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FAMAT em Revista - Número 09 - Outubro de 2007 259

Introdução à Teoria das Curvas Algébricas


Afins
Patrı́cia Borges dos Santos 1 Cı́cero Fernandes de Carvalho2
Faculdade de Matemática - FAMAT
Universidade Federal de Uberlândia - UFU - MG

Setembro de 2007

Resumo
Neste trabalho apresentamos algumas propriedades básicas das curvas algébricas
afins como por exemplo, a irredutibilidade, a decomposição em componentes irre-
dutı́veis, o grau da curva, entre outras. Também mostramos que é possı́vel estimar
o número de pontos de interseção de duas curvas algébricas sem componentes em
comum. Em essência o trabalho mostra aplicações da teoria de domı́nios euclidianos
e domı́nios de fatoração única.

1 Introdução
Seja f (x, y) ∈ R[x, y] e considere o seguinte subconjunto de R2 :

V (f ) = {(x, y) ∈ R2 | f (x, y) = 0},

agora observe nos seguintes exemplos o que V (f ) representa.

Exemplo 1.1 1. f (x, y) = y − ax2 − bx − c, com a = 0 =⇒ V (f ) é uma parábola.

2. f (x, y) = ax + by + c, com a, b ∈ R, (a, b) = (0, 0) =⇒ V (f ) é uma reta.

3. f (x, y) = x2 + y 2 − 1 =⇒ V (f ) é um cı́rculo.

4. f (x, y) = x2 + y 2 =⇒ V (f ) é um ponto.

5. f (x, y) = x2 + y 2 + 1 =⇒ V (f ) é um conjunto vazio.

Note que somente nos exemplos 1 , 2 e 3 é que faz sentido falar em curva, os outros
dois casos deixam de parecer tão estranhos quando passamos do plano real R2 para o
plano complexo C2 , que aqui chamaremos de plano afim. Nesse caso é natural permitir
que os coeficientes de f (x, y) sejam números complexos arbitrários.
Assim, considere agora f (x, y) ∈ C[x, y] e o seguinte subconjunto de C2 :

V (f ) = {(x, y) ∈ C2 | f (x, y) = 0}.

Observe que, se em 4 permitirmos que f ∈ C[x, y], então teremos a seguinte fatoração

f (x, y) = x2 + y 2 = (x + iy)(x − iy).


1
patricia 1609@yahoo.com.br Programa de Educação Tutorial (PETMAT)
2
cicero@triang.com.br Professor orientador de janeiro de 2007 a dezembro de 2007.
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Assim, V (f ) = V (x + iy) ∪ V (x − iy), ou seja, o conjunto de zeros consiste, no plano afim,


de duas retas que intersectam na origem.
Da mesma forma, no exemplo 5 , a mudança de variáveis x = ix1 , y = iy1 torna o
conjunto vazio no R2 em um cı́rculo, agora em C2 , com equação:

x21 + y12 − 1 = 0,

visto que: x2 +y 2 +1 = 0 =⇒ (ix1 )2 +(iy1 )2 +1 = 0 =⇒ −x21 −y12 +1 = 0 =⇒ x21 +y12 −1 = 0.


Ao passar de R2 para C2 perdemos um pouco da intuição, já que as curvas algébricas
agora se parecem mais com superfı́cies no espaço quadri-dimensional C2 ∼ = R4 . Por outro
lado, veremos que esta perda será compensada por muitas vantagens técnicas.

2 Curvas Algébricas Afins e suas Equações


Definição 2.1 Um subconjunto C ⊂ C2 é chamado uma curva algébrica afim se existir
um polinômio f ∈ C[x, y] tal que grau f ≥ 1 e

C = V (f ) = {(x, y) ∈ C2 | f (x, y) = 0}.

Veja que V (f ) = V (λf ) = V (f k ) para λ ∈ C∗ e k ∈ N − {0}, ou seja, uma curva


algébrica afim não é unicamente determinada por f . Quando f (x, y) é irredutı́vel, esta
será a única ambiguidade, isto é, os polinômios da forma g(x, y) = λf (x, y)k , para λ ∈ C∗
e k ∈ N − {0}, são os únicos para os quais V (f ) = V (g). Isto será uma consequência do
Lema de Study abaixo.
Antes de apresentarmos o Lema de Study devemos ter em mente alguns resultados que
serão importantes na demonstração deste:

Teorema 2.2 Seja (D, ϕ) um domı́nio euclidiano. Então:


1. D é um domı́nio fatorial.

2. Sejam a, b ∈ D\ {0} e seja d = mdc (a, b), então:

• Existem e, f ∈ D tais que d = ea+f b.(Em particular, se a e b são relativamente


primos, i.e. se d = 1, então existem e, f ∈ D tais que 1 = ea + f b).
• Tais e e f podem ser efetivamente calculados quando a divisão é efetiva.

3. D é um domı́nio principal.

Lema 2.3 (Lema de Gauss) Seja A um domı́nio de fatoração única e seja K ⊇ A seu
corpo de frações. Seja f ∈ A[x] um polinômio primitivo não constante.
1. Se f é redutı́vel em K[x], então também o é em A[x].

2. Se g ∈ A[x] e f | g em K[x], então f | g em A[x].

As demonstrações de 2.2 e 2.3 podem ser encontradas em [3] e [4] respectivamente.

Observação 2.4 Veja que (C (x) [y] , ϕ), sendo ϕ a função grau, é um domı́nio euclidi-
ano. E que todo polinômio irredutı́vel é primitivo.
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Agora estamos prontos para enunciar e demonstrar o

Lema 2.5 (Lema de Study) Sejam f (x, y), g(x, y) ∈ C[x, y] polinômios não constantes
e suponha que f (x, y) é irredutı́vel. Então V (f ) ⊂ V (g) se e somente se f divide g em
C[x, y].

Demonstração. Se f é um divisor de g, isto é, g = f.h, então V (f ) ⊂ V (g).


Reciprocamente, suponha por absurdo que V (f ) ⊂ V (g) mas f não divide g em C[x, y].
Sem perda de generalidade, podemos supor que f (x, y) não é um polinômio apenas na
variável x. Assim podemos considerar f (x, y) como um polinômio não constante de C[x][y]
(i.e. um polinômio não constante na variável y e com coeficientes no anel de polinômios
C[x]):
f (x, y) = f0 (x) + f1 (x)y + . . . + fn (x)y n ,
com n > 0 e fn (x) = 0.
Seja C(x) o corpo quociente de C[x] e considere f (x, y) como um polinômio não cons-
tante de C(x)[y]. Pelo Lema de Gauss, f (x, y) é irredutı́vel em C(x)[y] e f não divide g em
C(x)[y]. Portanto mdc (f, g) = 1. Por 2.2 sabemos que C(x)[y] é um domı́nio principal, e
também que existem elementos α(x, y), β(x, y) ∈ C(x)[y] tais que

α(x, y)f (x, y) + β(x, y)g(x, y) = 1.

Lembramos que α(x, y) e β(x, y) são polinômios na variável y e com coeficientes no


corpo de frações C(x). Seja p(x) o mmc dos denominadores dos coeficientes de α(x, y) e
β(x, y). Observe que p(x) é não nulo. Existem polinômios a(x, y), b(x, y) ∈ C[x, y] tais
que α(x, y) = a(x,y)
p(x)
e β(x, y) = b(x,y)
p(x)
. Portanto:

a(x, y)f (x, y) + b(x, y)g(x, y) = p(x).

Como p(x) e fn (x) são não nulos, existe x0 ∈ C tal que p(x0 ) = 0 e fn (x0 ) = 0.
Observe que o polinômio f (x0 , y) ∈ C[y] é não constante. Como C é algebricamente
fechado, existe y0 ∈ C tal que f (x0 , y0 ) = 0. Como V (f ) ⊂ V (g), temos também que
g(x0 , y0 ) = 0. Pela fórmula acima segue que p(x0 ) = 0, contradizendo a escolha de x0 .

Observação 2.6 Um enunciado análogo nos números reais é obviamente falso, por exem-
plo para f = x2 + y 2 e g = x, temos V (f ) ⊂ V (g), mas f não divide g.

Este lema técnico é um precursor do Teorema dos Zeros de Hilbert (Hilbert Nullstel-
lensetz ), que em casos especiais de curvas, diz:

Corolário 2.7 Se f ∈ C[x, y] não é constante, então V (f ) = ∅.

Demonstração. Suponha V (f ) = ∅. Se h é um fator irredutı́vel de f , então V (h) ⊂


V (f ), ou seja, V (h) = ∅. Pelo Lema de Study, h divide qualquer g, pois V (h) = ∅ ⊂ V (g),
qualquer que seja g. Mas isto é impossı́vel.

Observação 2.8 Note que se V (f ) = ∅, então V (f ) contém infinitos pontos. De fato,


seja (x0 , y0 ) ∈ V (f ) então para todo λ ∈ R, têm-se f (λx0 , λy0 ) = 0, isto é, (λx0 , λy0 ) ∈
V (f ).
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3 Componentes irredutı́veis
Das numerosas consequências do Lema de Study, a primeira que nós discutiremos é a
decomposição de uma curva algébrica em suas componentes. Já que anéis de polinômios
sobre corpos são domı́nios de fatoração única, cada f ∈ C[x, y] admite fatoração

f = f1k1 . · · · .frkr ,

onde os f são irredutı́veis e não são dois a dois associados. Esta fatoração é única a
menos de multiplicação por constante e da ordem em que os fi ocorrem.
Portanto V (f ) = V (f1 ) ∪ · · · ∪ V (fr ), em outras palavras, a curva definida por f
pode ser decomposta nas componentes V (f ) . As próximas definições e resultados darão
significado mais preciso às componentes.

Definição 3.1 Uma curva algébrica C ⊂ C2 é chamada redutı́vel se existem curvas


algébricas planas C1 , C2 tais que C1 = C2 e C = C1 ∪ C2 . Nesse caso dizemos que C1 e C2
são componentes próprias de C. Se C não admitir componentes próprias, dizemos que C
é irredutı́vel, isto é, para toda decomposição C = C1 ∪ C2 segue que C1 = C2 .

Lema 3.2 Uma curva algébrica C = V (f ) ⊂ C2 é irredutı́vel se e somente se existir


k ∈ N − {0} e um polinômio irredutı́vel g ∈ C[x, y] tais que f = g k .

Demonstração. Seja C irredutı́vel e seja f = f1 .f2 , onde f1 e f2 são relativamente


primos e não constantes. Se h é um fator irredutı́vel de f1 , então temos que V (h) ⊂ V (f1 ),
mas como C é irredutı́vel temos V (f1 ) = V (f2 ) e pelo Lema de Study segue que h | f2 .
Mas isto não é possı́vel pois f1 e f2 são relativamente primos.
Reciprocamente, suponha que C seja redutı́vel, isto é, V (f ) = V (f1 ) ∪ V (f2 ) e
V (f1 ) = V (f2 ). Então existem fatores irredutı́veis hi de fi que não sejam associados
entre si. A inclusão V (hi ) ⊂ V (f ) e o Lema de Study implicam que f tem pelo menos
dois fatores primos distintos, o que contraria a hipótese de f ser irredutı́vel.

Teorema 3.3 Toda curva algébrica C ⊂ C2 admite representação C = C1 ∪ . . . ∪ Cr ,


onde C1 , . . . , Cr são curvas algébricas irredutı́veis. A representação é única a menos da
ordem em que os Ci ocorrem.

Demonstração. Seja C = V (f ) e seja f = f1k1 . · · · .frkr a fatoração de f em primos.


Já vimos que C = V (f ) = V (f1 ) ∪ . . . ∪ V (fr ) e pelo lema anterior segue que cada V (fi )
é irredutı́vel.
Para mostrar a unicidade basta mostrar que toda curva irredutı́vel C  ⊂ C é alguma
das Ci . Mas se C  = V (f  ), com f  irredutı́vel, então C  é irredutı́vel. Pelo Lema de
Study f  é um fator primo de f , mas pela unicidade da fatoração de polinômios segue que
f  tem que ser algum dos fi .

Definição 3.4 Os Ci , como em 3.3, são chamados componentes irredutı́veis da curva C.

Como vimos as componentes irredutı́veis de uma curva algébrica são unicamente de-
terminadas. Pelo Lema de Study, podemos também determinar os possı́veis fatores irre-
dutı́veis de um polinômio dado.
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Corolário 3.5 Seja C = V (f ) ⊂ C2 uma curva algébrica e seja f = f1k1 . · · · .frkr a


fatoração de f em fatores irredutı́veis. Se C = V (g) para algum outro polinômio g,
então:
g = λf1l1 . · · · .frlr
onde λ ∈ C∗ e l ∈ N − {0}.

Demonstração. Temos que C = V (f ) = V (f1 ) ∪ · · · ∪ V (fr ) e por hipótese que


C = V (g). Para cada i ∈ {1, . . . , r} temos que V (fi ) ⊂ V (f ) = V (g), onde cada fi é
fator irredutı́vel de f . Desse modo como V (fi ) ⊂ V (g), temos pelo Lema de Study que

n 
n
fi | g, para todo i ∈ {1, . . . , r}. Assim fili | g e portanto g = λfili como querı́amos.
i=1 i=1

Isto nos dá uma completa visão das possı́veis equações para C.

Definição 3.6 Por analogia com polinômios de uma variável, nós definimos f˜ = f1 . · · · .fr
como sendo o polinômio minimal da curva. Este é único, a menos da unidade

Observação 3.7 Temos a seguinte propriedade algébrica:


 
I (C) = h ∈ C[x, y] | h|C = 0
é um ideal no anel de polinômios. I (C) é chamado ideal de C, é um ideal principal e é
gerado pelo polinômio minimal (segue do corolário acima).

Agora vamos usar o polinômio minimal para definir o grau de uma curva algébrica:

Definição 3.8 Se C = V (f ) ⊂ C2 é uma curva algébrica e f o polinômio minimal,


então grau (C) = grau (f ) é o grau da curva C. Se f não é necessariamente o polinômio
minimal, dizemos que é o grau do divisor.

Em sequência daremos o significado geométrico do grau, considerando interseções de


curvas com retas.

4 Interseção de uma Reta com uma Curva Algébrica


Afim
Seja a reta L ⊂ C2 , dada pela parametrização:

ϕ : C −→ L ⊂ C2
,
t −→ (ϕ1 (t) , ϕ2 (t))
onde ϕi ∈ C [T ] são polinômios lineares.
Dada uma curva algébrica plana C = V (f ) ⊂ C2 , o nosso objetivo é encontrar uma
cota superior para o número de pontos de L ∩ C, isto é, uma cota para # (L ∩ C) . Para
isso vamos supor que f (x, y) ∈ C[x, y] é um polinômio de grau n e, L ⊂ C.
Para encontrar os pontos de L∩C, basta obter as raı́zes do polinômio em uma variável
complexa:
g(t) := f (ϕ1 (t) , ϕ2 (t)) ,
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isto é, os zeros de g correspondem aos pontos de interseção de C com L.


Como supomos que L ⊂ C, então g(t) não é identicamente nulo, e portanto # (L ∩ C)
é um conjunto finito. Observe também que grau g ≤ grau f , uma vez que alguns termos
de f podem ser cancelados quando substituı́mos ϕ(t). Assim, podemos estimar quantos
são os pontos de L ∩ C.
Como # (L ∩ C) é determinado pelo número de raı́zes de g(t), e já que este possui no
máximo n raı́zes tem-se:
# (L ∩ C) ≤ n.
Portanto, se C ⊂ C2 é uma curva algébrica de grau n e L ⊂ C2 é uma reta tal que
L ⊂ C, então # (L ∩ C) ≤ n.

Observação 4.1 Um resultado análogo a este nos números reais nos dá uma maneira
de mostrar que certos subconjuntos de R2 ou C2 não podem ser curvas algébricas, como
mostra o exemplo abaixo.

Exemplo 4.2 A senóide, a ciclóide e a hipociclóide com razão de raios irracional, são
exemplos de curvas que não são algébricas. Em cada caso existem retas que não estão
completamente contidas nas curvas, mas que intersectam-nas em infinitos pontos.

O limitante dado para # (L ∩ C) raramente é alcançado nos números reais, mas nos
números complexos ele é “quase sempre” obtido. Existem dois motivos possı́veis para
L ∩ C possuir menos de n pontos:
1. O grau de g(t) pode ser menor do que n.

2. O grau de g(t) pode ser n, mas g(t) pode ter raı́zes múltiplas.
O segundo problema pode ser resolvido contando os pontos de interseção com as suas
respectivas multiplicidades (que serão definidas abaixo), e o primeiro considerando-se os
pontos de interseção no infinito. Um exemplo simples disso é quando C é uma reta paralela
à L, neste caso haverá apenas o ponto de interseção no infinito.

Definição 4.3 Seja L ⊂ C2 uma reta com parametrização linear ϕ(t) = (ϕ1 (t) , ϕ2 (t)),
onde ϕi ∈ C [t] são polinômios lineares. Seja f (x, y) ∈ C[x, y] e suponha que L ⊂ C =
V (f ). Seja g(t) := f (ϕ(t)). Dado um ponto P = (x(t0 ), y(t0 )) ∈ L ∩ V (f ) (ou seja, t0 é
uma raiz de g(t)), definimos a multiplicidade de interseção de L e C = V (f ) em P como
sendo a multiplicidade de t0 como raiz de g(t).

Exemplo 4.4 Seja L ⊂ C2 uma reta passando pela origem cuja parametrização é dada
por
ϕ : C −→ L ⊂ C2
t −→ (αt, βt),
com α, β ∈ C, e (α, β) = (0, 0). Seja f ∈ C[x, y] dado por f (x, y) = y − x2 . Veja que

g(t) = f (ϕ(t)) = βt − α2 t2

e então, para α = 0, temos


β
g(t) = 0 ⇐⇒ βt − α2 t2 = 0 ⇐⇒ t(β − α2 t) = 0 ⇐⇒ t = 0 ou t = .
α2
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Assim o número de pontos de interseção de L e V (f ) para α = 0 é 2. No entanto para


α = 0, temos g(t) = βt, e então

g(t) = 0 ⇐⇒ βt = 0 ⇐⇒ t = 0,

ou seja, existe apenas 1 ponto de interseção entre L e V (f ). Note que nesse caso grau
g(t) < 2.

É natural questionar se também é possı́vel obter uma estimativa para o número de


pontos de interseção de duas curvas algébricas quaisquer. A resposta a essa pergunta
será dada pelo Teorema de Bézout, que será apresentado na próxima seção como uma
aplicação da teoria de resultante de polinômios.

5 A Resultante e o Teorema de Bézout


O Teorema de Bézout fornece uma cota superior para o número de pontos de interseção de
duas curvas algébricas, que é o produto dos graus destas curvas. A versão mais geral nos
diz que duas curvas V (f ) e V (g) sem componentes irredutı́veis em comum e com graus
m e n, respectivamente, se intersectam em exatamente mn pontos, levados em conta os
“pontos no infinito” e as “multiplicidades de interseção”.
Apresentaremos aqui um caso particular desse teorema e para sua demonstração será
necessário desenvolver a teoria de resultante de dois polinômios.

Definição 5.1 Seja D um domı́nio. Sejam

f (x) = a0 xn + a1 xn−1 + · · · + an , a0 = 0

g(x) = b0 xm + b1 xm−1 + · · · + bm , b0 = 0
dois polinômios em D[x] de grau ≥ 1. A resultante de f (x) e g(x), denotada por Rf,g , é
o elemento do domı́nio D dado pelo seguinte determinante:
 
 a0 a1 . . . an−1 an 
 
 a . . . a a 
 0 n−1 n 
 .. .. .. 
 . . . 
 
 .
. .
. .
. 
 . . . 
 .. .. 
 . . a0 
 
Rf,g =  .. 
 b0 b1 . . . . . . . bm−1 bm 
 
 .. 
 . ... . . . bm−1 bm 
 . 
 .. 
 
 . 
 .. . . . . . . 
 
 b0 ... ... . . . . . . . . . bm 

sendo que existem m linhas de ai  s e n linhas de bi  s e as linhas são completadas com


zeros. A resultante entre um polinômio f (x) e sua derivada f  (x) (quando f  (x) não é
constante), é chamada discriminante de f (x).
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Veremos no próximo teorema que dados dois polinômios sempre é possı́vel calcular a
resultante deles e consequentemente, quando D for fatorial, é possı́vel determinar se eles
têm ou não um fator comum de grau ≥ 1.
Teorema 5.2 Seja D um domı́nio. Sejam
f (x) = a0 xn + a1 xn−1 + · · · + an , a0 = 0
g(x) = b0 xm + b1 xm−1 + · · · + bm , b0 = 0
dois polinômios em D[x] de grau ≥ 1. Então as seguintes condições são equivalentes:
1. Rf,g = 0.
2. Existem polinômios

0 = f1 (x) ∈ D[x] de grau ≤ n − 1


0 = g1 (x) ∈ D[x] de grau ≤ m − 1

tais que f1 (x)g(x) = g1 (x)f (x).


3. Se D é um domı́nio fatorial, f (x) e g(x) possuem um fator comum em D[x] de grau
≥ 1.
Demonstração. (1 ⇐⇒ 2) Encontrar 0 = f1 (x) = α1 xn−1 + α2 xn−2 + . . . + αn
e 0 = g1 (x) = β1 xm−1 + β2 xm−2 + . . . + βm em D[x] tais que f1 (x)g(x) = g1 (x)f (x) é
equivalente a encontrar uma solução não trivial em D do seguinte sistema de (n + m)
equações nas incógnitas β1 , β2 , . . . , βm , α1 , α2 , . . . , αn :

(termo em xn+m−1 )   a0 β1 − b0 α1 = 0
n+m−2 

(termo em x )  a1 β1 + a0 β2 − b1 α1 − b0 α2 = 0
... ...


... 
 ...

(termo constante ) an βm − bm αn = 0
Agora, é fácil ver que existe uma solução não-trivial deste sistema em D se e somente
se existe uma tal solução não-trivial no corpo de frações K de D, ou seja, pela regra de
Cramer, se e somente se o determinante da matriz dos coeficientes do sistema é nulo. Isto
conclui a prova pois a resultante é o determinante de uma matrz que é a transposta da
matriz do sistema a menos de multiplicação por −1 das linahs envolvendo bj  s.

(3 ⇒ 2) Como f (x) e g(x) possuem um fator em comum p(x) em D[x] de grau ≥ 1,


então temos:
f (x) = p(x)f1 (x) com f1 (x) ∈ D[X], grau f1 (x) < n
g(x) = p(x)g1 (x) com g1 (x) ∈ D[X], grau g1 (x) < m
e, claramente, f1 (x)g(x) = g1 (x)f (x) (Note que neste sentido não se utilizou que D é
fatorial).

(2 ⇒ 3) Sejam f1 (x), g1 (x) ∈ D[x] tais que f1 (x)g(x) = g1 (x)f (x). Sendo D[x] fato-
rial, todos os fatores irredutı́veis de de grau geq1 aparecem no produto f1 (x)g(x); nem
todos eles podem aparecer em f1 (x), pois, por hipótese temos grau f1 (x) < grau f (x);
assim pelo menos um dos fatores irredutı́veis de grau ≥ 1 de f (x) aparecem em g(x).
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Corolário 5.3 Sejam D e D dois domı́nios, D fatorial. Sejam f (x), g(x) ∈ D[x] de grau
≥ 1. Então, f (x) e g(x) Têm um fator em comum de grau ≥ 1 em D[x] se e somente se
eles têm um fator comum de grau ≥ 1 em D [x].

Demonstração. Se f (x) e g(x) têm um fator comum de grau ≥ 1 em D [x], então a


resultante Rf,g = 0 (segue da implicação (3 ⇒ 1) de 5.2, para a qual não se precisa supor
D fatorial, como observamos acima); logo f (x) e g(x) têm um fator comum de grau ≥ 1
em D[x] (implicação (1 ⇒ 3) de 5.2). A recı́proca é clara.

Proposição 5.4 Nas hipóteses de 5.2 têm-se que a resultante Rf,g é uma soma de termos
do tipo ±ai1 . . . aim bj1 . . . bjn com i1 + . . . + im + j1 + jn = nm.

A demonstração de 5.4 pode ser encontrada em [3], assim como outros resultados sobre
resultante. Vamos agora aplicar os resultados acima a polinômios em C[x, y] = C[y][x],
lembrando que C[y] é domı́nio euclidiano, e logo domı́nio fatorial.

Teorema 5.5 (Teorema de Bézout) Sejam f (x, y), g(x, y) ∈ C[x, y] e sejam V (f ) e
V (g) as curvas algébricas associadas de graus n, m ≥ 1. Se f (x, y) e g(x, y) não possuem
fator irredutı́vel em comum, então

#(V (f ) ∩ V (g)) ≤ nm.

Demonstração. Para a prova deste teorema vamos precisar da resultante (denotada


por Rf,g (y)) de f (x, y) e g(x, y) considerados como polinômios em C[y][x], i.e. Rf,g (y) é o
determinante da matriz dada em 5.1, onde ai = ai (y) e bi = bi (y). Como f (x, y) e g(x, y)
não têm fator comum em C[y][x], segue de 5.3 que f (x, y) e g(x, y) não têm fator comum
em C(y)[x] (em 5.3 tome D = C[y] e D = C(y), onde C(y) denota o corpo das frações de
C[y]). Portanto, pelo teorema 2.2, existem a, b ∈ C(y)[x] tais que

1 = af + bg.

Multiplicando por um denominador comum d(y) ∈ C[y] para a e b, obtemos

d(y) = a1 (x, y)f (x, y) + b1 (x, y)g(x, y)

com a1 (x, y), b1 (x, y) ∈ C[x, y].


Se (x, y) ∈ C2 é tal que f (x, y) = g(x, y) = 0, então d(y) = 0. Assim existe somente
um número finito de ordenadas possı́veis para um ponto em C2 da interseção das curvas
determinadas por f e por g, a saber as raı́zes em C do polinômio d(y). Agora, para uma
ordenada fixa y0 ∈ C, existem no máximo n pontos em C2 da curva determinada por
f (x, y) com esta ordenada y, a saber os pontos (x, y) ∈ C2 tais que x0 seja uma raiz de
f (x, y0 ). Fica assim provado que

#(V (f ) ∩ V (g)) < ∞.

Como C é algébricamente fechado, então C é infinito. Como o número de pontos de


interseção é finito o número de retas passando por dois destes pontos também é finito.
Tomando como reta y = 0 uma que não seja paralela a nenhuma destas retas, obtemos um
sistema de coordenadas no qual pontos distintos da interseção têm ordenadas distintas.
268 FAMAT em Revista - Número 09 - Outubro de 2007

Logo: #(V (f )∩V (g)) = #{y ∈ C | f (x, y) e g(x, y) têm uma raiz em comum em C} ≤
#{y ∈ C | f (x, y) e g(x, y) têm um fator em comum em C[x]}.
Observe que por 5.2, se f (x, y) e g(x, y) têm um fator em comum em C[x], então
Rf,g (y) = 0. Assim, #{y ∈ C | f (x, y) e g(x, y) têm um fator em comum em C[x]} =
#{y ∈ C | Rf,g (y) = 0}.
Agora como Rf,g (y) é um polinômio de C[y], segue que #{y ∈ C | Rf,g (y) = 0} =
grau(Rf,g (y)), e finalmente, por 5.4, tem-se que grau(Rf,g (y)) ≤ nm, pois grau ai (y) ≤ i
e grau bj (y) ≤ j.
Portanto #(V (f ) ∩ V (g)) ≤ nm.

Observação 5.6 Na forma mais geral do Teorema de Bézout, temos a hipótese de que as
curvas V (f ) e V (g) não podem ter componentes irredutı́veis em comum. Já nessa versão
mais fraca, a hipótese era que f (x, y) e g(x, y) não possuem fator irredutı́vel em comum.
Essas condições são equivalentes, e é o que mostraremos a seguir.

Proposição 5.7 A condição de que f (x, y) e g(x, y) não têm fatores irredutı́veis em
comum é equivalente a condição de que V (f ) e V (g) não têm componentes irredutı́veis
em comum.

Demonstração. De fato, suponha que V (f ) e V (g) tenha a componente V (h) em co-


mum. Assim, h é irredutı́vel, pois caso contrário, h = k.l e então V (h) = V (k) ∪ V (l),
i.e. V (h) seria redutı́vel. Agora como V (h) ⊂ V (f ) e V (h) ⊂ V (g), temos pelo Lema de
Study que h | f e h | g, ou seja, h é fator irredutı́vel comum. A demonstração é análoga
quando V (f ) e V (g) possuem mais de uma componente em comum.
Reciprocamente, suponha que f e g possuam fator irredutı́vel em comum, a saber h.
Assim, f = k.h e g = l.h, consequentemente, V (f ) = V (k) ∪ V (h) e V (g) = V (l) ∪ V (h),
ou seja, V (f ) e V (g) possui componente irredutı́vel em comum. Análogo para quando f
e g possuem mais de um fator irredutı́vel em comum.

A versão mais geral deste resultado é dada considerando-se ao invés do plano afim
C o plano projetivo P2 (C). Nesse “novo plano” dá-se sentido aos pontos no infinito, e é
2

possı́vel atribuir multiplicidades de interseção de maneira que o número total de pontos


comuns às duas curvas, contados com multiplicidade, seja igual ao produto dos graus
dessas curvas, o que em essência é o enunciado do Teorema de Bézout.

Referências
[1] Araújo, C., Introdução às curvas algébricas planas, Notas da Jornada de Iniciação
Cientı́fica, IMPA (2006)

[2] Fischer, G., Plane algebraic curves, AMS (2001).

[3] Garcia, A. & Lequain, Y., Álgebra um curso de introdução, IMPA (1988)

[4] Vainsencher, I., Introdução às curvas algébricas planas, Coleção Matemática Univer-
sitária, IMPA (2005).

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