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nay CANO wan eon r cine a ue Le : ee —_ $123 Sacristén, J. Gimeno Compreender e transformar 0 ensino / J. Gi- meno Sacristdn ¢ A. I. Pérez Gémez; trad. Ernani F. da Fonseca Rosa - 4. ed. ~ ArtMed, 1998. 1, Educagao - Observagies pedagégicas. I. Gémez, AL Pérez. IL Titulo Du 37.012 Catalogacao na publicagio: Ménica Ballejo Canto - CRB 10/1023 ISBN 85-7307-374-8 CAPITULO 1) As FUN(OES SOCIAIS DA ESCOLAS DA REPRODUCAO A RECONSTRUCAO CRITICA DO CONHECIMENTO E DA EXPERIENCIA A. I. Pérez Gomez EDUCAGAO E SOCIALIZACAO Aeducaco, num sentido amplo, cumpre uma iniludivel fungao de socia- lizac&o, desde que a configuragao social da espécie se transforma em um fator decisivo da hominizacao e em especial da humanizagao do homem. Aespécie humana, constitufda biologicamente como tal, elabora instru- mentos, artefatos, costumes, normas, cédigos de comunicagao e convivéncia como mecanismos imprescindiveis para a sobrevivéncia dos grupos e da espé- cie. Paralelamente, e posto que as aquisicées adaptativas da espécie as peculia- ridades do meio nao se fixam biologicamente nem se transmitem através da heranga genética, os grupos humanos poem em andamento mecanismos e sis- temas externos de transmissao para garantir a sobrevivéncia nas novas gera- gGes de sua8 conquistas histéricas. Este processo de aquisicéo por parte das novas geragdes das conquistas sociais — processo de socializacao - costuma de- nominar-se genericamente como processo de educacao. Nos grupos humanos reduzidos e nas sociedades primitivas, a aprendiza- gem dos produtos sociais, assim como a educagio dos novos membros da comuni- dade aconteceram como socializacao direta da geragao jovem, mediante a partici- pago cotidiana das criangas nas atividades da vida adulta. No entanto, a acelera- 20 do desenvolvimento histérico das comunidades humanas, bem como a complexizacao das estruturas e a diversificacao de fungées e tarefas da vida nas sociedades, cada dia mais povoadas e complexas, torna ineficazes e insuficientes os processos de socializagao direta das novas geragées nas células primérias de convi- véncia: a familia, o grupo de iguais, os centros ou grupos de trabalho e produgio. Para suprir tais deficiéncias surgem desde 0 inicio e ao longo da historia diferentes formas de especializacdo no processo de educagao ou socializacéo secundaria (tutor, preceptor, academia, escola religiosa, escola laica...), que con- duziram aos sistemas de escolarizagao obrigatéria para todas as camadas da populagao nas sociedades industriais contemporaneas. Nestas sociedades a preparacao das novas geracées para sua participacio no mundo do trabalho e na vida publica requer a intervencio de instancias especificas como a escola, cuja peculiar fungao é atender e canalizar 0 processo de socializagao. 14 J. Grveno Sacnistan # A 1 PEREZ Gomez _ 'A funcao da escola, concebida come jnstituicdo especificamente configu- rada para desenvolver 0 procest de socializacdo das novas geragoes, aparece puramente conservadora: garantit @ reproducao social e cultural como requisito para a sobrevivencia mesma da sociedade. ‘Por outro lado, a escola nao é a vinica instancia social que cumpre COM esta func&o reprodutora; a familia, os grupos socials, OS “neios de comunicacae S40 jnstancias primarias de convivéncia e jntercambios que exercem de modo dire- to o influéncia reprodutor da comunidade social. No entanto, a escola, ainda que cumpra esta funcao de forma delegada, especializa-se precisamente "™ Crercicio exclusive e cada vez mais complexe ¢ sutil de tal funcao. ‘Aescola, por seus contetidos, por suas formas e por seus sistemas de organizagao, introduz. nos alunos/ as, paulatina, mas progressivamente, as idéias, 0S conhecimentos, ns conceptoes, as disposigdes © 08 estos de conduta que a sociedade adulta requer. Dessa forma, Contribui decisivamente para 4 jnteriorizagao das idéias, Gos valores e das normas da Smunidade, de maneira que mediante ‘este pro- oreo de socializagao prolongado a sociedade industrial poss substituir os m Caniemos de controle externo da gonduta por disposigdes mais ou ‘menos ac tas de autocontrole. ‘He qualquer forma, como veremos 29 longo deste capitulo, 0 process de socializacao das novas geracoes nem 6 tao simples, nem pode ser caracterizado de modo linear ou mecanico, nem Ne sociedade, nem na escola. A tendéncia con- eSwvadiora logica, presente em toda a sosunidade social para reproduzit os Come portamentos, os valores, as Tddias, as instituicdes, 08 artefatos © 25 relagdes que ee iteis para a propria existéncia do grupo humano, choca-se inevitavelmente com a tendéncia, também l6gica, que escn modificar os caracteres desta forma, cdo que se mostram especialmente desfavoraveis para alguns dos individuos ot grupos que compoem © complexo e conflitante Yecido social. O delicado equili- See da convivéncia nas sociedades que vonhecemos ao longo da historia requer tanto a conservagao quanto a mudanga, e 0 mesmo OcorrE ‘com o fragil equilibrio {fa estrutura social da escola como gf¥PO Thumano complexo, bem como com as yelacdes entre esta e as demais instancias primédrias da sociedade. CARATER PLURAL E COMPLEXO pO PROCESSO DE SOCIALIZAGAO NA ESCOLA Dentro deste complexe e dialético processo de socializagao que @ escola cumpre nas sociedades contemporaneas, € necessario aprofundar a andlise para compreender quais S80 08 objetivos explicitos ou latentes do processo de Focializacao e mediante que sreeanismos e procedimentos ocorrem. fstudare- sce neste trecho os objetivos de tal processo, sbordando as formas e os modos de sua realizacao. seta claro para todos os autores e corentes da sociologia da educagao que 0 objetivo basico ¢ prioritario da socializagao dos ‘alunos/as na escola € preparé-los para sua incorporaco no mundo do traballo. Deseleas correntes funcionalistas até a teoria da correspondéncia, passam- do pela teoria do capital humano, Sas toque credencialista ou das diferentes posigées: marxistas e estruturalistas, todos, ainda que com importantes matizes Fiferenciais, concordam em admitir que, °© ‘menos desde 0 surgimento das SO diners industriais, a fungdo principal que ¢ Rociedade delega ¢ encarrega a escola 6 a incorporacao futura a0 Taundo do trabalho, (uma andllise detalhada dessas posic6es ‘pode ser vista em Fernandez Enguita, 1990b; Lerena, 1980). (COMPREENDER E TRANSFORMAR © ENSINO 15, As discrepancias entre tais enfoques te6ricos surgem quando se trata de definir 0 que significa a preparacdo para o mundo do trabalho, como se realiza este proceso, que conseqiiéncias tem para promover a igualdade de oportuni- dades ou a mobilidade social, ou para reproduzir e reafirmar as diferencas so- ciais de origem dos individuos e grupos. Como veremos ao longo deste capitu- lo, nao € facil definir o que significa, em termos de conhecimentos, disposigdes, habilidades e atitudes, preparar os alunos/as para sua incorporacao nao-confli- tante no mundo do trabalho, especialmente em sociedades pés-industriais, nas quais emergem diferentes postos de trabalho auténomos ou assalariados e nas quais o desenvolvimento econémico requer mudangas aceleradas nas caracte- risticas do mercado de trabalho. De qualquer forma, é importante indicar que a preparacao para o mundo do trabalho requer o desenvolvimento nas novas geracées, nao s6, nem princi- palmente de conhecimentos, idéias, habilidades e capacidades formais, mas também da formacao de disposigées, atitudes, interesses e pautas de comporta- mento. Estas devem ajustar-se as possibilidades e exigéncias dos postos de tra~ balho e sua forma de organizacao em coletividades ou instituices, empresas, administragdes, negdcios, servicos... ‘A segunda funcao do processo de socializacao na escola é a formacao do cidadao/4 para sua intervencao na vida publica. A’escola deve preparé-los para que se incorporem a vida adulta e publica, de modo que se possa manter a dinamica e 0 equilibrio nas instituigdes, bem como as normas de convivéncia que compéem o tecido social da comunidade humana. Como afirma Fernandez Enguita (1990a): “O estado responde pela ordem social e a protege em tiltima instancia e, em sua forma democratica, é um dos principais eixos do consenso coletivo que permite a uma sociedade, marcada por antagonismos de todo tipo, nao ser um cendrio permanente de conflitos” (p. 34). Preparar para a vida publica nas sociedades formalmente democraticas na esfera politica, governadas pela implacavel e As vezes selvagem lei do mer- cado na esfera econémica, comporta necessariamente que a escola assuma as vivas contradicdes que marcam as sociedades contemporaneas desenvolvidas. Omundo da economia, governado pela lei da oferta e da procura e pela estrutu- ra hierdrquica das relagdes de trabalho, bem como pelas evidentes e escandalo- sas diferencas individuais e grupais, impée exigéncias contraditérias aos pro- cessos de socializacao na escola. O mundo da economia parece requerer, tanto na formacao de idéias como no desenvolvimento de disposicdes e condutas, exigéncias diferentes as que demanda a esfera politica numa sociedade formal- mente democratica na qual todos os individuos, por direito, so iguais perante a lei e as instituigées. Acompanhando Fernandez Enguita (1990a) em sua excelente andlise, a sociedade é mais ampla do que o Estado. Na esfera politica, efetivamente, todas as pessoas tém, em principio, os mesmos direitos; na esfera econémica, no en- tanto, a primazia nao é dos direitos da pessoa mas os da propriedade. Dessa forma, a escola encontra-se frente a demandas inclusive contraditérias no pro- cesso de socializacao das futuras geracées. Deve provocar o desenvolvimento de conhecimentos, idéias, atitudes e pautas de comportamento que permitam sua incorporacao eficaz no mundo civil, no ambito da liberdade do consumo, da liberdade de escolha e participacdo politica, da liberdade e responsabilidade na esfera da vida familiar, Caracteristicas bem diferentes daquelas que requer sua incorporagao submissa e disciplinada, para a maioria, no mundo do trabalho assalariado. 16 J. Gimeno Sacwist4n F A. I. PEREZ Gomez Eevidente que dentre exigéncias tao dispares e, contraditérias descansa uma ideologia tdo flexivel, frowxa e eclética que faceita e assume a dissociagao ¢ bs inevitdveis respostas esquizofrénicas do individuo e dos grupos. Uma ideo Jogia que nao apela para a I6gica da razao para sua legitimagao, mas que se justifica exclusivamente com 4 Forca do que existe, a aceitacao ea consolidacao Wo status quo, da realidade que se impoe ‘inexoravelmente. Neale nentidin e wucialiceifiny & escola eemerSe © consolida, algumas vezes de forma explicita e em outras implicitamente, W's jideologia cujos valores S40 0 fndividualismo, a competitividade ea falta We golidariedade, a igualdade formal de oportunidades e a desigualdade vimatural” de resultados em fungao de capaci- dades e esforcos individuais. Assume-se a idéia de que a escola é igual para todos e de que, portanto, ‘cada um chega onde suas capacidades e seu trabalho pessoal Ihes permitem . Impoe-se 2 ideologia aparentemente contraditéria do individua- Tisme e do conformismo social (Goodman, 1989b; Green, 1990). ‘jg que apenas uns poucos individuos podem na realidade manifestar seus singulares pensamentos, valores € capacidade artistica, dentro da estruturs seein} a grande maioria é abandonada a uma fom pobre uniformidade (..) Enquanto se cria uma poderosa imagem Jo homem ou da mulher solitério fa~ at aige por si memo, as sociedadies que se baseiam™ M0 individualismo propor aeam, na realidade, poucas oportunidades pare 0" ‘maioria das pessoas ma~ Chong ts inulividualidade. E tim paradoxo significative que individualismo e mitGnformismo social coexistam como partes da mesma ‘ordem social dentro das oeedades avangadas” (Goodman, 1989b, p. 102)- Dessa forma, aceitam-se as caracteristicas de uma sociedade desigual e discriminatéria, pois aparecem como 0 resuiltado natural e inevitével das dife- rengas individuals evidenciadas em capacidades e esforcos. A ‘énfase no indivi- dualismo, na promocao da autonomia individual, no respeito a liberdade de cada um para conseguir, mediante a Moncorréncia com os demais, o maximo de suas possibilidades, justifica as desigualdades de resultados, de aquisicdes €, portanto, a divisio de trabalho ea configuracao hierarquica das relagoes sociais. O carater aberto da estrutura social para a mobilidade individual oculta a deter- minacao social do desenvolvimento do sujeito como conseqiiéncia das profun- das diferengas de origem que se introjetam nas formas de conhecer, sentir, espe- rar e atuar dos individuos. Este processo vai minando progressivamente as possibilidades dos mais desfavorecidos social e economicamente, em particular hum meio que estimula a competitividade, em detrimento da solidariedade, Gesde os primeiros momentos da aprendizagem™ escolar. Este é, pois, um dos pilares do proceso de s ‘cializaggio como reproducao na escola. As pessoas chegam a aceitar como inevitaveis, e inclusive convenien- tes, as peculiaridades ‘contraditérias da ordem existente, nao yestando senao a oportunidade de se adaptar e se preparar para ascender, mediante a participa- cao competitiva, até o maximo de suas ‘possibilidades na escala aberta para to- fos pela “igualdade de oportunidades” que a escola comum e obrigatoria ofe- rece. A instituigao educativa socializa preparando 0 cidadao/ da para aceitar como natural a arbitrariedade cultural que impoe uma formagao social contin- gente e historica (Bourdeiu e Passeron, 1977). Assim, a escola legitima a ordem. aerjente e se converte em valvula de escape das contradigdes € desajustes S0- isis. Como veremos a seguit, este processo de reproducao da arbitrariedade cultural implicita na ideologia dominante nem é linear, nem automdtico, nem isento de contradigoes e resisténcias, como mostraram 0s trabalhos de Appel e Giroux, entre outros. ‘Como a escola tealiza este complexo processo de socializacio? COMPREENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO 17, OS MECANISMOS DE SOCIALIZACAO NA ESCOLA De uma perspectiva idealista, habitualmente hegeménica na andlise pedagé- gica do ensino, geralmente se descreveu a escola e suas fungdes sociais, o processo de socializacio das geracdes jovens, como um proceso de inculcacio e dou- trinamento ideolégico. Dentro desta interpretagio idealista, a escola cumpre a fun- a0 de impor a ideologia dominante na comunidade social mediante um processo mais ou menos aberto e explicito de transmissao de idéias e comunicagao de men- sagens, selecdo e organizacao de contetidos de aprendizagem. Dessa forma, os alu- nog/as, assimilando os contetidos explicitos do curriculo ¢ interiorizando as men- sagens dos processos de comunicagao que se ativam na aula, vao configurando um corpo de idéias e representagdes subjetivas, conforme as exigéncias do status quo, a aceitagao da ordem real como inevitdvel, natural e conveniente. ‘No entanto, o processo de socializacao da escola, apesar da importancia do doutrinamento ideolégico e da inculcagio de representagdes particulares e idéias dominantes foi e é, sobretudo nas sociedades com f6rmulas politicas de representagao democritica, muito mais sutil, sinuoso e subterraneo. Isto ocorre para fazer frente as contradigbes crescentes entre seus objetivos politico-sociais € 08 estritamente econdmicos. Como afirma Ferndndez Enguita (1990b), desde o funcionalismo de Durkheim ao estruturalismo de Althusser, passando pelas andlises realizadas por Foucalt ou a teoria da correspondéncia de Bowles ¢ Gintis, apesar de suas diferentes concepcdes, todos eles consideram que: “A escola é uma trama de relacdes sociais materiais que organizam a ex- periéncia cotidiana e pessoal do aluno/a com a mesma forca ou mais que as relagdes de producao podem organizar as do operério na oficina ou as do peque- no produtor no mercado. Por que entao continuar olhando o espaco escolar como se nele nao houvesse outra coisa em que se fixar além das idéias que se transmitem?” (Fernandez Enguita, 1990b, p. 152). Aatencdo exclusiva a transmissao de contetidos e ao intercambio de idé as supés um corte na concepgao e no trabalho pedagégico induzido pela prima- zia da filosofia idealista e da psicologia cognitiva como bases prioritarias da teoria e da pratica pedagdgica. O influéncia crescente da sociologia da educacao e da psicologia social no terreno pedagdgico provocou a ampliacao do foco de anélise, de modo que se compreenda que os processos de socializagao que ocor- rem na escola acontecem também, e preferencialmente, como conseqiiéncia das praticas sociais, das relagSes sociais que se estabelecem e se desenvolvem em tal grupo social, em tal cenario institucional. (Os alunos/as aprendem e assimilam teorias, disposigSes e condutas nao apenas como conseqiiéncia da transmissao e intercambio de idéias e conheci- mentos explicitos no curriculo oficial, mas também e principalmente como con- seqiiéncia das interacdes sociais de todo tipo que ocorrem na escola ou na aula. ‘Além disso, normalmente, o contetido oficial do curriculo, imposto desde fora para a aprendizagem dos alunos/as, como veremos depois com mais profundi- dade, nao cala nem estimula 0s interesses e preocupagoes vitais da crianca e do adolescente. Converte-se assim numa aprendizagem académica para passar nos exames e esquecer depois, enquanto que a aprendizagem dos mecanismos, estratégias, normas e valores de interagao social, que requer 0 éxito na comple- xa vida académica e pessoal do grupo da aula e do colégio, configura paulatina- mente representacdes e pautas de conduta que estendem seu valor e utilidade além do campo da escola. Esta vai induzindo assim uma forma de ser, pensar e agit, tanto mais valida e sutil quanto mais intenso seja 0 isomorfismo ou seme- 18. J. Gimeno Sacwstan FA. I. Perez GOMEZ Jhanga entre a vida social da aula e as relagdes sociais no mundo do trabalho ou na vida publica. ‘Assim, para compreender a extensao, 2 complexidade e a especificidade dos mecanismos de socializagio na secola se requer uma andlise exaustiva das fontes e fatores explicitos ou latentes, académicos ow sociais, que exercem fufluancia relevante na configuracao do pensamento e acao dos ‘glunos/as. De pouco ou nada serve restringit 0 ae do abs efeitos explicitos dos contetidos far Bim explicitos do curriculo oficial. O due © ‘aluno/a aprende e assimila mais ou menos consciente, € que condiciona seu pensamento e sua conduta @ médio e Tongo prazo, se encontra além © aquém dos contetidos explicitos nesse curriculo. Kcompanhando a interessante andlise do modelo ecolégico de Doyle (Doyle, 1977; Pérez Gomez, 1983b), que & ‘esenvolverd mais amplamente NO capitulo dedicado ao ensino, € importante indicar que 0° mecanismos de socia~ izagdo na escola se encontram no tipo de estrutura de tarefas ‘académicas que se trabalhe na aula e na forma que adquire 2 cstrutura de relacaes sociais da escola e seaula, Convém nao esquecer que ambos 98 componentes da vida da aula e da Gscola encontram-se mutuamente ‘ctenrelacionados, de modo que uma forma de conceber a atividade académica requer uma estrutura de relagdes sociais compativeis e convergentes: De modo inves, ‘uma forma de organizar as rela- ges sociais e a participacao dos Ta adisoa & don grupo extge & favoueséas © nao outros modos de conceber e trabalhar as tarefas académicas. Nesse sentido, nao querendo ser exaustivo, ja que seré objeto de analise ao longo dos préximos capitulos, pode-sé afirmar que alguns aspectos do de- seavolwimento do curriculo, que indicamos seguir, sa0 especialmente rele- vantes para entender os mecanismos Ge socializago que a escola utiliza: 1. A selecio e a organizacio dos contetidos do curriculo. Concretamente, © que se escolhe e 0 que se omite Ga cultura publica da comunidade quem tem o poder de selecionar of jntervir em sua modificagao. 2, modo e 0 sentido da organizacao das tarefas académicas, bem como 6 grau de participagao dos alunos las na configuracéo das formas de trabalho. 3, A ordenagio do espaco e do tempo na aula e na escola, A flexibilidade ou rigidez do cenario, do programa © da seqiiéncia de atividades. 4. ts fermas e estratégias de valorizacéo da ‘atividade dos alunos/ as. Os critérios de valorizacdo, assim como 2 utilizacdo diagndstica ou clas Sificatoria dos resultados e a propria participacao dos interessados no processo de avaliacao. 5, Bs mecanismos de distribuicéo de recompen como recursos de mo- fivagdo exirinseca e a forma e grau de Provocct ‘a competitividade ou a colaboracao. 6,08 modos de organizar a participacso dos alunos/as na formulacao, So estabelecimento e no controle das formas ¢ normas de convivéncia e interagao. 7, Duclima de relagbes sociais presidido pela ideologia do individualismo oda competitividade ou da colaboracse & solidariedade. Enfim, a andlise deve abarcar os fatores que determinam o grau de parti- cipagéo e dominio dos préprios af anos/ as sobre 0 processo de trabalho e os GPijos de convivencia, de maneira que s¢ POs chegat a compreender 0 grav de alienagéo ou ‘autonomia dos estudantes quanto a seus prdprios processos de produgio e intercambio no ‘Ambito escolar. Somente assim se poderd enten- der os conhecimentos, as capacidades, as disposi¢ as de conduta COMPREENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO_19 que os estudantes desenvolvem como recursos mais adequados para resolver oom relativo éxito os problemas que a interagao eo intercambio real e simbélico colocam no cenario de relacdes sociais, as quais constituem o grupo da aula e a estrutura social da escola. CONTRADICOES NO PROCESSO DE SOCIALIZACAO NA ESCOLA Como j4 apontamos anteriormente, 0 processo de socializacdo como re~ produgao da arbitrariedade cultural dominante e preparacéo do aluno/a para 0 Prundo do trabalho e para sua atividade como cidadao/ da nao pode ser conce- ido como um processo linear, mecénico. Pelo contrario, é um processo comple- x0 € sutil marcado por profundas contradicdes e inevitaveis resistencias indivi- duais e grupais. Em primeiro lugar, a vida da aula como a de qualquer grupo ou institui- go social pode ser descrita como um cenario vivo de interagbes onde se fhtercambiam explicita ou tacitamente idéias, valores e interesses diferentes ¢ seguidamente enfrentados. “A escola 6 um cenério permanente de conflitos (...) O que acontece na aula é0 resultado de um processo de negociacao informal que se situa em algum. lugar intermedidrio entre o que 0 professor/a ou a instituicao escolar querem que os alunos/as fagam e 0 que estes esto dispostos a fazer” (Fernandez Enguita, 1990a, p. 147). De qualquer forma, na aula sempre acontece um processo explicito ou disfargado de negociacio, relaxada ou tensa, abertamente desenvolvida ou provocada por meio de resistencias nao confessadas. Inclusive nas aulas, em Gue reina uma aparente disciplina e ordem impostos unilateralmente pela auto” qdade indiscutivel do professor/a, e em particular em tais aulas, ocorre um potente e cego movimento de resisténcias subterraneas que minam todos os Brocessos de aprendizagem pretendidos, provocando, a médio e longo Praz0, Ro pensamento e na conduta dos alunos/as, os efeitos contrérios aos explicita- mente pretendidos. O professor/a acredita governar a vida da aula quando apenas domina a superficie, ignorando a riqueza dos intercambios latentes, Como Wood (1984) afirma: “Os alunos/as que pertencem a culturas dominadas, por meio de seus atos na escola, constantemente penetram na faldcia da escola e assim recusam suas mensagens ocultas, Uma variedade de situagdes ocorre com as mensagens nas julas, de modo que com freqiiéncia, sao completamente ignoradas (... estas men- agers ocultas amitide so diretamente recusaclas (..) outras vezes a0 simples” mente ignoradas de forma passiva (...) 0s estudantes criam suas préprias estrutuc vas culturais que utilizam para se defender das imposigoes da escola” (p. 231). Portanto, pode-se afirmar que na escola, como em qualquer instituigao social marcada por contradigdes e interesses em confronto, existem espacos de tolativa autonomia que podem ser utilizados para desequilibrar a evidente ten Gencia a reprodugao conservadora do status quo (Pérez Gomez, 1979). ‘Assim, 0 proceso de socializagéo acontece sempre através de um complicado e ativo Provimento de negaciacao em que as reagdes e resisténcias de professores/ as ¢ Alunos/ as como individuos ou como grupos podem chegar a provocar a recusa Sineficiéncia das tendéncias reprodutoras da instituigao escolar. iy i, 20 J. Gimeno SacnistAN E A. I, Pérez GOMEZ vBxiste nas escolas (..) mulheres ¢ homens que tratam de modificar as instituicgdes educativas em que trabalham. Para que essas modificagbes tenham feito duradouro é necessétio vincular tais atos a uma série de andlises das rela- Ses entre a escolaridade e a dinamica de classe social, race e sexo ae organiza nossa sociedade” (Apple,1989, p- 9)- im segundo lugar, o processo de socializagao na escola, como preparacio para o mundo do trabalho, encontra hoje em dia fissuras que sao importantes, que se referem as caracteristicas plurais e as vezes ‘contraditérias entre os dife- tentes Ambitos do mercado de trabalho. A simplificacao e especializacao do tra- fulho auténomo nas sociedades pos-industriais estabelecem pare © escola, como ja vimos, demandas plurais e contraditGrias no proves=o de socializacao. ‘A escola homogénea em sua estrutura, em Seus §tos e em sua forma de fancionar dificilmente pode provocar 0 a de idéias, atitudes e pautas de comportamento tao diferenciadas pare satisfazer as exigéncias do Pat do trabalho assalariado e burocratico (disciplina, submissso, padroniza- go) ao mesmo tempo que as exigencias do ‘4mbito do trabalho auténomo (ini- Gativa, isco, diferenciagao). 2, TiS; ma, nas sociedades avangadas contemporaneas, 2 escola enfrenta um processo de socializacao com demandas diferenciadas e contraditérias na propria esfera da ocupagao econémica. Comes = ‘parecer com forca a quebra em alguma medida do ispmrorfismo entre as relagbes sociais na aula € as que se cons” troem no ambito da produgio. Aquelas tém corespondencia em grande medida com as relages que se mantém no ‘mundo da empresa e das instituigGes burocré- ticas, mas no com as que emergem em ‘outros ambitos da economia. Em terceiro lugar, a correspondéncia da socializacao escolar com as exi- géncias do mundo do trabalho dificultam 2 compatibilidade com as demandas gens ce caferas da vida social, como a esfera politica, a esfera do consut® ea esfera das relagdes de convivéncia familiar nas sociedades formalmente democraticas. ‘Ao menos em aparéncia e no terreno) teGrico se manifesta uma grande contradigao entre a sociedade que requer para seu funcionamento politico e social a participacao ativa e responsavel d= fodos os cidadaos considerados por ‘feito como iguais, e essa mesma sociedade que na esfera econémica, ao me- nos para maioria da populacao, induza submisso disciplinada e & aceitagao de escandalosas diferengas de fato. ‘A contradicao evidenciada entre as exigéncias cas diferentes esferas da sociedade dissolve-se em grande parte, quando se comprova que também na prética a esfera politica e 0 ambito civil requerem apenas a aparéncia de comportamentos democraticos ou, em outras palavras, quando os mecanismos formais de participacso, independente da eficacia e ho- destidade de seu funcionamento, sao garantia suficiente para mantet © equili- brio instével de uma comunidade social assolada pela desigualdade e pela in- justica, Pense-se como as estruturas democraticas formais podem funcionar por seeic de mecanismos de delegagao distanciada, os parlamentos escolhidos a cada quatro ou cinco anos, sem outra necessidade de contatos & controles so- Giais intermedidrios, inclusive quando nao participem nem sequet 50% do elei- Cais JO out 30-40% da populagao nos processo eleitorais. Convém considerar, neste sentido, a tendéncia crescente Aabstencio eleitoral nas sociedades ociden- tais, cujo expoente mais escandaloso so os EVA. ‘Da mesma forma, na escola, os processos de socializacao para as diferen- tes, e na aparéncia contraditérias, esferas da vida social devem assumir um certo grau de hipocrisia e esquizofrenia em relacio as peculiaridades da socie- Gade. Mediante a transmissao ideoldgica — e em especial mediante a organiza- cdo das experiéncias académicas e sociais na aula -, 0 aluno/a comega a com- CoMPREENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO_21 preender e interiorizar idéias e condutas que tém correspondéncia com a aceita- (40 da dissociacao do mundo do direito e do mundo da realidade factual. "aceltee a contradigao entre aparéncias formais e realidades factuais faz par- te do proprio processo de socializacao na vida escolar, na qual, sob a ideologia da igualdade de oportunidades numa escola comum para todos, se desenvolve len- Bimas decisivamente o processo de classificacao, de exclusao das minorias e do posicionamento diferenciado para o mundo do trabalho e da participagao social. "A funcao compensatéria da escola em relagao as diferencas sociais de ori- gem dilui-se no terreno das declaracoes de principio, pois, como bem demons- traram Bernstein, Baudelot e Establet, Bowles e Gentis..., a orientagéo ho- mogeneizadora da escola nao suprime senao que confirma —e além disso legiti- reaper as diferencas sociais, transformando-as em outras de carater individual. Diferente grau de dominio na linguagem, diferencas nas caracteristicas cultu- rais, nas expectativas sociais e nas atitudes e apoios familiares entre os grupos e classes sociais, transformam-se na escola uniforme, em barreiras e obstaculos intransponiveis para aqueles grupos distanciados socialmente das exigéncias cognitivas, instrumentais ¢ de atitudes que caracterizam a cultura e a vida aca- démica da escola. As diferengas de origem consagram-se como diferencas de saida, a origem social transforma-se em responsabil idade individual. Quancio se evita esta andlise em profundidade, aceitam-se as aparéncias de umrcurniculo © certas formas de organizar a experiéncia dos alunos/as co- muns e iguais para todos, € facil aceitar a ideologia da igualdade de oportunida- des, confundir as causas com OS efeitos, aceitando a classificagao social como conseqiiéncia das diferencas individuais em capacidades e esforcos. Viver na escola, sob o manto da igualdade de oportunidades e da ideolo- gia da competitividade e meritocracia, experiéncias de diferenciacao, discrimi- nacdo e classificagao, como conseqiiéncia do diferente grau de dificuldade que tem para cada grupo social o acesso A cultura académica, é a forma mais eficaz de socializar as novas geragoes na desigualdade. Deste modo, inclusive os mais Gestavorecidos aceitarao e assumirdo a legitimidade das diferencas sociais € Sconomicas e a mera vigéncia formal das exigéncias democréticas da esfera po- Iitiea, assim como a televancia e utilidade da ideologia do individualismo, a concorréncia e a falta de solidariedade. SOCIALIZACAO E HUMANIZACAO: A FUNCAO EDUCATIVA DA ESCOLA Apesar da veracidade da argumentagao sociolégica sobre 0 caréter repro- dutor emibora complexo, da instituigao escolar, a relativa autonomia da ago na escola nao provémn exclusivamente das contradicdes internas © extent sao sgeradas no proprio processo de reprodugao conservadora da cultura dominan- Per fungao educativa ultrapassa, vai mais além da reproducio, pelo menos eoecnansnte A mesma tensdo dialética que aparece em qualquer formagéo so- Gal, entre tendéncias conservadoras que se propdem. garantir a sobrevivéncia shediante a reprodugao do status quo e das aquisicées histéricas ja consolidadas (Gocializacao) e as correntes renovadoras que impulsionam a mudanga, 0 pro- gresso e a transformacao, como condicao também de sobrevivéncia e enriqueci- Rees cia condigao humana (humanizacao), acontece de forma especifica ¢ sin- gular na escola ‘A funeao educativa da escola ultrapassa a fungao reprodutora do proces: co de sncialsracdo, ff que se apéia no conhecimento puiblico (a ciéncia, a Hloso- 22. J. Giweno SacristAN & A. I. Perez GOMEZ fia, a cultura, a arte...) para provocar 0 desenvolvimento do conhecimento priva- do de cada um dos seus alunos/as. A utilizacao do conhecimento publico, da experiencia e da teflexao da comunidade social ao longo dla historia introduz um instrumento que quebra ou pode quebrar o proceso reprodiutor. O conhecimento hnos diferentes Ambitos do saber é uma poderosa ferramenta para analisar e com= preender as caracteristicas, os determinantes € as conseqiiéncias do complexo proceso de socializacio reprodutora. A vinculasso iniludivel e prdpria da escola vem conhecimento puiblico, exige dela e dos que trabalham nela, que identifi- quem e desmascarem o cardter reprodutor das influéncias que a propria institui- do exerce sobre todos e cada um dos individuos que nela convivern bem como bs contetidos que transmite e as experiéncias e relacSes que organiza, Dessa forma, as inevitaveis e legitimas influéncias que a.comunidade exerce sobre a escola e sobre 0 processo de socializacao sistemdtica das novas geragoes devem sofrer a mediagfo critica da wtilizagio do conhecimento, em virtude Be stias exigencias e necessidades econdmicas, politicas e sociais. A escola deve litilizar esse conhecimento para compreender as origens das influéncias, seus mecanismos, intengdes e conseqiiéncias, e oferecer para debate ptiblico e aberto bs caracteristicas e efeitos para 0 individuo e a sociedade desse tipo de proces- sos de reprodugao. "A fungao educativa da escola, portanto, imersa na tensao dialética entre reprodugio ¢ mudanca, oferece uma contribuicao complicada mas especifica: wii Tear o conhecimento, também social e historicamente construido e condicionado, como ferramenta de andlise para compreender, para além das aparéncias superfi- Gais do status quo real - assumido como natural pela ideologia dominante ~, 0 Verdadeiro sentido das influéncias de socializacao e os mecanismos explicitos ou disfarcados que se utilizam para sua interiorizacao pelas novas geragGes. Deste modo, explicitando o sentido das influéncias que 0 individuo recebe na escola ¢ ha sodiedade, pode oferecer Aquela espacos adequados de relativa autonomia para a construcéo sempre complexa e condicionada do inclividuo adulto. ‘Utilizando a ldgica do saber, a estrutura de conhecimento construfdo criti- camente em cada ambito ea pluralidade de formas de investigacao e busca racio~ hal, deve-se analisar na escola a complexidade particular que 0 proceso de socializacao adquire em cada época, comunidade e grupo social, assim como os poderosos e diferenciados mecanismos de imposigao da ideologia dominante da Tgualdade de oportunidades numa sociedade marcada pela discrimina¢ao. Em nossa opinido, a fungao educativa da escola na sociedade pos indus- trial contemporanea deve-se concretizar em dois eixos complementares de in- tervengio: * Organizar o desenvolvimento radical da funcéo compensatéria. das desigualdades de origem, mediante a atengio e 0 respeito pela diver- sidade. * Provocar e facilitar a reconstrucio dos conhecimentos, das disposigées e das pautas de conduta que a crianga assimila em sua vida paralela € §nterior 4 escola, Como diria Wood (1984, p. 239), preparar os alunos/as para pensar criticamente e agir democraticamente numa sociedade nao-democratica. Desenvolvimento radical da funcao compensatéria Para nao sucumbir, ao longo do discurso, no terreno facil de um otimismo ingénuo, proprio de posicdes idealistas, convém partir de uma constatagio am- plamente aceita: a escola como instituisao social, que cumpre fungSes especifi- (COMPREENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO 23 cas e restringidas, ndo pode compensar as diferengas que uma sociedade de livre mercado provoca, dividida em classes ou grupos com oportunidades e possibilidades econémicas, politicas e sociais bem desiguais na pratica. Nas sociedades industriais avancadas, apesar de sua constituicao formal- mente democratica na esfera politica, sobrevive a desigualdade e a injustiga. A escola no pode anular tal discriminacdo, mas sim atenuar seus efeitos e des- mascarar o convencimento de seu carter inevitavel, se se propde uma politica radical para compensar as conseqiiéncias individuais da desigualdade social. Com este objetivo, deve-se substituir a légica da homogeneidade, impe- rante na escola, com diferentes matizes, desde sua configuracao, pela légica da diversidade. A escola comum para todos e o curriculo compreensivo que evita as diferencas ¢ a classificacéo prematura dos individuos em ramos diferentes do sistema escolar, que dao acesso a possibilidades profissionais bem diferentes, nao evitaram a classificagao lenta mas também definitiva dos alunos/as em fungao quase mecanica de sua origem social (Skibeck, 1989). Embora seja certo que tanto nos modelos uniformes quanto nos diversificados pode-se fomentar e reproduzir a desigualdade e discriminagio que existe na sociedade, uma vez consolidado 0 curriculo comum e a organizacao escolar unificada, gratuita e obrigatéria até os 16 anos, na maioria dos pafses desenvolvidos, o perigo de discriminagao aloja-se de modo mais decisivo nos modelos uniformes de trabalho académico. Defender a conveniéncia de um curriculo comum e compreensivo para a formacio de todos os cidadaos nao pode supor de modo algum impor a Idgica didatica da homogeneidade de ritmos, estratégias e experiéncias educativas para todos e cada um dos alunos/as. Se 0 acesso destes @ escola esta presidido pela diversidade, refletindo um desenvolvimento cognitivo, emocional e social eviden- temente desigual, em virtude da quantidade e qualidade de suas experiéncias intercdmbios sociais, prévios e paralelos & escola, 0 tratamento uniforme nao pode supor mais do que a consagragao da desigualdade e injustica de sua origem social. A intervencao compensatéria da escola deve revestir-se de um modelo didtico flexivel ¢ plural que permita atender as diferengas de origem, de modo que o acesso A cultura publica se acomode as exigéncias de interesses, ritmos, motivagées ¢ capacidades iniciais dos que se encontram mais distantes dos c6- digos e caracteristicas em que se expressa. Assim, a igualdade de oportunida- des de um curriculo comum na escola compreensiva obrigatéria nao é mais do que um principio e um objetivo necessario numa sociedade democratica. Sua realizac&o é um evidente e complexo desafio que requer flexibilidade, diversi- dade e pluralidade metodoldgica e organizativa. Como afirma Turner (1960), nas sociedades ocidentais a mobilidade patroci- nada foi substituida pela mobilidade competitiva. No primeiro caso, a sociedade seleciona desde o principio os que gozarao das melhores oportunidades escola- res e sociais. No segundo, deixa que a selecao aconteca a partir dos préprios alunos/as, pot meio de uma prolongada concorréncia entre eles. Concorréncia desigual desde o comeco, pela diferente posigao de partida em todos os aspec- tos, a partir do movimento em que se deparam com as tarefas escolares. A logica da uniformidade no curriculo, nos ritmos, nos métodos e nas expe- riéncias diddticas favorece os grupos que, precisamente, nao necessitam da escola para o desenvolvimento das habilidades instrumentais que a sociedade atual re- quer: aqueles grupos que, em seu ambiente familiar e social, se movem numa cultura parecida a que a escola trabalha e que, por isso mesmo, no trabalho acadé- mico da aula s6 consolidam e reafirmam os mecanismos, as capacidades, as atitu- des e as pautas d> conduta ja induzidos “espontaneamente” em seu ambiente. Pelo contrario, para aqueles grupos sociais cuja cultura é bem diferente da académica da aula, a légica da homogeneidade nao pode senao consagrar a (Z 24. J. Gieno SacnistAN & A. I. Penez GOMEZ discriminagao de fato. Para estas criangas, 0 trato de igualdade na aula supe de fato a ratificagao de um atraso imediato e de um fracasso anunciado a médio prazo, ja que possuem cddigos de comunicagao ¢ jntercambio bem diferentes Hos que a escola requer. Manifestam deficiéncias bem claras na linguagem ¢ na T6gica do discurso racional, assim como nas habilidades e capacidades que a vida académica requer, néo dispondo de apoio familiar nem quanto as expecta tivas snciais e profissionais que a escola pode lhes abrir, nem quanto ao clima de interesses pelo mundo da cultura. © desenvolvimento radical da func4o compensatéria requer a légica da diversidade pedagégica dentro do marco da escola compreensiva ¢ comum para todos. As diferencas de partida devem ser enfrentadas como um desafio pedagdgico dentro das responsabilidades habituais do profissional docente. A escola obrigatéria que forma o cidadao/ da nao pode dar-se a0 luxo do fracasso eccolar. A organizagao da aulla e da escola, e a formagao profis|sional do docen- te, devem garantir o tratamento educativo das diferencas trabalhando com cada aluno/a desde sua situagao real, e nao do nivel homogéneo da suposta maioria estatistica de cada grupo de classe. ‘O ensino obrigatorio, que nos paises desenvolvidos é, pelo menos, de 10 anos, deveria comegar antes para cobrir os anos da infancia, quando a maior plasticidade permite a maior eficdcia compensat6ria. Se a escola se propoe 0 desenvolvimento radical da intervencao compensatéria, mediante o tratamento: pedagégico diversificado, tem tempo ‘suficiente, respeitando os ritmos dos indi- viduos, para garantir a formacao basica do cidadao/ da, 0 desenvolvimento dos Instrumentos cognitivos, de atitude e de conduta que permitam a cada jovem se posicionar e intervir com relativa autonomia na complexa trama social. ‘A igualdade de oportunidades nao é um objetivo ao alcance da escola. O desafio erlucativo da escola contempornea é atenuar, em parte, os efeitos da desigualdade e preparar cada individuo para lutar e se defender, nas melhores condigdes possiveis, no cendrio social. ‘Queremos abranger 0 conceito de igualdade tanto a que tem sua origem nas classes sociais como a que se cria nos grupos de marginalizagao, ou nas deficiéncias fisicas ou psicoldgicas hereditarias ou adquiridas. Para todos eles, somente a ldgica de uma pedagogia diversificada no marco da escola compre” ensiva tem a chance de provocar e favorecer um desenvolvimento até o maximo de suas sempre indefinidas possibilidades. ‘Cabe fomentar, por outro lado, a pluralidade de formas de viver, pensar sentir, estimular o pluralismo e cultivar a originalidade das diferencas individu- sis como a expresso mais genuina da riqueza da comunidade humana ¢ da tolerancia social. Assim, se se concebe a democracia mais como um estilo de Vida ¢ uma idéia moral do que como uma mera forma de governo (Dewey, 1967), onde os individuos, respeitando seus diferentes pontos de vista e proje- tos vitais, se esforcam através do debate e da ago politica, da participacao e cooperacio ativa, para criar e construir um clima de entendimento e solidarie- dade, onde os conflitos inevitaveis se oferecam abertamente ao debate ptiblico. No entanto, na situacao atual, a divisao do trabalho e sua conseqiiente hie- rarquizagio numa sociedade de mercado provoca a diferente valorizagao social dos efeitos da diversidade. Nao é a mesma coisa, da perspectiva da considera- Go social, dedicar-se a atividades manuais do que a tarefas intelectuais, 4 eco- homia que & arte. Por isso, e como teremos oportunidade de desenvolver nos Capitulos seguintes, € delicado encontrar 0 equilibrio perfeito entre 0 curriculo qoimum e a estratépia didatica da diversidade dentro da escola compreensiva, se nos propomos evitar na medida do possivel os efeitos individuais da desi- gualdade social. CCoMPREENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO_25 A reconstrucio do conhecimento e da experiéncia O segundo objetivo da tarefa educativa da escola obrigatéria nas socieda- des industriais deve ser, em nossa opiniao, provocar e facilitar a reconstrucao dos conhecimentos, atitudes e formas de conduta que os alunos /as e alunos/ as assimilam direta e acriticamente nas préticas sociais de sua vida anterior e para- lela a escola. Na sociedade contemporanea, a escola perdeu o papel hegeménico na trans- missdo e distribuicdo da informagio. Os meios de comunicacao de massa, e em especial a televisio, que penetram nos mais recdnditos cantos da geografia, ofere- cem de modo atrativo e ao alcance da maioria dos cidadaos uma abundante baga- gem de informagées nos mais variados ambitos da realidade. Os fragmentos apa- rentemente sem conexao e assépticos de informacao variada, que a crianga recebe por meio dos poderosos e atrativos meios de comunicagao, e os efeitos cognitivos de suas experiéncias e interagdes sociais com os componentes de seu meio de de- senvolvimento, vao criando, de modo sutil e imperceptivel para ela, incipientes mas arraigadas concepsées ideolégicas, que utiliza para explicar e interpretar a realidade cotidiana e para tomar decisdes quanto a seu modo de intervir e reagir. A crianca chega a escola com um abundante capital de informagGes e com poderosas eacriticas pré-concepgdes sobre os diferentes ambitos da realidade. Como ¢ evidente, tanto o mundo das relacdes sociais que rodeiam a crianga como a esfera dos meios de comunicagio que transmitem informacées, valores ¢ concepgoes ideolégicas, cumprem uma fungio mais préxima da reprodugao da cultura dominante do que da reelaboragio critica e reflexiva da mesma. E ingénuo esperar que as organizagées politicas, sindicais ou religiosas, ou o ambito da em- presa, mercado e propaganda estejam interessados em oferecer ao futuro cidadao/ da as chaves significativas para um debate aberto e racional, que permita op¢6es relativamente auténomas sobre qualquer aspecto da vida econémica, politica ou social. Seus interesses, mais ou menos legitimos, orientam-se em outras diregdes mais proximas da inculeacao, persuasao ou sedugao do individuo a qualquer prego do que da reflexao racional e da comparacao critica de pareceres e propostas. Somente a escola pode cumprir esta fungao. Para desenvolver este com- plexo e conflitante objetivo, a escola compreensiva, apoiando-se na légica da diversidade, deve comecar por diagnosticar as pré-concepgGes e interesses com que os individuos e os grupos de alunos /as interpretam a realidade e decidem sua pratica. Ao mesmo tempo, deve oferecer 0 conhecimento priblico como fer- ramenta inestimavel de andlise para facilitar que cada aluno/a questione, com- pare e reconstrua suas pré-concepgdes vulgares, seus interesses e atitudes con- dicionadas, assim como as pautas de conduta, induzidas pelo marco de seus intercdmbios e relages sociais. Como afirma Bernstein (1987): “A escola deve transformar-se numa comunidade de vida e, a educagéo de- ve ser concebida como uma continua reconstrucao da experiéncia. Comunidade de vida democratica e reconstrucao da experiéncia baseadas no didlogo, na compara- cdo e no respeito real pelas diferencas individuais, sobre cuja aceitacao pode se assentar um entendimento mtituo, o acordo e os projetos solidérios. O que importa no é a uniformidade, mas o discurso. O interesse comum realmente substantivo € relevante somente é descoberto ou é criado na batalha politica democratica e per- manece ao mesmo tempo tao contestado como compartilhado” (p. 47). Isto nao significa de modo algum, que o conhecimento, as atitudes ou formas de atuacao reconstruidos pelo aluno/a na escola se encontrem livres de condicionamentos e contaminagao; sao 0 resultado, também condicionado, dos novos intercambios simbdlicos e das novas relagées sociais. A diferenca esta 26. J. Gaveno SACRSTAN & A, I. Perez GOMEZ em que o aluno/a teve @ oportunidade de conhecer os fatores € influéncias que om dicionam seu desenvolvimento, de comparar diferentes propostas © modos de pensar e fazer, de oseentrar e ampliar sua limitada esfera de experiéncia € conhecimento e, enriquecido pela comparagao & pela reflexao, chegar a opgoes que sabe provisérias. Enfim, ora Gla no provocar a reconstrucao das Proc” pagées vulgares, facilita 0 processo de aprendizagem permanente, ajuda o in- Gividuo a compreender que todo conhecimento ou ‘conduta encontram-se Con- Gicionados pelo contexto e, portant, requerem ser comparados com reptesen- tacoes alheias, assim como coma ‘evolugao de si mesmo e do proprio contexto. "Mais do que transmitir informacao, a fungao educativa da escola contem- poranea deve se orientar Pare provocar a organizagio tacional da informa¢ao Fragmentéria recebida ¢ 2 Paro rstrugao das pré-concepsoes acriticas, formadas pela pressdo reprodutora do ge torial, por meio ie mecaniaanos © meios de comunicagao cada dia mais poderosos € de influéncia mais sutil. ‘Agora, nao se consegue reconstrugao dos conhecimentos, atitudes e modos de atuagao dos alunos/as, nem exclusiva, nem prioritariamente, me- diante a transmissdo ou intereambio de idéias, por mais ricas © fecundas que sejam. Isto ocorre mediante a vivencia de um tipo de relacoes sociais na aula wna escola, de experiéncias de aprendizagem, intercambio atuagao que justifi- quem e requeiram esses NOvOS modos de pensar e fazer. De acordo com o primeiro objetivo © Picativo anteriormente proposto, colo” car a exigéncia de provocar a veconstrucao por parte dos alunos/ as, de seus conhe- “Gmantos, atitudes e modos de atuacao Tequct tra forma de organizar 0 espaco, © tempo, as atividades e as yelacdes sociais na aula ena escola. E preciso transformar a vida da aula e da escola, de ‘modo que se possam vivenciat praticas sociais € fatercambios académicos que induzam > sobdariedade, & colaboracio, & expe timentacao compartilhada, assim, como 2 Gutro tipo de relagdes com conhecimen- toea cultura que estimulema busca, a comparacio, a critica, a iniciativa e 3 criacao. Provocar a reconstrucao critica do ‘pensamento e da ago Nos alunos/as exige uma escola e uma Hula onde se possa experimentar ¢ viver & comparagao Sberta de pareceres e a participacao Bal de todos na determinacao efetiva das formas de viver, das normas ¢ padroes Gi governam a condita, assim como fue relagoes do grupo da aula e da < letividiade escolar. Apenas vivendo de forma democratica na escola pode se aprender a viver e sentir democraticamen- te na sociedade, a construir e respeitar 0 delicado equilibrio entre a esfera dos interesses e necessidades individuais e as exigéncias da coletividade. ‘Como veremos nos préximos capitulos, a fungao da ‘escola, em sua Ver tente compensatoria e em sua exigencia de provocar a reconstrugao critica do pensamento e da acdo, requer 2 transformagao radical das praticas pedagdgicas srsociais que ocorrem na aula € na egcola e das fungdes e atribuicses do profes- sor/a. O principio basic que se Shiva destes objetivos e funcoes da escola fontemporénea é facilitar e estimular a participagao ativa ¢ critica dos alunos/as nas diferentes tarefas que sé desenvolvem na aula e que constituem o modo de viver da comunidade democratica de aprendizagem. — Uae Da SEN UE eT rer ea Baum rd Sem compreender 0 que se Leva Meter) pedagégica é uma reproducao de habitos ¢ [ese ese) 4 Ceo MTs vos Ce Lact oo ee ote demandas OC CUE Circa Celi reciae wc EG CM Een Colo mene acest oo ote( Eo Ta lcoeee WSIS eee IEC MEY condigao da pratica eee CR ate MMos IC) Loe) Sa Sorta mon Une tuin Omet eT ome CoS CIM MMUTUT Coser oo fo UTolLUTuetelol(-cwe 9 Ue lol a aoc oMeol MMe ie eC CRC en(ec) cro 3 oculta as dimensées éticas, sociais, (oLeteClelelel acca} se PSol Isto a ek Moe RSS ey educativo. 7 Seon aero eaG) CiSiomes SEU Eos Coe) UES ESN eee Chae eUy € Sao essenciais para dar contetido e sentido a realidade Le 7 es ier 198N 85-7307-374-8 tl sae NARS ate} UOT Otel car UU AU eta uct Roe a sla! eer)

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