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CIENCIA, COISA BOA... Rubem Alves! FFemando Pessoa dia que “pensar 6 estar dente dos olhos". No que eu concono.Eaté amplioum pou: pensaréestardoente do corpo. O pensamnento ‘marca olugtr da enfermidade. Ah! Vocé duvida. O meu palpteé que, nest preciso momento, voc nfo deva estar tendo pensaentos sobre os seus dentes, 8 menos aque um doles esteja doendo. Quando os dents esto bons, no pensamos nels ‘Como se eles no existissem. O mesmo com os olhos. Vocé 6 tomard consciéncia deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhagiies. Quando solhosestiobema gentendo pens neles:cles se ormam transparentes, invisives, desconhecidos, e através de sua absoluta transparéncia e invisibilidade o mundo aparece. © corpo intero é assim. Quando esté bom, sem pedras no sapato, sem cleulosrenais ou hemorbidas, sem taquicardias ou enxaquecas ele fiea também transparente, ea gente se coloca inteiramente, nfo nele, mas nt coisa de for: 0 aqui a Svore, 0 poema, 0 corpo do outro, a misica. Quando o compo esté bem, ele ndo conhece. Claro que-tem pensamentos; mas so pensamentos de outro tipo, Ge puro gozo, expressivos de uma harmonia que no deve ser perturbada por ‘enuma atvidade epistemolGzicn. Mas basta aparecer a dor para que tudo se altee. A dor indica que um bles pees A vith io vai tem. aqulapenubeco esomaca, Inalesiar terivel,vontade de vomitar, e vem logo a Que foi que com? Seri que bebi demais? Ou teria sido a ing também, 1. Filsofe,educsdor, dotor em Filosofia pela Universidade de Princeton (New Jersey), ‘Professor da Faculdade de Educagio da Unicamp, autor, entre utes obras, de Filosofia de lencia Braslense {que tudo tenha sido provocado por aquela contrariedade que tive..”. Essas perguntas que fazemos, diante de um problema, siio aquilo que, na linguagem cientifiea,recebe 0 nome de hipsieses, Hipsiese é o conjunto de pegas imagi- nérias de um quebra-cabega, que acrescentamos Squela que jd temos em mios ‘com o propérito de compreendé-ja. Compreender, evidentemente, para evitar que o incémodo se repita. Pensar para no sofrer. Deve haver, no wniverso, milhies ¢ milhdes de situagdes que nunca pascaram pela nossa cabega: nunca tomamos consciéneia delas, nunca as conhecemos. f que elas nunca nos incomodaram, no perturbaram 0 corpo, nao Ihe produziram dor. ‘mosaquilo que incomoda: Nio, nfo estou dizendo toa a verdade, Nao € $6 da dor.Do prazer também. Vocé vai almogar numa casa el he oferecem um prato dlivino, que dé ao seu compo sensagées novas de gosto eolfato. Vem logo aida: “Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, no posso pedir para continuara ser convidado”. Usamos entio a formula eldssica: “Que delicia: quero a receita.".Traduzindo para 0s nossos propésitos: “Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazerjétido”. O conhecimento tem sempre o carter de reccitaculinéra. Uma receita tem a fungao do permitir a repetigo de uma experincia de prazer. Mas «quem pede a repetigao nto €0intelecto.E o corpo. Na verdade, o intclecto puro codeia a tepeticdo, Esté sempre atris de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento ele nfo o fica repassando e repassand. “I sei", cle diz, ¢ prossegue para coiss diferentes. Com o corpo acontece 0 contririo. Ele no recusa um copo de vinho, dizendo que daquee jébebeu, nem se recusa 4 ouvir uma msica, dizendo que j6 a ouviu antes, nem rejeta fazer amor, sa ‘a alegaco de 6 ter feito uma vez. Uma vez s6 nfo chega, O corpo trabalha em cima da logica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, © que & bom tem de ser repetido, indefinidamente. © desejo de conhecer € um serve do desejo de prazer. Conhecer por do que estamos dizendo (todas as coisas normais t8m a sua patologia) se encontre nesta coisa que se chama exames vestibulares: a mogada, pela alegria cesperada de entrar na universidade, se submete as maiores violéncias, armazenia ‘conhecimento indtil ¢ ndo digerivel, tortura 0 corpo, nega-Ihe os prazeres mais elementares, Por qué? Tudo tem a ver coma légica da dor e do prazer. Hé a dor 10 incrfvel de niio passar, de ser deixado para tris, de ver-se ao espelho como incapaz.(no espelho dos olhos dos outros); eh a fantasiada alegria da condigiio de universitério, gente adulta, num mundo de adultos, Claro, coisa de imagina- fo... B 0 corpo se disciplina para fugir da dor e para ganhar o prazer, E logo depois, passado 0 evento, o corpo, triunfante, trata de se desvencilhar de todo cconhecimento initil que armazenara, esquece quase tudo, sobram uns fragmen- tos ~ porque agora a dor j foi ultrapassada e o prazer foi alcangado, En op eh ua. aaallerenorrataacaconnaraeaaseraeer ec _cigncia, a gente conhece por conhecer, sem que a experigncia de conhecimento _bferega qualquer tipo de prazer™. Davido. Cientista que fica horas, dias, meses, _anos em seu laboratério nao fica lé por dever, Pode até ser que haja pessoas _assim: trabahar por dever. $6 que elas nunca produzirgo nada novo. O senso. rin acto disp aon one apr © prazer ¢ achava que certo mesmo s6 as coisas feitas por dever). Com o que concordaria o venerivel Santo Agostinho, que propés a curiosa teoria, ainda defendida por certa liderangasreligiosas, de que ojeito certo de fazer o sexo & "sem prazer, por dever”, burocratas fis 0s rel6gios de ponto. Cozinheiro por dover s6 faz.comida sem gosto. Cientista também. Nio consegue ver nada novo, bicho sem asas, tartaruga fiel, rastejante. Idéias criativas requerem vBos da cenigmaéum mar desconhecido que convida: atravessar 0 oceano Atlintico num barco a vela, sozinho. E quando a gente é eapaz de fazer a coisa, vem a euforia, co sentimento de poder: fui capaz; isso tem a ver com um desejo fundo que mora em cada um: ser objeto do olhar admirado do outro, ser 0 primeito... E € isso {que explica 0 curioso (e eticamente condenével) costume que tém os eien- tistas de esconder os resultados das suas pesquisas, trancé-los a sete chaves. Ora, se 0 objetivo dos cientistas fosse progresso da ciéncia, tratariam de tornar piblicas as conclusées preliminares de suas investigagdes, para que (5 resultados fossem at para eles é a possibilidade de serem os primeiros, seus nomes aparecendo nas bibliografias nas citagées, evidéncias de admiragio ¢ poténcia intelec- tual. E assim & mesmo quando estamos envolvidos nas tarefas mais absur- idos mais depressa, Ao contrério, Mais importante damente intelectuais, o que esti em jogo € esse corpo que deseja ser admirado, ‘espeitado, mencionado, invejado, Narcisismo: sem ele ngo sairiamos do lugar Claro que a cigneia pode trzer muitas coisas boas para o mundo (¢ também iis), mas 0 que esti eh jou, sociais, mas o simples prazer que pessoas derivam desse_jogofbrincadeira intelectual. aria daciéncia, é esse cilculode beneficios ‘Um dos mais lindos documentos da hist6ria da ciéncia foi produzido por Kepler, depois de conseguir formular as suas trés leis sobre o movimento dos planetas: Aquilo, que 22 ano tre poe to logo deseo 0 cinco slid enre situs celeste quilo em que firmemente ci, muito antes de haver visio w Harmonia de Prolomeu, saul que, no tle deste quit ive, promet os meus amigos, mesmo ats d star ceo de minhas descr: guile gus, hi 16 anos, pe que fase recur xqilo, orca causa devote 8 contemplagdesastrontinicas ‘a melhor parte de minha vida, jntando-ne a Tyo Brae, Finalmente ex truxe az, «confeci asa verdad al d todas as minhss expoctaives. R Assim, desde 18 meses a madugada, esde i us meses ahd dine aver, Iatbem poucos dias opréprio Sol da mais marwiosscontemplag bihow. Nala me deem. hiregosme a uma verdadeis ora sgrada. (Os dados fram langados. Oliv fo escrito [Nao me imports que said agora ou apenas pa posted. le pod esperar 100 anos pelo sau itr seo préprio Devs expert seis il ans para que ura homer conterplase «Sea ob Seria preciso parar e analisar cada frase ‘Tudo esti saturado de emogiio: esperanca, crenga, amor, promessas, disciplina, sacrificio, uma vida inteira em jogo. Para qué? Kepler no podia ‘maginar nada de pritico como decorréneia de suas investigagdes. O que estava ‘em jogo era apenas o prazer da visio, ver aquilo que ninguém jamais havia visto, E toda a espera se realizava numa experiéncia indescritvel de prazer. Coisa estranha, esta fascinacio pelo desconhecido, Curiosidade. & tao forte que estamos dispostos até a perder 0 paraiso, pelo gozo eféiero de ver aquilo que ainda nfo foi visto. E assim que a nossa «stra comega, num dos mais antigos mitosreligiosos. Preferimos morder © fratodo conhecimento, como riscade pener 0 Paraiso, pela alegria de um outro 20: saber. Ali-esti, diante de nés, a coisa fascinante. Mas no nos basta ver © que _csti-de fora. preciso entrar dentro, conhecer os seus segreds, tomar posse de "suas entranhas. Nao é isso que acontece com a propria experiéncia sexual? Os _ judeus, no Antigo Testamento, empregavam uma Gini palavra para designar 0 “alo de conecer ¢ 0 ato de fazer amor. “E Adio conheceu a sua mulher, ela ficou gravida...”. E assim mesmo que acontece no conhecimento. Primeiro, 0. -enamoramento. Quem nao estd de amores com um objeto no pode conhecé-lo. _Depois vém os movimentos exploratérios, a penetragio, 0 conhecimento do ‘bom que estava oculto, experiéncia de prazer maior ainda, B O faseinio do giro das estrelas, dos descaminhos dos cometas,abeleza dos cristais, j6ias simétricas —ah! quem fezanatureza deve ser um joalheiro para fazer coisas tio lindas assim, ¢ também um grande ge6metra, para tragar nos eéus 0s caminhos matemiticos dos astros; quem sabe um miisico, que toca miisicas inaudiveis aos ouvidos comuns, e somente pereeptiveis aos que cconhecem as harmonias dos niimeros! ~ 0s ima, seres parapsicol6gicos, que puxam 0 ferro sem tocar, todos os corpos do espago, grandes imas, se puxando uns aos outros, atrago universal, amor universal, as marés que ‘balangam aos ritmos da lua e do sol, as plantas, mistérios, também ao ritmo dda luz, suas harmonias com as abelhas, a loucura, os sonhos, esta fantistica loteria que se chama genética, os animais arranjados em ordem de comple- xidade crescente, tudo sugerindo que uns foram surgindo dos outros, Dar- win, a inflagao, que bicho é este, que ninguém consegue domar?, nossa permanente intranqUilidade, seres neuréticos, psicéticos, altares, os homens e mulheres diante de seres invisiveis, os deuses, a agressividade, o sadismo, por que sera que hi pessoas que sentem prazer no sofrimento dos outros?, as massas, boiadas estouradas, sem limites sem moral, “Heil Hitler!”, e as pessoas lutam para deixar de fumar ¢ no conseguem e, de repente, sem nenhum esforgo, algo acontece por dentro, e param de um estalo.. ‘Nao hd limites para os mistérios. ‘Alguns parecem pequenos, ¢ moram nas coisas simples do cotidiano. _nissoo cientista tem algo que o liga ao poets. Porque um poeta 6 iso, alguém que consegue ver beleza em coisa que todo mundo pensa serboba esem sentido. Por favor, Ieia a Adélia Prado, mulher comum que os deuses, brincalhoes, dotaram desta graga incompreensivel de poder transfigurar o banal em coisa beta, aquilo de que ninguém gosta em coisa erstica. Como no seu poema sobre limpar peixes com o seu marido. © eienistaéa pessoa que & capaz de ver, nas coisas insignificantes, grandes enigmas a serem desvendados, ¢ 0 seu mundo se fenche de mistrios. Moram em nds mesmos, nos gestos que fazemos, nas doengas que temos, em nossos sonhos e pesadelos, Gos © amores; na nossa asa, no jardim, pela rua... Outros parecer enormes tém a ver com inicio do mniverso, as profundezas do espago, as funduras da matéria. Mas indo € parte

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