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O SUIBTO NA TELA simulagio do processo do sonho, o filme sé pode ser “contado” depois da exibigio, quando saimos do cinema. Enquanto estamos ra sala escura, somos pacientes/agentes do(s) olhar(ses) que Ia esté(Go) depositado(s). Como no sonho, os eventos, de repente, comegam a ocorter diance de n6s ¢ “nés” néo somos af oucra coisa que videncia pura, destituida de corpo, vidéncia d'Isso (Id, Ga). Eis porque, num certo sentido, a busca desse “alguém” que dé a ver (e ouvit) o filme confunde-se, em virios aspectos, com a inda- aio psicanalitica em torno do sujeito do inconsciente, embora a ‘eoria cinematografica 0 faca, como no poderia deixar de set, nos termos do sistema exptessivo do cinema. Pois, se alguém serve de mediador entre nés e os acontecimentos da hist6ria, seguramence do € um “contador de histérias” (muito embora 0 cinema possa sugeri-lo na trilha sonora, para imicar uma arce nobre: a literatu- va), mas um “alguém” que s6 pode existir na estratura do filme como uma lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar. Assim, qualquer que seja a instituicgdo do sujeito que se pde em circula. so no cinema, ela deve poder colocar o espectador no centro de seu processo de significagio. © espectador e 0 texto nao podem ser considerados separa- ddamente um do outro, cada um recebendo sentidos pré-cons- trufdos pelo outro; © process de construgdo do sentido envolve uma interacdo dos dols (Kuhn, 1982, p. Sé). UBIQUIDADE E TRANSCENDENCIA turioso € que a teoria da literacura utiliza uma cerminolo- ( gia inspirada na arte figusativa, quando se craca de iden- tificar 0 sujeito da enunciagio, Fala-se em “ponto de vista” malgrado, 20 pé da letra, o doador da narrativa literdria, diferencemence daquele da pintura renascentista, no seja um onto, nem se trata, no romance, de uma orientagdo da vista, mas da fala. Na arce figuraciva, 0 ponto de vista € um ponto de ver- dade, em que o artista coloca o olho (tum tinico olho) a fim de tra- duzit 0 espaco tridimensional para 0 plano bidimensional do ‘quadro, segundo os ciaones da perspectiva central. Ponto de vista Eo estilete que Albreche Diirer utilizava em seus aparelhos de pintac para fixar 0 olho, ou 0 orificio de espiae da tavvletta de Brunelleschi, fou ainda o visor das cimeras fotogréfica ¢ cinematogeafica. Mesmo a expressio “foco”, com que a ceoria literiria designa a instncia narradora, é também uma metéfora de inspiragio épti- ca. Ora, o que acontece com a “narrativa” cinematogtifica é que ela devolve 0 “ponto de vista” & sua origem Optica, recolocando a instincia doadora no centro topogeéfico da imagem, ou seja, na lente da cémera. O cinema ~ 0 cinema narrativo, é claro — esfor~ ga-se, portanto, para esbocar uma sincese do sujeito narrador (aquele que “conta”) com 0 sujeito enunciador da imagem (aquele amis ca0 (0 SUIEITO NA TELA 22 que vé e, por extensao, ouve), sintese intuitiva, é claro, nem sem- pre bem resolvida, como ocorre nesses momentos em que um co- mentitio-over interno, passado) coexisce com uma paisagem doada pelo olho da cimera (externa, presente). © que caracteriza a pintura do Quattrocento, antes de tudo, é 4 convergéncia para um ponto de fuga nico de todas as linhas que representam 0s planos perpendiculares a tela. Esse ponto, metsfora épcica de infinite, sicua-se na ponta de uma feta cujo oposco diamecral € um oucro ponto, localizado fora do quadro, onde esté 0 ollio doador da cena, numa palavra: o ponto de vista do sujeico da figuragio. O ponto de vista €, portanto, a inscrigio do local de onde se otha a cena, ponto de fixacio dos aparelhos uucilizados pelo artisca para dispor a imagem em perspectiva. Com a sistematizacio do cédigo perspectivo renascentista nas cameras fotogrifica ¢ cinematogrifica, cle passa a coincidir com a posigéo da cimera em relagio ao objeto focalizado. Malgeado nao seja matetialmente mostrado no quadro, petmanecendo, na ‘maioria das vezes, um lugar invisivel para o espectador, 0 ponto de vista esta inscrito na tela através do afunilamenco dos planos em diregio a0 ponto de fuga. Em ontras palaveas, 0 sujeito, ‘embora ausente da cena, encontra-se nela embutido pelo simples faco de que a topografia do espago est determinada pela sua posi- io: as proporcdes relativas dos objetos vatiam conforme esses objetos se aproximam ou se afastam do ponto originatio que organiza a disposigio da cena. que importa, para os nossos propdsitos, € observar que a no- fo de “ponto de vista” e, por extensfo, a de “sujeito”, nascem em decorréncia dos canones do cédigo perspectivo renascentista. Com base nessa perspectiva, todo quadro coraa-se uma visio organizada por um ponto originério, um olho tinico e imével (0 “centzo visual") que dé total coeréncia aos objetos dispostos no espaco. © mundo visivel passa entio a ser exposta sob o prisma incontornével da subjetividade: ele no € apenas uma paisagem ue se abre an nosso olhar, mas uma paisagem jf olhada e domina da por um outro olho que dirige 0 nosso. O casamento da pintura LUBIQDIDADE TRANSCENDENCIA 23 com a geomettia cuclidiana trouxe, portanto, uma contradigzo fundamental aos sistemas figurativos: de um lado, a representa do visa a objetividade ciencifica, a impessoalidade, no raro mediando a visio com aparelhos de reproduc automécica, de que a cimera € 0 exemplo mais evidente; de outro, entretanto, ela impse a determinacio de um olho tocalizador, submetendo mundo visivel ao arbitrio de um sujeito. Pode-se conceber a histéria da perspectiva camo um triunfo, do sentido de real, constitutive de distancia e objetividade, ‘mas tambem como um triunfo desse desejo de poder que hhabita 0 homem e que anula toda distancia; como uma siste- matizacdo e uma estabilizagéo do mundo exterior, a0 mesmo tempo que como um alargamento da esfera do Eu (Panofsky, 1975, p. 160). Nos dominios da figuragio, assim como ocorreria posterior mente no terreno da ficgio romanesca, 0 ponto de vista que torna visfvel a cena nio coincide exatamente com 0 olho do pintor: ele um dado interno & figuraso e pode, 3s vezes, estar nomeado dentro do quadro. Assim ocorre com a célebre cela de Velézquez Las meninas, evocasio de uma cena cujos protagonistas principais estio fora do quadro, ocupando 0 lugar em que se enconcra 0 espectador, porém indicados incernamente pela diego apontada pelos olhares das personagens efetivamente representadas ¢ pelo reflexo de um espelho no fundo da cena (Foucaule, 1968, pp. 17-33). Nese exemplo elogiiente, a paisagem que se descortina através da moldura do quadro € dada pela mediagio do olhar desses pro- agonistas invisiveis; é uma paisagem subjetiva no sentido proprio do termo, ou seja, preenchida, dominada pela verdade consticu- tiva do sujeito, Nesse dispositive cénico, o espectador & coopeado pela cama de desdobramentos: ao fazer coincidie o seu olhar com aquele do sujeito invisivel que vé a cena, ele se deixa cambém assujeitar, identificando se com a inseincia vidente. Assim, sem- pre que contempla Las meninas, o espectador encarna 0 papel dos comings C30 suieTo WA TELA UBIQUIDADE € TRANSCENDENCIA 24 monarcas representados por elipse ¢ experimenta 0 gozo desse lugar privilegiado de onde e para onde se descortina a cena. Ele é, ‘esse momento, se niio o proprio sujeito da figuracio, pelo menos © seu procurador legal. O c6digo da perspectiva renascentisce faz do alho do sujei:o 0 elemento fundante ¢ central da representagéo. Princfpio de or- dem que dé coctéacia av mundo visivel, ele organiza o universo inceiro em fangio da posigio ideal do olbo enunciador. Na maioz Parte das vezes, entretanto, 0 sujeito no esta marcado explicica- mente como na cena de Velézquez. Ele se encontra desterrado ‘um lugar impalpavel, num lugar privilegiado de contempla- Gio, num lugar pandptico, de onde o mundo aparece como uma paisagem visada por uma onividéncia. Isso cudo tem a ver, écliro, com as reformas politicas ¢ os deslocamentos gnosiolégicos que se verificam nas imediagdes do século XV no Ocidente: nesse contexto ideal de “humanizacio” da cultura, o mundo passa a ser considerado em fungio das significagdes que Ihe dé um sujeito transcendence Com isto, fo cédigo da perspectiva central] oferece uma repre- Sentacao sensivel da metafisica ocidental que, desde pelo ‘menos Descartes, opera a partir da oposicdo sujeito (da repre- sentagao) objeto (representado), onde 9 consciéncia se vé diante do mundo, separada dele, a ele transcendente, poden- do tomé-lo como objeto (Xavier, 1983, p, 360). O universo representado na tela jé no é uma paisagem aberca, impessoal ¢ indeterminada, Composco no interior do enquadsa. ‘mento, visado por um olho e disposto em relagio a ele em termos de distincia e angulo de mirada, 0 universo se transfigura em objeto dotado de sentido, objeto intencional, implicado pela agio do sujeito que o visa, A cimera cinematogréfica, tal como a fotogréfica, incorpora 0 cédigo da perspectiva central na sua pe6pria consticuigo, mas, diferentemente desta iltima, ela pode inscrever 0 movimento e, por conseqiiéncia, anorar os seus préprios deslocamentos. Como se sabe, o cinema multiplica os pontos de vista através dos movi- meatos do aparelho ¢ os remultiplica por meio dos corces e da sucesso dos planos. Tudo parece indicar que o cinema nos oferece pontos de vista varidveis, decompondo o espaco numa muleipli- Cidade de perspectivas. Alguns analistas mais apressados chega- ram mesmo comparar a montagem cinematogréfica a técnica da fragmentagio cubista, em razao de o corte introduzir um deslo- camento da visio, substicuindo um ponto de vista por outro nu- ma mesma cena. O equivoco esta em ignorar todo o trabalho dos efeitos de continuidade no cinema, tanto no nivel técnico mais elementar como no nivel sintagmético de articulacio dos planos. (Ora, longe de abolir o agenciamento de um sujeito enunciador, 0 cinema potencializa 0 seu poder, produzindo a hipérbole desse feito de cencralizagio que tem na perspectiva central 0 seu prin~ cipio constitutive. Comecemos por examinar como se dé a introdugio do som sincronizado no cinema, A vor € 0 ruido sio colocados no filme, vvia de regea, numa incensidade varidvel, de acordo com a proxi- midade ou 0 afastamento dos seres e objetos a que se referem. Assim, os sons relacionados com objeros discances da cimera sio ouvidos uma intensidade menor do que os sons relacionados ‘com abjetos mais préximos. Esse fato (em geral produzido artifi- cialmente na fase de mixagem das pistas sonoras) mostra que 0 som é em geral colocado no filme fazendo referéacia a um ponto origindrio que coincide, no plano da imagem, com a inseincia que dé a ver a cena. O cinema sonoro, portanto, reforca a inscri- ‘glo do sujeito enunciador no “exto” do filme, fazendo ampliar a sua hegemonia para elementos até entio refratirios a esse poder de centralizagio. Voltaremos a essa questio quando tratarmos especificamente da questo do som no cinema. ‘Mas isso niio é ainda o mais importante. Todo o trabalho do filme tem por funcio organizar o olhar, de modo que identifique © comportamento da camera (e de outros expedientes técnicos do filme, como @ montagem € a sonorizagio) com a visto de um iti 0

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