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UM VÍCIO CHAMADO MENTIRA: ENSAIO PSICOLÓGICO SOBRE O

MITÔMANO E AS CAUSAS E AS CONSEQUÊNCIAS DA COMPULSÃO


POR MENTIR EM SEU COTIDIANO
André Luis CLARO1
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Discente do curso de Psicologia, Universidade do Vale do Rio Verde, UNINCOR
Três corações (MG) – Brasil. Tel: (35) 88679931 – E-mail: aclaro3131@yahoo.com.br

Recebido em: 01/05/2014 - Aprovado em: 30/06/2014 - Disponibilizado em: 30/07/2014


Resumo: Mentir é, invariavelmente, preciso para se viver em sociedade. E se começa a mentir cedo, ainda quando
criança, mas sem maiores prejuízo. Agora, se a mentira para dada pessoa se torna uma compulsão e perdura, chegando
ao ponto de as pessoas mais íntimas lhe perderem a confiança, apenas resta se tratar. Para tanto, revelar quais as causas
desse vício e suas consequências é o intuito desse trabalho. De maneira coloquialmente embasada em dados empíricos e
científicos de autores e profissionais consagrados são levantadas questões, a fim de se desfragmentar os aspectos desse
vício. Mas isso não é o ponto de chegada, algo definitivo para o assunto, apenas o ponto de partida.
Palavras-chave: Mentira. Compulsão. Vício.

A ADICTTION CALLED LIE: PSYCHOLOGICAL ASSAY ON


MYTHOMANIAC AND THE CAUSES AND CONSEQUENCES OF
COMPULSION LIE IN YOUR DAILY LIFE

Abstract: Lying is invariably need to live in society. And if you start lying earlier, even as a child but no major
damage. Now, if given the lie to person becomes a compulsion and endures to the point of the most intimates you lose
confidence, it only remains to treat. To do so, revealing the causes and consequences of this addiction is the aim of this
work. So colloquially grounded in empirical data and scientific author and renowned professionals questions are raised
in order to defragment the aspects of this addiction. But that is not the point of arrival, something definite to the subject,
only the starting point.
Keywords: Lie. Compulsion. Addiction.

Introdução esposa, uma amizade da infância se rompa.


Essa transferência pode se dar também –
ainda que contrariamente aos seus desejos –
Não de maneira consciente, as pessoas
mergulhando no trabalho, esforçando por
convivem com o temor da morte, se
lisonjear a pessoa amada ao passo que aceita
chafurdam nos mecanismos de defesa do
suas incongruências, se absorvendo
autoengano e da autoilusão para tornar menos
sobremaneira em um jogo. Por trás disso tudo
“dolorosas” essa vida e a certeza única do fato
está o medo da morte. Pois, um cão quando
de que morrerão, serão excluídas desse
escapa para a rua, volta à calçada ao perceber
mundo e, portanto, terão de desapegar à força
um carro devido ao seu instinto, porque ainda
das coisas e dos outros. Ainda que se tente
é meramente levado pela lei da sobrevivência,
sabotar esse temor o tolhendo, o transferindo,
onde o – maior –, o mais forte – deve ser –
numa troca inconsciente pelo medo de que
temido – respeitado. Ao contrário do ser
algo – que não consiga especificar ou nem
humano, dificilmente esse cão desenvolverá
seja justificado – não lhe dê certo àquele dia,
um medo – propriamente da morte – de
de que seja demitido, abandonado pela
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atravessar a rua ainda que não haja um dando um significado perante a si mesmo e,
veículo vindo. pior no caso do mitômano, diante do
inevitável e indelével significado
Becker diz: incomensurável do mundo. Emil Cioran bem
Não queremos admitir que somos ponderou:
fundamentalmente desonestos no que se
refere à realidade, que não controlamos Nós não corremos em direção à
realmente nossas próprias vidas. Não morte; fugimos da catástrofe do nascimento,
queremos admitir que não ficamos sozinhos, agitamo-nos como sobreviventes que
que sempre nos apoiamos em algo que nos procuram esquecê-lo. O medo da morte é
transcende, certo sistema de ideias e poderes apenas a projeção no futuro de um medo que
no qual estamos mergulhados e que nos remonta ao primeiro instante. Repugna-nos,
sustenta. Esse poder nem sempre é óbvio: não claro está, chamar flagelo ao nascimento; não
precisa ser um deus ou uma pessoa mais forte, inculcaram em nós que era ele o supremo
mas pode ser o poder de uma atividade que bem, que o pior se situava no fim e não no
exija plena dedicação, uma paixão, a início da nossa carreira? O mal, o verdadeiro
dedicação a um jogo, um modo de vida que, mal, está, porém atrás, e não à nossa frente
como uma teia confortável, mantém a pessoa [...]
apoiada e ignorante a respeito de si própria e
ao fato de que ela não se apoia em seu próprio [...] Desde que estou no mundo – este desde
centro. Todos nós somos levados a sobreviver parece-me carregado de um significado tão
de uma maneira desinteressada, ignorando assustador que se torna insuportável.
quais as energias que realmente consumimos
e que tipo de mentira criamos a fim de Precisa-se encontrar um caminho
vivermos segura e serenamente. próprio em meio a outros idênticos milhões
que foram e são seguidos sem pisar nas
Não obstante, há aquelas pessoas que mesmas pegadas. Seria mais fácil e “justo” já
sentem culpa por terem nascido. Não o mero ter vindo ao mundo como os outros vieram:
fato de se estar existindo estritamente de uma cada um com sua cruz ou consolação. Um
maneira biológica a partir de um derrame sujeito mitômano se vê como o único
delirante de esperma, mas no caso de se ver despojado de seu quinhão ou mesmo
como um ser onde aquilo, o nascer, não o infortúnio e se culpa por isso como se tivesse
torna algo pronto – ainda que feito, concebido feito algo para merecê-lo, alias não merecê-lo,
– então ele tem que dar à luz a si mesmo, se não ter um caminho a seguir que precisaria
recompor continuamente para se tornar algo simplesmente ser sustentando ou ainda um
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que tenha de ser arrombado. É um nada. Qual de heróis mítico, no qual as pessoas se
maior punição senão a de vir ao mundo como esforçam para adquirir um sentimento básico
único que terá de se virar para chegar sem de valor, para serem especiais no cosmo, úteis
nunca ter tido de onde partir? O que fez para para a criação, inabaláveis quanto ao seu
aquilo? Esse questionamento perturba esse significado.
sujeito dia após dia.
Por outro lado, há aqueles que se
Como nasce a mentira e como se ocupam de irem dizimando a culpa por terem
torna um vício nascido nada – e para nada além da morte –,
irem se satisfazendo com o fato de poderem
Até aqui, porém, nada de diferente do
julgar então justo assim terem vindo ao
que já foi repetido antes por outros autores
mundo, pois têm algum livre arbítrio para se
infinitamente mais doutos do que eu.
constituírem como bem prover.
A questão é que algumas pessoas se
Outros, por sua vez, invertem esses
detêm mais ou apenas no temor da morte e
polos em dados momentos da vida,
vão lutando para se tornar algo para o outro,
literalmente os interpolam, em algumas
para no fim morrer apenas de corpo, as
ocasiões tão intensamente conflituosas, que
lembranças de suas irrefutáveis contribuições
correm o risco de recaírem, por exemplo, num
para o mundo os farão vivos na lembrança de
transtorno bipolar. O problema, aqui, reside
outrem. Procuram se tornar um novo
no fato de que no caso do mitômano, essas
Leonardo da Vinci, Joana D’Arc ou Kurt
duas vertentes o comprimem
Cobain a fim de que seus inevitáveis defeitos
esmagadoramente o tempo todo e o
sejam aceitos incondicionalmente, tenham
autoengano e autoilusão inerentes para
sempre muitas pessoas os reverenciando, pois
dissimular o medo da morte tal como a culpa
creem que isso esvaecerá a inadequada
por ter nascido são – e têm de ser para que o
criação completamente severa ou totalmente
indivíduo consiga alguma forma de
frouxa oferecida pelos pais, tornará imaculada
sobrevivência – potencializados e o efeito é
a desajustada e angustiante adaptação desses
uma euforia paralisante como quem ingere
sujeitos no mundo.
ansiolítico juntamente com doses de álcool.
A culpa por se sentir nada ante a esse
Novamente vou me ater a Becker:
“assustador” significado do mundo junto
Não importa se o sistema de heroísmo
dessa previsão pessimista de que nunca se
de uma cultura é francamente mágico,
conseguirá ser alguma coisa equivalente ao
religioso e primitivo ou secular, científico e
que já está aí – e aqui ainda não trato de um
civilizado. É, de qualquer forma, um sistema
hipervalor para suplantar a morte, o que
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somente poderá ocorrer se superada a etapa que dura um certo tempo, no qual a criança
do nascer – traz um sentimento de inutilidade vai ao mesmo tempo se constituindo como eu
– o que nomearam de autoestima baixa e seu e constituindo os outros como eu. E um ponto
aprofundamento em longo prazo depressão. fundamental desse processo, por exemplo, é
Em vez de terem um estímulo para onde a criança começa a mentir. A mentira é
fazer algo, romper alguma coisa que lhes uma grande conquista no desenvolvimento
perturbe, apenas se estarrecem excitantemente individual porque, porque a mentira supõe a
diante dos pensamentos que criam uma percepção de que eu tenho um mundo que é
realidade para si mesmos. Esses pensamentos indevassável, só é acessível ao outro se eu o
é aquilo que os preceituam a como agir, bem revelo, e, portanto, os outros também. A idea
como lhes alivia um pouco a força dos dois de um mundo de que me é próprio e a idea de
polos que se atraem e se repelem. É assim que que os outros também têm um mundo que é
se dá o início do vício da mentira, mais próprio é o que constitui esse primeiro
precisamente, aqui, o da mitomania. momento, esse momento inaugural da
constituição de si como eu e que torna
Benilton Bezerra exemplifica a possível a mentira. Ao mesmo tempo em que
respeito da necessidade da mentira na torna possível o início do sentimento de
infância: responsabilidade em relação ao outro e da
[...] é o momento, onde o bebê, que desde moralidade [...]
sempre ouve palavras sem saber que aqueles
sons têm significação, começa aos poucos a Mas tal como é necessário abandonar
compreender que aqueles sons e ruídos ou esse estágio da falsa segurança provinda da
gestos, se os pais são surdos e falam língua de mentira para se lançar no mundo onde a
sinais, que aquelas coisas que o atingem criança por si mesma tem que ser capaz de se
carregam significação. E essa passagem de nutrir de novas expectativas. E aí que ela se
um mundo onde as coisas têm sentido, mas vê ante o cru do ter nascido pior do que “era”
não tem uma significação, as coisas têm uma – o nada – e o indefensável morrer que não a
orientação, mas não tem algo que pode ser levará de volta ao melhor que “antecede” o
questionado, pode ter sua significação posta nascimento, e pode não recuar, recuar
em questão que é o que a linguagem algumas vezes ou sempre para esse estágio
possibilita, há um momento onde isso começa primitivo e uterino que pode ser explicitado
acontecer. A criança começa a usar palavras e através do Sentimento Oceânico – descrito
há o momento preciso, onde ela começa a por Freud –, o qual abordarei mais adiante.
dizer eu, onde ela começa a se designar na Desse modo, o mitômano segue –
primeira pessoa, é um momento complexo e catexiando – procurando não restringir cada
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dia mais seu repertório verbal e não verbal, se mantém na tradução, e é nisto que consiste
apoiando na “dedicação” a algo. Vai seu sentido, porém não sua referência. Em “a
ampliando seus episódios excessivos em estrela da manhã é iluminada pelo sol” e é
relação ao álcool, juntamente aos da mentira. nisto que consiste seu sentido, porém não sua
Mas há outros meios de se compensar a referência. Em “a estrela da manhã é
realidade, como recorrer à masturbação, ao iluminada pelo sol” e “a estrela da tarde é
amor platônico. Assim, toda noite, dar iluminada pelo sol”, o “pensamento” muda
continuidade à sua história de amor criada há mas a referência é a mesma (op. Cit., p.67).
alguns dias. Invariavelmente transformando Qual a referência de uma sentença? A
uma vizinha em sua mulher “ideal” ao invés referência das sentenças, para Frege, consiste
de enfrentar a “real”. no Verdadeiro e no Falso, isto é, em sua
Não obstante, tais tramas conexão com o real, as circunstâncias em que
rocambolescas não são suficientes para são verdadeiras ou falsas. Esta é uma das
sublimar sua libido, então o sujeito apela mais teses de Frege mais questionadas por seus
intensa e frequentemente a uma e outra críticos, que dirão que se a referência de uma
mentira, ainda que esteja oniricamente sentença é o Verdadeiro ou o Falso, todas as
consciente de que mente, a princípio, não sabe sentenças verdadeiras teriam a mesma
que sabem ou, no mínimo que desconfiam da referência.
veracidade, autenticidade do que lhes diz. A determinação da referência de um
O mitômano invariavelmente possui nome ou expressão descritiva envolve a
um círculo de amigos restrito, embora em possibilidade de determinar a verdade da
alguns casos esse círculo seja extenso não sentença, o fato de que há um objeto
deixa de ser superficial, seu círculo de correspondente. Não podemos especificar o
amizades pode consistir em um animal de significado dos termos interdependentemente
estimação e uns poucos amigos virtuais. da formulação de sentenças. Apenas um
Embora não se veja desse modo. Esse sujeito “pensamento” (conteúdo de uma expressão
com compulsão por mentir não percebe que predicativa) pode ser verdadeiro ou falso. O
nunca consegue – como a maioria absoluta de sentido de uma sentença é portanto o
nós – agir como falava, embora se apresente, “pensamento”, o que afirmamos ou negamos,
infinitamente de forma mais aguda que os sendo assim algo de objetivo, independente da
demais sujeitos, como se conseguisse intenções do falante.
tamanha autenticidade.
De acordo com Danilo Marcondes: Por exemplo, ao ter que perguntar
Uma sentença expressa um sobre as horas para alguém, porque desconfia
“pensamento” (conteúdo), que é o que se que o relógio do celular está atrasado, ao
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invés de simplesmente perguntar e agradecer menino que está pendurado no carro – o caso
– mesmo frente quanto à uma resposta do menino João Hélio. O fato de o outro
negativa ríspida – sem justificar, rapidamente existir significa é o fato de que me falta
o mitômano cria uma desculpa. Como não usa alguma coisa. O relógio que o outro tem é o
relógio e confere as horas no celular, ele pode motivo de tristeza e de raiva para mim. O
então alertar, com a pessoa ainda verificando corpo do outro, a casa do outro. E aí entra
as horas, ou que o seu celular descarregara, ou uma coisa que vocês vão, talvez, se
o relógio do celular ficara maluco. A pessoa horrorizar, que é muito usado dentro de
diz as horas, de bom grado, e, aliviado, o alguns sistemas políticos: Eu sou pobre
sujeito mente, rindo, procura ser o mais porque você é rico. Eu sou feio porque você é
agradável possível: “Não falei? Tá bonito. Eu não tenho esse relógio porque
louquinho.” A hora informada pela pessoa você tem. Eu sou baixo porque você é alto. Eu
bate com a que seu celular indicava. Qual o sou negro porque você é branco. Não sei se
motivo disso? O fato real, a verdade não vocês entendem o que eu estou falando. Esse
alivia mitômano. Além de que há o temor de é o discurso da ausência de superego. Esse é o
que a pessoa fique incomodada com sua discurso da ausência de superego. O discurso
interpelação sobre as horas e seu mundo que passeia pela miséria das favelas, o
desabe mesmo que a resposta não seja discurso que passeia pela miséria dos
abruptamente uma resposta mal-educada. condomínios fechados [...]
Aliás, para esse sujeito, a grande maioria das O princípio ativo da mentira era
pessoas está contra ele. O que leva a deduzir sempre o mesmo, a langorosa autoestima o
que sua mentira pode ser uma maneira impedindo de agir para garantir não se “ferir”
revanchista de se socializar. Aqui se vê a por uma resposta negativa, uma crítica, já que
desestrutura do superego, senão sua ausência. para o mitômano pouca coisa nele é quão boa
nos outros, e ele termina por se deprimir mais
Como frisa Ivan Capelatto: ainda, o desejo de se mitificar fica reprimido
[...] O dano perverso da ausência do por conta de sua inação. A imaginação tem
superego. É um ego frágil que não resiste ao que dar cabo desse seu vazio. O quero, posso
conflito das pulsões, as pulsões precisam ser e devo sempre conflitante.
realizadas de qualquer maneira e o outro,
quem é o outro para quem não tem superego? E quanto mais mente mais o mitômano
O outro é aquele que me lesa. O outro é se encoraja a mentir, melhor fica no
aquele que lesa. Então, não importa quem seja engendramento dessas mentiras. A despeito
o outro, meu pai, minha mãe, meu irmão, meu disso, como já escrevi, não se recorre às
vizinho, o estranho na rua, o anônimo, o mentiras apenas para enganar as pessoas à sua
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volta. É que, com isso, e enquanto isso, apesar uma Bromélia que se aninha a uma árvore
das mentiras parecerem – e são – alienadas, para conseguir mais luz, se nutrir e “hidratar”
lhe atribuem admiração em vez de chacota, melhor – como quem precisa de empurrões e
um alívio maior e mais duradouro do muitas garantias de que encontrará seu lugar
sofrimento de seu vazio e autodesprezo. ao sol. Piormente podem se tornar parasitas
E esse sujeito já tomara cerveja em sugando o outro mesmo como se o outro lhe
São Paulo com esse ou aquele o filósofo, o devesse isso sem nada em “troca”. Quando
ator, o psicólogo, o escritor, o antropólogo, esses dois aspectos não lhe são possibilitados,
pois seus parentes frequentam aquele meio e o a única saída em meio aos muitos não
inseria inevitavelmente quando ia lá. enxergados é se encantoarem até se
No fundo, o mitômano não se importa deprimirem e, às vezes, por fim se matarem.
com o outro, aprendeu isso em sua infância.
Ivan Capelatto, acima, explicou bem a Para Becker:
respeito do dano causado a essa criança que [...] quanto menos você faz, menos
desse modo age quando preconiza que se a pode fazer, mais desamparado e dependente
criança consegue fazer mal à mãe, pessoa tão você se torna. Quanto mais se esquiva das
íntima, e ir dormir, então ela pode fazer o dificuldades e das ousadias da vida, mais
mundo chorar. Tem o poder de abolir o naturalmente passa a sentir-se inepto, menos
mundo. Pior, se acha nesse direito. favorável é a sua autoavaliação. Isso é
Contudo, como qualquer viciado, à inelutável. Se a vida de uma pessoa tem sido
certa altura se começa a mentir não pelo uma série de "silenciosos recuos", ela acaba
prazer – do alívio – que isso trazia mas, inapelavelmente encurralada em um canto e
simples e obrigatoriamente, para abrandar o não tem mais para onde recuar. Esse estado é
sofrimento do mal estar entre uma mentira e o emperramento da depressão.
outra.
Se nascer era mesmo um O desmascaramento do mitômano e
inconvenientemente como propunha Cioran, o o inevitável e crucial tratamento
mitômano pode comprovar isso dispensando
Vamos supor, aqui, um sujeito que,
filosofia, psicologia, psiquiatria, psicanálise
além de cesariana, precisou de que lhe
ou religião. Mesmo o senso comum diz que os
evitassem uma espécie de suicídio. Tal como
tímidos precisam de cesariana até para viver.
inúmeros bebês, devido ao estreitamento da
E, pela vida continuam precisando que lhe
bacia, ele nascera entre a cor roxa e a violeta.
abram o caminho para passar – ou mesmo
Custara a respirar – se é que respira hoje em
estagnar. Se isso não ocorre, se tornam
dia. Sua ansiedade pode se explicar por uma
hospedeiros de alguma outra planta como
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garra imaginária que permanece pressionando fixamente sei interlocutor. Este não vê a hora
sua cabeça, que faz lhe faltar ar ou lhe de sair dali. Nota pena por parte do outro.
proporciona a mesma sensação angustiante, a O seu indevassável mundo criado fora
falta. devassado, devastado. Ainda àquela noite,
Vamos ilustrar, revisitar essa sensação elaboraria um projeto e o enviaria de fato às
com a passagem onde um mitômano é editoras, instituições científicas e etc., ao
acareado quanto a mentir. passo que elaboraria o ensaio dos ensaios num
Relutante com o convite de um colega, único texto e nem que pagasse o publicaria.
o sujeito topa tomar umas e outras num bar Por outro lado se frustra por tornar consciente
depois da aula, do trabalho. Detalhe: devido que era realmente um mentiroso inveterado.
às frequentes recusas os colegas e as colegas Esse pensamento carregado de raiva
não mais o convidavam. Lá, após umas faz com que o individuo mitômano veja que
cervejas, o indivíduo começa a falar que ia possui uma ideia distorcida a respeito das
entrar com um projeto na Fapemig e estava pessoas. Ou generaliza fatos isolados de sua
para publicar um dos seus ensaios por uma infância na vida adulta. Como nunca tivera
editora francesa. Após uma pausa silenciosa, nada do que pedira naquele tempo e ainda que
desentende o primeiro sorriso – de escarninho esperneasse tivesse seus pedidos de ajuda
ou de entusiasmo? – do colega, que bate a para se alimentar e se manter limpo adiados
cinza do cigarro no cinzeiro, tranquilamente. ou recusados, igualmente não poderia os
Este diz que seu interlocutor, era gente boa, atender agora.
mas mentiroso. O sujeito sente o rosto Começa a se dar conta de que o
ruborizar, sente a mesma rejeição de quando mundo é não ríspido, mas só mundo, tudo
descobriu que a mãe o abandonara no mundo concretamente tácito e repetitivo. Há mesmo
com a tia, o pai verdadeiro não era seu somente alguns tipos de pessoas. A realidade
padrasto alcoólatra. Era incontrolável. Ainda começa a lhe invadir dolorosamente, precisa
que sentisse o chão fugir de seus pés, ainda escrever sobre aquilo, aquela dor no peito,
que soubesse que poderia mesmo se inscrever precisa mentir quanto ao mundo. Que apesar
com um projeto, publicar um ensaio, era de tudo o mundo é belo e ele o grande
mentira, mas, procura reverter a situação, responsável por aquilo, aliás, um dos grandes
rebate que ele brincava com muita coisa responsáveis, ninguém pode dar um sentido
mesmo, mas estava com um projeto... O diferente senão ele. Mas qual sentido? E se
colega intervém novamente rindo mais alto e, não quisesse dar sentido algum se quisesse
quando se controla, arremata com um simplesmente viver aquilo, viver aquilo o
desdenho recalcitrante: “Isso é bom”. E fita quê?

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Freud, fala a respeito do sentimento um sofrimento), podem acarretar uma série de
oceânico: complicações psíquicas ao humano.
[...] Nosso presente sentimento do ego
não passa, portanto, de apenas um mirrado “De perto, ninguém é normal”, disse
resíduo de um sentimento muito mais Caetano. Para mim, o indivíduo não passa
inclusivo - na verdade, totalmente abrangente realmente de uma fabricação social.
-, que corresponde a um vínculo mais íntimo
entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo José Avzaradel escreve:
que há muitas pessoas em cuja vida mental [...] A sociedade impõe a forma social
esse sentimento primário do ego persistiu em do indivíduo ao lhe propor e impor uma outra
maior ou menor grau, ele existiria nelas ao origem e outra modalidade de significado; a
lado do sentimento do ego mais estrito e mais significação imaginária social, a identificação
nitidamente demarcado da maturidade, como midiatizada com esta (suas articulações), a
uma espécie de correspondente seu. Nesse possibilidade de tudo reportar a ela. A questão
caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado do significado deveria assim, saturar-se,
seria exatamente o de ilimitabilidade e o de encerrando-se a procura da psique. Mas, de
um vínculo com o universo - as mesmas fato, isso nunca acontece. De uma lado, o
ideias com que meu amigo elucidou o indivíduo socialmente fabricado (por mais
sentimento ‘oceânico’. sólido e estruturado que seja) não é estável,
não é aquisição vitalícia, não é nada mais do
E Caio Garrido o explica: que uma película encobrindo o caos, o
Existem certas condições psíquicas abismo, o sem fundo, a infinitude, que não
existentes nos indivíduos que são geradas e permite nunca uma outra forma de enunciar-
guiadas por um contorno especial, trazido se e apresentar-se a ela. De outro lado, o
como se fosse uma memória afetiva dos significado ou sua ausência é sempre uma
tempos glórios e inglórios da relação com a decorrência da experiência emocional, ou
mãe, no período compreendido desde o uma função de amor-próprio, ódio próprio ou
enovelamento narcísico no útero da mãe, até a conhecimento próprio. Não é necessário
concepção, a amamentação, o desmame, e logicamente, mas psicologicamente.
todas as outras formas de separações
inevitáveis que vão ocorrendo ao longo da O sujeito que sofre de mitomania pode
vida. Rompimentos ou vivências que possam alguma vezes ter que, além de uma
ter acontecido de forma demasiadamente intervenção psicológica, também
abrupta ou com sofrimento (toda separação é medicamentosa para a ansiedade, a depressão.

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Revista da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 12, n. 1, p. 168-178, jan./jul. 2014
Leo Branco escreve: REFERÊNCIAS
O tratamento para a doença envolve 1
Arnaldo Chuster, Linguagem e Construção
atendimento psicológico e, em alguns casos,
do Pensamento, p. 131, Editora Casa do
medicamentos antidepressivos para elevar a
Psicólogo, 2° Edição, 2006
autoestima do paciente.

2
Becker, Ernest, A Negação da Morte, p. 65,
O alprazolam é um antidepressivo,
Editora Record, Rio de Janeiro,1973.
usado nesses casos, porém no início, o
paciente ainda fica entre os picos da 3
Becker, Ernest, A Negação da Morte, p. 19,
depressão e da ansiedade, para só então se
Editora Record, Rio de Janeiro, 1973.
estabilizar.

4
Becker, Ernest A Negação da Morte, p. 207,
Paciente anônima:
Editora Record, Rio de Janeiro,1973.
A consciência da doença fez meu
mundo imaginário sumir e lidar com a 5
Caio Garrido,
realidade para quem tem essa doença é as
http://psiqueativa.blogspot.com.br/
vezes bem difícil, os remédios tem me
ajudado um pouco, me deixa um pouco mais 6
Cioran, Emil Do Inconveniente de Ter
calma. Nascido, por Salvador Massano Cardoso:
Termina-se, de certo modo, domado http://quartarepublica.blogspot.com.br/2010/1
0/do-inconveniente-de-ter-nascido.html
pelo remédio como que sendo adestrado – e
7
realmente está. O intuito é agir como agiria Benilton Bezerra, As Novas Fronteiras da
depois que se pare com os medicamentos, seja Subjetivção
https://www.youtube.com/watch?v=AwOIzQ7Oi
dispensado do processo terapêutico. Ainda wE
que possa haver recaídas ligeiras, com o
8
Danilo Marcondes, Linguagem e Construção
tratamento, as mentiras começam a se
do Pensamento, p. 32, Editora Casa do
aproximar bem das mentiras “essenciais” da
Psicólogo, 2° Edição, 2006
sociedade, até que evolua-se para uma
acentuada melhora dos sintomas ou mesmo o 9
Freud, Sigmund, O Futuro de uma Ilusão, O
seu total desaparecimento. mal-estar na civilização e outros trabalhos
VOLUME XXI, p. 43. (1927-1931)
Outrossim, não há um tempo de http://www.psicanaliseflorianopolis.com/artig
resposta determinado que se possa generalizar os/147-obras-completas-de-sigmund-
freud.html
quanto ao tratamento. Isso varia de paciente
para paciente. 10
Ivan Capelatto, Limites: A Formação
necessária do superego
https://www.youtube.com/watch?v=Lf7SeEfy_s8
177
Revista da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 12, n. 1, p. 168-178, jan./jul. 2014
11
Leo Branco:
http://mdemulher.abril.com.br/bem-
estar/reportagem/viver-bem/precisei-
tratamento-pra-parar-mentir-584261.shtml

12
http://curandoapseudolalia.blogspot.com.br/
2012/12/efeito-dos-medicamentos.html

13
http://curandoapseudolalia.blogspot.com.br/
2012/12/o-inicio-do-tratamento.html

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Revista da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 12, n. 1, p. 168-178, jan./jul. 2014

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