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Sistema sonoro e afinação

A altura absoluta do diapasão é uma questão particularmente im-


portante tanto para os cantores quanto para os instrumentistas. Há
um bom número de textos antigos que dizem que o diapasão na
França era mais alto 'OU mais baixo do que nos outros países; ou
que o diapasão de igreja era mais alto ou mais baixo que o diapa-
são "de câmara", quer dizer, nos lugares onde se executava a mú-
sica profana. Porém, excetuando a laringe humana e certos instru-
mentos como antigos diapasões em forquilha ou de sopro que não
foram modificados, não existe qualquer outro referencial que seja
exato. Examinando-se estes instrumentos, comprova-se, põr exemplo,
que aqueles que datam da época de Monteverdi, na Itáfia, tinham
quase todos o diapasão atual, ou mesmo um pouco acima. Na voz
humana, a extensão desejada para o baixo ia até o dó grave, o que
é bastante grave. Mas os autores antigos afirmavam que somente
um baixo com muito boa formação podia descer tanto assim, o
comum eram baixos, como os .que se encontravam nas escolas, que
iam só até o sol. Não é muito diferente de hoje em dia. Muito
poucos cantam até o dó grave (este limite nos permite concluir
que o diapasão não pode ter sido muito mais baixo na Itália na-
quela época - o "diapasão antigo" é, por conseguinte, variável e
pode ter sido mais alto aqui e mais baixo lá). Antigamente, canta-
va-se de preferência na região central e sã muito raramente se atingia
o extremo agudo. Hoje, é bem diferente; todo cantor quer cantar
tanto quanto possível no registro mais agudo - e o mesmo acon-
tece com as cantoras.
Um verdadeiro soprano fica infeliz quando não pode cantar
entre o ré4 e o ré5 • Os tenores querem também cantar tão agudo
quanto possível; alegam, inclusive, que as partes do tenor de Monte-
v-erdi são muito graves para um tenor e que, por isso, devem ser
cantadas por um barítono. Praetorius (1619) diz expressamente que
a voz humana "quando vai à região média e um pouco à grave" é
7'6 o discurso dos sons

muito mais graciosa e agradável aos ouvidos do que aquela que "é
forçada e precisa gritar nos agudos". Ele afirma igualmente que os
instrumentos soam melhor no grave; mas que, por outro lado, o
diapasão normal está continuamente subindo. Ainda hoje, esta ten-
dência permanece; o diapasão de uma orquestra com o correr do
tempo tende a ficar cada vez mais alto. Isto pode ser constatado
por qualquer pessoa que venha observando os diversos diapasões
das orquestras nestes últimos trinta anos. Esta é uma questão mui-
to importante também para o músico atual.
Creio que deveríamos procurar saber a razão desta infeliz ten-
1
1
dência que leva a uma contínua subida do diapasão. Eu próprio,
11;
durante 17 anos, toquei em orquestra ê constatei que os regentes
estão sempre dizendo que um tal músico toca baixo demais (falo
'I de afinação e não de dinâmica), mas nunca os ouvi dizer que um
determinado instrumentista está tocando alto demais. Há, natural-
mente, motivos para tal, já que numa harmonia mal ajustada a
ouvido se orienta, automaticamente, pelo som relativamente mais alto.
Aquilo que é comparativamente mais grave será sentido como er-
rado, mesmo que esteja, objetivamente, correto. Dessa forma, aquelas
notas que se imagina baixas serão empurradas para cima, até que
estejam tão altas quanto as (demasiado) altas. Qual é a conseqüên-
cia? A conseqüência é que o músico, para evitar que o regente lhe
diga que a sua afinação, está muito baixa, passa, por antecipação,
a afinar o seu instrumento demasiado alto.-(Isto é válido principal-
mente para as segundas fil~s dos instrumentos de sopro, já que
é quase sempre-a estas que se diz que a afinação está muito baixa.
Quando compram um instrumento novo de sopro, eles o cortam
imediatamente para que fique mais alto.) A única saída para este
problema de um diapasão que sobe irresistivelmente é saber de
onde provém a afinação e estar sempre a ajustá-la a ba-ses corretas.
A questão da justeza de uma afinação não pode ser analisada do
ponto de vista de impressões momentâneas, do contrário, nada
mais fará sentido, pois que ninguém gosta de estar baixo. Há um
ditado entre músicos de orquestra que diz: "antes alto demais que
errado." Creio que, se os músicos soubessem um pouco mais ares-
peito de afinação e não deixassem tudo a cargo do ouvido ou da
intuição, poder-se-ia manter o diapasão muito bem num determi-
nado nível.
A questão de uma afinação justa não tem resposta. Não M
um sistema natural de afinação único que seja válido para todos.
princípios fundamentais da música e da interpretação 77

A educação nos familiariza com um sistema sonoro que pode ser


um dos cinco ou seis sistemas sonoros de nossa cultura, ou até um
outro, no qual a altura do som é medida com a ajuda de sementes
de trigo ou pedras - e todo homem que está habituado a um
determinado sistema, ouve, canta ou toca de acordo com este. Em
muitas regiões da Europa, são usados, na música folclóríca, instru-
mentos de sopro naturais ( como trompas) nos quais só podem ser
tocados os harmônicos naturais. As melodias podem ser executadas
somente na quarta oitava ( do oitavo ao décimo sexto harmônicos),
onde a quarta soa muito "impura", pois o décimo primeiro har-
mônico está entre o fá e o fá sustenido e por este motívo a quarta
(dó-fá) é demasiado alta.

T=Ei"~¾=Jn~~~
1 2 l 4 5 6 7 8 9 10 11 1Z ll 14 15 !&
'--'L-..1~--~·---------'
I. II. ILI. IV. Oitava

Nas reg10es onde estes instrumentos são, tocados, se canta


também este intervalo, as pessoas estão habituadas a ele e o per-
cehem como uma quarta justa! Precisamos compreender que não
podemos fazer de um sistema de afinação uma norma para todos
os outros; aquilo que parece puro aos nos~os ouvidos, pode não
sê-lo para outros. Puro é tud9 o que corresponde às exigências de
um sistema. Em geral, educamos os nossos ouvidos para que eles
se orientem pelo sistema de afinação de um instrumento temperado,
como o piano. Neste, os doze semitons têm uma afinação eqüidis-
tante, de sorte que só há, por assim dizer, uma tonalidade maior
que pode ser transposta por semitons; infelizmente, nossos ouvidos
foram educados segundo este sistema. Assim, quando se escuta uma
música cuja afinação obedece a um outro sistema, por mais perfeito
que seja, se tem a impressão de algo desafinado. O sistema de afi-
nação do tempo de Monteverdi, no século, XVII, era um desses
outros sistemas! Ao se ouvir, hoje em dia, uma música executada
com a sua afinação, a sensação que se tem é a de que tudo está
soando terrivelmente desafinado. Mas, inversamente, caso se ouça
a afinação atual com ouvidos educados pela afinação do século
XVII, ir-se-á, da mesma forma, achar tudo desafinado. Conclui-se.
portanto, que nesta ·matéria não há uma verdade absoluta e 'Obje-
78 o discurso dos sons

tiva. Só se pode discutir sobre a justeza de uma afinação no con-


texto de um determinado sistema. Se minha afinação for justa no
seio de um sistema, ela será perfeita, mesma que pareça desafinada
a ouvidos educados por um sistema diferente do meu.
Infelizmente, no nosso tempo, em que o conhecimento pro-
fundo e verdadeiro é oficialmente substituído por um discurso vazio
l~ superficial, tornou-se óbvio e habitual falar e discursar de forma

grandiosa sobre coisas das quais nada se sabe. Ninguém procura


absolutamente informar-se: seja qual for o assunto, fala-se sobre
ele, como um entendido. Um tema que sofre particularmente com
isto é a música. Quase todo mundo fala dela como se fosse dono
da matéria, seja sobre afinação ("então, você não ouviu como ele
desafinou?"), seja sobre tonalidades ("o doce tom de mi bemol
maior. .. "), e somente por causa da igual ignorância do interlo-
cutor esta situação ridícula é sustentada. As questões relacionadas
à tonalidade e à afinação - até mesmo na literatura especializada
- tornaram-se temas de puro blefe.

A música dos séculos XVII e XVIII foi construída, no que diz


respeito à afinação, também sobre a chamada teoria das propor-
ções, na qual os índices de freqüência, quer dizer, a série hannó-
nica, serviam de princípio básico. O ponto de referência era a nota
fundamental, o número um da série de sous _e números, correspon-
dendo mais ou menos ao ponto de fuga da perspectiva; ele simbo-
lizava a Uniti).S, ª unidade, Deus. Quanto mais simples a relação
numérica, melhor, mais nobre (inclusive no sentido, moral); quanto
mais complicada a relação numérica, ou quanto mais distanciada
do um, pior, mais caótica. Todo intervalo pode ser expresso sob
a forma de relação numérica (proporção) ( como por exemplo, à
oitava 1:2, a quinta 2:3, etc.); sua qualidade pode ser medida em
função da proximidade da Unitas, do som fundamental como base
( dó = 1_, 2, 4, 8 etc.). A terminologia que conhecemos da hanno-
nia aqui não tem valor algum - a perfeição dos sons era lida através
dos números. Inversamente, podia-se também representar todas ás
relações numéricas simples como sons. A harmonia das esferas de
Kepler se baseia nisto, bem como numa arquitetura "soando" har-
monicamente; quando as proporções visíveis de uma construção
eram redutíveis a relações numéricas simples, se podia, então, vê-las
e ouvi-las como "acordes". Palladio compôs os planos de suas cons-
princípios fundamentais da música e da interpretação 7S

truções como um tipo de música petrificada. A harmonia, na ~1nú-


sica, segundo estas teorias, se baseia sobre um princípio análogo
ao do número áureo em arquitetura. Ambos produzem sobre a
sensibilidade e o espírito humano uma impressão de ordem, através
de princípios simples e naturais. A idéia barroca de que a música
seria um reflexo ou uma imagem da ordem divina, era válida nesta
época para todo tipo de música, inclusive a profana. A oposição
profano/religioso não tinha neste contexto um papel tão iimportantc
como atualmente. (A unidade entre as diversas tendências da música
ainda não fora rompida; fundamentalmente, todo tipo de músic;.i.
qualquer que fosse a norma, era considerada outrora como sacra.)
Os intervalos harmônicos . representam, na teoria das propor-
ções, uma ordem criada por Deus; todas as consonâncias corres-
pondem a índices numéricos simples (2:3 =a quinta; 3:4 = a
quarta; 4:5 = a terça maior etc.) Aquilo que se aproxima mais da
unidade é sentido como mais agradável, mais perfeito do que o que
está longe, onde dominam proporções ruins, inclusive o caos. A
relação 4:5:6 era tida como perfeita: ela é construída sobre a nota
fundamental ( d6), seus números são consecutivos e produzem trcs
sons harmonicamente consoantes e diferentes (do-mi-sol), um acor-
de perfeito maior: harmonia perfeita e uma consonância das mais
nobres ( trias musica). Este acorde era o símbolo musical da San -
tíssima Trindade. (A afinação devia seguir precisamente o quarto.
quinto e sexto harmônicos!) Já~o acorde perfeito menor (10: 12: 15.
mi-sol-si) tem uma proporção sensivelmente pior: ele não está
construído sobre a nota fundamental, seus números estão distan-
tes do um e não são vizinhos, e há números (sons) entre eles
(11, 13, 14). Este acorde de três sons passava por inferior, fraco
e, num sentido hierárquico negativo, feminino. Zarlino chama o
acorde perfeito menor de affetto trista - sentimento ruim. Desta
maneira, todas as harmonias eram julgadas "moralmente", poden:do-
se compreender porque as peças necessariamente termiiiavam com
um acorde perfeito maior: não se poderia finalizar umà obra no
caos ( uma regra cujas ocasionais infrações servem para denotar
uma intenção particular do autor). Os instrumentos também desem-
penhavam um papel importante na teoria das proporções. Assim o
trompete, por exemplo, no qual só se podia tocar harmônicos natu-
rais, tornou-se uma espécie de encarnação sonora da teoria das
proporções; ele só era introduzido quando se tratava de Deus ou
80 o discurso dos sons

das mais eminentes altezas. Dó maior ou ré maior com trompetes


eram tonalidades reservadas ao poder supremo; os trompetistas ti-
ravam proveito desta situação e se situavam bem acima dos músicos
comuns.
Os números representaram um imenso papel não só na teoria
das proporções, mas em toda a música barroca. Na de Bach, por
eX:emplo, encontram-se continuamente números que representam
jogos aritméticos ou números elevados a certas potências mágicas,
freqüentemente em trechos onde se acham passagens bíblicas ou
dados biográficos. Estão codificados da maneira mais diversa: algu-
mas vezes, indicando o número de repetições de uma nota ou de
compassos, outras, certos valores ou alturas de notas, e assim por
diante. O conhecimento do simbolismo numérico e do alfabeto nu-
mérico era algo tão comum, que o compositor podia incorporar às
suas obras mensagens codificadas deste gênero, uma parte das quais
era certamente compreendida na audição e na leitura de sua música.
Assim como os números, também muitos símbolos religiosos e
astronômicos se achavam, desde a antigüidade, relacionados à nfú-
sica. Determinados capitéis de claustros espanhóis representam,
como Marius Schneider explica em seu livro Singende Steine (Pe-
dras Cantantes), certas melodias: quando se atravessa um destes
claustros, a partir de um ponto dado, as esculturas dos capitéis -
figuras simbólicas da literatura e mitologi!, grega, que são igual-
mente símbolos de determinadas notas - formam com a ajuda
destas notas hinos do santo-1:fó qual o claustro é dedicado; os capi-
téis purame11te -ornamentais, que estão entre eles, representam ás
pausas.
Ao lado da teoria das proporçõ,es, havia na música barroca,
e ainda há hoje em dia, a característica das tonalidades, que cons-
tituía um importante fundamento para a representação das diferén-
tes emoções. Esta tem muito mais a ver com a afináção e seus
diferentes sistemas, talvez, que a teoria das proporções. Um breve
esclarecimento poderá ajudar a melhor compreender a importância
da afinação como meio de expressão.
Desde o início tentou-se, através da música, cativar o ouvinte
com diferentes situações e estados de alma. Para tal, encontrou-se
rapidamente possibilidades de diferenciação musical que remontam
~ música grega. Nesta, havia, já nos seus primórdios, um simbolis-
mo e uma característica de nota isolada. Ela estava ligada a um
princípios fundamentais da música e da interpretação Sl

símbolo, ela encarnava o próprio símbolo que, em primeiro lugar,


se referia aos astros, às estações do ano, a animais mitológicos e
aos deuses que representavam e inspiravam um sentimento particular.
Isto conduziu a um tipo de simbolismo das tonalidades: transferia-
sc, à escala construída sobre a nota isolada em questão, a caracte-
rística da nota fundamental; esta "tonalidade" inspirava no ouvinte
a associação correspondente.
As escalas na música grega são formadas a partir de quintas
( e não como a série de sons naturais representados na pág. 77 a
partir <loS' harmônicos da terceira e da quarta oitava):

Sol Lá Si Dó Ré Mi Sol Lá Si
1 ! :::::lt:7E' J !
escala pitagórica
terça pitagórica ,-,.,

A escala pitagórica construída desta forma torna-se, então, o


sistema de afinação em vigor para toda a música da Idade Média.
A terça que daí surge (terça pitagórica) é um intervalo senslvel-
mente maior do que a terça natural acima explicada (4:5), não
consonante como esta, mas sim dissonante. O sistema pitagórico
soa muito bonito e convincente para a música monódica, assim
como a terça pitagórica soa também muito bem num contexto meló-
dico. Os diversos fragmentos possíveis de serem extraídos desta escala
fundamental, começando cada vez com urna nota diferente, deram
origem às escalas gregas. Destas, surgiram finalmente os modi, os
modos gregorianos da Idade Média, qu,e levavam os nomes gregos
antigos ( dórico, frígio, lídio, mixolídio), cada um deles associado a
uma determinada esfera expr•essiva. Enquanto a música permanecia
monódica e a polifonia repousava sobre quintas, quartas e oitavas,
o sistema de afinação pitagórico pôde ser mantido, sendo ideal para
este tipo de música. Somente com a introdução, na prática, da terça
natural, consonância harmoniosa e bela, é que a polifonia conse-
guiu desdobrar-se plenamente. O acorde perfeito maior (trias mu-
sica) torna-se então pouco a pouco a harmonia central que deter-
minava o modo e a tonalidade. Dessa forma, quando se chegou ao
final do século XVII, de todos os modos gregorianos restava ape-
82 o discurso dos sons

nas a es~ala maior. Isto teria provocado um grande empobrecimento


das possibilidades de expressão, se não se tivesse conseguido dar
a cada transposição desta escala única um caráter próprio: si maim,
por exemplo, produz um efeito diferente de dó maior, apesar de
que ambos em princípio utilizam a mesma escala. Como anterior-
mente a diferença residia ( com relação aos modos gregorianos)
na sucessão dos intervalos, as diversas escalas maiores teriam forço-
samente de ser diferenciadas através de uma afinação distinta. A ne-
cessidade de uma caracterização tonal é o motivo que leva ao sur-
gimento do sistema de afinação temperado.

Do "mesotônico" (ou "meio-tom"*)à


ª afinação temperada"

Assim que se descobriu a terça natural, de sonoridade tão agradável,


e com ela o acorde perfeito maior, que estão na base do nosso
sistema tonal, surgiram numerosas qu,estões referentes à maneira
de como se poderia resolver os problemas de afinação decorrentés
nos diversos instrumentos. Somente os instt·urnentos naturais de
sopro (trompas e trompetes) se enquadra\!am perfeitamente no novo

--
princípio. Para os de teclado ( órgão, clavicórdio e cravo) era pre-
ciso descobrir-.se um novo sistema que possibilitasse a nova afinação
de terças puras e ainda, se possível, com doze notas por oitava.
Tal sistema foi achado com a "afinação mesotônica". Sua caracte-
rística principal é a de que as terças maiores têm que ser absolu-
tamente puras, em detrimento dos outros intervalos. (E necessário
esclarecer que num instrumento de teclado não pode haver uma
afinação absolutamente "pura", e que cada sistema favorece deter-
minados intervalos, em detrimento dos outros.) Na afinação me-
sotônica não há nenhuma relação enannônica, pois cada nota tem
uma significação única: um fá sustenido, por exemplo, não pode se
confundir com um sol bemol. Para conseguir-se uma afinação desta

* "Mitteltõnig" em alemão; "mean-tone" em inglês; "mésotonique" em


francês. (N. do T.)
-----··-------------------~
princípios fundamentais da música e da interpretação 8:{

natureza, com terças puras, é preciso que todas as quintas sejam


diminuídas; este é o preço que se paga pelas terças puras.

A afinação "mesotônica": ~ intervalos diminuídos


-- - - - intervalos aumentados
d6 - - intervalos puros

Todas as quintas, de mi bemol a sol sustenido, são di-


minufdas de /.14 de coma. O que resta é a quinta do !o-
lá bo* (sol sustenido-mi bemol) totalmente inaproveit:á-
vel musicalmente, na verdade uma sexta diminuta.
. Toàas as terças do esquema são puras.
_ _----,-"-r--i-- .-' rru Todas as restantes são demasiado grandes, sem utili-
zação. O círculo das quintas não pode ser fechado.

fá#

Curiosamente, quase não se escuta a quinta num acorde de


três sons cuja terça é pura, pois ela é dividida por esta terça. Esta
afinação se chama meio-tom pelo fato da terça mrui.or (por exem-
plo dó-mi) estar dividida exatamente em sua metade (pelo ré)
e não, como na série harmônica, na relação 8:9:10 (onde há um
grande intervalo maior, dó-ré e um pequeno ré-mi). Esta afinação
de terças puras soa harmonicamente muito doce e descontraída,
contudo, todas as tonalidades tocáveis soam exatamente iguais. As
escalas e as passagens cromáticas soam particularmente interessan-
tes num instrumento afinado por este sistema. Quando se executam
os semitons uns após outros, o resultado é surpreendentemente
colorido e diversificado; os semitons possuem de fato tamanhos
muito diferentes. O termo cromatismo é aqui, excepcionalmente,
muito bem empregado. O fá sustenido é, então, uma nova cor do
fá. O semiton cromático fá-pá sustenido produz o efeito de uma
coloração, enquanto que o semitom fá sustenido-sol, que não é cro-
mático, representa um verdadeiro intervalo concreto.
Para músicos modernos, é realmente muito difícil cantar ou
tocar terças puras, pois acostumados que estão às terças tempera-
das do piano, acabam tendo a impressão de que as terças puras
nattirais são falsas e pequenas demais.

* "Lobo" é qualqtwr efeito clesagr:idável que resulte de uma afinaçãc


in,1:crfeita. (N. do T.)'
84- o discurso dos sons

Tratemos agora das afinações "bem temperadas'r. Temperar


significa igualar; certos intervalos serão, por conseguinte, afinados
propositalmente errados (mas numa medida aceitável) para qu~
se possa tocar em todas as tonalidades. A mais primitiva. das afi-
nações temperadas é a chamada temperamento "igual". Neste sis-
tema, a oitava é subdividida em doze semitons rigorosamente iguais,
e todos os intervalos, com exceção da oitava, são um pouco impu-
ros. É a afinação que se emprega habitualmente hoje e111 dia e
nela não há características tonais, todas as tonalidades soam · idên-
ticas, apenas diferenciando-se na altura. Mas, se entendeq:nos ( tal
como no século XVIII) por bem temperado aquilo que se refere
a um temperamento útil e bom, então este sistema de afinação
moderno é dos piores. (Por sinal, ele já era conheddo outrora,
apesar de sua aplicação só ser tecnicamente possível após a inven-
ção dos instrumentos de afinação eletrônicos.)

Um acorde "bem temperado" (Werkmeister)

-. ,
fá· dó Quatro quintas são reduzidas de um quarto de coma
lá# i sol (d.6-sal; sol-ré; ré-l.á; l.á-nu), todas as outras são puras.
si b l ::->.>.::._.~-f
, 1
..,,.'(
-
O círculo das_quin~s é fechado.
ré . .
As terças estão mais ou menos pr6xunas do mtervalo

IUl

SO
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ré# ,'::.,)/
• b , Xi
~/, I'.
lá f, i :"., ✓f
't(.
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l# - -: ~._ ,,,~; 1- -
l, "\, "'
puro natural. Através ~esta diferenciação, surgem
jX ,, , llí claramente as caracter!sticas tonais. .
sustenido e si benwl-ré são quase tão boas; mi be-
.
As melhores terças sao: Já-lá e d6-nu; sol-si, ré-Já
nwl-sol, lá-d6 susteníilo, mi-sol suste11ido, si-ré suste·
nido são indiscutivelmente piores. Todas as terças
dó# . si ·restantes são pitag6ricas e, por isso, demasiado gran-
ré 'b ~á# desparaoouvido.
sol b

Nas boas afinações temperadas, nem todas as terças maiorc'i


são afinadas iguais: fá-lá, do-mi, sol-si, ré-fá sustenidõ são afina-
das mais puras, quer dizer, menores que as outras; as quintas tam-
bém diferem entre si. Todas as tonalidades são, portanto, tocáveis,
mas soam diferentemente: fá maior soa muito mais doce e des-
contraído do que mi maior, por exemplo. Os vários intervalos são
d;ferentes em cada tonalidade, alguns mais puros, outros menos,
donde as características tonais. Elas são conseqüência das tensões
mais ou menos fortes, condicionadas pela afinação, que crescem à
medida em que a tonalidade vai se afastando do centro de dó-maior
e são sentidas como uma espécie de saudade das belas tonalidades
sem tensões (fá, maior, dó maior, sol maior).
princípios fundamentais da música e da interpretação 85

Jamais se deve afirmar apressadamente que um músico toca


afinado ou desafinado. Existem, com efeito, sistemas muito diver-
sos e quando alguém está tocando afinado num sístema com
o qual nossos ouvidos não estão habituados, estaremos sendo
injustos ao dizermos que a pessoa está tocando desafinado. Eu
mesmo estou tão acostumado a temperamentos desiguais, que o
piano, tal como é ouvido normalmente, me parece absolutainente
desacorde, mesmo que tenha sido muito bem afinado. O que im-
porta acima de tudo, por conseguinte, é que um músico toque puro
e afinado dentro de seu sistema.
Contudo, constata-se na prática que a música dos séculos XVI
e XVII só pode ser executada adequadamente com uma afinação
de terças puras. Quando se trabalha só com cantores ou instrumen-
tistas de cordas não se precisa utilizar todas as características da
afinação mesotônica, que é basicamente concebida para instrumentos
de teclado. Não se buscará fazer com que a oitava e nona nol:as
da série harmônica sejam igualmente grandes, e nem é necessário
diminuir as qu1ntas mas sim tentar produzir terças absolutamente
puras ( o que, de qualquer forma, é feito nas quintas). Certamente,
não é desejável alcançar a pureza absoluta em todos os intervalos,
pois todo efeito artístico está fundado na procura da perfeição. A
perfeição como objetivo conquistado não faz parte do humano e
além do mais seria monótona. Uma parte importante do ouvir e
sentir música está baseada na tensão entre a procura de uma pureza
perfeita e o grau de pureza~ efetivamente alcançado. Há tonalidade:,
com um grau de pureza bastante alto, onde a tensão, é baixa, e
outras que possuem pouca pureza mas muita tensão. Assim, a afi~
nação é, para a interpretação, um impbrtante meio de expressão.
Não existe, porém, nenhum sistema de afinação que convenha a
todo o conjunto da música ocidental.
Música e sonoridade

O musico que se dedica profundamente à questão da sonoridade e


lhe concede um papel importante no contexto da interpretação vê
surgir automaticamente problemas referentes aos critérios hist_óricos.
Conhecemos aproximadamente a formação vocal e instrumental
n~cessária à música executada na corte papal de Avignon, no
século XIV, bem como nas diversas capelas das cortes italiana e
alemã da época maximíliana (por volta de 1500); pode-se também
ter uma idéia bastante precisa da capela da corte do duque da
Baviera, dirigida por Lassus (por volta de 1560), e da sonoridade
orquestral e vocal da época de Monteverdi (após 1600), por sinal
bastante documentada não só pelo próprio, como também por Mi-
chael Praetorius (1619); pode-se, igualmente, através de estudos
análogos, imaginar a sonoridade das óperas do século XVII; a so-
noridade orquestral e vocal da época de Bash, por exemplo, é con-
siderada como perfeitamente reconstituível; quanto a Mozart. sabe-
se alguma coisa_a respeito dÕmundo sonoro da sua música e tam-
bém se conhece a sonoridade da orquestra wagneriana. No final
desta evolução encontrar-se-á a orquestra sinfônica atual.
Até bem recentemente, a estética musical e a organologia ado-
tavam, face ao conjunto destas complexas questões, um ponto de
vista a que a história da arte já havia renunciado há muito tempo
e segundo o qual existiria uma evolução a partir de um estado inicial
primitivo, passando por constantes melhoramentos, até chegar a
um estado ideal sempre situado no presente. Este ponto de vista
não é justificado nem pela estética, nem pelo aspecto técnico ou
histórico. Aquilo que é claro já há muito tempo no campo das
belas-artes - que lidamos com deslocamentos de ênfase que se
produzem e devem mesmo ser produzidos sempre paralelamente
aos movimentos intelectuais e sociais - começa agora também a
sê-lo nos domínios da história dos sons. :E: preciso que se entenda
de uma vez por todas que o instrwnentarium ("a orquestra") de
princípios fundamentais da música e da interpretação &"I

uma época está perfeitamente adaptado à sua música ( e inversa-


mente), seja visto na forma do conjunto do instrumentari.um da
época em questão, seja na de um instrumento isolado. Vejo (e ouço)
que quando um instrumento é "admitido" na música clássica, este
já alcançou um nível ideal e não se pode mais promover uma mé-
lhoria de sentido geral. Se bem que sempre que há uma melhoria
de um lado, há um custo a ser pago pelo outro. Esta é uma hipótese
que a minha experiência e os meus constantes estudos sobre a
matéria têm confirmado e que começa,. para mim, a ter o caráter
de um fato já comprovado.
A questão que se coloca, no que diz respeito a estas modi-
ficações nos instrumentos, outrora apenas yistas como melhora-
mentos, é a seguinte: estarei disposto a pagar, por esta ou aquela
"conquista", um preço que se acha contido na natureza da própria
coisa? Como, por exemplo, renunciar às nuanças e sutilezas de tim-
bres para poder ganhar um maior volume sonoro (no caso do piano)
ou para adquirir a igualdade perfeita no plano da dinâmica e da
afinação dos semitons utilizáveis, abrir mão da afinação específica
de cada uma das tonalidades, bem como do timbre de praticamente
cada uma das notas (no caso da flauta entre outros). Poder-se-iam
citar exemplos desta natureza para praticamente todos os instru-
mentos. Na maioria das vezes, fascinadas pelos "mellioramentos"
alcançados as pessoas não percebem de imediato que, simultanea-
mente, alguma coisa está sendo sacrificada, e muito mênos a que
estão renunciando. Atualmente., com um certo distanciamento his-
tórico, tomamos quase todos os "melhoramentos" pm; mudanças
contidas no seio de uma evolução musical.
A conseqüência daí resultante é a de que é preciso executar
toda a música com o instrumentarium apropriado. Isto traz certa-
mente alguns problemas. Um outro corpo sonoro não signiftcaria
para o músico, por princípio, um outro meio de expressão? Será
que o ouvinte pode pular de lá para cá entre as diversas sonoridades
históricas ou será que ele escolhe, consciente ou inconscientemente,
uma determinada sonoridade, uma estética do som? Não estariam
estas questões ligadas também a campos secundá.rios da música: à
acústica das salas, que conttjbui de maneira decisiva parà a forma-
ção do som; ao sistema de afinação, quer dizer, àquílo que será
sentido como puro ou impuro com relação à altura da nota? E em
que medida uma função expressiva se determina por tais parâme-
. tros'? Por fim, resta a. pergunta: será que a música, como tal, repre-
r
88 o discurso dos sons

senta uma linguagem compreensível que transcende as épocas? ("Será !


l
que realmente compreendemos Mozart?" - como indaga Ionesco.)
A pergunta não pode óe modo algum ser respondida com um sim
tão facilmente como se poderia supor. É bem possível que a total
revolução que houve em nossa vida cultural nesses últimos cem
anos haja alterado de tal modo a execução e a nossa maneira de ~
escutar, que não estamos mais hoje em condições de observar e 'i
compreender aquilo que Mozart, por exemplo, dizia com sua mú-
sica e que era compreendido por seus contemporân,eos. Não pode--
mos mais compreender o quanto a música de cem anos atrás - e
com mais razão ainda, a música antiga - era parte integrante da
vida pública e privada. Não havia, praticamente, ocasião, fosse esta
festiva ou fúnebre, solene, religiosa ou oficial, em que não se to-
casse musica - e não como enfeite social, como hoje em dia.
Acredito que, do complexo inteiro de uma obra-prima musical, só
compreendemos e percebemos, hoje, uma fatia muito pequena -
de preferência os componentes estéticos - e que várias de suas fa-
cetas, provavelmente muito importantes, permaneçam irreconhecí-
v,;::is, pois perdemos as ferramentas que nos eram necessárias. No
cntant:o, esta fatia mínima que nos diz alguma coisa é tão rica, que
a aceitamos contentes, sem maiores exigências. Poder-se-ia, então,
dizer que, ao perdermos o presente, em troca, recebemos todo o
passado, só que não nos apercebemos que, deste, temos apenas
um pequeno fragmento, visto através de -diminuto ângulo.
É preciso nos perguntarmos se realmente possuímos a totali-
dade da história-- da música ocidental - na verdade, a história da
cultura em geral e se podemos, como músicos ou ouvintes, dominar
de forma adequada a diversidade estilística dos idiomas musicais.
Se assim fosse, a diferença de corpo sonoro e de sonoridade para
cada época poderia não ser mais um problema e sim uma ajuda
para compreender a diversidade bem maior da música como tal.
A alternativa de que se serve a vida musical atual é, sem dúvida,
pouco saudável: tanto em se tratando do repertório como da so-
noridade. O repertório uniforme que é executado em todo o mundo
não é absolutamente a tão citada "escolha da História"! Uma gran-
de parte dele jamais passou pelo julgamento imparcial dos séculos.
Este oráculo só começou a se pronunciar no século XIX, comple·
tamente marcado então pelo gosto da época. E no que diz respeito
à sonoridade, esta escolha muito pobre, que nossos ancestrais fi-
zeram numa época em que ainda dispunham de uma música con-
princípios fundamentais da música e da interpretação 89
1
temporànea muito viva, nos foi - e ainda nos é - proposta com
a sonoridade uniforme do século XIX (Bach como Mozart como
Brahms como Bartok), sonoridade esta que ridiculamente qualifi-
camos de "moderna", de sonoridade do nosso tempo.
Não podemos mais, como nossos ancestrais, ficar remexendo
ingenuamente nos tesouros do passado; precisamos dar um sentido
àquilo que fazemos, para não cairmos num pessimismo absoluto.
Acreditamos que uma compreensão profunda é perfeitamente pos-
sível e que todo caminho que nos leve neste sentido deve ser to-
mado. Naturalmente, a compreensão e a representação de uma obra
musical são extremamente independentes da realização sonora; 05
primeiros e mais importantes passos para uma interpretação mu-
sical sensata são, pois, invisíveis e os menos espetacularesj quando
muito, sensacionais, no verdadeiro sentido desta palavra. Visível
é o último passo, o trabalho com os instrumentos oríginais. Este
constitui a particularidade mais espetacular, a mais evidente numa
interpretação, embora seja muito freqüentemente empregada de
maneira inepta, sem as condições preliminares da técnica de exe-
cução, mas freqüentemente. também sem uma exigência musical
imperiosa. Assim, a autenticidade sonora pode constituir, para mui-
tas obras, uma ajuda fundamental, mas em outros casos, justamente
por causa de seu caráter espetacular, pode cair num absurdo feti-
chismo do som.

l
1

1
1
1
1;
Instrumentos antigos - sim ou não?

Sim ou não, aos instrumentos antigos? Bom, conforme-... ! A exe-


cução musical com instrumentos antigos, ou seja, com füstrumento:;
que por qualquer razão saíram de uso, tem infelizmente uma h1s-
tória tão suspeita, que quase ninguém consegue discutir o assunto
com tranqüilidade, sem falsa paixão. Apesar de me incluir no gru-
po dos partidários do sim - não sem razão - eu gostaria de ser
considerado, em relação a isso, como uma exceção. Creio argumen-
tar de maneira absolutamente objetiva e técnica e com úma paixão
autêntica, tal como espero que o meu interlocutor imaginário tam-
bém o faça.
Basta que se tenha um instrumento antigo na mão e já se é
tachado de "purista", de "historicista", de asceta estilístico ou de
músico que - por falta de intuição - é obrigado a estar refletindo
constantemente sobre cada nota. Palavras inocentes como "autentí-
cidade" ganham tom negativo; contesta-S@; a priori, a seus parl1-
clários o direito a uma prát!_Ç_a musical engajada e, até mesmo com
freqüência, competente. Mas, por quê? Mesmo com todos os sofis-
mas, não se consegue descobrir nada de negativo no conceito de
fidelidade à obra, e se este conceito está sempre sendo confundido
( aliás, indevidamente) com o de fidelidade às notas - ou de infi-
delidade à obra, o que dá no mesmo - a culpa não é dessa ino-
cente expressão, mas antes do seu mau emprego.
A conotação ligada à palavra "purista", nos dias de hoje, per-
mite exprimir algo de verdadeiro, por assim dizer, mas com um
piscar de olho depreciativo e pejorativo - o que evidentemente
muita gente não se furta de fazer. Como já aqui mencionamos, o
"nascimento" da música antiga nos anos 20 e 30 nos marcou a todos,
fôssemos partidários do "sim" ou do "não". A música àntiga, com
efeito, não era, de início, considerada como parte da vida musical
oficializada, mas como uma contra-música de fundamento ideoló-
gico, descoberta e praticada por seletos círculos de entusiásticos
diletantes. No, mundo profissional dá. música não se lhe dava granae
princípios fundamentais da música e da interpretação 91

importância e os s,eus propugnadores, por outro lado, não ligavam


para isso, pois queriam que tudo ficasse entre eles. Acreditava-se
ter encontrado na música antiga o "puro", o "verdadeiro" - tais era1:n
as metas dos movimentos da juventude após a Primeira Guerra
Mundial, os quais em geral se opunham à moral burguesa da so-
ci,edade de então.
A música oficial dos concertos sinfônicos e dos teatros líricos
passava por empolada, mentirosa, o sistema todo por "inautêntico".
"Romântico" tornou-se um termo pejorativo, enquanto que "objefr-
vo" adquiriu um sentido positivo. Brilhantismo técnico e perfeição
eram propriedades da música profissional e,. por isso mêsmo, algo
já suspeito. A música do Barroco e da Renascença, até então to-
talmente desprezada, parecia corresponder perfeitamente· aos novos
ideais: cantada ou tocada lentamente, ela oferecia poucas dificul-
dades técnicas, e pela ausência de indicações de dinâmica e tempo
se prestava de forma ideal a uma prática "objetiva".
Logo se iniciou também um distanciamento dos instrumentos
ii
convencionais, redescobrindo-se então a flauta doce, a viola da 11··
1.
gamba e o cravo. Devido à falta de grandes modelos e de uma tra- bi
Ili
dição contínua, as sonoridades eram inicialmente pouco consistenks, i'
1'
ásperas, mas mesmo assim consideradas verdadeiras e por isso belas.
·I
Naturalmente havia pessoas que, além dos resultados efetivament0
obtidos, entreviam as possibilidades técnicas e sonoras, e encontra-
vam nesta música um valor que extrapolava o ponto de vista ideb-
lógico. Alguns músicos profissionais logo passaram a interessar-se
por esta questão e também pelos novos instrumentos descobertos,
mas não eram levados a sério por seus colegas. A atividade deles
era considerada como hobby e não muito bem-vista, pois se temia
uma queda de qualidade nos instrumentos "normais" e
na música
"correta".
Nesta época inicial, aconteceram graves erros na fa6ricação dos
instrumentos, que ainda hoje repercutem. O exemplo mais marcante
é o cravo moderno. Os fabricantes rapidamente descobriram o novo
mercado e o crescente número de amadores que se abasteciam de
flautas doces e gambas e posteriormente de cromornes, cornetas,
trombones barrocos e muitos outros instrumentos "antigos". Como
instrumento acompanhador, o piano doméstico já não entrava mais
em questão, era necessário ter um cravo. A nascente indústria de
cravos - a demanda foi imediatamente enorme - não se ateve
aos antigos instrumentos ainda preservados, pois não se desejava

l
92 o discurso dos sons
:i:
! f'
1ii. renunciar aos conhecimentos e expenencias da moderna construção
'I
li
Ir de pianos. Assim, foram construídos instrumentos de teclado de
! todos os tamanhos e preços, construídos como pianos, mas com
' cordas pinçadas por plectra de couro bastante duro e posteriormente
f
\
feitas também de diversos materiais sintéticos.
Estes instrumentos foram batizados de "cravos", embora a sua
sonoridade estivesse para a de um verdadeiro cravo como a de um
violino de brinquedo feito de plástico está para a de um Stradiva-
rius. As falhas sequer eram notadas, pois não existiam critérios: os
músicos nem sabiam direito como deveria soar um cravo; a indús-
tria seguiu os caminhos mais fáceis e estava preocupada, principal-
mente, em fazer crescer o mercado e preencher o espaço nele aberto.
Estes instrumentos, rapidamente disponíveis em grande número, fo-
ram logo usados para· introduzir, na "grande vida musical", diver-
sas das obras de Bach executadas de acordo com "o estilo" e os
ouvintes passaram a classificar os seus sons estridentes e pouco
consistentes como "sonoridade or'iginal". Alguns músicos de fato
independentes intelectualmente, como por exemplo Furtwângler, re-
i
1 '
jeitavam o "cravo", dizendo que com aquilo não se podia fazer
música. Na realidade, não se tinha possibilidade de ouvir um ver-
dadeiro cravo, estando o mercado inundado de sucedâneos.
Foram necessárias décadas para que este mal-entendido fosse
esclarecido, e ainda levará muito tempo até que todos os músicos
e amantes da música substituam a idéia falsa do que seria a sono-
ridade de um cravo por uma imagem correta e precisa, e também
até que todos estes monsmíosos cravos desapareçam das salas de
concerto. E.nfin1, uma época de pioneiros tem o direito de cometer
seus erros, desde que a geração seguinte os reconheça e elimine.
Quis mencionar os primórdios do movimento da música antiga,
b.:i.stante •incomuns e interessantes do ponto de vista da história da
cultura, como também da sua influência sobre a construção d~
instrumentos, pelo fato de que tanto músicos profissionais, como
críticos musicais, como o público de concerto continuaram a ter,
durante décadas, uma atitude marcada pela situação particular deste
início. Caso um músko de formação moderna se interessasse, hii
trinta anos atrás, pelas possibilidades atuais de interpretação da mú-
sica dos séculos XVII e XVIII, por admirar-lhe os valores artísticos,
ele seria enquadrado, quase como um desertor, no grupo dos sectá-
rios diletantes e se, além do mais, por alguma razão escolhesse os
irn:trumentos antigos, então não seria mais levado a sério, pelo me-
princípios fundamentais da música e da interpretação 9,3

nos nos círculos da vida musical sinfônica; esta abertura que se


manifestava nos meios profissionais era naturalmente bem-vista
pelos partidários da música antiga, mesmo que a aspiração natural
à perfeição tornasse estes músicos suspeitos e, ideologicamente (a-
lando, não correspondesse aos ideais da coisa.
Com o passar do tempo, foi-se verificando que uma exec1,;çâo
com instrumentos antigos podia ser tão boa quanto com instru-
mentos modernos; a questão é saber por que um músico opta por
cst..:: ou aquele meio sonoro.
Os preconceitos m1c1ars serão certamente varridos nos próxi-
mos anos, a ponto de não haver mais motivos extramusicais - o
med(1 da discriminação ou problemas de mercado - a influ,enciar
no tipo de escolha. A ambição óbvia e natural de todo bom músico
é utilizar o melhor instrumento possível. É claro que alguns aspec-
tos históricos ou arqueológicos podem atrair a atenção por certo
tempo: como é que isto era feito antigamente, como 1.eria soado?
Porém não há músico que consiga, por muito tempo, fazer deste
inter,l"'sse é.• sua profissão; tal pessoa, eu a classificaria de historiad(;r,
O músico irá sempre ambicionar o instrumento ideal para ele. Gos-
tar.ia, assim, de me limitar, nas considerações que passo a fazer, aos
múskos que, por motivos exclusivamente musicais, preferem este
ou aquele mstrumento; aqueles que o fazem por interes,e unícá-
mcnte bíst<'JJ"ico para mim não contam. No melhor dos casos são
musicólogos, não intérpretes.
Temos mua}mente um iepertório à nossa disposição de urna
extensão _i:•mais vista. Hoje, são novamente executadas obras cor,-
cebr.das num espaço de oitocentos anos. Um conhecimento adequado
das condições históricas (ver o exemplo do cravo, citado acima,
que poderia, analogamente, ser estendido a muitos outros instru-
mentos) nos permite dispor de um arsenal de numerosos instrumen-
tos, das épocas mais diversas. O músico deveria ter o direito de
executar cada obra com o instrumento que lhe parec,e o mais con-
veniente ou com a combinação sonora que julga ideal.
Para tomar esta decisão, há apenas um ponto d,e vista deter-
minante: a realização de tal música fica melhor neste ou naquele
instmmento? Todo músico sabe que não existe um instrumento
absolutamente perfeito; certos defeitos precisam ser aceitos, seja o
instrumento antigo ou moderno. Comparando-se as qualidades e os
defeitos dos melhores instrumentos de diferentes épocas, constata-se
que não há uma evolução no sentido do pior para o melhor -
94: o discurso dos sons

como talvez seja o caso de aviões ou máquinas fotográficas - mas


que cada instrumento, até mesmo cada estágio de seu desenvolvi-
mento, possui vantagens e desvantagens, das quais os músicos e
construtores de instrumentos estavam plenamente conscientes. 13 bem
natural que exista uma estreita relação, e mesmo uma influência
recíproca, entre as idéias dos construtores de instrumentos de um
lado e as dos músicos - instrumentistas e compositores - do
outro. 13 assim que um certo número de louváveis invenções de
construtores de instrumentos, apesar de um sucesso inicial, não se
impuseram junto aos músicos (como o heckelphone, o arpeggione
etc.), enquanto que outras, como o Hammerklavier, * foram objeto,
de constantes metamorfoses, graças à estreita colaboração entre
compositores e construtores.
A evolução parece ter chegado a seu termo já há algum tempo:
há mais de cem anos nossos instrumentos permanecem, praticamente,
inalterados, fato deveras notável, levando-se em conta que, nos:
últimos séculos, quase todos os 1instrumentos passavam por decisivas
modificações no espaço de uns poucos anos, ou quando muito 110·
espaço compreendido entre duas gerações.
Poder-se-ia, assim, dar, finalmente, uma dupla resposta à per-
gunta feita: sim - pois todos os instrumentos em questão são, de:
um modo ou de outro, antigos; ou não - pois os instrumentos,
por terem alcançado uma petieição há mais d,e cem anos, natural-
mente não têm mais necessidade de serem modificados.
Para mim, só a primeira pergunta pe1'füite prosseguir no as-
sunto, pois a evolução dos instrumentos estagnou não devido a uma
perfeição alca:nçaêla - isso seria assustadoramente inumano -,.
mas porque nesta época toda evidência da música ocidental, e mes-
mo da cultura ocidental, se encontrou fortemente abalada. Só a
partir do momento em que a criação artística do presente não cor-
responde mais à demanda cultural, e em que não mais encaramos
a arte e a música do, passado com a arrogância de seres superiores
- coisa que numa época culturalmente sã ia de per si - é que
podemos julgar esta música corretamente. Este julgamento, porém,
tanto na música como nas belas-artes, deixou de ser um julgamento
valorativo, no sentido de considerarmos a música de uma época
superior a de uma outra.

* O mesmo que fortepiano ou pianoforte, predecessor do atual piano.


(N. do T,)
princípios f u/ldamentais da música e da interpretação 95

Entretanto, no caso de instrumentos musicais, por se tratar


de uma "ferramenta'', de um tipo de aparelho técnico, a idéia de
progresso sobrevive aqui mais persistentemente. O instrumento mu-
sical é também uma obra de arte. Os nomes dos grandes constru-
tores de instrumentos são e eram tão famosos quanto os de grandes
pintores: Antonio Stradivari, Johann Christoph Denner, Johann
Wilhelm Haas, Andreas Ruckers, Andreas Stein, Theobald Bohm
etc., criaram instrumentos musicais, que em seu gênero eram perfe!-
tos cerno obra de arte, e que não se podia melhorar sem ao mesmo
tempo deteriorá-los.
Tomando-se, por exemplo, um violino de Stradivarius, de cerca
de 1700 tal como ele o construiu, e montando-o com cordas de tripa,
com o cavalete, estandarte e alma antigamente usados e, por fim,
tocando-o com um bom arco da mesma época, iremos constatar
que este violino irá soar com muito menos volume que um violino
transformado no século XIX ou XX, montado com cordas moder-
nas e tocado com um arco moderno; contudo, o violino antigo
possui um grande número de sutis particularidades sonoras (sons
harmônicos, tipo de resposta, maneira de ligar os sons, equilíbrio
entre as cordas agudas e graves), que o violino moderno não possui
:i
mais. I'1:
Talvez devesse ainda explicar aqui, rapidamente, que mesmo
os instrumentos de cordas antigos, que há séculos vêm sendo utili-
1
zados, foram submetidos a transformações constantes impostas pelas
,
exigências de cada época. Eles eram transformados sem cessar, às '
vezes profundamente, e desta ''forma foram preservados até os dias ~
1

t'
de hoje, atravessando todas as mudanças de estilo e gosto. Um vio-
lino antigo tem atualmente uma sonoridade muito diferente daqu,ela
!
que tinha há duzentos ou trezentos anos, e um virtuose do violino
de nossa época certamente se surpreenderia tanto se ouvisse o seu
"Stradivarius" no estado original, quanto o próprio Stradivarius,, se
escutasse e visse o ·que, no decorrer desses anos, foi feito de seus
instrumentos. Não existe hoje praticamente nenhum dos grandes
instrumentos que não tenha sido muitas vezes transformado. Estas
transformações tinham como objetivo principal obter um maior vo-
lume,. bem como proporcionar uma maior igualdade e uniformidade.
Entrementes, como• os melhores instrumentos de corda antigos
eram de uma qualidade muito equilibrada, cada melhoria obtida '1

através de uma transformação- devia ser paga com um empobreci-


mento em algum outro domínio (prindpalmente sonoro). Tudo de-

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