dados da consciência através da
auto-observação. Daí normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de
Wundt como um abandono da submissão da psicologia à filosofia, abandono da noção
de psicologia como “ciência da alma”, isto a partir do uso massivo de técnicas
experimentais de mensuração de constantes fisiológicas objetivamente identificáveis.
Uso massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais à mensuração objetiva
de estímulos e respostas fisiológicas. Desta forma, aparece uma “psicologia fisiológica”
que determinava o fato psicológico fundamental como a “excitação” a partir de órgãos
externos de sentido.
Mas esta submissão da racionalidade da psicologia à fisiologia era o resultado de
uma longa tradição racionalista que procurava definir a psicologia como “física do
sentido externo”, ou seja, como o que permite o cálculo capaz de: “determinar as
constantes quantitativas da sensação e as relações entre tais constantes” 25. O que deve
ser salientado aqui é como a física matemática aparece enquanto padrão de
racionalidade para a constituição da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade própria a fenômenos que são
objetos da física, ou seja, a partir de possibilidade de mensuração, de redução
quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo.
Esta perspectiva própria à psicologia fisiológica de Wundt é criticada por
Politzer através da acusação de “formalismo”. Um formalismo que demonstraria como a
psicologia experimental não seria outra coisa que um disfarce responsável pela
sobrevivência da psicologia clássica, esta mesma que seria marcada pelas crenças
metafísica na noção de “alma”.
De fato, tal afirmação de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo
contrasenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributária dos
descaminhos próprios a uma noção pré-científica de psicologia? Politzer lembra que a
história da psicologia a partir da psicologia experimental de Wundt (ou seja, esta
história marcada principalmente pelo advento do behaviourismo, da Gestalt e da
psicanálise) não era, como poderíamos esperar, a consolidação de um corpo não-
problemático de conceitos e de uma partilha tacitamente aceita de métodos. Ao
contrário, esta história não é de uma organização, mas de uma dissolução. Daí a
afirmação central: “O movimento psicológico contemporâneo é apenas a dissolução do
mito da natureza dupla do homem”26.
A idéia central aqui é: a psicologia foi até então tributária de uma mitologia
vinculada a própria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional
de condutas e emoções. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como
ciência possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu “sono dogmático”.
Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessário o reconhecimento claro do fato de
que a psicologia clássica não é outra coisa que a elaboração nocional de um mito.
24
POLITZER, idem, p. 2
25
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370
26
POLITZER, idem, p. 7
Politzer acredita que a psicologia nunca conseguiu escapar das conseqüências de
um pretenso dualismo entre mente e corpo. Daí a oscilação infinita entre duas saídas
possíveis. Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restituía à alma os seus direitos
graças às ilusões da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos
clínicos da introspecção, uma certa ciência do sentido interno, seria resultado resultante
daquilo que poderíamos chamar de “ideologia da vida interior”, ou seja, a
implementação clínica de um conceito normativo de sujeito baseada na autonomia
espontânea, na transparência imediata de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto
pólo de determinação do sentido da conduta. Mas sua essência é apenas a “abstração”,
já que ela implica apenas o homem “em geral”, a vida “em geral”, e não a vida humana
inserida na particularidade da história de seu desejo.
Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano através de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia
experimental. Contrariamente a noção de que a consciência deveria ser distinta das leis
causais que determinam o mundo físico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade
própria a descrição dos fenômenos físicos deve ser aplicada à apreensão da
inteligibilidade dos fatos psicológicos.
Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocações que
Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as
condições do que o próprio Politzer define como uma psicologia concreta, o
behaviorismo teve o mérito de renunciar à noção de vida interior. Mérito de criticar a
noção de vida interior como resquício de um pensamento animista no interior da
ciência. Watson percebeu que a única atitude científica possível para a psicologia
consistia em fazer tabula rasa de tudo o que se apresentava como introspecção e
espiritualidade. Mas, ao salvar a objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. Pois
tudo o que o behaviorismo pode nos ensinar é da ordem da mecânica animal.
Continuamos presos à alternativa dualista do “dentro ou fora”. Ou elegemos a
percepção interna como o fato psicológico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos
a percepção externa: “Para suplantar a antítese clássica, dirá Politzer, faz-se necessário
renunciar a ver o fato psicológico em uma percepção qualquer e consentir em colocar,
na base da ciência psicológica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada
do que a simples percepção”27.
O importante a renunciar é a perspectiva realista ingênua que acredita ver, no
fato psicológico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptível, seja ela
interna ou externa. É neste ponto que o psicólogo da introspecção e o behaviorista se
tocam: todos os dois acreditam na premissa epistemológica do fato naturalmente dado.
Enquanto os primeiros acreditam que “nada é mais bem conhecido pela mente do que
ela própria” e, por isto, os estados mentais estão diretamente presentes à consciência, os
segundos invertem a posição teórica afirmando que são os estados físicos que
naturalmente são dados à consciência e recaem no realismo metafísico. O behaviorista
prefere ignorar que a percepção de um estado físico depende do que estamos
acostumados a ver28. Ela é inferencial e não imediata.
Note-se que a questão de método aqui diz respeito à definição do que é um fato
psicológico ou, se quisermos, um fato mental. Politzer quer lembrar que o fato
psicológico não é uma simples reação, reflexo ou tropismo. O fato psicológico é aquilo
que sempre procura realizar uma aspiração de sentido. Enquanto objeto do
conhecimento, ele não é um dado simples mas, como a compreensão do comportamento
27
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
28
Ver, RORTY, Richard; Behaviorismo in A filosofia e o espelho da natureza, pp. 83-89.
humano resulta de uma percepção apoiada pela compreensão; trata-se de um dado
construído. Pois quem diz sentido diz algo que pode ser compreendido pelo outro, algo
que pode ser comunicável. Por isto, a compreensão do sentido implica o acesso ao modo
de relação entre o sujeito e seu meio ambiente social. Modo de relação que é a definição
mesma da noção de personalidade, isto ao menos segundo o jovem Lacan. Ou seja, a
personalidade não é o refúgio de alguma forma de singularidade radical, ela é o solo que
me permite compreender a estrutura relacional entre o sujeito e o outro.
Pensando em algo semelhante, Politzer gostava de dizer que um gesto tomado
isoladamente não é um fato psicológico, ele só se torna um quando consigo mostrá-lo
como um segmento “do drama [histórico] que representa minha vida. A maneira com
que ele se insere neste drama é dado ao psicólogo pela narrativa que eu posso fazer
sobre tal gesto. Mas é o gesto esclarecido pela narrativa que é o fato psicológico e não
o gesto à parte, nem o conteúdo realizado da narrativa” 29. Representar minha vida não
apenas para mim, mas para o outro que trago pressuposto enquanto garantia de
compreensibilidade de cada gesto que faço. Saber quem é este outro, esta representação
social à qual cada segmento de minha conduta se endereça só é possível à condição da
reconstituição do desenvolvimento histórico da personalidade que me fornece um
“contexto de significação das ações” que não deixa de estar vinculado a uma história
individual.
Eis o que Lacan tem em mente ao insistir nas relações entre psicose paranóica e
desenvolvimento da personalidade; isto a ponto de defender que a verdadeira psiquiatria
só poderia ser uma “ciência da personalidade”. O que demonstra como, contra o
materialismo organicista, Lacan não temia em sugerir algo como um materialismo
histórico aplicado às clínicas dos fatos mentais.
29
Georges Politzer, Critiques des fondements de la psychologie, PUF, 2005, p. 248
Curso Lacan
Aula 3
A história de Marguerite
Mas fica uma questão: como Lacan compreende esta gênese social da
personalidade resultante das dinâmicas de socialização? De fato, Lacan já opera aqui
com a tendência psicanalítica em compreender socialização e individuação a partir de
processos de identificação.
Identificar-se é, grosso modo, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que
servem de modelo e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. O que
nos leva a uma contradição aparente. Pois afirmar que a identificação é o motor das
dinâmicas de socialização significa dizer que o processo social que permite a
constituição de subjetividades é movido pela internalização de modelos ideais de
conduta socialmente reconhecidos e encarnados em certos indivíduos. Modelos que
30
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 45
podem aparecer nas figuras familiares do irmão, dos pais, ou em qualquer outra figura
de autoridade.
No entanto, esta internalização não deixa de ser profundamente conflitual.
Internalizar um tipo ideal encarnado na figura de um outro significa conformar-se a
partir de um outro que serve de referência para o desenvolvimento do Eu. Se quisermos
ser mais exatos, diremos que se trata de alienar-se, já que significa ter sua essência fora
de si, ter seu modo de desejar e de pensar moldado por um outro. Daí porque uma das
temáticas clássicas da teoria freudiana consiste em lembrar como toda socialização é
alienação, como este processo é fundamentalmente repressivo por exigir a conformação
a padrões gerais de conduta. Para Freud, há algo anterior aos processos de socialização,
algo que não é ainda um Eu, mas é um corpo libidinal polimorfo e inconsistente. Isto
nos explica porque os processos de socialização tendem a se impor através da repressão
do corpo libidinal, da culpabilização de toda exigência de satisfação irrestrita
perpetuando, com isto, relações de agressividade profunda contra aquilo que serve de
ideal. Há um preço alto a pagar para ser um Eu.
A sua maneira, Lacan se serve deste esquema de compreensão da gênese social
da personalidade e do problema da culpabilidade a fim encaminhar sua interpretação
daquele que será seu único “caso clínico” em quase cinqüenta anos de atividade
profissional: o caso Aimée31. Um caso que, diga-se de passagem, embora seja o relato de
uma cura, não é exatamente o relato de uma técnica de cura. Lacan nunca analisara ou
tratara de Aimée. Sua descrição não visa mostrar como suas intervenções teriam
encaminhado o processo á cura. Através de uma série de entrevistas e observações
cotidianas durante um ano e meio com a paciente, Lacan procurou apenas fazer o
histórico do caso e levantar as razões para uma cura que, segundo ele, teria ocorrido
sem a intervenção do médico. Isto se compreendermos cura como: “o valor clínico de
redução de todos os sintomas mórbidos”32. Seu interesse no caso é de: “fornecer a chave
de certos problemas nosográficos e patogênicos da paranóia e particularmente de suas
relações com a personalidade”33.
Este histórico do caso impressiona por sua exaustão. Lacan não apenas tomou
nota dos relatos da paciente. Ele entrevistou seu marido, sua irmã, um de seus irmãos,
uma amiga de trabalho, coletou informações fornecidas por vizinhos, superiores
hierárquicos, entre outros. O cuidado de exaustão narrativa só pode ser comparado a
alguns casos clínicos freudianos como o homem dos lobos ou o caso Dora. Ele dirá que
a psiquiatria deve ter por objeto “reações totais do ser humano” onde a reação
psicológica tem o valor de reação vital global, mas só é possível ter informações
suficientes a este respeito “por um estudo tão exaustivo quanto possível da vida do
sujeito”34, um estudo que privilegiaria monografias psicopatológicas tão completas
quanto fossem possíveis. No entanto, é sempre bom lembrar que Lacan abandonará este
método. Devemos nos perguntar sobre as razões que levaram a tal abandono.
Desta forma, a tese de doutorado de Lacan é dividida em duas grandes partes.
Na primeira, trata-se de discutir os delineamentos de uma teoria da psicose que, ao invés
de insistir em estratégias organicistas, procura afirmar a profunda relação entre gênese
social da personalidade e constituição estrutural da doença. Na segunda, trata-se de
discutir um caso capaz de mostrar a natureza de tal relação. Caso este escolhido no
interior de, ao menos, vinte casos de psicose paranóica que o então psiquiatra Jacques
Lacan seguiu.
31
Para uma análise completa do caso Aimée, ver Jean Allouch, Paranóia: Marguerite ou a Aimée de
Lacan (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005)
32
LACAN, De la psychose paranoïaque... , p. 249
33
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 151
34
LACAN, idem, p. 266
Marguerite Anzieu (o verdadeiro nome da paciente) fora internada após tentar
esfaquear Huguette Duflos, uma famosa atriz de teatro da época, por crer que a mesma a
perseguia e participava de um complô que visava assassinar seu filho. Ela já
demonstrara um quadro constante de delírios de perseguição, de grandeza e de
erotomania e chegara a passar por uma primeira internação.
Após sair da primeira internação, Marguerite conseguirá sair de sua pequena
cidade e transferir seu emprego para Paris onde tentará, sem sucesso, ser reconhecida
como “mulher de letras e de ciência”. Casada com um empregado dos correios, onde ela
também trabalha, Aimée deixará para trás um filho que mais tarde será psicanalista
(Didier Anzieu). Suas temáticas delirantes continuarão até o crime perpetrado contra a
atriz de teatro, em 1931. Dias depois de internada, a produção delirante pára
momentaneamente. A lembrança dos temas delirantes lhe provoca vergonha, sentimento
de ridículo. “Como pude acreditar nisto?”, diz ela. No entanto, ela ficará internada com
recaídas constantes até 1943, já que um dos núcleos centrais de seu delírio (a ameaça de
morte contra seu filho), continuará.
Durante seu longo relato clínico, Lacan demonstra como esta filha de
camponeses da “França profunda” era atravessada, desde cedo, pelo sentimento de
deslocamento em relação a seu meio, em relação aos “papéis femininos” e, sobretudo,
por veleidades intelectuais. Lacan dedicará várias páginas ao relato de seus escritos
marcados, entre outros, por certas qualidades literárias e idealização da vida camponesa.
Tal atividade literária será fundamental para ele descrever os tipos ideais que
determinaram o desenvolvimento da personalidade de Marguerite, os mesmos tipos
contra os quais ela se volta em seus delírios de perseguição: “Mulheres de letras, atrizes,
mulheres do mundo, elas representam a imagem que Aimée concebe da mulher que, em
algum grau, goza da liberdade e do poder social (...) A mesma imagem que representa
seu ideal é também o objeto do seu ódio” 35. Um tipo que pode ampliar-se até absorver
artistas, poetas e jornalistas em geral.. De fato, Lacan é sensível ao fato dos sintomas de
Aimée não se manifestarem a respeito da percepção de objetos inanimados e sem
significação afetiva: “mas especialmente a respeito de relações de natureza social:
relações com a família, os colegas, os vizinhos”36. Maneira de lembrar do caráter
constitutivo de tais relações na configuração e na gênese da doença.
Para chegar a tal conclusão, Lacan desenvolve uma minuciosa construção
narrativa da história do doente. Ela era a quarta filha de um casal de camponeses cuja
mulher sofria de “loucura de perseguição”. A filha anterior, também chamada
Marguerite, morreu queimada viva quando criança em um acidente doméstico com um
forno. Lacan lembra que ela era a única das filhas a saber contestar a autoridade tirânica
do pai, devido principalmente ao respeito que os pais demonstravam por sua
inteligência e à esperança de que, graças a isto, ela pudesse alcançar uma melhor
posição social como professora. Sua relação com a mãe psicótica, por seu lado, era de
“intenso vínculo afetivo”
Seus primeiros amores, por volta dos vinte anos, época em que ela mora em
vilas afastadas de sua região natal trabalhando na Administração, são marcados pela
idealização elevada, decepção e sentimento hostil. Nesta época, Aimée se liga, em uma
profunda relação de amizade e agressividade, a uma outra funcionária (C de la N), vinda
de uma família nobre decadente. “Era a única”, diz a paciente, “que saia do ordinário
em meio a estas garotas feitas em série”. É através desta amiga que Aimée houve falar,
pela primeira vez, de Huguette Duflos.
35
Jacques Lacan; idem, pag. 254
36
LACAN, idem, p. 212
A ocasião da primeira internação, dez anos antes da tentativa de esfaqueamento,
Aimée demonstrara um quadro claro de perseguição. Ela diz que, na rua, todos
sussurram contra ela, que há mensagens cifradas nos jornais direcionadas à sua vida.
Grávida de uma menina, sua relação com o marido é violenta e marcada pela frigidez.
Um dia, ela tenta acertá-lo com um ferro de passar roupa.
A menina nasce morta, o que coloca Aimée em um estado depressivo. È em
direção à C de la N que ela volta seu ódio. Ela crê que a amiga estaria por trás desta
morte. Logo em seguida, há uma outra gravidez e nasce um menino. Durante 14 meses,
os cuidados da mãe são obsessivos; até que ela decide fugir sozinha para os EUA a fim
de tentar uma carreira de escritora. Logo em seguida, ela será internada.
A respeito deste primeiro quadro de sintomas e delírios, Lacan insiste na
importância da mudança de sua irmã mais velha para a casa de Aimée oito meses depois
de seu casamento. Viúva de um tio, fisicamente impossibilitada de ter filhos e muito
mais apta às tarefas doméstica que a doente, a irmã aparecerá para Aimée como foco
maior de rivalidade e identificação em torno da posição da doente de mãe e esposa:
A interpretação do caso
38
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996), p. 347
39
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 244
40
LACAN, idem, p. 256
41
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370
Há uma série de questões que só poderão ser melhor organizadas quando Lacan
operar uma certa organização em sua teoria das identificações através da distinção entre
Ideal do Eu, Eu ideal e supereu. Tais distinções não existem na tese de doutorado. Pois o
que Lacan procura, por enquanto, é simplesmente a descrição de um processo de
determinação da conduta e dos modos de desejar baseado na introjeção da imagem ideal
de um outro libidinalmente investida (normalmente o irmão). Esta introjeção de um
padrão de conduta é vivenciada de maneira traumática e invasiva porque o sujeito não
tem acesso a uma ordem que permita identificações que não sejam apenas a introjeção
de imagens ideais completamente tipificadas.
Este é um ponto importante pois, no interior da socialização, há um momento de
internalização de um processo que permite ao sujeito tomar certa distância destas
identificações marcadas pela reversibilidade transitiva entre o Eu e o outro.
Posteriormente, Lacan mostrará como tal processo está vinculado a uma outra
identificação, esta que se dá com a lei social ordenadora representada, no interior da
família, pela função paterna. Por este mesmo pai que tem sua autoridade
sistematicamente questionada por Aimée. Não é por outra razão que as figuras do pai na
psicose ou são simplesmente inexistentes, ou são marcadas por um caráter ameaçador e
onipotente. Ameaçador porque o pai resvalou-se à condição de mero rival; onipotente
porque condizente com o delírio de grandeza do sujeito.
O argumento de Lacan consistirá em dizer que, na paranóia, esta segunda
identificação estabilizadora com a ordem paterna não ocorre, há uma fixação que
impede o sujeito de atravessar as relações de rivalidade e alienação com o que lhe
aparece como ideal. Ele vive assim em uma confusão narcísica que faz com que toda
alteridade apareça próxima demais, invasiva demais. Esta era a maneira lacaniana de
interpretar a noção freudiana segundo a qual a paranóia seria uma reação de defesa
contra a homossexualidade. Tudo se passa como se Lacan transformasse tal
homossexualidade em paixão pelo mesmo, paixão conflitual pela imagem de si mesmo
vinda de um outro. Como se a paranóia fosse, no fundo, uma doença do narcisismo. Daí
a impossibilidade de reconhecer a dependência à alteridade sem produzir explosões de
rivalidade que acabam, por exemplo, sendo projetadas para fora de si sob a forma de
delírios de perseguição.
Levando em conta este jogo de identificações, Lacan poderá fornecer o sentido
da ação criminosa de Marguerite. Na verdade, ao atacar a atriz de teatro, ela procurou
atingir a si mesma. Ela atinge a si mesma não exatamente para livrar-se de um ideal que
a persegue, mas para ser punida, para ser culpada perante uma lei social da qual ela
sempre se sentiu deslocada. Pois ser culpada e punida é, neste contexto, uma forma
peculiar de ter diante de si a presença da potência asseguradora da lei. Sentir-se culpada
é uma forma de inscrever-se no interior da lei social, como se o crime fosse, na verdade,
um modo de demanda de reconhecimento social que só pode realizar-se se Marguerite
sentir que a lei também “é para ela”. Daí porque, após o crime, Lacan dirá que ela se
“cura” de uma “paranóia de auto-punição” e pode tomar uma certa distância da sua
produção delirante.
Ela pode se curar porque ela “realizou” seu castigo. A este respeito, Lacan pode
se apoiar na resposta da paciente à questão: “Por que seu filho estava ameaçado?”.
“Para me castigar”, diz Aimée. “Mas do que?”. “Porque não realizei minha missão...”.
Resposta que é completada logo em seguida por um: “Porque meus inimigos sentiam-se
ameaçados pela minha missão ..”. Todas as duas respostas indicam dificuldades na
efetivação de um princípio de conduta que a própria paciente reconhece como
necessário.
É por tal razão que, no caso paranóico, não há dificuldade em identificar a
existência de uma espécie de “hipermoral” que impele a cristalização de apaixonados
conflitos éticos que dilaceram o sujeito. Longe de desconhecer a lei que violou, Aimée
agiu para ser castigada. Como bem assinalou Borch-Jacobsen, a respeito dos casos
criminais lacanianos: “eles são criminosos devido a um obscuro desejo de glorificar a
lei que eles violam”42. Freud havia compreendido bem este ponto ao afirmar: “Em
muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar um sentimento
de culpa muito poderoso, que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado,
mas sim o seu motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento
inconsciente de culpa a algo de real e imediato”43.
Notemos, primeiro, como esta cura não deixa de ter um acento peculiar, quase
poderíamos dizer “durkheimeano”. Ao sentir-se culpada, Marguerite se encontra com
uma ordem social punitiva e “legítima”, cuja ausência teria permitido o advento da
psicose. Não é por outra razão que Lacan recomendará, como estratégia profilática
contra a psicose, a recondução destes pacientes a instituições sociais rígidas ou a grande
ideais reformadores que exigem abnegação. “a fórmula de atividade mais desejável para
estes sujeitos, é o seu enquadramento em uma comunidade laboriosa ao qual eles são
ligados por um dever abstrato”44, já que o retorno ao núcleo familiar apenas alimentaria
o processo psicótico. Por sinal, esta será sua estratégia quando tiver em análise Dora
Maar (artista e amante de Picasso) nos anos quarenta. Sentido a fragilidade de sua
estrutura psicótica, Lacan verá como saída clínica o reforço de seu encaminhamento em
direção à fé religiosa.
No entanto, Lacan não está simplesmente expondo as conseqüências psíquicas
da ausência de uma Lei de forte conteúdo normativo e positivo, ausência que produziria
uma espécie de “miséria moral”. Digamos que Lacan acredita que a confrontação com
uma Lei de forte conteúdo normativo só pode ser profilática para psicóticos. Tanto
assim que, como veremos, seu conceito de Lei social será totalmente diferente desta
visão tradicional.
Segundo, não é difícil notar que Lacan está mais interessado em “uma
psicanálise do eu do que em uma psicanálise do inconsciente” 45. Como vimos, a
causalidade da psicose paranóica foi descrita através de uma teoria das identificações e
da gênese social da personalidade que em momento algum precisou fazer apelo direto à
noção psicanalítica de inconsciente. Na verdade, durante décadas Lacan considerará o
conceito de inconsciente como supérfluo. Foi só a partir de seu encontro com o
inconsciente estrutural de Lévi-Strauss, isto no início dos anos 50, que Lacan
“retornará” ao inconsciente freudiano.
42
BORCH-JACOBSEN, Mikkel; Lacan: the absolute master, pag. 25
43
FREUD, Sigmund; O Ego e o Id, pag. 69.
44
LACAN, idem, p. 277
45
LACAN, Da psicose paranóica, p. 280
Curso Lacan
Aula 4
46
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 337
47
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 244
incapaz de desenvolver as estruturas que permitiriam que tais conflitos próprios aos
processos identificatórios fossem agenciados de outra forma.
Veremos a partir da aula que vem como Lacan irá partir desta reflexão sobre a
teoria da personalidade, mas para reconstruí-la, agora através de empréstimos maciços
vindos da filosofia, da etologia animal e da psicologia do desenvolvimento. Notemos
apenas que em sua tese, Lacan está mesmo disposto a afirmar que o desejo instaura um
ciclo de comportamento marcado por exigências de satisfação. A compreensão deste
ciclo fornece a chave compreensiva para as patologias, já que mesmo a psicose se
apresente “como um ciclo de comportamento”.
48
LACAN, idem, p. 307
49
Idem, o. 315
50
Idem, p. 308
nulidade da ‘psicologia’ mas ele de fato erige seus conceitos em ídolos. As
abstrações da análise se tornam para ele realidade concreta51.
Por fim, vale lembrar o sentido de uma certa relação entre Lacan e o surrealismo
a respeito do problema da paranóia. Salvador Dali escrevera, em 1930, algumas
51
Idém, pag. 316
52
idém, pag. 334
53
LACAN, idem, p. 325
considerações sobre a paranóia e intentava dar suporte teórico à suas concepções
estéticas através do desenvolvimento de um método designado por ele de “paranóia-
crítica”. Para o pintor catalão, a paranóia era uma interpretação delirante da realidade,
uma atividade criadora lógica que, longe de basear-se em um “erro” de julgamento,
estava apenas em desacordo com a realidade socialmente compartilhada 54. Era, assim,
uma forma de conhecimento muito mais capacitada a apreender a realidade absoluta
proposta na noção de surrealidade, a este realismo bruto que o surrealismo procurava
através da crítica da realidade como construção aparente. Pois lembremos como o
surrealismo se via como “materialista”, “uma feliz reação contra as tendências irrisórias
do espiritualismo”.
A idéia converge com tese de Lacan, para quem a psicose paranóica estava
fundada no desconhecimento que o doente tinha de sua própria diferença.
Desconhecimento da dissimetria entre sua forma delirante de conhecimento e o
conhecimento verdadeiro que “aí se define, com efeito, por uma objetividade da qual o
critério de assentimento social, próprio a cada grupo não está de resto ausente” 55. A
psicose, ao ser apreendida em sua racionalidade lógica interna, expunha uma sintaxe
original cuja produção simbólica, em muitos pontos, assemelhava-se às manifestações
estéticas do estilo. Daí a conclusão:
Por estas conclusões já dá para imaginar porque, no meio médico, somente seu
amigo Henri Ey rompeu com o silêncio sobre a tese fazendo a sua defesa através de um
artigo para a revista de psiquiatria L’Encéphale. O fato é que a leitura de Politzer
permitiu a Lacan abordar a obra de Freud a partir de uma perspectiva até então estranha
ao meio psiquiátrico francês e muito mais próxima ao espírito dos surrealistas.
54
Dali definirá a paranóia como: “delírio de associação interpretativa que comporta uma estrutura
sistemática” (DALI, Salvador; La conquete de l’irrationnel in Oui: pour une révolution paranoïaque-
critique, Denöel: Paris, pag.19).
55
LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 346.
56
LACAN, Jacques; O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da
experiência, pag. 380.
Curso Lacan
Aula 5
59
FREUD, Sigmund; O Ego e o Id, pag. 39,
60
LACAN, Jacques; Algumas reflexões sobre o eu, pag. 25.
61
LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 332,
62
LACAN, Jacques; Au-delá du principe de realité, pag. 92.
A reflexões de Lacan sobre o processo de constituição do Eu receberão
influência decisiva dos cursos que ele seguiu, logo após o final da tese, com Alexandre
Kojève: um dos responsáveis - no caso, o principal - pela segunda introdução do
hegelianismo na França, desenrolada na década de trinta.
Durante os anos 1933-1939 Kojève foi responsável por um seminário na École
Pratique des Hautes Etudes que marcou intelectualmente toda uma nova geração de
pensadores franceses. Bataille, Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Lacan, Raymond
Aron. Maurice Blanchot e Pierre Klossowsky foram alguns dos seus atentos alunos.
André Breton também seguia, esporadicamente os seminários e, assim como Sartre, foi
por eles influenciado. Creio podemos mesmo afirmar que: “a época de Lacan (a época
de muitos outros: Bataille, Blanchot, Sartre) foi um tempo kojéveano, quer dizer, uma
época hegeliana- heideggeriana”63.
A leitura kojèveana de Hegel pode ser dividida em dois grandes motivos.
Primeiro, a descrição antropológica das figuras da Fenomenologia do Espírito, em
especial das figuras do Senhor e do Escravo - cuja dialética será elevada à condição de
chave para a compreensão do livro. Segundo, a construção de uma espécie de teoria
hegeliana da linguagem inspirada na dialética do Conceito. Ficaremos na aula de hoje
apenas com o primeiro motivo.
Segundo Kojève, encontramos, primeiro, a quietude passiva da consciência
solitária absorvida pela contemplação do objeto. Neste momento, a consciência não se
diferencia do puro Sentimento de si do animal. Absorvida nesta contemplação de um ser
exterior e objetivo chamada de connaissance64, a consciência se esquece. Quanto mais
ela é consciência do objeto menos ela é consciência de si. É, pois, necessário que este
mundo sem fissuras seja quebrado e a consciência, chamada a si, seja impelida a deixar
de falar da coisa e falar dela mesma. Quer dizer, seja impelida a dizer: ‘Eu’, acedendo à
condição de consciência-de-si. “Compreender o homem pela compreensão de sua
origem, dirá Kojève, é compreender a origem do Eu revelado pela palavra”65.
Em Kojève, o que impele a consciência a dizer ‘Eu’ é a temporalidade originária:
vir-a-ser que engendra a negatividade do Desejo. Quando o homem sente um desejo ele
toma, necessariamente, consciência de si. “O desejo revela-se sempre como meu desejo,
e por revelar o desejo, é necessário se servir da palavra ‘Eu’” 66. Aqui, Desejo não se
confunde com a simples necessidade animal. Antes, ele: “é apenas uma nada revelado,
um vazio irreal”67 e, como tal, é o ser do sujeito. “O desejo, sendo a revelação de um
vazio, sendo a presença de uma ausência de uma realidade, é essencialmente outra coisa
que a coisa desejada, outra coisa que uma coisa, que um ser real estático e dado, mantê-
se eternamente na identidade a si”68. Comparemos com uma definiçào fornecida por
Lacan anos depois, isto a fim de sentir o peso da : “O desejo é uma relação de ser com
falta. Essa falta, é falta de ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém
falta de ser através do que o ser existe”69. [sobre a tradição do desejo como falta]
Neste sentido, a característica principal do desejo seria sua ausência de todo
procedimento natural de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de
« nada de nomeável »70. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com objetos
empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
63
BORCH-JACOBSEN; Mikkel, Lacan: the absolute master, pag. 4.
64
Em contraposição ao savoir que é o saber de si que, ao mesmo tempo, é saber do objeto.
65
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11
66
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166.
67
idém, pag. 12
68
idem, 12
69
LACAN, SII, p. 280
Devemos sublinhar este ponto, a revelação do desejo está vinculada a ao que
poderíamos chamar de “ ato de transcendência negativa” pois consiste no
reconhecimento da necessidade de transcender todo objeto a fim de afirmar aquilo que é
da ordem da essência dos sujeitos. O homem é este ser para o qual a sua essência
consiste em nada ter determinado.
De fato, para Hegel, a individualidade (Individualität) aparece sempre, em um
primeiro momento, como negação que recusa toda co-naturalidade imediata com a
exterioridade empírica. Podemos mesmo chamar esta negatividade de seu verdadeiro
nome, ao menos segundo Hegel: “Liberdade” em seu estágio inicial de manifestação.
Como se o verdadeiro problema do desejo de reconhecimento fosse o reconhecimento
da liberdade da consciência-de-si que, inicialmente, aparece como negatividade e
indeterminação.
A noção kojèveana da transcendência negativa do desejo foi a chave que libertou
Lacan da empiricidade do Wunsch freudiano – já que para Freud há uma gênese
empírica da falta do desejo vinculada à perda do objeto materno devido à interdição
vinda da Lei do incesto. Lembremo que para Freud : “Acima de tudo, o homem está a
procura da imagem mnésica da mãe, imagem que o domina desde o início de sua
infância”.
É sobre o eixo do reconhecimento deste Desejo de pura negação que irá se
desenrolar a dialética através da qual se articula o problema da identidade do sujeito
consigo mesmo. O problema central será: como reconhecer, como dar determinação
objetiva àquilo que é desprovido de todo procedimento de objetivação? Como conciliar
exigências de transcendência e objetivação?
A fim de responder esta pergunta, é bom lembrar que deslocar o problema do ser
do sujeito para a esfera do desejo é apenas uma forma de afirmar que só é possível
pensar em uma igualdade consigo mesmo através da mediação por um ser-Outro.
O Desejo, definido como pura negatividade, como desejo de nada que possa ser
nomeado, ou, ainda, como falta-a-ser, só pode encontrar satisfação em outro Desejo. É
só em outro Desejo, em um não-ser, que a pura negatividade pode satisfazer-se. Daí por
que: “a história humana é a história dos desejos desejados” 71. Ou seja, seu meio
ambiente social é o campo de entrelaçamento entre histórias de desejos nos quais ele
está aprisionado. Isto marca a diferença irredutível entre o Desejo humano e seu
congênere animal. O animal deseja e se satisfaz com esta coisa naturalmente dada. Ele
não transcende a Natureza abstratamente negada. Já o homem não deseja objetos mas,
sim, outro Desejo. O homem é aquele que se alimenta de Desejos. Os objetos do mundo
humano são desejos reificados. Daí advém o adágio: “O desejo do homem é o desejo do
outro (ainda com a minúscula)” e, consequentemente, a necessidade do reconhecimento
do Desejo entre sujeitos como chave de apreensão da essência do mundo humano.
79
idém; pag. 32
80
Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está profundamente ligada à noção do homem enquanto vir-a-
ser. Para o ser- natural, idêntico a si mesmo e estático, toda mudança radical é sempre imposta de fora e
significa sua aniquilação. O homem, ao contrário, pode transcender a si mesmo e vir a ser um ser-Outro
sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja, ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto
para o animal, a causa de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilação de sua natureza dada. Conclusão: o homem é a doença mortal do
animal. Cf. KOJÈVE, Alexandre. Idém, pag. 553.
81
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, pag. 38.
82
idém, pg. 540.
negatividade, o fim do discurso da história oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou
americanisar o Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de
macacos”83.
Claro que Lacan se distancia destas temáticas a respeito do fim da historia. Mas,
como veremos, a teoria do desejo como falta, do caráter conflitual das relações sociais e
a função do desejo como elemento mediador serão pontos maiores de sua teoria de
constituição do Eu. Resta saber como será possível constituir uma clinica com estas
posições.
83
KOJÈVE, Alexandre; Entrevista para Quinzaine littéraire 01/07/68 in LABARRIÈRE, Pierre-Jean et
JARCZYK,Gwendoline; De Kojève à Hegel, pag. 100.
Curso Lacan
Aula 6
Formar um Eu
84
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 315
85
LACAN, Jacques ; Au-delà ..., p. 88
86
LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 332,
87
LACAN, Jacques; Au-delá du principe de realité, pag. 92.
Ao comentar a re-edição de sua tese, em 1975, Lacan dirá que resistiu durante
tanto tempo à sua republicação: “porque a psicose paranóica e a personalidade não têm
relações devido à simples razão de que são a mesma coisa” 88. Esta afirmação inusitada
era, no entanto, a conseqüência necessária de um movimento de reconfiguração das
relações entre normal e patológico iniciada pela própria tese. Movimento que levará
Lacan a mostrar como a constituição do Eu do homem moderno, com suas exigências
de individualidade e autonomia, coloca em funcionamento uma dinâmica de
identificações e de desconhecimento própria à paranóia. Daí porque a cura estará ligada,
em Lacan, a uma certa dissolução do Eu, a uma “experiência no limite da
despersonalização”89 muito próxima de um dos temas preferidos da vanguarda
modernista. Esta exposição do caráter “paranóico” do Eu pode ser encontrada no que
Lacan chama de estádio do espelho.
Analisemos a primeira parte do texto, esta que vai do parágrafo 2 ao parágrafo
10. Mas, inicialmente, vale a pena fazer duas considerações. Primeiro, o termo estádio
não deve nos enganar. Não se trata de uma fase que deveria ser acrescentada à série de
fases do desenvolvimento libidinal do auto-erotismo até a fase genital. Na verdade,
Lacan concebe o desenvolvimento das relações entre o Eu e os objetos através de uma
estrutura narcísica geral que pode ser decifrada à luz da experiência da criança diante do
espelho.
Por outro lado, sejamos atentos ao título: O estádio do espelho como formador
da função do Eu tal como ela nos é revelada na experiência analítica”. A idéia aqui é
bastante clara: a experiência analítica nos revela a real natureza da função do Eu. No
entanto, devemos nos perguntar : a que função Lacan exatamente se refere?
Conhecemos algumas funções maiores que a psicanálise associa ao Eu : ser o
representante do princípio de realidade no interior do aparelho psíquico, ser o cerne dos
mecanismos de defesa e resistências, estabelecer relações de objeto, controlar as pulsões
e afetos realizando julgamentos morais e realizar sínteses psíquicas. Lacan irá procurar
mostrar como todas estas funções são profundamente marcadas pelo modo com que o
Eu é constituído e por aquilo que ele não pode reconhecer no interior de tal processo de
constituição. Daí porque Lacan dirá que o Eu é marcado por uma função de
“desconhecimento”.
Esta era uma questão maior se lembrarmos da maneira que correntes
hegemônicas da psicanálise à época insistiam que: “o tratamento analítico sempre teve
por objeto o Eu e seus distúrbios, o estudo do Isso e de seus modos de ação constituem
apenas um modo de alcançar o objetivo terapêutico. Este objetivo continua
invariavelmente o mesmo: suprimir os distúrbios e restabelecer a integridade do Eu” 90.
Ou seja, o Eu seria o verdadeiro objeto do conhecimento analítico, como se a
integralidade do processo analítico devesse passar pelo Eu. Anna Freud, por exemplo,
em um livro muito importante para Lacan, lembra que, no interior da relação analítica, o
analista defronta-se constantemente com resistências do analisando a seguir a regra
analítica fundamental (a associação livre). Neste ponto, o analistas deveria desviar sua
atenção, das associações às resistências. Como se o importante não fosse a estrita
obediência do analisando à regra de associação livre, mas os conflitos que resultam
desta injunção. Daí porque: “A primeira tarefa do analista é reconhecer qual gênero de
mecanismo defensivo ele tem diante de si. Se ele consegue isto, então temos o direito
de dizer que ele realizou uma parte da análise do Eu. A partir disto, ele precisa deduzir a
obra deste sistema defensivo, ou seja, encontrar o que o recalque dissimulou e reintegrá-
88
Jacques Lacan, Séminaire XXIII (Paris ; Seuil, 2005), p. 53
89
Jacques Lacan, Séminaire I (Paris : Seuil, 1980), p. 258
90
FREUD, Anna; Le moi et les mécanismes de défense, p. 4
lo, recolocar o que foi deslocado, religar o que foi isolado”91. Ou seja, como diz Otto
Fenichel, a analista basicamente ajudaria o paciente a eliminar suas resistências tanto
quanto possível, principalmente, através da interpretação. Daí a necessidade de uma
definição como: “Este procedimento que consistem em deduzir o que o paciente
realmente quer dizer e informá-lo é chamado de interpretação”92.
No entanto, não escapa à Lacan que esta perspectiva que consiste em privilegiar
a análise das resistências consiste a tratar o Eu como se ele fosse estruturado como um
sintoma: “Trata-se do sintoma humano por excelência, a doença mental do homem”93.
Pois, tal como os sintomas, encontramos no Eu as marcas dos processos inconscientes
(daí a necessidade de interpretação; daí também a afirmação freudiana de que uma parte
do Eu é inconsciente) de defesa, de negações e de recalque contra moções pulsionais
intensas. È no mesmo tom que Lacan falará de “uma organização de certezas, crenças,
coordenadas, referências que constituem propriamente falando o que Freud chamava
desde a origem de sistema ideacional”94.
Daí porque psicanalistas como Fenichel precisavam afirmar que a interpretação
fragmenta o Eu em : “uma parte que observa e uma parte que experimenta, de modo que
aquela pode julgar o caráter irracional desta” 95. A perspectiva de Lacan será, no entanto,
muito mais radical, já que consiste na redução integral do Eu a um mecanismo peculiar
de defesa chamado de “desconhecimento”. O que faz com que Lacan precise de uma
teoria da subjetividade baseada na clivagem entre o Eu e algo outro (o sujeito) que
encontramos também no campo d asubjetividade.
A importância desta discussão sobre a estrutura do Eu e de suas relações à
consciência, logo no primeiro parágrafo, Lacan saliente como o que será exposto no
texto opõe a psicanálise a toda filosofia saída diretamente do cogito. O final do texto
mostrará como o alvo desta oposição é Jean-Paul Sartre. No entanto, não deixa de ser
interessante lembrar como Lacan enunciará, mais tarde: “Ouso enunciar, como uma
verdade, que o campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da
emergência do sujeito cartesiano, nisso que a ciência moderna só começa depois que
Descartes deu seu passo inaugural”96. Sendo assim, o que pensar desta oposição ao
cogito que aparece como horizonte do texto. Digamos que em seu conceito de sujeito,
Lacan conservará uma característica central do cogito (sua função de transcendência),
mas ele procurará, a todo momento, criticar a imediaticidade de uma presença a si no
interior da consciência, a noção de auto-identidade e transparência que aparece como
fundamento para o conceito moderno de sujeito e a respeito da qual, a sua maneira,
Sartre seria ainda tributário.
A fim de quebrar esta ilusão de auto-identidade, Lacan parte de um fato de
psicologia comparada. Na verdade, este fato havia sido elaborado por Henri Wallon que,
a sua maneira, fornece as bases empíricas das elaborações de Lacan. Em um texto
intitulado Conscience et individualisation du corps propre, de 1931, depois reimpresso
em Origens do caráter na criança, de 1933, Wallon se pergunta sobre como a criança
como sua a imagem que lhe vem do espelho. O problema parece comportar dois tempos
simples: perceber a imagem, relacioná-la a si. No entanto, as etapas são outras e mais
complexas. A fim de compreende-lo, Wallon passa ao estudo de psicologia comparada.
Ele lembra que os chimpanzés superiores, diante de um espelho, logo passam a
mão por trás do objeto e, irritados por nada encontrar, perdem o interesse pela
91
FREUD, Anna, ibidem, p. 13
92
FENICHEL, Otto; Teoria psicanalítica das neuroses, p. 21
93
LACAN, SI, p. 22
94
LACAN, SI, p. 31
95
FENICHEL, ibidem, p. 22
96
LACAN, SXI, p. 47
experiência. Wallon dirá que se trata de um “verdadeiro ato de conhecimento” 97 que
nada tem a ver com um adestramento. Pois o chimpanzé já é capaz de compreender a
natureza de representação da imagem, o que o bebê humano ainda não é capaz.
Esta compreensão é, segundo Lacan, uma percepção situacional da mesma
ordem do que o psicólogo da Gestalt Wolfgang Köhler chamou de Aha-erlebnis, ou
seja, momento de perpeção situacional que equivale a um insight – tempo fundamental
em todo processo de resolução de problemas [teste do macaco e das duas varas de
bambu – o teste demonstra que os animais não resolvem problemas apenas através de
tentativa-e-erro ou estímulo-resposta, mas através da apreensão de um princípio global
de organização]. O reconhecimento da imagem no espelho é um insight que permite a
apreensão de um princípio global de organização da percepção de si e do mundo. Trata-
se de apreender uma organização que o permite relacionar uma vivência perceptiva
interna e sua visualização quase gráfica nas modificações de uma imagem.
No entanto, algo de diferente acontece com o bebê. É somente a partir do sexto
mês de vida que o bebê associa à imagem uma operação de conhecimento. Wallon parte
da reação reportada por Darwin do bebê que sorri diante da sua imagem com seu pai
mas volta-se surpreso quando ouve a voz do pai vir de outro lugar que a imagem. Isto o
permite dizer que: “o gesto de atribuição que levou a imagem ao objeto e que traduziu
sua justaposição em identidade não teve por ponto de partida a intuição prévia desta
identidade”98. O aprendizado desta relação não é um adestramento, mas um ato de
conhecimento que o permite realizar algo de novo, resolver uma dificuldade que o leva
a “novas formas de identificação e integração mental”. No entanto, a identificação entre
a imagem especular e o objeto no espaço não é uma subordinação simples.
Notando que, a partir de um momento, o bebê começa por olhar no espelho
todas as vezes que seu nome é chamado. Wallon atribui este fato à necessidade geral da
criança em apreender seu ‘ego proprioceptivo’ através de uma ‘imagem exteroceptiva’.
Pois este é o preço de toda representação: “ela só pode se formar exteriorizando-se” 99.O
corpo próprio, como Wallon salienta, é antes de mais nada a imagem visual do corpo. A
imagem do corpo é um objeto que não se dá através da imediaticidade da consciência,
mas se dá na exterioridade.
A peculiaridade de Lacan consiste em partir deste dado de psicologia do
desenvolvimento para afirmar que tal atividade revela: “a estrutura ontológica do
mundo humano [ou seja, da maneira como se configura o espaço dos objetos da
experiência humana] que se insere em nossas reflexões sobre o conhecimento
paranóico”100. Ou seja, ele quer dizer que esta maneira de apreender o corpo próprio
através de sua imagem especular, é, no fundo, a exposição da estrutura paranóica do
campo de experiências do homem moderno. Mas o que isto poderia exatamente
significar?
Insistamos primeiramente em uma idéia fundamental de Lacan: o Eu é a imagem
do corpo próprio. De maneira sumária, podemos dizer há uma relação fundamental entre
corporeidade e ipseidade que é desde o início assumida por Lacan. Tal articulação traz
uma série de pressupostos. Insistir que corporeidade e ipseidade deve ser articulados
conjuntamente equivale a afirmar que o corpo não é um objeto físico-químico apto a ser
submetido ao sistema fechado e mecânico de relações casuais próprio de objetos partes
extra partes. Ele não é uma espécie de máquina submetidas a leis causais próprias ao
mundo natural. O corpo é a perspectiva privilegiada através da qual eu apreendo os
97
Wallon, Les origines du caractère chez l´enfant, p. 221
98
Wallon, p. 223
99
Idem, p. 228
100
Lacan, Ecrits, p. 94
objetos do mundo, o que Lacan lembrava ao falar que a imagem do corpo era : “solo do
mundo visível”101. E enquanto perspectiva, ele não pode ser totalmente objeto. Não há
distância entre sujeito e corpo, pois o corpo sempre existe comigo. Ou seja, articular
corporeidade e ipseidade significa assumir nào só a subjetividade do corpo, mas
também a corporeidade da subjetividade, com todas as consequências epistêmicas que
tal assunção possa ter.
Mas há uma proeminência da imagem do corpo sobre os ‘dados e sensações
imediatas’ do corpo. Para que existam sensações localizadas e percepções é necessário
que exista uma imagem do corpo próprio prévia capaz de operar a síntese dos
fenômenos ligados ao corpo. Neste ponto, o famoso exemplo do ‘braço fantasma’ tem
um função importante. O braço fantasma é um sintoma que indica uma espécie de
clivagem entre a imagem do corpo e o estado atual do corpo, entre corpo habitual e
corpo atual. Daí porque: “O braço fantasma não é uma representação do braço, mas
presença ambivalente de um braço”102. O braço fantasma só pode ser ‘presença
ambivalente’ porque o braço continua presente na imagem unificadora do corpo, mesmo
que ausente do corpo atual103. Esta imagem do corpo que aparece como corpo habitual é
o campo transcendente necessário para que o ser no mundo se liberte da sua redução a
uma configuração momentânea.
Todo o trabalho de Lacan consistirá, de uma certa forma, em insistir nas
consequências da gênese desta imagem do corpo. Pois nos primeiros meses de vida de
uma criança, não há nada parecido a um Eu com suas funções de individualização e de
síntese da experiência. Esta inexistência do Eu como instância de auto-referência seria o
resultado de uma prematuração fundamental do bebê advinda, por exemplo, da
incompletude anatômica do cérebro com seu sistema piramidal e a conseqüente
inexistência de um centro funcional capaz de coordenar tanto a motricidade voluntária
quanto as experiências sensoriais. Na verdade, falta ao bebê o esquema mental de
unidade do corpo próprio que lhe permita constituir seu corpo como totalidade, assim
como operar distinções entre interno e externo, entre individualidade e alteridade.
É só entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida que tal esquema mental será
desenvolvido. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento de si na imagem especular
ou a identificação com a imagem de um outro bebê. Pois ao reconhecer pela primeira
vez sua imagem no espelho, a criança tem uma apreensão global e unificada do seu
corpo. Desta forma, esta unidade do corpo será primeiramente visual. Uma unidade da
imagem que antecipará a descoordenação orgânica e que, por isto, induzirá o
desenvolvimento do bebê.
Por isto, Lacan insiste que o reconhecimento de si na imagem é uma operação de
“identificação”, mas uma identificação que não é simplesmente o estabelecimento de
uma correlação. Ela é uma “transformação produzida no sujeito quando este assume
uma imagem”104. Lacan chegará mesmo a dizer do reconhecimento na imagem como
uma “precipitação em uma forma primordial” que tem valor de tipo ideal. Pois quem diz
identificação não diz imitação. Contrariamente à imitação, a identificação pressupõe a
assimilação global de uma conduta e a assimilação virtual do desenvolvimento.
101
LACAN, O estádio do espelho
102
MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, p. 121
103
Este concepção pode ser encontrada em autores tão distantes da tradição fenomenológica quanto John
Searle. Afinal, é ele quem afirma que : « Em um sentido, todas as nossas sensações corporais são
experiência de corpo ilusórias (phantom body experience), já que a combinação entre a localização do
lugar onde a dor parece estar e o corpo físico real é totalmente criada no cérebro » (SEARLE, O mistério
da consciência, p. 198
104
Lacan, idem, p. 94
Reflexões sobre a imagem
105
Agostinho, Confissões (Petrópolis: Vozes, 1993), I. 7
106
JUNG, Métamorphoses de l’âme et ses symboles, p. 100
107
“Le complexe, en effet, lie sous une forme fixée, un ensemble des réactions qui peut intéresser toutes
les fonctions organiques depuis l’émotion jusqu’à la conduite adaptée à l’objet » (LACAN, AE, p. 28)
108
LACAN, ecrits, p. 183
inconsciente não é mais do que um background pressuposto por toda percepção, como o
fundo que desaparece quando nos fixamos na forma.
Vale insistir um pouco mais neste ponto pois uma reflexão sobre o estatuto da
imagem é fundamental neste momento das elaborações lacanianas. Lacan chega a
afirmar que a psicanálise seria a primeira a revelar o nível de realidade concreta que a
imagem como fenômeno mental representa109. Isto porque a psicanálise teria insistido no
fato de que a imagem não é uma representação passiva que teria apenas a função de
informação de um dado ao qual ela se assemelha. Na verdade, ela teria insitido na sua
“função formadora no sujeito”110: função que só pode ser compreendida através da
reconstrução de diversas características da imagem segundo Lacan.
Primeiro, Lacan nos lembrou que, se a imagem não é uma simples representação
é porque ela é fundamentalmente uma Gestalt : boa forma que fornece tanto um
princípio global de organização da percepção quanto uma realidade tipo a respeito da
qual devo me conformar, daí porque Lacan falará no texto que a pregnância desta
Gestalt “deve ser considerada como ligada à espécie”111.
Por um lado, a imagem fornece aquilo que a percepção não pode nos dar, ou
seja, uma apreensão global dos objetos. Se percebo um cubo, posso apreender apenas
alguns ângulos e lados do objeto. Se imagino um cubo, eu o tenho completo como
Gestalt. Mas este princípio não diz respeito apenas a apreensão imaginativa de objetos
particulares. Pois a imagem, ao configurar objetos simultâneos no espaço, organiza o
campo do visível, ou melhor, organiza o visível como campo. Ela organiza o espaço no
qual um objeto pode aparecer. Estar na imagem é assim dar-se a ver como objeto no
interior de um campo de organização visual estruturado. Nenhuma imagem é simples
apresentaçào de propriedades naturais de objetos. Na verdade, ela sempre decide o
sentido da presença ao determinar o grau de visibilidade daquilo que é.
Lacan insiste nesta característica ordenadora da imagem para se perguntar : o
que acontece a um sujeito quando ele assume uma imagem de si ? Ou seja, o que
significa uma imagem de si? O primeiro sentido da imagem de si já está presente na
hipótese do espelho desde Wallon. Por vir do exterior, a imagem de si é uma
exteriorização de si. Ele é posição de si em um campo estruturado de visibilidade.”O ser
humano só vê sua forma realizada, total, a miragem de si mesmo”, dirá Lacan “fora de
si”112. Esta exteriorização é alienação (também no sentido da Entfremdung hegeliana);
não só porque o sujeito assume a imagem de um outro como sendo sua, mas também
porque estar na imagem, no caso do sujeito, é dar-se a ver para um Outro. Estar na
imagem é estar preso ao olhar do Outro. Isto significa fundamentalmente que a
experiência de produzir uma imagem corporal é alienação de si no sentido de
submissão da referência-a-si a referência-a-outro ou referência-a-si-como-um-outro. É
devido a este caráter alienante da imagem do corpo que Lacan poderá dizer : “tudo se
passa como se a imagem corporal tivesse uma existência autônoma própria, e por
autônoma quero dizer independente de uma estrutura objetiva”113.
Desta forma, a imagem aparece como dispositivo fundamental de socialização e
individuação. Por outro lado, esta teoria da formação da imagem do corpo próprio acaba
por desempenhar a função anteriormente dada por Lacan à descrição da gênese social da
personalidade.
Mas notemos principalmente como esta teoria da gênese do Eu através da
imagem do corpo é, no fundo, a descrição do Eu como lugar privilegiado de alienação.
109
LACAN, E, p. 104
110
LACAN, E., p. 104
111
LACAN, p. 95
112
LACAN, SI, p. 160
113
LACAN, Algumas reflexões sobre o ego, p. 8
Lacan quer mostrar como a formação do Eu só se daria por identificações: processos
através dos quais o bebê introjeta uma imagem que vem de fora e que é oferecida por
um Outro. Assim, para orientar-se no pensar e no agir, para aprender a desejar, para ter
um lugar na estrutura familiar, o bebê inicialmente precisa raciocinar por analogia,
imitar uma imagem na posição de tipo ideal adotando, assim, a perspectiva de um outro.
Tais operações de imitação não são importantes apenas para a orientação das funções
cognitivas, mas têm valor fundamental na constituição e no desenvolvimento
subseqüente do Eu em outros momentos da vida madura. O que levava Lacan a afirmar
que “nada separa o eu de suas formas ideais” absorvidas no seio da vida social. Pois: “o
eu é um objeto feito como uma cebola, podemos descascá-lo e encontraremos as
identificações sucessivas que o constituíram”114. O que nos lembra que não há nada de
próprio na imagem do si. Experiências de estranhamento diante de imagens do corpo
próprio em fotografias e espelhos seriam manifestações fenomenológicas exemplares
desta natureza alienante da imagem de si. Fantasmas de despedaçamento do corpo, tão
comum em crianças com menos de 5 anos, nos fornecem outro exemplo da precariedade
do enraizamento da imagem corporal.
Neste sentido, Lacan pode falar da constituição paranóica da própria gênese do
Eu porque se trata de mostrar como a autonomia e a individualidade, atributos
essenciais à noção moderna de Eu, são apenas figuras do desconhecimento em relação a
uma dependência constitutiva ao outro. Acreditamos que nosso Eu é o centro de nossa
autonomia e auto-identidade. No entanto, sua gênese demonstra como, nas palavras de
Rimbaud, “Eu é um outro”. Daí a noção, central em Lacan, de que a verdadeira função
do Eu não está ligada à síntese psíquica ou à síntese das representações, mas ao
desconhecimento de sua própria gênese e à projeção de esquemas mentais no mundo.
114
Jacques Lacan, SI, p. 194
Curso Lacan
Aula 7
Na segunda parte do texto, esta que vai do parágrafo 11 ao parágrafo 17, Lacan
irá mostrar como a verdade função desta imagem do corpo próprio consiste em:
“estabelecer uma relação do organismo à sua realidade – ou, como se diz, do Innenwelt
ao Umwelt”118. Notemos que, da mesma forma que a personalidade fora definida, na tese
de doutorado, como uma estrutura der relações ao meio ambiente, a imagem aparece
como o que permite estabelecer relações entre o organismo e sua realidade. A fim de
expor o que ele entende por isto, Lacan convoca duas teorias e um fato biológico
115
LACAN, E, p. 95
116
MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, p. 118
117
LACAN, E, p. 94
118
LACAN, E., p. 96
referente ao poder formador da imagem. As teorias são: a teoria dos meios de Jakob von
Uexküll (base para a formação do conceito lacaniano de Imaginário) e a teoria do
mimetismo de Roger Caillois.
Sobre o primeiro ponto, Lacan insiste haver uma correlação entre
comportamento animal e comportamento humano no que diz respeito a relação à
imagem. Vimos como biólogos como Leonard Harrison Matthews (1901-1986) e Rémy
Chauvin (1913- ) demonstraram que, no reino animal, a simples presença de imagens
acarreta modificações anatômicas e fisiológicas profundas. Estes fatos, diz Lacan, se
inseriam em uma ordem de “identificação homeomórfica”, ou seja, desta tendência de
animais a responderem a formas visuais que lhes assemelham.
Todas estas considerações sobre a imagem podem nos explicar melhor o que
Lacan entende por Imaginário : uma das três instâncias, juntamente com o Simbólico e
o Real, que dão conta do campo possível de experiências subjetivas.
A grosso modo, podemos dizer que o Imaginário é aquilo que o homem tem em
comum com o comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens ideais que
guiam tanto a relação do indivíduo com seu meio ambiente próprio quanto o
desenvolvimento de sua personalidade. O Simbólico é o domínio da organização
estrutural da vida social. Como Lacan subordina a sociedade e a cultura à linguagem, a
ordem simbólica será um conjunto de significantes que determinam o lugar que cada um
pode ocupar no interior da vida social. Já o Real não é, como poderia parecer, a
dimensão da experiência imediata. Sua definição é negativa : ele é aquilo que não pode
ser representado por um significante nem ser formalizado por uma imagem. Ele aparece
apenas como “ponto de excesso”.
Nós voltaremos várias vezes a esta distinção fundamental no pensamento
lacaniano. Por enquanto, devemos ter mais clareza a respeito da tópica do Imaginário e
sua lógica de funcionamento, isto a fim de compreender melhor as críticas lacanianas à
capacidade cognitiva do eu.
Nós vimos algumas características fundamentais da imagem segundo Lacan : ela
teria uma função formadora para além de uma mera função informativa, ela teria o valor
de Gestalt – princípio global de organização e desenvolvimento, ela seria libidinalmente
investida devido ao fato de fazer parte de um drama no qual se narra a história do
processo de sociabilização do desejo do sujeito. O sujeito investe libidinalmente
imagens que narram a história do seu próprio desejo, de onde se segue um círculo
narcísico fundamental. O que o sujeito vê nas imagens é o drama de seu desejo.
Devemos ter em mente tais características da imagem se quisermos compreender a
noção lacaniana de Imaginário.
Ao constituir a tópica do Imaginário, Lacan apenas insiste que há uma dimensão
da experiência humana que é relação com imagens. Mas a teoria lacaniana do
Imaginário não se reduz apenas a uma apropriação psicológica das funções ligadas a
imaginação. Sua concepção peculiar da imagem, na qual são sublinhadas sua função
formadora e seu caráter narcísico, trazem consequências profundas na compreensão
desta dimensão da experiência humana guiada por imagens.
A título de comparação, podemos lembrar algumas características da teoria
cartesiana da imaginação. Tanto em Lacan quanto em Descartes a imagem é um modo
de conhecimento através do corpo. O corpo é afetado via sensibilidade e a
interiorização de tais afetos gera uma categorização espaço-temporal do diverso da
experiência sensível através de um sistema de imagens. Todos aqueles que ainda têm em
mente a Regra XII lembram que a imaginação é, conjuntamente com o entendimento, a
sensação e a memória, uma das quatro faculdades do conhecimento. Notemos que
Descartes usa indistintamente imaginatio (latim) e phantasia (fantasia) que, em
Aristóteles, significa: “a imagem mental em virtude da qual dizemos ter uma espécie de
aparição diante de nós”119.
Mas enquanto a sensação e necessariamente passiva (Descartes utiliza a
metáfora da cera que recebe a figura que um sinete lhe imprime), a imaginação é, ao
mesmo tempo, ativa e passiva. Seguindo uma trilha clássica, Descartes afirma que :
“imaginar não é outra coisa que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa
corporal”. Esta imagem pode estar presente enquanto a coisa está ausente, o que mostra
como a memória (corporal) seria apenas um caso da imaginação. Estando a coisa
ausente, a imaginação pode compor imagens, como um pintor compõe novas formas a
partir de operações de associação e de similaridade, reforçando cores, sensações etc.
Devido a esta liberalidade criadora, a imaginação não pode fornecer uma via de acesso
ao verdadeiro conhecimento das coisas. O verdadeiro conhecimento, este que se dá via
entendimento, é radicalmente desprovido de imagem e de afinidade mimética.
A perspectiva lacaniana parte de uma anti-realismo mais radical. De fato, Lacan
concorda com a tese clássica de que a imagem é resultado de modos de afecção do
corpo. Ou seja, o Imaginário é um conhecimento através do corpo. Mas Lacan insiste
que o corpo já traz, através da sua própria gênese, um mundo. Este ponto nos remete às
apropriações lacanianas dos estudos de etologia animal de Jacob von Uexküll. Von
Uexkull demonstrou que o corpo, ou ainda o mundo interno (Innenwelt) é, na verdade,
relação à um Umwelt, relação ao meio ambiente próprio de cada espécie viva e que
determina a configuração dos objetos presentes no mundo de cada espécie.
Devemos insistir nesta idéia de meio ambiente próprio. Isto significa, como bem
viu Merleau-Ponty que “O Umwelt marca a diferença entre o mundo tal como ele existe
em si e o mundo enquanto mundo deste ou daquele ser vivo (...) O Umwelt é o mundo
implicado pelos movimentos do animal e que regula seus movimentos por sua própria
estrutura”120 O Umwelt é assim uma espécie de bolha que envolve cada espécie.
Princípio holista que também estaria presente no mundo humano (cuja ‘natureza’ é
fundamentalmente social). Desta forma, ao lembrar que o corpo é produzido através da
produção de um Umwelt. Lacan lembra que, quando tentamos pensar o corpo, nosso
pensamento não se volta em direção a um organismo que simplesmente reage a certas
excitações físico-quimicas vindas do exterior (tropismos). Pensar o corpo é desvelar um
modo de percepção e de ação que corta o contínuo da existência para configurar um
meio ambiente vivido. Esta configuração é conformação à imagem. Lacan pode falar,
juntamente com Merleau-Ponty, que : “O corpo é veículo do ser no mundo, e ter um
corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos
projetos e empenhar-se continuamente neles”121. Mas, no seu caso, isto significa dizer
que o corpo é uma aparentemente contraditória percepção ativa que constitui seus
objetos no mesmo movimento que os percebe. A percepção não é passiva mas, desde o
início, é atividade projetiva de conformação do contínuo sensorial a imagens de objetos.
Daí porque Lacan pode falar que : “a imagem de seu corpo é o princípio de toda
unidade que o sujeito encontra nos objetos”122.
Mas se o corpo é um sujeito que age e configura suas próprias modalidades de
percepção, não devemos esquecer que, para Von Uexkull, ele o faz a partir do que o
biólogo chamava de Bauplan, a saber, um campo gerador de comportamentos que, por
sua vez, está subordinado a um Naturfaktor: algo muito próximo de uma espécie de
natureza-sujeito ou, ainda, natureza-em-si que dirige o curso do mundo. Mas para além
119
ARISTOTELES, De anima, 428a
120
MERLEAU-PONTY; La nature, p. 220
121
MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, p. 122
122
LACAN, SII, p. 198
desta queda em uma concepção romântica da natureza, fica a necessidade lógica de
fundar a percepção do corpo e de sua unidade a partir de um plano transcendente que
regule as relações do sujeito-corpo com o mundo que o envolve. É neste campo
transcendente que Lacan colocará a imago.
“Tais imagens típicas aparecem nos sonhos, assim como nas fantasias. Podem
mostrar, por exemplo, o corpo da mãe tendo uma estrutura em mosaico, como
um vitral. Mas frequentemente, a aparência é de um quebra-cabeça, com partes
separadas de um corpo, de um homem ou de um animal arrumado
desordenadamente. Ainda mais significativo para nosso propósito são as
imagens incongruentes nas quais os membros disjuntos são rearranjados como
estranhos troféus, troncos cortados em fatias e recheados com as coisas mais
inverossímeis, acessórios bizarros em posições excêntricas, reduplicação do
pênis, imagens da cloaca representadas como uma intervenção cirúrgica,
frequentemente acompanhadas em pacientes masculinos por fantasias de
gravidez”128.
125
Ver, por exemplo, BJORKLUND, David F., The Role of Immaturity in Human Development,
Department of Psychology, Florida Atlantic University, September 1997, pp. 153-169, American
Psychological Association, Psychology Bulletin, Vol. 122 (2).
126
LACAN, E. P. 97
127
LACAN, Some reflections about the ego
128
idem,
produzida pela imagem especular. Elas são marcas de um sofrimento produzido pela
identidade do Eu e que se volta, na verdade, como ímpeto de destruição da força
sintética do Eu. Não é um simples acaso o fato de Lacan citar neste momento as
pinturas de Jeronimus Bosch, esta mesma obra que, na aurora do avento do Eu
moderno, parece insistir em uma força de desagregação, de confusão híbrida de formas
que será recuperada pela “insatisfação surrealista” como violência contra uma realidade
reificada.
Neste ponto, vale a pena lembrar como Lacan insiste que o modo de relação
entre Innenwelt e Umwelt pode ser pensado de forma distinta do holismo proposto por
von Uexküll. Algo que um próximo do surrealismo, o ensaísta Roger Caillois, havia
mostrado através de sua teoria do mimetismo.
Em sua teoria, Roger Caillois procurava dissociar o mimetismo animal de uma
simples reação de defesa ou adaptação: “De uma maneira geral, nós encontramos
numerosos restos de insetos miméticos nos estômagos dos predadores”129. Prova disto é
que a caça animal se dá normalmente através do odor enquanto o mimetismo é um
fenômeno visual. Na verdade, o mimetismo seria um encantamento que se passa na
experiência visual do próprio inseto. Tal encantamento procura não exatamente a
adaptação, mas a assimilação ao meio ambiente. Caillois falará em despossessão do
sujeito pela exterioridade do meio, inscrição do espaço no corpo. Daí porque ele pode
articular tal assimilação à idéia de psicatenia, termo clínico sintetizado por Pierre Janet
para dar conta de estados mórbidos marcados pela perda da capacidade de síntese do Eu
e que iriam da simples fadiga à loucura passando por diversos graus de sentimento do
vazio. Por isto, o mimetismo deveria ser compreendido como uma espécie de “tendência
a transformar-se em espaço” que poderia explicar distúrbios do “sentimento de
personalidade enquanto sentimento de distinção do organismo no meio ambiente”
(2002, pp. 110-111). A fim de descrever o regime de experiência próprio ao mimetismo,
Caillois dirá então:
Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele não
é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado de
coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado inorgânico,
Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal ou a matéria,
mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um degrau”, dirá
Caillois (2002, p. 113). Caillois vê nas pinturas de Dali o exemplo desta assimilação
mimética do animado ao inanimado.
Lacan vê aqui uma maneira privilegiada de colocar o problema da significação
do espaço para o organismo. A assimilação ao espaço aparece como signo da
despossessão de si que serve não apenas para tematizar a força alienante da
identificação com o que vem do exterior, mas também para mostrar como algo neste
129
CAILLOIS, Le mythe et le monde, p. 105
130
CAILLOIS, idem. P. 111
processo de identificação imaginária mobiliza um impulso de des-identificação que
continuará sempre presente no campo da experiência humana.
.
O texto da aula 8 infelizmente desapareceu para sempre
Curso Lacan
Aula 9
Lacan começa seu texto lembrando das condições de sua escrita. Trata-se de uma
conferência para o grupo de filosofia da Federação dos Estudantes de Letras. Que a fala
de um psicanalista seja endereçada a tal público é algo que não deixa de remeter a uma
questão maior referente a formação de analistas desde Freud. Em um texto intitulado A
questão da análise leiga, Freud lembrava que um psicanalista precisava ter formação
dupla. Por um lado, conhecimentos sobre a “psicologia profunda”, assim como sobre
biologia (como introdução às reflexões sobre a vida sexual) e sobre o quadro de doenças
da psiquiatria. Por outro, aquilo que a atividade de formação de médicos não ensina, ou
seja: história da cultura, mitologia, psicologia das religiões e ciências da literatura. Dirá
Freud: “Sem uma boa orientação nestes domínios, o psicanalista é incapaz de
compreender uma grande parte de seu material”131. O que estas áreas distintas têm em
comum, dirá Lacan, é a análise da produção simbólica que dá forma à vida social. Esta
dimensão da produção simbólica e sua interferência nas ditas afecções mentais dos
sujeitos é, de uma maneira peculiar, o objeto da análise do texto lacaniano.
Trata-se de uma “maneira peculiar” porque Lacan aborda tal produção simbólica
a partir de uma perspectiva estrutural. Ele quer partir da estrutura geral que organizaria
a multiplicidade das produções simbólicas nos campos da literatura, dos mitos, das
formações religiosas e, por fim, da cultura. Ou seja, ele quer reduzir todos estes sistemas
a uma só estrutura geral que, a partir de agora, será o elemento definidor e organizador
de toda realidade social possível. Esta estrutura geral que funciona como elemento
131
FREUD, GW XIV, p. 281
definidor e organizador de toda realidade social possível não é outra coisa que a
linguagem.
Colocações desta natureza são incompreensíveis se não compreendermos melhor
de onde elas vieram. Isto nos obriga a uma longa digressão a respeito do estruturalismo.
Digressão ainda mais importante se levarmos em conta que raros foram os momentos
históricos que viram configurar uma experiência intelectual como aquela que se colocou
sob a égide do estruturalismo. Experiência que realizou, à sua maneira, um verdadeiro
“programa crítico interdisciplinar” nascido da articulação cerrada entre antropologia,
psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão filosófica. Programa que, de uma
certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes como Claude Lévi-Strauss, Jacques
Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel Foucault, Roman Jakobson, entre
outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos,
significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o
parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas, campo no
qual a psicanálise lacaniana se insere. Tal redefinição partiu da defesa da lingüística
como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das ciências
humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte afirmação de
Lévi-Strauss : “No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a
lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como
as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida,
que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um
método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise” 132. Tom este
que não está ausente do texto de Lacan, quando ele fala da “posição piloto” que a
lingüística ocuparia na nova “revolução do conhecimento”133 que devíamos esperar.
Este primado da lingüística implicava um duplo efeito. Primeiro, como vemos na
afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística estrutural
inspirada por Saussure, e implementada por nomes como Jakobson (sem esquecermos
de todo o Círculo lingüístico de Praga: Troubetzkoy, Vachek entre outros), Greimas e
Hjelmslev havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto, o fato
lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema diferencial-opositivo de
unidades elementares (fonemas). Não se tratava de uma matematização no sentido
próprio àquela implementada no campo das ciências físicas, ou seja, redução dos
objetos a uma unidade comum de medida que permite a implementação de processos de
quantificação e comparação. Tratava-se de uma formalização estrutural, ou seja,
sistematização de “elementos que se especificam reciprocamente em relações” 134 e que
não têm nenhuma realidade intrínseca para além deste campo de relações. Lembremos,
por exemplo, da relação estabelecida por Saussure entre a linguagem e o jogo de xadrez.
Tratava-se de demonstrar como o valor de cada elemento era determinado através do
estabelecimento de um conjunto de regras e de sistemas de permutação : “O valor
respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo modo que na
língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos”135. Fato que levava
Saussure a afirmar, de maneira canônica, que, na ciência da linguagem: “os objetos que
132
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, p. 45. Ou ainda, como nos diz Granger : “A tentativa de
transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente definido por suas correlações a
outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo pela lingüística estrutural e
apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do conhecimento científico”
(GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
133
LACAN, Ecrits, p. 496
134
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
135
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
ela tem diante de si são desprovidos de realidade em si, ou a parte dos outros objetos a
considerar. Eles não tem absolutamente nenhum substratum de existência fora de suas
diferenças ou das diferenças de toda forma que o espírito encontra um meio de atribuir à
diferença fundamental”136.
Lacan comentará sua leitura de Saussure ao apresentar aquilo que ele chama de
algoritmo fundador da disciplina lingüística, a saber, S/s. O elemento mais importante
neste algoritmo é a barra que separa significante (o suporte material da língua) e o
significado. Pois trata-se de mostrar como estamos diante de duas “ordens distintas e
separadas inicialmente por uma barreira resistente à significação”. No entanto, é ao
assumir esta distinção que poderemos compreender qual função do significante na
“gênese do significado”, como ele “entra de fato no significado”. Ou seja, a afirmação
de que significante e significado são ordens distintas visa, na verdade, esvaziar um dos
pólos (o do significado) a fim de mostrar como é o significante, seu sistema de relações,
que gera significado. Como dirão alguns comentadores: “trata-se de fazer o significante
sofrer um deslocamento tal que não se possa mais, doravante, tomá-lo como um
elemento do signo, mas que seja preciso, debaixo do antigo nome, visar ou encarar um
conceito (ao menos) paradoxal: aquele de um significante sem significado”137.
Vale a pena nos determos neste ponto comumente chamado de “problema da
arbitrariedade do signo”. Sua importância para Lacan é, acima de tudo, clínica, já que se
trata de compreender como opera a linguagem em sua relação à referência. Questão
maior para uma clínica, como a psicanalítica, que trabalha principalmente através de
simbolizações e redescrições. No entanto, gostaria de fazer isto apenas na próxima aula.
Inconsciente estrutural
136
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
137
NANCY, Jean-Luc et LACOUE-LABARTHE, Pierre; O título da letra; pag. 47
138
LÉVI-STRAUSS,O cru e o cozido, p. 31
suas formas e de suas condutas”139. Na verdade, ao insistir na dimensão de exterioridade
das regras sociais em relação à consciência, os estruturalistas seguiam, à sua maneira
uma trilha aberta por Durkheim. Lembremos do que Durkheim diz a respeito do fato
social: “Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo, de cidadão, quando me
desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e
de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos
que me são próprios, sentido-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser
objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação (...) estamos,
pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem
em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder
de coerção em virtude do qual se lhe impõem” 140. Ou seja, trata-se de compreender que
não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos que realmente interessa, mas a
determinação desta estrutura prévia que coage os sujeitos, a partir do exterior, a agir de
certa forma e a assumir certos lugares na vida social. Estrutura que totaliza e unifica a
multiplicidade de fatos dispersos na vida social.
No caso de Lévi-Strauss, esta estrutura social não era composta exatamente por
um conjunto positivo de regras, mas por relações diferenciais e opositivas que
determinam possibilidades de combinatória e interditos de transposição, tal como as
relações que organizariam os fonemas. Ou seja, esta estrutura era a própria linguagem
enquanto sistema geral de regras de ordenamento. A recompreensão do objeto das
ciências humanas implicava, assim, uma teoria da sociedade que transformava a
linguagem no fato social central, já que todos os fatos sociais: trocas matrimoniais,
processos de determinação de valor de mercadorias, articulação do ordenamento
jurídico, seriam todos estruturados como uma linguagem. Isto nos explica a razão pela
qual Lacan insiste que toda experiência comunitária, todo drama histórico (lembremos
como a noção de drama desempenhava um papel importante na psicologia concreta de
Politzer), estava subordinado às estruturas elementares ordenadas pela linguagem como
sistema de regras. Daí a necessidade lacaniana de lembrar que a distinção entre natureza
e cultura deveria ser compreendida através de uma dupla operação onde a cultura era
reduzida ao campo simbólico da linguagem e onde aparecia a sociedade a fim de
permitir a distinção entre sociedades com linguagem (as sociedades humanas) e
sociedades desprovidas de linguagem (as sociedades naturais).
Desta forma, as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX
reconstruíram seu objeto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e
parâmetro. Podemos ver claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de
Lévi-Strauss : “No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no
estudo de outros problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante
à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de
significação; como eles só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem
em sistemas; os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas fonológicos´, são
elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em
regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de
parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de
parentes etc. faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do
jogo de leis gerais, mas ocultas”141.
Um terceiro elemento deve ser acrescentado à compreensão do caráter prévio da
estrutura lingüística. Ele está bem sintetizado por Merleau-Ponty: “A função simbólica
139
FOUCAULT, Lês mots et lês choses, p. 376
140
DURKHEIM, O que é fato social?, p. 48
141
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, p. 48
antecede o dado”142. Ou seja, ela não se conforma aos dados naturais, ao contrário, ela
estabelece previamente o campo possível de experiências no interior do qual a própria
noção de “dado” se disponibilizará. Daí porque Lévi-Strauss poderá afirmar: “os
símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” 143. Ou ainda, como lembrará
Lacan: “A função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é
humano tem de ordenar-se”144.
Mas notemos aqui um problema central. Se aceitarmos que as condutas do
sujeitos, mesmo as condutas que determinam as relações a si, são determinadas por
estruturas preexistentes e responsáveis pela configuração do campo de experiências
possíveis, então a particularidade das histórias individuais perde seu espaço.
E, de fato, Lévi-Strauss chegará a uma conseqüência maior para o estruturalismo
que nos leva diretamente à definição da noção de inconsciente. Trata-se de sublinhar o
caráter inconsciente da estrutura, pois: “ De um lado, com efeito, as leis da atividade
inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (podemos tomar consciência
delas, mas como objeto); e de outro, no entanto, são elas que determinam as
modalidades dessa apreensão”145. Mas este inconsciente das estruturas que determinam
previamente a conduta dos sujeitos implica em uma modificação brutal na visão
“tradicional” de inconsciente. Lévi-Strauss é consciente a respeito de tal mudança: “O
inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o
depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele
se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica,
especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens se exerce segundo
as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto dessas leis” 146. Como lembra
astutamente Lévi-Strauss, o vocabulário através do qual cada um escreve sua história
pessoal, vocabulário cujos elementos semânticos são prenhes de significações
individuais: “só adquire significação, para nós próprios e para os outros, na medida em
que o inconsciente o organiza segundo suas leis e faz dele, assim, um discurso”147.
É isto que Lacan tem em mente ao insistir que o inconsciente freudiano não era o
refúgio do inefável, de pulsões não socializadas e de conteúdos mentais privilegiados.
Ao contrário, ao reconstruir o inconsciente através da estrutura de transposição,
deslocamento, condensação e a figuração presente na Interpretação dos sonhos, Lacan
encontrava a chave que enfim aproximava Freud de uma noção não-psicológica de
inconsciente.
Vejamos isto com mais calma. No que diz respeito à interpretação dos sonhos (a
famosa "via régia para o inconsciente", segundo Freud), acredita-se normalmente que a
interpretação analítica consiste na transcrição (Übertragung) do pretenso pensamento
latente inconsciente ao texto manifesto do sonho. Se assim fosse, a psicanálise não
passaria realmente de uma estratégia hermenêutica de reintegração do sentido à esfera
da comunicação pública. Nesta leitura, esquece-se de tirar as conseqüências da
afirmação de Freud: quase todos os pensamentos latentes do sonho “não diferem em
nada dos produtos de nossa atividade consciente habitual (bewussten Seelentätgkeit) (...)
eles merecem o nome de pensamentos pré-conscientes e podem efetivamente terem
sidos conscientes em qualquer momentos de nossa vida desperta "148.
142
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
143
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
144
LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
145
LÉVI-STRAUSS, ibidem, p. 28
146
Idem, Antropologia estrutural, p. 234
147
idem, p. 235
148
FREUD, Einige Bernerkungen über den Begriff des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 438
Este é um dado fundamental pois, se quase todas os pensamentos latentes são
pedaços de um pensamento pré-consciente é porque o verdadeiro elemento inconsciente
no sonho encontra-se no processo de trabalho do sonho; quer dizer, na pura forma de
articulação significante que produz o conteúdo manifesto e obedece ao ritmo do
automatismo de repetição. O que há de inconsciente no pensamento não é exatamente o
pensamento latente mas a pura forma do pensamento. É Freud quem nos coloca nesta
via. Ao afirmar que os pensamentos latentes do sonho não diferem em nada dos
produtos da nossa atividade consciente habitual, ele lembra que: "ao entrar em conexão
(Verbindung) com as tendências inconscientes (...) eles são submetidos à leis que
governam a atividade inconsciente"149. É a aplicação de tais leis, o trabalho de
combinatória, distorção e recomposição dos conteúdos latentes ou, ainda, o trabalho do
desejo que aparece como o processo determinante da natureza inconsciente.
A este respeito, Lacan lembra dos sistemas de articulação descritos por Freud no
processo primário. Entstellung (transposição/desfiguração), Verdichtung (condensação –
ou se quisermos, sobredeterminação), Verschiebung (deslocamento) e Rucksicht auf
Darstellbarkeit (consideração com a figuração) são descritos como se fossem processos
próprios a toda e qualquer estrutura lingüística. É pensando neles que Lacan pode falar
de uma instância da letra no inconsciente e afirmar: “Desde a origem, desconheceu-se o
papel constituinte do significante no estatuto que Freud logo fixou ao inconsciente e
segundo modalidades formais as mais precisas”150.
Condensação e deslocamento permitem aproximações mais fáceis já que se
referem a processos que ocorrem no eixo sincrônico e diacrônico da linguagem. De fato,
seguindo uma chave tipicamente estruturalista, Lacan reduz toda a dinâmica da
linguagem a dois únicos processos de articulação entre elementos lingüísticos. Neste
ponto, Lacan segue principalmente Jakobson, no texto Dois aspectos da linguagem e
dois tipos de afasia151.
Neste texto clássico, Jakobson insiste que todo signo linguístico implica dois
modos de arranjo. Um é a combinação entre termos de valores distintos que se articulam
na criação de um contexto de significação. Outro é a seleção entre termos de valores
similares que, por isto, podem ser substituídos um pelo outro. Tais operações,
combinação e seleção, recobrem os dois eixos da linguagem, tal como eles forma
pensados por Saussure, a saber, o eixo diacrônico e o eixo sincrônico. Jakobson usa
esses dois aspectos da linguagem para dar conta de duas estruturas distintas de afasia: a
afasia de similaridade e a afasia de contigüidade.
Combinação e seleção, por sua vez, dão corpo as duas figuras lingüísticas
fundamentais: a metonímia e a metáfora. Por um lado, a combinação significa que
elementos lingüísticos de valores distintos serão combinados entre si formando uma
relação de contigüidade própria à figura de estilo da metonímia. Tal contigüidade entre
elementos lingüísticos nos mostra que a significação irá sempre se deslocar entre termos
contíguos. É isto que está formalizado na fórmula f(S...S’)S = S(...)s. Se digo, por
exemplo: “Um par de olhos me seguia por toda a casa”, está claro que a constituição do
sentido exige um deslocamento em direção a um termo linguístico que aqui é contíguo
ao termo “um par de olhos” como, por exemplo, “pessoa”. Notemos ainda que estas
relações de contigüidade podem ser espaciais, temporais ou obedecerem à estrutura
parte/todo. Em todos os casos, temos operações de produção de significação através da
atualização de referências presentes no interior do contexto da fala.
149
FREUD, idem, p. 438
150
LACAN, Ecrits, p. 512
151
JAKOBSON, Roman; Linguística e comunicação, pp. 34-63
Usando a idéia de distúrbios na capacidade do sujeito em construir relações de
contigüidade própria à metonímia, Jakobson procura dar conta daquilo que ele chama de
afasia de contigüidade. Trata-se de uma afasia marcada pela deficiência quanto à
capacidade de criação de contexto a partir de operações de contigüidade. Como
resultado: “a extensão e a variedade das frases diminuem. As regras sintáticas, que
organizam as palavras em unidades mais altas, perdem-se; esta perda, chamada de
agramatismo, tem por resultado fazer a frase degenerar num simples “monte de
palavras”152.
Se a combinação fornece a base de compreensão da figura de estilo da
metonímia, o mesmo vale para a metáfora e a operação de seleção. A seleção indica que
elementos lingüísticos de valores semelhantes são selecionados, sendo que apenas um
estará presente na mensagem. Os demais estão unidos ao primeiro in absentia, como
membros de uma série mnemônica virtual. Desta forma, a condensação cria uma relação
de similaridade própria da figura retórica da metáfora. É isto que está expresso na
fórmula f(S’/S)S = S(+)s. Notemos que não se trata mais de articular lingüisticamente
contigüidades espaciais, temporais ou parte/todo. Os termos são similares em suas
funções. Se digo: “O amor é uma pedrinha rindo ao sol”, não há nenhuma relação de
continuidade entre o amor e as pequenas pedras que riem ao sol, a não o fato de que elas
se substituem em uma construção metafórica como termos com valores funcionais
idênticos que se condensam.
Jakobson, por sua vez, irá mostrar como há uma afasia fundada na incapacidade
do sujeito em articular lingüisticamente relações de similitude. Trata-se dos afásicos de
similaridade. Nestes casos, o sujeito não consegue enunciar proposições de identidade.
Assim, por exemplo: “instado a responder o que era um solteiro, o doente não
respondeu e ficou aparentemente angustiado. Uma resposta como “solteiro é um homem
não-casado” ou “um homem não casado é solteiro” teria constituído uma predicação
equacional e assim uma projeção de um grupo de substituição, do código lexical da
língua portuguesa no contexto da mensagem em questão” 153. Ou ainda “Quando se
apresentou a um paciente de Lotmar o desenho de uma bússola, ele respondeu: “Sim, é
um ... sei do que se trata mas não consigo lembrar-me da expressão técnica ... Sim ...
direção ... para indicar direção ... uma agulha imantada indica o Norte”154.
Lacan verá nestes dois processos lingüísticos a chave para a explicação de
diversos processos analíticos. Primeiro, condensação metafórica e deslocamento
metonímico serão elevados à condição de processos centrais para a interpretação da
dinâmica das formações do inconsciente. A frase “o inconsciente é estruturado como
uma linguagem” só foi possível porque Lacan encontrou, nos mecanismos de trabalho
dos sonhos, operações similares à combinação diacrônica e à seleção sincrônica.
Segundo, o uso desses tropos retóricos para falar do inconsciente demonstra como
Lacan procura interpretar a escritura dos sonhos a partir de uma análise estilístico-
formal. Quer dizer, a interpretação psicanalítica deve tender a uma análise estilística do
inconsciente155 que, no lugar de apreender o sentido dos significantes primordiais aos
quais a pulsão se fixou, privilegie a análise das modalidades de passagem de um
152
idem, p. 51
153
idem, p. 44
154
idem, p. 45
155
É uma análise estilística do inconsciente que encontramos, por exemplo, no imperativo psicanalítico de
análise da transferência. Pois analisar a transferência é interpretar a forma sob a qual a narrativa do
paciente é entregue (o que Freud tinha percebido claramente em um texto como Rememoração, repetição
e perlaboração). Aqui, podemos sentir toda a pertinência da afirmação lacaniana: "o estilo é o homem
para quem se endereça". Ë na dimensão do estilo, da forma que toma a narrativa, que podemos ter acesso
a este Outro, sujeito suposto saber encarnado no analista, ao qual o sujeito é mais ligado que à si mesmo
significante a outro. Quer dizer, menos as escavações arqueológicas do texto consciente
e mais o trabalho do desejo que se manifesta na pura articulação significante. Pois,
como dizia Lacan, a partir dos anos 60: "não é o efeito de sentido que opera na
interpretação, mas a articulação, no sintoma, de significantes (sem sentido algum) que
estão aprisionados nele"156. Assim, não se trata mais de dar à psicanálise a tarefa de
reconstituir o sentido da história do sujeito através da narrativa integral do Todo de sua
história - até porque, o momento histórico de tal narrativa não é mais o nosso. Na
verdade, trata-se de individualizar a articulação significante que compõe o sintoma e
fazer com que o sujeito se reconheça em tal modo de articulação. Levá-lo a vivenciar,
como estilo, aquilo que ele sofre como sintoma. Veremos mais à frente o que isto pode
significar.
156
LACAN, Ecrits, p. 842
Curso Lacan
Aula 10
157
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 80
158
idem, p. 82
159
idem, p. 93
160
MILNER, L~amour de la langue, p. 58
Nós precedemos exatamente como um geômetra que gostaria de demonstrar as
propriedades do círculo e da elipse sem ter dito o que ele designa por círculo e
elipse”161.
É neste ponto que Saussure insiste no princípio fundamental a respeito do signo:
sua arbitrariedade. “Assim a idéia de “irmã” não é ligada por relação interior alguma à
seqüência de sons da palavra francesa “s-ö-r” que lhe serve de significante, ela poderia
ser representada por qualquer outra palavra”162. Mas, a princípio, através do problema
da arbitrariedade do signo, Saussure pareceria estar indicando um problema interno à
língua, e não um problema externo à mesma. Pois em momento algum ele afirma que o
signo é arbitrário na sua relação com a referência, mas que a relação entre significado e
significante é arbitrária: “o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao
significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” 163. Tanto b-ö-f
quanto o-k-s representam o mesmo conceito (significado), o que indicaria o caráter
arbitrário da relação. E sendo absolutamente arbitrária, a língua perderia um dos
motores de seu processo de mudança, pois não há razão alguma para preferir boef ou
ochs: “Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da
tradição”164.
No entanto, expulsar um problema pela porta da frente não nos garante que ele
não irá retornar pela porta dos fundos. De fato, Saussure procura a todo momento
esvaziar o problema da relação entre linguagem e referência. No entanto, ela acaba
voltando nesta discussão a respeito do arbitrário do signo. Pois, afirmar que a relação
significado/significante é arbitrária nos leva necessariamente a afirmar que a relação
signo/referência é arbitrária. Os significantes são arbitrários porque eles se referem ao
mesmo conceito. Mas o conceito sempre sustenta-se em uma expectativa de denotação
da referência. Não falamos apenas algo, queremos sempre falar sobre algo. Eles são
arbitrários por se referirem a mesma realidade extra lingüística. Ou seja, não é possível
abstrair o problema do arbitrário de uma perspectiva externalista. Tudo se passa como
se eu pudesse identificar a existência de uma espécie natural (natural kind) e afirmar
que ele pode ser representada tanto por b-ö-f quanto por o-k-s. A noção de arbitrário
pressupõe a possibilidade de uma comparação entre os conteúdos de representações
mentais e objetos, propriedades e relações existentes em um mundo que seria
largamente independente de nosso discurso. Nós entramos assim no famoso paradoxo
presente na questão profissional posta pelo ceticismo, qual como ela foi formulada por
Richard Rorty : “Em que estamos autorizados a acreditar que algo de mental pode
representar algo de não-mental? Como saber se o que o olho do espírito vê é um espelho
(e pouco importa que ele seja deformante ou encantado) ou um véu)?"165.
De qualquer forma, a questão central aqui é: a arbitrariedade do signo indica, no
fundo, uma arbitrariedade na relação entre linguagem e referência, facilmente legível no
interior de uma teoria convencionalista da linguagem. Isto, Jean Claude Milner
compreendeu claramente ao afirmar, sobre Saussure: "L'arbitraire recouvre de façon
exactement ajustée une question qui ne sera pas posée: qu'est-ce que le signe quand il
n'est pas le signe? qu'est-ce que la langue avant qu'elle soit la langue? - soit la question
qu'on exprime couramment en termes d'origine. Dire que le signe est arbitraire, c'est
poser la thèse primitive: il y a de la langue"166
161
SAUSSURE, Écrits de linguistique générale, Paris: Gallimard, 2002, p. 51
162
SAUSURRE, Curso, p. 82
163
SAUSSURE, Curso, p. 81
164
idem, p. 88
165
RORTY, L'homme spéculaire, Seuil: Paris, 1990, p. 60.
166
MILNER, L'amour de la langue, Paris: Seuil, 1978, p. 59.
Mas insistamos neste ponto. Para esvaziar a questão a respeito da referência e da
designação, ou seja, a questão da exterioridade da linguagem, faz-se necessário explicar
como as significações são produzidas, para além de uma confrontação entre linguagem
e referência. E é aqui que entra a noção central de “sistema”, já que será a organização
da língua como um sistema fechado (Saussure falará da língua como sistema arbitrário
de signos) que responderá pelo processo de produção de significações. É da noção
saussureana de “sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A língua é um
sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade
sincrõnica”167. Sendo que sincronia quer dizer aqui aquilo que nos dá a configuração de
um estado mais ou menos estável da língua (diacronia como a percepção histórica dos
processos de modificação dos elementos que compõem a língua).
Dizer que a língua organiza-se como um sistema significa insistir que devemos
compreende-la a partir do seu interior, ou seja, a partir de suas leis estruturais de
funcionamento. “Cumpre pois partir da totalidade solidária para obter, por análise, os
elementos que encerra”168. O modelo desta totalidade foi fornecido a Saussure pelo
modo de organização dos fonemas no interior da língua. É ele também que inspira
Lacan quando afirma que as unidades da linguagem: “submetem-se à dupla condição de
reduzir-se a elementos diferenciais últimos e compô-los segundo leis de uma ordem
fechada”169.
O fonema é a menor unidade lingüística capaz de diferenciar dois termos de
significação diversa: por exemplo bato, pato, mato. Esta distinção, significativa no
interior da língua portuguesa, não tem nenhuma realidade em si. Os fonemas não têm
nenhuma realidade em si, mas só existem no interior das relações nas quais entram e nas
quais se determinam reciprocamente. Daí porque Saussure poderá afirmar que: “Os
fonemas são, antes de tudo, entidades opositivas, relativas e negativas” 170. Eles só têm
realidade no interior de uma relação de oposição e não são nada fora delas. Tal como em
uma rede, mudança em uma determinada relação fonemática irá influenciar, de uma
forma sutil ou visível, outras relações opositivas. Para um pensamento que estava à
procura do esvaziamento do problema da designação e da referência, esta idéia de
elementos que não têm nenhuma realidade em si era extremamente sugestiva.
Como Lacan compreenderá então a teoria saussureana do signo? Primeiro,
lembremos da maneira que ele define a estrutura do signo. Para tanto, ele se serve do
“algoritmo” S/s que se lê “significante sobre significado, este sobre respondendo à barra
que separa as duas etapas”171. Notemos a insistência nesta idéia de uma barra que separa
significante e significado. Ela indica que significante e significado seriam “ordens
distintas e separadas inicialmente por uma barreira resistente à significação”. Mas esta
barreira é salientada para expor a amplitude do significante na gênese do significado ou
ainda “como o significante entra no significado”. De uma certa forma, seria a relação
entre significantes que produziria aquilo que normalmente entendemos por significado.
Como bem nos lembra Nancy/Labarthe: “trata-se de fazer o significante sofrer um
deslocamento tal que não se possa mais, doravante, tomá-lo como um elemento do
signo, mas que seja preciso, debaixo do antigo nome, visar ou encarar um conceito (ao
menos) paradoxal: aquele de um significante sem significado”172. Ou seja, a inversão
que Lacan opera em relação à Saussure (do signo como s/S ao signo como S/s) lhe
permite insistir que a linguagem não se adapta a conceitos que já estariam
167
SAUSSURE, idem, p. 102
168
SAUSSURE, idem, p. 132
169
LACAN, E., p. 501
170
SAUSSURE, idem, p. 138
171
LACAN, idem, p. 497
172
NANCY, Jean-Luc et LACOUE-LABARTHE, Pierre; O título da letra; pag. 47
determinados, a significados que, de uma forma ou de outra, nos remeteria a referências
extra-linguísticas. Ao contrário, a linguagem produz os significados aos quais ela se
refere. Daí uma afirmação tardia como: “O significante como tal não se refere a nada, a
não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma
utilização da linguagem como liame”173.
A fim de expor este processo de produção de significado, Lacan serve-se de uma
reconstrução da figuração clássica do signo. Ao invés de um significante e um
significado, Lacan parte de dois significantes distintos e dois significados estritamente
indeterminados. Trata-se da figura de duas portas de banheiro (sem figuras) com as
inscrições “homem” e “damas” acima. Que a unidade mínima da linguagem sejam dois
significantes (e não apenas um), eis algo que Lacan deve assumir a fim de salientar
como é apenas na diferenciação opositiva entre os significantes que o significado se
produz. Por isto, e importante a Lacan lembrar desta pequena historieta na qual dois
irmãos estão em um trem e param em uma estação onde se vê as duas portas: “Veja, diz
o irmão, chegamos em Damas”. “Imbecil, diz a irmã, você não vê que chegamos em
Homens?”.
Esta pequena história serve a Lacan para afirmar, inicialmente, a primazia do
significante sobre o significado. As crianças apreendem inicialmente os significantes,
antes de apreenderem aquilo aos quais eles se refeririam. Daí esta experiência maior de
indeterminação da referência (“A que exatamente “Damas” se refere?”). No fundo,
Lacan, à sua maneira, acaba por seguir uma colocação maior de Lévi-Strauss:
Ser e linguagem
173
LACAN, Jacques; O seminário -livro XX, pag. 43
174
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss In: MAUSS, Sociologia e antropologia, São
Paulo: Cosac e Naif, 2006, p. 42
uma questão a respeito dos modos de relação entre ser e linguagem. Daí uma pergunta
especificamente lacaniana e distante do programa estrito do estruturalismo: como se dá
a relação entre ser e significante? Lembremos de Lacan afirmando que os conteúdos do
inconsciente tomam sua virtude da dimensão do ser. Isto a ponto de dizer que: “Freud,
através da sua descoberta, fez entrar no interior do círculo da ciência esta fronteira entre
o objeto e o ser que parecia marcar seu limite” 175. Notemos ainda que Lacan faz um
certo deslocamento. Ao perguntar-se sobre a relação entre linguagem e referência, ele
não se refere exatamente aos objetos do mundo, mas ao sujeito. O que não deve nos
estranhar, já que a questão da linguagem, para Lacan, está vinculada à sua força
expressiva daquele que fala, e não exatamente à sua força descritiva de estados de
coisas. O problema da verdade no interior da linguagem é um problema ligado à
autenticidade, e não à adequação.
O esquema que Lacan aplica à linguagem consiste em dizer que, enquanto
sistema fechado, ela reenvia a significação às relações que um termo estabelece com
outros. Daí a noção central de série (ou de cadeia). No entanto, estas séries são cortadas
por “pontos de estofo” que indicam a passagem do significado no significante. É nestes
pontos de estofo que se opera uma relação entre significante e ser.
Por outro lado, a questão sobre o modo de relação entre significante e ser será
respondida através de uma teoria da metáfora como modo de organização das relações
entre significante e referência. Nesta teoria da metáfora estava contida uma reflexão
sobre a palavra poética inspirada em Heidegger, palavra capaz de nomear um ser que
não se adequa aos protocolos de um pensamento da representação, e uma concepção de
metáfora como puro jogo posicional de significantes vinda do surrealismo. Concepção
que visava mostrar como a metáfora teria uma força interacionista que se afirma através
da negação da faticidade da referência.
Através deste uso da metáfora, era, na verdade, uma teoria da simbolização
analítica que Lacan colocava em circulação. Tratava-se de mostrar como a palavra pode
simbolizar sem, com isto, submeter o nomeado à situação de mero caso do genérico da
representação. Tal teoria da simbolização era peça fundamental para uma clínica, como
a clínica lacaniana, marcada pela insistência na necessidade em reconhecer um “ser do
sujeito”. Ser que não seria outra coisa que o desejo. Sabemos também como esta noção
lacaniana de desejo nascia de uma certa “maneira francesa” de ler a Begierde hegeliana
enquanto pura negatividade, enquanto impulso que não teria nenhuma naturalidade com
os objetos empíricos. O desejo, em Lacan, é desejo de nada que possa ser nomeado, da
mesma maneira como o ser em Heidegger é aquilo que cai sempre fora da
representação. Neste sentido, a única forma de nomear um desejo que é radicalmente
desprovido de protocolo de objetificação é através de metáforas. E, por esta razão, todos
os dispositivos maiores de organização da clínica lacaniana (Nome-do-Pai, Falo) serão
metáforas.
Este seria pois o outro lado do recurso lacaniano ao estruturalismo.
Normalmente, lembramos apenas da tentativa de reordenar a dinâmica do inconsciente
freudiano através da teoria estruturalista da linguagem. Tentativa que visou mostrar
como os processos presentes no trabalho do sonho (condensação, deslocamento, a
desfiguração) seriam, na verdade, casos dos movimentos de articulação sincrônica e
diacrônica da língua que dariam corpo às figuras de estilo da metáfora e da metonímia,
respectivamente. Mas, para além desta leitura estrutural do inconsciente freudiano,
leitura que des-psicologizou o inconsciente transformando-o, seguindo aí uma via aberta
por Lévi-Strauss, no conjunto de regras que ordena a estrutura simbólica da vida social
e que pode ser reduzida à afirmação “o inconsciente é estruturado como uma
175
Idem, p. 527
linguagem”, haveria também esta tentativa de reintegrar o problema do sujeito no
interior do estruturalismo através de um recurso peculiar a Hegel e, por mais estranho
que isto possa parecer, a Heidegger.
Através da metáfora ocorre esta “lenta mutação do ser no En panta da
linguagem”176. Lacan se refere à frase de Heráclito: “Não de mim, mas do logos tendo
ouvido é sábio homologar: tudo é um”. Esta é a frase que Heidegger comenta em seu
texto “Logos”, traduzido por Lacan para figurar na mesma revista onde aparece “A
instância da letra”. “Logos” aqui significa principalmente “dizer e falar”. Um dizer e
falar que devo ouvir como algo que não vem de mim, mas que se desvela como verdade.
Este ser que se desvela é a coisa digna de ser pensada, mas ele é anterior a mim. Um ser
que significa principalmente “presença”. É tendo isto em mente que Lacan poderá dizer
que:
“Certamente, a letra mata, enquanto o espírito vivifica (...) Mas nos perguntamos
também como sem a letra o espírito viveria. As pretensões do espírito
permanenceriam no entanto irredutíveis se a letra não tivesse feito a prova que
ela produz todos seus efeitos de verdade no homem sem que o espírito tenha
necessidade alguma de aí se envolver”177.
Lacan traz como exemplo, nesta ocasião, as últimas estrofes de uma poesia de
Paul Valéry sobre uma árvore, “O plátano”. Nesta poesia em que Valéry constrói
visualmente a força e a solidez do plátano, ele apresenta ao final um embate : “Não! diz
a árvore, diz ela Não! No cintilar /Em sua ramagem soberba/ Que a tempestade trata
universalmente / Como faz a uma erva”. A tempestade reduz tanto a árvore quanto a
erva a um “comum modo do ente”. É contra tal redução que a árvore diz “não”, um
particularismo que a universalidade da tempestade com sua força de devastação procura
reduzir. È nesta contradição que aparece o “indiscernível cintilar do instante eterno”.
Tudo se passa como se esta contradição entre a irredutibilidade do particular e a
potência de dissolução do universal fosse a essência linguagem e expusesse a natureza
da relação entre sujeito e significante. Esta contradição será resolvida através de um
recurso à noção de metáfora francamente inspirada nos jogos surrealistas de “um no
outro”. Através dela, algo da ordem da irredutibilidade da negatividade do sujeito pode
se apresentar.
A definição lacaniana de metáfora é muito ampla e mesmo surpreendente: “a
metáfora é radicalmente o efeito da substituição de uma significante por outro em uma
cadeia, sem que nada de natural o predestine a esta função de foro” 178. Ou seja, a
metáfora seria um puro jogo de substituição entre dois significantes que são elementos
de contextos e sistemas de significação totalmente autônomos entre si.
Lacan serviu-se desta noção de substituição significante para dar conta da
estrutura do sintoma. Tal como a metáfora, o sintoma faz apelo à existência de uma
outra cadeia significante que insiste na cadeia que compõe o texto do pensamento da
consciência, já que ele é um significante que ocupa o lugar de um significante
recalcado. Na dimensão do sintoma, a metáfora é solidãria de uma operação de
recalcamento de significantes. Podemos encontrar tal estrutura do sintoma na seguinte
afirmação sobre a metáfora:
176
LACAN, E. p. 504
177
LACAN, E., p. 509
178
LACAN, E., p. 890
Devemos definir a metáfora pela implantação de um significante em outra cadeia
significante através da qual este que ele suplanta cai para o nível de significado
e, como significante latente, perpetua o intervalo no qual uma outra cadeia
significante pode entrar179.
179
LACAN, E., p. 708
180
LACAN, E., p. 528
Curso Lacan
Aulas 11/12
181
LACAN, E., p. 256
182
Idem, p. 259
183
Idem, p. 515
184
Idem, 516
exatamente Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
Subversão significa desviar algo de seu lugar natural, inverter a ordem natural (como
fica claro no latim subversionem, subversum). No nosso texto, tudo se passa como se
Lacan dissesse que a reflexão sobre a maneira com que a linguagem se relaciona à
referência possibilitaria subverter o lugar natural do sujeito. Mas como compreender o
que está realmente em jogo nesta relação entre sujeito e linguagem?
Para compreender o que Lacan tem em mente, devemos inicialmente aceitar que
não há relação à si que seja independente da estrutura da linguagem. A maneira com que
eu me relaciono comigo mesmo, com que eu determino o que deve ser entendido por
“eu mesmo” é profundamente dependente das possibilidades inerentes à minha
linguagem. Para Lacan, não há nada como relações à si mesmo pré-linguísticas. Ou seja,
os limites da minha linguagem não são apenas os limites do meu mundo, como dizia
Wittgenstein. Eles são também os limites das minhas possibilidades de auto-afecção,
pois determinam os modos possíveis do meu pensar.
No entanto, percebam a natureza de uma questão maior sugerida por Lacan em
nosso texto: “Não se trata de saber se eu falo de mim de maneira conforme àquilo que
sou, mais se, quando falo de mim, sou o mesmo que este a respeito do qual eu falo” 185.
Ou seja, mesmo que não exista relação à si independente da estrutura da linguagem,
Lacan não deixa de se perguntar: mas quando falo de mim, ou seja, quando me objetivo
no interior da linguagem com suas regras e sua ordem, sou ainda o mesmo de quem
falo? Para que uma pergunta desta natureza fizesse algum sentido, seria necessário
admitir a possibilidade de algo anterior ao advento do si mesmo, algo ainda impessoal,
despersonalizado que, de uma certa forma, não se submeteria integralmente à
linguagem. Como se a nomeação de si, a assunção de um lugar na ordem simbólica,
nunca deixasse de produzir algo como um excedente, um resto que só aparece como
perda. Daí uma afirmação como:
186
Idem, p. 517
187
Idem, p. 517
188
Idem, p. 522
189
Idem, p. 523
Devemos definir a metáfora pela implantação de um significante em outra cadeia
significante através da qual este que ele suplanta cai para o nível de significado
e, como significante latente, perpetua o intervalo no qual uma outra cadeia
significante pode entrar190.
Neste sentido, a clínica lacaniana só poderá ser uma certa forma de crítica da
alienação. Proposição que nos leva diretamente a um problema, já que quem diz
alienação diz perda de uma essência. Mas se o Eu é o resultado de um processo social
190
LACAN, E., p. 708
191
Idem, p. 524
de identificação, então só posso falar em alienação de si se aceitar a existência de algo,
no interior do si mesmo, que não é um Eu, que é uma certa essência recalcada pelo
advento do Eu. Digamos que é neste Si mesmo estranho ao Eu, um Si mesmo que Lacan
chama de “sujeito”, que encontraremos o desejo. A este respeito, Lacan chega a criar
uma dualidade entre moi (o Eu produzido pela imagem do corpo) e Je (o sujeito do
desejo), isto para falar da: “discordância primordial entre Eu [moi] e o ser [do
sujeito]”192. Esta discordância entre o Eu e o sujeito do desejo é fundamental. É por isto
que o sujeito em Lacan é irremediavelmente descentrado, ou seja, ele nunca se
confunde com o Eu.
Por sua vez, o conceito lacaniano de desejo virá de Alexandre Kojève. Podemos
dizer que, para Kojève, a verdade do desejo era ser pura negatividade que desconhece
satisfação com objetos empíricos. “Revelação de um vazio”193, manifestação do
negativo no sujeito, o desejo seria “nada de nomeável” 194. Daí porque Kojève insistirá
que o desejo humano não deseja objetos, ele deseja desejos, ele só se satisfaz ao
encontrar outra negatividade. A este desejo que sempre se manifesta como inadequação
em relação a todo objeto, Lacan dará o nome de “desejo puro”.
De fato, Kojève foi, ao menos neste ponto, fiel à intuição hegeliana de insistir
que a primeira manifestação da subjetividade é uma pura negatividade que aparece
inicialmente como desejo. Ao articular desejo e negatividade, Hegel vincula-se a uma
longa tradição que remota a Platão e compreende o desejo como manifestação da
falta195. No entanto, já em Hegel esta falta não é falta de algum objeto específico, falta
vinculada à pressão de alguma necessidade vital, tanto que o consumo do objeto não
leva à satisfação. A falta é aqui um modo de ser do sujeito, o que levará Lacan a falar do
desejo como uma “falta-a-ser”. Um modo de ser que demonstra este indeterminação
fundamental do sujeito moderno, esta liberdade manifestada pela ausência de essência
positiva que faz com que ele nunca tenha correlação natural com atributos físicos, nunca
seja completamente adequado às suas representações, imagens e papéis sociais. É
pensando nisto que o jovem Hegel chamará o homem de “a noite do mundo”.
Atualmente, há várias críticas que visam esta concepção lacaniana do desejo
como negatividade. Uma das mais conhecidas vem de Gilles Deleuze (1925-1995), para
quem tal noção de desejo seria, no fundo, a tentativa de implementação clínica de uma
espécie de teologia negativa que só poderia produzir uma certa moral da resignação
infinita, um retórica da perpetuação da falta, da finitude absoluta. Pois, segundo
Deleuze, “não falta nada ao desejo, não há objeto que lhe falte” 196. Ele é antes a
manifestação produtiva de uma vida em expansão. No entanto, questionamentos desta
natureza são falhos por ignorarem que a negatividade do desejo lacaniano visa, entre
outras coisas, criticar o caráter normativo de toda tentativa de construir relações de
identidade imediata entre o desejo e seus objetos. Normatividade a respeito da qual não
conseguimos escapar quando afirmamos nada faltar ao desejo. Não é a “finitude” que
interessa a Lacan, mas a noção de que há algo no sujeito que só se manifesta de maneira
negativa, como se a negatividade trouxesse uma forma de presença daquilo que
desconhece imagem. No entanto, esta negatividade deve ser compreendida não de
maneira transcendente, mas ligada àquilo que existe antes da entrada do sujeito no
universo da linguagem, a saber o corpo libidinal e polimórfico. Esta polimorfia do corpo
192
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996), p. 188
193
Alexandre Kojève, Introdução à leitura de Hegel, p. 12
194
Jacques Lacan, SII, p. 261
195
Sobre este ponto, ver “Hegel e o trabalho do desejo” Em: Vladimir Safatle, A paixão do negativo (São
Paulo; Unesp, 2006)
196
Gilles Deleuze e Félix Guatarri, L´anti-Oedipe (Paris : minuit, 1969), p. 34
Simbolização analítica como metáfora
197
LACAN, E., p. 703
198
LACAN, S XIV, sessão de 07/06/67
199
LACAN, S XVIII, sessão de 10/02/71
200
Ver, por exemplo, FRIE, Methapor and Aesthetic experience in Subjectivity and Intersubjectivity in
Modern Philosophy and Psychoanalysis, Lanham: Rowman and Littlefield, 1997, pp. 147-154
configurada em alguma destas possibilidades? Vale a pena pois seguir o
encaminhamento lacaniano a respeito dos usos da metáfora.
A definição lacaniana de metáfora é muito ampla e mesmo supreendente: “a
metáfora é radicalmente o efeito da substituição de uma significante por outro em uma
cadeia, sem que nada de natural o predestine a esta função de foro” 201. Ou seja, a
metáfora seria um puro jogo de substituição entre dois significantes que são elementos
de contextos e sistemas de significação totalmente autônomos entre si.
Lacan serviu-se desta noção de substituição significante para dar conta da
estrutura do sintoma. Tal como a metáfora, o sintoma faz apelo à existência de uma
outra cadeia significante que insiste na cadeia que compõe o texto do pensamento da
consciência, já que ele é um significante que ocupa o lugar de um significante
recalcado. Na dimensão do sintoma, a metáfora é solidãria de uma operação de
recalcamento de significantes. Podemos encontrar tal estrutura do sintoma na seguinte
afirmação sobre a metáfora:
201
LACAN, E., p. 890
202
LACAN, E., p. 708
203
LACAN, E., p. 528
204
LACAN, E., p. 805
abstração da linguagem através da negação da referência, ou ainda, da anulação da
faticidade da referência. “Ao jogar com o significante”, dirá Lacan, “o homem coloca
seu mundo em questão a todo instante, isto até sua raiz” 205
Se lembrarmos que, para Lacan, o mundo do homem está mais próximo de uma
construção imaginária (para Lacan, o conceito de ´mundo´ nos leva necessariamente ao
conceito de Umwelt), poderemos desvendar a razão desta posição fundamental da
metáfora na clínica. Ela procura abrir, no campo língüístico, o espaço a um nível de
experiência subjetiva para além do Imaginário. A negação da referência feita pela
metáfora não é negação de um sense data (já que não há espaço para a percepção
imediata em Lacan), nem deveria ser negação do Real (que já foi negado pela Bejahung
primordial e que será caracterizado exatamente por ser aquilo que, na referência, não se
submete à simbolização metafórica). Ela é negação de uma construção imaginário
naturalizada (lembremos aqui da afirmação do Imaginário enquanto regime de
categorização espaço-temporal que constitui os objetos ao substancializá-los sob a
forma de entidades fixas ou de ´coisas´)206.
Aqui, é Jakobson que permite a Lacan fundar suas conclusões sobre a função
negativa da metáfora, até porque o exemplo do gato e do cachorro vem dele. Neste caso,
Jakobson via, na capacidade da criança em desconectar o sujeito e o predicado, a
descoberta da predicação, quer dizer, a descoberta da possibilidade em servir-se da
estrutura proposicional do julgamento para negar aquilo que se apresenta como
realidade imediata. De onde se segue a afirmação lacaniana segundo a qual a metáfora
“arranca o significante de suas conexões lexicais”, já que não haveria metáfora se não
houvesse distância entre o sujeito e seus atributos.
Nós vemos como há um verdadeiro trabalho do negativo que a metáfora deixa
evidente. Devemos falar de trabalho do negativo porque, se podemos desconectar o cão
de seu grito, é porque ele foi negado enquanto presença naturalizada. Isto nos explica
por que Lacan não cessa de articular as operações de simbolização à pulsão de morte ;
chegando a falar, a respeito da relação entre metáfora e referência: "nós encontramos aí
o esquema do símbolo como morte da coisa"207.
Isto permite a Lacan mostrar como a linguagem é feita de significantes puros, ao
invés de ser feita de signos. Por pressupor a negação da referência, a metáfora se coloca
como significante puro desprovido de força denotativa. Significante que produziria
sentido através de uma : “conotação pura e simplesmente liberada da denotação” 208.
Este é o ponto central para Lacan : simbolizar através de metáforas significa
necessariamente simbolizar através de significantes puros que são a negação do
empírico. Eles são a formalização da inadequação da linguagem às coisas sensíveis, tal
205
LACAN, S IV, p. 294
206
No entanto, é verdade que Lacan desliza de maneira sintomática em direção à idéia da metáfora como
negação do real. Pensemos, por exemplo, em sua afirmação a respeito do caráter metafórico próprio ao
trabalho do Witz: "Tudo o que Freud desenvolve na sequência [de suas considerações sobre o Witz]
consiste em mostrar o efeito de uma nadificação, o caráter verdadeiramente destrutivo, diruptivo, do jogo
de significante em relação àquilo que podemos chamar de `existência do real`” (LACAN, S IV, p. 294).
Mas, se a metáfora é negação do real, então o real terá o mesmo estatuto do empírico. No entanto,
podemos tentar compreender esta afirmação de Lacan dizendo que o real é o que, na referência,
apresenta-se como fora da simbolização. Ele não se confunde totalmente com a referência (já que a
referência sempre é intuída através do Imaginário). Ao contrário, ele indica o que, na referência, não se
esgota na imagem e no significante. Lacan é muio claro neste sentido quando afirma: “O referente é
sempre real, pois ele é impossível de ser designado, não restado assim outra coisa a não ser construí-lo”
(LACAN, S XVIII, sessão do 20/01/71) Assim, o jogo significante pode ter um efeito de nadificação do
real porque ele perpetua o real como o que resta fora da simbolização.
207
LACAN, S IV, p. 377.
208
NANCY et LABARTHE; Le titre de la lettre, Paris: Galilée, 1973, p. 76.
como vemos na afirmação: : Os significantes só manifestam inicialmente a presença da
diferença enquanto tal e nada mais. A primeir a coisa que implicam é que a relação do
signo à coisa seja apagada209.
Ausência de força denotativa, anulação da faticidade da referência, anulação da
relação entre signo e coisa, "ordem fechada"210 dos significantes, palavra como
assassinato da coisa: com a centralidade lacaniana da metáfora na produção da
significação estaríamos entrando em uma concepção totalmente convencionalista e
arbitrária do sentido na sua relação à designação? Eis uma questão que envia
necessariamente a outra: qual é o gênero de negação própria ao trabalho da metáfora
lacaniana?
Tais questões têm conseqüências fundamentais para um pensamento da clínica.
Pois elas nos levam a perguntar qual pode ser a eficácia de uma clínica que opera
através de significantes puros desprovidos de força denotativa, isto ao invés de produzir
interpretações através de símbolos e de signos. Significantes desprovidos de toda
significação e que, por isto, não podem produzir um alargamento do horizonte de
compreensão da consciência.
216
LACAN, Discours de Tokio, conferência não-publicada
217
Podemos falar em força perlocucionária da metáfora lacaniana porque, através de sua enunciação, ela
é capaz de realizar um ato que produz efeitos no enunciador e neste que recebe a palavra. Neste sentido,
Lacan faz uma espécie de uso clínico da idéia de Austin segundo a qual: “Dizer algo normalmente
provoca certos efeitos sobre os sentimentos, pensamentos, atos do auditório ou deste que fala ou mesmo
de outras pessoas. E podemos falar no intuito, na intenção ou no propósito de suscitar tais efeitos (...)
Chamamos tal ato de um ato perlocucionário ou uma perlocução"(AUSTIN, Quand dire c'est faire, Seuil:
Paris, 1970, p. 114). Vários comentadores já fizeram tal aproximação entre a estrutura lacaniana da
metáfora e os problemas dos performativos em Austin. Ver, por exemplo, FELMAN, Le scandale du
corps parlant, Paris: Seuil, 1980, BORCH-JACOBSEN, Lacan: the absolute master, Stanford: Stanford
university Press, 1991, pp. 143-146, FORRESTER, Seductions of psychoanalysis, Cambridge: Cambridge
University Press, 1991
218
LACAN, S VI, sessão de 19/11/58
219
LACAN, S III, p. 47.
220
BRETON, Perspective cavalière, p. 53.
inadequação entre a referência e o desejo que habita a língua. Ele serve claramente a
Lacan na medida em que ele procura um dispositivo de simbolização da relação
negativa entre a transcendência do desejo e os objetos empíricos-imaginários.
221
Cf. LACAN, E., 889.
222
Ver, por exemplo, HESSE, Language, metaphor and a new epistemology in The construction of reality,
Cambridge: Cambridge University Press, 1986, pp. 147-161
223
BLACK, Models and metaphors, Ithaca NY: Cornell, 1968, p. 37
224
LACAN, S IX, sessão do 29/11/61
regime econômico próprio à simbolização analítica226. Nas operações de sentido
próprias à substituição de significantes, faz-se necessário reconhecer o que não passa de
um sistema significante de referências a outro. Neste sentido, Lacan falará de “ruínas
do objeto metonímico”, ou ainda de “resíduo, dejeto da criação metafórica” 227 que
resiste à nomeação. Na passagem de ‘esta mulher’ para ‘minha mulher’ há a produção
de um resto, produção daquilo que nesta mulher não se deixa ver como minha mulher.
Tal simbolização metafórica lacaniana não é pois exaustão completa no
Simbólico. Lacan sabe que não há simbolização metafórica sem produção de um resto
metonímico. Mas, antes dos anos sessenta, ele não tem à sua disposição um processo
clínico de subjetivação capaz de dar conta do que aparece neste momento como objeto
metonímico. Novamente, ele já reconhece um limite às operações de simbolização sem
poder passar a novos modos de subjetivação na clínica.
Em suma, toda complexidade do problema da metáfora em Lacan vem do fato
de que ela dever preencher uma dupla função. Inicialmente, ela deve dar conta de um
processo performativo de instauração simbólica de uma realidade: há uma força
perlocucionária da metáfora, já que ela muda a realidade do que nomeia. Mas, por outro
lado, a metáfora não poderia naturalizar o que ela instaura. Se digo “Você é meu pai”, o
nome do pai deve continuar como uma metáfora (se não fosse assim, ele seria
simplesmente o resultado de uma interpelação subjetiva, interpelação do Senhor que
aliena totalmente o sujeito no significante ‘pai’). Como Lacan pensa a performatividade
da metáfora no interior de uma teoria não realista da linguagem, a questão maior
consiste em impedir que o nome se transforme em naturalização e reificação do sentido.
Pois a força do nome deve ser a apresentação da: “potência da pura perda [que] surge
do resíduo de uma obliteração"228. De uma certa maneira, a metáfora bem-sucedidade
deve sempre ser uma metáfora fracassada.
A fórmula é supreendente por demonstrar que o neurótico é um mal dialético. Ele quer
anular a anulação da coisa pelo significante. Este programa poderia nos levar à
sublimação enquanto modo possível de presença da singularidade, mas, se ele nos leva
à neurose, é porque o neurótico pensa por signos. Ele quer colocar uma
correspondência entre a coisa e as representações próprias ao pensamento fantasmático
do eu (lembremos do julgamento de existência em Freud como tentativa de reencontrar
um objeto fantasmático na realidade). E se Lacan pode afirmar que o neurótico tenta:
“satisfazer, através da conformação do seu desejo, à demanda do Outro " 231, é porque
ele quer anular a incondicionalidade da demanda através da sua objetificação, da sua
conformação a um objeto empírico adequado ao desejo.
No caso do discurso psicótico, a natureza metafórica do significante não é
denegada (com as inversões infinitas de posição e de anulação do posto que a
denegação inaugura), mas simplesmente forcluída. É neste sentido que devemos
compreender a impossibilidade dos psicóticos criarem metáforas. Ao invés de uma
construção metafórica, há uma construção imaginária que preenche a falta e a
indeterminação de sentido própria à metáfora. É neste sentido que a linguagem
psicótica adquire uma ‘inércia dialética’, tal como Lacan insiste ao comentar a
significação do delírio.
A respeito dos neologismos que normalmente compõem o delírio piscótico,
Lacan dirá: “É uma significação que não envia a nada, a não ser a ela mesma, ela fica
irredutível. O doente sublinha que a palavra tem peso em si mesma" 232. Encontramos tal
inércia também nas considerações de Lacan a respeito da economia do inconsciente na
psicose. Se é verdade que, na psicose, o inconsciente não é recalcado, apresentando-se
a céu aberto: “Contrariamente ao que poderíamos acreditar, que ele esteja aí não
significa em si mesmo resolução alguma mas, ao contrário, uma inércia toda
particular"233. Tal significação inerte é o signo de uma linguagem reduzida à economia
imaginária do discurso, linguagem naturalizada e coisificada, já que ela não dispõe da
230
LACAN, S IX, sessão do 14/03/62
231
ibidem
232
LACAN, S III, p. 43
233
LACAN, S III, p. 164
dimensão do Outro. Trata-se de uma linguagem na qual o Outro está reduzido ao outro,
o que produz uma suplementação do Simbólico pelo Imaginário 234. Lacan constrói sua
teoria da psicose através da idéia de uma redução do desejo ao imaginário devido à
forclusão do Nome-do-Pai (que também deve ser compreendido como a forclusão do
caráter metafórico do pai). “Lá onde a palavra [metafórica] está ausente”, dirá Lacan,
“lá se situa o Eros do psicotizado"235.
Ainda sobre esta inércia própria à linguagem psicótica, lembremos que Freud
caracterizou tal linguagem como: “uma linguagem que trata as palavras como
coisas”236. Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor Tausk,
conduzida à clínica após uma disputa com seu amante e portando a seguinte
reivindicação: “Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles estão revirados
(verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado é um hipócrita, um
Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia, há a predominância da
relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as palavras foram coisificadas.
Assim, psicose e neurose nos mostram como a denegação ou a forclusão da
natureza metafórica da linguagem impedem o reconhecimento intersubjetivo do desejo.
Agora, faz-se necessário compreender como a metáfora pode nos ajudar a descrever os
dispositivos maiores da simbolização analítica que preenchem o papel de fundamentos
da cadeia significante. Tratam-se do Nome-do-Pai e do Falo: significantes que
articulam a diversidade dos modos de sexuação, de socialização e de gozo.
A relação de complementaridade entre estes dois operadores clínicos é evidente,
já que o Pai é o portador do Falo e o Falo é a significação do Nome-do-Pai. Tal relação
de complementaridade leva Lacan a afirmar: “o falo, ou seja, o Nome-do-Pai; a
identificação desses dois termos tendo, em seu tempo, escandalizado pessoas
piedosas”237.
Tal discussão sobre o Falo e o Nome-do-Pai serve também para um outro
objetivo. Atualmente, vários críticos acusam Lacan de ter hipostasiado uma Lei
simbólica de forte conteúdo normativo. A partir do momento em que a totalidade dos
modos de cura foi pensada através do fortalecimento da identificação simbólica a uma
Lei paterna e fálica de aspirações universalizantes, Lacan teria anulado a diferença
irredutível própria ao desejo e, conseqüentemente, limitado a multiplicidade plástica de
identidades sexuais e sociais.
As colocações mais conhecidas contra as conseqüências deste ‘falocentrismo’
lacaniano vieram de Derrida com o texto O fator de verdade. Para Derrida, o
significante fálico apareceria como um operador de simbolização hermenêutica e de
234
Deriva-se daí a impossibilidade de uma mediação simbólica da alteridade. Um acontecimento da
ordem da alteridade só pode ser assumido como identificação imaginária, com as consequências de
desintegração do corpo próprio, explosão de rivalidade sob a forma de delírio de perseguição e de
anulação dos regimes de identidade que sustentavam uma certa establidade pré-psicótica. Neste sentido,
podemos compreender porque Schreber nunca integrou espécie alguma de figura feminina e por que o
surto psicótico se deu à ocasião da realização da identificação imaginária com a figura feminina através
da afirmação: “seria bom ser uma mulher no momento do coito”. Identificação resultante da descoberta
de sua impossibilidade em ser genitor.
235
LACAN, S III, p. 298. Hoje, discute-se a existência de casos de psicose que não estão necessariamente
vinculados à forclusão do Nome-do-Pai. Fala-se assim de neo-surto (néo-déclenchement) e de psicose
oridinária a fim de insistir na sua diferença com a psicose ‘extraordinária’ fundada na conjunção entre
forclusão do Nome-do-Pai e anulação do poder de simbolização do Falo (Ver, por exemplo, ECF,
Conversation d'Arcachon - cas rares. Les inclassables de la clinique, Paris: Agalma, 1997). Se esta
perspectiva estiver correta, ela exigirá uma reconsideração da relação entre Lei e psicose, assim como dos
modos de suplementação do Nome-do-Pai. No entanto, a análise desta perspectiva escapa aos propósitos
deste livro.
236
FREUD, GW vol. X, p. 298
237
LACAN, S XVIII, sessão do 20/01/71
totalização sistêmica. Ele seria o elemento transcendental capaz de guardar a presença:
“É aquilo que permite, através certos arranjos, a integração do falocentrismo freudiano
em uma semio-linguística saussureana fundamentalmente fonocêntrica”238.
Derrida pode falar de falocentrismo porque a presença do Falo como
‘significante transcedental’ do desejo produziria a indexação dos circuitos de
significantes e desvelaria o sentido da cadeia. Sentido que sempre seria desvelamento
da castração da mulher como verdade239. Falicizar o desejo seria pois uma maneira de
subjetivar a castração e de produzir um ponto de basta cuja verdadeira função
consistiria em impedir a disseminação e a polissemia capazes de provocar: “sem
esperança de reapropriação, de fechamento ou de verdade, os reenvios de simulacro a
simulacro, de duplo a duplo”240. Mas tal leitura pode ser relativizada se insistirmos no
caráter metafórico do Falo e do Nome-do-Pai.
238
DERRIDA, La carte postale, Paris: Flammarion, 1980, p. 506.
239
Derrida chega a falar em “significado primeiro” (Cf. DERRIDA, Positions, Paris: Minuit, 1975, p.
120) a fim de assinalar o pretenso regime de adequação que estaria presente no sistema simbólico
lacaniano.
240
DERRIDA, idem, p. 489