Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Concluída a nossa IC1, percebemos que o trabalho poderia ganhar uma lapidada em
sua parte teórica. Escolhemos nessa tese Antoine Berman para ser o nosso fio condutor em
nossa pesquisa. Até o momento, nos dedicamos à leitura de sua obra, principalmente de sua
obra "A tradução e a letra ou o albergue do longínquo" em tradução de Marie-Hélène
Catherine Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini de 2007. O autor elabora um projeto de
tradução que visa uma reviravolta em relação à abordagem clássica. Em vez de focar na
tradução do sentido, visa antes de tudo a tradução da “literalidade carnal” do texto. Essa
literalidade não se confunde com a “tradução letra-por-letra”, mas visa tentar reproduzir a
estranheza do original, manifestando as suas experiências em vez de simplesmente comunicar
o seu sentido. Isso implica, para dar um exemplo, tentar reproduzir a sonoridade do original
escolhendo palavras com sons semelhantes. Conceito difícil de precisar, Berman vai além da
simples questão fonética. Sua noção de literalidade implica tentar reproduzir todas as
estruturas do original, todo o seu esqueleto.
Neste livro, Berman estuda alguns casos de traduções que considera exemplares e cita
algumas noções dos quais nos valeremos em nosso trabalho. Uma delas é a de língua
mediadora na tradução. Segundo o autor:
Em outro momento, Berman ainda cita o caso da tradução da Eneida por Pierre
Klossowski. A língua mediadora seria o alemão, devido à própria especialidade de
Klossowski, mas também pela nação alemã ter trabalhado muito com traduções latinas e
gregas no século XIX.
Neste trabalho de IC, também nós refaremos a tradução tendo em vista uma terceira
língua, no caso, o italiano. Para tanto, usaremos como referência a tradução “La prima sorsata
di birra e altri piccoli piaeri dela vita” traduzida por Leonella Prato Caruso de 1998. Isso nos
leva a outra noção tomada de Berman:
Ainda acrescenta o filósofo francês “Para nós; isto significa: a tradução literal é
obrigatoriamente uma retradução, e vice-versa. “.
Fica claro, então, que as primeiras traduções não podem ser as melhores, por isso
refaremos as traduções já realizadas no nosso mencionado trabalho de IC1.
Outro empréstimo tomado do tradutólogo é a sua valorização da neologia, pois,
segundo o filósofo francês, toda grande tradução se distingue pela sua riqueza neológica. Em
nossa nova tradução não hesitaremos em ousar criar neologismos em alguns casos.
Faço esta seção para comentar alguns aspectos gerais de nossa tradução, para evitar
repetir essas observações em cada texto e para que foquemos apenas no que é próprio de cada
um em seu devido comentário. Geralmente, Delerm descreve a partir da partícula impessoal
On, como em On entre dans la cave em L’odeur de pommes. Na nossa primeira não
traduzimos como “Entramos na cave” ou “Entra-se na cave”, mas sim “Entro no porão”.A
justificativa citada foi: “Achei melhor tomar essa decisão para tornar as experiências relatadas
mais íntimas e mais próximas do leitor”. Há uma tentativa de melhorar o original tornando as
lembranças mais íntimas.
Na versão italiano se usa Entriamo in cantina ou seja, usa a primeira pessoa do plural
como marca de impessoalidade (uso que também se faz no português). Porém, também havia
a possibilidade de se dizer “Si entra in cantina”, ou seja, no italiano também há o recurso da
partícula impessoal. Por um lado, parecem sinônimos, mas se pensarmos bem, devido certa
ambiguidade do primeiro uso, temos uma sensação de maior proximidade, enquanto com a
partícula impessoal temos a sensação de maior afastamento, assim como no português.
Decidimos para esta nova tradução usar sempre a partícula impessoal, o que representa
uma grande mudança em relação à primeira tradução. Essa mudança não é irrefletida, muito
pelo contrário, significa uma nova leitura da obra de Delerm. A primeira leitura foi menos
refletida, uma tradução palavra-por-palavra. Nesta segunda tradução tentamos absorver
melhor a forma geral da obra do autor best-seller. Como mencionamos no início, Delerm se
inspira no lendário Marcel Proust, autor marcado por suas descrições psicológicas. Cremos
que com essa nova opção tradutória representemos melhor o psicologismo em Delerm.
Ademais, as impressões e memórias relatadas são por demais fugazes, esvoaçam-se num
instante. A perspectiva da intimidade parece ser impossível, pois os pequenos prazeres de
Delerm passam tão rapidamente pela mente que mal se fazem notar. É preciso enquadrá-las
desde fora para que possamos pensar nela. Por isso a impessoalidade. É como o detetive que
para ver a cena capturada de um fugitivo desse pausas no vídeo para o ver melhor. Assim
cremos sermos mais fiel ao literato. Vale destacar que de certa fomos mais ousados que a
edição italiana, pois a outra opção impessoal deixa certo vestígio de pessoalidade.
Comentário
Mas o primeiro gole! Gole? Na verdade, começa bem antes da garganta. Já nos lábios esse
ouro espumante, esse frescor amplificado pela espuma, depois lentamente no paladar alegre filtrado
pelo amargor. Como parece longo o primeiro gole! Nós o bebemos imediatamente, com uma avidez
falsamente instintiva. De fato, tudo está no roteiro: a quantidade, aquele nem muito nem pouco que
dá ao início a medida certa; o bem-estar imediato pontuado por um suspiro, um estalo na língua, em
que um silêncio os valoriza; a sensação enganadora de um prazer que se abre ao infinito... Ao mesmo
tempo, já sabemos. O melhor já passou. Repousamos nosso copo e o afastamos um pouco no
descanso para copos. Saboreamos a cor, falso mel, sol frio. Todo um ritual de sabedoria e de
atenção, gostaríamos de controlar o milagre que ao mesmo tempo, em que acontece, se deixa
escapar. Sobre o copo lemos com satisfação o nome preciso da cerveja que pedimos. Mas continente
e conteúdo podem se interrogar, se responder em abismo, sem se multiplicar mais. Gostaríamos de
guardar o segredo do ouro puro, e transcrevê-lo em fórmulas. Mas diante da mesinha branca
aspergida pelo sol, o alquimista desiludido salva apenas as aparências, e bebe cada vez mais cerveja
com cada vez menos alegria. É uma felicidade amarga: bebemos para esquecer o primeiro gole.
Comentário
A primeira tradução foi feita sem um projeto pré-definido, simplesmente se procurava
traduzir literalmente o texto segundo as idiossincrasias do tradutor.
Em um primeiro olhar, a tradução consegue imitar bem o estilo proposto por Delerm. A
introdução abrupta, a frase longa construída sem verbos e a enumeração sem conjunção.
Como propõe nosso método, convém comparar com outras traduções, como a italiana.
Esta segue bem de perto a versão francesa e é muito semelhante à nossa opção. Também contém
os elementos marcantes de Delerm. Uma ou outra diferença foi apresentada, como o
apagamento de “se répondre em abîme” que ficou “rispondersi tra loro”. Nós traduzimos “se
responder em abismo”, imitando o francês. O italiano também fez uma alteração em
“l’alchimiste déçu” que traduziu como “l’alchimista geloso”. Não conseguimos entender bem
a motivação. Traduzimos por “alquimista desiludido” que traduz bem o francês.
On entre dans la cave. Tout de suite, c’est ça qui vous prend. Les pommes sont là,
disposées sur des claies – des cageots renversés. On n’y pensait pas. On n’avait aucune envie
de se laisser submerger par un tel vague à l’âme. Mais rien à faire. L’odeur des pommes est une
déferlante. Comment avait-on pu se passer si longtemps de cette enfance âcre et sucrée ?
Les fruits ratatinés doivent être délicieux, de cette fausse sécheresse où la saveur confite
semble s’être insinuée dans chaque ride. Mais on n’a pas envie de les manger. Surtout ne pas
transformer en goût indentifiable ce pouvoir flottant de l’odeur. Dire que ça sent bon, que ça
sent fort ? Mais non. C’est au-delà… Une odeur intérieure, l’odeur d’un meilleur soi. Il y a
l’automne de l’école enfermé là. À l’encre violette on griffe le papier de pleins, de déliés. La
pluie bat les carreaux, la soirée sera longue…
Mais le parfum des pommes est plus que du passé. On pense à autrefois à cause de
l’ampleur et de l’intensité, d’un souvenir de cave salpêtrée, de grenier sombre. Mais c’est à
vivre là, à tenir là, debout. On a derrière soi les herbes hautes et la mouillure du verger. Devant,
c’est comme un souffle chaud qui se donne dans l’ombre. L’odeur a pris tous les bruns, tous les
rouges, avec un peu d’acide vert. L’odeur a distillé la douceur de la peau, son infime rugosité.
Les lèvres sèches, on sait déjà que cette soif n’est pas à étancher. Rien ne se passerait à mordre
une chair blanche. Il faudrait devenir octobre, terre battue, voussure de la cave, pluie, attente.
L’odeur des pommes est douloureuse. C’est celle d’une vie plus fort, d’une lenteur qu’on ne
mérite plus.
Os frutos enrugados devem estar deliciosos, desta falsa secura onde o sabor confit parece
estar insinuado em cada ruga. Mas não se tem vontade de comê-las. Sobretudo de não
transformar em gosto identificável este poder flutuante do cheiro. Dizer que isso cheira bem,
que isso cheira forte? Mas não. Está além. Um cheiro interior, o cheiro de um eu melhor. Há
um outono da escola preso lá. Em tinta violeta se arranha o papel inteiro. A chuva bate nas
janelas, a noite será longa...
Mas o perfume das maçãs é mais que passado. Pensa-se em outrora por causa da
amplitude e da intensidade, de uma recordação da cave salpicada, de sótão sombrio. Mas é para
viver lá, segurar lá, de pé. Tem-se atrás de si o mato alto e o molhado do pomar. Diante, é como
um sopro quente que se dá na sombra. O odor pegou todos os castanhos, todos os vermelhos,
com um pouco de verde ácido. O odor destilou a doçura da pele, sua ínfima rugosidade. Os
lábios secos, sabe-se já que esta sede não é para ser estancada. Nada se passaria ao morder uma
carne branca. É preciso se tornar outubro, terra batida, a porta da cave, chuva, espera. O odor
das maçãs é doloroso. É aquele de uma vida mais forte, de uma lentidão que não se merece
mais.
Entro no porão. Imediatamente, é isso que me prende. As maçãs estão lá, dispostas sobre as
claies - caixotes virados de cabeça para baixo. Tento não pensar nisso. Não tinha nenhuma
vontade de me deixar levar por um tal vazio na alma. Mas não deu certo. O odor das maçãs é
hipnotizante. Como pude viver todos esses anos longe desta infância agridoce?
Com certeza os frutos murchos estão deliciosos, de uma falsa secura em que o sabor
cristalizado parece estar insinuado em cada ruga. Mas não tenho vontade de comê-los.
Sobretudo tenho vontade de dar a conhecer ao paladar esse impacto dado ao olfato. Para dizer
que cheira bem, que cheira forte? Mas não. Vai além... Um cheiro interior, o odor de um eu
melhor. Há ali o outono da escola fechada. Rabisco o papel inteiro com tinta violeta, letras sutis.
A chuva bate na janela, a noite será longa...
Mas o perfume das maçãs é mais do que passado. Penso nos velhos tempos por causa
da magnitude e intensidade, da lembrança de um porão de invadir os sentidos, um celeiro
escuro. Bem gostaria eu de viver nessa lembrança, de estar em carne e osso ali. Atrás de mim,
a grama alta e o orvalho do pomar. À frente, é como um fôlego quente na sombra. O odor tomou
conta de todos os marrons, todos os vermelhos, com um pouco de verde ácido. O odor destilou
a doçura da pele, sua ínfima rugosidade. Os lábios secos, e – como já disse- esta sede não deve
ser saciada, é um contentamento descontente. Nada aconteceria ao morder a carne branca. Devo
esperar o momento de ser absorvido pelo outono, pela chuva e pela terra molhada. O odor das
maçãs é doloroso. É o de uma vida mais forte, de uma lentidão que já não mereço mais
Comentários
ir confite por confit. Na culinária existe a expressão de pratos confits. Vale lembrar que a
palavra também parece ser obscura no francês, não sendo de fácil tradução. O fator de
estranheza parece justificado aqui. Até o fim do parágrafo, restituímos a ordem original e
tentamos traduzir de maneira mais literal. Uma coisa a se notar, é que a primeira tradução parece
não ter um bom ritmo. Na tentativa de enobrecer ou de usar uma ordem mais racional ao
português, a estrutura geral do texto parece se perder. Berman já havia dado nome a essas duas
tendências deformantes: enobrecimento e racionalização. O ritmo da tradução atual parece mais
harmonioso.
Le cinéma
Ce n’est pas vraiment une sortie, le cinéma. On est à peine avec les autres. Ce qui compte,
c’est cette espèce de flottement ouaté que l’on éprouve en entrant dans la salle. Le film n’est pas
commencé ; une lumière d’aquarium tamise les conversations feutrées. Tout est bombé, velouté,
assourdi. La moquette sous les pieds, on dévale avec une fausse aisance vers un rang de fauteuils
vide. On ne peut pas dire qu’on s’assoie, ni même qu’on se carre dans son siège. Il faut apprivoiser ce
volume rebondi, mi-compact, mi-moelleux. On se love à petits coups voluptueux. EN même temps, le
parallélisme, l’orientation vers l’écran mêlent l’adhésion collective au plaisir égoïste.
Le partage s’arrête là, ou presque. Que saura-t-on de ce géant désinvolte qui lit encore son
journal, trois rangs devant ? Quelques rires peut-être, aux moments où l’on n’aura pas ri – ou pire
encore : quelques silences aux moments où l’on aura ri soi-même. Au cinéma, on ne se découvre pas.
On s’enfoncer. On est au fond de la piscine, et dans le bleu tout peut venir de cette fausse scène sans
profondeur, abolie par l’écran. Aucune odeur, aucun coulis de vent dans cette salle penchée vers une
attente plate, abstraite, dans ce volume conçu pour déifier une surface.
L’obscurité se fait, l’autel s’allume. On va flotter, poisson de l’air, oiseau de l’eau Le corps va
s’engourdir, et l’on devient campagne anglaise, avenue de New York ou pluie de Brest. On est la vie,
la mort, l’amour, la guerre, noyé dans l’entonnoir d’un pinceau de lumière où la poussière danse.
Quand le mot fin s’inscrit, on reste prostré, en apnée. Puis la lumière insupportable se rallume. Il fau
se déplier alors dans le coton, et s’ébrouer vers la sortie en somnambule. Surtout ne pas laisser
tomber tout de suite les mots qui vont casser, juger, noter. Sur la moquette vertigineuse, attendre
patiemment que le géant au journal soit passé devant. Cosmonaute pataud, garder quelques
secondes cette étrange apesanteur.
O cinema
Não é exatamente um passeio, o cinema. Fica-se com dificuldade entre os outros. O que
conta, é esta espécie de flutuação algodoada que se experimenta ao entrar na sala. O filme não
começou ; uma luz de aquário ofusca as conversações feltradas. Tudo é abaulado, aveludado,
abafado. O carpete sob os pés, desliza-se com uma falsa com uma falsa fluidez em direção à uma fila
de poltronas vazia. Não se pode dizer que se senta, nem mesmo que se espalha em seu assento. É
preciso domar esse volume arredondado, meio-compacto, meio-macio. Ama-se a pequenos golpes
voluptuosos. Ao mesmo tempo, o paralelismo, a orientação em direção à tela misturam a adesão
coletiva ao prazer egoísta.
A partilha para lá, ou quase. Que será deste gigante desenvolto que ainda lê seu jornal, três
fileiras à frente ? Alguns risos talvez, nos momentos que não se ri - ou pior ainda : o silêncio nos
momentos em que se ri sozinho. No cinema, não se fica exposto. Afunda-se. Está-se ao fundo de uma
piscina, e no azul tudo poder vir desta falsa cena sem profundidade, abolida pela tela. Nenhum
cheiro, nenhum vento corre nesta sala inclinada em direção a uma expectativa sem animação,
abstrata, neste volume concebido para deificar uma superfície.
A obscuridade se faz, o altar se acende. Vamos flutuar, peixe do ar, pássaro de água. O corpo
vai se entorpecer, e nos tornamos campo inglês, avenida de Nova Iorque ou chuva de Brest. É-se a
vida, a morte, o amor, a guerra, afogado no funil de um pincel de luz em que a poeira dança. Quando
a palavra fim aparece, fica-se prostrado, em apneia. Em seguida a luz insuportável se acende. É
preciso então se desprender do tecido, e se agitar em direção à saída como um sonâmbulo.
Sobretudo não se deixar cair imediatamente as palavras que vão quebrar, julgar e classificar. Sobre o
carpete vertiginoso, esperar pacientemente que o gigante do jornal tenha passado adiante.
Cosmonauta patudo, manter por alguns segundos esta estranha agravidade.
Globo de vidro
É inverno para sempre, na água dos globos de vidro. Pega-se um nas mãos. A neve flutua em
câmera lenta, num turbilhão nascido do chão, primeiro opaco, evanescente ; depois os flocos se
espaçam, e o céu azul turquesa retoma sua fixidez melancólica. Os últimos pássaros de papel
permanecem suspensos alguns segundos antes de caírem. Uma preguiça penugenta os convida a
reencontrar o solo. Repousa-se o globo. Alguma coisa mudou. Na aparente imobilidade do
ornamento, escuta-se doravante como um apelo. Todos os globos são iguais. Que seja fundo de mar
atravessado de algas e de peixes, torre Eifel, Manhattan, papagaio, paisagem de montanha ou
lembrança de Saint-Michel, a neve dança e depois muito lentamente para de dançar, dispersa-se e se
apaga. Antes do baile de inverno não havia nada. Depois... Sobre o Empire State Building restou um
floco, lembrança impalpável que a água dos dias não elimina. Aqui o chão permanece repleto de
pétales ligeiras da memória.
Dentro, o ar é de água. Não se importamos de início. Mas olhando bem, uma bolhinha está
presa lá em cima. O olhar muda. Não se vê mais a Torre Eiffel no céu azul de abril, a fragata cortante
num mar espalha. Tudo se torna uma claridade pesada ; atrás da parede, correntes flutuam acima
das torres. Reinos de altas solidões, meandros graves, imperceptíveis movimentos no silêncio fluído.
O fundo é pintado em azul leite até o teto, ao céu, à superfície. Azul de doçura falsa que não existe e
cuja beatitude acaba por inquietar, como se pressente nas armadilhas do destino num início de tarde
pisada de sesta e de ausência. Pega-se o mundo nas mãos, o globo é rápido quase quente Uma
avalanche de flocos elimina de um só golpe esta angústia latente das correntes. Neva no fundo de si,
num inverno inacessível onde o leve vence sobre o pesado. A neve é leve no fundo da água.
Pegamos vários doces, é claro. Uma religieuse no café, um paris-brest, duas tortas de
morango, um mil-folhas. Com exceção de um ou dois, sabemos a quem cada um é destinado – mas o
que irá sobrar para os gulosos? Debulhamos os nomes sem pressa. Do outro lado do balcão, a
vendedora, com a pinça de bolo na mão, mergulha com submissão em direção aos nossos desejos;
nem sequer mostra impaciência quando tem de mudar a embalagem – o mil-folhas não aguenta. É
fundamental essa embalagem plana, de bordas arredondadas. Ela vai constituir a base sólida de um
edifício frágil, rumo ao destino ameaçado. - Mais alguma coisa? Então a vendedora envolve a
embalagem numa pirâmide de papel rosa, já atada com uma fita castanha. Durante o pagamento,
seguramos o pacote na palma da mão, mas uma vez que ganhamos a rua, o seguramos pela fita,
afastando-o um pouco do corpo. É assim. As guloseimas do domingo devem ser carregadas como se
carrega um bebê. Como um homem de pequenos ritos, avançamos sem arrogância e nem falsa
modéstia. Essa espécie de escrúpulo, de seriedade de rei mago, não é ridícula? Mas não é. Se as
calçadas de domingo têm um ar de flâneur, a pirâmide suspensa está ali por alguma razão – aqui e ali
alguns alhos-poró se sobressaem no saco de compras. Com o pacote de doces à mão, ganhamos a
silhueta do professor Girassol – o que é imprescindível para cumprimentar a multidão depois da
missa e de dar uns chutes a gol, do café e do cigarro. Singelos domingos em família, domingos de
outrora, domingos de hoje, o tempo balança como um incensário na extremidade de uma fita
castanha. Um pouco de creme faz uma mancha na religieuse de café.