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DEPARTAMENTO DE DIREITO

MICHEL FOUCAULT E “O ALIENISTA” DE


MACHADO DE ASSIS

por

ELAINE FASOLLO DE AZEVEDO

ORIENTADOR(A): BETHANIA ASSY

2009.1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900

RIO DE JANEIRO - BRASIL


MICHEL FOUCAULT E “O ALIENISTA”
DE MACHADO DE ASSIS
por

ELAINE FASOLLO DE AZEVEDO

Monografia apresentada ao
Departamento de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do
Título de Bacharel em Direito.

Orientador(a): Bethania Assy

2009.1
DEDICATÓRIA

A Deus, razão do meu viver.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, primeiramente, por se fazer tão presente em minha vida,


principalmente nesses cincos anos de universidade e mais ainda nessa etapa
final de monografia; a PUC-RIO, que financiou muito solidariamente todas
as mensalidades durante minha formação; aos meus pais pela assistência,
carinho, apoio e por acreditarem tanto em meu potencial; a minha irmã
Leilane pelas noites em que não a deixei dormir por conta das luzes do
quarto acesas enquanto estudava, além de todo amor que demonstra por
mim; a minha avó Helena pelas promessas para passar ilesa pelas
dificuldades que insistiam em atravessar o meu caminho; ao meu namorado
Aldo, fiel companheiro e amigo que dedicou tanto do seu tempo para me
fazer acreditar que era capaz de realizar meus sonhos; a toda minha família
que hoje sabem da profissional com quem podem contar; a amiga Renata,
que acompanhou tão de perto minha trajetória acadêmica, se fazendo
sempre presente através de seus conselhos que tanto me ajudaram a crescer;
a amiga Larissa, pela amizade sincera e ajuda constante sem esperar nada
em troca; a Natália, Raiana, Ana Motta e Giselle pelas conversas diárias em
sala que dinamizavam o início de cada aula; a amiga Graziela pelos dias de
discussão sobre inclusão social do negro no Brasil; ao projeto Phoenix por
possibilitar minha entrada como bolsista numa das melhores universidades
de Direito do Rio de Janeiro, principalmente à Sheila, idealizadora de tal
projeto, que com tanto esforço e luta continua realizando o sonho de tantos
em freqüentar as salas de uma faculdade; aos meus amigos da Igreja Nossa
Senhora Aparecida de Nilópolis, Roberta, Plínio, Cristina, Aline, Luane,
Elaine, Tatiane, Tarcila, Felipe e Marcelo, pela paciência com as minhas
ausências em prol da formatura; aos meus amigos do estágio, Beatriz
Primay, Diogo, Simone, Maurício, Amauri, Cristiane, Érika, Beatriz Spano,
Dr. Hélio pelo aprendizado profissional; a minha orientadora e professora
Bethania por ter certeza que esta monografia seria possível; a todos os
professores e funcionários do departamento de Direito da PUC-RIO que
participaram da minha formação, enfim, a todas as pessoas que estiveram
de alguma forma presentes em meu crescimento pessoal e acadêmico, que
ajudaram a ser a pessoa que sou hoje. Sem vocês, nada disso seria possível.
Vocês são os anjos que Deus confiou para me guardar e proteger...
“Pai, eu sei que o teu silêncio só me basta”
Chamando Deus de Pai
Anjos de Resgate.
RESUMO

Partindo do olhar filosófico de Michel Foucault e de seus estudos


sobre o poder e a loucura, o presente trabalho objetiva realizar uma análise
de “O Alienista”, contando sua estória e buscando encontrar nela traços
foucaultianos que servirão como parâmetro para uma reflexão de alguns
aspectos jurídicos encontrados na obra literária machadiana em tela. Mais
especificamente, este trabalho monográfico analisará a busca pelo poder
dentro da sociedade de Itaguaí, local onde a trama de Machado se
desenrola, e a formulação da loucura, que está totalmente ligada à questão
do poder que o médico local exerce perante todos por conta de seu saber
imensurável.

PALAVRAS-CHAVE: poder – saber-poder – disciplina – normalização –


loucura – instituição psiquiátrica – internamento – Direito e Literatura –
Machado de Assis – Foucault.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................. 08

CAPÍTULO 1
O PODER
1.1. O poder para Michel Foucault ......................................... 10
1.2. Genealogia Foucaultiana ................................................. 11
1.3. A normalização – disciplina ............................................. 14

CAPÍTULO 2
A LOUCURA
2.1. A formulação da loucura.................................................. 22
2.2. O poder psiquiátrico e o internamento ............................ 23

CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE DIREITO E LITERATURA
3.1. Literatura como forma interpretativa................................ 29
3.2. Law and Literature Moviment .......................................... 30

CAPÍTULO 4
MICHEL FOUCAULT E “O ALIENISTA”
4.1. A estória de “O Alienista” de Machado de Assis ............ 34
4.2. O poder de Foucault em “O Alienista” ............................ 38
4.3. A loucura foucaultiana na obra literária .......................... 43
4.4. Poder e loucura como questão jurídica na obra de
Machado de Assis..........................................................45

CONCLUSÃO................................................................................ 47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................. 50
INTRODUÇÃO

Os constantes questionamentos sobre a legitimação do poder durante todo


um curso de graduação em Direito, apontaram o foco principal para este trabalho
monográfico. Em meio a tantos estudos e teorias sobre como teria surgido o
poder, quem o detinha e por que, Michel Foucault aparece não para conceituar ou
inaugurar uma obra que serviria de referência para outras construções
discursivas, mas sim para diagnosticar as condições nas quais surgem os diversos
sistemas de pensamento1.
O filósofo, por meio de seus cursos, textos e artigos, procurou mostrar que
a sociedade propõe uma estrutura de poder que fornece conceitos pré-moldados,
feitos historicamente e eruditamente pela própria sociedade. Defende que a
criação de algumas instituições foi feita para distinguir saberes, elevando, assim,
aqueles que sabem em detrimento dos outros.
Sua proposta de estudo foi revogar a tirania dos discursos englobadores.
Volta o seu olhar para dentro dos micro-sistemas, ou seja, para dentro dos
pequenos mecanismos de poder dentro da sociedade, para, a partir daí observar
que o poder exercido pelo macro-sistema de Estado ou governo se respaldou no
poder exercido dentro dessas micro-estruturas, que estão nos métodos de ensino e
nas instituições principalmente.
Partindo dessas premissas, o objetivo deste trabalho será mostrar como
essas ideias foucaultianas permeiam a obra literária de Machado de Assis – “O
Alienista” – muito presente durante a narrativa. Nela, fica evidente a busca pelo
poder nos conflitos contra os internamentos ocorridos, combatendo a pretensão
do alienista Bacamarte em fincar sua posição científica já pré-determinada como
a correta e verdadeira, por se basear na razão, para justificar o asilo psiquiátrico
na cidade. Além disso, a formulação da loucura, realizada através do saber
médico, pretende estar nas mãos do único conhecedor sobre psiquiatria em
Itaguaí, ou seja, Dr. Simão Bacamarte. Estas considerações iniciais já conseguem

1
FONSECA, Márcio Alves Da. Michel Foucault e o Direito. 1ª ed. São Paulo: Editora Max Limonad,
2002. p. 19-20. (Doravante, FONSECA. Michel Foucault e o Direito).
9

se reportar a posição de Michel Foucault sobre saber-poder, sendo este o objetivo


do trabalho.
Diante desse contexto, toda essa análise foi, para tanto, dividida em 4
(quatro) capítulos.
Os capítulos 1 e 2 tem como objetivo trazer a pesquisa e a reflexão de
Foucault sobre os temas do poder e da loucura, deixando claro sua posição e
pensamento.
O terceiro capítulo pretende expor um pouco do movimento que, pela
primeira vez, trouxe um vínculo entre Literatura e Direito, a fim de dar base ao
estudo aqui realizado entre um filósofo, muito bem inserido no Direito, e um
grande autor literário brasileiro.
O quarto capítulo objetiva, por fim, traçar esse paralelo entre “O
Alienista” e as ideias de Michel Foucault, trazendo trechos da narrativa como
demonstrações sobre a questão do poder e da loucura foucaultianas, e de algumas
inserções jurídicas bem trazidas pelo texto de Machado de Assis.
Longe de esgotar o tema, a pretensão deste trabalho foi abordar apenas
essas incisões dentro do texto de Machado de Assis, tentando ligá-las a questões
jurídicas já debatidas. Muito mais haveria de compará-lo, visto que há outras
permeações foucaultianas em “O Alienista”.
CAPÍTULO I

O PODER

1.1. O poder para Michel Foucault

Michel Foucault, em toda sua trajetória de vida acadêmica, não se


dedicou em definir uma teoria do poder. Seu objetivo foi problematizá-lo,
afastando o aspecto negativo repressor de poder e analisando seu efeito
positivo e produtivo:

“Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos


negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’,
‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que
dele se pode ter se originam nessa produção” 2

Foi a partir dessa problemática que o filósofo, ao invés de teorizar,


estudou o poder baseado no que chamou de “analítica do poder”.
Tal concepção só é possível se afastadas as teorias jurídicas como
constituintes da imagem do poder enquanto soberania estatal que interdita,
censura, reprime; que se molda na figura do soberano, a quem, por meio de
um pacto todos os indivíduos cederam o seu poder3. Portanto, para que o
poder deixe de ser associado com repressão e interdição, é preciso que ele
deixe de ser visto como lei, como direito, precisando, assim, romper com a
sua visão jurídica, já que “o papel essencial da teoria do direito, desde a

2
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 35.
Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 161. (Doravante, FOUCAULT. Vigiar e Punir).
3
Hobbes engendrou uma teoria segundo a qual o Estado originou-se do contrato firmado entre os
indivíduos enquanto estes se encontravam no estado de natureza. Esta postura faz com que o
filósofo seja enquadrado como contratualista, categoria em que são também incluídos Locke e
Rousseau. (SANTOS, Marília Andrade Dos. O Leviatã. Disponível em
<br.monografias.com/trabalhos/o-leviata>. Acesso em 01 de junho de 2009.)
11

Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder”4 como direito originário


e soberano.
A partir daí, é possível afirmar que o poder para Foucault é
formulado a partir de um olhar que perpassa o Estado, que vai além dele,
para buscar nas microrrelações os elementos moleculares de sua realização
cotidiana. O poder é, então, analisado em suas formas e em suas instituições
mais locais, se afastando de um suposto centro de poder, realizando, assim,
uma análise descendente chamada genealogia foucaultiana, isso porque
parte de mecanismos infinitesimais até chegar àquelas gerais e globais. Ou
seja, a dinâmica das relações de poder permeia todo o corpo social, não
havendo um único foco de poder emanado pela figura do Estado, mas
diferentes focos de poder, tais como, Estado, escola, prisão, hospital, asilo,
família, fábrica, entre outros, que se apóiam uns nos outros. Isto quer dizer
que todo grupamento humano sempre está permeado de relações de poder,
pois coexiste à vida social e preexistiu à formação da figura do Estado. É
este redimensionamento que a analítica do poder dará conta.5
Deve-se, portanto, compreender que o poder não emana de um único
ponto, mas se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos circulam,
mas estão sempre em posição de serem submetidos a esse poder e também
de exercê-lo. Em outras palavras, “o poder transita pelos indivíduos, não se
aplica a eles” 6

1.2. Genealogia Foucaultiana

Quando Foucault passa a questionar certas figuras histórico-políticas


da vontade pela verdade e da vontade de saber que permearam a história

4
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976);
tradução de Maria Ermínia Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 31. (Doravante,
FOUCAULT. Em defesa da sociedade).
5
MAIA, Antônio C. Sobre a analítica do poder de Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São
Paulo, 7(1-2): 83-103, outubro de 1995. p. 88.
6
FOUCAULT. Em defesa da sociedade. Op.cit., p. 35.
12

ocidental, perguntando-se quem pode dizer algo e sob quais condições


institucionais, ele dá início ao período de suas investigações genealógicas.
Nelas, o autor centrará seus questionamentos nas relações intrínsecas entre
saber-poder-verdade7.
Traz em suas reflexões a ideia de que os regimes de verdade seriam o
resultado da interação entre relações de poder e formações de saber. O
poder estaria em estreita relação com o saber já que estabelece entre si uma
relação de mútua dependência e independência, uma fusão interprodutiva,
um novo conceito: o poder-saber8. Daí, o autor toma por base a tese de que
“não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois toda verdade gera
efeitos de poder e todo poder se ampara e se justifica em saberes
considerados verdadeiros” 9. Inspirado em Nietzsche, Foucault afirma que
por trás de todo saber o que está em jogo é uma luta de poder10.
É ao saber histórico das lutas que Foucault vai chamar de genealogia.

“O método genealógico poderia, assim, ser entendido como uma


‘anticiência’, na medida em que faria aparecerem saberes desqualificados,
descontínuos, locais e não-legitimados frente a qualquer instância teórica
que atuaria sobre eles, ordenando, filtrando e hierarquizando-os em nome
dos ‘direitos’ de uma ciência. As genealogias realizariam, propriamente, a
insurreição dos saberes sujeitados como parte de uma estratégia de poder.
Longe de ser apenas um procedimento teórico-metodológico, seria
também uma estratégia engajada de poder.” 11

Logo, é possível comparar a genealogia de Foucault como uma tática


que faria intervir, a partir da análise das discursividades locais, os saberes
sujeitados que daí se depreende, tendo como seu ponto constitutivo central

7
DUARTE, André. Foucault no século 21. CULT - Revista Brasileira de Cultura. Abril. Ano 12.
São Paulo, 2009. p. 46. (Doravante, DUARTE. Foucault no século 21)
8
POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Revista Lua
Nova. nº63. São Paulo, 2004. p. 199. (Doravante, POGREBINSCHI. Foucault, para além do poder
disciplinar e do biopoder)
9
DUARTE. Foucault no século 21. Op. cit., p. 46.
10
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas; tradução de Roberto Cabral de Melo
Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 51. (Doravante,
FOUCAULT. A verdade e as formas jurídicas)
11
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 100-101.
13

o questionamento sobre os mecanismos de poder e seus efeitos, que para o


filósofo só é possível se o reconhecimento da atuação dos diferentes
dispositivos de poder liberarem-se de uma representação jurídica.
Para tanto, o autor focou sua análise na constituição histórica das
relações de poder em seu caráter produtivo e eficaz, questionando nelas a
concepção filosófica moderna do sujeito constituinte, substituindo-a pela
concepção de que o sujeito é constituído historicamente, simultaneamente à
constituição das práticas e dos discursos que se multiplicaram nas diversas
instituições sociais como escola, hospital, quartel, fábricas.
Em relação à análise das relações de poder, fica claro verificar que
Foucault, por um lado, desvia a atenção da relação jurídica entre o Estado e
o cidadão e se volta para analisar microscopicamente as múltiplas relações
do poder presentes nas instituições sociais nas quais se compôs o indivíduo
disciplinado e normalizado. Por outro lado, o autor constatou que os micro-
poderes disciplinares é que exerciam seus efeitos positivos sobre o corpo
dos indivíduos, visando transformá-lo em corpo dócil e útil12. A partir daí,
com as pesquisas genealógicas, é que Foucault se propôs a investigar como
se produziu o indivíduo moderno, o sujeito sujeitado e disciplinado em seus
gestos, comportamentos, discursos, etc.
Graças a esta genealogia, através da qual se pode constatar um
processo de disciplinarização dos corpos dentro do aparato social e político
13
que Foucault denominou de “sociedade disciplinar” , é possível entender
teoricamente o surgimento das instituições da modernidade, já que o poder
passou a ser exercido de forma mais fluida na forma de micropoderes ou de
uma micropolítica.
O poder disciplinar vem a se exercer sobre os corpos individuais por
meio de exercícios especialmente desenhados para ampliação de suas forças
em espaços isolados e cerrados. Daí o surgimento do conjunto de
12
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 117.
13
CÉSAR, Maria Rita de Assis. Pensar a educação depois de Foucault. CULT - Revista Brasileira
de Cultura. Abril. Ano 12. São Paulo, 2009. p. 54.
14

instituições disciplinares, cuja pretensão era a normalização dos indivíduos


dentro da sociedade.

“A norma da disciplina e a norma da regulamentação dão origem ao que


Foucault chama de sociedade de normalização, uma sociedade regida por
essa norma ambivalente, na qual coexistem indivíduo e população, corpo
e vida, individualização e massificação, disciplina e regulamentação.”14

1.3. A normalização – disciplina

A análise de Foucault a respeito do poder se baseia na percepção


insuficiente dos estudos sobre o poder quando apoiados num modelo
jurídico, visto que privilegia o problema da legitimidade, ou daqueles
apoiados em um modelo institucional, cuja referência principal seria o papel
do Estado e de suas instituições. Quando o filósofo amplia essa análise, visa
privilegiar a descrição dos mecanismos de poder que permitem explicitar o
funcionamento das condutas dos indivíduos em uma época determinada.
Relativamente à época moderna, tais mecanismos serão descritos como
mecanismos de normalização, que tem como ponto de fixação imediato o
corpo dos indivíduos dentro de espaços institucionais precisos, como o asilo
psiquiátrico, o hospital, a fábrica, a prisão. Esses mecanismos são chamados
de disciplinas e se constituem por “métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
15
suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade” ,
demarcando espaços a serem ocupados, controlando o tempo em que os
indivíduos realizam suas atividades, conduzindo ao adestramento e ao
controle permanentes. Isso é o que Foucault chama de poder disciplinar16.
Michel Foucault define disciplina como uma “anatomia política do
detalhe” 17,

14
POGREBINSCHI. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Op. cit., p. 197.
15
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 118.
16
Ibid. p. 143.
17
Ibid. p. 120.
15

“no sentido em que o corpo é que se constitui no principal alvo de um


investimento político realizado por uma série de mecanismos. E tal
anatomia política pode ser considerada uma anatomia do ‘detalhe’, porque
os mecanismos que a compõem tem seu ponto de aplicação nas minúcias e
sutilezas da existência física dos indivíduos. O estudo sobre as disciplinas
será, segundo Foucault, necessariamente um estudo sobre os corpos
investidos capilarmente pelo poder”18

Logo, não se trata de cuidar do corpo considerando-o uma unidade


indissociável. É preciso cuidá-lo e trabalhá-lo em seus detalhes, exercendo
uma coerção sem folga, mantendo-o mecanicamente em seus movimentos,
gestos, atitude, rapidez. Esse é o poder infinitesimal sobre o corpo ativo que
se dá através da força. A esses métodos controladores do corpo, que
sujeitam o indivíduo com sua força, lhe impondo um aspecto dócil e útil,
denominam-se disciplinas, as quais se tornaram fórmulas gerais de
dominação. A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. E da mesma forma que aumenta as forças do corpo em
termos econômicos de utilidade, diminui essas mesmas em termos políticos
de obediência, fazendo disso uma forma de sujeição estrita. “Se a
exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que
a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada.” 19
Entendendo-se, então, por disciplina as técnicas ou mecanismos
aplicados aos indivíduos, sendo, portanto, uma tecnologia que tem os
corpos dos indivíduos seu objeto principal e privilegiado de investimento,
com a finalidade de formar neles hábitos constantes pelos quais é definida
sua pertença a uma sociedade qualquer, tem-se como “norma” todo esse
conjunto de hábitos20.
A normalização disciplinar vem, por sua vez, como o resultado da
efetivação dessa norma que para Foucault se dá como uma arte da
18
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 173.
19
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 119.
20
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 213.
16

distribuição dos indivíduos no espaço por meio da “clausura”, como


localização funcional de forma a que seus elementos se interliguem21.
A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos
no espaço, se utilizando de diversas técnicas. Muitas vezes exige a um
espaço cercado para especificar um local heterogêneo a todos, mas fechado
em si mesmo, de forma a não permitir a monotonia disciplinar, ou seja, de
forma que o aprisionamento não isole unicamente o indivíduo, mas o
aproveite de forma útil e produtiva, a fim de desbancar a ociosidade.
Essa organização vai evitar as distribuições por grupos, decompondo
as implantações coletivas; cada indivíduo se encontra em seu lugar em
separado segundo o princípio da localização imediata ou do
quadriculamento22. Segundo Foucault:

“O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos


ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições
indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação
difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de
antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as
ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as
comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o
comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades
ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar.
A disciplina organiza um espaço analítico.” 23

Essa regra das “localizações funcionais” 24 se dá a fim de estabelecer


lugares cerrados onde a vigilância seja efetiva a todo o momento,
impedindo as comunicações que possam exprimir algum perigo à disciplina
exercida e a observação individual seja objeto de relatórios e análises, visto
que favorece uma análise mais eficiente dos corpos, verificando melhor seu
comportamento e produção. A construção desse espaço ficou a livre cargo

21
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France (1973-1974); tradução
de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 84. (Doravante, FOUCAULT. O poder
psiquiátrico).
22
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 123.
23
Idem.
24
Idem.
17

da arquitetura, sendo Jeremy Bentham o idealizador do modelo Panóptico,


figura arquitetural dessa composição.

“(...) Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e


inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta
silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento
nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que
sempre pode sê-lo. Para tornar indecidível a presença ou a ausência do
vigia, para que os prisioneiros, de suas celas, não pudessem nem perceber
uma sombra ou enxergar uma contraluz, previu Bentham, não só persianas
nas janelas da sala central de vigia, mas, por dentro, separações que a
cortam em ângulo reto e, para passar de um quarto a outro, não portas,
mas biombos: pois a menor batida, uma luz entrevista, uma claridade
numa abertura trairiam a presença do guardião. O Panóptico é uma
máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é
totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca
ser visto.” 25

Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, ou seja, cada um se


define pela posição que ocupa na série e pela distância que o separa dos
outros. A unidade vem a ser o lugar que alguém ocupa numa classificação.
Em outras palavras, unidade quer dizer o ponto em que se cruzam uma
linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode
percorrer sucessivamente.

“A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos


arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os
implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações.” 26

Esses espaços, por organizarem “celas”, “lugares”, “fileiras”, são


denominados espaços complexos que realizam a fixação e permitem a
circulação, garantindo a obediência dos indivíduos e uma economia do
tempo e dos gestos, onde é estabelecida uma organização de
caracterizações, estimativas, hierarquias. E, a primeira das grandes
operações da disciplina é “a constituição de ‘quadros vivos’ que

25
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 167.
26
Ibid. p. 125.
18

transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades


organizadas” 27. Estes, sob a forma de repartição disciplinar, tem por função
tratar a multiplicidade por si mesma, distribuí-la e dela tirar o maior número
de efeitos. A tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o
múltiplo, permitindo ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como
indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. “Ela é a
condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos
distintos: a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar
‘celular’.” 28
Em análise sucinta, essas funções disciplinares que vimos até o
momento, realizam-se sobre o espaço, as atividades e as forças em sua
relação com os corpos, sendo estes o domínio principal de aplicação da
disciplina.
Diferente das funções, os instrumentos são os recursos que permitem
a normalização disciplinar no interior das instituições de sequestro, que
permitem, por sua vez, o entendimento do caráter localizado dos
mecanismos disciplinares ligados aos espaços institucionais.
O controle da atividade29 é exercido, primeiramente, pelo horário.
Uma grade horária é estabelecida para ser seguida ininterruptamente, a qual
determina horário e tempo para todas as atividades diárias. Desse modo,
procura-se garantir a qualidade do tempo empregado devido ao controle
constante, pressão daqueles que fiscalizam, anulação de tudo o que possa
perturbar e distrair, constituindo um tempo integralmente útil.
Nesse controle, emprega-se também a elaboração temporal do ato
como forma de precisar a decomposição elementar dos gestos e dos
movimentos, ajustando o corpo do indivíduo a imperativos temporais,
penetrando nele os controles minuciosos do poder.

27
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 126-127.
28
Ibid. p. 127.
29
Ibid. p. 127-132.
19

O controle disciplinar não vai consistir apenas na elaboração desses


gestos definidos, mas na sua correlação com uma atitude global do corpo, o
que permite um bom emprego de tempo, evitando a ociosidade e a
inutilidade. Tudo isso deve ser chamado a formar o suporte do ato
requerido. “Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do
mínimo gesto. (...) Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.”30
Há ainda o que Foucault vai chamar de articulação corpo-objeto31. A
disciplina vem definir a relação que o corpo deve manter com o objeto que
manipula. Sobre essa superfície de contato é que o poder vem se introduzir,
constituindo um complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina.
O poder disciplinar aparece, então, com uma função menos de retirada que
de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o
aparelho de produção, estando longe daquelas formas de sujeição que só
pediam ao corpo sinais ou produtos, formas de expressão ou o resultado de
um trabalho.
Por fim, a utilização exaustiva do corpo do indivíduo aparece
também como instrumento de normalização, aparecendo a disciplina como
organizadora de uma economia positiva, colocando como princípio uma
utilização do tempo sempre crescente:

“importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada


instante sempre mais forças úteis. O que significa que se deve procurar
intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio
fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma
organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para um
ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de
eficiência.” 32

Por tudo isso, pode-se constatar que o poder disciplinar tem como
função maior adestrar para retirar e se apropriar cada vez mais e melhor dos
corpos dos indivíduos, procurando ligar suas forças e multiplicá-las num
30
Ibid. p. 130.
31
Idem.
32
Ibid. p. 131.
20

todo. Neste ponto é que a sanção normalizadora33 aparece como recurso de


adestramento, constituindo uma forma particular de sanção. O que pertence
a esse tipo de penalidade disciplinar é a estrita inobservância a tudo o que
está adequado à regra, ou seja, os desvios de conduta ligados ao tempo, às
atividades, aos comportamentos no interior de um espaço institucional.
Nesse sentido, Foucault afirmará que na essência de todos os sistemas
disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal, com suas leis
próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção,
suas instâncias de julgamento, como se as disciplinas estabelecessem uma
infrapenalidade, que quadriculariza e qualifica um espaço vazio pelas leis34.
Dessa forma,

“aquilo que visa o instrumento da sanção normalizadora é a criação de


hábitos por meio do exercício, por meio da prática reiterada de condutas
esperadas, aquilo a que visa esse tipo peculiar de sanção não é
propriamente uma punição, mas uma correção com vistas à
normalização.” 35

Combinando, agora, as técnicas da hierarquia que vigia e as das


sanção que normaliza, temos a figura do exame36. Por meio dele, supõe-se
um mecanismo que liga certo tipo de formação de saber a certa forma de
exercício do poder. Foucault traz em suas reflexões a ideia de que os
regimes de verdade seriam o resultado da interação entre relações de poder
e formações de saber. O exame está no centro dos processos que constituem
o indivíduo como efeito e objeto de poder e de saber. Ao combinar
vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções
disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e
do tempo, de composição ótima das aptidões individuais, constituindo,
assim, o indivíduo normalizado, impossibilitado de ser sujeito autônomo.

33
Ibid. p. 148.
34
Ibid. p. 149.
35
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 178.
36
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 154.
21

“Com as disciplinas, indivíduo e sociedade, subjetividade e sociabilidade


entram no domínio da normalização” 37.
Neste seguimento, a norma disciplinar aparece, então, como um
critério de comparação e de constituição das individualidades, pois permite
medir o lugar e o valor de cada indivíduo em relação à média do grupo em
que está inserido. Torna-se possível uma separação objetiva entre atitude,
comportamento e indivíduo, constituindo, assim, um perfil: sendo
“normais” aqueles que coincidem com esse perfil estabelecido, e
“anormais” aqueles que de alguma forma se afastam dele. É esse raciocínio
que gerará a diferenciação entre os delinquentes e não delinquentes, os
doentes mentais e normais, os dominadores e dominados. E daí, a
consequente constituição das instituições para separá-los da sociedade
normalizada que se estabilizou. Tudo o que se aparta do conceito de
normalidade, ou seja, aqueles que de alguma forma, desviam seu
comportamento daquele determinado pelas instituições, que não cumprem
as normas, está sujeito a penalidades e habilitado às casas de sequestro.
Retira-se o sujeito anormal da sociedade com o intuito de padronizar,
normalizar a sociedade vivente, produzindo, assim, o sujeito moderno, o
sujeito normalizado.

37
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 179.
CAPÍTULO II

A LOUCURA

2.1. A formulação da loucura

A abordagem sobre o pensamento e as práticas médicas integra


também o esforço de Foucault em fazer uma análise da formação de um
saber e de um poder de normalização característico dentro da sociedade
moderna. É a partir do funcionamento do poder disciplinar que se deve
entender o mecanismo da psiquiatria, a qual se determinou em sua origem
como um saber sobre a loucura.
Para o filósofo, o conceito de loucura nem sempre existiu, apenas
começou a se estruturar quando a distância entre a razão e a não-razão
começou a ser criada, dando ensejo a consequente diferenciação entre a
loucura e o homem racional38. O erro do alienado começa, então, a
delimitar o molde do caráter do indivíduo, pois este possuiria um erro ético
de conduta. Tratando a loucura como ausência de liberdade, a repressão
aparece como uma forma de libertação; e, quando o internamento passa a
ser objeto de libertação, este passa a ser também necessário.
A partir dessa ótica,

“Foucault analisa as experiências que constituíram as condições que


possibilitaram o surgimento do conceito de loucura como doença mental,
o aparecimento da psiquiatria como saber e como prática institucional.
Faz uma descrição negativa do que acontece com o sujeito mentalmente
perturbado como impossibilidade de se localizar no tempo e no espaço;
perda do senso de continuidade; incapacidade para sair do seu universo e
atingir o do outro; linguagem egocêntrica e desordenada; atitudes
exacerbadas; reações emocionais intensas. Acontece uma espécie de
confusão mental que leva o sujeito a enclausurar-se em si mesmo sob forte
choque emocional, sendo então tratado como se suas funções mentais

38
Doença mental e psicologia Foucault. Disponível em <www.frb.br/ciente/textos>. Acesso em 11
de maio de 2009. Sobre o autor, restou infrutíferas as tentativas de encontrá-lo. (Doravante,
Doença mental e psicologia Foucault).
23

fossem abolidas, e a experiência da loucura foi denominada pela razão,


passando a ser doença mental. Dessa forma não houve um saber objetivo
da loucura, mas apenas uma formulação.” 39

Os loucos passaram a não serem mais considerados pessoas que


poderiam levar uma vida de plena cidadania, pois o doente mental aparece
como aquele que é inassimilável a todas as disciplinas que podem ser
encontradas numa sociedade, fugindo, assim, do conceito de normalidade,
estando, então, abrangido dentro da noção de anormalidade. Logo, a
necessidade de retirar da sociedade esses indivíduos que fogem aos padrões
da normalidade vai acarretar o aparecimento de sistemas disciplinares
suplementares para recuperação desses indivíduos.

2.2. O poder psiquiátrico e o internamento

Afirmar a loucura de alguém era dizer que ele se enganava. No


fundo, era o sistema de crença que caracterizava a loucura. Somente a partir
do século XIX que aparece um critério de reconhecimento e de assinalação
da loucura totalmente diferente, como uma insurreição da força, ou seja,
certa força se desencadeia, força não dominável que se aplica a uma ideia
particular encontrada, indefinidamente reforçada, indo se inscrever
obstinadamente no comportamento, no discurso, no espírito do doente40. O
fato é que não se trata mais de reconhecer o erro do louco, mas de situar
muito exatamente o ponto em que a força desencadeada da loucura deflagra
sua insurreição41. É a submissão dessa força que será considerada a cura da
loucura, ou seja, é a prática do asilo dentro de um sistema de poder que
exercerá o domínio sobre a aplicação dessa força e do seu desencadeamento
através de uma terapêutica da loucura.

39
Doença mental e psicologia Foucault.
40
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 66.
41
FOUCAULT. O poder psiquiátrico. Op. cit., p. 11.
24

A terapêutica da loucura vem a ser definida por Pinel e citada por


Foucault em seu curso no Collège de France em 1974 e 197542, como a arte
de subjugar e de domar o alienado, pondo-o na estreita dependência de um
homem que, por suas qualidades físicas e morais, seja capaz de exercer
sobre ele um império irresistível e de mudar a corrente viciosa das suas
ideias. Nesta época, o poder ainda não é exercido em função de um saber,
mas em função de qualidades físicas e morais. É sobre essa ideia que se
baseia a psiquiatria no início do século XIX.
Dentro do espaço asilar, a operação terapêutica não passou de um
reconhecimento num primeiro momento. O que se trava, é um choque de
duas vontades: a do médico e a do doente. Mas, no instante em que a
verdade se manifesta por intermédio da confissão, se consuma o processo
da cura. Tem-se aí toda uma distribuição da força, do poder, que não é o
que se pode encontrar num modelo médico, o qual estava se constituindo na
mesma época da medicina clínica.

“Na medicina clínica da época, podemos dizer que se constituía certo


modelo epistemológico da verdade médica, da observação, da
objetividade, que ia permitir que a medicina se inscrevesse efetivamente
no interior de um domínio de discurso científico em que ela ia se juntar,
com suas modalidades próprias, à fisiologia, à biologia, etc. O que
acontece nesse período de 1800-1830 é, creio, algo bem diferente do que
se tem o costume de crer. Parece-me que, de ordinário, interpreta-se o que
acontece nesses trinta anos como o momento em que a psiquiatria vem
enfim inscrever-se no interior de uma prática e de um saber médicos a que
ela tinha sido até então relativamente estranha. Tem-se o hábito de pensar
que a psiquiatria aparece nesse momento, pela primeira vez, como uma
especialidade dentro do domínio médico.”43

A figura do asilo demonstra, então, a chamada


institucionalização da psiquiatria, que vinculada à medicina, exerce poder
em relação aos doentes internados através da figura do médico. São as
relações de poder exercidas nos asilos que constituem o elemento nuclear

42
FOUCAULT. O poder psiquiátrico.
43
Ibid. p. 15.
25

da prática psiquiátrica, constituindo, assim, o poder psiquiátrico. Este


funciona como um suplemento de poder dado à realidade, uma maneira de
administrar, um regime, uma tentativa de subjugar. É uma cura, entendida
como o resultado de um processo de assujeitamento diário a uma direção,
que somente se dá dentro do espaço disciplinar, onde as individualidades
estão distribuídas de maneira precisa, possuindo suas atividades e seu
tempo minuciosamente previstos e controlados por um mecanismo de
vigilância e um sistema de sanções constantes. Esse jogo entre o corpo do
louco e o corpo do psiquiatra, que está acima dele, que o domina,
caracteriza a microfísica do poder psiquiátrico44.

“Desse modo, o poder psiquiátrico é um poder que realiza um


assujeitamento dos indivíduos, tendo como instrumentos principais uma
vontade e um saber (a vontade e o saber do médico) reconhecidos como
superiores à vontade e ao saber daqueles a que se deve sujeitar e um
mecanismo de poder disciplinar instaurado no interior do asilo.” 45

Ao invés de ser apenas um conjunto de procedimentos de atuação


sobre a loucura, o poder psiquiátrico aparece como um poder sobre o
anormal, um poder de definição e controle sobre aquele que seria anormal
em relação ao regime familiar, escolar, entre outros, sendo definido como a
ciência e o poder sobre o anormal.
Logo, é a partir da emergência das práticas disciplinares dentro dos
asilos para os anormais, tidos como doentes mentais, que são instaurados os
elementos nucleares sobre as quais se constituirão a teoria e a instituição
psiquiátrica.
A instituição psiquiátrica é o lugar onde o poder psiquiátrico é
exercido. Sua função é de ser um lugar de diagnóstico e de classificação,
onde as doenças são repartidas em pátios dentro de um espaço fechado para
um enfrentamento, onde se trata de vitória e submissão. O médico do

44
Ibid. p. 21.
45
FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 68.
26

também chamado hospício, é aquele que pode dizer a verdade da doença


pelo saber que detem sobre ela. Pode também produzir a doença na sua
verdade e submetê-la na realidade pelo poder que a sua vontade exerce
sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos praticados nos
hospícios – como isolamento, interrogatório, tratamentos e punições com
duchas, entrevistas de cunho moral, disciplina rigorosa, trabalho
obrigatório, recompensas, relações de domesticidade, por vezes de servidão
– que ligavam o doente ao médico, tinham como finalidades fazer do
personagem médico o “mestre da loucura”, aquele que faz aparecer a
verdade quando ela se esconde ou permanece escondida e silenciosa; aquele
que a domina, a apazigua e faz desaparecer depois de tê-la sabiamente
desencadeado46.
Tudo isso se reporta a certo tipo de poder, poder este produtor de
gestos, condutas, discursos e subjetividades vinculados a uma norma, que
aparece como elemento a partir do qual o exercício do poder se torna
possível. Nesse caso, é o poder do médico que toma esse lugar, encontrando
suas garantias e justificações nos privilégios do conhecimento, é ele quem
detem o saber científico, o que fundamenta a sua intervenção e decisão. O
poder do médico, então, permite ao psiquiatra produzir a realidade de uma
doença mental cuja propriedade é reproduzir fenômenos inteiramente
acessíveis ao conhecimento47.

“(...), uma análise da distribuição do poder psiquiátrico permite mostrar


que não é por um acidente ou um desvio da instituição que o hospital
psiquiátrico é um lugar de realização da loucura; é a própria função do
poder psiquiátrico ter diante de si e para o doente – e, no limite, tanto no
hospital como não – um espaço de realização para a doença. De modo que
podemos dizer que o poder psiquiátrico tem por função realizar a loucura
numa instituição cuja disciplina tem precisamente por função apagar todas
as violências da loucura, todas as suas crises e, no limite, todos os seus
sintomas. A instituição asilar em si – e é nisso que a análise que faço não
coincide com as análises institucionais –, essa instituição de disciplina tem
efetivamente por função e por efeito suprimir, não digo a loucura, mas os
46
FOUCAULT. O poder psiquiátrico. Op. cit., p. 299.
47
Ibid. p. 234.
27

sintomas da loucura, ao mesmo tempo que o poder psiquiátrico que se


exerce no interior e que fixa os indivíduos no asilo tem por função realizar
a loucura.”48

O poder disciplinar é exercido pelo psiquiatra e deve ser posto em


funcionamento como poder do médico, e a prova psiquiátrica vai ser a que,
por um lado, constitui como doença a demanda do internamento e, por
outro lado, faz funcionar através do médico, a quem se dá um dos poderes
de decisão no internamento. A prova psiquiátrica é uma dupla prova de
entronização. Ela entroniza a vida de um indivíduo como tecido de
sintomas patológicos, e entroniza sem cessar o psiquiatra como médico ou a
instância disciplinar suprema como instância médica.
Considerando as coisas ao nível do sistema disciplinar, o sobrepoder
do médico é incontestável, já que ele se incorpora a esse sistema. Mas, de
outro lado, se vê um sobrepoder do doente que, conforme a maneira que
passar pela prova psiquiátrica é que vai entronizar ou não o psiquiatra como
médico: que vai remetê-lo a seu puro e simples papel disciplinar ou fazê-lo
desempenhar seu papel de médico dentro da instituição psiquiátrica.
Diante do todo exposto, é possível concluir que o hospital
psiquiátrico se mostra como uma instituição de reparo, que vai, por meio
das disciplinas, reparar a doença do indivíduo, levando-o a um retorno às
condutas regulares através do isolamento.49
Ao serem organizadas, as grandes estruturas dos hospícios foram
justificadas por sua harmonia com as exigências da ordem social, que exigia
proteção contra as desordens dos loucos e a necessidade de um tratamento
terapêutico para estes, exigindo, portanto, um isolamento dos doentes. Esse
isolamento, por sua vez, veio como uma forma de assegurar a segurança das
pessoas e suas famílias, tendo em vista o perigo exalado pelo louco, por ser
um não seguidor de condutas. Uma das razões para o internamento era a sua

48
Ibid. p. 323.
49
Ibid. p. 322.
28

libertação das influências externas; era vencer suas resistências pessoais ao


submetê-los a um regime médico, impondo-lhes novos hábitos intelectuais
e morais. Por tudo isso, Foucault afirma que tudo é questão de poder: era
preciso dominar o poder do louco, a fim de neutralizar os poderes exteriores
que pudessem exercer sobre ele, estabelecendo, assim, um poder
terapêutico sobre ele, um poder de formação50.
A instituição psiquiátrica aparece como uma forma de distribuição e
mecanismos dessas relações de poder, fazendo surgir as relações de
dominação próprias à relação institucional, onde, no momento da
internação, o poder do médico aparece cada vez maior, em detrimento ao
poder do doente.
Digamos que Foucault procura demonstrar como a cura psiquiátrica
está vinculada à implementação de práticas disciplinares visando a
reconstrução de uma vontade autônoma. Como se a prática psiquiátrica
fosse um dispositivo de internalização da disciplina enquanto condição para
a autonomia, o que permitia ao indivíduo ser reconhecido como sujeito.
Como se a verdadeira questão fosse expulsar, por meio da transformação da
loucura em doença mental, tudo o que impedisse a constituição de uma
vontade que determina a si mesma, sendo totalmente permeada pelo poder
do médico.

50
Doença mental e psicologia Foucault
CAPÍTULO III

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE DIREITO E


LITERATURA

Tomando por base o estudo sobre o poder e a loucura, acima


exposto, sob a ótica de Michel Foucault, e o objetivo principal deste
trabalho em traçar um paralelo comparativo com a obra de Machado de
Assis – “O Alienista” –, é preciso expor, neste momento, a trajetória do
movimento que pela primeira vez buscou procurar algum sentido
interpretativo entre Direito e Literatura, qual seja, Law and Literature
Moviment. Surgido nos Estados Unidos da América, trouxe a ideia de uma
nova abordagem para a compreensão do Direito por meio da Literatura,
bem como, a inserção da Literatura na escrita jurídica. Inspirado neste
estudo é que o presente trabalho objetivará demonstrar como a obra de
Machado de Assis está permeada por questões sobre o poder e a loucura,
servindo a Literatura como uma ampliação dos casos práticos incutidos no
estudo do Direito e da sociedade.

3.1. Literatura como forma interpretativa

Num primeiro momento, a relação entre Direito e Literatura surge


com o intuito de dar nova roupagem à forma de se abordar o próprio
Direito, a fim de superar o modelo positivista kelseniano51. A Literatura
vem como fornecedora de informações e subsídios para que o meio social,
onde o Direito se desenvolve, seja mais bem entendido, possibilitando
novas formas de observação transdisciplinares, que possibilitem a

51
Hans Kelsen constituiu uma ciência do direito livre de toda ideologia e intervenção extrajurídica,
que se concretizou na elaboração de sua teoria pura do direito. (SZYMAŃSKI, Julian. Tópicos
principais de Hans Kelsen. Disponível em
<www.geocities.com/direito_etc/topicos_especiais/faculdade/3_periodo/filosofia_geral_juridica/h
ans_kelsen.htm>. Acesso em 01 de junho de 2009.
30

constatação e a superação do distanciamento temporal entre o próprio


Direito e a sociedade na qual se insere.52
Tendo em vista que o Direito é um sistema social e a Literatura
busca refletir a cerca dos fenômenos sociais, é notório que o tratamento
literário do Direito é mais constante que o reverso. “O Direito, via de regra,
não se socorre da literatura para a decisão de suas lides, mesmo quando se
trate de casos análogos reais (não-ficcionais)” 53, diferente da Literatura que
sempre retratou conflitos advindos de relações processuais ou violações de
direitos, tratando incisivamente o tema da (in) justiça54.
Foi como uma reação a esta realidade, que surgiu, nos Estados
Unidos o Movimento Law and Literature, dando, então, o impulso que os
estudos sobre Literatura no Direito precisavam para se desenvolver.

3.2. Law and Literature Moviment

Somente a partir dos anos 70 é que foram iniciados os estudos da


Literatura no Direito, seus métodos, sistematizações e organização, pelo já
mencionado Law and Literature Moviment, sendo protagonizado por
autores como John Wigmore55 e Benjamin Cardozo56, que em sua trajetória
tomou duas perspectivas de análise: Literature in Law e Law in Literature.

52
SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: proposições iniciais para uma observação de
segundo grau do sistema jurídico. Disponível em
<www.almeidadacostaeschwartz.adv.br/artigos/DireitoeLiteratura>. Acesso em 11 de maio de
2009. (Doravante, SCHWARTZ. Direito e Literatura).
53
Idem.
54
Como é exemplo, O Processo, de Kafka; O crime e o castigo, de Dostoievski; até mesmo O
mercador de Veneza, de Shakespeare.
55
“John Henry Wigmore é conhecido entre os estudioso do direito norte-americano como
especialista em assuntos relativos às provas judiciais (evidence). Desenvolveu método próprio, que
consiste em pormenorizado roteiro analítico, que a literatura especializada nomina de Wigmore
Chart. Seu livro mais conhecido Treatise on the Anglo-American System of Evidence in Trials at
Common Law, publicado em 1904, pontificou na prática jurídica norte-americana, até meados do
século XX”. Definição de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy em Direito e Literatura. Os pais
fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller, disponível em
<www.buscalegis.ufsc.br/revistas>.
56
Benjamin Nathan Cardozo nasceu em 1870 e faleceu em 1938. De ascendência judaico-
sefardita,Cardozo foi juiz em Nova Iorque e posteriormente ocupou uma vaga na Suprema Corte
em Washington. Estudou direito em Columbia e depois estagiou no escritório de seu pai. O pai foi
31

O primeiro, que possui como origem os trabalhos de Benjamin


Cardozo,

“defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo leis,


decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc. – serem lidos
e interpretados como textos literários. James Boyd White, Stanley Fish e
Robin West, entre outros, argumentam que, apesar de obscuros e
ininteligíveis para os leigos, os textos jurídicos são construídos a partir de
uma linguagem e de uma forma de raciocínio específicas. Assim como a
literatura, a linguagem jurídica refere-se a uma determinada esfera social
e, muitas vezes, as palavras utilizadas no mundo jurídico adquirem uma
força e um valor de expressão próprios.” 57

Sobre outra vertente, encontra-se o Law in Literature, voltado para


obras literárias de ficção que abordem questões jurídicas, ou seja, que trate
de apropriações literárias sobre o fenômeno jurídico, que abranjam temas
como a justiça, a violência, a burocracia estatal, a segurança jurídica, o
exercício profissional do Direito, possibilitando o contato com
determinadas experiências legais dentro de uma obra de ficção ou não-
ficção58 59
. Ou seja, observa-se o criticismo literário na Literatura
imaginativa que apresenta temas jurídicos, diferente do que se observa no
Literature in Law, onde se tem o uso de técnicas do criticismo literário na
abordagem de textos jurídicos.

juiz em Nova Iorque, e ao que parece foi afastado por suspeita de corrupção. Albert Cardozo, logo
após o nascimento de Benjamin, renunciou o cargo de juiz para evitar um processo de
impeachment; manteve, no entanto, a prerrogativa para advogar, profissão que exerceu com
razoável sucesso. É copiosa a literatura especializada que investiga a luta de Benjamin Cardozo
para afastar de si a sombra de desconfiança que havia em relação a seu pai. Definição de Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy em Direito e Literatura. Os pais fundadores: John Henry Wigmore,
Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller, disponível em <www.buscalegis.ufsc.br/revistas>.
57
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Literatura e Direito: uma outra leitura do mundo das leis. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 1998. p. 22. (Doravante, JUNQUEIRA. Literatura e Direito).
58
OLIVO, Luis Carlos Cancellier De. O estudo do Direito através da literatura. 1ª ed. Tubarão:
Editoria Studium, 2005. p. 21.
59
PRADO, Daniel Nicory Do. Aloysio de Carvalho Filho: Pioneiro nos estudos sobre “Direito e
Literatura” no Brasil. Disponível em
<www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/salvador/daniel_nicory_do_prado.pdf>. Acesso em 11
de maio de 2009.
32

Importante crítico desse movimento não poderia deixar de ser


mencionado neste trabalho. Richard Posner, líder do movimento
antagônico, o direito e a economia,

“contesta a relação proposta entre Literatura e Direito, admitindo tão


somente que a Literatura pode aprimorar a técnica do jurista, mediante
contato com universos imaginativos e alegóricos referenciais aos temas
afetos à justiça.” 60

O autor não admite o uso do discurso literário numa discussão


jurídica por dizer que é impossível saber a real intenção do autor em sua
obra. Por isso, Posner vê a importância da Literatura no Direito apenas
como algo que embeleze a sua prática, não para usá-la como crítica social
da época em que a obra foi escrita.

Mesmo diante dessa abordagem e de sua crítica, é possível se levar


em consideração que a Literatura pode ser considerada como uma boa fonte
de conhecimento do Direito, tendo em vista que invade dimensões do
fenômeno jurídico que não são abordadas pela metodologia jurídica61.

Por meio de seus contos, novelas ou romances são retratadas


situações e casos onde se representa o mundo jurídico. Os personagens
criados servem para pensar o Direito e a partir daí, observar como este
interage com a sociedade, tornando este mundo menos abstrato. Além disso,

“Estudar a representação do mundo jurídico na ficção interessa, portanto,


não apenas ao estudante, mas também aos profissionais do Direito que,
através das obras ficcionais, podem repensar a imagem social de suas
profissões.” 62

Logo, a análise a ser realizada neste trabalho terá este propósito, de


trazer ao mundo real as questões jurídicas entranhadas em “O Alienista”,
60
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Filosofia nos Estados Unidos. Disponível em
<www.arnaldogodoy.adv.br/publica/direito e filosofia nos eua>. Acesso em 11 de maio de 2009.
61
SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura.
62
JUNQUEIRA. Literatura e Direito. Op. cit., p. 29.
33

mais precisamente a questão do poder e da loucura, trazendo esse apanhado


sob um olhar foucaultiano.
CAPÍTULO IV

MICHEL FOUCAULT E “O ALIENISTA”

Neste capítulo far-se-á um apanhado das questões sobre o poder e a


loucura presentes em “O Alienista” de Machado de Assis, traçando um
paralelo com a questão do poder e da loucura encontrado nas ideias de
Michel Foucault. A partir daí, se pode constatar a interação entre Literatura
e Direito com a finalidade de encontrar dentro de uma obra literária traços
de um autor da Filosofia, prudentemente utilizado em questões relacionadas
ao Direito.

4.1. A estória de “O Alienista” de Machado de Assis

“O Alienista” de Machado de Assis foi publicado pela primeira vez


em Papéis Avulsos, por volta do ano de 1882. Sua narrativa aparece como
uma tentativa de delimitar a fronteira exata entre a normalidade e a loucura,
colocando em cheque a questão do poder do médico e a reflexão sobre o
internamento necessário para recuperação daqueles que apresentem
qualquer forma de comportamento desviante ao da teoria formulada pelo
Dr. Simão Bacamarte, personagem em torno do qual se desenvolve a novela
machadiana.
Médico, ovacionado em terras brasileiras, Portugal e Espanhas, Dr.
Bacamarte tem seu personagem na figura de um sábio, cujo propósito é ser
fiel seguidor da ciência, a quem deve reverência e onde tem seu único
emprego. Faz de Itaguaí – cenário onde se desenvolve todo o enredo – seu
universo, seu laboratório de estudo da mente humana, já que resolveu
estudar a loucura e classificar seus tipos, objetivando a descoberta de um
remédio universal para tal patologia.
Casado com Dona Evarista, viúva que tinha em seus 25 anos as
qualidades fisiológicas e anatômicas que precisava para dar-lhe “filhos
35

robustos, sãos e inteligentes” 63. Dr. Bacamarte gozava apenas das alegrias
reservadas a quem sobrevive num mundo relativo, onde nada é absoluto.
Não procurou beleza ou simpatia em sua esposa para não correr o “risco de
preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar
da consorte” 64.
Porém, Dona Evarista não lhe deu filhos, razão pela qual terminou
ali a dinastia dos Bacamartes, tendo curado suas mágoas na própria ciência,
que para ele tinha esse inefável dom. A partir de então, Dr. Simão
Bacamarte passou a se dedicar inteiramente à prática da medicina, lhe
chamando atenção o exame da patologia cerebral.
Também chamado de alienista, por dedicar-se ao cuidado dos
alienados, nosso médico percebeu que em Itaguaí não havia quem
explorasse a saúde psíquica dos cidadãos. Os loucos viviam soltos ou
trancados em alcovas se furiosos. Foi aí que Simão Bacamarte pediu licença
à vereança para tratar desses loucos num lugar específico a ser construído.
Tendo a licença concedida, em pouco tempo a casa estava pronta. Chamada
de Casa Verde, por conta da cor de suas várias janelas, teve sua inauguração
digna de imensa pompa e logo começou a receber os loucos de todas as
vilas e arraiais vizinhos inclusive.
Dedicando todo seu tempo ao asilo, na qualificação de seus
enfermos, no estudo de suas rotinas, hábitos, costumes, sempre anotando
suas observações, Dr. Bacamarte tinha ocupado todo o seu dia. Se não
estava trabalhando, estava pensando e concluindo suas descobertas. Vendo
isto, Dona Evarista sentiu-se só e abandonada, razão pela qual, ele a
mandou ao Rio de Janeiro para consolar-se. Este foi o espaço que ganhou
para ampliar sua área de estudo.
Recolhendo à Casa Verde, o Costa, a prima do Costa, o Mateus,
Martim Brito, José Borges do Couto Leme, Chico das cambraias, o escrivão
63
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O Alienista. Porto Alegre: L&PM, 1998. p. 14.
(Doravante, MACHADO DE ASSIS. O Alienista).
64
Idem.
36

Fabrício, pessoas estimadas na comunidade, a quem não se atribuía


qualquer desvio mental, instalou-se verdadeiro terror na cidade. Não se
sabia mais quem estava doido. Foi, então, que a ideia de uma rebelião
contra o alienista começou a assombrar as ideias de alguns. Mas, foi o
barbeiro Porfírio quem liderou o motim. Seguido por umas trinta pessoas
inicialmente, o movimento tomou força ao ver o pedido de pôr fim ao asilo
de Bacamarte negado pela câmara dos vereadores. Agora, com trezentas
pessoas envolvidas, a rebelião, chamada de Revolta dos Canjicas,
amotinou-se onde se encontrava Dr. Simão Bacamarte, jurando-lhe morte e
a derrubada da Casa Verde. Muito calmamente, o alienista chegou a sua
janela e proferiu algumas palavras aos revoltosos que atônita não esperava
tamanha calmaria com que o médico explicou-lhes que a ciência devia ser
tratada com seriedade e que jamais daria razão de seu sistema a leigos ou
rebeldes.
Essa resposta do alienista diminuiu o furor da multidão, mas não de
seu líder, o barbeiro Porfírio, que, logo após esse evento invadiu a Câmara e
assumiu o governo da vila, em nome de sua majestade. Agora como
protetor de Itaguaí, dirigiu-se a Casa Verde para uma conversa com
Bacamarte, propondo-lhe que ao menos os quase curados fossem libertos do
internamento. Proposta que não saiu da sala onde conversaram, tendo o Dr.
Simão Bacamarte recrutado mais cinqüenta aclamadores do novo governo
de Porfírio.
Sem saber como reagir, o barbeiro dá lugar a João Pina, quem
assume a difícil tarefa que o governo deveria resolver. Mas, eis que pouco
tempo depois, uma força mandada pelo vice-rei restabeleceu a ordem,
restituindo a Câmara e declarando adesão ao alienista. Após todo esse
apoio, Simão Bacamarte recolheu mais alguns ao internamento, eis que
foram, o presidente da Câmara dos vereadores; Crispim Soares, o boticário,
que no meio da revolta se pôs ao apoio de Porfírio, traindo, portanto, a
37

amizade que tinha com o Dr. Bacamarte; e sua esposa Dona Evarista por
haver se vislumbrado demais com a vida de luxo que agora vivia.
Fato é que após todo esse alvoroço, o alienista oficiara à Câmara
dizendo que a verdadeira doutrina não era aquela que ele aplicara até o
momento, mas a oposta. A hipótese patológica agora era atribuída ao
equilíbrio ininterrupto das faculdades mentais do sujeito. Estes sim seriam
agora trancafiados na Casa Verde para serem tratados. A proposta foi aceita
pela Câmara, que regulamentou tal exercício pelo período de um ano a fim
de que a nova teoria fosse experimentada, mandando fechar a Casa Verde
se assim fosse necessário para manter a ordem pública. Dr. Bacamarte,
tendo aceitado essas limitações, começou seu novo estudo a fim de
confirmar sua teoria, recolhendo, então, para pesquisas aqueles de
pensamento sensato e equilibrado.
Realizando curas, o alienista conseguiu com que todos fossem
liberados do internamento, fato que o intrigou. Concluiu que os cérebros
que acabara de curar eram tão desequilibrados como os outros, não
havendo, portanto, loucos em Itaguaí. Partindo de sua última teoria,
descobriu que ele mesmo guardava as características do perfeito equilíbrio
mental e moral, razão pela qual era ele quem guarnecia de cura. A partir
dessa convicção científica, entregou-se a cura de si mesmo e na Casa Verde
viveu pouco mais de dezessete meses, onde teve fim sua sagaz busca pela
verdade da loucura, sem nada haver alcançado.
Toda essa narrativa está ligada aos impasses das concepções
científicas do século XIX, sendo possível observar uma crítica às verdades
epistemológicas, aos paradigmas petrificados e até mesmo ao positivismo
em si65. Isso pode ser observado na própria figura do Dr. Bacamarte, que
voltando todas as suas pesquisas à descoberta da causa do fenômeno da

65
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: “O Alienista” e a revolta dos
canjicas. Disponível em < jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9972>. Acesso em 02 de junho
de 2009.
38

loucura e o seu remédio universal, alcança seu objetivo num primeiro


momento e depois refuta sua própria teoria ao assumir que a doutrina não
era aquela aplicada, mas sim a oposta. Dessa forma, percebe-se o alcance
inicial da verdade e sua posterior relativização pelo médico-psiquiatra
seguidor das verdades absolutas.

4.2. O poder de Foucault em “O Alienista”

A questão do poder presente na obra em comento é perfeitamente


relacionada à questão do poder presente no estudo de Foucault sobre o
tema.
Como já mencionado, Michel Foucault não buscou um conceito de
poder; sua intenção foi problematizá-lo, colocando-o como um “fazedor” de
verdade, trazendo a tona o seu aspecto positivo e produtivo. A partir dessa
premissa, é possível buscar na obra de Machado de Assis o retrato desse
poder que produz a verdade na figura de seu personagem principal, Dr.
Simão Bacamarte, que em razão de seu conhecimento médico e
psiquiátrico, passou a teorizar como se determinaria a loucura e qual a cura
a ser utilizada em cada caso. Dessa forma, ele agia por deter o
conhecimento necessário, em razão de seu vasto saber médico adquirido em
Coimbra e Pádua, razão pela qual era considerado o maior dos médicos do
Brasil66.
A relação entre saber e verdade é vista por Foucault como uma
relação de mútua dependência, não havendo verdade sem a existência do
saber e não havendo poder que não estivesse relacionado com saberes
considerados verdadeiros. Daí, a relação com a obra machadiana fica
evidente, pois em Itaguaí, até a chegada de Simão Bacamarte, não havia
quem declarasse a verdade sobre a loucura ou pudesse determinar um limite
66
“As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.
Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua”. (MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 13)
39

entre a razão e a insânia, logo, não havia quem detivesse o poder para tanto.
Os loucos viviam soltos, sem nenhum tratamento especial. Não havia
naquela vila quem tratasse e tentasse curar as patologias cerebrais:

“A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos


cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim, é que cada louco
furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas
descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os
manos andavam à solta pela rua.” 67

O saber, e o consequente poder, advieram na figura do Dr.


Bacamarte visto ser o único a possuir o conhecimento sobre a mente
humana, respaldado de verdades inquestionáveis. Realizando experimentos
e concluindo suas teorias, dava embasamento científico ao seu próprio
pensamento em tese racional. Daí, o seu poder, adquirido pelo saber, que,
aliás, fica evidente no momento em que é apoiado pela Câmara e
posteriormente até pelo vice-rei, que retorna a ordem da cidade após a
rebelião contra a Casa Verde. Foi questionado apenas pela Igreja,
representada na figura de Padre Lopes, mas que resolve dar as mãos à
ciência.
Tendo sob seu comando, portanto, o poder e o saber de determinar o
limite entre a razão e a loucura, não havia mais quem questionasse os
internamentos havidos, já que qualquer motivo poderia ser considerado
insânia por parte do Dr. Simão Bacamarte.
É esta concepção racionalista e positivista de ciência, tendenciosa a
se apresentar como algo objetivo e com pretensões universais, que Machado
questiona em seu texto, sendo exatamente o que Foucault pretende em seus
estudos sobre o poder. Afinal, quem ou o que legitima esse poder de
universalizar verdades? Nesse apanhado, o saber seria a base para a

67
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 15.
40

legitimação do poder do médico em classificar e encontrar o remédio para a


insânia, ou perda da razão68.
Passando esta análise para um novo foco, cabe agora verificar no
texto de “O Alienista” a relação de poder tratada por Foucault dentro das
instituições psiquiátricas, onde se pode observar uma relação de poder mais
local, que permite chegar aos mecanismos mais gerais de poder.
Como já mencionado, os loucos em Itaguaí viviam soltos, sem
qualquer aparato médico, até ocorrer em Bacamarte a “brilhante” ideia de
construir um edifício onde trataria dos loucos num mesmo lugar. Sendo a
psiquiatria matéria inexplorada no reino, cabia tão somente a ele realizar o
tratamento, para o qual tinha o conhecimento preciso, num lugar a parte, na
Casa Verde.

“(...); pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia


construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades (...).” 69

“Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa.” 70

“Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha


finalmente uma casa de Orates.” 71

Essa instituição é o claro exercício do poder nas microrrelações


sociais, ponto do qual partiu a genealogia foucaultiana sobre o poder.
Mais adiante, Michel Foucault, conclui que o asilo presta-se como
lugar onde a loucura se realiza em razão do poder psiquiátrico exercido pelo
médico, cujo saber da psiquiatria permite a prática terapêutica. A
manutenção dos indivíduos dentro do hospício se faz necessária para se
realizar a vigilância dos doentes, servindo como um instrumento de

68
FOUCAULT. O poder psiquiátrico. Op. cit., p. 322-323.
69
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 15.
70
Ibid. p. 17,
71
Ibid. p. 18.
41

observação com a finalidade de sanar os sintomas da loucura, que se realiza


a partir do internamento, além de ser um local de inquérito e inspeção.

“A instituição asilar em si (...), tem efetivamente por função e por efeito


suprimir, não digo a loucura, mas os sintomas da loucura, ao mesmo
tempo que o poder psiquiátrico que se exerce no interior e que fixa os
indivíduos no asilo tem por função realizar a loucura.” 72

Toda essa questão é reproduzida no conto literário a partir do


recolhimento dos declarados loucos pelo alienista, que utiliza o poder que
tem para, então, determinar aqueles que precisam de tratamento psiquiátrico
dentro da Casa Verde. Este será o local onde a loucura se realizará para
observação e inquirições constantes de Dr. Bacamarte aos internos,
realizando classificações de acordo com os sintomas apresentados.

“Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta


qualificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas
classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses,
monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo
aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso,
as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da
vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação
mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais
atilado corregedor.” 73

Mais uma vez, Machado de Assis, demonstra a fortaleza do saber


científico onde o poder se firma. Esse é o respaldo que o alienista tem para
se dar a capacidade de afirmar sobre a racionalidade do indivíduo e, mais
ainda, de tecer divisões e limites de acordo com o sintoma que apresenta e
da sua história de vida. Mas, “que poder é esse que emana da ciência, no

72
FOUCAULT. O poder psiquiátrico. Op. cit., p. 323.
73
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 22-23.
42

que se funda; qual a razão das imunidades e privilégios que o Alienista


toma para si?” 74
Continuando a análise da Casa Verde sob a ótica de Foucault, esta
aparece também como um mecanismo de normalização. Local onde é
possível um controle extenso dos doentes e a aplicação de métodos para se
obter a cura da loucura, a Casa de Orates de Itaguaí se apresenta como o
lugar onde o Dr. Simão Bacamarte pode converter as pessoas segundo sua
teoria. Inicialmente, afirma que será considerado louco todo indivíduo que
se desviou de uma conduta equilibrada. Daí, começa a internar aqueles que
apresentassem algum tipo de mania ou que desviassem de um
comportamento sensato e moralmente aceito. Logo depois, abandona essa
teoria e decide internar aqueles que mantivessem o equilíbrio ininterrupto
de sua razão, essa era sua nova forma para delimitar a loucura da não-
loucura.

“A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia,


insânia, e só insânia.” 75

“(...) que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção
de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que
se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e
como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse
ininterrupto.” 76

A Casa Verde servia, portanto, para que o alienista descobrisse a


causa da patologia e realizasse sua cura, ou seja, sua função era recompor
os indivíduos às suas faculdades mentais, procurando padronizá-los àqueles
que permaneciam fora do asilo, de acordo com a verdade científica
descoberta por ele mesmo, que vigorava ao tempo. Essa é a busca pela
normalização da sociedade por meio das instituições disciplinares, tão

74
GOMES, Roberto. O Alienista: loucura, poder e verdade. Disponível em
<www.geocities.com/sociedadecultura/alienistaloucura>. Acesso em 10 de março de 2009.
(Doravante GOMES. O Alienista: loucura, poder e verdade).
75
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 31.
76
Ibid. p. 72.
43

presentes nos trabalhos de Foucault. Todo esse controle dos instantes do


asilo, que compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui, visa
normalizar exclusivamente77, para, então, dar como prêmio a liberdade e a
convivência com aqueles considerados sãos.
Interessa a Machado o conflito de forças que se defrontam em torno
da normalização quando coloca Bacamarte oscilante em suas teorias entre
os diversos critérios de normalidade que buscou colocar em prática. “Assim
a fala da medicina psiquiátrica é tratada como exercício do poder”78
realizado na figura do alienista, quem possui os critérios para separação
objetiva dos normais e anormais, se pautando no perfil desviante, por ele
mesmo estabelecido, para justificar o internamento na Casa Verde.

4.3. A loucura foucaultiana na obra literária

Partindo agora para análise da forma que a loucura foi tratada em “O


Alienista”, o objetivo será observar a presença de Foucault e sua ideia de
formulação da loucura na obra literária machadiana, no momento em que
Dr. Simão Bacamarte anseia em determinar a verdade sobre a loucura.
Da mesma forma que Michel Foucault afirma que para ele não houve
um saber objetivo da loucura, mas apenas uma formulação79, a obra de
Machado de Assis em questão não pretendeu deixar evidente qualquer
inspeção, análise, conceito ou definição sobre a loucura, ainda que fosse
esse o principal objetivo de Dr. Bacamarte. Na verdade, o que se pretendeu
foi encontrar a norma que pudesse estabelecer com rigor os limites entre a
razão e a loucura, sem ao menos questionar as verdades a respeito dela80.

“Machado quer, isso sim, puxar o tapete sobre o qual repousa todo esse
delírio, revelando seu fundamento: o próprio empreendimento
77
FOUCAULT. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 153.
78
GOMES. O Alienista: loucura, poder e verdade.
79
Doença mental e psicologia Foucault.
80
GOMES. O Alienista: loucura, poder e verdade.
44

normalizador. Limita-se, portanto, a narrar as proporções de um grande


desastre. Não se trata de decidir entre esta ou aquela concepção da
loucura. Trata-se de corroer as bases do projeto psiquiátrico.” 81

Loucos eram aqueles que transgrediam a consideração sobre loucura


determinada pelo alienista, cujos argumentos eram inquestionáveis porque a
ciência era inquestionável, não devendo satisfação a ninguém visto que
possuía suas próprias normas e cabia a ela mesma discuti-las. Assim, Dr.
Simão Bacamarte não tinha como ser questionado em suas teorias e
internamentos, era o detentor da verdade sobre a loucura, mesmo sem saber
como defini-la. Esse é poder do médico que detém o saber científico, o que
fundamenta a sua intervenção e decisão, como afirma Foucault em O Poder
Psiquiátrico82. O sobrepoder do médico é incontestável, visto que se
incorpora a esse sistema. Daí, a loucura se apresentar formulada pelo saber-
poder do médico, Dr. Bacamarte, existindo, portanto, uma formulação da
loucura, conforme defende Foucault.
Enfim, surpreendente foi o alcance de uma conclusão inesperada
sobre a loucura tirada pelo alienista já no final da narrativa.
Bacamarte, até então, produzira a loucura, gerara os loucos antes
inexistentes em Itaguaí, decretando normas que incluem ou excluem certos
indivíduos do continente da loucura. Ocorre que, ao final, se imagina o
único capaz de sofrer e conhecer a loucura se pautando do desenrolar de sua
última teoria. Sendo ele humanamente perfeito, capaz de manter uma
postura coerente, jamais tendo abandonado a ciência, além de curar todos
que apresentassem esse equilíbrio mental constante, comprovando ser todos
os curados de alguma forma corrompível quando visa a sobrevivência, deu-
se conta da sua própria loucura. Apenas ele seria o ser humano perfeito,
incorrompível, que reunia em si teoria e prática, logo, ele era quem
precisava de tratamento.

81
Idem.
82
FOUCAULT. O poder psiquiátrico.
45

“Visto assim, a personagem cumpre bem o seu papel, condenando-se no


regime por ele criado. O alienista continua a fazer seus experimentos na
busca desenfreada da comprovação de sua tese, só que agora ele mesmo
era a ‘vítima’. Por fim, seu apego desmedido à ciência representará uma
espécie de suicídio: a razão, por si só, não basta para lidar com a
complexidade do humano: no texto de Machado, portanto, a razão
condenou-se a si mesma.” 83

O sensacional desfecho de “O Alienista” deixa claro o que


significava o internamento na Casa Verde. Instituição opressiva, arbitrária,
se submetia a ela aqueles que não respeitavam as leis da normalidade. Mais
uma vez aqui, fica evidente a ideia da normalização que Foucault acredita
estar dentro dessas instituições disciplinares. Era o poder disciplinar
imposto pelo psiquiatra que realizava o reparo que o indivíduo precisava
para tornar à vida social. Era o isolamento que o levava de volta às condutas
regulares. Nesse caso, é como se o alienista terminasse se alienando da
própria razão que deseja ver triunfar, por isso a sua clausura no lugar em
que ele mesmo criou para obter a verdade sobre a loucura, seu principal
objetivo de vida.

“Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e


triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo recolheu-se à Casa
Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava
perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o
detiveram um só instante.
- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo
primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.” 84

4.4. Poder e loucura como questão jurídica na obra de


Machado de Assis

As questões suscitadas à cima estabelecem um diálogo com os temas


jurídicos da loucura e do poder. Machado de Assis, em sua obra questiona a
83
OLIVEIRA, Adriane Camara. “O Alienista”: ou a ciência como religião. Disponível em
<www.idelberavelar.com/abralic/trabalhos/AdrianeCamara.doc>. Acesso em 11 de maio de 2009.
84
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Op. cit., p. 87.
46

sanidade e posição das pessoas num mundo de loucos. Faz ainda um alerta
para a condição humana, visto que é vítima perene de insegurança e
fragilizada por não ver seus direitos respeitados. Além disso, “O Alienista”
também acaba por ser uma análise sobre a luta pelo poder, justificada pelas
próprias autoridades locais por verem na figura do alienista tamanho saber,
razão que legitimava o seu poder na pequena vila de Itaguaí.
Vale frisar que o texto literário vem permeado de queixas à evidência
científica e às verdades doutrinadas que muitas vezes constituem a
metodologia jurídica de hoje. O vínculo existente entre o poder e a ciência,
pautada em temas às vezes inquestionáveis, acaba por inibir o direito que
cada um tem de dizer a própria verdade. A isso é que se quer combater, a
fim de deixar o Direito cada vez mais disponível a pensamentos e
conclusões provenientes de outros campos do conhecimento, como neste
caso é a Literatura.
Por fim, apenas como arremate, segue um comentário dedicado à
análise de “O Alienista”:

“A obra de Machado denuncia o vínculo entre a ciência e o poder bem


como a usurpação, pelo homem de ciência, do direito que cada um tem de
dizer a própria verdade. O que conduz à ironia final: parece haver mais
loucura na pretensão de estabelecer com nitidez a linha divisória entre a
razão e a loucura que em perder-se entre seus supostos limites.” 85 (Texto
Roberto Gomes. p. 1)

85GOMES. O Alienista: loucura, poder e verdade.


CONCLUSÃO

Ao debruçar-se sobre a questão do poder e da loucura, Michel


Foucault abalou posições assumidas como definitivas. Entretanto, esses
temas tocam níveis mais profundos e essenciais, uma vez que tem relação
com os modos de produção da verdade e vinculam-se a discursos
qualificados como verdadeiros, que, por sua vez, estão ligados aos
mecanismos de poder.
Ao fazer a análise desses temas junto com a obra literária de
Machado de Assis, o intuito foi demonstrar como é possível partir de uma
ficção e dela extrair fatos e reflexões muito próximas às ideias de um
filósofo como Foucault. Tomando isso como objetivo, foi que o Movimento
Direito e Literatura tomou formas e espaço dentro das discussões do mundo
jurídico e serviu como inspirador para esta monografia.
Neste trabalho, tentou-se encontrar uma forma de seguir a
abordagem de Foucault tomando por base “O Alienista”. O que o autor traz
em seus cursos e textos com propriedade podem ser verificados nas
descrições que Machado de Assis faz em sua narrativa. Ela retrata de forma
muito próxima como a busca do poder está vinculada ao saber e como este,
por sua vez, adquire importância tal que determina o limite entre razão e
desrazão. Dessa forma, fica nítida a crítica de Foucault aos saberes
sujeitados e à universalização dos discursos que pode ser incluída neste
contexto.
Partindo ao Direito, tê-lo como homogenizador, para Foucault seria
ruim por afastar aquele saber tido como desqualificado, constituindo, assim
uma fronteira formal do poder, produzindo verdades, que, por sua vez, são
reproduzidas86. Levando isso ao texto literário de “O Alienista”, é possível
extrair dele como essa homogenização também foi ruim para a vila de
Itaguaí. O fato de se ter numa sociedade alguém que detinha o saber e o

86 FONSECA. Michel Foucault e o Direito. Op. cit., p. 164.


48

poder, cientificamente provados como verdadeiros e apoiados pela macro-


estrutura do Estado na figura da Câmara dos Vereadores e do próprio vice-
rei, legitimava seu exercício único de poder sobre os indivíduos, de
impossível questionamento. O poder exercido na microestrutura do hospício
era o poder que dominava e reinava na figura do médico, Dr. Simão
Bacamarte, que limitava e separava as pessoas do convívio social por
apresentarem algum sintoma de anormalidade. Essa era a razão para
trancafiar o sujeito e “forçá-lo” a se enquadrar no padrão já predeterminado
de pessoas normais dentro da sociedade. Todo esse poder centrado na figura
de um só, que normalizava, foi causa de terror e rebelião social.
Uma crítica ainda sobre essa verdade única foi feita por Machado de
Assis no momento em que o alienista, no auge do tratamento exercido
baseado na sua única e verdadeira teoria, resolve que não era aquela a teoria
certa, mas a oposta. Daí é possível extrair que não há verdades absolutas,
mesmo aquelas defendidas ao longo dos estudos científicos. Logo, não pode
ser o Direito tratado como verdade absoluta nem como homogenizador, a
fim dele ser tratado como ciência social que está em constante mudança por
acompanhar a evolução que acontece a cada dia.
Por fim, o internamento final do próprio alienista, permitiu a reflexão
de que após todo seu empenho de deixar nítida a única verdade, seu
objetivo não foi alcançado, ou seja, Machado coloca que nem à própria
ciência foi possível determinar a verdade, relativizando, portanto, sua
posição de produtora única dos discursos verdadeiros.
Todo esse apanhado e consequente comparativo buscou, portanto,
colocar em voga, não só a possível extração de temas jurídicos das obras
ficcionais, mas acompanhar o pensamento foucaultiano de que para haver
um bom desempenho de convivência social é preciso que tudo esteja em
constante questionamento, que não haja conformação com verdades
pautadas em “razões” únicas, pois podem ser, posteriormente, relativizadas
e a verdade ser tornada mentira. Que a ciência não seja tida como única
49

fonte de saber, mas que seja palco de variados espetáculos com desfechos
significativos que tragam novos questionamentos e relativizações.
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