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2a edição | Nead - UPE 2010

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife

Cavalcante, Maria do Socorro Tavares


C376m Movimentos sociais / Maria do Socorro Tavares Cavalcante.
Recife: UPE, 2010.

52 p.

ISBN - 978-85-7856-078-2

1. Movimentos sociais. 2. Movimentos sociais - Educação. 3. Cidadania


I. Universidade de Pernambuco - UPE. II. Título.

CDU 316.3
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movimentos sociais

Profa. Maria do Socorro Tavares Cavalcante | 60 horas

Ementa
Contexto sócio-histórico dos movimentos sociais
contemporâneos. Processos pedagógicos nos mo-
vimentos sociais organizados. Movimentos comu-
nitários.

Objetivo geral
Refletir sobre os conceitos e os métodos de análise
dos movimentos sociais contemporâneos, eviden-
ciando os processos de mudança social e política
nas escalas de grupo, sociedade e globo.

Apresentação da disciplina
A disciplina Movimentos Sociais será vivenciada com base na reflexão sobre as concepções, os
conceitos e as ideias que norteiam as organizações humanas instituídas na busca do bem comum.
Os estudos nessa área sempre tiveram a marca da contribuição intelectual de muitos pensadores
e o foco nos problemas nas especificidades de todo o processo que envolve as relações huma-
nas e suas consequências. Entretanto, as inovações que essas teorias inegavelmente trouxeram
terminaram por se esgotar na constante reformulação das mesmas questões. Por outro lado, as
interpretações sobre as consequências políticas da industrialização excludente chocam-se cada
vez mais com a realidade. O explosivo comportamento das massas não só não se verifica como,
pelo contrário, as periferias urbanas na luta por reconhecimento.

Essa situação cria condições para novas propostas de investigações que valorizam os estudos de
caso, pelos quais se pretende classificar e compreender esses novos comportamentos.

Será feito, ao longo dos estudos com a disciplina, um esforço analítico para compreender como
foi construída essa noção de movimentos sociais urbanos e quais as referências metodológicas
usadas nessas investigações.
INTRODUÇÃO AOS
ESTUDOS DOS
MOVIMENTOS
SOCIAIS

Profa. Maria do Socorro Tavares Cavalcante OBJETIVOS ESPECÍFICOS


Carga Horária | 15 horas • Conceituar movimentos sociais e seus
espaços na educação.

• Identificar movimentos sociais contem-


porâneos e sua influência nos compor-
tamentos da sociedade.

INTRODUÇÃO

A grande novidade dos grupos ligados aos movimentos sociais é sua capacidade de expressar os
desejos de base da sociedade. Associações de bairro, grupos de moradores, clube de mães, Co-
munidades Eclesiais de Base (CEBs), ao se tornarem mais numerosos e atuantes, são vistos como
formas autênticas de participação popular, em que a democracia interna garante tanto a manifes-
tação de uma vontade coletiva quanto o confronto direto com as políticas públicas autoritárias.

Parte-se do pressuposto de que, em nosso passado político, a ausência da participação popular é


uma tradição. Essa leitura um pouco apressada da história, que apresenta as camadas populares
como permanentemente tuteladas, é certamente discutível. Entretanto, essa não é, no momento,
a questão central. O que importa é ressaltar as consequências dessa visão, que atribui aos mo-
vimentos sociais (como características constituintes do conceito) uma capacidade de construir
identidades políticas (novos atores) e uma autonomia frente ao sistema político representativo,
uma vez que expressa a manifestação espontânea das camadas populares.

Esses dois aspectos estão intimamente ligados e são definidos como opostos aos mecanismos
clientelistas e populistas atribuídos à política tradicional.

O novo é o espontâneo que se opõe à manipulação, é a ação consciente de que substitui a coop-
tação; garantindo a expressão dos verdadeiros interesses populares que ficavam sufocados pelos
partidos e pelos políticos profissionais.

capítulo 1 7
culturalista, procura-se “valores culturais” co-
muns como suporte para a unidade do grupo
e deixa-se de analisar sua prática reivindicativa,
que pode mostrar frente em que outros gru-
pos são definidos essas identidades. Mas esse
interesse pelos processos internos de constru-
ção dos grupos populares não chegou a apro-
fundar a análise das diferenças e dos conflitos
que aí se manifestam.

A ênfase na construção da identidade reforçou


a tendência classificatória que apenas opõe o
“novo” ao “tradicional”.

A primeira limitação desse procedimento apa-


É fácil perceber que, nessa construção, as novi- rece na falta de precisão com que se utiliza a
dades são definidas por contraste e, com isso, noção de participação.
em lugar de definir, apenas classificamos dois
campos distintos e opostos. E se as classifica- Revestida de um caráter moral, a participação
ções podem viabilizar a construção de um dis- tornou-se sinônimo de convivência igualitária
curso mobilizador é limitante quando o objeti- e de contestação. Desde os movimentos liber-
vo é chegar a uma explicação. tários dos anos 60 (feminismo, anti-racismo,
pacifismo etc.), que esse significado ganhava
De fato, os estudos sobre esses novos atores espaço. Mas é preciso não esquecer que a no-
não questionam as inter-relações entre esses ção de participação se aplica ao conjunto de
dois campos, uma vez que são definidos valen- formas de manifestação da sociedade frente
do-se de práticas apresentadas como incom- ao Estado. As ações reivindicativas dos grupos
patíveis. populares se colocam ao lado de outras for-
mas de organizar interesses que permanecem
Entretanto, continua a haver convivência entre e cumprem funções diferentes.
essas formas de participação e a redemocrati-
zação de alguns países que viviam sob a domi-
nação autoritária, mostrou o quanto é com- 1. Movimento social
plexa a relação entre partidos e movimentos UM BREVE HISTÓRICO
sociais e como esteve obscurecida. A utilidade
dessa caracterização por contraste fica clara Movimento social é um fenômeno de diversas
quando os autores colocam a questão da cria- facetas, que acompanha a história das diferen-
ção de novas identidades políticas.

O que fundamenta essas novas identidades é a


experiência de vida comum que reúne o grupo
e seu modo democrático de funcionamento
que garante a autenticidade do grupo. Tra-
Figura 01
tada desse modo, a formação de identidades
novas parece produto apenas de vivência de
carências comuns que explicitam, para todos tes sociedades - portanto, é mais apropriado
os membros do grupo, uma mesma condição tratar (no plural) de movimentos sociais rela-
de dominação. cionando-os ao cenário social do qual emer-
gem-; e é também objeto de análise, está in-
A falta de questionamento, quanto aos inter- serido num campo teórico que o descola, ao
locutores a quem se dirige o discurso do gru- menos parcialmente, da realidade diversificada
po, faz perder o caráter relacional da noção e, dessa forma, é possível ultrapassar as singu-
de identidade. Retomando uma perspectiva laridades e particularidades de cada movimen-

8 capítulo 1
to social e abranger, num mesmo conceito,
fenômenos empíricos muito variados.

Nesse sentido, o conceito de movimento so-


cial compreende tanto os movimentos sociais
de caráter histórico, como os “da Antigüida-
de e da Idade Média: revolta de escravos, he-
resias e seitas sociais, levantes camponeses e
outros” como os movimentos milenários do
século XIX; os motins rurais do século XVIII;
os movimentos socialistas e trabalhistas pós-
Revolução Industrial); os movimentos de bairro
ou populares urbanos, já na segunda metade 2. Movimentos
de nosso século, acentuadamente após 1960, sociais: espaço
os movimentos brasileiros (rurais) dessas úl-
timas décadas e anteriores; os denominados pedagógico para
novos movimentos sociais, de mulheres, pa- a cidadania
cifistas, ecológicos, étnicos, etc., das últimas
décadas do século XX. Por estarem presentes,
de diversas formas, no decorrer da história de
diferentes sociedades, pôde-se afirmar que os
movimentos sociais não são fenômenos extra-
vagantes ou excepcionais, ao contrário, são
centrais, estão no cerne da vida social.

Os temas e as questões que envolvem o estu-


do sobre movimentos sociais ocupam um lu- Figura 02
gar privilegiado na teoria sociológica clássica
e contemporânea. Basta lembrar que um dos Se tomarmos os anos a partir da década de
aspectos essenciais na Sociologia, desde sua 1970, observamos que diferentes protagonis-
origem, é a análise das manifestações coleti- tas, atores sociais, sujeitos coletivos e políticos,
vas, sob forma de movimentos de massa, das estiveram presentes no cenário nacional bra-
revoltas, enfim, é a análise da multidão. Cada sileiro, por meio dos movimentos sociais pela
corrente de pensamento sociológico procura redemocratização do país e pela consolidação
compreender, explicar, exorcizar, dinamizar ou e garantia de direitos, tais como os movimen-
controlar a multidão este fenômeno que “im- tos de trabalhadores urbanos e rurais, os mo-
pressiona, desafia, assusta ou entusiasma”. vimentos populares, de gênero, étnicos, de
meninos e meninas que vivem nas ruas, movi-
Tais correntes teóricas apresentam uma varie- mentos pela cidadania e ética na política, mo-
dade de conceitos sobre movimento social que vimentos ecológico e ambientalista. Mais re-
quase nunca são comparáveis entre si, seja pe- centemente, tais atores sociais também estão
los próprios antagonismos e diferenças entre articulados em redes, em fóruns e por meio
as correntes, seja porque os movimentos so- de participações institucionalizadas em Orga-
ciais se constituem objetos que envolvem in- nizações não Governamentais, em Conselhos
teresse e paixão. Assim “como a maioria das Gestores dos municípios, estados e federação
noções das ciências sociais, a de movimento e nas experiências de orçamento participativo,
social não descreve parte da realidade, mas é entre outras formas de organização, participa-
um elemento de um modo específico de cons- ção e gestão social.
truir a realidade social”
Essas configurações da sociedade civil orga-
nizada têm expressado, desafiado e colocado
propostas que se contrapõem ao processo

capítulo 1 9
No início do século XX, era muito mais co-
mum a existência de movimentos ligados ao
rural, assim como movimentos que lutavam
pela conquista do poder político. Em meados
de 1950, os movimentos nos espaços rurais e
urbanos adquiriram visibilidade por meio da
realização de manifestações em espaços pú-
blicos (rodovias, praças, etc.). Os movimentos
populares urbanos foram impulsionados pelas
Sociedades Amigos de Bairro - SABs - e pelas
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Nos
anos 1960 e 1970, mesmo diante de forte
repressão policial, os movimentos não se ca-
laram. Havia reivindicações por educação, por
moradia e por voto direto. Em 1980, desta-
de mundialização em curso encabeçado pela caram-se as manifestações sociais conhecidas
globalização do capital, influindo ou deman- como “Diretas Já”.
dando influir na formulação e na gestão das
políticas públicas. Em 1990, o MST e as ONGs tiveram destaque,
ao lado de outros sujeitos coletivos, tais como
Nessa perspectiva, é possível afirmar que as os movimentos sindicais de professores. Con-
diversas expressões da participação social dos comitante às ações coletivas que tocam nos
sujeitos e atores coletivos, na contemporanei- problemas existentes no planeta (violência,
dade brasileira, têm ampliado e ocupado os por exemplo), há a presença de ações coleti-
“espaços públicos de se fazer política”. Consi- vas que denunciam a concentração de terra,
deramos, assim, que as experiências ou expe- ao mesmo tempo em que apontam propos-
rimentos de participação social na atualidade tas para a geração de empregos no campo,
têm trazido à política um novo significado: a a exemplo do Movimento dos Trabalhadores
política entendida como forma de sociabili- Sem Terra (MST); ações coletivas que denun-
dade, e têm provocado mudanças, inclusive, ciam o arrocho salarial (greve de professores
no sentido da democracia, desenvolvendo “a e de operários de indústrias automobilísticas);
ideia de que a democracia não é só um regime ações coletivas que denunciam a depredação
político, mas é um regime de vida”. ambiental e a poluição dos rios e dos oceanos
(lixo doméstico, acidentes com navios petro-
As análises dos movimentos sociais no Bra- leiros, lixo industrial); ações coletivas que têm
sil revelam forte enfoque teórico, oriundo do espaço urbano como lócus para a visibilidade
marxismo, sejam eles vinculados ao espaço da denúncia, reivindicação ou proposição de
urbano e/ou rural. Tais movimentos, quando alternativas.
se referiam ao espaço urbano, possuíam um
leque amplo de temáticas, a exemplo das lutas As passeatas, manifestações em praça públi-
por creches, por escola pública, por moradia, ca, difusão de mensagens via internet, ocupa-
por transporte, por saúde, por saneamento bá- ção de prédios públicos, greves, marchas, en-
sico etc. Quanto ao espaço rural, a diversidade tre outros, são características da ação de um
de temáticas expressou-se nos movimentos de movimento social. A ação em praça pública
boias-frias (das regiões cafeeiras, citricultoras e é o que dá visibilidade ao movimento social,
canavieiras principalmente), de posseiros, sem- principalmente quando este é focalizado pela
terra, arrendatários e pequenos proprietários. mídia em geral. Os movimentos sociais são si-
nais de maturidade social que podem provocar
Cada um dos movimentos possuía uma reivin- impactos conjunturais e estruturais, em maior
dicação específica, no entanto, todos expres- ou menor grau, dependendo de sua organiza-
savam as contradições econômicas e sociais ção e das relações de forças estabelecidas com
presentes na sociedade brasileira. o Estado e com os demais atores coletivos de
uma sociedade.

10 capítulo 1
3. Alguns
movimentos
sociais
contemporâneos
NO BRASIL E NO MUNDO

Uma das atividades do grupo consiste na ocu-


pação de terras improdutivas como forma de
pressão pela reforma agrária, mas também há
reivindicação quanto a empréstimos e ajuda
Figura 03 para que realmente possam produzir nessas
terras. Para o MST, é muito importante que
as famílias possam ter escolas próximas ao as-
Movimento dos Trabalhadores sentamento, de maneira que as crianças não
Rurais Sem Terra - MST precisem ir à cidade e, dessa forma, fixarem as
famílias no campo.
O Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem A organização não tem registro legal por ser
Terra, também conhe- um movimento social e, portanto, não é obri-
cido pela sigla MST, é gada a prestar contas a nenhum órgão de go-
um movimento social verno, como qualquer movimento social ou
brasileiro de inspiração associação de moradores.
marxista, cujo objetivo Figura 04
é a implantação da re- O movimento recebe apoio de organizações
forma agrária no Brasil. não governamentais e religiosas, do país e do
Teve origem na aglutinação de movimentos exterior, interessadas em estimular a reforma
que faziam oposição ou estavam desgostosos agrária e a distribuição de renda em países em
com o modelo de reforma agrária imposto
desenvolvimento. Sua principal fonte de finan-
pelo regime militar, principalmente na década
ciamento é a própria base de camponeses já
de 1970, o qual priorizava a colonização de
assentados, que contribuem para a continui-
terras devolutas em regiões remotas, com ob-
jetivo de exportação de excedentes populacio- dade do movimento.
nais e integração estratégica. Contrariamente
a esse modelo, o MST declara buscar a redistri- Dados coletados em diversas pesquisas de-
buição das terras improdutivas. monstram que os agricultores organizados
pelo movimento têm conseguido usufruir de
Apesar de os movimentos organizados de melhor qualidade de vida que os agricultores
massa pela reforma agrária no Brasil remonta- não organizados.
rem apenas às ligas camponesas, associações
de agricultores que existiam durante as déca- O MST reivindica representar uma continuida-
das de 1950 e 1960, o MST proclama-se como de na luta histórica dos camponeses brasileiros
herdeiro ideológico de todos os movimentos pela reforma agrária. Os atuais governantes
de base social camponesa, ocorridos desde do Brasil têm origens comuns nas lutas sindi-
que os portugueses entraram no Brasil quando cais e populares, e, portanto compartilham em
a terra foi dividida em sesmarias, por favor real, maior ou menor grau das reivindicações histó-
de acordo com o direito feudal português, fato ricas desse movimento. Segundo outros auto-
esse que excluiu, em princípio, grande parte da res, o MST é um movimento legítimo, que usa
população do acesso direto a terra. a única arma de que dispõe para pressionar a

capítulo 1 11
Figura 06

O Fórum Social Mundial (FSM) é um evento


altermundialista, organizado por movimentos
sociais de diversos continentes, com objetivo
sociedade para a questão da reforma agrária, de elaborar alternativas para uma transforma-
a ocupação de terras e a mobilização de gran- ção social-global. Seu slogan é Um outro mun-
de massa humana. do é possível.

Movimento dos Trabalhadores É um espaço internacional para a reflexão e a


Sem Teto - MTST organização de todos os que se contrapõem
à globalização neoliberal e estão construindo
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto alternativas para favorecer o desenvolvimento
(MTST) surgiu em 1997, humano e buscar a superação da dominação
da necessidade de orga- dos mercados em cada país e em relações in-
nizar a reforma urbana ternacionais.
e de garantir moradia a
todos os cidadãos. Está A luta por um mundo sem excluídos, uma das
organizado nos municí- bandeiras do I Fórum Social Mundial, tem suas
pios do Rio de Janeiro, raízes fixadas na resistência histórica dos povos
Campinas e São Paulo. Figura 05 contra todo o gênero de opressão em todos
É um movimento de os tempos, resistência que culmina em nossos
caráter social, político e dias com o movimento irmanando milhões de
sindical. Em 1997, o MST fez uma avaliação in- cidadãos e não-cidadãos do mundo inteiro
terna em que reconheceu que seria necessária contra as consequências da mundialização do
uma atuação na cidade além de sua atuação capital, patrocinada por organismos multila-
no campo. Dessa constatação, duas opções de terais como o Fundo Monetário Internacional
luta se abriram: trabalho e moradia. (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização
Mundial do Comércio (OMC) entre outros.
Estão em quase todas as metrópoles do País.
São desdobramentos urbanos do MST, com O Fórum Social Mundial (FSM) se reuniu pela
um comando descentralizado. As formas de primeira vez na cidade de Porto Alegre, esta-
atuação variam de um movimento para outro. do do Rio Grande do Sul, Brasil, entre 25 e
Em geral, as ocupações não têm motivação 30 de janeiro de 2001, com o objetivo de se
política, apenas apoio informal de filiados a contrapor ao Fórum Econômico Mundial de
partidos de esquerda. O objetivo das ocupa- Davos. Esse Fórum Econômico tem cumprido,
ções é pressionar o poder público a criar pro- desde 1971, papel estratégico na formulação
gramas de moradia e dar à população de baixa do pensamento dos que promovem e defen-
renda acesso a financiamentos para a compra dem as políticas neoliberais em todo mundo.
de imóveis. Sua base organizacional é uma fundação suí-
ça, que funciona como consultora da ONU e é
Atualmente, o MTST é autônomo em relação financiada por mais de 1.000 empresas multi-
ao MST, mas tem uma aliança estratégica com nacionais.
esse.
Os “hippies” (no singular, hippie) eram parte
do que se convencionou chamar movimento

12 capítulo 1
de contracultura dos anos 60, tendo relativa
queda de popularidade nos anos 70, nos EUA,
embora o movimento tenha tido muita força
em países como o Brasil somente na década
de 70. Uma das frases idiomáticas, associada
a esse movimento foi a célebre máxima “Paz e
Amor” (em inglês “Peace and Love”) que pre-
cedeu à expressão “Ban the Bomb”, a qual cri-
ticava o uso de armas nucleares.

As questões ambientais,
a prática de nudismo e a
emancipação sexual eram cabelos e barbas mais compridos que o consi-
ideias respeitadas recor- derado “elegante” na época do seu surgimen-
rentemente por essas co- to. Muita gente não associada à contracultura
munidades. considerava os cabelos compridos uma ofensa,
em parte por causa da atitude iconoclasta dos
Adotavam um modo de hippies, às vezes por acharem “anti-higiênicos”
vida comunitário, ten- ou os considerarem “coisa de mulher”.
dendo a uma espécie de
socialismo-anarquista ou Figura 07 - Jovem mú- Foi quando a peça musical Hair saiu do circuito
estilo de vida nômade e à sico hippie com trajes chamado off-Broadway para um grande teatro
típicos da época.
vida em comunhão com a da Broadway, em 1968, que a contracultura
natureza, negavam o na- hippie já estava se diversificando e saindo dos
cionalismo e a Guerra do Vietnã, bem como centros urbanos tradicionais.
todas as guerras, abraçavam aspectos de reli-
giões como o budismo, o hinduismo, e/ou as Os Hippies não pararam de fazer protestos
religiões das culturas nativas norte-americanas contra a Guerra do Vietnã, cujo propósito era
e estavam em desacordo com valores tradicio- acabar com a guerra. A massa dos hippies
nais da classe média americana e das econo- eram soldados que voltaram depois de ter
mias capitalistas e totalitárias. Eles enxerga- contato com os Indianos e a cultura oriental
vam o patriarcalismo, o militarismo, o poder que, com base nesse contato, se inspiraram na
governamental, as corporações industriais, a religião e no jeito de viver para protestarem.
massificação, o capitalismo, o autoritarismo e Seu principal símbolo era o Mandala (Figura
os valores sociais tradicionais, como parte de circular com 3 intervalos iguais).
uma “instituição” única, e que não tinha legi-
timidade. Movimento Feminista

Nos anos 60, mui- O Feminismo é um discurso


tos jovens passa- intelectual, filosófico e polí-
ram a contestar a tico que tem como meta os
sociedade e a pôr direitos iguais e a proteção
em causa os valo- legal às mulheres. Ele en-
res tradicionais e volve diversos movimentos,
o poder militar e Figura 08 teorias e filosofias, todas
econômico. Esses preocupadas com as ques-
movimentos de contestação iniciaram-se nos tões relacionadas às dife- Figura 09

EUA, impulsionados por músicos e artistas em renças entre os gêneros, e


geral. Os hippies defendiam o amor livre e a advogam a igualdade para homens e mulheres
não-violência. Como grupo, os hippies ten- e a campanha pelos direitos das mulheres e
dem a viver em comunidades coletivistas ou seus interesses. De acordo com Maggie Humm
de forma nômade, vivendo e produzindo inde- e Rebecca Walker, a história do feminismo
pendentemente dos mercados formais, usam pode ser dividida em três “ondas”. A primeira

capítulo 1 13
de feminismo. Essa tendência foi acelerada na
década de 1960, com o movimento pelos di-
reitos civis que surgiu nos Estados Unidos, e o
colapso do colonialismo europeu na África, no
Caribe e em partes da América Latina e do Su-
deste Asiático. Desde então, as mulheres, nas
antigas colônias europeias e no Terceiro Mun-
do, propuseram feminismos “pós-coloniais” -
nas quais algumas postulantes, como Chandra
Talpade Mohanty, criticam o feminismo tradi-
cional ocidental como etnocêntrico. Feminis-
tas negras, como Angela Davis e Alice Walker,
teria ocorrido no século XIX e início do século compartilham esse ponto de vista.
XX, a segunda nas décadas de 1960 e 1970,
e a terceira teria ido da década de 1990 até Desde a década de 1980, as feministas stand-
a atualidade. A teoria feminista surgiu desses point argumentaram que o feminismo deveria
movimentos femininos, e se manifesta em di- examinar como a experiência da mulher em es-
versas disciplinas como a geografia feminista, tado de desigualdade se relaciona ao racismo,
a história feminista e a crítica literária feminis- à homofobia, ao classismo e à colonização.
ta. No fim da mesma década e início da seguinte,
as feministas ditas pós-modernas argumenta-
O feminismo ram que os papeis sociais dos gêneros seriam
alterou notada- construídos socialmente e que seria impossível
mente as pers- generalizar as experiências das mulheres por
pectivas predo- todas as suas culturas e histórias.
minantes em
diversas áreas da Movimento Estudantil
sociedade oci-
dental, que vão O movimento estudantil,
Figura 10
da cultura ao di- embora não seja conside-
reito. As ativistas rado um movimento po-
femininas fizeram campanhas pelos direitos pular, dada a origem dos
legais das mulheres (direitos de contrato, di- sujeitos envolvidos, que,
reitos de propriedade, direitos ao voto), pelo nos primórdios desse
direito da mulher à sua autonomia e à integri- movimento, pertenciam,
dade de seu corpo, pelos direitos ao aborto e em sua maioria, à cha-
pelos direitos reprodutivos (incluindo o aces- mada classe dos peque-
so à contracepção e a cuidados pré-natais de nos burgueses, é um mo-
Figura 11
qualidade), pela proteção de mulheres e de vimento de caráter social
garotas contra a violência doméstica, o assédio e de massa. É a expressão
sexual e o estupro, pelos direitos trabalhistas, política das tensões que permeiam o sistema
incluindo a licença-maternidade e os salários dependente na sua inteireza e não apenas a
iguais, e todas as outras formas de discrimi- expressão ideológica de uma classe ou de visão
nação. de mundo. Em 1967, no Brasil, sob a conjun-
tura da ditadura militar, esse movimento inicia
Durante toda a sua história, a maior parte dos um processo de reorganização, como a única
movimentos e teorias feministas tiveram líderes força não institucionalizada de oposição polí-
que eram especialmente mulheres brancas de tica. A história mostra como esse movimento
classe média, da Europa Ocidental e da Amé- constitui força auxiliar do processo de trans-
rica do Norte. No entanto, desde, pelo menos formação social ao polarizar as tensões que se
o discurso Sojourner Truth, feito em 1851, às desencadearam no núcleo do sistema depen-
feministas dos Estados Unidos, mulheres de dente. O movimento estudantil é o produto
outras raças propuseram formas alternativas social e a expressão política das tensões laten-

14 capítulo 1
tes e difusas na sociedade. Sua ação histórica
e sociológica tem sido a de absorver e de ra-
dicalizar tais tensões. Sua grande capacidade
de organização e de arregimentação foi capaz
de colocar cem mil pessoas na rua, quando da
passeata dos cem mil, em 1968. Ademais, a
histórica resistência da União Nacional dos Es-
tudantes (UNE), como entidade representativa
dos estudantes, é exemplar.

O movimento estu-
dantil é um movi-
mento social da área tal, nos Estados Unidos e na América Latina.
da educação, no No Brasil, o movimento teve papel importante
qual os sujeitos são na luta contra o regime militar que se instalou
os próprios estudan- no país a partir de 1964.
tes. Caracteriza-se Figura 12 - Mobilização de es-
por ser um movi-
Referências
tudantes por melhorias no en-
sino público.
mento policlassista
e constantemente
renovado - já que o corpo discente se renova GOHN, M. G. A força da periferia: a luta das
periodicamente nas instituições de ensino. mulheres por creche em São Paulo, Petrópolis,
Vozes, 1985.
Podem-se encontrar traços de movimentos es-
tudantis pelo menos desde o século XV, quan- JACOBI, P. “Movimentos urbanos no Brasil”.
do, na Universidade de Paris, uma das mais BIB, Rio de Janeiro, IUPERJ, nº 9.
antigas da Europa, registraram-se vários movi-
mentos grevistas importantes. A universidade ____. Políticas públicas de saneamento básico
esteve em greve durante três meses, em 1443, e saúde - reivindicações sociais no município
e por seis meses, entre setembro de 1444 e de São Paulo. Dissertação de doutorado, FFL-
março de 1445, em defesa de suas isenções CH/USP, 1985.
fiscais. Em 1446, quando Carlos VII submeteu
a universidade à jurisdição do Parlamento de AVELAR, L. Mudanças Estruturais, Crise Políti-
Paris, eclodiram revoltas estudantis - das quais ca e Eleições. São Paulo em Perspectiva Revista
participou, entre outros, o poeta François SEADE, 8 (2): abr-jun, 1994.
Villon - contra a supressão da autonomia uni-
versitária em matéria penal e a submissão da BOSCHI, R. R. A Arte da Associação Política de
universidade ao Parlamento. Frequentemente, Base e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro,
estudantes eram detidos pelo preboste do rei Vértice, 1987.
e, nesses casos, o reitor dirigia-se ao Châtelet,
sede do prebostado, para pedir que o estudan- CAMACHO, D. Movimentos sociais, algumas
te fosse julgado pelas instâncias da universida- discussões conceituais. In: SCHERER-WARREN,
de. Se o preboste do rei indeferia o pedido, a I. & KRISCHKE, P. (org.)- Uma Revolução no
universidade entrava em greve. Em 1453, um Cotidiano? Os novos movimentos sociais na
estudante, Raymond de Mauregart, foi morto América Latina. São Paulo, Brasiliense, 1987.
pelas forças do Châtelet e a universidade en-
trou novamente em greve por vários meses. CARONE, E. Movimento Operário no Brasil.
São Paulo, Difel, 1979.
Contemporaneamente, destacam-se os movi-
mentos estudantis da década de 1960, (dentre CASTELLS, M. The city and the grassroots. Cali-
os quais os de maio de 1968), na França. No fornia, Ed. University of California Press, 1983.
mesmo ano, também se registraram movimen-
tos em vários outros países da Europa Ociden-

capítulo 1 15
COUTINHO, C. N. Contra a Corrente: ensaio so-
bre democracia e socialismo. São Paulo, 2002.
GOHN, M. G. A força da periferia: a luta das
mulheres por creche em São Paulo, Petrópolis,
Vozes, 1985.

SOUZA, Maria Antônia. Movimentos sociais no


Brasil contemporâneo: participação e possibili-
dades no contexto das práticas democráticas.
Dissertação de Mestrado em Educação. Uni-
versidade Tuiuti de Curitiba, PR.

Saiba Mais:
ACESSE:
http://www.cce.udesc.br/cab/oqueeomovimento-
estudantil.htm

FILME

Diamante de Sangue
Serra Leoa, final da década de 90. O país está em
plena guerra civil, com conflitos constantes entre
o governo e a Força Unida Revolucionária (FUR).
Quando uma tropa da FUR invade uma aldeia da
etnia Mende, o pescador Solomon (Djimon Houn-
son) é separado de sua família, que consegue fu-
gir. Solomon consegue esconder em um pedaço
de pano e o enterra, mas é descoberto por um
integrante da FUR. Nesse exato momento, ocorre
um ataque do governo, que faz Solomon e vários
dos presentes serem presos.

Atividades:
1. Elabore uma linha de tempo ilustrando a his-
tória dos movimentos sociais.

2. Liste as ideias centrais do filme sugerido e
faça um paralelo com as ideias relativas ao
conceito de movimentos sociais.

3. Liste
as principais características dos movi-
mentos sociais contemporâneos no Brasil e
no mundo.

16 capítulo 1
PROCESSOS
PEDAGÓGICOS E
MOVIMENTOS
SOCIAIS
ESTUDANTIS

Profa. Maria do Socorro Tavares Cavalcante OBJETIVOS ESPECÍFICOS


Carga Horária | 15 horas • Relacionar movimentos sociais e pro-
cessos de sala de aula.

• Identificar elementos típicos dos movi-


mentos sociais no ambiente escolar.

• Descrever movimento estudantil

INTRODUÇÃO

O elemento comum que entrelaça os movimentos sociais com a educa-
ção é a cidadania. Entretanto, esse termo possui diversas abordagens
tanto do ponto de vista teórico-metodológico quanto do processo de
mudança e de transformação da sociedade.

A questão da cidadania está ligada à noção de direitos. Trata-se dos


direitos naturais e imprescritíveis do homem (liberdade, igualdade pe-
rante a lei e direito à propriedade), e dos direitos da nação (soberania
nacional e separação dos poderes: executivo, legislativo e judiciário). De
acordo com essa ideologia, o homem era suficientemente esclarecido Figura 01
para escolher seus representantes, com conhecimento de causa, inde-
pendentemente das pressões e era ainda, acima de tudo, um proprietário (de terras e imóveis).

De acordo com Locke, teórico liberal, há uma diferenciação de direitos entre a classe trabalhadora
e a burguesia, pois a primeira, acostumada com o arado e a enxada, era incapaz de ter ideias
sublimes. Portanto, a educação para a cidadania era irrelevante para a classe trabalhadora, uma
vez que ela não tinha qualidades para ser cidadã.

capítulo 2 17
1. Movimento
Estudantil
Por muito tempo, o movimento estudantil era

A igualdade natural, inata entre os homens,


seria desfeita no plano da sociedade real, pela
desigualdade entre cidadão-proprietário e o
não-cidadão e não-proprietário. Enfim, as di-
ferenças sociais eram vistas como diferenças
de capacidade. Figura 02

Adam Smith justifica, assim, a necessidade da sinônimo de credibilidade e de respeito, gra-


educação em função da divisão do trabalho. ças às inúmeras pessoas que lutaram ao longo
Seria competência de o Estado facilitar, enco- do tempo e, principalmente no período mili-
rajar e até mesmo impor a toda população a tar, para que os estudantes tivessem melhores
importância do aprendizado mínimo às neces- condições de estudo e de liberdade de expres-
sidades de capital. são, além de defender os direitos de todos os
cidadãos.
O pressuposto básico era de que o povo instru-
ído seria ordeiro, obediente aos seus superio- Várias siglas ficaram conhecidas como: UNE,
res e não presa de crendices e de superstições UBES, USES e tantas outras que se tornaram
religiosas e místicas. marcas na história brasileira.
O essencial não era instruir, racionalizar o in-
Acontece que hoje essas marcas se transfor-
divíduo, mas racionalizar a vida econômica, a
maram em produtos políticos partidários que
produção, ou seja, a única educação que inte-
são disputadas renhidamente, para ver quem
ressava era a formação e a produção de mer-
vai dominar tal sigla e, por meio do prestigio,
cadoria para o trabalho.
usá-la como trampolim político.
A cidadania do séc.XIX, ao contrário dos sécu-
los anteriores, dirige-se a todos, incluindo as Hoje eles utilizam os congressos para atrair es-
massas, entretanto a sua finalidade precípua tudantes, e você até pode pensar: isso não é
era discipliná-las e domesticá-las, ou seja, bus- bom? Mas acontece que os atuais congressos
cava-se, pela educação, que os membros do não são propriamente para discutir temas que
tecido social participem do convívio coletivo de melhorem a educação, mas são verdadeiras
forma harmoniosa. festas em que acontece de tudo. E verdadeiras
arenas onde os representantes de políticos se
Os direitos sociais não são conquistados, mas digladiam para sair como a vitória em determi-
sim outorgados pelo Estado. nados pleitos que ocorrem nesses congressos,
e as vitórias só se tornam realidade depois de
Nesse processo, em que a educação tem des- reprimir ou de oferecer privilégios aos delega-
taque, a prática pedagógica enfatiza as estra- dos que têm poder de voto.
tégias de persuasão, de esclarecimento e de
moralização de cada futuro cidadão. Outra coisa que atrai os jovens é achar que o
espírito revolucionário é moda e não um meio
A educação ocupa lugar central na acepção que existe para conscientizar os estudantes e
coletiva da cidadania. Isso porque ela se cons- a sociedade em geral. E esses estudantes, na
trói no processo de luta, que é em si próprio, sua grande maioria, não sabem nem o que é
um movimento educativo. movimento estudantil.

18 capítulo 2
É muito fácil identificar a forma como hoje é
tratado o movimento estudantil, basta você
acompanhar as eleições do grêmio nas escolas
e você vai ver que a maioria das chapas são
eleitas porque têm no seu comando pessoas
que são populares ou tidas como as mais en-
graçadas da escola e dificilmente têm alguma
proposta a ser apresentada. E são esses jovens
que são cobiçados pelos partidos políticos na
época da eleição, eles trabalham para candida-
tos que oferecem de tudo, e acabam tirando
toda a atenção do ambiente escolar. sidade brasileira, seu acelerado processo de
desmonte e de privatização, em meio aos dis-
Sem contar alunos que se reprovam por vá- cursos de democratização do acesso ao ensino
rios anos apenas para continuar à frente dos superior por camadas sociais excluídas.
grêmios e manter certos grupos políticos no
comando. No Brasil, ainda nos anos 60, o crescimento
numérico dos ‘excedentes’, fruto da expan-
O período mais forte do movimento estudan- são do ensino secundário, que, aprovados nos
til foi na ditadura militar. E atualmente o que concursos vestibulares, não obtinham vagas no
acontece com o movimento não é uma forma ensino superior, foi utilizado como legitimador
de ditadura? Exemplo disso é parentes de po- da expansão da rede privada de ensino supe-
líticos que já estão se preparando dentro dos rior. As políticas educacionais, implementadas
movimentos para ser o corrupto do futuro e no país na última década, de inspiração neo-
ainda garantir que seu parente tenha um go- liberal, servindo-se do discurso democratizan-
verno tranquilo, sem “subversivos” para ator- te de ampliação do acesso ao nível superior,
mentar seu governo. consolida a iniciativa privada com a concessão
do status de Universidade a inúmeras institui-
O movimento estudantil, como movimento so- ções privadas, além de permitir a criação de
cial que se desenvolveu dentro das populações novas modalidades de cursos superiores de
escolarizadas, é um dos problemas abandona- curta duração. Como consequência, temos
dos pela Sociologia da Educação nas últimas uma inflação de títulos universitários sem o es-
décadas, após a produção de obras apressa- perado retorno social e econômico, fenômeno
das sobre a revolta dos estudantes de maio de iniciado na década de 60 e que vem, desde
68. No entanto, o movimento estudantil é um então, acirrando-se, e hoje, no Brasil, torna-
tema que, atualmente, está a exigir a abertu- se nevrálgico com a polêmica das “cotas” para
ra de novas frentes de pesquisa, o advento de afrodescendentes e alunos provenientes de es-
novas estratégias e a reformulação radical das colas públicas .
hipóteses. Para Passeron (1991, p.72), é um
equívoco considerar esse um tema superado, A forte relação entre desempenho escolar e origem
social, amplamente estudada quando nos referimos à
educação básica, exige, hoje, um estudo voltado para
como se no meio estudantil não pudesse ocorrer ou-
o ensino superior. A universidade ainda é, por exce-
tra coisa diferente do que havia acontecido, como
lência e definição, uma das principais instituições que
se a história ideológica sinuosa e contraditória dos
mantêm e legitimam os privilégios sociais. A par da
estados de ânimo estudantis dos anos 70 em uma
discussão da adoção de ações afirmativas instaura-se
paisagem universitária transformada não pudesse ser
a questão de se a democratização do acesso ao ensi-
outra coisa que repetição ou decomposição do que
no superior realmente favorece a ascensão social das
teria expressado em sua totalidade significativa uma
camadas desfavorecidas. Ou por outro lado a Univer-
crise arquetípica ... cada qual deixa às velhas análises
sidade seria uma instituição formativa que reproduz e
a tarefa de vigiar sobre um meio universitário supos-
legitima o status quo, confirmando as desigualdades
tamente adormecido.
sociais.

O tema “movimento estudantil” exige, portan-


Bourdieu é um autor fundamental para essa
to, uma releitura que possibilite lançar luzes,
discussão. Como constatam Nogueira e No-
em outro foco, sobre a atual crise da univer-

capítulo 2 19
significante a presença de estudantes das ca-
madas populares ou de estudantes-trabalha-
dores. As lideranças do movimento estudantil
se destacam na massa universitária, angarian-
do prestígio e distinção, acumulando um ca-
pital político e social não acessível aos demais
estudantes. Portanto torna-se interessante, do
ponto de vista sociológico, desvelar os critérios
de seleção dos quadros do movimento estu-
dantil e avaliar a visibilidade e o prestígio de
seus líderes na universidade e na sociedade em
gueira (2002, p.6), a Sociologia da Educação geral. Pensamos que esse estudo pode se inse-
de Bourdieu tornou-se um marco histórico, rir, assim, na problemática maior da educação
quando, a partir dos anos 60, debruçou-se so- como mecanismo de equalização social ou es-
bre o problema das desigualdades escolares, tratégia diferencial de distinção.
aliando teoria e empiria, de forma original e
abrangente. Nas últimas décadas, o movimento estudantil
desempenhou um papel de destaque na polí-
O movimento estudantil, que, por princípio, é tica nacional. Muitos de seus líderes são hoje
uma instância de luta contra os privilégios e políticos de renome, ministros, governadores.
em prol da democratização do acesso ao en- No meio acadêmico, muitos professores e pro-
sino, se contrapõe ao papel legitimador das fissionais que hoje exercem cargos de desta-
desigualdades sociais desempenhado pela que na Universidade e fora dela, foram mili-
Universidade. No entanto, o movimento estu- tantes estudantis.
dantil – inserido que está numa sociedade e
numa Universidade desigual – tende a repro- A desmobilização e a crise do movimento estu-
duzir essa desigualdade em seus quadros 1, dantil, acirrou a tendência a não reconhecer o
confirmando trajetórias de distinção e, mesmo jovem como um interlocutor político e social,
não intencionalmente, constituindo um tipo reduzindo-o a simples consumidor. Ressentin-
de elite. do-se do momento atual, em que as organiza-
ções estudantis e as juventudes partidárias não
O conceito de elite refere-se, em sentido lato, mais apresentam a força do passado, aumenta
a um grupo de pessoas que ocupam posições a queixa de que os jovens estão ausentes dos
proeminentes e, de forma específica, àqueles espaços e dos canais de participação políti-
que se destacam em determinado campo so- ca. Isso ocorreria em razão da inexistência ou
cial, ou ainda o estrato superior da sociedade. fraqueza de atores juvenis nas esferas políticas,
Não tratamos aqui do sentido restrito de elite personificada na baixa adesão dessa categoria
como classe dirigente, elite governante ou po- etária aos movimentos e às organizações polí-
lítica, mas seguindo uma linha de pensamento ticas, como aponta Abramo (1997, p.7). Ainda
que admite a pluralidade das elites e sua hete- segundo Abramo (op.cit.), esse discurso vem
rogeneidade, e que, portanto, aceita como eli- acompanhado de um diagnóstico que aponta
tes os que acumulam elevado capital cultural, o crescimento de tendências sociais que ultra-
acadêmico ou social, entre outros. valorizam o individualismo e o pragmatismo,
induzindo os jovens a tornarem-se pré-políti-
Inserindo a discussão sobre o movimento es- cos e até a-políticos, ausentes e desinteressa-
tudantil à luz dos estudos de Bourdieu, sobre dos pelas questões políticas e sociais do país.
a reprodução das desigualdades sociais, por
meio das práticas escolares – universitárias, Para Abramo (1997, p.31), a juventude, nos
nesse caso -, podemos levantar pistas de como anos 60, apareceu como uma possibilidade de
se efetivam as estratégias de distinção no inte- profunda transformação social, representando
rior da Universidade. A tendência evidente no na época ora temor ora esperança utópica e,
movimento estudantil é a de seus líderes serem hoje, após 30 anos, teve sua imagem consoli-
provenientes das camadas médias, sendo in- dada como a de uma geração idealista, gene-

20 capítulo 2
rosa, criativa, que ousou sonhar e se compro-
meter com a mudança social. Essa imagem da
geração de 60 influencia, ainda hoje, o movi-
mento estudantil que se espelha na sua atua-
ção e nos ideais, numa tentativa de opor-se à
imagem, disseminada pela midia da juventude
dos anos 80 e 90, representada como apática,
individualista, consumista, conservadora e in-
diferente à questões políticas e sociais. Figura 03

Essas representações da juventude sugerem


certo maniqueísmo ao opor duas gerações pos e as sociedades humanas. Incorporar essa
como dotadas de atributos diametralmente concepção e consequente postura epistemo-
opostos. O papel de inovação cultural e de lógica, implica conceber o conhecimento e a
transformação social (Uma parcela da esquer- transformação como construção social ativa.
da brasileira atribui esse papel ao PT e/ou ao Implica superar a ideia de transferência de co-
MST) não é mais atribuído à juventude como nhecimento ou de “conscientização” em vista
o fora outrora. Como se a juventude fosse a de verdades preestabelecidas. No engajamen-
única categoria social capaz de mudar ou to concreto em espaços sociais e históricos,
corrigir as tendências negativas do sistema, explicitando contradições e num permanente
apesar de apostar na sua incompetência para processo de reflexão-acão, permeado pelo diá-
efetivar com sucesso as mudanças necessárias. logo coletivo, realiza-se a simultânea denúncia
A juventude atual seria incapaz de resistir ou das situações injustas e o anúncio das novas
de oferecer alternativas às tendências inscritas possibilidades. Nem o determinismo do pre-
no sistema social: o individualismo, o conser- sente nem a predeterminação do futuro cabem
vadorismo moral, o pragmatismo, a falta de nessa concepção. Nesse sentido, buscaremos
idealismo e de compromisso político, e, por- identificar três níveis da realidade, nos quais
tanto não haveria saída para a crise de valores, aparecem desafios e oportunidades específi-
para a massificação e para a alienação, ressalta cas para os movimentos sociais populares. A
Abramo (1997, p.31), já que a juventude nega explicitação desses níveis fará que possam ser
seu papel como fonte de mudança . melhor enfrentadas suas especificidades como
momentos pedagógicos complementares, oti-
A juventude universitária de hoje, que se en- mizando oportunidades e acúmulos já existen-
gaja no movimento estudantil, ainda procura tes.
preservar – atualizando e ressignificando - esse
idioma comum dos anos 60, como relembra O fato de a própria estrutura e os objetivos dos
Brandão (1994, p.72), forjado sobre ideias e movimentos sociais populares serem organiza-
ideais de liberdade, autodeterminação dos po- dos em vista da superação do status quo atual
vos e justiça social, com os quais se montavam e de seus pressupostos, faz deles um locus pri-
diferentes retóricas e se elaboravam diferentes vilegiado da construção de novos referenciais
projetos, mobilizando-os e à sociedade para para os seus integrantes. Neles as individuali-
caminhar no sentido de um futuro melhor. dades podem tornar-se conscientes dos meca-
nismos ideológicos que pesam sobre eles e o

2. Níveis formativo- quanto a sua visão de mundo e ação está im-


pregnada por estes. Na maior parte das vezes,
pedagógicos nos é a situação existencial integral dos indivíduos
que é posta em questão, oportunizando um
movimentos processo de aprendizagem que ultrapassa os
socias populares limites da racionalidade moderna. E, se é ver-
dade que as “premissas fundamentais de todo
A capacidade de inovar sempre, de se adaptar, sistema racional são não-racionais, são noções,
de agir reflexiva e teleologicamente são ine- relações, distinções, elementos, verdades, (...)
rentes a todo ser humano e a todos os gru- que aceitamos a priori porque nos agradam”

capítulo 2 21
que canaliza e delimita as suas potencialidades
e criatividades aos limites do egoísmo pessoal
e das estruturas sociais correspondentes.

Por ser um espaço de redefinição do imaginá-


rio, do sentido da vida e das utopias individu-
ais, os movimentos sociais populares contri-
buem para o questionamento e a superação
desses limites e para a liberação de novas for-
mas de sensibilidade e de relação. Essa mu-
dança, porém, está condicionada pelas opor-
tunidades de experienciar possibilidades reais
(Maturana, 2002, p. 52), então esse nível de de transformação, viabilizadas pela vivência no
ação é fundamental para a consolidação e a movimento. Sentir que há a possibilidade de
vigorosidade estratégica dos movimentos so- mudança no entorno é ponto de partida para
ciais populares. engajamentos maiores. Pessoas protagonistas
dos movimentos sociais populares geralmente
O núcleo temático desse nível é a resistência e identificam o seu engajamento nesse tipo de
a superação das determinações da totalidade vivências. É óbvio que elas não conduzem au-
social capitalista nas microrrelações cotidia- tomaticamente ao engajamento, mas sem as
nas. Pois é nessas, por meios cada vez mais vivências ele não existe. Assim, as “necessida-
sofisticados, como a comunicação de massa des sociais podem tonar-se objeto de desejos
e uma outra infinidade de meios semióticos, coletivos, coesionados com base nas experi-
sociológicos e psicológicos que interferem so- ências de esperança no cotidiano das pesso-
bremaneira nas estruturas de sentimentos e as. Sem este suporte experiencial, geralmente
no direcionamento e no manejo dos sonhos e sobram apenas propostas centralistas, ampa-
das utopias pessoais, que o sistema se está le- radas em algum mito do Estado ideal, ou ilu-
gitimando, ao influenciar níveis cada vez mais sões ideológicas sem nexo com o cotidiano das
implícitos e inconscientes. Esses métodos atin- pessoas.” (Assmann e Mo Sung, 2000, p. 28).
gem cada vez mais a integralidade das pessoas,
tornando-as mais dependentes e modeladas Possibilitar experiências de pertencimento, de
aos padrões de consumo e de produção apro- pluralidade e de transformações vivenciáveis,
priados à reprodução da estrutura existente. uma espécie de conversão de valores, é de im-
Resulta daí o reforço da ideia de indivíduo que, portância vital para a consolidação e a renova-
por meios competitivos, busca a felicidade na ção do movimento. Mas elas adquirem sentido
aquisição de produtos carregados simbolica- emancipador, tornam-se força social, na medi-
mente pela propaganda. Mesmo que não se da em que são constantes e criticamente re-
tenha acesso a esses padrões de consumo, o fletidas. O tornar-se consciente da experiência
espetáculo de imagens e de identificação com vivida é que supera o voluntarismo disperso e
personalidades mistificadas cria a ilusão de co- vulnerável. Por isso, momentos de reflexão, de
-participação nesses padrões idealizados e pro- formação, de avaliação e de planejamento da
jetados. Assim, mantém-se ativado o desejo própria ação tomam sentido estratégico tanto
mimético determinador da conduta individual para os indivíduos como para os movimentos.
e coletiva. Torna-se difícil, para os indivíduos Há, no entanto, o outro extremo desse aspec-
imersos nessa realidade fetichizada, perceber to, no qual ocorre uma espécie de passagem
alternativas que ultrapassem os limites do es- forçada para perspectivas mais amplas de
forço individual. Problemas de ordem coletiva transformação, para níveis estratégicos que
aparecem como resultado de atos imorais dos exigem dedicação e acúmulos teórico-quanti-
indivíduos, ou determinações naturais inevi- tativos muito grandes, o que muitas pessoas
táveis. Mudanças sociais fundadas na ação não estão dispostas, nem podem realizar. Isso,
coletiva são, assim, inviabilizadas. Resulta daí muitas vezes, tem levado a uma “politização”
uma subjetividade que se sente extremamente forçada das questões. Há, por trás disso, uma
impotente ante as determinações estruturais e crença equivocada de que todas as pessoas de-

22 capítulo 2
veriam chegar a ter esses acúmulos e de que
esses são adquiríveis sem um processo de vi-
venciamento ativo e concreto, quando muito
antes de ser uma questão teórica é uma ques-
tão de postura, de ponto de vista, de método,
que está em jogo. Por caírem nessa armadilha
epistemológica, muitos movimentos e lide-
ranças acabaram por se afastar da realidade
vivencial da população e realizando uma vio-
lência contra o potencial de energias humanas
disponíveis, enfraquecendo ou perdendo as
perspectivas emancipadoras. ou a verem suas demandas diluídas na buro-
cratização conivente com o que existe.
Ao observarmos, como sujeitos externos, a
dinâmica interna dos movimentos sociais po- 2.1 Explicitação das estruturas de
pulares, ou mesmo suas manifestações mas- poder e fundamentação de
sivas, com regras razoavelmente estabelecidas novas práticas
e objetivos razoavelmente claros, podemos ser
levados a afirmar que existe ali um sujeito cole- Não só para os indivíduos, mas também para
tivo, quase que um “objeto empírico unitário” toda a sociedade, os movimentos sociais po-
(Melucci, 2001, p. 25), que se sustenta por si pulares podem,
só. No entanto, um movimento só se sustenta no seu processo
por ter uma base social fora dos seus limites, de gestação, de
em que é gestado e legitimado. Seu surgi- constituição e
mento só é possível por existirem, antes disso, de intervenção,
redes de relações constituídas nos subterrâne- ter um caráter
os da oficialidade e do imaginário social que, pedagógico,
quando coesionados, podem tornar-se visíveis porquanto suas
e conscientes. É um referencial ético-moral mobilizações e
comum, que possibilita uma identidade nos e reivin dica çõ es
Figura 04
com os movimentos sociais populares, sem a tornam visíveis
qual o movimento não seria possível, pois não debilidades do
possuiria bases estruturadoras e porque não sistema e forçam o poder a tomar posições e,
seria reconhecido socialmente. A existência de nesse sentido, são também uma forma de ex-
pessoas que compartilhem sentidos, com vi- plicitação das estruturas de poder. De forma
vências de esperança comuns com um “desejo que a “ação coletiva nas sociedades complexas
de convivência num projeto comum de vida” impede que o sistema se feche, produz ino-
(Melucci, 2001, p. 77), é fundamental para a vação e intercâmbio das elites, faz entrar na
estruturação e a legitimação social do movi- área do decidível aquilo que está excluído, de-
mento. Mesmo que as dimensões instrumen- nuncia as zonas de sombra e de silêncio que
tais e estratégicas não estejam claras para to- a complexidade cria” (Melucci, 2001, p. 134).
dos, define-se aí uma postura marcadamente Além disso, como organizações coletivas não
diferente daquela instigada pela normalidade determinadas pela legalidade vigente e com
social. intencionalidade e ações críticas em relação ao
existente, apontam e introduzem novos valo-
Por isso, a formação de novas subjetividades res, culturas e horizontes na dinâmica social,
individuais, seja no movimento ou em outros pelo seu capital social e político.
espaços sociais, tem importância estratégica
para os movimentos sociais populares. Eles Os momentos da luta cotidiana[1]que dizem
próprios são o locus privilegiado para tal. Mo- respeito a uma melhor distribuição de bens no
vimentos que não trabalham para fortalecer interior do sistema organizativo, a ampliação
e diversificar essa dimensão estão fadados ao das possibilidades de decisão e da participa-
enfraquecimento e posterior desaparecimento ção nesses, bem como as ações voltadas para

capítulo 2 23
Também as reivindicações de muitos movi-
mentos sociais populares, como a obtenção
de moradias, de terra, de trabalho, de igual-
dade de direitos políticos etc., vistos isolada-
mente, não contradizem o sistema atual em
sua essência, mas da capacidade de mobiliza-
ção desses movimentos depende a obtenção
ou não dos direitos correspondentes. As estra-
tégias de conquista desses direitos materiais
podem ser diversas, como greves, ocupação
de espaços institucionais, mobilizações sociais
melhorar a posição nos processos decisórios, e culturais, ou mesmo atos de desobediência
constituem o núcleo temático desse nível de civil. Todas as formas, no entanto, baseiam-se
ação. Na ação social cotidiana, é que são to- fundamentalmente em argumentos/elementos
madas, vivenciadas e possivelmente superadas externos ao sistema, como o bem-estar mate-
as contradições. Material básico sem o qual os rial e a qualidade das relações etc., elementos
movimentos sociais populares correm o risco estes não submetidos à racionalidade do siste-
de se perderem em profetismos abstratos ou ma, o que torna os movimentos sociais popu-
basismos sem consequências. É o espaço de lares uma espécie de laboratório de construção
efetivação organizativa, que gera um tensiona- de outros princípios de vida que podem servir
mento político-social, viabilizando conquistas de base para transformações mais profundas.
e reformas significativas para a vida de muitas Sem o consciente trabalhar dessa dimensão,
populações, ainda que não alterem diretamen- presente como potencial em todas as formas
te as estruturas de reprodução da sociedade. A de ação dos movimentos sociais populares, as
existência dos direitos conquistados, contudo, conquistas ficam, quando muito, no nível da
depende fundamentalmente da capacidade de legalidade e dos acordos. Mesmo um governo
constante mobilização, organização e proposi- de transformação, por mais sincero que seja
ção da organização popular. O sistema, apesar em suas intenções, sem essa base de pressão,
de poder conviver com eles, haverá de suprimi- de renovação e de crítica não pode efetivar
los, caso não haja mais resistência da base que mudanças significativas, nem mesmo as pos-
os defende, ou seja, caso julgue desnecessário síveis dentro do sistema vigente, muito menos
lançar mão desses artifícios para garantir seu contribuir para a superação desse sistema.
reconhecimento.
Ao obrigar as estruturas com finalidades con-
A relação entre capital e trabalho, expressa nas servadoras a se reestruturarem, os movimen-
negociações entre sindicatos de trabalhadores tos sociais populares insidem de forma indireta
e empresários como espaços legalmente cons- sobre a sociedade, que não aquela que diz res-
tituídos e juridificados, também pertence a peito às suas bandeiras. Instigada pelas ações
esse nível de ação, pois se sabe que melhorias dos movimentos, a sociedade é estimulada a
salariais, por si só, não significam nenhuma se posicionar a respeito de temas conflituosos,
ruptura com o sistema. Muitas vezes, inclusive, gerando, assim, um aumento no nível de po-
é preciso que o sistema vá bem, para que haja litização e criticidade na população, trazendo
salários razoáveis. Os trabalhadores sabem para a cena pública questões e enfoques antes
que, no caso de crises, eles são os primeiros ausentes. Instaura-se, dessa forma, uma pro-
a ser sacrificados, tanto com diminuição de cessualidade pedagógica que não se restringe
salários como com perda dos postos de tra- às áreas de atuação direta dos movimentos so-
balho. Isso, no entanto, não diminui a impor- ciais populares.
tância dessas organizações como espaços de
explicitação das relações de poder, geração de Ao evidenciar papéis que vão além de seus
novos valores e no garantir de direitos perante objetivos imediatos, amplia-se a visualização
o capital. do processo histórico de transformação, di-
ficultando a absolutização, sectarização e os
sentimentos de fracasso em torno de questões

24 capítulo 2
pontuais. Pode, por exemplo, um movimento
social popular não atingir seus objetivos dire-
tos e contribuir tanto ou mais para um pro-
cesso de transformação que um movimento
que conquiste imediatamente seus objetivos.
Por não conseguirem fazer desses momentos
oportunidades de fortalecimento da identida-
de crítica e da projeção da ação para além dos
objetivos específicos, muitos movimentos não
superam seu caráter meramente reivindicativo.

Nesse nível de ação, ocorrem acúmulos coleti- a aceitar as regras institucionais legais, ineren-
vos que podem até mesmo servir para outras tes ao estado liberal de direito e a zelar pela
organizações sociais. Também capitais de ou- sua manutenção. Isso tem causado crises, tan-
tras organizações podem ser incorporadas e to nos indivíduos de origem popular como nos
potencializadas. Vistos dessa forma, os movi- movimentos que, pelos seus quadros, ocupam
mentos sociais populares são os canais pelos esses espaços. Na origem dessas crises, está es-
quais dimensões, grupos e questões reprimi- sencialmente a disparidade entre os impulsos
das pelo sistema vêm à tona, tornam-se te- originais e os limites efetivos impostos pela ra-
matizáveis, subsidiando processos sociais de cionalidade inerente ao estado moderno.
transformação.
A não-efetivação de bandeiras históricas dos
Alicerçadas nos acúmulos coletivos adquiridos movimentos por parte dos governos populares
nas lutas específicas, constroem-se as possibi- é, muitas vezes, atribuída à má vontade polí-
lidades de identificação com outros movimen- tica dos indivíduos que ocupam os cargos nos
tos, seja por causa das bandeiras, seja por cau- movermos, o que em alguns casos pode ser
sa dos pressupostos e posturas comuns. A luta verdade. A questão essencial, no entanto, diz
contra a opressão, a exploração e as desigual- respeito aos limites e às possibilidades da pró-
dades geralmente servem de mote articulador. pria institucionalidade ocupada. Entender essa
Assim, visualizar-se um horizonte de transfor- dinâmica é questão fundamental numa estra-
mação que vai além das bandeiras imediatas, tégia de transformação social ampla, a fim de
que no entanto, sem o constante relacionar-se clarear os limites, potenciais e possíveis arma-
com elas, não seria possível. dilhas da ocupação de espaços de governo.
Ao entendê-la, seremos certamente remetidos
2.2. Refundação do Político a pôr em questão e repensar a própria forma
como se organiza o Político na atualidade.

Na atual estrutura política, há uma íntima rela-


ção complementar com o modo de produção
capitalista. Ambos integram a mesma totalida-
de e se condicionam mutuamente. Os direitos
são direitos individuais e, por mais diferencia-
Figura 05
dos que possam ser, jamais podem ultrapassar
esse limite, característico do estado de direi-
to. O bem-estar e a reprodução material são
Com muita frequência, setores e propostas atribuídos à responsabilidade dos indivíduos,
oriundas dos movimentos sociais populares restringindo-se o estado, a rigor, a garantir a
têm conseguido ocupar espaços governamen- liberdade individual e o direito à propriedade
tais ou estatais consideráveis. Essas situações de seus membros. Daí que as possibilidades de
têm criado oportunidades de intervenção di- ação, no interior da estrutura estatal, encon-
reta em políticas e na efetivação de objetivos tram-se limitadas por regras e regidas por uma
dos movimentos sociais populares. Por outro lógica, de forma que a manutenção e a repro-
lado, esses setores veem-se também obrigados dução da totalidade social sejam garantidas.

capítulo 2 25
velamento de sua dinâmica e para a coloca-
ção de novos desafios, as principais bandeiras,
ou seja, aquelas que propõem uma nova for-
ma de sociabilidade, de relações de poder, de
produção etc., não são tematizáveis e muito
menos efetiváveis dentro dos limites dos atuais
mecanismos da estrutura estatal. Conscientes
disso, os movimentos sociais populares jamais
deixarão suas utopias e ações se aprisionarem
pelos trilhos da institucionalidade. Essa consta-
tação, no entanto, só é possível na medida em
Para poder garantir isso, abandonou-se uma que elementos não regidos pela racionalidade
preocupação presente em todas formas de or- instrumental do estado e da economia entram
ganização social anteriores, qual seja, decidir e em cena. A origem desses elementos remete a
incidir sobre a melhor maneira de produzir, de valores oriundos dos movimentos sociais po-
trocar, de consumir e de garantir a existência e pulares.
a sobrevivência dos seus membros. A configu-
ração do espaço político como o conhecemos Cientes disso, as forças oriundas dos movimen-
hoje, portanto, é a forma como foi estrutura- tos sociais populares terão certamente uma
do o Político na nossa época, baseado em um postura diferenciada na sua ação e na relação
modo de produção alicerçado sobre a explora- nos e com os espaços institucionais. Muitas ve-
ção do trabalho (Lukács, 1978, p. 119ss). zes, por não haver essa compreensão, há um
empenho muito mais forte no revigoramento
Dessa forma, a ação política está limitada pela de estruturas institucionais, notadamente as
formalidade das leis, pela formalidade do direi- estatais, que, a rigor, têm funções conservado-
to. A legalidade dos procedimentos sobrepõe- ras, do que na construção e no fortalecimento
se à legitimidade. Nenhuma aspiração popular de instrumentos de poder popular. A autono-
pode mais ser efetivada pelo estado, sem que mia da organização popular, em vez de ser
este cumpra os requisitos formais que o direi- estimulada é, nesses casos, atrelada a estrutu-
to impõe. Esses limites impedem fundamen- ras estatais. Até mesmo pessoas e movimen-
talmente que haja qualquer interferência na tos com sinceras intenções de transformações
lógica da reprodução material da sociedade, caem nessa armadilha.
fundada na exploração do trabalho e na pro-
priedade privada. Mesmo o sistema represen- A passagem de uma postura essencialmente
tativo moderno tem essa função conservadora, reivindicatória para uma mais propositiva nem
na medida em que exclui o povo das decisões sempre veio acompanhada de uma superação
políticas importantes, que passam a ser aceitas da visão paternalista de estado. Este continuou
como democráticas, ainda que não passem de sendo encarado como o local por excelência,
negociações de interesses parciais no parla- o “carro chefe” do fazer político e, portanto,
mento. O próprio conceito de cidadania pode da transformação, não se elaborou uma crítica
ser, assim, um instrumento de dominação e de correspondente à sua lógica e estrutura. Aos
neutralização, na medida em que seu signifi- poucos, o processo de confronto e de apren-
cado se reduz aos limites da institucionalidade dizagem com as estruturas estatais vem rom-
estatal burguesa, inviabilizando a tematização pendo com a ideia de que todos os problemas
de temáticas com potenciais emancipatórios econômico-sociais podem ser resolvidos sem
que ultrapassam a racionalidade do Direito que se altere a estruturação básica do espaço
moderno. do Político atual. Clarear criticamente o poten-
cial e os limites da ocupação de espaços ins-
Conquanto existam muitas fendas no interior titucionais é um processo de aprendizagem,
da organização política atual, em que os movi- que está em seu início, para os movimentos
mentos sociais podem interferir com conquis- sociais populares. Possibilitado pelas ricas ex-
tas substantivas, e ainda que a participação periências, mesmo que contraditórias, que
nesses espaços seja fundamental para o des- estão ocorrendo tanto em níveis locais como

26 capítulo 2
nacionais, a questão está se tornando cada
vez mais presente. O que já se está delineando
com claridade é que não bastam as leis e os ca-
minhos legais, mesmo num governo popular,
mas novas formas de constituir o espaço do
Político precisam ser inventadas. A constante
organização e a mobilização popular como re-
ferência não determinada pela racionalidade
oficial é vital para que isso aconteça.

2.3. Perspectivas
Dar-se conta da radicalidade histórica e da sua
Evidenciando importância pedagógica é fundamental para
diferentes níveis que as ações cotidianas dos movimentos se-
pedagógicos jam emprenhadas de sentidos transformado-
dos movimentos res. Foi essa postura diante da realidade que
sociais popu- tornou os movimentos sociais populares no
lares, procura- Brasil tão significativos e que permitiu o de-
mos desvendar senvolvimento de uma grande diversidade de
as suas funções temas, metodologias, ações etc., com possili-
estratégicas. bidades pedagógicas fantásticas. A afirmação
Figura 06
Algo mais que e o aprofundamento dessa postura podem
as bandeiras contribuir decisivamente para sugerir novas
imediatas e cotidianas pode surgir e se desen- pistas de ações.
volver no modo como os movimentos sociais
populares se constituem internamente e na Não havendo caminho preestabelecido, a
forma como interagem com o conjunto da construção dos caminhos e o aprender cons-
sociedade. Essas dimensões, trabalhadas de tante com o próprio processo de construção
forma consciente, podem ativar enormes po- destes é que passam a ser o balizador da ação.
tencialidades objetivamente já existentes. As transformações repentinas dão lugar a pro-
cessos de transformação. Também o estado
Isso, todavia, requer uma postura que implica não pode mais ser visualizado como o lugar
construir horizontes e princípios que progres- último de onde, quando se estaria no poder,
sivamente vão instaurando novos ordenamen- seria possível superar todas as mazelas e alcan-
tos sociais com base nas lutas e nas práticas çar todas as utopias, embora o Político jamais
cotidianas e no confronto com as estrutu- deixe de ser o horizonte central das ações.
ras existentes, num processo de permanente Aspirações essenciais dos movimentos sociais
aprendizagem. Implica, também, ir para além populares simplesmente não podem ser efe-
da simples junção de indivíduos para conquis- tivadas dentro dos limites da estruturação do
tar, pela soma das forças individuais, objetivos Político na atualidade. Ou seja, a tomada do
e/ou direitos que individualmente não se con- poder passa a ser encarada apenas como um
seguiria. Embora este possa ser seu ponto de momento dentro de uma dinâmica mais am-
partida, e o confronto com estruturas e lutas pla, por mais decisivo que seja esse momento.
cotidianas seja o “combustível” cotidiano dos O que não quer dizer que as questões políticas
movimentos sociais populares, na processua- não continuem sendo centrais, mas elas não
lidade do seu modo de ser é que se constitui se deixam mais limitar pelas estruturas e pelas
seu sentido mais profundo, as condições de regras do estado moderno. Nesse sentido, a
possibilidade de seu caráter revolucionário. A construção de outras formas de decisão e de
fundamentação de uma nova ordem social só estruturação política passam a tomar impor-
pode emergir, ser aprendida, da própria orga- tância crescente para os movimentos.
nização popular embasada em impulsos não
regidos pela racionalidade oficial, por isso ela Tomar o indivíduo concreto e integral como
é um permanente processo de aprendizagem. referência parece garantir que os movimentos

capítulo 2 27
e explicitação das contradições e limites das
estruturas de poder existentes e a construção
de novas formas de organização do espaço do
Político. Orientados por esse tripé pedagógi-
co, viabiliza-se uma processualidade capaz de
contemplar os impulsos inerentes aos movi-
mentos, que não se coadunam com a racio-
nalidade hegemônica, ou seja: seus potenciais
emancipatórios. Obviamente, com a existência
sociais populares não se percam em pautas da diversidade de movimentos e dentro de
que contemplem apenas um ou outro nível estratégias conjuntas, estes podem privilegiar
de transformação. Descortina-se, assim, toda mais uma ou outra esfera, num processo de
uma trama de relações sociais, afetivas, simbó- complementaridade e solidariedade mútua,
licas, econômicas etc., que pesam sobre os in- entre si e com outros atores.
divíduos e que, simultaneamente, fundamen-
tam e legitimam as macroestruturas existentes.
Permitem, assim, visualizar, com relativa sim- REFERÊNCIAS
plicidade, a íntima relação dos modos de vida
cotidianos com as macroestruturas sociais e ABRAMO, Helena. Considerações sobre a te-
econômicas. matização da juventude no Brasil .In: Revista
Brasileira de Educação. ANPED. Nº5, mai/jun/
De forma consequente, as atividades cotidia- jul/ago; nº6, set/out/nov/dez, 1997. P.25-36.
nas dos movimentos sociais populares revelam
as funções estratégicas de seu caráter peda- ASSMANN, Hugo e MO SUNG, Jung. Compe-
gógico. É a partir de onde se estabelecem os tência e sensibilidade solidária: educar para a
alicerces para transformações estruturais mais esperança. Petrópolis: Vozes, 2000.
profundas, sem que percam importância o
engajamento crítico, a ampliação e a transfor- BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio
mação de espaços e instância existentes. São, de Janeiro, Marco Zero, 1989. A ilusão biográ-
além de formas de garantir e ampliar direitos fica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMA-
no interior dos sistemas, oportunidades de DO, Janaína. Uso e abusos da História Oral. Rio
aprendizado e de formulação. Nesse processo de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2001.
de imersão na realidade, evidenciando as suas
contradições e, simultaneamente, formulando BRANDÃO, Zaia. Política Estudantil e movimen-
meios de superação desses limites, é que se to educacional. In: RAPOSO, Eduardo (coord.)
constitui, ou não, o caráter revolucionário do 1964- 30 anos depois. Rio de Janeiro: Agir,
movimento. Por isso, ele é um processo que 1994. P. 267-272.
acontece intimamente relacionado com uma
realidade, a partir da qual se constituem suas CAMP. Movimentos sociais e estado: limites e
referências concretas. É uma tarefa fundamen- possibilidades. Caderno de Debates, Porto Ale-
talmente de construção coletiva, que se fun- gre, v. 2. 2001.
damenta nas carências imediatas das pessoas,
passa pela explicitação dos mecanismos e das CARBONARI, Paulo César (Org.). Estado e so-
estruturas de poder e, por fim, constitui novas ciedade civil no Rio Grande do Sul: debates dos
formas e espaços de decisão e de estruturação sujeitos sociais populares (Resultado do debate
política. dos Parceiros da Misereor, no RS, coordenado
pelo CAMP, Cáritas-RS e CEAP). Passo Fundo,
O desafio colocado para os movimentos sociais 2002.
populares é o de se organizarem de tal forma
que, a um só tempo, estejam presentes os três FLICKINGER, Hans-Georg. Em nome da liber-
níveis de ação e de aprendizado destacados, a dade: elementos da crítica ao liberalismo con-
dizer, a construção cotidiana de novas subjeti- temporâneo. Coleção Filosofia 153. Porto Ale-
vidades e modos de vida; ocupação, confronto gre: Edipucrs, 2003.

28 capítulo 2
FORACCHI, Marialice M. O estudante e a trans-
formação da sociedade brasileira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1965.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido . 34. ed.


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gerações. In: FORACCHI, M. M. (Org.). Man- FILME
nheim: São Paulo: Ática, 1982. Col. Grandes
Cientistas Sociais. VERÔNICA
Verônica é professora da rede municipal de ensi-
no há vinte anos e agora, na iminência de se apo-
MATURANA, Humberto. Emoções e lingua- sentar e passando por sérios problemas pessoais,
gem na educação e na política. Belo Horizon- está exausta e sem a paciência de sempre. Um
te: Ufmg, 2002. dia, na escola em que trabalha, ela percebe que
ninguém veio buscar Leandro, um aluno de oito
anos. Já é tarde da noite quando a professora de-
MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: cide levá-lo em casa. Ao chegar ao alto do morro,
movimentos sociais nas sociedades complexas. encontram a polícia e muito tumulto. Traficantes
Petrópolis: Vozes, 2001. mataram os pais de Leandro e querem matá-lo
também. Verônica foge com o menino. Ela pro-
cura ajuda e descobre que a policia também está
NOGUEIRA, Claudio M. Martins & NOGUEIRA,
ligada ao assassinato dos pais do menino. Sem
Maria Alice. A Sociologia da Educação de Pier- poder confiar em ninguém, ela decide esconder
re Bourdieu: limites e contribuições. In: Edu- o garoto. Assim, Verônica é obrigada a enfrentar
cação & Sociedade. Ano 23, nº 78, Abril de policiais e traficantes para sobreviver. E enquanto
2002. P. 15-36 procura uma maneira de escapar com o menino,
redescobre sentimentos que estavam adormeci-
dos na sua vida solitária e difícil.
PASSERON, J.C. O mapa e o observatório. In:
Teoria & Educação , n.3, 1991. p.29-42.

PALUDO, Conceição. Educação popular em


Atividades:
busca de alternativas: uma leitura desde o
campo democrático e popular. Porto Alegre: 1. Elabore um esquema textual (estilo numera-
Tomo Editorial, 2001. ção progressiva) sobre o capítulo: “Processos
pedagógicos e movimentos sociais estudan-
tis”.

capítulo 2 29
MOVIMENTOS
SOCIAIS E
EDUCAÇÃO

Profa. Maria do Socorro Tavares Cavalcante OBJETIVOS ESPECÍFICOS


Carga Horária | 15 horas • Relacionar movimentos sociais e os
avanços na educação na educação.

• Conhecer as principais formas de orga-


nizações sociais.

• Traçar uma linha de tempo com base na


história dos movimentos sociais

INTRODUÇÃO

A questão da Educação fez parte da realidade brasileira dos anos 90. Tanto nas críticas do setor
escolar, quanto nos discursos e nas propostas governamentais ou de representantes da sociedade
civil de diferentes correntes político-ideológicas.

As reformas e propostas para a educação brasileira, durante o século XX, foram, em sua maioria,
implementadas como paliativos de crises econômicas, de redefinição dos modelos de acumulação
vigente e de constituição de novos atores sociais como sujeitos da cena política nacional.

Por exemplo, na década de 20, a proposta de reforma configurava exigência de uma sociedade
prestes a explodir nos limites do modelo patrimonialista agroexportador.

Enfim, tem sido comum a elaboração de políticas estatais ditas modernizadoras, teorizando a
educação como setor prioritário, mas privilegiando, na prática, os projetos e os processos que dão
visibilidade política sem mexer com os setores estruturais críticos.

capítulo 3 31
não-cidadão e não-proprietário. Enfim, as di-
ferenças sociais eram vistas como diferenças
de capacidade.

À medida que o capitalismo se consolida, as


lutas sociais vão deixando de ser apenas pela
subsistência e surgem concepções alternativas
dos direitos. A educação volta a ser pensada
pelas classes dirigentes como mecanismo de
controle social e os teóricos da economia po-
lítica passam a recomendá-la para evitar de-
1. MOVIMENTOS sordens.
SOCIAIS, CIDADANIA Adam Smith justifica, assim, a necessidade da
E EDUCAÇÃO educação em função da divisão do trabalho.
Seria competência de o Estado facilitar, enco-
1.1. Antecedentes históricos rajar e até mesmo impor a toda população a
importância do aprendizado mínimo às neces-
O elemento comum que entrelaça os movi- sidades de capital.
mentos sociais com a educação é a cidadania.
Entretanto, este termo possui diversas aborda- O pressuposto básico era de que o povo ins-
gens tanto do ponto de vista teórico-metodo- truído seria ordeiro, obediente aos seus supe-
lógico quanto do processo de mudança e de riores e não presa a crendices e a superstições
transformação da sociedade. religiosas e místicas.

No liberalismo, a questão da cidadania está O essencial não era instruir, racionalizar o in-
ligada à noção de direitos. Trata-se dos direi- divíduo, mas racionalizar a vida econômica, a
tos naturais e imprescritíveis do homem (liber- produção, ou seja, a única educação que inte-
dade, igualdade perante a lei e direito à pro- ressava era a formação e a produção de mer-
priedade), e dos direitos da nação (soberania cadoria para o trabalho.
nacional e separação dos poderes: executivo,
legislativo e judiciário). De acordo com essa A cidadania do séc.XIX, ao contrário dos sécu-
ideologia, o homem era suficientemente escla- los anteriores, dirige-se a todos, incluindo as
recido para escolher seus representantes, com massas, entretanto a sua finalidade precípua
conhecimento de causa, independentemente era discipliná-las e domesticá-las, ou seja, bus-
das pressões e era, ainda, acima de tudo, um ca-se, mediante a educação, que os membros
proprietário (de terras e imóveis). Além disso, do tecido social participem do convívio coleti-
estabelecia que somente os proprietários (bur- vo de forma harmoniosa.
gueses) tinham direito à plena liberdade e à
plena cidadania. Os direitos sociais não são conquistados, mas
sim outorgados pelo Estado.
De acordo com Locke, teórico liberal, há uma
diferenciação de direitos entre a classe traba- Nesse processo, em que a educação tem des-
lhadora e a burguesia, pois, a primeira, acostu- taque, a prática pedagógica enfatiza as estra-
mada com o arado e a enxada, era incapaz de tégias de persuasão, de esclarecimento e de
ter ideias sublimes. Portanto, a educação para moralização de cada futuro cidadão.
a cidadania era irrelevante para a classe traba-
lhadora, uma vez que ela não tinha qualidades Ao lado da cidadania regulamentada pelo Es-
para ser cidadã. tado, desenvolveu-se, ainda, o neoliberalismo
comunista, em que a abordagem do cidadão é
A igualdade natural, inata entre os homens, vista como retorno à ideia de comunidade em
seria desfeita no plano da sociedade real, pela contraposição à sociedade urbano-industrial
desigualdade entre cidadão-proprietário e o burocratizada.

32 capítulo 3
A noção de educação, nessa ideologia, é bas-
tante conservadora: educa-se para a coopera-
ção geral. A escola tem um papel fundamental
nesse processo, em que as condições concretas
vivenciadas não são as fontes multiplicadoras
do aprendizado, mas sim uma visão român-
tica, idílica, estigmatizada da vida no campo,
das relações diretas, primárias, da pequena co-
munidade. O livro didático é o representante
máximo desse processo.

Entretanto, existe uma terceira definição do A consciência se constrói com base na agrega-
conceito de cidadania, elaborada por grupos ção de informações dispersas sobre o funcio-
organizados da sociedade civil, por meio de namento da administração pública e da legis-
movimentos. Trata-se da cidadania coletiva. lação em vigor.
A educação ocupa lugar central na acepção
coletiva da cidadania. Isso porque ela se cons- A construção da cidadania coletiva se realiza
trói no processo de luta que é, em si próprio, quando, identificados os interesses opostos,
um movimento educativo. se parte para a elaboração de estratégias de
formulação de demandas e de táticas de en-
Nessa teoria, a cidadania não se constrói por frentamento dos oponentes.
decretos ou por intervenções externas, progra-
mas ou agentes pré-configurados. Ela se cons- Aquilo que foi elaborado, objetivando o con-
trói como um processo interno, no interior da trole social (Direito), passa a ser utilizado como
prática social em curso, como fruto do acú- ferramenta de libertação, à medida que o con-
mulo das experiências engendradas. A cidada- trole não está explícito. No plano do discurso,
nia coletiva é constituidora de novos sujeitos a lei se apresenta igual para todos.
históricos: as massas urbanas espoliadas e as
camadas médias expropriadas. B) A dimensão da cultura política

1.2. O caráter educativo dos O exercício da prática cotidiana nos movi-


movimentos sociais mentos sociais leva ao acúmulo de experiên-
cia, em que tem
O caráter educativo dos movimentos sociais importância a vi-
origina-se de várias formas, de planos e de di- vência no passa-
mensões que se articulam. Não existe nenhum do e no presente
grau de prioridade entre as dimensões estabe- para a construção
lecidas. do futuro. Experi-
ências vivenciadas
Resumidamente, podem-se enumerar as se- no passado como
guintes dimensões: opressão, negação
de direitos etc., são
A) A dimensão da organização política; resgatadas no ima-
B) A dimensão da cultura política; ginário coletivo do
C) A dimensão espaço-temporal. grupo de modo a Figura 01
fornecer elementos
A) A dimensão da organização política para a leitura do
presente. A fusão do passado e do presente
A dimensão da organização política refere- transforma-se em força social coletiva organi-
se à consciência adquirida progressivamente zada.
mediante o conhecimento sobre quais são os
direitos e os deveres dos indivíduos na socie- Nesse plano, destacam-se duas questões: a
dade. educativa e a pedagógica. A educativa é um

capítulo 3 33
2. AS PRINCIPAIS
FORMAS DE
ORGANIZAÇÃO
POPULAR NO BRASIL
No Brasil, encontramos três formas básicas de
agregação das demandas populares relativas
às suas necessidades no setor urbano. São elas:

A) as sociedades amigos de bairros ou asso-


ciações de moradores;
B) as associações de favelas;
C) as lutas e os movimentos específicos pela
processo cujos produtos são realimentadores moradia ou por equipamentos urbanos.
de novos processos. A pedagógica são os ins-
trumentos utilizados no processo. As três formas têm reivindicações em torno
de objetos similares, mas elas diferem subs-
C) A dimensão espaço-temporal tancialmente quanto a suas origens, processo
de desenvolvimento histórico, articulações e
A consciência gerada no processo de partici- relações sociais, internas e externas; práticas
pação num movimento social leva ao conhe- de encaminhamento das demandas; projetos
cimento e ao reconhecimento das condições político-ideológicos; e, finalmente, quanto aos
da população no presente e no passado, isso produtos configurados por suas ações no es-
gera nas pessoas a ideia de um ambiente cons- paço urbano construído.
truído, do espaço gerado e apropriado pelas
classes sociais em sua luta cotidiana. A) As associações de moradores:
as sociedades amigos de bairros
Essa dimensão possibilita a articulação entre
o chamado saber popular e o saber científico, É a forma mais antiga de organização popular,
técnico, codificado, uma vez que as categorias estando presentes na cena urbana brasileira
tempo e espaço são importantes no imaginá- desde as décadas iniciais do séc. XX. Porém se
rio popular, ou seja, são representações fortes desenvolveram intensamente a partir de 1945,
na mentalidade coletiva popular. quando, com o regime populista, participavam
do jogo de barganha existente: o voto pela
O espaço e o tempo têm dimensões amplas melhoria urbana.
no meio rural, à medida que fazem parte do
universo de referência do cotidiano vivido. No O processo de desenvolvimento histórico des-
urbano, essas categorias são desapropriadas sas organizações foi acompanhado de uma
do controle das pessoas. O tempo não é mais progressiva institucionalização do movimento.
o meu, mas o do cronômetro da fábrica ou da As entidades locais formaram conselhos e fe-
instituição onde trabalho. Os espaços são res- derações regionais.
tritos. O privado quase inexiste e o pouco que
há tem que ser defendido com unhas e den- O projeto político das associações de amigo é
tes contra as agressões e a violência da cidade conservador-institucionalizado. Não há preo-
grande. O espaço público se constitui mais em cupação em se mudar nada, no sentido quali-
zonas de controle e de disciplinamento que cm tativo, do processo da transformação social. A
manifestações de apropriação coletiva. luta básica é para a obtenção do bem deman-
dado pelo acesso ao consumo de bens e de
equipamentos.

34 capítulo 3
Ainda que venhamos a encontrar nas pautas
reivindicatórias dos congressos, reivindicação
relativa a questões gerais, sabe-se que essas
pautas são formuladas por elementos da cú-
pula e não traduzem o nível de consciência do
conjunto do movimento.

Enfim, nessas associações, de um modo geral,


não se desenvolve uma consciência crítica de
se reivindicar como um direito, ou atitude de
rebeldia. Tudo é feito nos limites do bom rela-
cionamento porque as regras do jogo cliente-
lista assim o preconiza. As atitudes são mais
de pedir que de exigir ou mesmo solicitar. O
aprendizado das lideranças novas é lento e
existe certo grau de subordinação ou de “res-
peito” pelos caciques mais velhos. Enfim, lentamente, o Estado vai transforman-
do as favelas em bairros urbanizados.
B) As associações de
favelas C) Associações e movimentos comunitários

As favelas são ocupa- Essas organizações foram impulsionadas ini-


ções e construções, cialmente pelas práticas da Igreja Católica em
geralmente clandesti- sua ala denominada Teologia da Libertação.
nas, em áreas públicas Figura 02 Esses movimentos apresentam algumas carac-
desocupadas ou aban- terísticas comuns:
donadas.
• base social ampla e relativamente homo-
As causas do crescimento da população fave- gênea (classes populares);
lada são de ordem estrutural: baixos salários,
desemprego, crise de oferta de imóveis para • não se organizam em entidades bem de-
a população de baixa renda e crise nos pre- marcadas, mas em coletivos unificados por
ços dos aluguéis, maior controle do Estado em regiões geográficas, usualmente sedes de
relação à legislação e ao controle da produ- paróquias ou zoneamentos eclesiais;
ção da moradia popular, estimulando os es-
peculadores e os vendedores de loteamentos • a participação de seus membros nas lutas
clandestinos e, consequentemente, reduzindo é simultânea, e ocorrem várias ao mesmo
a entrada de usuário no sistema de autocons- tempo;
trução; enfim, falta de opções para moradia
popular, gerando as invasões coletivas, etc. • embora sempre haja um tipo que aglutina
todos, internamente eles trabalham com
As Sociedades de Amigos de Bairros vivem em coordenações e comissões, não havendo
conflito com as favelas, uma vez que esta últi- diretorias;
ma desvaloriza o imóvel da primeira.
• a composição interna dos participantes se
Paralelamente à organização dos favelados, o diferencia pelos papéis: agentes pastorais,
Estado passou a atuar, por meio de vários de padres, freiras, lideres populares, várias as-
seus órgãos operacionais, em políticas destina- sessorias;
das a reurbanizar as favelas. Essas políticas se
resumiram, num primeiro momento, a progra- • existe um processo de divisão do trabalho
mas de colocação progressiva de água e luz. nas funções a serem desempenhadas, em
que têm grande importância os agentes
pastorais;

capítulo 3 35
social urbano, embora as duas temáticas
tenham um objeto comum de reflexão: as
populações tidas como carentes e margi-
nalizadas da sociedade.

• O conjunto dos pesquisadores que se dedi-
caram às suas análises se entrincheiraram
em campos específicos de suas áreas de
conhecimento e da prática social, ou seja,
a educação — no caso da educação popu-
lar — e a ciências sociais — no caso dos
• as lutas se desenvolvem simultaneamente movimentos sociais (certamente que se
em várias regiões, cada uma num estágio considera o entrecruzamento dessas áreas.
de agregação;
• A fase de auge da produção sobre a edu-
• as lutas envolvem os setores mais espolia- cação popular corresponde ao início das
dos e miseráveis da sociedade; toda a ar- primeiras publicações sobre os movimen-
gumentação das demandas se faz em tor- tos sociais — final dos anos 70. Quando
no da noção de direitos. a produção sobre os movimentos sociais
cresce, ocorre o inverso com a educação
A dinâmica interna dessas entidades ou mo- popular — ela declina.
vimentos é marcada pela participação direta,
pelo assembleísmo e pela atuação contínua. A • No exame dos princípios e dos métodos
maioria das entidades não tem sede própria, da educação popular, encontramos várias
nem estatutos e muito menos regimento inter- manifestações que se fazem presentes,
no. Mas existe um código de ética interno, em concretamente, nos movimentos sociais
que o importante é sempre falar pelo grupo, populares dos anos 80.
após consultá-lo.
Enfim, os movimentos sociais populares con-
A dependência dos movimentos comunitá- sistiram em formas renovadas de educação
rios ao apoio da Igreja é grande. Dependência popular. Eles não ocorreram mediante um
das estruturas físicas e dependência da pró- programa previamente estabelecido, mas pe-
pria condução da luta, que fica por conta dos los princípios que fundamentaram programas
agentes. Os membros da hierarquia eclesiás- de educação popular, formulados por agentes
tica têm participação não-contínua no movi- institucionais determinados, tais como grupos
mento, mas decisiva. Suas atuações pedagógi- de assessorias articulados pela Igreja católica,
cas, fundadas no método ver-julgar-agir, têm por partidos políticos, pelas universidades, pe-
efeitos básicos nas decisões tomadas. las instituições governamentais nacionais e in-
ternacionais, pelos sindicatos etc.

3. O CARÁTER Vale ressaltar ainda que as metodologias de


operacionalização desses programas foram
EDUCATIVO DOS formuladas pelos agentes assessores dos mo-
MOVIMENTOS vimentos. A aplicação e a difusão da metodo-
POPULARES logia desenvolveram-se com base no trabalho
de lideranças da parcela da população orga-
nizada.
Analisando a temática da educação popular
e dos movimentos sociais populares urbanos, Nas ciências sociais, a crítica à teoria da margi-
encontram-se alguns pontos de entrelaçamen- nalidade foi substituída por outro objeto privi-
to entre ambos os fenômenos, tais como: legiado de investigação — os movimentos so-
ciais — de variadas matizes: mulheres, negros,
• O desenvolvimento autônomo da literatu- populares de periferia, pacifistas, político-par-
ra sobre educação popular e movimento tidários, sindicais, religiosos etc.

36 capítulo 3
Dentre esses, destacam-se os estudos sobre os
movimentos sociais populares urbanos, que
são, a nosso ver, uma continuidade da produ-
ção sobre a educação popular, com uma dife-
rença básica: não se trata mais de analisar pro-
gramas, mas sim de manifestações concretas
produzidas por grupos organizados.

O saber popular politizado, condensado em


práticas políticas participativas, torna-se uma
ameaça às classes dominantes à medida que
ele reivindica espaços nos aparelhos estatais,
por meio de conselhos etc., com caráter deli-
berativo. Isso porque o saber popular estaria
invadindo o campo de construção da teia de
dominação das redes de relações sociais e da
4. DEMANDAS SOCIAIS
vida social. Nesses casos, observa-se a tentativa PELA EDUCAÇÃO NO
frequente de delimitar aquele poder ao aspec- BRASIL NOS ANOS 80
to consultivo, porque, dessa forma, legitimam-
se os processos de dominação, sem colocar Este capítulo tem por objetivo não só mapear
em risco sua estrutura e organização. Sendo o quadro da demandas da sociedade civil bra-
apenas consultivos, os conselhos continuarão sileira, na área da educação, na década de 80,
com seus problemas estruturais de base (insta- por meio da história sociopolítica e econômica
bilidade e isolamento) em contraposição à di- do período, como também refletir sobre ele.
nâmica da máquina estatal (lentidão, rigidez,
burocratização). Entende-se por demandas educacionais, nesse
tópico, o conjunto de necessidades da socie-
O ponto fundamental de alteração, que a prá- dade que demandam processos de ensino e
tica cotidiana dos movimentos populares ope- aprendizagem. Elas podem se expressar dire-
ra, é na natureza das relações sociais. Não se tamente, por intermédio de movimentos e de
trata de um processo apenas de aprendizagem organizações, ou indiretamente, por intermé-
individual, que resulta num processo de poli- dio de necessidades que se impõem como for-
tização dos seus participantes. Essa é uma de ma de solução para os problemas que afligem
suas faces mais visíveis. Trata-se do desenvolvi- a sociedade, podendo estar ou não expressas
mento da consciência individual. em demandas de grupos específicos.

Entretanto, o resultado mais importante é A década de 80 é conhecida como a década


dado no plano coletivo. As práticas reivindi- perdida, pois se perderam os índices de cres-
catórias servem não apenas como indicadores cimento, a produtividade agrícola e industrial,
das demandas e das necessidades de mudan- a competitividade tecnológica, etc. Mas não
ças, reorientando as políticas e os governan- foram só foram perdas econômicas que acon-
tes em busca de legitimidade. As práticas teceram. Perdeu-se também qualidade de vida
reivindicatórias dos movimentos passam por com o aumento dos índices de criminalidade,
processos de transformação, na estrutura das de poluição, de doenças infantis e epidemias,
máquinas burocráticas estatais e nos próprios com a estagnação do declínio da taxa de anal-
movimentos sociais. A pressão e a resistência fabetismo, com o aumento do número de
têm como efeitos demarcarem alterações nas desempregados, de sem-terra e sem-teto, de
relações entre os agentes envolvidos, Nesse assassinatos de crianças, de adolescentes, de
sentido, o caráter educativo é duplo: para o líderes rurais etc.
demandatário e para o agente governamental,
controlador/gestor do bem demandado. Contudo, ocorreram ganhos no plano sociopo-
lítico. A sociedade, na sua inteireza, aprendeu
a se organizar e a reivindicar. Diferentes grupos

capítulo 3 37
• Educação para deficientes
• Educação para o trânsito e de convivência
em locais públicos
• Educação contra o uso de drogas
• Educação sexual
• Educação contra o uso da violência e pela
segurança pública
• Educação para geração de novas tecnolo-
gias.

II — Demandas por educação escolar


• Educação infantil: creches e pré-escolas
• Ensino de 1º. e 2º. graus
• As demandas da Universidade
• As demandas por novas leis educacionais
do ensino
• Ensino noturno
sociais se organizaram para protestar contra
o regime político vigente, para pedir “Diretas A educação ambiental teve duas fontes gera-
Já”, para ‘reivindicar aumentos salariais. doras de demanda: uma de caráter preventivo
A sociedade civil voltou a ter voz. A nação e outra de caráter defensivo. A primeira, pre-
voltou a se manifestar por meio das urnas. As ventiva, manifestou-se pelas campanhas, lutas
mais diversas categorias profissionais se orga- e movimentos que proliferaram ao longo da
nizaram em sindicatos e associações. Grupos década, voltados para a constituição de um
de pressão e grupos de intelectuais engaja- sistema de valores e de práticas destinados a
dos se mobilizaram em função de uma nova natureza, a conhecer o ecossistema, a saber,
Constituição para o país. Em suma, do ponto interagir com o meio ambiente de forma a não
de vista político, a década não foi perdida. Ao depredá-lo. Essas vertentes educativas tam-
contrário, ela expressou o acúmulo de forças bém geraram ações que se constituíram em
sociais que estavam represadas, até então e verdadeiras brigadas defensivas de resistência
que passaram a se manifestar. e de vigilância, contra os especuladores e os
empresários que, em busca do lucro fácil, con-
Na década de 80, as demandas educacionais somem e destroem a natureza, suas plantas,
foram grandes, estavam articuladas com a animais, rochas e riquezas minerais.
conjuntura política que o país atravessava e
com a busca de resposta (ou seu equaciona- A educação ambiental, de caráter defensivo,
mento) para problemas de ordem estrutural, manifestou-se mediante ações concretas ou de
gerados pelo modo e pela forma da acumula- campanhas que o próprio poder público teve
ção capitalista no país. que deflagrar em face das situações de cala-
midade pública. Nessa categoria, encontram-
As principais demandas foram: se as ações realizadas em face das enchentes,
inundações e secas que assolaram o país.
I - Demandas educacionais na sociedade:
• Educação ambiental As políticas na área do patrimônio histórico
• Educação sobre o patrimônio histórico cul- e cultural desenvolveram-se na década de 80
tural com base nas secretarias e nos órgãos públicos
• Educação para a cidadania criados na área da cultura. Fábricas antigas se
• Educação sanitária e de saúde pública transformaram em centros culturais, como o
• Educação popular SESC-Pompeia em São Paulo, por exemplo. En-
• Educação de menores e adolescentes tretanto, a preservação do patrimônio histórico
• Educação de minorias étnicas: índios já se fazia, pontualmente, graças à consciência
• Educação contra discriminações: sexo, ida- social de alguns grupos ou de beneméritos.
de, cor, nacionalidade

38 capítulo 3
A educação para a cidadania foi a demanda
predominante na sociedade brasileira nos anos
80. Ela esteve associada à ideia de jurisdição
das relações sociais à medida que teve como
parâmetro aspectos relativos às leis, aos direi-
tos, à construção de uma nova Constituição, à
elaboração de leis orgânicas, planos diretores
etc.

A educação popular foi uma demanda presen-


te em vários movimentos sociais organizados.
Ela se manifestava em reivindicações pelo en-
sino noturno, por escolas profissionalizantes
etc. Entretanto, a maior fonte de expressão
deste tipo de demanda não foi o sistema es-

5. O FÓRUM NACIONAL
colar formal, mas as chamadas organizações
não-formais de educação: a participação nos
clubes de mães da periferia, em lutas e em DE DEFESA DA
movimentos sociais organizados em torno de
bens, de equipamentos e de serviços públicos ESCOLA PÚBLICA
e pela moradia e acesso à terra. (FNDEP)
A educação para deficientes deixou de ser, dé- O Fórum dos anos 80 surge, inicialmente, para
cada de 80, uma disciplina da pedagogia ou reivindicar um projeto para a educação na sua
da área médica e se incorporou em práticas totalidade, não apenas para a escola (embo-
da sociedade brasileira. Aos poucos, os defi- ra esta, na modalidade pública, seja o centro
cientes físicos foram sendo tratados não como principal de suas atenções).
sujeitos de menor capacidade intelectual, mas
como sujeitos de capacidade física com certas O Fórum expressava a vontade política de par-
limitações. celas da intelectualidade brasileira, engajada
na luta pela redemocratização do país, partici-
A educação escolar, nos anos 80, viveu mo- pante do processo que alterou o regime políti-
mentos profundamente contraditórios. Ao co vigente, deslocou os militares para fora dos
mesmo tempo em que setores da sociedade postos de comando político-administrativo,
civil se organizaram e demandaram verbas pú- lutou por eleições diretas em todos os níveis
blicas para a educação, ensino gratuito, novas de governo e ajudou a reconstruir o sistema
legislações, novas estruturas de carreira para político multipartidário.
os professores, novas frentes de ensino e de
pesquisa para a universidade, novos modelos O Fórum dos anos 80 surgiu como expressão
de escola para o 1º. e 2º. graus, ensino no- de novas formas de agregação dos interesses
turno, educação para os deficientes físicos, da sociedade civil, principalmente pela atua-
educação infantil em creches e em pré-escolas, ção de entidades, aglutinando coletivos social-
etc.; a sociedade brasileira assistiu à deteriora- mente organizados e não apenas indivíduos,
ção progressiva da instituição que já não es- pioneiros ou notáveis, como nos anos 30. Ou
tava bem: a escola pública, em todos os seus intelectuais ilustres da universidade, como nos
níveis. anos 50 (ainda que nos anos 50 tenhamos tido
a participação de algumas lideranças sindicais).
A maioria das entidades que participaram da
criação do Fórum era recente. Elas foram cria-
das no bojo da rearticulação da sociedade civil,
ao final dos anos 70. Algumas tinham origem
mais antiga, mas foram recriadas nos anos 80,
pois estavam na clandestinidade ou desarticu-

capítulo 3 39
A partir de então, o Fórum deixou de ser o in-
terlocutor privilegiado, o mediador por exce-
lência entre os parlamentares e as demandas
educativas, passando a atuar a reboque dos
fatos criados por grupos e por facções do Par-
lamento e da administração central no nível
federal. Entretanto, essa constatação não di-
minuiu sua importância nos processos. Apenas
sua dinâmica se alterou, sendo bastante deter-
minada pelo exterior, ou seja, de certa forma o
Fórum perdeu o poder e a força de autodeter-
minação que havia conquistado no processo
ladas, como a UNE e a CGT. Outras expressa- constituinte.
vam fatos novos da sociedade brasileira, como
o CEDES, um centro específico, voltado para o Existe, para o FNDEP, uma clara opção de que
campo da pesquisa da publicação/divulgação o equipamento escola seja uma obrigação es-
da área da educação. tatal. E essa obrigação tem um caráter públi-
co, dada a origem das verbas que constituem
O FNDEP apresenta uma singularidade única: materialmente o equipamento. São verbas es-
é um movimento que busca preservar a atu- tatais, arrecadadas por meio de impostos co-
ação estatal. Isto é, preservar cm função dos brados da população, portanto, públicas.
direitos da maioria dos cidadãos, preservar o
Estado do desvirtuamento que ocorre em seu O FNDEP tem contribuído para o processo de
interior, em que as verbas públicas são apro- mudança e de transformação social, à medi-
priadas por lobbies particulares, em função de da que seu objeto de luta articula-se com uma
interesses privados e não públicos. A defesa da visão de mundo cujos valores estão centrados
escola pública busca resgatar o papel do Esta- na possibilidade de existência de um cidadão
do como o agente que deve criar, defender e pleno, com acesso à instrução, a informações,
gerenciar os bens públicos para a coletividade à ciência e à tecnologia.
e não para corporações privadas.
Sabe-se que a boa educação não altera a es-
Na Assembleia Nacional Constituinte, a defesa trutura desigual do país. Somente a legislação
da educação é direito de todo cidadão, e dever não tem o poder, em si, de mudar a realidade.
do Estado oferecer o Ensino gratuito e laico foi Mas elas são elementos do processo de mu-
o princípio no 1º. FNDEP. dança e de transformação. Por isso, o FNDEP
tem um significado amplo. Ele se inscreve
Os percentuais das verbas públicas e seu desti- como protagonista de uma peça com ideias e
no foram outra preocupação básica do FNDEP, atores novos, em busca de construção ou de
assim como a gestão democrática dos equipa- reconstrução de um cenário que é trágico na
mentos escolares. atual realidade brasileira.

A organização cotidiana do Fórum esteve sem-


pre centrada no trabalho individual de pessoas 6. A CRISE DOS
das instituições: que o constituíam. Suas ações MOVIMENTOS
eram ditadas pela dinâmica das ações parla-
mentares. Na fase da Constituinte, o Fórum
POPULARES NOS
teve um papel de vanguarda, de postulador, ANOS 90
de propostas e de direções políticas. No pro-
cesso de elaboração da nova LDB, esse papel Nos anos 80, a “onda” da participação gerou
reduziu-se, consideravelmente, a partir de muitos frutos. Eles não foram tantos de ordem
1990, quando o Fórum perdeu a maioria de material, no sentido de conquistas imediatas.
sua base de apoio no Parlamento. Mas foram muitos no sentido de instaurar

40 capítulo 3
uma nova racionalidade no social: a de que
o povo, os cidadãos, os moradores, as pes-
soas, ou qualquer outra noção ou categoria
que se empregue, têm o direito de participar
das questões que lhes dizem respeito. Esse é o
grande saldo dos anos 80, particularmente em
termos de Brasil. É um saldo de ordem moral,
que deverá interferir na cultura política do país
no próximo século.

A crise nos movimentos sociais é parcial. Ela


está instalada em certos ramos dos movimen-
tos, mais precisamente nos de ordem popular.
Os movimentos ecológicos, ao contrário, não
estão em crise. Estão em ascensão. É, certa-
mente, uma das grandes frentes de mobiliza-
ção no século XXI. compreensão desse papel passa, necessaria-
mente, pela análise de alguns fatores internos
A crise dos movimentos populares deve ser aos movimentos.
considerada em seus devidos termos. Primei-
ro, porque uma das características básicas de Analisando o contexto e as características atu-
todo movimento social, quer popular ou não, ais dos movimentos populares, percebe-se
é seu fluxo e refluxo. Eles não são instituições. que está ocorrendo uma volta ao passado, ao
Podem até se materializar em alguma organi- comportamento político tradicional das cama-
zação, mas isso é uma provisoriedade. A or- das populares: de passividade, de espera, para
ganização pode morrer, mas a ideia geradora que outros resolvam seus próprios problemas.
certamente persistirá e gerará o renascimento A nova cultura política que os movimentos
do movimento em outro contexto. esboçaram no país, de luta pela participação
na gestão da coisa pública, de criação de ci-
Portanto, movimentos são frutos de ideias e de dadãos e não meros consumidores de direitos
práticas, que fluem e refluem. As ideias per- estabelecidos foram esquecidos.
sistem, se transformam, agregando elementos
novos, ou negando velhos, segundo a conjun- A origem e as causas do desenvolvimento da
tura dos tempos históricos. Os movimentos crise estão embutidas no desenrolar dos movi-
são históricos e têm embutida uma historicida- mentos desde seus primórdios. Os fatores ex-
de particular, que se expressa em suas práticas, ternos demarcam diferenças e divergências de
em sua composição, em suas articulações e em concepções teórico-metodológicas e ideológi-
suas demandas. cas entre a base do movimento, suas lideran-
ças e assessorias, ainda que não se apresentem
Na realidade, a crise atual dos movimentos é o a esses níveis na consciência cotidiana de seus
acirramento de um processo que se instaurou agentes.
ao final dos anos 80, fruto de problemas que
os movimentos já carregavam em seu bojo. Em síntese, o desenvolvimento da cultura po-
lítica fundada na participação exige a cons-
Algumas lideranças ou assessorias dos movi- trução de canais em que haja liberdade de
mentos populares têm atribuído como causas expressão e pluralismo. E as assessorias e/ou
básicas da atual crise fatores de ordem externa alguns núcleos articulatórios que atuam nos
ao movimento, a saber: a crise econômica do movimentos populares parecem não ter exata-
país, o desemprego, as políticas neoliberais, a mente essa filosofia.
queda do leste europeu, a crise das utopias, a
descrença na política e na ação do Estado etc. A necessidade de implantar linhas e diretrizes,
Sem dúvida, todos esses fatores têm um papel que não foram construídas no interior dos mo-
importante no cenário da crise, mas a própria

capítulo 3 41
resumo
A questão da educação foi destacada por se
constituir no grande saldo obtido nos aconte-
cimentos assinalados. A educação se apresen-
vimentos, é incompatível com o desabrochar ta como forma de aprendizagem para os par-
da vontade dos grupos e dos movimentos so- ticipantes dos movimentos e das associações;
ciais. como efeito pedagógico multiplicador das
ações coletivas na sociedade civil e na socie-
A mesma coisa ocorre com a orientação igua- dade política e como demandas especificas na
litarista. Partir da igualdade de condicionantes área educacional, dentro e fora da instituição
econômicas, sociais e culturais, como uma fa- escolar. Tudo isso podemos resumir com a fra-
vela, por exemplo, não significa que se deva se: os movimentos sociais, das diferentes ca-
buscar um desenvolvimento homogêneo ao madas sociais, com suas demandas, organiza-
grupo, no sentido de nivelador. A igualdade ções. Práticas e estruturas possuem um caráter
deve ser no acesso às oportunidades. Desblo- educativo, assimilável aos seus participantes e
quear as estruturas que delimitam e/ou impe- à sociedade mais ampla. Os resultados desse
dem o acesso da população. processo traduzem-se em modos e em formas
de construção da cidadania político-social bra-
O desenrolar da luta será uma conquista pro- sileira.
gressiva, cheia de avanços e de retrocessos. As
ações para esse desenrolar deverão ser estuda- Entretanto, a construção dessa cidadania tem
das e arquitetadas periodicamente, segundo ocorrido nos marcos da cultura política vigen-
os fatores que a conjuntura coloca e os inte- te. Ainda que, em vários momentos, o que está
resses dos membros do grupo, e não um perfil em pauta é justamente a busca de redefinição
de lutas e de ações previamente demarcados, dessa cultura, introduzindo-se novas formas de
porque os demandatários são, supostamente, pensar a questão da coisa pública e a questão
todos iguais. dos direitos dos indivíduos e da coletividades
(como seres humanos e como agrupamentos
A possibilidade da construção de identida- até então segregados e confinados aos bolsões
des diferenciadas deve estar sempre presente. de subsistência e de resistência), os vícios da
Mas, infelizmente, esses resultados não são cultura vigente perpassam as novas práticas.
generalizáveis à maioria dos movimentos po-
pulares. Ao contrário, é nos movimentos so-
ciais compostos mais de camadas médias, os Referências
ecológicos e os ambientais, que encontramos
as orientações de uma cultura política funda- GOHN. Maria Gloria. Movimentos sociais e
da na participação plena dos indivíduos como educação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
cidadãos.

42 capítulo 3
Saiba Mais:
FILME

“Crash, no limite”
Jean Cabot (Sandra Bullock) é a rica e mimada
esposa de um promotor, numa cidade ao sul da
Califórnia. Ela tem seu carro de luxo roubado por
dois assaltantes negros. O roubo culmina num
acidente que acaba por aproximar habitantes de
diversas origens étnicas e classes sociais de Los
Angeles: um veterano policial racista, um detetive
negro e seu irmão traficante de drogas, um bem-
sucedido diretor de cinema e sua esposa, e um
imigrante iraniano e sua filha.

Atividades:
1. Após a leitura do texto Movimentos Sociais e
Educação responda às seguintes questões:

A. Identifique os fatos narcantes do texto, fa-


zendo um breve comentário de suas ideias.

B. Escolha um trecho do qual você não concor-
da e escreva um contra-argumento (ou con-
traponto) deixando claro seu pensamento.

capítulo 3 43
MOVIMENTOS
SOCIAIS: ESPAÇOS
DE EDUCAÇÃO
NÃO-FORMAL DA
SOCIEDADE CIVIL
*Por Maria da Glória Gohn

Profa. Maria do Socorro Tavares Cavalcante OBJETIVOS ESPECÍFICOS


Carga Horária | 15 horas • Descrever os movimentos sociais com
base nos espaços não-formais de edu-
cação.

• Analisar a influência dos movimentos


sociais na institucionalização dos direi-
tos humanos.

INTRODUÇÃO

Sabemos que os movimentos sociais têm sido consi-
derados, por vários analistas e consultores de orga-
nizações internacionais, como elementos e fontes de
inovações e de mudanças sociais. Existe também um
reconhecimento de que eles detêm um saber decor-
rente de suas práticas cotidianas, passíveis de serem
apropriadas e transformadas em força produtiva.
Quando se examina, por exemplo, a questão indíge-
na, ressalta-se o saber que eles detêm sobre a floresta.
Os movimentos são elementos fundamentais na so-
ciedade moderna, agentes construtores de uma nova Figura 01

ordem social e não agentes de perturbação da ordem,


como as antigas análises conservadoras escritas nos manuais antigos, ou como ainda são tratados
na atualidade por políticos tradicionais.

A presença dos movimentos sociais é uma constante na história política do país, mas ela é cheia
de ciclos, com fluxos ascendentes e refluxos (alguns estratégicos, de resistência ou rearticulação
em face de nova conjuntura e as novas forças sociopolíticas em ação). O importante a destacar é
esse campo de força sociopolítico e o reconhecimento de que suas ações impulsionam mudanças

capítulo 4 45
há importantes conquistas obtidas pós Cons-
tituição de 88, tais como a demarcação de
suas terras, o direito de alfabetização em sua
própria língua e, mais recentemente, a busca
da venda de seus produtos, não em mercados
alternativos, mas por preços justos e competi-
tivos, em mercados globalizados.

Há outros movimentos identitários e culturais


como os movimentos geracionais, em que se
destacam os jovens e, nesses, seus movimen-
sociais diversas. O repertório de lutas que eles tos culturais expressos, por exemplo, na músi-
constroem demarca interesse, identidade, sub- ca, via o Hip Hop, o Rap e tantos outros. Mo-
jetividade e projetos de grupos sociais. A partir vimentos de meninos e meninas de rua e de
de 1990, os movimentos sociais deram origem idosos completam o movimento das gerações.
a outras formas de organização popular, mais
institucionalizadas, como os fóruns nacionais Há, ainda, os movimentos culturais dos am-
de luta pela moradia popular. No caso da ha- bientalistas, ecologistas, que cresceram mui-
bitação e da reforma urbana, por exemplo, o to após a ECO 92. A maioria dos movimen-
próprio Estatuto da Cidade é resultado des- tos identitários e culturais atuam em conjunto
sas lutas. O Fórum da Participação Popular e com ONGs e eles têm sido bastante noticiados
tantos outros fóruns e experiências organiza- pela mídia. Muitas vezes, lhes são atribuídos
tivas locais, regionais, nacionais e até mesmo bem mais poder e força que, de fato, possam
transnacionais estabeleceram práticas, fizeram deter. Isso ocorre por dois motivos: por um
diagnósticos e criaram agendas para eles mes- lado, como resultado de suas lutas que cria-
mos, para a sociedade e para o poder público. ram uma nova gramática no imaginário so-
O Orçamento Participativo e vários programas cial, conferindo-lhes legitimidade, por outro,
surgiram como fruto dessa trajetória. esse superdimensionamento resulta também
da forma como a mídia apaga o conflito, a
Para citar alguns desses movimentos nos anos diferença. Eles se transformam, nas reporta-
90, destacamos: alguns são de caráter pluri- gens, em lugares de identificação, elimina-se
classista e conjunturais, como foi o Movimento do processo de identidade, propriamente dito,
Ética na Política, ou a Ação da Cidadania Con- a diferenciação, a luta, a resistência. Os mo-
tra a Fome e a Miséria; movimentos de desem- vimentos identitários são reportados como
pregados, ações de aposentados e de pensio- ações coletivas, frutos de projetos focalizados,
nistas. Os primeiros tiveram espaço na mídia e coordenados por indivíduos empreendedores,
contribuíram para a mudança política do país. agrupados segundo categorias de gênero, fai-
A Campanha contra a Fome deve seu sucesso à xa etária, origem étnica, religião etc. O empre-
atuação midiática via a figura de Betinho. endedorismo social é uma categoria advinda
da cidadania empresarial, em que líderes co-

1. OS MOVIMENTOS E munitários transformam-se em gestores de


projetos sociais. A grande mídia, voltada para
A VIDA COTIDIANA formar a opinião pública numa sociedade de
massa, elimina a negatividade, só afirma, rea-
Os movimentos de gênero (relação homens e firma e confirma a positividade segundo dados
mulheres) em que se destacam o movimen- interesses. Todo e qualquer caráter universalis-
to de mulheres e o movimento de homosse- ta é desconsiderado, focalizando-se apenas a
xuais; o movimento dos afro-brasileiros e o especificidade daquele projeto. Suas redes ar-
movimento indígena são considerados movi- ticulatórias - que dão apoio e suporte - desa-
mentos identitários e culturais; possuem uma parecem. Exibem-se resultados sem mostrar o
identidade e conferem aos seus participantes processo para chegar àqueles números.
uma identidade centrada em fatores étnicos e
raciais. Na questão do movimento indígena,

46 capítulo 4
E os movimentos populares propriamente di-
tos, aqueles que nos anos 70/80 foram tão
importantes, estimulados pela teologia da li-
bertação? O que houve com eles? Mudaram
de perfil? Desapareceram? Ou é a mídia que
os oculta? Nossa resposta é: eles não desapa-
receram, apenas alteraram suas práticas e per-
deram visibilidade - política e na mídia, porque
suas ações passaram a ser mais propositivas
que reivindicativas. Alguns fatores conjuntu-
rais explicam essas mudanças. para o Estado, mas de participar das políticas,
das parcerias, etc. Eles ajudaram a construir
Primeiro porque sempre foram heterogêneos outros canais de participação, principalmente
em termos de temáticas e de demandas. O os fóruns; e contribuíram para a instituciona-
que unifica o universo das suas demandas são lização de espaços públicos importantes tais
as carências socioeconômicas. Eles criaram e como os diferentes conselhos criados na esfera
desenvolveram, nos anos 90, redes com ou- municipal, estadual e nacional.
tros sujeitos sociais, assim como redes dentro
do próprio movimento popular propriamente A noção do novo sujeito histórico, povo, um
dito, destacando os movimentos que atuam dos eixos estruturantes do movimento po-
na questão da moradia. Nas redes com outros pular, reformulou-se, assim como deu novos
sujeitos, destacam-se as tecidas com o campo sentidos e significados às suas práticas. Resul-
sindical, o campo institucional de outras enti- ta desse processo uma identidade diferente,
dades sociais, o campo político partidário, o construída com base na relação com o outro,
campo religioso, o campo das ONGs, isto é, e não centrada exclusivamente no campo dos
os movimentos populares criaram, ou amplia- atores populares. Esse outro estava presente
ram, ou fortaleceram a construção de redes de no relacionamento desenvolvido com novas
sociais. formas de associativismo emergente, interação
compartilhada com ONGs e a participação nas
Ocorreram, entretanto, alterações profundas políticas públicas.
no cotidiano da dinâmica interna dos movi-
mentos populares. De um lado, eles perderam Isso tudo alterou o projeto político dos movi-
visibilidade (porque, ao longo dos anos 90, os mentos populares urbanos, no sentido de um
movimentos populares urbanos diminuíram projeto político policlassista, um novo projeto
as formas de protesto nas ruas e diminuíram político dos movimentos populares, que con-
sua visibilidade na mídia), e houve um deslo- templa outras questões além de demandas
camento dessa visibilidade para as ONGs. As específicas do campo das carências socioe-
identidades coletivas dos movimentos popu- conômicas, indo das questões do modelo de
lares deixaram alguns elementos de lado, tais desenvolvimento do país às questões do meio
como as frequentes contestações às políticas ambiente e do desenvolvimento humano. Na
públicas, mas como eles incorporaram outros maioria dos casos, não há uma ênfase exclu-
elementos, isso lhes possibilitou sair do nível siva nas questões apenas locais, incluem-se
apenas reivindicatório, para um mais operacio- outras dimensões. Em parte, essas mudanças
nal, propositivo. Embora os eixos nucleadores se explicam pelos efeitos do próprio modelo
das demandas fossem os mesmos, eles incor- organizacional, adotado: de se atuar em redes.
poraram novas práticas; alguns de seus líderes O outro, o diferente, acaba alterando o movi-
ou assessores passaram a incorporar diferentes mento local. Com isso, outros temas entraram
escalões da administração pública (nos locais para a agenda dos movimentos populares ur-
em que a oposição ascendeu ao poder). Seus banos, tais como o de uma cidadania planetá-
discursos se alteraram em função da mudança ria, antes circunscritos aos movimentos sociais
da conjuntura. As matrizes que estruturaram organizados e assessorados por outras cama-
esses discursos e as práticas também se alte- das sociais, como os ambientalistas, as mulhe-
raram. Não se tratava mais de ficar de costas res, direitos humanos, antiglobalização etc.

capítulo 4 47
situação de risco. Inúmeras vezes, esses mo-
radores foram manchetes na mídia pelo lado
da desgraça: incêndios ocorridos em suas pre-
cárias acomodações ao ar livre. A organização
dos moradores de rua é algo difícil porque eles
são “flutuantes” no espaço e não têm, usual-
mente, trabalho fixo. Muitos desses moradores
foram, no final dos anos 90, “recrutados” pelo
MST para participarem de seus acampamentos
e de ocupações rurais.

O movimento popular de saúde, embora te-


Dentre os movimentos populares urbanos, a nha se fragmentado, entrou na luta da ques-
luta pela moradia continuou a ter a centrali- tão de preços dos convênios, remédios, postos
dade como a luta popular mais organizada. de saúde, etc. No movimento pelos transpor-
Uma parte dela tornou-se bastante institucio- tes, outros atores entraram em cena como os
nalizada, atuando no plano jurídico, via suas perueiros (transportes alternativos). O movi-
assessorias, obtendo conquistas importantes mento pelas creches está sendo recriado em
como o já citado Estatuto da Cidade. Outra várias cidades, como em São Paulo, por causa
parte migrou, com suas assessorias, para as da falta de vagas como “Movimento dos Sem
ONGs, participando de projetos institucionais, Creche”.
tais como as cooperativas de ajuda mútua e de
autogestão, assim como várias alas do movi- Cumpre mencionar, no campo dos movimen-
mento das favelas, que passaram a ter projetos tos populares, a luta pela educação. Ele nunca
de reurbanização, remoção ou transferência teve grande visibilidade como um ator inde-
para projetos do poder público. Esses últimos pendente, pois suas demandas foram frequen-
casos geraram movimentos de associações de temente incorporadas pelo sindicato dos pro-
moradores locais. Uma terceira parte inovou fessores e demais profissionais da educação,
suas práticas seguindo o modelo do movimen- ou por articulações mais amplas, como a luta
to popular rural: realizando ocupações, não pela educação no período da Constituição,
mais de áreas vazias - cada vez mais escassas levadas a efeito pelo Fórum Nacional de Luta
e distantes dos grandes centros urbanos, ocu- pela Escola Pública. Mas, além da parceria com
pando prédios públicos e privados, ociosos ou esses atores - que continuaram atuantes nos
abandonados, nas áreas centrais das grandes anos 90, as reformas neoliberais realizadas
cidades. Inicialmente, eles criaram fatos políti- nas escolas públicas de ensino fundamental e
cos novos e, ao mesmo tempo - novos corti- médio alteraram de tal forma o cotidiano dos
ços nas áreas centrais. Mas a pressão contínua estabelecimentos de ensino, as quais deram
fez que, progressivamente, fossem elaboradas as bases para a mobilização de movimento
políticas públicas para regularizar essas ocu- popular pela educação. Falta de vagas, filas
pações, a exemplo do plano de recuperação para matrícula, resultado de exames nacio-
da região central de São Paulo, e os planos nais, progressão contínua (passagem de ano
urbanísticos e de regularização da posse para sem exames), deslocamento de alunos de uma
os imóveis ocupados. Uma quarta categoria mesma família para diferentes escolas, atraso
da luta pela moradia foi protagonizada pelos no repasse de verbas para a merenda escolar,
“moradores de rua”. Vivendo sob pontes, mar- denúncias de fraudes no uso dos novos fun-
quises, praças e logradouros públicos, esses dos de apoio à educação, entre outras, foram
“moradores” aumentaram significativamente pautas da agenda do movimento na área da
nos anos 90 em termos de número e de lo- educação. Registre-se ainda que a crise eco-
cais de ocupação. Políticas públicas têm sido nômica e o desemprego levaram centenas de
elaboradas para esses segmentos que vão de famílias de camada média à procura de vagas
sua remoção para conjuntos populares à mu- nas escolas públicas. Além de aumentar a de-
danças provisórias em albergues, em hotéis e manda, essas famílias estavam acostumadas
em imóveis alugados, quando localizados em a acompanhar mais o cotidiano das escolas,

48 capítulo 4
levando essas práticas para o ensino público,
antes mais fechado à participação comunitá-
ria. Com isso, em muitos bairros, as escolas
passaram a desempenhar o papel de centros
comunitários, pois a falta de verbas e a bus-
ca de solução para novos problemas, como
a segurança, a violência entre os jovens e o
universo das drogas, levaram-nas à busca de
parceiros no bairro ou na região, com outros
organismos e associações de bairro.

A questão ambiental, que até a ECO 92 estava tos recentes na sua conjuntura, o movimento
localizada mais nos movimentos ambientalis- contra a violência nas cidades ganhou força.
tas, passou a ser uma preocupação também Ele está organizado em bairros e representam
dos movimentos populares de bairro. Isso foi um clamor da sociedade civil na área da se-
um salto qualitativo muito grande, porque, gurança pública, na busca de proteção à vida
nas demandas e nas reivindicações dos anos do cidadão no cotidiano. Pesquisas de opinião
70/80, a questão ambiental não era tão pre- pública estão demonstrando que a segurança
sente como é hoje nos movimentos populares passa a ser o principal item de demanda da
propriamente ditos. Referimo-nos aos movi- população, mais que o emprego. A segurança
mentos mais de bairros periféricos, com córre- é hoje o temor maior, ela ganha do medo de
gos a céu aberto, ausência ou coleta irregular o cidadão ficar desempregado, ou de contrair
do lixo, foco de infeções várias. uma doença grave. Está sendo a preocupação
número um da sociedade.
Nos anos 90, surgiram novos movimentos po-
pulares que não tinham tanta presença nos Os movimentos de Direitos Humanos criaram
anos 80, como a própria questão dos idosos e redes nacionais, estão interligados a redes in-
dos aposentados da previdência pública. Mas ternacionais como a Anistia Internacional. Já
o principal deles foi o relativo à questão da os movimentos contra a violência, nos centros
violência e da criminalidade nas periferias. A urbanos, são mais focalizados, eles têm um ca-
expansão da violência urbana para os bairros ráter diferente, partem de grupos e de ações
nobres, para o conjunto da cidade, levou a po- localizadas, motivados por perdas de entes
pulação das áreas periféricas a desnaturalizar a queridos; eles passam a criar redes, mobili-
questão no sentido de ver e demandá-la como zam as associações comunitárias dos bairros
um problema também para eles e não como - muitas vezes também acuadas pelo medo à
algo inerente àqueles bairros, como o senso violência dos grupos armados organizados de
comum sempre os caracterizou. A dificuldade uma região. O movimento contra a violência
encontrada por esses movimentos tem sido urbana tem organizado passeatas, manifesta-
a presença de grupos e de gangues organi- ções de rua, etc. O próprio movimento estu-
zadas, controladoras do próprio movimento, dantil, que entra e sai da cena pública cons-
ou da liberdade de ir e vir nessas regiões. Na tantemente, tem tido um papel importante no
realidade, o movimento contra a violência ur- movimento antiviolência, em campanhas pelo
bana não está presente apenas entre as cama- desarmamento da população.
das populares, mas entre outras classes sociais
também. Ele é ainda um movimento difuso, Resta mencionar um novo movimento de bair-
que está crescendo bastante, especialmente ro, diferente do movimento já tradicional em
nos grandes centros urbanos. Certamente que várias partes do Brasil, das associações de mo-
nós já tínhamos o movimento pelos Direitos radores ou de sociedades amigos de bairros,
Humanos desde os anos 70. Ele teve um papel os Centros Comunitários, voltados para a or-
importante e fundamental desde a Luta pela ganização de parcelas da população. Eles se
Anistia, nos anos 70/80. Mas, pelas caracte- dedicam à produção e à comercialização de
rísticas e pelo panorama da sociedade brasi- inúmeros produtos de uso doméstico ou de
leira atual, pelos fatos e pelos acontecimen- alimentação, galpões de reciclagem de produ-

capítulo 4 49
2. Desenvolvimento
da Cultura de
Resistência via
Meios de
Comunicações
Alternativos
tos, produção de alimentos sem agrotóxicos, Como os movimentos e as ONGs desenvolvem
fabriquetas de tijolos, apiários, granjas, produ- suas próprias mídias, de resistência ou de bus-
ção caseira de queijos, doces, uma infinidade ca de integração na ordem social excludente?
de atividades nucleadas em cooperativas ou
em ssociações nos próprios bairros populares. O trecho que apresentamos a seguir foi reti-
Por detrás dessas associações, existem ONGs rado do Informativo ABONG-Associação Bra-
de caráter mais abrangentes. Elas assessoram sileira de Organizações Não Governamentais
os grupos na montagem dos projetos para o (ABONG, 2002, n. 200) e é aqui apresentado
pedido de financiamento, relatórios etc. como ilustração de novas formas de sociabili-
dades existentes no Brasil e de como as cama-
No campo dos movimentos sociais rurais, a or- das populares têm recriado, via utilização de
ganização popular cresceu bastante nos anos meios de comunicação alternativos, formas de
90. Dentre os inúmeros movimentos de sem- cultura de resistência.. Ele diz:
terra criados, o mais expressivo foi o Movimen-
to dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST. “Resultado de uma parceria entre o Centro de
Ele se destaca tanto no plano nacional como Cultura Luiz Freire/TV Viva e a Prefeitura de Re-
no internacional, via um eficiente trabalho de cife, o Projeto TV Matraca ficou entre os 100
mídia e de marketing político de suas deman- pré-selecionados para receber o “Gestão Pú-
das pela Reforma Agrária, bandeiras e místicas. blica”, prêmio anual oferecido pela Fundação
Getúlio Vargas/SP, a Fundação Ford e o BNDES
Para completar minha apresentação, neste aos projetos de desenvolvimento local. A TV
painel, sobre os movimentos sociais, a partir Matraca é um retorno à TV de rua, projeto da
dos anos 90, não poderia deixar de citar o mo- TV Viva, de 1984, que consistia na exibição de
vimento antiglobalização, que também está programas em telões instalados em locais pú-
presente no Brasil de uma forma incipiente, blicos. Levantando os problemas e as tradições
mas organizada. É um movimento novo, so- culturais de 34 bairros de Recife e discutindo
bre o qual escrevi um artigo no último caderno temas importantes da atualidade, a TV Matra-
“Mais” da “Folha de São Paulo” (27/01/02), ca, que estreou em março do ano passado, é
fazendo uma cronologia do movimento desde exibida em dois bairros por noite, com material
suas origens até dezembro de 2001, analisan- gravado e também com a participação da po-
do seu significado político e cultural. É impor- pulação ao vivo. Apresenta um programa dife-
tante destacar que, apesar das diferenças exis- rente por mês, com seis blocos: “Meu bairro é
tentes nesse movimento, composto de uma o maior” retrata, por meio de reportagens, a
rede de redes, ele une a crítica que faz sobre história de um bairro de Recife; “Recife está no
as causas da miséria, da exclusão e dos confli- ar” mostra os projetos sociais realizados pela
tos sociais, à busca e à criação de um consenso Prefeitura sob a ótica dos moradores; “Gira-
que viabilize ações conjuntas. À globalização mundo” é uma reportagem sobre algum tema
econômica, o movimento propõe outro tipo importante do momento - no programa exibi-
de globalização, alternativa, baseada no res- do neste mês, o assunto são as eleições -; “Se
peito às diferentes culturas locais. Com isso, ligue” é um quadro de serviços e de dicas aos
ele contribui para construir outra rede de glo- moradores dos bairros - nos programas ante-
balização, a da solidariedade. riores, foram dadas dicas de como prevenir-se

50 capítulo 4
da dengue e economizar energia; “Ciranda
cultural” apresenta matérias de cultura; e ain-
da um bloco voltado ao público infantil.

As participações ao vivo são organizadas pelos


34 “matraqueiros”, pessoas que representam
lideranças nos bairros, com as quais é realiza-
da uma reunião por mês para discutir as pau-
tas do programa do mês seguinte. “As pessoas
identificam-se com o que está acontecendo; ao
mesmo tempo em que dão opiniões, veem-se
no telão. O programa faz com que as pessoas
descubram-se e também descubram seu bair- REFERÊNCIAS
ro”, explica Eduardo Homem, coordenador da
TV Viva. Ele conta que, em um dos programas COUTINHO, Carlos N. Contra a corrente. São
realizados no bairro Alto de Santa Teresinha, a Paulo: Cortez, 2000.
comunidade acabou descobrindo que ali havia
32 grupos culturais constituídos por jovens. DIZARD JR, W. A Nova mídia. Rio de Janeiro:
Ainda segundo Eduardo Homem, a partir do Jorge Zahar , 1998.
próximo mês, o público infanto-juvenil vai ga-
nhar um presente: a exibição de dois desenhos DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo. Rio
animados apresentados no “Anima Mundi”. de Janeiro: Contraponto , 1997.

RESUMO FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Petrópo-


lis: Vozes,1994

Disso tudo resulta um cenário bastante contra- GOHN, M. G. Mídia, terceiro setor e MST. Pe-
ditório. Entidades que buscam a mera integra- trópolis:, Vozes, 2000
ção dos excluídos, por meio da participação
comunitária em políticas sociais, disputam os _____________ Movimentos e lutas sociais na
mesmos espaços com entidades e movimen- História do Brasil. 2.ed.São Paulo: Loyola, 2001
tos críticos, com projetos emancipatórios para
a sociedade e para a democratização do Esta- ______________Teoria dos movimentos so-
do. Acho que é preciso avançar, efetivamen- ciais. 3. ed.São Paulo: Loyola, 2002
te, na direção de projetos inspirados em um
novo modelo civilizatório, em que a cidadania, _____________ De Seattle à Gênova: uma
a ética, a justiça e a igualdade social, sejam im- radiografia do movimento antiglobalização.
perativos prioritários e inegociáveis. Portanto, Folha de São Paulo, Caderno Mais, 27-01-02,
não bastam princípios estratégicos, avaliação p. 14-15.
de resultados baseada na lógica custo-benefí-
cio, etc. se o projeto político de uma entidade ______________Movimentos sociais e educa-
para a sociedade civil, na sua inteireza, incluin- ção. 5. ed.S. Paulo: Cortez, 2002
do sua relação com a sociedade política, com
os organismos estatais, não for bem claro. Que ______________Sem-terra, ONGs e cidadania.
modelo de Estado e de sociedade queremos? 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001

E a mídia – a que conclusão podemos chegar? ______________Educação não formal e cultu-


Creio que a principal é a de que ela é parte do ra política. 2. ed.São Paulo: Cortez, 2001
cenário acima, ajuda a construir e a destruir
movimentos e projetos, exerce vigilância, mas
também esquece o que não atende aos inte-
resses de suas redes.

capítulo 4 51
Saiba Mais:

ACESSE: cclf@cclf.org.br.

FILME

“Em nome do pai”


Baseado na história real de Gerry Conlon, um pe-
queno delinqüente, confundido com terrorista
do IRA e apontado injustamente como um dos
responsáveis por um atentado a bomba. Forçado
a confessar sua participação, ele assume o crime
e a investigação acaba incriminando também seu
pai. Condenado, ele tenta provar sua inocência e
limpar o nome do pai, contando com a ajuda de
uma empenhada advogada.

Atividades:
1. Após a leitura do texto Movimentos So-
ciais: Espaços De Educação Não-For-
mal Da Sociedade Civil elabore um texto
dissertativo discutindo o tema com a autora.

52 capítulo 4

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