Você está na página 1de 224
Pedy kegs 2 \) BY av aay aca Belarc) U i i INTRODUCAO ”G Ks ee” Sumario Introduedo — Robert Darnton Personagens principais VOLUME I 0 legislador Bissot renuncia a chicana pela filosofia 2. Os dois irmaos se perdem nas planicies da Champanha _ Jantar melhor que 0 almogo 4. Quem eram as pessoas que ceavam assim ao relento nas planicies da Champanha 5. Despertar. O bando sai a caminho: aventuras que nada tém de extraordinario 6.O canto do galo 7. Depois disso, diga que nao ha assombragdes 8. O desfecho g. Aventuras noturnas, dignas da luz do sol e da pluma de um académico VOLUME I 10. Terriveis efeitos das causas u. Rudes dissertagées 12, Paralelo entre monges mendicantes ¢ proprictrios 13. Diversos projetos muito importantes para 0 bem priblico 14. A hospitalidade 15. Amanha dos cartuxos 16. Panegirico do clero 17. Um rato que sé tem um buraco logo € pego 18. Como Lungiet foi interrompido por um milagre 19. Que nao serd longo 20. Histéria de um peregrino 21. Continuacao da historia de um peregrino Notas Introdugio Enquanto 0 marqués de Sade rascunhava Os 120 dias de Sodoma na Bastilha, outro marqués libertino numa cela préxima escrevia uma novela — igualmente afrontosa, cheia de sexo e caltinia, e mais reveladora acerca do que tinha a dizer sobre as condigées dos escritores e do escrever em si. No entanto, o vizinho de Sade, 0 marqués de Pelleport, hoje € completamente desconhecido, e¢ seu romance, Os boémios, quase desapareceu. Apenas uma meia diizia de exemplares é encontrada em bibliotecas pelo mundo. A edig&o americana (2010), a primeira desde 1790, torna acessivel uma importante obra da libertinagem do século XVIII ¢ também abre uma janela para o mundo dos poetas de séto, aventureiros literdrios, filésofos desvalidos e escritores medfocres. Mais de um século antes de La Bohéme, mostra como a boémia veio a existir A boémia pertence a belle époque. Puccini a pds em musica e a fixou firmemente na Paris do fim do século XIX. Mas La Bohéme, executada pela primeira vez em 1896, olhava para tras, para una era anterior, para a Paris pré-Haussmann de Scenes de la vie de Boheme de Henry Murger, publicado pela primeira vez em 1848. Murger baseou-se em temas que ecoavam da Paris de Ihisées perdidas, de Balzac (primeira parte publicada em 1837), ¢ a imaginagao de Balzac se estendia até 0 Antigo Regime, onde tudo comecou. Mas como comegou? Os primeiros boémios habitavam uma rica paisagem cultural, que jamais foi explorada. No século XVIII 0 termo “bohémiens” geralmente se referia aos habitantes da Boémia ou, por extensdo, a ciganos (romenos), mas comegara a adquirir um sentido figurado, que denotava desocupados que viviam conforme seus caprichos.' Muitos fingiam ser homens de letras.2 Na verdade, em 1789, a Franga criara wna enorme populacio de autores indigentes — 672 deles somente poctas, segundo uma estimativa contemporanea.+ A imaioria deles vivia em Paris totalmente sem recursos, sobrevivendo da melhor maneira que podia por meio de trabalhos medifocres e migallias de patronato. Embora em seu caminho Sramessenn dont beldacdes atraetites 2 tieeis, conte Manon Lescaut, ada havia de romantico nem de operfstico em sua vida. Viviam como o sobrinho de Rameau, nao como Rameau. Seu mundo limitava-se a Grub Street. fi claro que Grub Street, tanto uma expresso como um local, refere-se a Londres, A rua em si, que corria através do baitro miseravel, infestado de crimes, de Cripplegate, vinha atraindo escritores fracassados desde os tempos elisabetanos. No século XVIII, esses literatos haviam mudado para outros enderegos, a maioria deles ma S perto de livrarias, cafés e teatros do adro da igreja St. Paul, de Fleet Street, Drury Lane e Covent Garden. Mas 0 Grub-Street Journal (1730- 0 mitica do meio, e 0 mito continuou a se 7) perpetuou uma vers espalhar por meio de obras como Dunciad, de Alexander Pope, Opera dos mendigos, de John Gay, Moll Flanders, de Daniel Defoe, Tale of a Tub [Conto de um tonel], de Jonathan Swift, e Life of Mr. Richard Savage, de Samuel Johnson. Nao existiria nada compardvel em Paris? Certamente. Paris tinha uma populacio cada vez maior de escritores, mas estavam espalhados em sdtos por toda a cidade, nao em algum bairro especifico, e jamais dramatizavam ou satirizavam suas atribulagdes em obras que capturassem a imaginagao da posteridades F. verdade que O sobrinho de Rameau, de Diderot, Pauvre Diable, de Voltaire, ¢ partes das Confis des de Rousseau evocavam a vida de Grub Street, Paris, e a cultura literdria da cidade permeia obras menos conhecidas como Tableau de Paris, de Mercier. ‘Todavia, antes de Balzac e Murger nenhum escritor trouxe “la boheme” a vida — ninguém a nao ser o marqués de Pelleport. Seu romance, publicado em dois volumes em 1790, merece ser resgatado do esquecimento porque oferece um passeio pelo interior das zonas mais coloridas, porém menos familiares, da vida literdria. Fé também uma excelente leitura. Creio que mereca um lugar préximo, ou na prateleira exatamente abaixo, das obras-primas que o inspiraram: Dom Quixote ¢ Tristram Shandy — e cu o colocaria varias prateleiras acima das obras de Sade, Mas 0s leitores julgarao por si prépri dar Os boémio posso sucumnbir a um caso de entusiasmo biogréfico. Tropecei nesse Poréin, primeiro, uma adverléncia: ao recon livro quando estava tentando reconstituir a vida do seu autor, um dos personagens mais interessantes que jé encontrei durante os muitos anos cavoucando arquivos. Anne Gédéon Lafitte, marqués de Pelleport, foi, de acordo com todo mundo que o conheceu, um velhaco, um iratante, um patife, um sujeito realmente canalha. Encantava e seduzia aonde quer que fosse, deixando uma trilha de sofrimento atras de si. Tinha uma vida miserdvel, pois foi deserdado pela familia ¢ dependia da pe passou a maior parte da vida na estrada. Seu itinerdrio o levou pelas rotas que ligavam Grub Street, Paris, a Grub Street, Londres, e seu spicdcia e da pena para escapar da pentiria. Moi um aventureiro que romance oferece um relato picaresco de ambas. Assim, qualificado ou nao como grande literatura, ele merece ser estudado como guia para um mundo que esté a margem da trilha tao batida da_histéria sociocultural Grub Street, Paris, tinha muitas saidas. Levavam a Bruxelas, Amsterdam, Berlim, Estocolmo, Sao Petersburgo e outras cidades com culturas préprias de Grub Street. Quando escritores parisienses descobriam sua carreira estagnada, seu aluguel atrasado ou uma lettre de cachet [carta de prisdo ou de exilio] pairando sobre sua cabeca, pegavam a estrada e buscavam fortuna onde quer que pudessem explorar 0 fascfnio por todas as coisas francesas. Fram tutores, tradutores, mascateavam panfletos, dirigiam pegas, metiam- © no jomalismo, aventuravam. se no mundo das publicagdes e espalhavam a moda parisiense por toda parte, de boinas a livros. A maior colénia de expatriados estava em Londres, que recebera de bragos aberlos refugiados desde a perseguigdo dos huguenotes e as aventuras do jovem Voltaire. A cidade tambéin desenvolveu seu proprio estilo de jormalismo marrom, primeiro durante as guerras de panfletos do ministério Walpole, depois durante as batalhas parlamentares e de imprensa provocadas por John Wilkes.7 Os refugiados franceses aprenderam truques da imprensa britanica, mas tambéin aperfeicoaram um género proprio: o libelo (libelle), um relato escandaloso da vida privada de grandes figuras da corte e da capital. O termo nao é muito usado em francés moderno, mas pertencia ao vocabuldrio comum no comércio livreiro no Antigo Regime; ¢ os autores de tais obras eram registrados nos arquivos da policia como libelistas (Jibellistes) Os libelistas de Londres aprenderam a sobreviver nas Grub Streets de ambas as capitais. A maioria adquirira treinamento basico como escritor sob encomenda no submundo literdrio de Paris, atravessando o Canal para fugir da Bastilha. Depois de sua chegada, conseguiam sustento lecionando, traduzindo e fornecendo para as prens 5 inglesas textos que tentavam satisfazer a demanda por literatura ilegal na Franga Varios expatriados iam para o jornalismo, particularmente como colaboradores do Courrier de ['Europe, uma publicagio quinzenal editada em Londres ¢ reimpressa em Boulogne-sur-Mer, que fornecia os mais completos relatos sobre a Revolugao Americana ¢ a_ politica britanica ace eis aos leitores franceses durante as décadas de 1770 € 1780. Outros viviam de libelos. Gracas a informacio provida por informantes secretos em Paris ¢ Versalhes, criavam livros e panfletos que caluniayam todo mundo, desde o rei ¢ seus ministros até figuras publicas e atrizes. Seus trabalhos circulavam pelo comércio de livros clandestino na Franga e eram vendidos abertamente em Londres, especialmente numa livraria na St. James Street dirigida por um expatriado de Cenebra chamado Boissigre $ O publico leitor francés vinha desfrutando de revelagdes sobre a vida privada de figuras ptiblicas por décadas sem voltar-se contra 0 governo, mas os libelos publicados depois de 1770 pareciam inusitadamente ameacadores para as auloridades, porque surgiam numa época de aguda crise politica. Depois de esmagar 0 Parlamento em 1771, 0 ministério liderado pelo chanceler René Nicolas Charles Augustin de Maupeau passou a governar com um poder tao arbitrério que muitos franceses acreditaram que a monarquia havia degenerado em despotismo. A calma retornou com a a ensao de Luis XVI em maio de 1774, mas intrigas e escAndalos ministeriais alingiram o climax com o Caso do Colar de Diamantes, de 1778, fazendo a opiniio ptblica ferver as vésperas da Revolugao. Ao longo de todo esse periodo, funciondrios do govemo aprenderain a ser cautelosos com a apiniao piblica — nao que esperassem que alguém tomasse a Bastilha, mas porque uma caltinia bem colocada podia prejudicar relacdes dentro do delicado sistema de protecao e clientela no cora' alhes. » da politica em Vers Um bocado de caltinia vinha de Londres. Um dos primeiros e mais famosos libelos, Le Cazetier cuirassé [O gazetista blindado], de 1771, foi escrito pelo libelista mais importante da colonia de expatriados, Charles Théveneau de Morande. Adotava 0 chanceler Maupeou como alvo principal e manchava reputagées por toda a corte e toda a capital, a tal ponto que, quando Morande anunciou uma sequéncia, um ataque a iadame Du Barry intitulado Mémoires secrets Pune femme publique, 0 governo recorreu a medidas extremas. Primeiro tentou raptar ou assassinar Morande. Quando o golpe falhou, decidiu comprar seu sil@neio. Enviou Beaumarchais, que na época era mais alivo como agente sccreto do que como dramaturgo, para negociar; ¢ apés uma série de intrigas barrocas dignas do Figaro, Morande concordou em suprimir a edicdo inteira pela vultosa soma de 32 mil libras ¢ uma anuidade de 4,8 mil libras. Os outros libelistas logo seguiram seu exemplo. Em vez de meramente escrever para satisfazer a demanda de literatura escandalosa na Franga, transformarain a producao de libelos numa operacéo de chantagem. Morande retirouse de campo, assumindo uma carreira ainda mais lucraliva como espido para o governo francés, o que Ihe deu a oportunidade de denunciar seus ex- colegas. O principal sucessor de Morande foi Pelleport, um escritor igualmente inescrupuloso, mas muito mais talentoso. Usando Boissiére como intermediario, convidon 0 governo francés a fazer ofertas para uma série de libelos, que prometeu destruir se 0 prego fosse certo. Os libelos incluiam Les Passe-temps d’Antoinetie, um relato sobre a vida sexual da rainha; Les Amours du vizir de Vergennes, um altaque semelhante ao ministro das Relagdes Exteriores, e Les Petits Soupers et les nuiis de l’Hé6tel Bouillon |Jantares fntimos e noites no Hétel Bouillon], revelagées sobre orgias conduzidas pela princesa de Bouillon € seus criados com seu parceiro do momento, o marqués de Castries, ininistro naval da Franga durante a guerra americana. Nenhum exemplar das duas primeiras obras sobreviveu, talvez porque Pelleport tenha apenas inventado os titulos, com intencdo de compor os textos se © governo francés nao se dispusesse a pagar o suficiente. Mas ele imprimiu uma edigao de Les Petits Soupers ¢ a usou como isca em negociagdes de chantagem com um inspetor de policia de Paris 3 secreta chamado Receveur, que chegou a Londres em 1783 em mis para erradicar os libelos e, se possivel, sets atitores. Com Receveur disfargado de baréo de Livermont ¢ Pelleport escondendo-se atras de Boissiere, os lances chegaram a 150 luises de ouro (3,6 mil libras, o equivalente a dez anos de salatio de um trabalhador nao qualificado). Mas Pelleport se manteve em 175 luises (4,2 mil libras). Receveur nao estava autorizado a chegar a esse valor; retornou a Paris, confuso com sua inabilidade para lidar com os ardis dos libelistas (eles o levaram a excursdes frenéticas ¢ despropositadas por pubs e livrarias) e os costumes dos ingleses (que falavam numa linguagem impossivel e tinham nogées estranhas, tais como habeas corpus, julgamento por iti e; iberdaderde: fimprenga); Pellepott foi adianie-e comercializou: Les Petits Soupers, dando-lhe uma continuacdo muito mais perniciosa, Le Diable dans un bénitier [O diabo na agua benta], um libelo sobre a miss: dessupiimié: Hhelos: ‘Mesmo sevitando: notes: e ihfommacdes comprometedoras, Pelleport celebrou os escritores expatriados como campoes da liberdade, zombando de Receveur € seus superiores como agent da policia parisiense em Londres. O elenco de vildes inclufa o tenente- s do despotismo que haviam tentado estabelecer um ramo secreto general da policia em Paris, os mais poderosos ministros em Versalhes, © seu principal agente disfargado em Londres: Morande No entanto, Morande triunfou no final, porque conseguiu algumas provas de Le Diable dans un bénitier com corregdes na caligrafia de Pelleport. Fle as enviou as autoridades francesas como evidéncia de que tinha atuado como conselheiro secreto de Receveur: Pelleport havia se dos libelis tornado chefe de opera 1s cm Londres. Se 0 governo conseguisse pdr as maos nele, abandonando a politica de concordar em pagar chantagem, poderia dar um fim a toda aquela indiistria, Usando Samuel Swinton, proprietério do Courrier de ['Furope, como intermedidrio, a policia atraiu Pelleport a Boulogne-surMer imediatamente o prendeu. Trancafiaram-no na Bastilla em 11 de julho de 1784, e no dia seguinte prenderam seu grande amigo, Jacques-Pierre Brissot de Warville, futuro Ifder dos girondinos durante a Revolucao Francesa. Brissot havia se juntado aos expatriados em Londres, onde tentou fundar um clube filoséfico (ou Lycée) ¢ se sustentar por meio do jomalismo. Mas seus projetos ameagaram ruir e, quando viajou para Paris para levantar dinheiro com alguns financiadores potenciais, a policia 0 prendeu sob suspeita de colaborar com Pelleport Brissot permanecet: na Bastilha por quatro meses; Pelleport ficou quatro anos ¢ trés meses, uma pena inusitadamente longa. Os poucos documentos que sobreviveram daquele perfodo nos arquivos da Bastilha sugerem que a policia considerava Pelleport um peixe gratido, fonte dos mais ultrajantes ataques a corte francesa, e a correspondéncia do ministro das Relagdes Exteriores existente nos arquivos confirma essa impressao. O conde de Vergennes, ministro das Relagdes F:xteriores na época da prisdo de Pelleport, interveio ativamente nas tentativas da policia de Paris de reprimir os libelistas em Londres. Apesar das repetidas peticSes, Pelleport nao tinha esperanca de ser solto da Bastilha até depois da morte de Vergennes em 13 de fevereiro de 1787. Mesmo entao, permaneceu confinado por mais um ano e meio — alé 3 de outubro de 1788 —, quando um novo ministro com jurisdigdo sobre a Bastilha, Laurent de Villedeuil, finalmente concordou com sua soltura Nessa €poca, a campanha contra os libelis ninguém em Versalhes, ¢ a atencdo ptiblica havia se voltado para os is do interessava mais a debates sobre a Assembleia dos Estados Gerais.9 Enquanto Brissot saiu para tornar-se um dos lideres da Revolugdo Francesa, Pelleport sumiu na obscuridade. Talvez devessern permitir que ld permanecesse. Apenas um erudito chegou a lhe dedicar um minimo artigo. No Bulletin du bibliophile de 1851, Paul Lacroix, uma autoridade em literatura francesa do século XVIII, escreveu uma breve nota sobre Os boémios, “um romance filoséfico e satirico, que é completamente desconhecido ¢ do qual quase toda cépia foi destrufda pelo impressor”. Lacroix descreve a obra como se segue: Fis um livro admiravel, eis um livro abominavel. Fle merece ser colocado junto aos romances de Vollaire ¢ Diderot, pela espirituosidade, pela verve, pelo prodigiaso talento que nos assombri e encontrar. E, também deveria nos emt ter um lugar junto as infamias do marqués de Sade ¢ as grosseiras obscenidades do abade Dulaurens [uma alusio as novelas devassas ¢ muito populares de Dulaurens, tais como Le Compére Mathieu]. lo logo essa singular obra alice a curiosidade dos amantes dos livros, com cerleza seri muito procurada. Apesar da predigao de Lacroix, nenhum estudante de literatura francesa Jamals se interessou por esse extraordinario Tomance, uma espécie de “chefd’oewvre d'un inconnu” [obra-prima de um desconhecido], mais espirituoso © malévolo do que o liwo publicado sob esse titulo por Thémiseul de Saint-Hyacinthe em 1714. Como Saint- Hyacinthe, Pelleport satiriza 0 pedanti smo, mas seus pedantes eram philosophes, e cle os agrupou com outros escritores fracassados sob uma categoria que constiliin um novo tema lilerdrio, proclamado pelo titulo do livro: Os hoémios. Os boéinios de Pelleport ainda nao tém um substantivo abstrato — a boémia — ligado a eles, mas nao sio meros ciganos ou vagabundos, como no sentido anterior da palavra. Pelleport joga com essa associagio, porque os descreve como uma trupe de desocupados vagando pelo norte da Franga, vivendo as custas da terra — em sua maior parte, roubando galinhas dos camponeses. Porém seus boéinios sao homens de letras marginais, os mesmos personagens de Grub Street que haviam colaborado com cle na colnia de expatriados franceses em Londres. Em vez de aparecer sob uma luz relativamente favordvel, como em Le Diable dans un bénitier, sio agora um bando de velhacos. Pronunciam inlerminaveis arengas filosdficas, uma mais absurda que a outra, berram ¢ brigam feito estudantes, interrompendo apenas para engolir 0 que conseguein surrupiar furtivamente dos quintais ao longo do caminho. Pelleport disfarca seus nomes ¢ até muda os disfarces, de modo que os personagens reaparecem sob diferentes pseud6nimos 4 medida que a cena muda eo narrador conduz o leitor por uma sucesso de episdios extravagantes O narrador também interrompe a acao colocando-se fora da histéria e dirigindo-se diretamente ao leitor, as vezes com comentarios sobre a acio, as vezes com digressdes, As vezes com um didlogo no qual leitor e narrador trocam chistes, discordam, brigam e¢ se entendem. As digressdes sAo mais da metade do texto. S40 ensaios sobre temas de todos os tipos, 0 que quer que ocorra na imaginacgao do narrador — viagens, tdlicas militares, pobreza, mulheres e, em especial, as duras atribulagdes dos autores. O autor € 0 proprio narrador, uma voz anduima na primeira pessoa do singular. Sua tllima digressio se transforma numa autobiografia de pleno direilo, que dé a ele a oportunidade de inserir-se na ac&o sob un dis poeta errante que acabou de ser solto da Bastilha — e dar um final para arce proprio — ele 6 um 0 Livro, embora praticamente sem desfecho, juntando-se aos boémios em troca de uma refeigéo em sua taverna favorila na cidade onde nasceu. Cheio de vivida prosa, parédia, didlogos, duplos sentidos, humor, irreligiosidade, critica social, incidentes escandalosos ¢ obscenidade (mas sem linguagem vulgar), Os boémios € um tour de force. Enquadra- se em dliversos géneros, pois pode ser lido como novela picaresca, roman a eléf, colegio de ensaios, tratado libertino e autobiografia, tido ao mesmo tempo. Em tom ¢ estilo evoca 0 Dom Quixote, que Pelleport cita como principal fonte de inspiragao. Mas também comparavel a Jacques le fataliste (que Pelleport pode ter lido, porque foi publicado em 1796), Candido, Gil Blas, Le Compere Mathieu e Tristram Shandy. Que tal obra nao tenha absolutamente lugar nenhum na_histéria literdria parece impressionanle, mas sua inexisténcia no corpus da literatura francesa pode ser explicada pelas circunsténcias de sua publicacdo. Fla surgiu em 1790, anonimamente, sem o nome do impressor, ¢ sob un endereco que podia ter sido falso: “Paris, Rue des Poilevins, Hdtel Bouthilliex”."| Nessa época, os leitores franceses devorava tanto material relacionado com a Revolucdo que tinham pouco apetite para qualquer outra coisa. O romance de Pelleport nao contém nenhuma alusio a polftica ou a eventos correntes além de 1788. ‘Tem lugar num mundo que parece firmemente fixado, nado prestes a explodir num levante social. Pelleport deve ter composto a narrativa — um texto complexo, bem tecido, que ocupa 451 paginas no formato 13 X 19 cm — durante’seu confinamento na Bastilha, onde ieve tempo de sobra e suprimento adequado de material para escrever. Mas 0 livro ja ata cbsolétd quiarids suteial impreNtd, AIS Onide/sel, Heuhiin jeri’ mencionou apés sua publicagio, ¢ apenas meia dtizia de exemplares sobreviveu, em seis paises diferentes.” Quer Os boémios seja ou nao reconhecido pelas suas qualidades literdrias, merece ser estudado como fonte acerca da vida em Grub Street durante a década de 1870. Fazé-lo, porém, requer alguma familiaridade com a carreira de Pelleport ¢ sua relacdo com outros escritores fracassados em Londres, especialmente Brissot. Um relatério policial, que data de pouco antes de sua priséo em 1784, fornece alguma informacao sobre as origens de Pelleport: Ele é filho de um cavalhciro da corte de Monsicur [irmao mais velho do rei Foi expulso de dois regimentos nos quais servi, Beauce ¢ Isle-de-rance, na india, ef preso quatro ou cinco vezes a pedido de sua farn‘lia por atrocidades desonrosas. Passou dois anos vagando pela Suga, onde se casou ¢ veio a conhecer Brissot de Warville. Foi estudante na Escola Militar, nado o melhor que por lé ja passou. Tem dois irmaos que também receberam treinamento ali ¢ que foram dispensados desonrosamente, como ele, dos regimentos nos quais eslavam.'3 Em suma, Pelleport era um desclassificado, Nascido numa familia aristocratica, afundou nas fileiras dos libelistas apés uma carreira fracassada no Exéreito ¢ uma conduta suficientemente desonrosa para pasar algum tempo na priséo a pedido de sta familia. Material adicional selecionado de outras fontes completa a figura. Segundo um sumério do dossié de Pelleport nos arquivos da Bastilha publicado em La Bastille dévoilée [A Bastilha desvelada], de 1789, ele nasceu em Stenay, uma cidadezinha perto de Verdun. Quando migrou pata a Suica no final dos anos 1770, casourse com uma camareira da esposa de Pierre-Alexandre DuPeyrou, protetor de Rousseau. em Neuchatel. Fistabeleceramrse na cidade de La Locle, na cordilheira do Jura, onde ela Ihe det pelo menos dois filhos, ¢ cle conseguitr emprego de tutor na casa de um fabricante local. Em 1783, Pelleport deixara a familia no intuito de buscar fortuna em Londres. Isso 0 levou aos libelos e aos quatro anos na Bastilha. E-nquanto esteve preso, sua esposa, que fora sustentada por parentes na Suiga, foi a Paris para suplicar sua libertagdo. No entanto, nada conseguiu, e escapou da indigéncia mediante a intervencao do cavaleiro Pawlet, un irlandés envolvido em projetos educacionais em Paris, que conseguiu que cla ¢ as criancas fossem sustentadas por um orfanato para ilhos de oficiais militares Quando finalmente foi solto, Pelleport juntouse aos parentes em Stenay, depois voltou a Paris bem a tempo de presenciar seus ex- captares serem linchados pela multidao em 14 de julho. Tentou salvar 1’Osme, 0 major da Bastilha que tratou a cle ¢ a outros prisionciros com delicadeza, e por pouco escapou com vida. Essa exposigéo a violéncia das ruas pode ter impedido Pelleport de aderir plenamente aos revoluciondrios. Como panfleldrio radical que fora silenciado pelo Estado, poderia ter assumido uma nova carreira como jornalista ou politico. Brissot e muitos outros demonstraram que havia oportunidades sem fim para um autor de pena agucgada e reputagdo de martir do despotismo. Mas Pelleport desapareceu de vista depois de 14 de julho. Aparentemente retirou-se para Stenay, deixando seus filhos no orfanato; quando produziu alguma coisa para 0 prelo durante os meses seguintes, foi uma novela bizarra, andnima, que nao tinha nenhuma relevancia pata os grandes acontecimentos de 1789." Nenhuma relevancia direta. Mas Os boémios tinha um anti-herdi, Jacques-Pierre Brissot, que aparece no primeiro capitulo como seu principal protagonista: “Bissot” (o “sot” sugerindo tolice), um fildsofo pulguento com cérebro de galinha. Depois de ser ridicularizado ao longo do texto por seus absurdos dogmaticos, reaparece no final como um imbecil vendedor de roupas velhas em Londres, chamado “Bissoto de Cuerreville” (um trocadilho com o nome completo de Brissot, Brissot de Wanville). Tendo rascunhado o texto durante sua longa permanéncia na Bastilha, Pelleport pode té-lo publicado em 1799 com a intencdo de minar o crescente poder de Brissot como editor do Le Patriote francais e grande herdi da esquerda. Mas nao ha motivo para desconfiar que Pelleport tinha qualquer simpatia pela direita, O romance nao tem nenhuma mensagem politica aberta ¢ condenava muitas das injusticas na Franca pré-1789. Pelleport provavelmente o publicou pelas mesmas razSes que moveram outros autores — para ve- lo impresso € conseguir algum dinheito. Mas por que gnardava tanta hostilidade em relagdo a Brissot? Haviam sido amigos intimos. No entanto, sua amizade se rompeu na Bastilha, e essa experiéncia, a medida que Pelleport a remofa durante seus longos anos de confinamento, pode ajudar a explicar as circunsténcias e mesmo parte da paixdo por tras de Os boémios. Pelleport ¢ Brissot nao poderiam ter sido mais diferentes em termos de tetmperamento'e’passado pesoal, Pelleportiera un’ marqués; Briasot o décimo terceiro filho de uma doceira. Pelleport cra dissoluto, cinico ¢ espirituoso; Brissot, sério, trabalhava duro e nao tinha senso de humor. Enquanto Pelleport servia como oficial na India, Brissot dava duro como funciondrio de um escritério de advocacia. Com ajuda de uma pequena heranga, comprou um diploma barato de advogado da Universidade de Reims (que vendia seus diplomas depois de realizar exames meramente formais), mas abandonou o direito para se dedicar a escrever, esperando uma carreira como sucessor de Voltaire e D’Aembert. Embora tivesse acabado por produzir toda uma prateleira de tratados sobre assuntos como as injustigas do sistema judicidrio criminal, comecou rabiscando panfletos de segunda e levando a vida de Grub Street. Precisou fugir para Paris em 1777 para escapar de uma lettre de cachet que 0 mandaria para a Bastilha por caluniar uma dama conhecida pelo seu papel respeitével num saléo. Fm 1778, comecou a trabalhar como jomalista, corigindo provas da edicdo frincesa do Courrier de ['Europe, editado em Boulogne-sur-Mer. futura esposa, Félicité, e a mae dela, Marie-Cathérine Dupont, cujo Ali conheceu sua sobrenome de solteira era Clery, vitiva de um mercador — duas pe soas que também figurariam com proeminéncia em Os boémios. Quando Bri amigo da familia, Edme Mentelle, professor de geografia na Escola Militar em Pari de Mentelle, esperando obter reconhecimento como philosophe sot retornou a Paris em 1779, madame Dupont 0 recomendou a um Brissot tornou-se membro regular do efreulo literdrio potencial. Foi aqui que seu caminho se eruzou com o de Pelleport, ex- aluno de Mentelle, que também se propunha a deixar sua marca na Reptiblica das Letras. Mas, enquanto a trajet6ria da carreira de Brissot parecia apontar para cima, Pelleport comecou a decair nas fileiras literdrias ramo a uma exist@ncia improvisada como literato de aluguel ¢ aventureiro. T'rocou Paris pela Sufga, onde esperava obter emprego na Sociélé Typographique de Neuchatel. Mas tudo que conseguiu foi um emprego de tutor na Le Locle préxima, ¢ em pauco tempo viu-se sobrecarregado com uma famiflia.'5 Brissot enviou varias cartas a Pelleport durante a segunda metade de 1779. Sob a errénea impressio de que seu amigo conseguira um emprego na Société Typographique, propds toda uma série de livros para serem impressos. Pelleport passou as propostas adiante ao editor, que acabou produzindo a maioria das obras de Brissot antes da Revolucao Francesa, mantendo extensa correspondéncia com ele. Trés das primeiras cartas no dossié de Brissot em seus arquivos sao enderecadas a Pelleport e escritas num tom familiar que seria impensavel no século XVIII, exceto em trocas entre amigos intimos Brissot chama Pelleport de “meu caro amigo”, “meu caro”, “mio caro” e nunca usa a saudacdo formal costumeira, “seu mais humilde e obediente criado”. Em 31 de agosto de 1779, ele encerra a carta da seguinte mancira: “M. Mentelle ¢ sua esposa esto em excelente forma e lhe asseguram sua amizade. Esteja persuadido de que a minha havera de durar tanto quanto minha vida, Adeus, eu o abraco e vou para a cama, Sempre seu”. Numa carla posterior, nao dalada, mas de 1779, ele comenta: “A bela vizinha 6 sempre encantadora. Nos nossos rapidos Brissot referiase a encontros, com frequéncia recordamos ve Félicité Dupont, que deixara Boulogne para seguir seus estudos sob Menielle ¢ logo se tormaria sua noiva.® Cinco anos depois, Brissot ¢ Pelleport ocupavam celas separadas na Bastilha. A cyidéncia sobrevivente, embora incompleta, mostra como suas carreiras convergiram ¢ como a Bastilha deixou sua marca nas vidas da Grub Street. Brissot conta seu lado da histéria num memorial, escrito provavelmente em 1785, que reduzia um complexo conjunto de circunstancias a uma conclusao simples: ele era uma vitima inocente do despotismo, e Pelleport era um libelista dissoluto.7 Ao justificar sua propria conduta, Brissot deixa implicito que conhecia Pelleport apenas superficialmente antes de se encontrarem em 1783 € que evitava os expatriados franceses em Londres, porque sua imoralidade 0 repugnava. Achava-o especialmente depravado: “Pelleport tinha sagacidade de sobra, modos corajosos, um desenfreado gosto pelo prazer e um escdrnio profundo por todo tipo de moralidade”.* Brissot reconhece que tentou ajudar Pelleport, esperando reuni-lo a familia que abandonara na Suga. No decorrer dessa atividade caridosa, Brissot ficara sabendo das especulagées de Pelleport em libelos, mas recusou-se a ter qualquer coisa a yer com aquilo — e portanto ficou horrorizado quando seu interrogador na Bastilha Ihe disse que fora preso por cumplicidade na publicagao de Le Diable dans un bénitier. Aqui Brissot_ nao estava sendo totalmente sincero. Embora nao livesse ajudado a escrever o livto, havia cooperado na sua distribuigao. Enquanto estava em Londres, recebera uma carta de seu agente em Ostend informando o recebimento de um lote de Diables que Brissot The enviara ¢ mencionando ter passado 125 exemplares para um livreiro em Bruxelas ¢ seis para um livreiro em Bourges." Aléin disso, a policia havia confiscado uma carta de Pelleport a um livreiro em Bar-le-Duc anunciando 0 embarque de seis Diables com diversas obras de Brissol* ¢ tinha descoberto correspondéncia mais comprometedora entre Brissot e seu agente em Paris, um negociante chamado Larrivée. Essa correspondéncia mostrava que, além da comercializagao dos libelos, as relagdes de Brissot com Pelleport envolviam uma sombria ligacdo nos negécios.?! F'ssa informagao veio A tona no interrogatério de Brissot na Bastilha Os registros policiais de interrogatéries sao documentos dramaticos, escritos na forma de didlogos: perguntas e respostas transcrilas por um escrivao, cada pagina rubricada pelo prisioneiro como testemunha de sua preciso. As perguntas mostram a polfcia preparando ciladas para sua pr evitar as ciladas e reter informagdes comprometedoras. Brissot foi deixado sa; as respostas documentam as tentativas dos prisionciros de cozinhando” na cela por varios dias sem ser informado do motivo do seu encarceramento e sem saber que Pelleport também fora preso. Foi interrogado trés vezes por Pierre Chénon, um veterano oficial de policia — primeiro em 3 de agosto, depois em 21 de agosto image not available image not available image not available mulheres © prazer, que 6 sua perdigao”.s° Em seguida, esbocava sua enviesada carreira no Exército, como um andarilho “reduzido a expedientes”, € como pai e marido desnaturado na Suica. Fornecia detalles condenatérios acerca da atividade de Pelleport como redator de libelos em Londr temps d° mesmo seus planos de produzir um jornal clandestino cheio de 5 — stias negociagdes de chantagem com Le Passe- Antoinette, sua autoria de Le Diable dans un bénitier, e até “anedotas picantes”, inclusive ataques ao ministro das Minangas, Charles-Alexandre de Calonne. A esposa de Brissot, Félicité, considerava Pelleport um canalha to grande que nao permitia sua entrada na casa dela — conquistando assiin seu édio imorredouro (outro tema que apareceria em Os boémios). Mas, explicam as memérias, Brissot continuou a ajudélo ¢ chegou mesmo a pagar a fianga para lird-lo da cadeia pouco antes de partir para Paris. Assim que Brissot partiu, Pelleport comegou a conspirar contra cle em outros esquemas para ficar rico depressa, incluindo a especulagio com champanhe, que se tornou um embuste tendo Latour como alvo. Segundo a iltima carla que Brissot recebera de Londres, Pelleport estava prestes a fugir para a América com uma “senhora chamada Alfred”. “Esse € 0 monstro que aca benfeitor”, conclui o depoimento. Tudo sugere que Pelleport estava igualmente zangado. Deve ter percebido que Brissot fornecera bow de ajudar a prender seu evidéricias contra ele e! ter se tessentido: disso. pois permaneceu enclausurado na Bastilha por mais de quatro anos, enquanto Brissot foi solto apés apenas alguns meses.3! possivel ter alguna ideia do estado de espirito de Pelleport durante seu longo encarceramento consultando alguns documentos originais de seu dossié que sobreviveram nos arquivos da Bastilha. Ele reccbeu permnissdo de dar passcios ocasionais dentro do patio da prisio em 1784 e respirar o ar das torres uma vez por semana em 1788. Solicitou pacotes de livros, inclusive La Siécle de Louis XIV [O século de Luis XIV], de Voltaire, uma obra sobre taticas militares prussianas ¢ um tratado sobre 0 crayo, Nao hé um registro completo do que ele leu, mas escreveu. uma sinopse “dos episddios filosdficos” na Histoire image not available image not available image not available 2 de julho de 1789 coincidiu quase exatamente com o de Pelleport, que foi de 11 de julho de 1784 a 3 de outubro de 1788. Teriam esses quatro anos de coabitagao produzido algum intercdmbio intelectual? Impossfvel dizer. Os dois homens tinham muita coisa em comum Ambos eram marqueses da velha nobreza feudal, ambos foram presos a pedido de suas familias por md conduta na juventude, ambos escreveram romances obscenos — ao mesmo tempo e num raio bem préximo um do outro. Seus nomes aparecem em estreita proximidade nos registros da Bastilha.45 A vida cotidiana na Bastilha era com certeza bastante dura, mas é facilmente mal compreendida em virtude dos mitos que obscurecem a reputacio do lugar — 0 pesadelo dos tevoluciondrios de uma casa de horrores, de um lado, ¢ 0 quadro revisionista em cores pastéis de um hotel de uma estrela, de outro. As nogdes modernas de encarceramento nao correspondem as praticas do século XVIIL. A Bastilha era uma fortaleza convertida, usada para confinamento de prisioneiros especiais que geralmente eram detidos por lettre de cachet e mantidos sem julgamento por prazo indefinido. Para uma pequena minoria que permaneceu confinada por varios anos, como Pelleport ¢ Sade, o fardo psicolégico podia ser terrfvel, mas eles n@o eram cortados de todo contato com o mundo exterior nem mesmo do contato com outros prisionciros. Nao dividiam celas — quase metade das 42 na fortaleza estavain vazias nos anos 1780 —, mas as vezes, por periissdo especial, tinham — autoriza clo para se misturar. Os mais privilegiados ocasionalmente jantavam juntos. Por algum tempo, em 1788, chegaram a jogar cartas, xadrez e alé mesmo bilhar. Tinham ampla oportunidade de ler e escrever, pelo menos quando as regras foram relaxadas no fim do século XVIII. Recebiam suprimentos de livros, papel e utensflios de escrita. Alguns inventavam maneiras de trocar anotagées.1® A Bastilha tinha uma extensa biblioteca; e, embora nado contivesse muita fiegdo, os prisioneiros as vezes escreviain sua prdpria. ‘Teriam literérias uns das outros? A algum conhecimento das atividad: evidéncia sobrevivente nao fornece uma resposta a essa pergunta. Pode- se apenas afirmar que o encarceramento ¢ o lazer forgado por cle pesavain fortemente em alguns dos prisioneiros, levando-os a refletir sobre sua vida e a expressar seus pensamentos por escrito. A despeito de image not available image not available image not available estabelecidos em Londres e que sua principal atividade, assaltar celeiros, correspondia ao difamatério jomalismo dos libelistas. Pelleport nao dé nome aos outros membros da trupe, mas sugere que havia pelo menos uma diizia deles. Os agentes secretos da policia parisiense preenchiam relatérios sobre todas as pessoas que pude sem identificar entre os refugiados franceses em Londres ¢ chegaram a 39 a0 todo — uma extraordindria galeria de malfeitores, composta de escritores de baixo nivel e pessoas que abusavain da confianca alheia.55 Pelleport provavelmente conhecia todos eles, Com toda a certeza possufa material extravagante de sobra em que se basear; porém nao tentou retratar a populacao inteira de escritores franceses na decadente Grub Street londrina, porque uma boa dose de sua sétira visava a variagdes da filosofia francesa. Portanto, dividiu os boémios em trés scitas Filoséficas: “a scita ccondmico-naturdlico-monotdnica”,>° liderada por Séché, a “seita despotico-contraditorio-paradoxal-ladradora’’s liderada por Lungiet, ¢ a seita dos filésofos “comtinico-luxtirico- trambiqueiros”,5> liderada por Mordanes. A primeira representava a fisiocracia ¢ a doutrina da lei natural; a segunda, o despotismo esclarecido tingido de doutrinas sociais reaciondrias; a terceira, o autointeresse predatério. Junto com o rousseauanismo utdpico de Bis ‘ot, os boémios cobriam grande parte do espectro ideolégico. Havia também agregadas de campanha. Pelleport cita apenas duas, uma combinagao mae-filha: Voragine ¢ Félicité. Félicilé Dupont era a “bela vizinha” do circulo de Mentelle em Paris que Brissot mencionara em suas primeiras cartas a Pelleport. Casaram-se em 1782 € estabeleceram-se em Londres, no ntimero 1 da Brompton Road, perto do escritério do Courrier de ?Europe, onde Pelleport, colaborador frequente do Courrier, os visitava regularmente, até que F'élicité proibiu sua entrada na casa. A mie de Félicité, Marie-Catherine Dupont, era vitiva de um comerciante de Boulogne-sur-Mer que se enredara com Pelleport no litigio sobre as notas de cambio nao pagas ¢ especulagao com a carga de champantic de Reims, quando ele, como Bissol_ em seu livro, contrafra enormes dividas. Ela figura com proeminéncia em Os boémios como companheira de Séchant ¢ parceira sexual de qualquer um que consiga, pois Pelleport a retrata sua como uma bruxa medonha faminta por sexo. (Voragine parece ser um image not available image not available image not available rousseauanismo do narrador acaba revelando-se _ estranhamente rabelai: isiano, a milhas de distancia do transbordante entusiasmo de Bissot. Como todos os outros fildsofos, Bissot proclama princfpios elevados e vive saqueando camponeses. O narrador compara essa hipocrisia de maneira desfavordvel com a antifilosofia do burro, o “nadismo”, como ele a chama, que consiste em rejeitar todos os sistemas de pensamento ao mesmo tempo satisfazendo o proprio apetile.9 A busca do prazer, nao tolhida por restricdes socia Is, se ergue em meio a toda a prédica como tinico valor digno de ser almejado. Sob esse aspecto, apesar de pretensiosos € hipécritas, os boémios representam algo positivo. Seu presidente, Séchant, os descreve como “um grupo de pessoas a quem nio falta apetite nem alegria” ao apresenta-los a Bissot. Eles se dedicam a “A franca, a amavel liberdade |. Foi cla que nos reuniu, de todos os cantos da Europa: somos seus sacerdotes, ¢ todo o seu culto resume-se a nao nos incomodarmos uns aos outros”. Os boémios compartilham uma atitude, nao uma filosofia. Fes assumem uma posigdo em relagado ao mundo que jd tem aparéncia boémia. Mesino como filésofos, os bo@mios parecem inofensivos — todos exceto um: Mordanes. Ele € 0 tinico membro da trupe que parece realmente maldoso. Comete todos os assallos, enquanto os outros ficam jogando platitudes entre si sem infligir danos. Sua principal atividade, roubar animais dos terreiros dos canponeses, serve como metafora para a ocupacéio de Morande: destruir a reputagdo de suas vitimas por meio de libelos. F ele adora provocar dor simplesmente pela dor. A mais reveladora de suas atrocidades tem Ingar quando golpeia até a morte duas galinhas copulando. O narrador relata esse incidente apds um longo trecho lfrico celebrando 0 sexo. Desejo é a energia vital que corre por toda a natureza, proclama ele, e o amor livre € 0 mais nobre principio na ordem natural: “goze, goze e evite causar 0 menor sra de ouro distirbio aos gozos dos outros”.7" Como ilustragao dessa re hedonista, ele celebra a prazerosa luxtiria de algumas galinhas num terreiro onde Mordanes esté perambulando, e invoca “o canto desse galo que chama as galinhas, escolhe a mais apaixonada ¢ lhe faz uma caricia sincera, alegre, forte, firme, tal como farfamos, vocé ¢ eu, nas nossas galinhazinhas, e nem se demasiada decéneia, virtude, modéstia, image not available image not available image not available chant reconhece um espirito afim e exclama: um autor! Tomado de surpresa, o poeta entra em panico. Tenta negar qualquer conexdo com a literatura, porque receia que os estrangeiros possam ser um destacamento de policia. De modo algum, eles Ihe asseguram: também sao autores; o jumento anda carregado com os tratados que eles esto escrevendo. Convidam-no para cear e, enquanto Tifares gira 0 espeto, o poeta conta a histéria de sua vida, que fornece como explicacdo para o porqué de tamanho susto: “pertengo de certa mancira 4 reptiblica das letras; mas € uma confisséo bem perigosa de se fazer nestes tempos... | e para Ihes dar uma prova, vou Ihes contar minha historia ” 83 literdrial Fle nascen em Stenay, um territério infértil, como qualquer lugar da Franga, para o florescimento da literatura. Seu falecido pai, um oficial militar as antigas, da nobreza feudal, mal sabia ler ou escrever. Nenhum dos seus dois irmaos teve muita educagao. Suas duas irmas forain despachadas para conventos. Mas sua mae tinha uma camareira de Paris que adorava romances ¢ leu Dom Quixote para cle, Foi sua perdido. Fim pouco tempo aprendeu a ler sozinho € memorizou todas as aventuras do homem de La Mancha. Depois de retornar da Guerra dos Sete Anas — especialmente da Batalha de Minden, que Pelleport descrevera antes mma elaborada digressio sobre taticas militares —, seu pai ficou horrorizado ao descobrir um erudito brotando na familia. Mas © menino aprendera a cavalgar, atirar, dancar e perseguir garotas suficientemente bem para conquistar o velho, que concordou em deixar que tivesse um tutor. Hles ndo se deram bem, alé que o tutor abandonou todas as tentativas de doutrinar qualquer cristianismo ¢ hos mitos gregos. A morreu, ¢ cle foi mandado para um internato. Ficou muito amigo de Ppassaram a concentrar-s , porém, a mae do menino um de sens professores, um abade que lhe ensinon os classicos num espfrito de puro paganismo ¢ que acabou sendo expulso do corpo docente por alimentar suspeitas simpatias por revoluciondrios romanos. (Colegas enciumados persuadiram o idiota que dirigia a escola de que Bruto e Cassio eram rebeldes que conspiravam contra o rei, em algum solo de Paris).S4 Na sua partida, o professor deu ao jovem poeta nascente copias de Ovidio, Virgilio e Hordcio. Essa referencia e muitas image not available image not available image not available comercializada na Franga. F'sse foi o movimento em falso que custou a Pelleport sua liberdade. Nesse caso, 0 poeta joga a culpa pela catastrofe abertamente em Thonevet. Por pura maldade, Thonevet compe diversos libelos, atribuindo-os ao poeta, e, com o auxilio da vitiva Des Arches, 0 denuncia para as autoridades francesas, que 0 conduzem & Bastilha. Entrementes, Bissoto. vem tentando juntar um novo suprimento de andrajos em Paris. A policia suspeita que ele colabora nos libelos; ssim, encarcerain-no tambéin — porém nao na Bastilha, mas na prisio mais asquerosa de Bicétre, onde ele logo morre e, portanto, desaparece da narrativa. Apés uma longa ¢ miserdvel permanéncia na Bastilha, o poeta é por fim libertado. Enquanto vai se afastando, ouve um pregoeiro anunciar um apelo do arcebispo em busca de testemunhas dos milagres de Labre, para confirmar sua autenticidade, de modo que Roma possa dar inicio ao processo de canonizacao. Como seguidor mais devoto do santo, 0 poeta decide ir ele mesmo a Roma, logo depois de visitar seus irmaos em Stenay. E é assim que seu caminho vem a se cruzar com o dos boémios. Fle lhes recomenda uma taverna, prometendo juntar-se a eles para jantar depois de uma reuniao com os irmaos. Os boémios carregam o jumento, continuam andando e chegam 4 taverna. O sol se pde. O jantar esta no fogo. O romance termina ai, com um floreio maravilhosamente aberto, inconclusivo. Antes de se separar dos boéimios, no entanto, 0 poeta oferece uma reflexo que fornece um tipo de conclusaa para sua historia: ] vejam quantos males me causou a triste experiéncia que fiz da literatura, ¢ como devo estar repugnado dela. Assim, nada, juro-lhes, apavora-me como ouvir ser tratado de autor; parece-me sempre ter em meu encalco um bando. desses aguazis que os poderosos colocaram na esquina das ruas ¢ das barreiras para impedir que a razao se introduza de contrabando. Os boémios é, entre outras coisas, um livro sobre literatura: literatura entendida no sentido amplo como um sistema de dinheiro, poder e image not available image not available image not available leitores — quase nenhum, a julgar pelo mimero de exemplares que sobreviveram e€ a auséncia de resenhas e referencias em fontes contemporaneas. Sua publicagao foi um nao evento situado no coracado do perfodo mais cheio de eventos da histéria da Franca. Mesmo que uns poucos cxemplares tenham chegado as méaos de Icitores, dificilmente teriam provocado muita reagdo. Os franceses em 1790 estavam criando um admirdvel mundo novo e fazendo-o com mortal seriedade. Nao tinham motivo para estar interessados num telato salitico de vida numa reptiblica de letras que nao mais existia. O romance de Pelleport estava obsoleto j4 antes de ser publicado. O proprio autor estava fora de sintonia com seu tempo. Enquanto seus contemporaneos se langavam de maneira apaixonada na Revolucao, cle se manteve A parte, olhando o mundo de uma _ perspectiva que combinava desencanto com zombaria — ou “nadisino”. 'Todavia, exibiu um talento prodigioso ao evocar a vida em Grub Street sob o Antigo Regime. Visto do século XXI, seu romance parece extraordinariamente moderno, ¢ seus boémios aparecem como a primeira incorporagaio plena da boémia. Robert Darnton * Aviso ao Journal de Paris sobre um sonho que tive/! Laun acabou de expirar! O qué? Tu que passas tremes?/ Nao se trata de caliinia./ Por sua honra eu me regozijo./ 0 melhor ato de sua vida./! Madrigal com a queixa de que o autor é perverso.// Laun se queixou de que tenho mente perversa/ I! uma censura tocante de um coracdo tao bom. (N.T.) ** Voar de bela em bela/ Para o amor é se mostrar fiel/ Voar de bela em bela/ FE. com os deuses se parecer. (N. T.) image not available image not available image not available Cupido mihi pacis! At ifle, quid me commorit (melius non tangere, clamo), flebit, et insignis tota cantabitur urbe.” Hordcio, Satiras, Il, 1 “hu, que sou um amante da pazl Porém, se alguém me exaspera (‘Melhor nio me toca engrilo!) deve chorar por isso, ¢ seu nome deve ser motive de riso por toda a cidade.” (N Ei) image not available image not available image not available filosofia contra um novo ultraje, uma sombria ¢ fria prisio breve nos ha de servir de reftigio. Era este, entao, 6 Apolo!, 0 gabinete que tinhas me destinado no museu?... F. melhor fugirmos para 0 meio das florestas e, vivendo de bolotas, rafzes e frulos silvestres, esquecermos as sociedades que s6 foram estabelecidas pelos ricos para o maior prejuizo do pobre, a fim de passarinos 0 resto de nossos dias entre os lobos, a uivar contra o infortiinio da posteridade de Noé.7 Diante dessas tristes palavras, tudo 0 que o lamentavel Tifarés tinha de cabelos ou parecendo cabelos se arrepiou como os pelos de seda de um velho javali que nao arreda pé, ¢ depois de enfiar metade da perna dentro da meia, ele ergueu para Bissot suas duas maos suplicantes ¢ disse com voz entrecortada por frequentes solugos. — O v6s, que a natureza formou para vos tornar um dos mais belos ornamentos da sociedade, entdo € assim que, perdendo coragem, ircis por uma covardia sem igual privar vossos contempordneos e€ sua posteridade de tudo 0 que tinham o direito de esperar de vossos raros talentos? Eu poderia facilmente vos provar que a permanéncia nas florestas, timida ¢ insalubre, ataca 0 homem até nas fontes da geragio; que suas aguas glaciais entopem as glandulas ¢ causam obstrugdes; que os frutos silvestres sio amargos e dificeis de digerir. im seguida eu falaria do dente apavorante dos lobos famintos, dos duendes que tornam um divertimento arrastar para os charcos ¢ precipicios os viajantes extraviados. Mas de que adiantariam semelhantes discursos, para vés que sois sdbrios como um fildésofo grego ¢ nao credes nos espiritos assim como o finado Moisés,S de materialista meméria? Vossa alma é inace: sivel a dor; mas vosso coracao poderia estar fechado a piedade? Ah! dignai-vos a escutar essa virtude, ou melhor, essa disposi¢ao natural do homem e dos animais ¢ que talvez valha por si s6 cem vezes todos os tratados de moral. Vede, s6 tenho pele e ossos: sereis mais inexordveis que o lobo de La Fontaine? Ainda se eu estivesse saindo de uma esbémia ou da cozinha do senhor nosso bispo seria compreensfvel, mas © ordinario de tim escrevente de procurador que € recebido como advogado em Reims jamais engordou ninguém. Se pelo menos eu pudesse, como a moca selvagem ou como o menino de Hanover, agarrar as lebres na cortida...** Mas que digo, as florestas nao esto povoadas de couteiros, que escollam a caga alé no campo do pobre para image not available image not available image not available a cuidar das veredas lamacentas que levam a suas tristes choupanas.* Depois de ter arruinado suas carrogas, seus animais, sua satide, para embelezar o passeio do rico, o lavrador é obrigado a destrui-los de novo antes de chegar ao caminho que ele construiu: e sobre essa estrada tao facil v8 uma parte das quantias que pagou escorrer da capital para as fronteiras, sem que possa esperar conduzir até sua choupana o menor vaso capilar desses canais ruidosos e rdpidos. E'stas eram as reflexdes que inspiravain a nossos fildsofos as mas estradas secundarias da miseravel Champanha. O sol ja tinha efetuado um pouco mais de metade de sua corrida quando chegaram a Pont-Favergé; uma trouxa de urze suspensa na parede, pois a madeira era io rara nesses cantOes como a pintura ¢ ainda nao fez na Champanha progressos bastante considerdveis, os levou a perceber que era mais que hora de almogar. O casebre no qual estava pendurada essa isca nao era cimentado nem assoalhado, umas velhas paredes cobertas de fumaga mais serviam de eira ao pouco de lrigo-sarraceno que alimentava seus sébrios habitantes do que de teto para a cozinha, em torno da qual cinco ou seis catres ordindrios bem mais pareciam ter sido construfdos para malar quem ali se deitava do que para lhe proporcionar repouso; alguns pratos riisticos ¢ lascados, um pticaro com tampa de carvalho, uma grande arca prépria para guardar pio e um saleiro que, mal ou bem, era preciso encher de sal, gracas as sdbias Icis de Filipe, o sdlico, pelas quais 0 camponés pode dispens aro pao, por bom que the pareca, mas nZo o dinheiro para comprar sal,} era toda a suntuosa mobilia da tabema que o destino constrita para receber o maior filésofo da Franga e seu assiduo admirador. Os donos dessa brilhante taberna, a casa do burgo mais ricamente mobiliada, estavam ocupados no campo. Haviam deixado como tinica guardid uma velha surda que um alaque de apoplexia deixara paralitica em todo o lado esquerdo, € cujos anos faziam cambalear a cabeca calva como 0 péndulo de uma manivela de espeto Essa mulher parecia ter sido posta ali de propésito para preparar a abstinéncia os fildsofos que ficariam tentados a se retirar para as solidées da regi ‘0. Tinha cerca de se! snta anos, pelo menos, a julgar por sua cara; pois os curas daquela terra, como s6 conheciam a santa escritura ¢ as garalujas do Palacio, sao inimigos jurados de qualquer outta escrila ¢ image not available image not available image not available naquiele dia ele vestira seis camisas. Mas 0 que vocé pensou, 6 flor dos confeiteiros de Chartres, quando numa curva da colina sentiu encostar em seu estomago a ponta de um fuzil, e uma voz assustadora repetiu cinco ou seis vezes em seus ouvidos: “Alto I... quem esta af? Pela morte... se mexer, eu te mato”? © Tilares!, 0 pavor deixou-o eloquente, ¢ caindo sobre esses joellos tao endurecidos coma os de Joao, 0 Evangelista, vocé exclamard com voz lamentavel: “Senhor, tende picdade de nds, ¢ o senhor, seu ladrao, dé- nos ao menos o tempo de nos reconhecer; ainda nao estamos maduros para a clernidade: conceda a vida a dois pobres sébios que o amor da filosofia e 0 temor dos oficiais de justica jogaram nestes desertos horrorosos. Aqui estao sete libras e dois soldos, é toda a nossa fortuna, e que Deus faga cair em suas maos a caixa de um arrecadador das talhas!** Meu irmao é um dos mais ilustres advogados que jamais obtiveram a licenga em Reims, desde que 14 se vendem licenciaturas, e se o senhor tiver algum processo, ele o serviré com zelo e fidelidade: portanto, escule nossas preces ¢ nao nos mate”. — Fo que teremos de ver — recomegou a voz —3 siga meus passos, e¢ daqui a pouco saberei se seu relato é veridico. ‘Tifarés nao precisou ouvir duas vezes, e seguindo os passos do invisivel fuzileiro nao demorou a avistar varias pessoas que riam ¢ cantavam em volta de uma grande fogueira, em cuja claridade o guia deles parecia um gigante de imensa estatura. Finalmente, chegaram junto daquele grupo. — Aqui esto — disse a seus companheiros a temfvel sentinela — a de me confundir com um uns cavalheiros que me fizeram a gre ladrao: estado perdidos, e como nao hé aldeia a mais de ts léguas daqui, provavelmente vao gostar muito de passar a noite em boa companhia. — FE de fazer uma boa ceia — acrescentou o chefe do bando, E de f I ti hhefe do band mandando-os tomarem assento perto do fogo. E foi assim que yiram que, na vida, nao ha ldo triste posig&o a ponto de destruir a esperanga de se fazer uma boa refeigao antes de morrer. Tudo isso era verdade ha alguns anos; mas gragas as salutares instituigdes chamadas, n&io sei muito bem por qué, assembleias provinciais, apenas sao praliciveis partes das grandes image not available image not available image not available varia de sentido, ¢ sobre esse pequeno texto hei de Ihes fazer um volume, Nao creiam que, agarrando-ne servilmente a meu assunto, com os olhos fixos permanentemente numa verdade, cu a disseque a mancira dos gedmetras: nao € este meu estilo; voo com uma liberdade a histéria, a atrevida, ¢ ora no s6tao, ora no pordo, a quimica, a fisice graindlica e a légica, tudo o que essas ci@ncias témm de mais secreto e de mais maravillhoso encontra-se numa de minhas paginas. Nao digo nada de seu fundador, senhores, porque ainda nao tenho a honra de conhecé-lo, mas ele nada perderd por esperar; ndo penso que a sociedade dos senhores seja bem antiga, pois nenhum dos milhares de jornais que se imprimem periodicamente em todas as partes do globo ja falou dela, que eu saiba. Portanto, é justo louvar aquele que os reuniu, e louvé-lo ao menos durante dois an trés séculos. Com efeito, o que sao, senhores, dois ou trés anos para louvar um grande homein? Perto de dois séculos nao se passaram desde que a Academia Francesa celebra esse cardeal cefalétomo, ministro sem previdéncia, esse literateiro sem talentos, esse tirano hipdcrila, que ignorou tudo, exceto a arte funesta de dominar um principe fraco, preguigoso ¢ imbecil?s Cada mutagdo traz trés novos clogios, ¢ se a mais sabia, a mais vtil das sociedades durar somente tanto quanto uma ordem mendicante, nao ha por que duvidar que ainda se louve, daqui a vinte ou trinta séculos, 0 odioso € incapaz Richelieu. Sabios habitantes das florestas, ilustres selvagens, evitarei prodigalizar em sua presenga louvores a algum monarea: ndo somente nenhum os protege como todos se apressariam em persegui-los; nao sao sdbios como os senhores que podem se gabar de uma protegdo que nao se concilia senfo com a ignorancia ¢ a baixeza. Bem longe disso, senhores, espero que do scio de sua instituig&o saiam essas luzes inflamadas que, derretendo como cera mole as orgulhosas pretensdes dos déspotas e os tiré ricos regulainentos dos ricos, lembrarao enfim ao homem seus direitos primitivos e a nobreza de sua natureza. Sim, senhores, € de seu seio que sairaio esses oradores veementes, esses profundos politicos que aparecerao um dia & frente da ordem do Ferceiro Estado,° como os carneiros de Israel na vanguarda do rebanho. Quanto a mim, senhores, vou andando em seus rastrc incessantemente alerta em recolher suas luzes, em comunicd-las a seus contemporneos a posteridade; glorioso com uma adogao que desejo, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.

Você também pode gostar