Você está na página 1de 5

Valôres que se perdem. Valôres que se ganham. lnquietação de conservadores.

A
acusação à escola. Análise sumária do libelo. Escola tradicional e pseudo-escola nova.
Identidade doutrinária de uma e outra. A teoria da escola nova ou melhor, progressiva.
Reacionários e renovadores nova ou, melhor, progressiva têm o mesmo ideal...

NO INTERESSANTE PERÍODO de transição que estamos vivendo, a cada nova crise


que surge, uma nova inquietação entre os homens, preocupados com os valôres que se
vão perdendo nas idas e vindas da transformação social. Dispensável será dizer que há
nessas transformações mais conquistas de novos do que perda de antigos valôres.

Mas o homem é um animal de hábitos. E tôdas as vêzes que lhe renovam as


roupas ou os pensamentos, êle julga que perdeu qualquer coisa...

E na sua necessidade de localizar os culpados dessas perdas, investe contra isso e


contra aquilo.

Mais do que tudo, costuma investir contra as escolas. Se há crise nas letras, se
não se escreve como dantes, se a língua evolui e perde antigos sabores primitivos e
ingênuos, é que as escolas já não são as mesmas e urge reformá-las.

Se há crise do "espírito", como hoje se diz, se os valôres humanos, na sua perpétua


transformação, conquistam novas formas, e velhas ilusões se vão desfazendo em troca de
valôres realistas e ásperos, - é que as escolas estão a falhar na sua finalidade espiritual…e
urge reformá-las.

Se há crise de costumes e de maneiras e o homem, longe de se comprazer na


velha dissimulação habitual, reorganiza os seus valores com brutalidade quase, encarando
a realidade de face, - é que as escolas já não formam o caráter... e urge reformá-las ou
antes obrlgá-las a voltar aos velhos ídolos e velhas fórmulas.

É diante de uma dessas situações que nos encontramos presentemente. A


transformação por que passou a juventude atual, nos seus métodos de vida, nos seus
costumes, nas suas aspirações e nas suas coragens de ação, é interpretada como uma
singular crise de caráter. A nova geração está perdendo a forte marca antiga de disciplina,
solidez e segurança que fazia a honra da geração estável, conformada e cumpridora de
deveres que foi... a geração anterior. E não falta quem culpe a escola... E agora, os visos
da acusação, parece, se corroboram. As escolas passam, com efeito, por transformações
alarmantes. A velha autoridade dos mestres já não é a mesma, se é que existe ainda. A
própria autoridade dos livros começa a ser posta em dúvida. Há, pelo menos, uma porção
de livros, e de opiniões adversas, - todos sendo igualmente compulsados e lidos.
Critica-se tudo e tudo se questiona. Nada é sagrado. Diante de coisa alguma pára a
coragem corrosiva e insolente dêsses pensamentos adolescentes e vivazes... E pior do que
tudo isso ... Há sinais de aprovação por parte dos educadores. Estranhas teorias
percorrem as escolas - de autodisciplina e autogovêrno, de programas voluntários, de
liberdade de escolha e de recusa, de expressão das próprias personalidades, de respeito
por essas personalidades, e de subordinação dos interêsses reais da vida, - que são os dos
adultos - aos das crianças e dos jovens, que evidentemente não podem deixar de ser
caprichos e extravagâncias.
Mas, é evidente: semelhante educação está a modificar a nossa juventude. É a tal
"educação nova", a tal "liberdade" e a tal "expressão da própria personalidade" - que
explicam os desvarios, as loucuras, as rebeldias inesperadas da juventude moderna.

Assim fala, expressa ou tàcitamente, o reacionário, que vive dentro de cada um de


nós, repetindo a eterna linguagem dos reacionários de todos os tempos.

Examinemos, porém, o libelo de acusação. Não haverá, porventura, aquêle


famoso grão de verdade que o filósofo costuma dizer existe em todos os erros, nessas
vozes de reprovação que se levantam do passado ? Não será mesmo que a escola se está
a deixar levar exageradamente pelo "espírito do tempo", favorecendo, assim, em nossos
jovens, certas fraquezas sensíveis de caráter? Não será que tôda essa psicologia de nos
"exprimirmos a nós mesmos", de evitarmos a repressão clara ou dissimulada de nossas
personalidades, e da livre expansão de nossas tendências, tem realmente qualquer coisa
de excessivo e de... dissolvente?

Está ainda sob os meus olhos a caricatura de um humorista internacional. O


quadro é o de uma sala de estar. Duas crianças, uma com um serrote e outra com um
martelo e um formão, se entretêm, uma delas serrando a perna de uma cadeira e, outra,
arrancando a formão e martelo as teclas do piano. Os pais, que vinham chegando, se
retiram nas pontas dos pés, enquanto a mãe segreda: "Respeitemos as personalidades de
nossos filhos. . . "

Não haverá, realmente, na aplicação das teorias modernas o excesso de zêlo que a
charge do caricaturista procurou assinalar?

Não direi que não. Pode haver, na aplicação da teoria. Não nos parece, porém, que
haja na teoria, em sua compreensão exata.

Antes de mais esclareçamos que não são as escolas as responsáveis pelas


transformações do espírito da sociedade. As escolas são como os romancistas, também
acusados de corromperem a sociedade. Elas, como êles, refletem, tão sòmente, o que já
vai pela própria sociedade.

A teoria dos educadores busca ajustar a escola às necessidades dessas


transformações, procurando retificá-Ias e harmonizá-las mùtuamente.

A chamada teoria da educação nova é a tentativa de orientar a escola no sentido do


movimento, já acentuado na sociedade, de revisão dos velhos conceitos psicológicos e
sociais que ainda há pouco predominavam.

Essa revisão, longe de representar concessões a um conceito de vida menos sério


ou menos forte, exprime tão sòmente a correção, no sentido dessa sociedade, dos valôres
em que ela, verdadeiramente, se deve basear. Talvez, mais do que tudo, a idéia de que
educação, ou melhor, auto-educação - porque só a própria pessoa se educa - é, antes de
tudo, o resultado de se assumir direta e integralmente a responsabilidade dos próprios atos
e experiências.

Assumindo tal responsabilidade, aviva-se, na pessoa, a consciência dos processos


e conseqüências daqueles atos e experiências e, lògicamente, das lições que decorrem
daí.

Não é arrebatado pela sedução da liberdade pela liberdade que o educador


moderno prega a necessidade de uma escola onde os alunos sejam livres na escolha das
suas atividades, livres no planejá-las e livres no executá-las.
É porque o educador veio a verificar que só por êsse meio êles se disciplinarão, só
por êsse meio êles ganharão o hábito do esfôrço tenaz e continuado, só por êsse meio
assumirão a plena responsabilidade dos seus atos, só por êsse meio terão caráter e
integridade, habituando-se à unidade de propósitos, retidão de vontade e leal aceitação das
limitações e sacrifícios da vida.

A escola fundada nos “programas de lições prèviamente traçadas” e no regime do


“aprende ou serás castigado” ignorava, antes do mais, a complexidade do ato educativo e
tudo que podia, realmente, conseguir, eram crianças hábeis no jôgo da dissimulação, que
procuravam cumprir - para evitar a pena ou ganhar o prêmio - com o mínimo de
responsabilidade voluntária a tarefa obrigatória que lhes marcavam os mestres.

Passar daí para o domínio da escola onde não se faz senão o que der na veneta,
onde tudo seja prazer no sentido pejorativo e flácido dêsse têrmo, seria substituir o regime
do compulsório, desagradável e deseducativo da escola tradicional pelo regime do
caprichoso, extravagante e igualmente deseducativo de uma falsa escola nova.

Isso seria, porém, uma deformação monstruosa da teoria moderna de educação,


deformação que se vem basear num conceito errôneo da natureza humana,
paradoxalmente comum às duas concepções, só aparentemente antagônicas da escola
tradicional e dessa pseudo-escola nova.

Com efeito, ambas as concepções pressupõem a natureza do homem refratária à


disciplina, ao progresso, à marcha normal do saber e do aperfeiçoamento pessoal. Ou
impomos tudo isso, mal e compulsòriamente, ou largamos a brida ao homem para que êle
se entregue aos seus caprichos, suas desordens, sua ignorância e sua indisciplina.

A teoria moderna da educação está equidistante dêsses dois extremos. O seu


postulado fundamental é o de que a natureza humana tende, normalmente, a se realizar a
si mesma. E que se essa realização exige disciplina, método, contrôle de si mesmo e do
meio ambiente, e para isso esfôrço, tenacidade, paciência, coragem e sacrifício - o homem
tende a essas virtudes pelas próprias características de sua natureza.

Daí concluir que, dado o meio normal ou favorável, o homern se desenvolverá


correta e harmônicamente.

O que sucede, porém, com os falsos renovadores? Sucede que êles julgam que
aquêle meio "normal ou favorável", é o meio em que não haja solicitações de espécie
alguma, é o meio em que não homem não chegue mesmo a ocupar-se, e viva entregue aos
valvéns da sua fantasia, do seu capricho e da sua vontade desgovernada por falta de
estímulos sérios e fortes.

Semelhante educação só não resultará nos mais espantosos desastres, porque a


natureza humana reagirá, as mais das vêzes, procurando, por meio de qualquer ocupação,
conquistar a disciplina de si mesma, que é a sua forma de poder, a sua forma de ser, a
sua forma de expressão própria.

Não será, porém, sem graves perigos que tais experiências se hão de processar. E
são elas que justificam a charge do caricaturista a que nos referimos.

Porque, veja-se bem, no próprio conceito da teoria moderna de educação, não se


afirma que a natureza humana marche fatalmente para a aquisição dos meios de contrôle
do ambiente e de contrôle de si mesma - o que constitui a educação - mas, simplesmente,
que tende a isso. E tender é inclinar-se, é ter clisposição para alguma coisa, mas de que
se pode ser desviado, como se é pelo regime de licença e desordem de uma falsa escola
nova.

A verdadeira doutrina é a que enxerga na criança o impulso e a tendência e, na


experiência organizada da espécie, o têrmo e o alvo dessa tendência. Por meio da
experiência já adquirida da humanidade, deve o educador traçar o roteiro do
desenvolvimento individual, dirigir o seu curso, corrigir os seus desvios, acelerar a sua
marcha, assistir, enfim, em todos os passos, a obra da educação, de que é o guarda e o
responsável. A escola fundada em tais bases não será, pois, uma escola que forme
homens sem capacidade de esfôrço e de resistência. Muito ao contrário, os homens
formados nessa escola provaram, em sua plenitude, o prazer de conquistar, passo a passo,
o caminho de sua emancipação. Emancipação do desordenado, do incerto, do não
planejado, da ignorância, da prisão dos seus desejos e de suas paixões, para a liberdade
da disciplina de si mesmos, e para a fôrça e o poder de execução e realização que lhes deu
o hábito de controlar o meio externo, subordinando-o aos seus fins e aos seus planos
lúcidos e voluntários.

Alguém já disse que o homem é um animal de conquista. De rapina, chega a dizer


SPENGLER, no pessimismo ácido das suas violentas afirmações. Pela sua própria
natureza, tende ao domínio. Crescer e desenvolver-se é para o homem aumentar em
fôrça de compreensão, fôrça de realização e fôrça de expansão. Nenhuma dessas fôrças
se efetiva, porém, sem que êle experimente antes dirigir, coordenar e comandar as próprias
fôrças de seu desejo, do seu pensamento e do seu corpo.

A escola progressiva é a escola onde as atividades se processam com o máximo de


oportunidades para essa ascensão.

O meio que aí se desenvolve é um meio cheio de estímulos e de direção para


atividades que tenham continuidade, que exijam esfôrço e que sejam cabalmente
desempenhadas.

O educador moderno não acredita que o pensamento ou a ação se gerem no vácuo,


ou que a criança não precise de ser guiada e orientada no processo do seu crescimento
mental e social. Se o próprio crescimento físico, o mais automático dêles, precisa de ser
observado, corrigido e acompanhado, o que não diremos do seu crescimento mental e
social, onde as possibilidades de desvios, de paradas e de erros são mil vêzes maiores.

Só uma atitude falsa de educador, de reverência pouco lúcida para com tudo que é
infantil, em que se não distingam o transitório do permanente, o desviado do correto, o
importante do não importante, é que pode conduzir à organização de escolas cujo centro
sejam o capricho, a incerteza, a inconstância e a extravagância infantis - isto é - tudo que,
na criança, define os seus limites e as suas inferioridades.

Êsses limites e inferioridades não são desprezíveis, mas, longe de constituírem os


motivos de nossa indulgência desarrazoada, devem ser tão sòmente os nossos pontos de
partida. Sairemos dessas origens para chegarmos, afinal, ao homem educado, que não é
outro senão aquêle que sabe ir e vir com segurança, pensar com clareza, querer com
firmeza e executar com tenacidade, o homem que perdeu tudo que era desordenado,
informe, impreciso, secundário em sua personalidade, para tê-la definida, níida, disciplinada
e lúcida.

Êsse deve ser o produto da escola. Êsse o objetivo por que trabalham os que
desejam vê-Ia renovada e eficiente.
O reacionário e o renovador, dentro de cada um de nós, ou dentro da sociedade,
querem a mesma coisa, têm o mesmo ideal, mas vêem faces antagônicas do movimento
que nos poderia conduzir para a aspiração comum.

Você também pode gostar