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Nepan Editora

Todos os artigos reunidos nesta edição são de responsabilidade de seus autores


editoranepan@gmail.com

Diretor Administrativo: Marcelo Alves Ishii

Conselho Editorial
Agenor Sarraf Pacheco - UFPA Livia Reis - UFF
Ana Pizarro - Universidade Santiago/Chile Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro - UFAM
Carlos André Alexandre de Melo - UFAC Marcela Orellana - Universidade Santiago/
Elder Andrade de Paula - UFAC Chile
Francemilda Lopes do Nascimento - UFAC Marcia Paraquett - UFBA
Francielle Maria Modesto Mendes - UFAC Maria Antonieta Antonacci - PUC/SP
Francisco Bento da Silva - UFAC Maria Chavarria - Universidad San Marcos
Francisco de Moura Pinheiro - UFAC Maria Cristina Lobregat - IFAC
Gerson Rodrigues de Albuquerque - UFAC Maria Nazaré Cavalcante de Souza - UFAC
Hélio Rodrigues da Rocha - UNIR Miguel Nenevê - UNIR
Hideraldo Lima da Costa - UFAM Raquel Alves Ishii - UFAC
João Carlos de Souza Ribeiro - UFAC Sérgio Roberto Gomes Souza - UFAC
Jones Dari Goettert - UFGD Sidney da Silva Lobato - UNIFAP
Leopoldo Bernucci - Universidade da Califórnia Tânia Mara Rezende Machado - UFAC
Das margens

Gerson Albuquerque (Org.)

1ª edição

Rio Branco, Acre


2016
Projeto Gráfico e arte final: Raquel Alves Ishii
Revisão técnica: Gerson Rodrigues de Albuquerque, Carlos André Alexandre de Melo
e Francemilda Lopes do Nascimento
Diagramação: Marcelo Alves Ishii

Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade – PPGLI/UFAC


Grupo de Pesquisa História e Cultura, Linguagem, Identidade e Memória – GPHCLIM
Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas – NEPAN

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C175c Das Margens / Organizador: Gerson Rodrigues Albuquerque,


Rio Branco: Nepan Editora, 2016.
225p.

Inclui referências bibliográficas.


ISBN: 978-85-68914-08-3

1. Línguas – Linguagens. 2. Literatura – História. 3.


Narrativas Andinas/Amazônicas. I. Título.
II. Albuquerque, Gerson Rodrigues de.

CDD 22.ed. 400

Bibliotecária: Maria do Socorro de O. Cordeiro CRB 11/667


Sumário
Apresentação  7

El tránsito de la oralidad a la escritura amazónica


latinoamericana
Ana Pizarro  9

Los discursos amerindios, de antes y después de la invasión


de América, son el fundamento de toda la sociedad americana
Luis Alberto López Herrera  21

Língua, educação e interculturalidade na perspectiva


indígena
Gersem Baniwa   41

Identidade e literatura indígena: o encontro necessário na


escola brasileira
Edson Kayapó  57

A política dos artistas na pedagogia Huni Kuin


Amilton Pelegrino de Mattos  77

Desde la piedra: aproximaciones a los animales mitológicos


en el arte antiguo amazónico
Rocío Casas Bulnes  91

Identidades em trânsito e hibridismo cultural em Eloy Añez


Marañón
Francemilda Lopes do Nascimento  109
A cidade de Cobija e os lugares de memória da Revolução
Acreana/Guerra do Acre
Francisco Bento da Silva  121

O processo de crioulização e a estética barroca em Édouard


Glissant
Enilce do Carmo Albergaria Rocha  139

Silenciamentos e discursos da conquista: Henry Bates e expedições


científicas na Amazônia do século XIX
Raquel Alves Ishii  151

Entre silêncios e narrativas: expressões artísticas em um contexto


psiquiátrico amazônico
Jamila Nascimento Pontes  165

Ediney Azancoth: percursos de uma vida no palco


Carlos André Alexandre de Melo  185

Um mercado, uma cidade: memórias arquitetônicas, narrativas


etnográficas e linguagens dos becos
Gerson Albuquerque, Jones Dari Goettert  195

Sobre as autoras e os autores  225


Apresentação

DESDE AS MARGENS AMAZÔNICAS/ANDINAS

Vivemos todos agora em


lugares-comuns, os lugares em
que pensamentos do mundo
encontram pensamentos do
mundo. (Édouard Glissant)

A rota da colonização projetou certas cidades, lugares, espaços/tempos em


nossas subjetividades. Lugares e cidades inventadas como rotas de passagem obrigatórias,
referências, marcos ou ícones da expansão dos mercados e da vitória da “civilização”
sobre os “sertões” e por sobre os “bárbaros” e “incivilizados” de diferentes culturas. Rotas
turísticas, objetos de desejo ou duos naturalizados de múltiplas formas: Paris-Istambul,
Veneza-Pequim, Paris-Dakar, Madri-São Paulo, Brasília-Belém, São Paulo-Santiago
do Chile, Rio-São Paulo, Ámsterdam-Milão, Chicago-Los Angeles, Lisboa-Luanda,
Tombuctu-Rabat, Lisboa-Maputo, São Paulo-Orlando, Londres-Paris, Madri-Barcelona,
Moscou-Pequim, Buenos Aires-Montevidéo, Rio-Buenos Aires, Lima-La Paz, Berlim-Ro-
ma, Nova Iorque-Tóquio, Londres-Cidade do Cabo, entre tantas outras que estabelecem
a “ordem das coisas” e as formas de percepção universalizadas pelo mercado e pelo
capital. Rotas do silenciamento das diferenças e do apagamento de tudo o que é estra-
nho à imposição de certa cultura letrada, certas línguas, certa percepção estética, certo
referencial artístico, certa noção de gosto e beleza, certo padrão de modernidade, certa
criatividade, certa produção e circulação de valores, certa emancipação, certa narrativa
histórica e identitária. Em síntese, a imposição de uma universalidade globototalitária.
Este livro resulta de encontros fora desse tipo de rota, contrapondo-se aos seus
ordenamentos, subvertendo-os desde as margens. Encontros à margem dos convencio-
nais eixos ou idealizados centros de produção/difusão de uma “cultura letrada” e seus
produtores de tudo o que deve ser consumido nas “periferias” de um mundo assimétrico
e hierarquizado. Desde as margens porque falamos de encontros produzidos/realizados
no “oco do mundo”, mantendo distância dos ideais de “progresso da ciência” que sub-
juga e transforma a vida, os seres da natureza e os saberes em produtos ou coisas com
efêmero valor de uso e de troca em um mercado de selfs ou perfumarias de ocasião. Desde
as margens porque suas trajetórias e perspectivas são outras, brotando do “não-lugar”
na “linha abissal” que separa o norte e o sul, no dizer de Boaventura de Souza Santos.

As autoras/autores e textos/escritas/falas que compõem este livro se encon-


tram em extraordinário deslocamento, atualizando cisões com mercantilizadas rotas
de “desenvolvimento” e rupturas com sentidos únicos, atávicos. Os percursos dessas
autoras/autores, caminhantes de espaços/tempos outros, dizem mais que meros relatos
de viagem: Ana Pizarro e Rocio Bulnes se deslocam de Santiago de Chile para Puerto

7
Maldonado, passando por toda a região do alto Acre; Luiz Lopes sai de Lima para Quebec
e desde aí para Rio Branco; Gersem Baniwa se desloca de São Gabriel da Cachoeira,
no alto rio Negro, vai a Manaus e daí para o Acre; Edson Kayapó percorre metade do
Brasil, de Macapá a Porto Seguro e, desde esse porto de entrada das armas e brasões do
colonizador ibérico na Terra Brasilis, singra por quase quatro mil e quinhentos quilômetros
até as beiras de barranco do Aquiry; Amilton Mattos se desloca de Cruzeiro do Sul, no
vale do Juruá, com seus irmãos de caminhadas e das artes do canto/palavra/imagem:
os Huni Kuin; Enilce Albergaria traduz a poética de Édouard Glissant, partilhando-a
desde a Martinica até Juiz de Fora, nas Minas Gerais e daí à capital da acreania; Jones
Goettert se desloca da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, em um mergulho
de cidadão das muitas fronteiras, dos muitos começos.

As margens onde se realizam/acontecem os históricos encontros dessas autoras


e autores é Rio Branco, cidade (des)feita e refeita todos os dias, entre a floresta, o rio e
os igarapés que sempre estiveram presentes em suas múltiplas territorialidades. Desde
essas margens nossos deslocantes andarilhos partilham leituras, noções e traduções
não somente com Francisco Bento, Raquel Ishii, Jamila Pontes, Francemilda Lopes e
Carlos André – também caminhantes e andarilho(a)s das muitas fronteiras amazônicas
–, mas com outros interlocutores e outras interlocutoras no entrecruzamento de suas
interpretações, buscas, percepções, afetos. Os textos ou as escritas reunidas neste livro
foram discutidas/processadas nesses históricos encontros, sendo também históricos seus
sentidos, suas palavras/conceitos carregadas de significações, sons, gestos e imagens
constituindo um todo na contracorrente da rota norte-sul.
Um livro datado, devemos insistir, refletindo as encarnadas experiências
de suas autoras e seus autores. Exercícios do fazer da palavra/pensamento/conceito/
silêncio enquanto capacidade do agir, na perspectiva arendtiana, isto é, do exercitar-
se no mundo secular e produzir histórias ou metáforas na busca de alumiar e conferir
sentidos à existência humana. Exercícios de seres que navegam por outras águas, nos
versos do poeta, palmilhando outros caminhos, mas sem perder de vista que habitam um
mesmo mundo que é “um Todo composto por mil partes. De todo o mundo. De todos
os mundos”, como pontua Achille Mbembe em franco diálogo com Édouard Glissant.
Nessa direção, os textos e escritas reunidas neste livro são partilhas, intercâmbios das/
nas margens re-significadas e, portanto, centrais aos embates pelo espaço público em
um país de espetacularização da política e da justiça, um país no qual o simulacro,
vendido/propagado como realidade, ocupa lugar de destaque, eliminando o debate de
ideias pela mão de força do “voto cego”, solapando direitos duramente conquistados,
criminalizando opiniões e liberdades individuais, ameaçando nossas integridades físicas
e psicológicas nos tempos presentes.
Gerson Albuquerque, Rio Branco, Acre, Brasil.
Dias/noites quentes, umidade alta, chuvas esparsas.
Novembro de 2016.

8
El tránsito de la oralidad a la escritura
amazónica latinoamericana
Ana Pizarro

Para Ottmar Ette


Esta reflexión surgió hace unos veinticinco años atrás, cuando está-
bamos pensando una historia de la literatura latinoamericana. Porque ¿Cómo
hacer una reflexión histórica sobre la literatura sin considerar que se trata de
tres – por lo menos – sistemas literarios paralelos que tienen cada uno un ca-
rácter específico? ¿Acaso habría que pensar en un libro con páginas divididas
en secciones? ¿Cómo vamos nosotros occidentales, aunque mestizos, a hacer
una historia del discurso indígena? Es más ¿qué sentido de la historia y del
tiempo mismo tienen ellos?
Decididamente no podemos, ni nos corresponde hacerlo. Pero lo
que sí podemos historiar son los modos y los momentos en que el discurso, la
cultura indígena son apropiados por occidente. Es lo que reflexionaremos en
el presente trabajo, respecto de las narrativas amazónicas.
Cuando pienso en Amazonía no puedo sino concebirla en su conjun-
to, es decir, lo que se llama la Pan-Amazonía. Es decir, aunque mi objeto de
reflexión peque de enorme, creo que sus articulaciones culturales nos permiten
y a veces nos exigen pensar la totalidad, tal como lo he desarrollado en un
trabajo anterior.

9
También anteriormente me he referido a uno de los rasgos consti-
tutivos de la llamada “literatura” del continente como el de un conjunto de
sistemas que expresa las fracturas – económicas, sociales, del imaginario – que
son propias de la historia cultural en una constitución periférica. Ahora bien,
es sobre esta base que voy a desarrollar la siguiente reflexión. Ella se construye
al mismo tiempo en la consideración del entramado cultural latinoamericano
como un tejido. Estoy tentada por pensar este tejido como el de un canasto
como conciben aspectos de la realidad compleja pueblos indígenas como los
Muinane, que hablan de un “canasto de tinieblas” o un “canasto de vida”
para contener en tejido la complejidad de sus sentimientos. Este cañamazo
estaría constituido por flujos externos, apropiaciones y movimientos entre un
sistema literario y otro. En este caso quiero observar, en el proceso literario
amazónico, algunas relaciones entre el sistema popular oral, el sistema indígena
y el sistema ilustrado. Porque lo que llamamos literatura amazónica implica
la coexistencia de estos tres sistemas, de estas tres formas del discurso que
son paralelas, que están superpuestas: unas hegemónicas, otras invisibilizadas
por situaciones históricas de inferiorización social. Cada uno de los sistemas
presenta un receptor diferente: individual o masivo, un lector o un auditor
espectador. También un soporte distinto que lo sustenta: libro, oralidad, per-
formance. Esto significa también un emisor distinto: escritor o narrador oral
con toda la diferenciación que esto implica.
El sistema popular está representado por varios géneros, musicalizados
o no: el desafío o la literatura de cordel, entre otros esta procede en mayor medida
de la inmigración que se da en la segunda mitad del siglo XIX y comienzos
del XX, así como entre los años 40 y 45 del siglo pasado, provocada por la
extracción del caucho y la llamada “Batalha da Borracha”, durante el segundo
gobierno de Vargas. Allí como sabemos, se trae, con engaño, a trabajadores
procedentes del nordeste de Brasil, que sufren la sequía de su lugar de origen.
Esta situación de desplazamiento va a marcar la tónica de esta literatura.
Leo para ustedes como ejemplo de la temprana producción de este
género en Amazonía un texto de 1916 que se inscribe en el momento de
decadencia de la historia del caucho, cuando los capitales ingleses salen de
Amazonas hacia las propiedades asiáticas y sólo queda para los trabajadores,
diseminados en diferentes labores, cesantes o vueltos al nordeste natal el mal
sabor de lo experimentado allí:

10
Vou manifestar ao publico
Um pouquinho da historia
Da vida do Amazonas
O que gravei na memória
Aonde estive seis anos;
Fui feliz contar victoria
Lá bebi gota de fel,
Daquele bem amargoso,
Dei graças a Deus sahir,
Me julgo bem venturoso;
Hoje sei que o Amazonas
E um sonho vil, enganoso!1
Se trata en este caso de una poesía en heptasílabos. Existen diversos
géneros en el área de las súcias o las pagodes, a veces cantadas y bailadas con
tambores, a menudo después de las ladainhas cantadas al lado de capillas e
iglesias. También encontramos rodas y mucha poesía que se canta al son de
panderos y violas, poesía memorizada o creada. Con géneros y temas de
origen nordestino con flujos portugueses y africanos, el universo del sistema
literario popular es complejo en Amazonía, como en el Nordeste, y también
se observan figuras del panteón popular de este último, como es el caso de la
historia de la Donzela Teodora, por ejemplo. Con sus componentes históricos,
sus imágenes legendarias, su dimensión nostálgica, esta poesía musicalizada
se mezclaba en sus orígenes con sones y danzas de origen europeo como la
quadrilha. De todos, son el cordel y la cantoría los géneros nordestinos que
pueden reconocerse como tales en Amazonas cuya importancia en el período
del caucho es mayor, al punto de poseer una editorial en Belém y otros lugares,
la famosa Guajarina, que difunde los saberes de los inmigrantes venidos a
trabajar desde el nordeste.
Como sabemos, este género está vigente y actualmente es objeto de
estudios académicos. Ahora bien: creo que aquí se presenta un primer problema:
¿qué es lo que llamamos “popular”? Como sabemos, también el término es
referido a las culturas mediáticas, en lo que se llama la “música popular bra-
sileña”. No entro en esta cuestión, pero la interrogante está: ¿podemos hablar
de lo popular y lo indígena como un mismo objeto? Lo cierto es que cuando
lo indígena entra en el terreno de lo ilustrado, lo que socialmente realiza en la
periferia de las ciudades, se incorpora en otros ámbitos que lo subalternizan,
1
Amaral, Despedida do Piauhy/ O rigor do Amazonas, 1916.

11
es decir cuando culturalmente es apropiado por la cultura ilustrada toma dis-
tintos perfiles. Nos referiremos a esto más adelante, porque lo que queremos
observar hoy es cómo la literatura occidental absorbe las culturas indígenas
literariamente.
Consideramos las culturas indígenas como un sistema aparte dentro
de los que constituyen la voz literariocultural de Amazonía, en el sentido de
que se trata de emisores diferentes: un poeta o narrador oral, una textualidad,
objeto de análisis oral – escasamente en soporte escrito y no necesariamente
en escrituras alfabéticas – en lenguas no europeas variadas. Finalmente con
un receptor masivo que incorpora el texto visual y oralmente ya que su expo-
sición es performática.
Entonces un segundo sistema propio de esta área cultural es el de las
llamadas “literaturas indígenas”. Hoy se habla de etnoliteratura o etnotexto.
En realidad sabemos que “literatura” no es la denominación adecuada pero
la usamos a falta de otra. Aquí, en este sistema literario indígena la situación
tiene también mucha complejidad: las lenguas son diferentes entre ellas, los
géneros son distintos de los que aparecen en el sistema popular y el ilustrado,
su función es otra – hay cantos de trabajo, de ritual, por ejemplo –, se trata
de objetos auditivos estéticos variados, que están destinados a un público no
occidental y cuando llegan a nosotros necesariamente cambian su fisonomía.
Observemos esta situación. El cambio se da en primer lugar de lo
oral a lo escrito, porque significa el congelamiento de un material que está
en perpetuo movimiento y transformación a pesar de la índole conservadora
de la tradición. En este primer nivel es posible pensar en ese texto del grupo
dessana, que publicaron directamente personas de ese grupo, abriendo el nuevo
saber para nosotros de su cosmogonía. En ella aprendemos, por ejemplo que
el origen de la existencia fue una mujer y percibimos cómo el mito cumple su
función ordenadora del universo, aún en sus conflictos y tensiones. Ordenado-
res de un mundo que tiene desde luego una lógica diferente de la occidental,
en donde la oposición puede no ser contradictoria y convivir. En donde los
tiempos se superponen y muestran un diseño variado, en donde la relación
entre los hombres y la naturaleza, como entre ellos mismos, poseen una vin-
culación fluida que desconocemos en Occidente. Tomo la voz dessana y leo:
No princípio, o mundo não existia. As trevas cobriam

12
tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher
por si mesma. Isso aconteceu no meio das trevas. Ela apa-
receu sustentando-se sobre o seu banco de quartzo bran-
co. Enquanto estava aparecendo,ela cobriu-se com seus
enfeites e fez como um quarto.[...] Ela se chamava Yebá
Buró, a “Avó do Mundo” ou, também “Avó da Terra”.2

Este pensamiento comienza entonces em la segunda mitad del siglo


XX a aceptar el desafio de la escritura alfabética de la imprenta, en la medida
en que los pueblos indígenas han entrado en relación con el mundo occiden-
tal, con que la modernidad, que les había negado. Su existencia evoluciona
hasta un principio de reconocimiento em razón de una lucha histórica de ellos
mismos y la sociedad, pero en situación de subalternidad. Evidentemente esto
implica importantes decisiones: escribir es aceptar la lengua como alfabeto,
que ha sido una de las formas de mayor poder de occidente sobre ellos. Pero al
mismo tiempo – y con critérios de realidad – es un modo de resistir instalando
la memória indígena en toda la sociedad. Es el conflicto que han enfrentado
las literaturas luego de la descolonización en África en los años sesenta del
siglo pasado y así han visto un potente desarrollo de la novela, con autores
magníficos como Wole Soyinka, Pepetela, Mia Couto o Ahmadou Kourouma.
Lo han enfrentado también las literaturas del Caribe después de los textos de
la Negritud, llevando adelante grandes discusiones y propuestas con autores
como Edouard Glissant, Patrick Chamoiseau y su tesis sobre la “créolité”.
Es decir, es una discusión productiva, que tiene que ver com definiciones de
sentido y función de la literatura y que ha dado buenos resultados.
Pero el texto dessana no es lo común porque se trata de un sistema
literario, el indígena, que no llega a la imprenta, de un saber que se rige por
códigos de oralidad, que no es, como se la suele considerar, un momento que
desemboca en la escritura como plenitud, sino que es otra forma de relacio-
narse con los otros y con el mundo. La oralidad llega excepcionalmente a la
escritura y ésta necesariamente la distorsiona. Ahora bien, esta alteración se
experimenta más aún cuando existe un intermediario: llámese sacerdote, in-
formante, escritor, antropólogo y aún más cuando es necesario llevar a cabo
su traducción. Pienso, por ejemplo, en el caso mexicano, en los informantes de
Sahagún, pero también en la labor magnífica de León Portilla para el trabajo
del náhuatl o las lenguas mayenses, así como el de Roa Bastos para el caso
2
Kruger, Amazônia: mito e literatura, 2011, p. 53.

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guaraní. Se trata de textos que para llegar a nosotros – no occidentales sino
occidentaloides – necesitan sufrir una mediación. Los temas tienen nexos en-
tre las diferentes literaturas en cuanto a la relación del creador con el mundo
natural, en la aparición de contenidos cosmogónicos, a veces la perspectiva
histórica, a veces mítica, como sabemos. En esta literatura, según ha anotado
el investigador colombiano Hugo Niño para el caso witoto la capacidad sim-
bólica de este pensamiento codifica la historia en términos míticos. Es lo que
anota para la narración de Gitoma y la absorción mítica de la tragedia del
caucho con el episodio de la Casa Arana, en el Putumayo.3 Es decir estamos
hablando de un sistema literario de gran complejidad.
Ahora bien, tal como hemos estado desarrollando en otros trabajos,
estos sistemas, que tienen un perfil bastante definido, como vemos, no son
cerrados. Ellos responden a formas del imaginario de la vida social y expresan
por eso mismo sus fracturas, sus tensiones, sus transformaciones, sus movi-
mientos, en suma. Se trata de sistemas mayor o menormente permeables y
esto permite la existencia de una circulación entre ellos, regida en general por
la dinámica de poder dentro de la sociedad. Ellos absorben y transforman,
apropiándoselos, elementos, temas y problemas de otros sistemas culturales.
Por ejemplo el sistema popular se apropia creativamente de contenidos por
una parte del sistema ilustrado, como asimismo toma contenidos del sistema
cultural de masas, el mediático. Muchos de los relatos de cordel actuales toman
historias y problemas de la televisión o los periódicos, interpretándolos en una
perspectiva y lenguaje populares. Así señala un investigador: respecto de las
noticias sobre Lampião que publicaba ya en 1926, A folha do Norte:
Embora tratando-o como bandido violento e sanguinário, o seu fol-
leto (el de Arinos en Guajarina) Já traduz o mito de suas facanhas grandiosas
e horrendas:
Eis aquí descrita a grande
e mais completa historia
do maior dos bandoleiros
que na sua trajetória
de crimes , os mais horrendos,
nao há o mundo memoria.
Nem a Calabria famosa
Na história de crimes tantos
Deu bandoleiros famosos
3
Hugo, El etnotexto: las voces del asombro, 2008.

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E de tao rudes encantos
Como o celebre bandido
Que foi rei de quatro cantos.4

El sistema indígena es menos permeable en principio en cuanto a


la literatura estrictamente. No toma en general elementos de otros sistemas.
Aunque hoy se comienza a hacerlo dado que existe desde fines del siglo XX
una nueva perspectiva desde los pueblos indígenas en donde ya hay profesio-
nales que se expresan en la escritura y a través de recursos occidentales. Porque
aunque en principio esto es lo que sucede estrictamente en el plano literario,
culturalmente los indígenas, como sabemos, experimentan un proceso violento
de occidentalización que recién hoy, con la aparición de los últimos grupos
no contactados de la Amazonía peruana, pareciera que se está poniendo en
discusión a gran escala.
El sistema ilustrado, en cambio, con la escritura y el libro, así como
los medios tecnológicos de hoy lleva a cabo apropiaciones de los dos sistemas
anteriores. Ello no se sitúa en general en el campo de lo formal sino que apunta
al terreno del enunciado, a los temas y problemas que estas literaturas evidencian
y centralmente al sujeto de la enunciación y su relación con el mundo. Aquí
justamente es: ¿cuáles son los modos con que la literatura occidental expresa
al mundo indígena? La historia de la relación es larga, conflictiva y está llena
de silenciamientos. Además se evidencian muchas dificultades para lograr la
autenticidad del objetivo.
El texto indígena a que hicimos alusión al comienzo: Antes o mundo
não existía parece ser la forma más directa con que la escritura occidental re-
coge el imaginario cosmogónico indígena. Es el relato de un padre a su hijo,
es decir, se trata de una comunicación entre pares, por lo tanto el pensamien-
to original estaría casi inalterado por la presencia del interlocutor, y ambos
aparecen como los autores. Es una vinculación directa, antes de esto está la
oralidad. Evidentemente hay de por medio un trabajo de edición: no están allí
las marcas explícitas de la conversación: las dudas, los silencios, las preguntas.
Un segundo nivel entre oralidad y ficción literaria ilustrada está en el
relato oral intermediado por un interlocutor. En este caso hay el interlocutor de
formación occidental y están los profesionales: el antropólogo, el profesor, el
investigador en general. Aquí encontramos el caso de la publicación de Hugo
4
Salles, Repente e cordel. Literatura popular en versos na Amazonia, 1985, p. 187.

15
Niño Literatura de Colombia aborigen.5 Alli un grupo de profesionales recoge la
voz y los relatos de distintas etnias, incorporando grupos amazónicos witoto.
Más allá de la voluntad, el cuidado y la valorable intención de dar a conocer
el imaginario invisibilizado del mundo indígena, tenemos que considerar que
aquí siempre existe una mediación, y toda mediación aunque ínfima, altera
la postura del narrador, imprime un sello de interlocución a su imaginario.
Además del trabajo de edición sobre el texto original hablado. No están allí
los gestos, los desplazamientos, las inflexiones de la voz, todo lo que implica
la performatividad de lo hablado. Sin embargo son textos que rescatan y de
allí su enorme valor, en la medida de lo posible, la oralidad indígena y la dejan
congelada en la escritura como un legado del saber de pueblos que no han
tenido históricamente derecho a la palabra en el universo occidentalizado de
sus naciones. Ahora bien, la escritura congela un movimiento, pero al mis-
mo tiempo permite lecturas múltiples en el tiempo, es decir, le proyecta otra
dimensión de vida.
Más allá de este tipo de intermediación, para conseguir una autenti-
cidad mayor sólo se encuentran aquéllos que incorporan pensamiento mítico,
desgravados de su expresión original, como los fragmentos recogidos por
Priscila Falhauber en O lago dos Espelhos6 en la Amazonía brasileña. Se trata en
este caso de un trabajo antropológico. El trabajo de los antropólogos ha sido
un trabajo de mediación, de distinto carácter y con diferente sentido y como
sabemos su papel ha dado lugar a importantes discusiones durante el siglo XX.
La ficción que incorpora las voces indígenas, su imaginario, o incluso
el sujeto de su enunciación, que es lo más corriente, tiene su antecedente en
el texto épico amazónico Muhuraida, escrito por J. Wilkens cuyo manuscrito
es de fines del siglo XVIII en donde el autor, un militar portugués, narra la
conversión religiosa de la etnia mura al protestantismo.
En este momento se plantea otro problema: el de la delimitación
del objeto de análisis. ¿Qué va a ser considerado como literatura amazónica:
aquella que se escribe desde el área amazónica y por quienes pertenecen a
ella, o también la literatura que, con tema amazónico se escribe fuera del área?
Porque tal como apuntábamos en una publicación anterior, esta área, que tiene
escritores excelentes como Inglés de Souza, Dalcidio Jurandir, actualmente
5
Hugo, Literatura de Colombia aborigen, 1978.
6
Belem y Goeldi, 1998.

16
Marcio Souza o Milton Hatoum, es fuertemente mítica para el exterior de
ella, incluidos los países que la conforman. Esto hace que también exista una
literatura de tema amazónico, muy importante. Es el caso sin ir más allá de
José Eustasio Rivera con La Vorágine, que estuvo en la zona en una comi-
sión de límites enviado por el gobierno colombiano, del mismo modo como
lo estuvo Euclides da Cunha en Brasil y en relación a esto escribió aquellos
ensayos hermosísimos que se conocen como A margem da história. Es el caso de
Macunaima (1928), el relato clásico de Mario de Andrade que visitó la zona y
lo escribió a partir de un estudio antropológico. Es el caso de Darcy Ribeiro y
su novela Maíra (1996), entre tantos otros. Entonces, a pesar de que el campo
que se observa es ya demasiado amplio, en este caso se necesitaría ampliar
mayormente el espectro y referirse más bien a la literatura de tema amazónico.
En este punto la incorporación del sistema popular, que describíamos
al comienzo, como la del sistema indígena encuentran un camino similar. A
lo largo del siglo veinte observo dos tipos de incorporación en la narrativa
ilustrada, que es el género al que hago ahora referencia. Me parece que en la
poesía la situación es más compleja y no la considero ahora.
Existe por una parte una narrativa que se apropia de temas y proble-
mas del mundo popular e indígena, pero no lo incorpora como voz. Hay en
algunos casos ficcionalización del habla popular, imitación sin incorporación
real. En gran parte de la narrativa del caucho, que es apreciable, en Colombia
y en Bolivia, es el caso y responde a una construcción narrativa lineal tradi-
cional, que observa desde una posición externa. En el Perú es la focalización
que se experimenta por ejemplo con Ciro Alegría y La serpiente de Oro, de tema
amazónico. Actualmente es la percepción que Mario Vargas Llosa entrega del
mundo de los caucheros en su novela sobre Roger Casement, El sueño del celta.
Allí intenta describirlos pero, con sensibilidad paternalista, termina propo-
niendo una maqueta en donde aparecen sin perfil definido, del mismo modo
como lo hace con los trabajadores del caucho en el Congo. En algunos casos
narrativos la ficcionalización alcanza gran valor estético, como en La Vorágine
de J. E.Rivera, con el universo también de los trabajadores del caucho. Pero
la perspectiva externa no siempre es feliz y es la que imprime un sello a una
importante producción narrativa sobre el tema en Perú, Bolivia y Colombia. En
Brasil, este perfil tiene un gran escritor como es Marcio Souza, en Mad María,
que relata la historia del ferrocarril Madeira-Mamoré. El caso exactamente

17
opuesto es el del escritor boliviano Diomedes Pereyra. Se trata en este último
caso de la folklorización, que es una forma de subalternización del indígena.
La otra forma de integración y expresión de la cultura indígena se
encuentra en un tipo de narrativa que rompe el esquema lineal y sale de la
voz tradicional que refiere a la vida de los grupos, el individuo y su cultura.
Se trata de la narrativa que, como Macunaima o Maíra intentan expresar una
lógica alternativa. Me parece que el resultado muestra una coherencia que el
lector percibe como propia de otra forma de vida a la que accede sólo a través
de una transposición del lenguaje y de las estructuras narrativas. Observo
como un caso especial una novela poco conocida, que hace poco tuvo una
reimpresión en el Perú. Se trata de Las tres mitades de Ino Moxo y otros brujos
amazónicos, de César Calvo,7 un autor nacido en Iquitos en 1940 y muerto el año
2000. Desde el título entramos en otra esfera de comprensión de la realidad.
De hecho gran parte del libro está escrito a partir de visiones de la ayahuasca
y su alteridad se percibe. Es una composición fragmentada que muestra – ya
en los años setenta la factura múltiple de una sociedad y una cultura así como
una comprensión de la vida que se sitúa en diferentes niveles de percepción y
en donde la naturaleza entra en comunicación fluida con los seres humanos.
Calvo no pretende otra cosa que poner frente a nosotros, en la medida en que
logremos una comprensión, espacios diversos y formas de relación del mundo
indígena con la vida a los que los occidentales no accedemos. Para ello nos
pone enfrente de las reflexiones de cuatro pagés amazónicos y nos sitúa en el
Perú histórico de distintos momentos, entre otros el de las luchas políticas de
los años setenta. Observa Antonio Melis que allí los guerilleros se enfrentan
a dos formas de ver el mundo y dos concepciones del tiempo que les impide
la comunicación.8
En una maniobra poética de gran alcance, Calvo es dos y uno al
mismo tiempo, en un desdoblamiento que muestra la complejidad del uni-
verso en donde se revela la unidad en la pluralidad social, el yo que es al
mismo tiempo el grupo: el “yosotros” que dice él, construye una cosmología
en movimiento de pasado, presente y futuro, diferente de la occidental. Inicia
así al lector en la apuesta de que la utopía no es lo imposible sino que existen
posibilidades de construir un mundo en que el viaje hacia si mismo encuen-

7
Calvo, Las tres mitades de Ino moxo, 1981.
8
Melis en Calvo, Las tres mitades de Ino moxo, 1981, pp.18-19.

18
tre en su desplegarse a los otros. Relato de desdoblamientos y metamorfosis,
apunta Antonio Melis. Un mundo en donde la experiencia abre la entrada a
universos plurales de la existencia. Esas posibilidades las ofrece la vivencia de
la selva en su relación con la experiencia indígena, en su caso en el Ucayali.
Ino Moxo es una novela-poema, que también es entrevista y reflexión. Y es
importante su descaracterización de los géneros, otra forma suya de alterar la
experiencia convencional de occidente. Dentro de los múltiples relatos, como
el de la matanza de los asháninka en el Gran Pajonal de don Juan Cuesta y los
otros pagés, César Calvo nos introduce a ese mundo con la historia del niño
Aroldo que desapareció cuando un tigre rodeaba la casa y lo vieron conver-
tido en chullachaqui, el personaje del bosque con un pie defectuoso. Entonces
explica don Juan Tuesta:
Un chullachaki es más, no el demonio del bosque, aquel
espanto que las gentes creen, no. Existen otras clases. Un
chullachaki es idem que persona. Más es y menos es: ape-
nas apariencia de persona. ¿Me estás entendiendo cuan-
do digo apariencia? El maestro Ino Moxo puede crear así
personas que no son y que sí son personas, demasiado y
muy poco, siempre considerando lo bastante y lo menos
de las gentes dentro de su normal, en su costumbre ¿me
estás entendiendo?9

La novela de César Calvo como relato de la otredad no es sólo la


introducción de términos del mundo indígena o la incorporación de sus mitos,
es una construcción a nivel poético de un lenguaje narrativo que incorpora
otra forma de ver el mundo, que nos descentra el equilibrio del universo que
creemos habitar, que nos pone enfrente a una estructura estética absorbente,
para situarnos en la posibilidad de otra manera de experimentar la vida, su-
midos en valores solidarios con la naturaleza, con el mundo, con el hombre.
He querido referirme a este texto porque creo que la única manera
que tiene la experiencia occidental de recuperar literariamente los valores
y cosmología del mundo indígena amazónico es en la construcción de un
lenguaje y una estructura alternativos, como lo hizo Guimarães Rosa con el
sertón de Minas o José María Arguedas con la cosmovisión quechua. Una
estructura literaria que respete la existencia de la literatura indígena como un
sistema propio del que sólo es posible desde nosotros, entregar una versión
9
Calvo, Las tres mitades de Ino moxo, 1981, pp. 34-35.

19
altamente simbólica. Más allá de ello, la oralidad necesita seguir su camino
y eventualmente ser estimulada, como señala José Ribamar Bessa Freire, a
través de las nuevas tecnologías. Se trata de sistemas diferentes, cada uno con
su vocación y su función dentro de nuestras sociedades.

Referencias
AMARAL, Firmino Teixeira do. Despedida do Piauhy/O rigor do Amazonas. Be-
lém: Typ. Delta - Casa Editora, 1916.
CALVO, César. Las tres mitades de Ino Moxo y otros brujos amazónicos. Lima:
Iquitos y Editorial Gráfica Labor, 1981.
GOELDI, Emilio. Museu Parense. Belem, 1998.
HUGO, Niño. El etnotexto: las voces del asombro. La habana, 2008.
HUGO, Niño. Literatura de Colombia aborigen. Bogotá: Instituto Colombiano de
Cultura, 1978.
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus (AM): Editora
Valer, 2011.
MELIS, Antonio, en CALVO, César. Las tres mitades de Ino Moxo y otros brujos
amazónicos. Lima: Iquitos y Editorial Gráfica Labor, 1981.
SALLES, Vicente. Repente e cordel. Literatura popular em versos na Amazonia.
Río de Janeiro: Funarte, 1985.

20
Los discursos amerindios, de antes y
después de la invasión de América,
son el fundamento de toda la sociedad
americana1
Luis Alberto López Herrera

Con razón se ha afirmado que América Latina (sic) que-


daba excluida, como fuera de la historia. La cuestión es
proponer una “reconstrucción” que sea histórica y ar-
queológicamente aceptable y que al mismo tiempo corrija
la desviación eurocentrista […].
Los pueblos y etnias indígenas americanas no entran en
la historia mundial como contexto del descubrimiento de
América (sic) […]. Debe encontrarse racional e históri-
camente su lugar en la historia. Para ello deberemos re-
montarnos a la “revolución neolítica”, desde la invención
de la agricultura y la organización de confederación de
ciudades (la “revolución urbana”). Si este momento se es-
tudia en el tiempo y en el espacio, concluiremos – al con-
trario de lo que proponía Hegel – que dicha revolución
se sitúo primeramente en el Oeste (en Mesopotania y algo
1
Este trabajo fue presentado en el VII Congreso Nacional de Historia del Perú, realizado en La
Universidad Nacional de Trujillo, Perú, el 10 de agosto de 2016. Luego, en la XII Jornadas
Andinas de Literaturas Latinoamericana. JALLA 2016, La Paz, realizada en la Universidad Mayor
de San Andrés (UMSA), en La Paz, Bolivia, el 12 de agosto de 2016. Y también en el I
Congreso Internacional: Los territorios discursivos en América Latina. Interculturalidad, comunicación e
identidad, el 12 de septiembre de 2016, en Quito, Ecuador.

21
después en Egipto) y que fue surgiendo sucesivamente, sin
necesarios contactos directos, hacia el Este: en el valle del
Indo, en el valle del río Amarillo o China, y más allá de las
culturas del Pacífico, en el espacio mesoamericano (para
culminar con Mayas y Aztecas) y en los Andes del Sur (en
las regiones del imperio Inca).2

Introducción
Utilizaremos una metáfora antropológica que pueda servir para
ilustrar el desatinado estudio de toda la sociedad americana que impera en
las instituciones académicas. Preguntémonos quién es más determinante en
la vida de un ser humano: el padre o la madre. Largo sería el debate, pero
nosotros transamos, creemos que es la madre la más determinante. Esto por
el hecho que nosotros hemos estado en el cuerpo de nuestra madre durante 9
meses, aparte que tenemos una relación íntima con ella durante los primeros
años de nuestra vida. El ser humano es un ser cultural que nace en el seno
corporal-cultural de su madre, en un contexto social preciso. La relación con
la madre es un hecho determinante.3
De manera análoga a la metáfora antropológica sugerida, tomemos
ahora a la cultura amerindia y a la cultura europea, como la “Madre” y el
“Padre” de América respectivamente, y hagámonos la misma pregunta an-
terior. ¿Quién es más determinante en toda la sociedad americana? el Padre
o la Madre. Nuevamente, largo sería el debate, pero transamos una vez más.
Nosotros creemos que es la Madre amerindia, porque hemos “estado en su
vientre” desde hace por lo menos 30.000 años. La presencia del Padre, de la
cultura europea, solo data de un poco más de 5 siglos. Culturalmente es irre-
levante, pero no por esto no perniciosa.
En efecto, el desprecio, la ignorancia, la falta de una perspectiva
histórica del mundo adecuada impiden reconocer que los elementos determi-
nantes de la cultura americana son desde siempre los de la cultura amerindia.
Valgan algunos ejemplos que demuestran la importancia de la cultura
amerindia.
2
Enrique Dussel, 1492. El encubrimiento del otro (Hacia el origen del “mito de la modernidad”),
Madrid, Editorial Nueva Utopía, 1992, pp. 103-104.
3
La relación de un ser humano con su madre en los 9 meses de gestación van a “marcar”,
positiva y negativamente, la vida de todo ser humano de acuerdo al estadio emocional y
físico de la madre. Véase: Michel Odent, La vida fetal, el nacimiento y el futuro de la Humanidad,
Tegueste, Editorial Ob Stare, 2008.

22
El filósofo canadiense anglófono John Ralston Saul, en sus libros Re-
flexions of a Siamese Twin. Canada at the End of the Twentieth Century4 [Reflexiones
de un hermano siamés. Canadá al fin del siglo XX] y A Fair Country. Telling About
Canada,5 (traducido al francés con el significativo título: Mon pays métis. Quelque
vérités sur le Canada).6 argumenta que el proceso histórico de la formación de
la sociedad canadiense no se comprende sin las relaciones y negociaciones
políticas entre los gobiernos francés y británico con las múltiples comunidades
amerindias durante los primeros 3 siglos después de la Invasión europea. Es la
ética amerindia basada en la paz, justicia y buen gobierno el pilar fundacional
de la sociedad canadiense. Si no fuera por este hecho histórico el territorio
canadiense sería hoy probablemente otros territorios de los Estados Unidos.
Según Bruce Johansen y Donald Gringe7 la constitución política
americana se formuló basada en el modelo de las prácticas democráticas ame-
rindias de la confederación iroqués y de otras naciones amerindias residentes
en el actual Estados Unidos. Además, a partir del siglo XIX, la concepción
iroqués de las relaciones entre los varones y mujeres ejercerá una influencia
importante sobre los iniciadores del movimiento feminista estadounidense y
sigue siendo de plena actualidad.
En el 2015, en Montreal, Canadá, se estrenó un film documental el
título L’Emprinte8 [La huella]. El film argumenta que muchas características
sociales actuales de la sociedad quebequense son herencia de las culturas
amerindias que poblaron la región de la actual provincia de Quebec, y no
4
Toronto, Penguin Canada, 1998.
5
Toronto, Viking Canada / Penguin Group, 2008.
6
Montreal, Boréal, 2008.
7
Bruce Johansen es profesor titular de la cátedra Frederick W. Kayser en la facultad de ciencias
de la comunicación de la Universidad de Nebraska, en Omaha. Con su colega Donald Grinde,
Johansen se ha ocupado de investigaciones sobre la influencia significativa que han ejercido
las prácticas amerindias en la gestión de asuntos públicos en la Constitución de los EE.UU.
Esta tesis revolucionaria en la época es largamente admitida hoy. Los métodos del gobierno de
los EE.UU no se deben solo a los ejemplos más conocidos de Grecia, de Roma y del derecho
común británico. Los conceptos de democracia practicados por los amerindios de EE.UU han
jugado igualmente un rol. Los imigrantes venidos a América en la época colonial buscaban la
libertad. Ellos han encontrado el ejemplo en la Confederación de iroqueses así como en otras
naciones amerindias del continente. Estos conceptos fueron ampliamente propagados en el
seno de las antiguas colonias británicas, y tenidos en cuenta en la Convención constitucional
de 1787. A partir del siglo XIX, la concepción iroqués de las relaciones entre los varones
hombres y mujeres ejercerá una influencia importante sobre los arquitectos del movimiento
feminista americano y sigue siendo de plena actualidad.
Véase: https://goo.gl/bRxIbR. e https://goo.gl/2UoBsv.
8
Poliquin, C.; Isitan, I. (productores) y Poliquin, C.; Dubuc, Y. (directores). (2015). L’Empreinte
[documental]. Canadá. ISCA Films / Les productions ISCA.

23
de la sociedad francesa o británica. Por ejemplo, la lucha por la igualdad de
derechos de los varones y mujeres, el hecho de tomar decisiones en círculo, la
conciencia ecológica, etc.
El 18 de mayo de 1781, José Gabriel de Condorcanqui, conocido
como Tupac Amaru II, descendiente de Manco Inca (1515-1545) y Tupac
Amaru I (1545-1572), fue ejecutado conjuntamente con toda su familia, en
Cusco, 249 años después de la ejecución de Atahualpa. Ciertas dinastías de
las élites incas y de otras etnias sobrevivieron a la exterminación acontecida
durante la dudosa Conquista, gracias a hábiles negociaciones políticas con la
administración española. Recordemos que hasta antes de la Independencia
de Perú había en la sierra de los Andes peruanos una “República de índios”
y en la costa una “República de criollos”.
Hoy, en varias regiones del continente americano, viven decenas de
comunidades amerindias cuyas historias tienen una continuidad histórica casi
ininterrumpida. Ellas producen en sus lenguas cientos de discursos y textos.
A estos podemos agregar la existencia de otros cientos de discursos y textos
registrados durante los últimos cinco siglos pasados. Es un inmenso corpus
que espera ser estudiado globalmente.
Estos ejemplos dados, de la presencia de la cultura amerindia en
lugares evidentes e insospechados pero vitales de nuestra sociedad americana
no son debidamente valorados. Es más, creemos que no pueden ser estudia-
dos debido a que prima en el estudio de la sociedad americana la perspectiva
heleno-eurocentrista. Esta, induce a muchas disvirtuaciones de la sociedad
americana y mundial, de las cuales oculta el accionar y la vitalidad de la con-
tinua presencia histórica amerindia.

Crítica a la crítica literaria de América “latina”


No hay teoría del lenguaje, en consecuencia no hay teoría de la lite-
ratura, mejor especificada esta como las tantas veces anunciada poética.9 Al no
haberse podido especificar el objeto de estudio de la poética, la interpretación
de la literatura es incoherente. No se ha podido señalar la importancia de la
literatura en la sociedad y tampoco que está asociada a la política, la ética,
la teoría y el lenguaje. Esta interelación fue planteada ya, ambiguamente por
9
Veáse nuestro artículo: “La poética. Una proposición desde la literatura americana”, en
Albuquerque y Antonacci (organizadores), Desde as Amazônias, 2014, pp. 259-277.

24
cierto, desde el tiempo de Aristóteles. La poética o teoría de la literatura de-
bería la manera como los discursos se transforman y se articulan de manera
conflictiva en un texto de contexto espacial temporal preciso.
Pero para nosotros no sería suficiente la hipotética poética. Tendrá
que ser más bien una Poética de la liberación que deberá indicar la insurgencia de
nuevas formas de pensamiento. Para ello tendrá que evitar adoptar la perspectiva
heleno-eurocentrista para indicar la presencia de discursos invisibles, el discurso
de las víctimas principalmente y la manera como insurgen históricamente como
discursos interpelantes en un texto-poema elaborado por un individuo ético que
entiende a la historia como una determinación determinada, determinando y,
quizás, auto determinándose.
El importante teórico francés Henri Meschonnic nos señala esta
compleja actividad poética:
No defino a la ética como una responsabilidad social,
sino como la búsqueda de un sujeto que se esfuerza por
constituirse como sujeto por su actividad, pero una activi-
dad tal que es sujeto aquel por quien otro es sujeto. Y en
este sentido, como ser de lenguaje, este sujeto es insepara-
blemente ético y poético. Es en medida de esta solidaridad
que la ética del lenguaje concierne a todos los seres del
lenguaje, ciudadanos de la humanidad, y es ahí donde la
ética es política.
La poética [de la liberación] es también una ética, ya que
un poema es un acto ético porque transforma al sujeto,
aquel que escribe y aquel que lee. Por lo cual transforma
también a los otros sujetos, desde el sujeto filosófico al
sujeto freudiano.10

La crítica literaria, que se autodefine como “latinoamericana”, estudia


sólo una supuesta literatura regional (la ¿“latina”?) seccionándola de toda su
fuente histórica la literatura americana y finalmente la mundial. Parece no poder
reconocer su sustrato fundador común, los discursos de la milenaria cultura
amerindia provenientes de Asia y Oceanía. No da cuenta de la singularidad
del continente americano y por esto no puede señalar de manera precisa lo
que sintetiza la literatura americana.
La historia debería servir como control epistemológico, pero la his-
10
Meschonnic, Ética y política del traducir, 2009 (2007), p. 8.

25
toria mundial está desvirtuada. La historia del mundo es una sola, pero al no
existir una historia mundial coherente, el heleno-eurocentrismo ha impuesto
una falsa perspectiva y ha inducido a “legitimizar” el estudio de la literatura
latinoamericana y americana solo a partir de 1492. Sin embargo, los discursos
amerindios tienen milenios de presencia en el territorio americano. Los dis-
cursos traídos por los migrantes asiáticos y algo más tardío por los migrantes
oceánicos se transformaron sin perder su impronta milenaria. Los millares de
textos amerindios (los mitos) esperan ser estudiados de manera prioritaria, sin
ellos no se entiende no solo el proceso de la literatura americana y mundial,
sino toda la historia mundial.
El estudio de la literatura desde la perspectiva de una Poética de la
liberación considera que los discursos interpelantes de las víctimas americanas son
los que generaron, generan, los textos más singulares de la literatura americana.

Una crítica a la filosofía y a la Filosofía de la liberación desde una Poética


de la liberación
La Poética de la liberación deberá criticar los límites de la filosofía
en general y de la Filosofía de la liberación. Efectivamente, ciertos filósofos
analizan el lenguaje de manera confusa, la mayoría lo da como un hecho
“natural”. Más, toda sociedad pasa por la utilización de discursos y textos. La
memoria cultural pasa por los textos orales y escritos. La Historia pasa por los
textos escritos. La filosofía pasa también por los textos. Los filósofos escriben
sus textos sin darse cuenta a qué los condiciona el lenguaje oral y escrito. Toda
filosofía podría, debería, ser criticada a partir de la teoría del lenguaje, pero
como ésta no existe, la filosofía realmente existente critica casi todo sin poder
autocriticarse fundamentalmente.
La filosofía heleno-eurocentrista propone la teoría tradicional del
lenguaje basada en el signo desde hace 25 siglos. La teoría del signo a su vez
se fundamenta en la palabra. Más aún, en la palabra-escrita. Pero nosotros los
humanos no hablamos con palabras, si bien es cierto que las utilizamos, ellas
no son la unidad fundamental de significancia, son los discursos. Lo propio del
ser humano no es ni el lenguaje ni la lengua, es el discurso. Un discurso se
presenta siempre instituido y refiere a un hecho o momento histórico preciso
muy importante para una comunidad. Lo repetimos, al no haber una teoría
del lenguaje basada en el discurso no hay poética. La poética señala la manera
cómo los discursos se interrelacionan haciendo un sistema discursivo, es decir
26
un texto. La filosofía está atrapada en un círculo viciosísimo porque pasa por
los textos. Si no hay poética, no hay teoría del lenguaje. Si no hay teoría del
lenguaje, no hay poética. La una se define en función de la otra. Mientras la
filosofía no explique estos demasiados “no hay”, el sentido de la totalidad es
dudoso. Pero por ello tendrá que enfrentarse a la poética.
La genialidad aristotélica consiste en haberse dado cuenta que existía
una poiética “que imita sólo con el lenguaje, en prosa o en verso […pero], carece
de nombre hasta ahora”.11 Aristóteles nos dejaba indicada la poética avant la lettre.
Y nos dejó en herencia un “misterio” que pocos parecen haberse dado cuenta
de su existencia y menos de poder resolverlo.
La poca “crítica” literaria seria, hay otra mayoritaria muy ingenua,
que quiere continuar el legado aristotélico, toma sin crítica y se confunde,
toma a la poiética como si fuera la poética. Por esto cuándo se le pregunta ¿qué
es la literatura?, la filosofía poco se la hace, no sabe qué responder. Estamos
entrampados. Pudiendo producir miles de miles de textos no sabemos cómo lo
hacemos ni qué significan. Y cuando más nos alejamos de nuestra cultura más
nos es difícil leer otros textos. Otra de las genialidades de Aristóteles es que
señaló que la poética está asociada a la política, la ética y el episteme. Entonces
no hay ni política ni ética ni episteme sin poética. Ésta es más importante de
lo que se cree.
La Filosofia de la liberación no es una excepción. No tiene ni teoría
del lenguaje ni poética, habla de estética. Ha aceptado, sin hacer sus notables
críticas a las que nos tiene acostumbrados, la falacia heleno-eurocentrista de
la teoría del signo. Por esto, creemos, su discusión con la llamada Ética del
discurso de Apel y Habermas fue un empate.12 Fue un diálogo de sordos a la
teoría de lenguaje. Los dos contendentes no tenían ni teoría del lenguaje ni
menos poética. El marxismo tampoco pudo ayudar a la discusión. Este sufre
de lo mismo.13
La Filosofía de la liberación ha insistido que una tarea principal es

11
Aristóteles, Sobre la poiética, 47 b 9.
12
Véase: Piñedo, El debate entre la ética del discurso y la ética de la liberación, 2004, pp. 45-72.
13
Declara Enrique Dussel: “Cuando comencé en noviembre de 1989 el diálogo con Karl-
Otto Apel comprendí inmediatamente que el formalismo de la razón discursiva (la Ética del
Discurso) debía ser criticada desde la materialidad de la razón económica. Ahora puedo dar
razones que era en ese momento solo intuiciones”. Cf. Dussel, El programa científico de Karl
Marx, 2001, p. 289, nota 50.

27
atender el discurso interpelativo de las víctimas. Objetivo importantísimo pero no
se da cuenta, por no haber pensado la poética, que la interpelación de la víctima
es ya lo más avanzado del pensamiento humano, la filosofía llega después,
será siempre un momento segundo o quizás tercero.
Los únicos en darse cuenta de la importancia de las interpelaciones
de las víctimas parecen ser ciertos poetas mayores en ciertos textos mayores.
En esta perspectiva, poeta no es cualquiera, es aquel individuo que perenniza el
momento histórico-crítico más preclaro de invención de pensamiento hecho por las
víctimas mediante sus prácticas, discursos y textos. La filosofía y los filósofos
no inventan nuevas formas de pensar, son las víctimas, pues quieren-seguir-vi-
viendo, sus asuntos son urgentes, vitales. Los poetas preclaros al considerar
estos discursos valiosísimos y al utilizarlos poiéticamente se hacen problemas
de utilizar los discursos antiguos y modernos y los reelaboran cuestionados
por los discursos de las víctimas en su contemporaneidad compartida.
La Filosofía de la liberación en el momento actual habla de la desco-
lonización mental. Indica bien que la colonización mental es el último reducto
del heleno-eurocentrismo y está luchando por erradicarlo. Pero, la Filosofía
de la liberación pareciera llegar tarde. Esta insigne tarea de la descolonización
mental ya lo hicieron primeramente las comunidades indígenas, las extingui-
das y las sobrevivientes, desde el momento de la Invasión de América. Pero
no sabemos leer sus miles de textos. La comunidades indígenas, que son el
núcleo de la cultura popular americana y de la cultura americana tout court,
más que nadie reelaboraron siempre los discursos foráneos que los negaban y
humillaban. Utilizando las matrices de los discursos milenarios provenientes
de Asia y Oceanía, y más antes de Africa, propusieron siempre respuestas a la
colonización nunca escuchadas y menos aún bien interpretadas. A propósito,
la propia Filosofía de la liberación es un producto de ese pensamiento popular
innovador. Pero ella tendrá que ir más allá. Tendrá que pensar más en una
Poética de la liberación.
La manera cómo se estructuran los discursos interpelantes en un texto
escrito es el asunto de la poética. La filosofía tanto como el poema son asuntos
a ser tratados por la poética. Entonces existe una poética de la filosofía que la
filosofía no quiere, no puede hacer, solo la poética puede hacerlo.
A partir de la Filosofía de la liberación y contra ella habrá que pro-

28
poner la Poética de la liberación. Nosotros la formulamos controlada epistemo-
lógicamente por el proceso discursivo de toda la historia mundial. Se trata de
integrar lo historiográfico y la evolución de maneras de pensar. Se supera la
visión de estudiar solo textos literarios, toda la sociedad pasa por lo discursos
y los textos. Solo así podremos relacionar la literatura americana con la del
resto del mundo, si “comienza” en Asia hace más de 30.000 años, habrá que
indicar como se reformula, casi independiente respecto al mundo exterior
a ella, hasta ser de nuevo reformulada violentamente cara a las maneras de
pensar del mundo exterior a ella desde 1492. Por ser esta historia singular, la
literatura americana es un apéndice notable del proceso de la literatura mundial.
Sí. La literatura americana y toda manifestación cultural tienen como
momento fundacional los discursos amerindios. El pensamiento americano se revela
entonces quizás como la síntesis más acabada del pensamiento mundial por
haber acontecido en América dos globalizaciones, la de antes y la posterior
a 1492. Al converger aquí en América todos los discursos del mundo, en esta
interrelación singular las víctimas americanas, que ya no se reducen sólo a las
etnias amerindias, los reformularon, dando lugar a unas avanzadas política,
ética y teoría, es decir se practicó una poética singular que deberá ser teorizada
adecuadamente.
Una Poética de la liberación que estamos esbozando se justificaría en la
medida que puede entender y atender las interpelaciones de las víctimas america-
nas y del mundo. De paso sería una crítica a toda filosofía realmente existente.

La impronta amerindia y las falacias heleno-eurocentristas a superar


América es el continente donde nosotros vivimos. Este continente
tiene características históricas muy singulares. Realzemos brevemente algunas.
América es el último continente que fue humanizado. Fue habitado
desde hace 40.000 años, dicen unos; y otras teorías, más plausibles, reforzadas
por el examen del ADN, dicen que hace 25.000 años, por grupos humanos pro-
venientes de Asia. Si tomamos en cuenta que nosotros somos los descendientes
de aquellos humanos que salieron de África, les tomó aproximadamente 70.000
años en llegar a América. Paulatinamente, después llegaron a América otras
oleadas de imigrantes. Hacia el año 800, llegaron también imigrantes prove-
nientes de Oceanía. Entonces, América fue desde hace milenios el escenario
de la primera globalización. Aquí, a América llegaron todos los hombres más
“modernos” de esas épocas, con todas sus culturas, sus discursos.
29
Nos confirma Lévi-Strauss, observando la estructura de ciertos ciclos
míticos:
Todos los temas [mitológicos] comunes a Amerindia y al
antiguo Japón se reencuentran en Indonesia, y algunos
no son bien verificados que solo en estas tres regiones.
[…] Durante las grandes glaciaciones […] hace doce mil
a dieciocho mil años, el Japón estaba unido al continente
asiático; formaba entonces un largo corredor curvado ha-
cia el Norte […] la Insulindia (es decir el conjunto de islas
comprendidas entre Taiwan y Australia de una parte, la
Nueva Guinea y la península de Malasia por otra parte)
estaba la mayor parte pegada a tierra firme, por fin, tierras
emergidas a lo largo de aproximadamente mil kilómetros
unían Asia y América sobre el emplazamiento actual del
Estrecho de Bering. Al borde del continente, un tipo de
corredor terrestre permitía a los hombres, a los objetos,
a las ideas, de circular libremente desde lndonesia hasta
Alaska, pasando por las costas de China, Corea, Manchu-
ria, la Siberia del Norte […]. En diferentes momentos de
la prehistoria (sic), este vasto conjunto debió ser el teatro
de movimientos de población en los dos sentidos. Mejor
vale de renunciar a buscar puntos de origen. Se puede afir-
mar, los mitos constituyen un patrimonio común de los
cuales nosotros recogemos aquí o allá fragmentos.14

A partir de 1492 América es invadida por los reinos de Europa. En


este momento las etnias americanas se confrontan culturalmente con etnias
foráneas que evolucionaron paralelamente a los humanos de América. 1492 es
la fecha del inicio de la segunda globalización acontecida en América. 1492 es
una fecha gloriosa para Europa, es liberada del dominio árabe, pero dramática
para América, es invadida y colonizada.
América por el dinamismo generado por estas dos globalizaciones,
muchas formas de pensar convergieron, es el lugar donde vive y actúa una
especie de “vanguardia intelectual” del mundo. Se dice que aquí vive la “clase
media” del planeta. En América está el país más poderoso del mundo política-
mente, en economía y finanzas, en técnica y militarmente, es Estados Unidos.
América es el continente de las utopías: el Nuevo Mundo se le denominó.
América generó el capital financiero que hoy domina al planeta. América es

14
Lévi-Strauss, La cara oculta de la luna, 2011, p. 26. La traducción es nuestra.

30
el continente más politizado del mundo. Aquí surgieron muchas formas de
pensamientos alternativos a la dominación: la literatura del boom, la Teología
de la Liberación, la Teoría de la Dependencia, la Filosofía de la liberación, la
Pedagogía de la liberación y muchas otras novedades intelectuales del mundo
actual que parecen no haber dado su último discurso.
Pero, si todo lo que he dicho antes es positivo o ambiguo hay otros
aspectos de fondo que son verdaderamente negativos.
Nosotros los americanos todos tenemos algo en común. Somos hijos
fruto de una relación paternal-maternal violenta, muy violenta. Se sabe, los
invasores europeos asesinaron a los varones amerindios argumentando sus
acciones con pretextos teóricos, teológicos, políticos. Impusieron finalmente,
condiciones de producción despiadadas que ocasionaron la muerte de millones
de amerindios. Aquí en América acontecieron los dos primeros holocaustos de
la Modernidad. El primero fue contra nuestra familia amerindia y el segundo
contra nuestra familia afroamericana esclavizada.
La colonización tuvo un efecto perverso que no acaba. Así, nosotros,
los americanos todos, recibimos, una educación alienante. Se nos impuso el
heleno-eurocentrismo, que conlleva una serie de falacias que tuvieron y tienen
hasta ahora consecuencias desastrosas para nuestro continente y para el mundo.
Las sufrimos dramáticamente todos los días.
Muchos creen, acríticamente, que el colonialismo fundamentado por
el heleno-eurocentrismo está saldado. Las celebraciones majestuosas de las
“independencias” nacionales, un poco dudosas, cara a España y otros países
europeos hacen creer que el colonialismo es cosa del pasado. Sin embargo
los efectos, los daños colaterales del perverso colonialismo europeo continúa.
Se manifiestan de manera vedada, oculta. Se trata del colonialismo mental.15
En efecto, creemos que hay tres tipos de saberes reinantes. El saber que se
conoce. El saber que se conoce que no conoce. El saber que no conoce que
no conoce. El colonialismo mental es de este último tipo. Es un saber que no
sabe que no sabe.
El racismo, la misoginia o machismo, el nacionalismo exacerbado, la
destrucción ecológica, la violencia cotidiana, son algunas de sus manifestacio-
nes y nosotros, lo queramos o no, somos sus agentes directos o indirectos. El
15
Véase a manera de introducción al tema: Castro-Gómez y Grosfoguel (eds.), El giro
descolonial, 2007; Santos y Meneses (eds.), Epistemologías del Sur, 2014.

31
colonialismo mental es el último reducto del heleno-eurocentrismo manifestado
hoy como socio económico, el capitalismo global, es decir, es más político que
nunca. Mientras no pongamos en tela de juicio nuestro colonialismo mental,
nosotros mismos estaremos saboteando nuestros saberes, nuestro futuro y el
de las próximas generaciones.
Señalemos las más nefastas formas de colonialismo impuestas por
la colonización heleno-eurocentrista y “enseñadas” en la mayoría de institu-
ciones de América.
1. Perspectiva histórica errónea. Estudiamos, miramos nuestro conti-
nente, América, desde un punto de vista foráneo, el de una supuesta realidad
europea. Esta perspectiva se ha impuesto también a nivel mundial. Así se habla,
por ejemplo, que América fue “descubierta” y “conquistada”. En realidad fue
invadida, la llegada de los españoles respondía a un proyecto político, económico,
religioso, guerrero preciso. Se habla de Conquista cuando quizás no la hubo
(los mitos contradicen esta hipótesis).16 Se habla de “periodizaciones históricas”
donde el punto de referencia es la “historia” de la dudosa Europa “occidental”,
a saber: época prehistórica, época precolombina, época prehispánica, etc. Se
habla de Edad Antigua, Edad Media o Feudal y de Época Moderna, como
si fueran edades aplicables a escala mundial. Se habla de América “latina” o
de hispanoamérica o de América del Norte, Centroamérica, América del Sur,
etc. La fórmula siguiente resume esta alienación: “No se es donde se está. No
se está donde se es”.
2. La presencia en la actual América de lo amerindio, lo semita y lo
griego. Finalmente tres grandes filosofías, tres formas de pensamiento, han
convergido en América: lo amerindio, lo semita y lo griego. Pero solo se privi-
legia lo griego que ha venido reformulándose en Europa durante los últimos 25
siglos. Por esto se le llama el heleno-eurocentrismo que como ideología domina
hoy al sistema-mundo. De estas tres vertientes nombradas la fundamental para
16
En uno de los mitos del denominado “ciclo de Inkarrí”, en la versión de Mateo Garriaso,
autoridad del ayllu de Chaupio, se lee: “El Inka de los españoles apresó a Inkarrí, su igual”,
en Arguedas, “Puquio, una cultura en proceso de cambio”, 1956, p. 191. Esta “igualdad”
(basada en “el principio de complementariedad”) lo confirman las múltiples representaciones
de la captura y la muerte de Atahualpa, que dan a entender que en el encuentro de Pizarro
y Atahualpa, en Cajamarca, Pizarro fue recibido con los honores dados al representante del
“Hermano” de Atahualpa: el Rey de España (“el Inka de los españoles” (Entonces se dice que
Atahualpa recibió a Pizarro, sin intenciones bélicas, más bien regido por el milenario principo
ético: “Dar hospedaje al extranjero (al “igual”)”. No hay dudas, ¡otra lectura de la historia nos
permiten los mitos transformados!

32
nosotros es, debería ser, la amerindia, pero hemos anotado que no se perfila su
importancia. La vertiente semita se manifiesta hoy en el cristianismo masivo
del pueblo americano, pensamiento antiguo de por lo menos 3.500 años. A
la vertiente griega se la presenta como un pensamiento autóctono, el griego
clásico, cuando en realidad su origen está en el Egipto milenario que tiene
5.000 años de antigüedad. El pensamiento egipcio también influenció al pen-
samiento semita. Y no olvidemos que Egipto está en África y en contacto con
otras culturas africanas y de la Mesopotania que a su vez estaba en contacto
con la culturas china e hindú antiguas.
3. La importancia exclusiva o excesiva dada a la teoría. En América,
como en Occidente, prima una supuesta teorética, dándole menor importancia
a la práctica y la poiética. Así, la “teoría” que se enseña en los grandes centros
intelectuales del mundo está basada en el principio dualista que opone lo-idén-
tico (identidad) a lo-diferente (diferencia) y conforman la totalidad. Así se ignora
lo-distinto (distinción), siendo este el fundamento de la exterioridad. Según esta
visión dualista, por ejemplo, desde el punto de vista del género existiría sólo
el hombre y la mujer. Y se excluye a la lesbiana, el homosexual, el bisexual y
la persona transgénero. Esta parcialísima teoría es un pensamiento totalitario
que excluye, ignora, el accionar de las víctimas. En América, al negarse la
exterioridad americana no se puede teorizar el pensamiento amerindio, la
cultura popular, etc. Por ello no hay teoría crítica porque no se tiene en cuenta
el discurso-pensamiento de la alteridad radical: la de las víctimas americanas.
4. El problema de la carencia de una teoría del lenguaje. La que existe
en Occidente como tal es una proposición basada en el signo-palabra-escrita,
confundiéndose los niveles de la lengua, el lenguaje y el habla. Se toman unas
representaciones (el significante y el significado) por realidades. Pero nosotros,
no hablamos con signos, bien si los utilizamos para elaborar discursos. Los
signos no son unidades fundamentales de significación, lo son los discursos. Al
no haber una teoría del lenguaje no hay poética, no hay teoría de la literatura.
La poética debería indicar cómo se imbrican lo discursos más angustiantes en
un momento histórico preciso de una sociedad. Al no haber teoría del lenguaje
ni poética muchas ciencias sociales se quedan sin piso, sin fundamentación
epistemológica, por ejemplo la filosofía, la hermenéutica, la crítica literaria,
la historia, la política, entre otras, y lo que es más grave no hay ética, solo hay
morales de grupos dominantes.
5. El olvido del cuerpo humano y su manifestación individual. Lo

33
que vehiculiza el heleno-eurocentrismo es una visión materialista ingenua,
donde el ser humano aparece dividido, de manera “análoga” al signo dualista,
en una forma-cuerpo y un contenido-alma o espíritu (“Pienso, luego existo”,
es su divisa). Y de estos dos, sólo se privilegia a la pretendida alma o espíritu.
El heleno-eurocentrista se revela entonces como una ideología fetichista del
“alma” incorpórea. De tal manera, la representación hipotética e ingenua del
cuerpo humano, planteada desde los griegos, es tomada por la realidad cor-
poral, dando como resultado el menosprecio del cuerpo humano, sobre todo
el de las víctimas que es una constante vergonzosa en la historia mundial. La
negación del cuerpo no permite detectar que cada individuo utiliza el lenguaje
de manera singular mediante “su” ritmo singular.
Meschonnic nos define el ritmo:
El ritmo es una subjetivación del tiempo [de un individuo]
que el lenguaje retiene del cuerpo.17

Yo defino al ritmo como la organización del movimiento


de la palabra en el lenguaje.18

El ritmo, como teoría del continuo, llama entonces a una


interacción entre la teoría del lenguaje, la teoría de la lite-
ratura (como una poética generalizada, en lugar de la es-
tética, demasiado comprometida con el mundo del signo
tanto por su origen que por su historia más reciente, y que
no presenta un pensamiento del valor), la ética (el sujeto
del poema, el sujeto del arte, es un sujeto ético) y la polí-
tica. Esta interacción supone una trnasformación de cada
uno de estos cuatro componentes del uno hacia el otro, a
la vez en su práctica y en su reflexión, de tal manera que
ninguna permanece como era separadamente, y actual-
mente: la retórica, un catálogo de figuras, o un logicismo
prgmático; la poética, un formalismo o un esencialismo;
la ética, una abstracción, particularmente ignorante de la
poética y de la teoría del lenguaje; la política, un análisis
de fuerzas, y de los intereses que no hace más que teorizar
el cinismo de la práctica política. El mundo como va es
el del signo. Las disciplinas universitarias son la institu-
ción.19

17
Meschonnic, Critique du rythme. Anthropologie historique du langage, 1982, p. 655.
18
Meschonnic, La poétique tout contre la rhétorique II, 1998, p. 4.
19
Meschonnic, Rythme [Ritmo], Dictionnaire culturel en langue française, 2005, p. 469.

34
Los discursos interpelantes
Ahora es necesario aquí responder a dos preguntas: ¿Dónde están los
discursos? y ¿dónde está depositada la Historia? Los discursos están deposita-
dos en el cuerpo de todo ser humano viviente, como memoria cultural20 y sólo
se manifiesta de manera exterior.
Jan Assmann aclara el concepto de “memoria cultural”:
Hace referencia a una de las dimensiones exteriores de
la memoria humana. La memoria se concibe ante todo
como un fenómeno exclusivamente interno y se localiza
en el cerebro del individuo. Es un tema de la fisiología
del cerebro, de la neurología y de la psicología, pero no
de las ciencias históricas de la cultura. Ahora bien, los
contenidos incorporados por esta memoria, su manera
de organizarlos y el tiempo que es capaz de conservarlos,
ya no son cuestiones relacionadas con la capacidad y el
control internos, sino con los condicionamientos básicos
externos, es decir, sociales y culturales. […] Hay cuatro
ámbitos de la dimensión exterior de la memoria. […] 1.
La memoria mimética […] 2. La memoria de las cosas […] 3.
Lenguaje y comunicación: la memoria comunicativa […y]
4. La transmisión del sentido: la memoria cultural.21

Este concepto se revela muy importante para dar cuenta de la cultura


amerindia que “no tiene historia” por no tener escritura. Porque todo pasa
por los discursos, los discursos “salen” de un cuerpo, motivados por alguien,
se “ven”, se escuchan, se intercambian en la vida cotidiana de toda sociedad.
Entonces “lenguaje, historia es la misma teoría”.22 Y el objeto de la historia
es darle sentido a los hechos sociales pasados de manera análogo-dialéctica a
los hechos presentes.
Nosotros pensamos, hablamos, discurseamos, escribimos imperece-
deramente en sociedad. Pero nos confundimos, por el hecho que hablamos
con el mismo lenguaje para explicar que hablamos el lenguaje, escribimos
para decir que escribimos. Nos enredamos con el lenguaje cuando queremos
explicar lo que decimos, lo que discurseamos, lo que escribimos. No se han
señalado bien los diferentes niveles discursivos. Nosotros hablamos a partir

20
Assmann, Historia y mito en el mundo antiguo, 2011.
21
Idem, ibidem, pp. 21-22.
22
Este es el título del libro testamento, publicado después de la muerte de Henri Meschonnic.
Cf. Langage, histoire une même théorie, 2012.

35
de otros discursos aprendidos consciente o inconscientemente. La memoria
cultural y la Historia se transmiten discursivamente. Porque se habla a alguien
en un momento y lugar determinados, precisos, es decir históricos. Desde la
dinámica del discurso no se puede decir cualquier cosa en cualquier lugar. Todo
discurso tiende a su propia institucionalización. Todo discurso es ejecutado
por un individuo preciso que tiene la facultad de poder articular muchísimas
manifestaciones discursivas diversas. Pero el que más destaca en este arte es el
poeta o escritor. Pero no cualquiera es poeta, nosotros creemos que es poeta o
escritor aquel que puede articular y privilegiar en su obra los discursos de las
víctimas. Poeta es aquel que repande la interpelación que nos lanzan las víctimas,
cuando éstas no tienen la posibilidad de hacerlas ellas mismas.
Pero ¿qué es un discurso interpelante? Dicen los diccionarios: es un
discurso en el cual se pide a alguien que dé explicaciones sobre un asunto en
el que de alguna manera ha intervenido. Es también un discurso jurídico que
intima, requiere a alguien para que diga o haga alguna cosa. Por último, es
un discurso que pide auxilio o protección a alguien. Es un discurso entonces
que nos obliga a definirnos éticamente.
Está relacionado a la exigencia implícita o explícita de tener que sa-
tisfacer prioritariamente bienes materiales fundamentales. Según la tradición
ética del pensamiento semita habría cuatro tipos básicos de discursos inter-
pelantes en la historia y que generan otros más complejos: “tengo hambre”,
“tengo sed”, “necesito un vestido” y “necesito un techo”.
Estos discursos son imperativos éticos que pocos queremos respon-
der. O que las sociedades tienen dificultades a solucionarlos. Estos discursos,
en América, han sido formulados por las comunidades indígenas de manera
constante desde el instante de la Invasión de América (esto no niega que an-
tes no hayan existido en América) y que otros grupos humanos también lo
han reformulado. En el mundo andino, según se puede comprender, priman
cuatro principios éticos que responden a las interpelaciones señaladas. Son:
el principio de relacionalidad, el principio de correspondencia, el principio de
complementariedad y el principio de reciprocidad.23

Reconstrucción de los discursos amerindios pasados


Los discursos míticos de las comunidades amerindias existen desde
milenios. Y los que están activos pueden sernos de una ayuda inestimable. A
23
Véase: Estermann, Filosofía andina. Sabiduría para un mundo nuevo, 2006, pp. 123-148.

36
partir de un discurso amerindio contemporáneo, existente ahora, se puede
trazar, rastrear, la historia de cómo se ha generado y transformado, si es el
caso, ese discurso.
Tom Zuidema nos da un ejemplo de como los mitos americanos están
interelacionados entre sí y se pueden explicar sus elementos:
Considerando a Sudamérica (sic) como un “campo de es-
tudios antropológicos” […], el sistema social del Cuzco
incaico integra una serie de propiedades que también se
encuentran en otros lugares, pero dispersos a lo largo del
continente. Así por ejemplo, los sistemas rituales de los
grupos ge del Brasil central inventaron diversas formas in-
geniosas de interacción entre grupos de edad y otros que
lo eran (matrilíneas, patrilíneas, parcialidades), organiza-
ciones que también sirvieron para construir una extensa
memoria histórica; los bororo que vivían al Oeste de los
ge proyectaban estas funciones rituales desde la plaza al
círculo de la aldea donde estas familias vivían […]; y los
grupos tukano del noroeste brasileño tuvieron organi-
zaciones locales comparables con las de los panacas del
Cuzco.24

Hay cientos de discursos amerindios en pleno uso, vigentes, y otros


muchos fueron registrados. Todos tienen interconexiones porque responden
a cuestiones interpelantes comunes. Son discursos éticos, y porque éticos,
políticos y porque políticos, teóricos. Es la poética que puede señalar cómo
se construyeron, cómo se modificaron y utilizaron esos discursos heredados.
De todo esto debería ocuparse principalmente la mal denominada
crítica literaria “latinoamericana”, tendrá que abrir sus horizontes y deberá
tender a “americanarse”. La crítica literaria latinoamericana acusa un défe-
cit notable, casi nunca ha respondido a las interpelaciones lanzadas por las
víctimas.25

24
Zuidema, El calendario Inca, 2010, pp. 59-61.
25
La única gloriosa excepción en esta desolación intelectual reinante son los trabajos del
peruano Enrique Ballón Aguirre. Nombramos algunos de su vasta bibliografía: Tradición
oral peruana. Literaturas ancestrales y populares I y II, 2006; Esbozo general para el estudio de
la tradición histórica de las literaturas peruanas. Comentarios de Celia Rubina Vargas (40).
Eduardo Hopkins Rodríguez (43), Carmela Zanelli (46), Jean Philippe Husson (49), Respuesta
de Enrique Ballón Aguirre, 2008; La dentera multilingüe e intercultural en las sociedades
andinas (conflictos de lenguas, habla y escritura, 2009; y Problemas linguoculturales de la
poliglosia andina, 2011.

37
A modo de conclusión
Retomemos nuestra metáfora antropológica que ha guiado nuestra
reflexión, pero analogémosla a la de la familia americana, ella nos permitirá ver
de manera colectiva las consecuencias del grave escotoma histórico-epistemo-
lógico que prima en muchas investigaciones “prestigiosas” y que consiste en
mirar América como si fuera sólo un apéndice europeo.
América, nuestra casa americana, está habitada desde hace por lo
menos 30.000 mil años. En 1492 llega nuestro guerrero Padre europeo y la
invade, se topa con la belleza y la riqueza de la casa que construyó nuestra
familia materna amerindia. Como él ha decidido arbitrariamente apoderarse
de ella, extermina a casi todos los principales miembros masculinos de nues-
tra rama familiar materna. Después de haber eliminado a la mayoría de los
probables opositores y esclavizado los pocos sobrevivientes viola y amanceba
nuestra Madre y decide destruir nuestra casa antigua y construirse una nueva,
según su gusto europeo y sus intereses tan particulares. Destruye la casa de
la familia de nuestra Madre, utilizando como mano de obra los propios ame-
rindios sobrevivientes. Se tira abajo los sólidos muros, con cierta facilidad, y
cuando llega el momento de destruir las fundaciones repara que como están
sólidamente constituidas desde hace milenios le será imposible continuar su
devastación. Decide que será mejor de aprovechar tan “buenas bases” milena-
rias para construir sobre ellas su “nueva” casa. ¡Sí. Entonces, las fundaciones
son amerindias!
Posteriormente, desde 1492, esta “historia” de lo que le sucedió a
nuestra familia en nuestra casa misma, y que dio como resultado nosotros
mismos, fue contada y estudiada sólo desde la perspectiva de nuestro Padre.
La historia de la familia de nuestra Madre y hasta nuestra propia historia
misma fue tergiversada, silenciada y al fin ignorada. Se sustentó que como
nuestra famila materna no poseía escritura por ello no podía tener (derecho a)
una historia. Y ya van más de quinientos años de ignorancia. Lo que ignoró
siempre nuestro Padre europeo, tan lleno de si mismo, como no sabe qué es
la poética (la historia es una guerra discursiva), no supo que nuestra familia
materna si tiene una historia pero esta la escribió en el cielo y la cuenta hasta
ahora a viva voz y en miles textos – esto ya no es metáfora. Así se pretendió
negar la historia de nuestra familia materna. Nuestro Padre se entrampó en si
mismo y no supo, no pudo, ni siquiera leer su propia historia que señala que
38
viene del mismo lugar que la de nuestra familia materna, de África y de Asia.
La historia de la humanidad es una sola.
Entonces, de lo que se trata es de poder estudiar la supuesta nueva
casa americana sin menospreciar ningún elemento compositivo de ella, sobre
todo en lo que respecta a los elementos fundacionales, a saber, los discursos ame-
rindios, pero es claro, se necesitan otras perspectivas de análisis, otra epistemo-
logía, pensamientos de liberación, para que con ellas se dé cuenta cabal de la
originalidad de la antigua casa materna americana y luego explicar cómo se
trans-formó en los embates de tan violento encontronazo entre nuestras Madres
y nuestros Padres y que pareciera no terminar de hacer daño. Comportémonos
pues como hijos no ingratos, adultos, asumámonos, leamos desde nuestra parte
de cielo en el cual nos tocó vivir lo que escribieron nuestros mayores maternos
y reinvidiquemos nuestro americanismo, nuestra casa materna americana y
Tambien ya paterna, que es la que nos permite nuestra particularidad humana.

Referencias
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49, 2. Sem. 2009, pp. 135-163.
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39
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do Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2010.

40
Língua, educação e interculturalidade
na perspectiva indígena
Gersem Baniwa

Introdução
O presente texto trata de algumas considerações sociopolíticas sobre
o lugar e o papel das línguas nas cosmologias indígenas e no campo da educa-
ção indígena, escolar ou tradicional, numa perspectiva intercultural. Sublinho
minha limitação quanto ao tema, por não ser linguista nem pesquisador de
línguas indígenas. Minhas considerações baseiam-se em vivência prática, como
falante de uma língua indígena, educador e militante da luta por educação
escolar indígena e pelos direitos indígenas de um modo mais amplo.
A linguagem é uma das capacidades criadoras mais impressionantes e
impactantes da humanidade. É o meio pelo qual os seres humanos se humani-
zam entre si, ou seja, ao mesmo tempo em que as identificam entre si, também
as distinguem dos outros animais. No entanto, essa distinção não significa, de
modo algum, hierarquização, uma vez que em termos de capacidade de comu-
nicação ou linguagem, todos os seres são iguais. Assim, para os Baniwa, povo
ao qual pertenço, esse é também o meio pelo qual se comunicam com outros
seres do mundo e com o próprio mundo, uma vez que a comunicação entre
os seres é o segredo para o equilíbrio do mundo cósmico. A escassez de caça,
por exemplo, pode ser resultado de uma falta ou uma ineficiência de comuni-

41
cação entre os pajés e os espíritos superiores das caças. Mas essa comunicação
com o universo não é exclusividade dos pajés. Todos os humanos, segundo as
cosmologias indígenas, devem permanentemente manter essa comunicação.
A comunicação, a linguagem e o diálogo são, portanto, essencialmente da
ordem espiritual e transcendental.

Linguagens nas cosmologias indígenas


Segundo a cosmologia Baniwa, o mundo é resultado de um protocolo
de comunicação entre todos os seres, criadores e criaturas, cuja linguagem mais
proeminente é a de símbolos ou sinais (fenômenos). Desse modo, aos sábios
que dominam a totalidade do sistema de comunicação cósmica, nada pode ser
escondido, desconhecido ou secreto. A natureza sempre se manifesta por sinais
e por eventos: aos sábios pajés cabe interpretá-los, revelá-los e manejá-los1.
A título de exemplo, cito algo que comecei a ouvir desde criança e que me
ajuda a entender como esse sistema de comunicação cósmica funciona entre
os Baniwa, especialmente, por meio de eventos instrutivos no mundo dos espí-
ritos. Isso aconteceu em uma importante aldeia dos Baniwa Ciuci2 chamada
“Massarico”,3 situada no Médio Rio Içana – o rio dos Baniwa – afluente da
margem direita do rio Negro (alto rio Negro). Certa manhã, os habitantes da
aldeia Massarico ouviram gritos de macacos barrigudos do outro lado do rio.
Macaco Barrigudo é uma das caças mais apreciadas pelos Baniwa, pelo seu
tamanho, sua carne, além de ser considerado o mais bonito dos macacos da
região. Três homens prontamente embarcaram em uma canoa e atravessaram o
rio à caça dos macacos com suas sarabatanas e flechas envenenadas de curare.
Os três não foram muito felizes na caçada, mas depois de muitas tentativas,
conseguiram matar um macaco barrigudo. Depois regressaram atravessando
novamente o rio. Quando se aproximavam do porto da aldeia, as crianças,
vendo-os, correram para recepcioná-los no porto, ansiosas para ver se mataram
algum macaco ou quantos mataram. As crianças quase sempre fazem isso, o
que evita a alguém, intencionalmente ou não, esconder sua caça. O caçador,
sentado no último banco da popa da canoa, vendo as crianças ansiosas e alegres
lhes esperando, decidiu “brincar” com elas. Pegou o macaco morto que estava
1
O sentido de manejar aqui é equilibrar, por em diálogo, em acordo, combinar, acertar ou
corrigir defeitos de comunicação ou de relações. Portanto, não tem nada a ver com as noções
de dominação e manipulação, próprias do mundo ocidental europeu.
2
Baniwa Ciuci é um clã de elite da sociedade Baniwa, da qual faço parte.
3
A Aldeia Massarico, foi uma das aldeias mais importantes dos Baniwa Ciuci, na região do
Baixo Rio Içana, distante uma hora de canoa a remo de outra aldeia com a mesma importância
chamada Tucunaré Lago, aonde meu avô Leopoldino Iderci nasceu, viveu e exerceu sua
liderança local e regional.

42
à sua frente sobre o jirau da canoa e escondeu-o atrás de si, por debaixo de
seu banco. Ao chegarem ao porto, as crianças logo lhes perguntaram quantos
haviam matado ao que o caçador sentado na popa respondeu que tinham sido
“panema” (mal sucedidos, maus caçadores) e por isso não haviam matado
nenhum. Nesse instante as crianças ficaram muito tristes e de cabeça baixa
foram para suas casas. O caçador da popa, vendo as crianças tristes, quis então
fazer-lhes a surpresa devolvendo a alegria e jogando para elas a caça abatida.
Porém, quando enfiou a mão por trás do banco para tirar o macaco morto,
este havia desaparecido. Os três caçadores, muito tristes, foram logo contar o
ocorrido ao grande e velho pajé da aldeia. Este, depois de ouvi-los, pediu que
aguardassem sua orientação no dia seguinte, após “sonhar” sobre isso durante a
noite. Nesse período não deveriam fazer nada de trabalho. Na manhã seguinte,
bem cedo, o pajé chamou os três caçadores e lhes disse:
- “Curui-tá! (meninos!) O que aconteceu foi um sinal e um aviso para
este que brincou com as crianças. Foi a finada mãe dele que mandou um sinal
para impedir que ele fosse trabalhar ontem na roça, como ele havia planeja-
do, pois se tivesse ido, teria sido picado por uma cobra. O macaco que vocês
mataram está pendurado em um galho de “mirapixuna” (uma planta nativa
comestível de beira de rio) logo na parte de maior correnteza ai no nosso porto.
Foi lá que a finada mão dele o deixou. Vão buscar, tratar e cozinhar para as
crianças e todos nós comermos. Está tudo bem, foi só um aviso. A principal
lição de tudo isso que aconteceu para todos nós é que não se deve “brincar”4
e judiar de crianças”.
A história termina aí e seu enredo mostra como o complexo sistema
de comunicação cósmica funciona envolvendo humanos (vivos e mortos), não
humanos e a natureza, nas suas dimensões material e espiritual. É por meio
da linguagem que o homem se situa e é situado na sociedade, na natureza e
no mundo. A harmonia da natureza depende de uma boa comunicação entre
os entes que a constituem. Nesse sentido, língua, sociedade e natureza estão
intrinsecamente relacionadas e, numa perspectiva sociohistórica, possibilitam
uma permanente e dinâmica relação cósmica dialógica, adaptável à abertura,
ao movimento e à heterogeneidade.5
Diferentemente do pensamento evolucionista, os povos indígenas
concebem as línguas como parte inerente ao processo original de criação. A
4
Brincar aqui é no sentido de judiar, brincadeira de mau gosto.
5
Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, 1992.

43
capacidade de construir uma língua é um dom recebido no processo de criação
do mundo. Cada povo recebeu, em potência, uma língua de comunicação. Mas
a língua indígena é um patrimônio em permanente construção, manutenção,
mudança, aperfeiçoamento, atualização e complementação. Pode-se dizer que,
segundo algumas mitologias indígenas, o mundo é resultado de um processo
contínuo de comunicação dialógica e dialética entre os seres criadores e suas
criaturas. O mundo está sempre em construção e, junto com ele, as línguas. As
coisas foram sendo criadas de acordo com os desdobramentos dos enredos tra-
vados entre os seres. Ao longo desses enredos muitas coisas boas foram criadas
por meio da força mágica das palavras, mas também as coisas más. Percebe-se
que a palavra, desde a origem do mundo, sempre esteve ligada às forças do
bem e do mal6, pois na medida em que os criadores foram criando as coisas,
algumas dessas coisas não saíram como se pretendia e os erros precisaram ser
sanados ou administrados também por meio da palavra. Daí o surgimento dos
rituais de pajelança ou de xamanismo, que são processos de (re)estabelecimento
da comunicação entre os seres da natureza por meio da linguagem falada ou
de rituais específicos que propiciam as conexões comunicativas.
Importa destacar como os deuses criadores dos Baniwa não são oni-
potentes, onipresentes, perfeitos e absolutos, pois, muitas de suas criações não
saíram como queriam. Muitas criaturas se rebelaram contra os seus criadores.
Isso permite que a criação, a construção, a manutenção e a continuidade da
existência da Natureza e do Universo dependa das próprias criaturas, no seu
conjunto interdependente, orgânico e holístico. Aqui reside uma substancial
distinção entre as cosmologias ou teologias ameríndias e as cosmologias/
teologias ocidentais de tradição judaico-cristã.
Importa também destacar a importância vital e simbólica da língua
para os povos indígenas, por meio da qual estabelecem as conexões com a
natureza e com o mundo. Assim, a língua é um fenômeno de comunicação

6
Os sentidos do “bem” e do “mal” nas cosmologias indígenas não são os mesmos que os
das cosmologias ocidentais europeias. Enquanto nas cosmologias ocidentais judaico-cristãs
o bem e mal são dois pólos antagônicos, nas cosmologias indígenas, o bem e o mal possuem
o sentido de complementares. Na cosmologia baniwa, por exemplo, o herói mítico, Kuwai,
que criou o veneno “kamahãe” (o mal mais temido entre os Baniwa, enquanto origem de
todos os males sociais, pois causa contínuas e permanentes mortes provocadas – assassinatos
– entre si. O “kamahâe” é um veneno natural extraído de plantas ou de pedras secretamente
manipulado por especialistas) é o mesmo que detém o conhecimento de sua cura. Além disso,
Kuwai é cunhado de Nhampiricuri, o herói mítico (Deus) do bem, criador de todas as coisas
boas. Como se pode perceber não há fronteira rígida e intransponível entre o bem e o mal na
cosmologia baniwa.

44
sociocósmica de vital importância na relação recíproca entre sociedades hu-
manas e estas com os seres não humanos da natureza. Nesse sentido, a perda
de uma língua por um povo indígena afeta diretamente a relação desse povo
com a natureza e com o cosmo, resultando em quebra ou redução de conecti-
vidade entre os seres e, consequentemente, afetando o equilíbrio e a harmonia
da vida no mundo.

Funções sociais e transcendentais das linguagens indígenas


O primeiro aspecto das línguas indígenas é, portanto, o seu caráter
sociocósmico, no sentido de que elas propiciam o elo, a conexão e a comuni-
cação entre os mundos existentes. Elas expressam e organizam cosmologias,
epistemologias, racionalidades, temporalidades, valores e espiritualidades.7 Por
meio dessa capacidade privilegiada de comunicação transcendental, o homem
ou a mulher indígena exerce seu papel de destaque na mediação entre os se-
res da natureza, por meio de diversas formas de linguagem: palavras, cantos,
músicas, rezas, rituais, cerimônias, etc.
O segundo aspecto relevante das línguas indígenas é o caráter político
pedagógico, exercido por meio das variadas formas de comunicação, dentre
às quais se destacam as línguas faladas no cotidiano da vida, as linguagens
especializadas, as linguagens ritualísticas e as comunicações simbólicas. Há,
portanto, espaços, lugares e tempos distintos de uso da linguagem: lugares e
momentos comuns e lugares e momentos específicos e especializados.8 As
línguas faladas no cotidiano das pessoas são as de domínio comum e coleti-
vo. As pessoas desde criança aprendem a falar. As linguagens especializadas
referem-se aquelas de domínio restrito ou exclusivo de determinados grupos
especializados, como os pajés, os xamãs e os mestres de cerimônias e de cantos
sagrados. As linguagens ritualísticas são aquelas próprias de cerimônias sagra-
das, em geral, não são faladas, mas representadas por meio de gestos, eventos,
atitudes e exercícios específicos como são os períodos de jejuns, as danças
sagradas, os rituais de transe por meio de substâncias alucinógenas como o
paricá.9 A comunicação simbólica é aquela que ocorre por meio de gestos ou
atitudes simbólicas, como são as oferendas materiais. Entre os Baniwa é mui-

7
Luciano, O índio brasileiro, 2006.
8
Pimentel da Silva, Reflexões sociolinguísticas sobre línguas indígenas ameaçadas, 2009.
9
Paricá é um pó alucinógeno produzido a partir da casca de um cipó ou árvore encontrados na
floresta amazônica e de conhecimento específico dos pajés ou sábios indígenas.

45
to comum o pescador, aos sair para a pescaria, fazer uma oferenda às “mães
dos peixes”, que pode ser um pedaço de beiju ou uma porção de farinha. As
oferendas são deixadas em lugares sagrados, em geral, uma gruta, uma pedra
sagrada, um lago ou uma foz de um rio. Em geral esses lugares levam o nome
representativo de “mãe dos peixes” ou mãe de um determinado peixe, como,
por exemplo, o “tucunaré lago” (lago dos tucunaré), o “pirá-paraná” (rio dos
peixes), o “uatucupá itá” (pedra da pescada), o wirá-uaçu paraná irumaça
(foz do rio dos gaviões) .
Ainda no campo da função político-pedagógica das línguas indíge-
nas, importa considerar os diferentes papéis de grupos sociais e de gênero. As
mulheres são as guardiãs principais das línguas e culturas, principalmente, na
educação dos filhos, centrada basicamente no ensino das línguas, culturas,
crenças e tradições. Nas aldeias e fora delas é muito comum que as meninas
sejam mais monolíngues na língua indígena do que os homens. É nessa dire-
ção que as mulheres-mães dão sentido transcendental à noção de mãe-terra,
em referência ao território, pois assim como as mulheres-mães são essenciais
e vitais para a continuidade da vida, da etnia, da língua, da cultura e da iden-
tidade, o território é essencial e vital para a continuidade da vida humana e
do cosmo. Há consenso entre os indígenas e os estudiosos do tema de que as
mulheres indígenas são mais resistentes e pragmáticas na luta e na defesa de
suas línguas e culturas. Os homens são os defensores principais e, assim como
as mulheres, carregam a responsabilidade com afinco, cujo momento e espaço
áureo ocorrem por ocasiões dos ritos de passagem.
Em qualquer processo de valorização de uma língua indígena é fun-
damental considerar os papéis dos sujeitos com relação à língua: pais, mães,
professores, tios, avós, irmãos mais velhos, comunidade, lideranças e outros.
Cada um desses sujeitos possui uma responsabilidade na transmissão da língua,
que precisa ser cumprida pelo simples fato de que não pode ser substituída por
outra pessoa como, equivocadamente, a escola pensa e tenta fazer por meio
da figura do professor. Os pais, os tios e os avós são imprescindíveis e insubs-
tituíveis nessa tarefa de ensinar a língua materna e os valores culturais para as
crianças porque são os que, diariamente, convivem com elas. Os professores e
as lideranças, que exercem papéis sociais destacados, são essenciais para dar
exemplo às crianças em práticas de valorização das línguas indígenas, dentro e
fora das escolas e aldeias. As crianças tendem a se espelhar no comportamento

46
dos mais velhos. Se um professor ou uma liderança de organização da aldeia
que, constantemente, viaja para os centros urbanos, ao invés de falar a língua
indígena, fala a língua portuguesa no cotidiano da aldeia, as crianças tendem
a interpretar que para ser professor ou liderança precisa falar o português no
cotidiano da vida. Isso é um estímulo à desvalorização da língua materna.
Todas as formas de linguagem envolvem os seres não humanos, numa
perspectiva de respeito e reciprocidade. A oferenda à mãe dos peixes é para
que o pescador tenha sucesso na sua pescaria. Ou seja, trata-se de uma troca
recíproca, mas também de reconhecimento e respeito por parte dos indígenas
à alteridade, à autonomia e agencialidade da natureza e de todos os seres
existentes no mundo.
É curioso e estranho perceber que em todas essas formas de lin-
guagem a escola, em geral, está fora. Ou seja, a escola não incorpora, não
valoriza e não prática essas diferentes formas de comunicação das crianças
e jovens indígenas. Se a moderna escola indígena, de acordo com as leis e
normas brasileiras, tem que ser intercultural, bilíngue/multilíngue, específica
e diferenciada, as línguas indígenas deveriam ser pilares fundamentais de
sua organização curricular e político-pedagógica. Se é por meio das línguas
tradicionais que os povos indígenas transmitem seus saberes milenares, não
é difícil concluir que as escolas indígenas por não considerarem tais saberes,
contrariando os discursos modernos do politicamente ou pedagogicamente
corretos da educação escolar indígena, não contribuem para a transmissão e
continuidade viva das línguas, dos saberes e das culturas indígenas.
Assim, as dimensões bilíngues/multilíngues e intercultural precisam
ser levadas a sério nas escolas indígenas, pela importância que elas representam
para a continuidade histórica dos povos indígenas e dos seus saberes e modos de
vida. Sem as suas línguas não é possível garantir a continuidade dos processos
educativos tradicionais desses povos. Muitos aspectos materiais e imateriais,
centrais nas culturas indígenas, só podem ser transmitidos por meio das lógicas
e estruturas das línguas tradicionais. Por exemplo, não se tem notícia até hoje,
de casos em que as narrativas sagradas proferidas por pajés em suas línguas
tradicionais em ocasiões de curas, tenham sido traduzidas e utilizadas em outras
línguas não indígenas ou escritas em livros. O que acontece é a substituição de
uma pela outra, como vem ocorrendo no Alto Rio Negro, onde as narrativas

47
sagradas tradicionais conhecidas em Nheengatu como “mutawarissá” foram
sendo substituídas por “orações a santos”, incorporadas dos missionários.
Desse modo, fica clara a interdependência entre a língua e a cultura
ou entre a língua e a sociedade.10 Assim, quando se abandona uma tradição se
abandona também uma língua e vice-versa e com elas toda uma concepção de
vida e de mundo, porque uma língua expressa um determinado mundo, uma
determinada maneira de entender, interpretar e se relacionar com o mundo.
Quando determinadas atividades ou elementos da cultura são abandonadas,
parte da língua especializada é abandonada e desaparece. Na mesma direção,
desaparece toda a diversidade de línguas e linguagens, rituais, mitos, rezas,
cantos, gestos e atitudes praticadas pelo povos indígenas, que a escola e a co-
munidade precisam estimular, valorizar e promover em suas práticas cotidianas
de vida. Os saberes sagrados ou especializados fazem a ponte entre o novo e
o antigo, entre o presente e o passado, entre o passado e o futuro. Portanto, a
transmissão do saber sagrado ou especializado é o elo entre o novo, o antigo
e o futuro, sem o qual essa conexão se perde, em geral, de forma irreversível.
A densidade da relação com o território perpassa pela língua própria.
Em uma língua indígena, cada criatura, material ou imaterial, cada lugar e cada
espaço da natureza tem nome e significado próprios. Isso amplia e fortalece
cognitiva e afetivamente a relação das pessoas e dos grupos com o território.
Pude perceber isso por ocasião das discussões e implantação dos denominados
“territórios etnoeducacionais”,11 no âmbito das políticas nacionais de edu-
cação escolar indígena, coordenada pelo Ministério da Educação, nos anos
finais da década de 2000. A noção de etnoterritório como referência espacial,
cultural e de gestão nos processos de planejamento, execução e avaliação das
políticas de educação escolar indígena foi muito bem compreendida, aceita e
incorporada/apropriada pelos povos que falavam a própria língua e possuíam
a posse de seus territórios.
Embora o dom da comunicação humana seja uma dádiva da criação,
10
Pimentel, Reflexões sociolinguísticas sobre línguas indígenas ameaçadas, 2009.
11
Territórios Etnoeducacionais são áreas territoriais específicas que dão visibilidade às
relações interétnicas construídas como resultado da história de lutas e reafirmação étnica dos
povos indígenas, para a garantia de seus territórios e de políticas específicas nas áreas de saúde
educação e etnodesenvolvimento. Essas áreas formam uma base de planejamento e gestão das
políticas de educação escolar indígena no país, a partir da configuração dos etnoterritórios
indígenas (terras, línguas, relações sociais, culturais, políticas) no lugar das divisões territoriais
dos municípios e dos estados.

48
assim como tudo o que existe no mundo, segundo as mitologias indígenas, as
línguas, assim como as culturas, vão sendo constantemente atualizadas, molda-
das, aperfeiçoadas e enriquecidas ao longo do tempo. Processos de mudanças
garantem a elas, dinâmicas próprias no acompanhamento permanente das
dinâmicas naturais e históricas do mundo. Desse modo, as línguas indígenas
acompanham a história, as descobertas, a economia, os costumes, a política,
a religião e estão sempre abertas e receptivas às atualizações, inovações, des-
cobertas, invenções e mudanças que vão transformando o mundo e, junto com
ele, a língua, a cultura e os modos de vida e de pensamento dos distintos grupos
humanos.12 Promover, portanto, uma língua, não é imunizá-la ou isolá-la, mas
dar a ela vitalidade, dinâmica e relevância prática no cotidiano das pessoas.
Um língua só morre quando deixa de atender e resolver tarefas co-
municativas e de contribuir para a organização cultural, política, econômica,
social, e religiosa da comunidade. Ou seja, quando perde sua função social e
seu lugar histórico na vida real e cotidiana das pessoas e dos grupos. Nesse
caso, ela é substituída por outra língua, em geral, por uma língua dominan-
te.13 Por isso, não basta promover práticas da língua em razão de eventos ou
interesses específicos para que a mesma seja valorizada, pois, ela somente
terá vitalidade se ocupar um lugar e uma função relevante na existência das
pessoas e do grupo falante.

Desafios e possibilidades político-pedagógicas de valorização das línguas


indígenas
Após tecer algumas considerações gerais sobre o “estado da arte”
sociopolítica e sociohistórica das línguas indígenas no Brasil. No meu ponto
de vista, passo agora a fazer algumas considerações sobre os desafios polí-
tico-pedagógicos que considero relevantes para se pensar políticas públicas
educativas que tenham por objetivo o resgate e a valorização das línguas
indígenas no Brasil.
O primeiro e o maior desafio é superar o problema histórico e mental
da cultura colonial equivocada e preconceituosa que vem se perpetuando ao
longo dos mais de cinco séculos de relação entre o Estado e os povos indíge-
nas. Não há como garantir a valorização concreta, ascendente e sustentável
das línguas indígenas enquanto os povos indígenas, falantes dessas línguas,
12
Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem 1992.
13
Hamel, Conflito sociocultural y educacional bilíngue, 1984.

49
continuarem sendo considerados como contingentes populacionais transitó-
rios. Antes da vigência da atual Constituição Federal (1988), esse caráter de
transitoriedade era imputado aos índios, fundamentalmente, no aspecto físico
e étnico. Na atualidade essa transitoriedade é percebida por parte das elites
econômicas e políticas como possibilidade ou necessidade cultural, ou seja,
como um fenômeno sociocultural. O que está em curso não é mais o pensar
e estimular processos de extermínio físico ou populacional que, na prática,
continuam existindo, mas o estímulo a processos sociopolíticos e educativos
que conduzem os povos indígenas a uma integração híbrida e mestiça, enfra-
quecendo ou anulando as alteridades e identidades próprias, base dos modernos
direitos indígenas coletivos. No fundo, essa “integração” significa uma nova
modalidade de morte lenta, longa e silenciosa das línguas, das culturas e dos
povos indígenas.
O segundo desafio é como superar a outra face perversa e histórica
da tradição colonial do Estado que continua sustentando e legitimando uma
relação de poder profundamente assimétrica de dominação, negação, opressão,
inferiorização, discriminação, racismo e invisibilização dos povos indígenas e
de outros grupos étnicos subalternizados. O Estado – por meio da escola e da
universidade, que inferiorizam e subalternizam os conhecimentos, os valores,
as culturas indígenas – é o principal responsável pela morte e desvalorização
das línguas indígenas. A continuidade das línguas, assim como das culturas
indígenas, depende da superação da cultura eurocêntrica e branqueocêntrica
imposta aos povos indígenas. Não se pode continuar com o processo colonial
de supervalorização das línguas e das culturas dominantes e desvalorização
sistemática e institucionalizada das línguas e culturas indígenas. É necessário
eliminar a visão de que as línguas e culturas brancas são superiores, mais
desenvolvidas, mais civilizadas e verdadeiras. Ou que os povos indígenas são
transitórios pelos seus estados atrasados de culturas e civilizações. Isso precisa
começar pelas escolas e universidades, lugares aonde ainda encontramos, à
luz do dia e escrito nos livros científicos, tais preconceitos já abolidos de nossa
legislação.
Na atualidade, as dificuldades de reprodução cultural, linguística e
étnica dos povos indígenas passa pela herança cultural colonialista e tutelar
das políticas do Estado, ainda muito presentes em campos vitais e sensíveis,
notadamente, nas questões territoriais e políticas de poder, de participação, de

50
representação e pelas condições econômicas e sociais precárias a que foram
condenados esses povos.
O status de inferioridade colonialista imputado, arbitrariamente, aos
povos indígenas, que vem causando entre as línguas indígenas o excesso de
empréstimos linguísticos, como faz a escola, conduz essas línguas a posições
secundárias, subalternizadas, inferiorizadas, empobrecidas e arranjadas. Aliás,
essa é uma das estratégias colonialistas mais conhecidas e perversas, partir das
quais os povos indígenas são estimulados ou obrigados a realizar mudanças
culturais com o argumento de que elas são necessidades modernas, garantidas
pelas leis e, portanto, são supostos direitos que, uma vez incorporados individual
ou coletivamente, passam a ser usados como justificativa para a negação ou
perda de direitos reais. É comum ouvir: “ah, eles não são mais índios, porque
falam bem o português, vivem na cidade, por isso achamos que não precisam
mais de tais benefícios ou direitos”.
Empréstimos linguísticos fazem parte da dinâmica e da vitalidade
das línguas saudáveis e pulsantes, desde que realizados livre, autônoma e
controladamente. Empréstimo linguístico é muito diferente de substituição
linguística. No primeiro caso, trata-se de atualização, o que é enriquecimento;
no segundo caso pode significar perda ou mesmo abandono da língua ou parte
dela. Em condições normais, quando uma comunidade linguística entra em
contato com outra comunidade linguística, seus sistemas linguísticos passam
a se influenciar e a se enriquecer mutuamente. As noções de bilinguismo e
multilinguismo dizem respeito a essa capacidade positiva que os sistemas
linguísticos possuem e que, ao entrarem em contato com outros sistemas,
desenvolvem empréstimos linguísticos desejáveis e controlados que permitem
complementações, inovações e atualizações dos seus sistemas.14 Mas, para
que o bi/multilinguismo não seja uma faceta da cultura e prática colonial,
precisam ser desenvolvidas tendo como base uma relação simétrica de poder.
Do contrário, estará se praticando um bilinguismo ou multilinguismo da
subalternidade, ou seja, uma colonialidade linguística que somente vai con-
tribuir para aprofundar ainda mais a relação assimétrica entre as línguas e os
seus falantes, gerando toda sorte de dominação, subalternização, negação e
extinção das línguas inferiorizadas.
O terceiro principal desafio é como e o que fazer para que a escola
14
Pimentel, Reflexões sociolinguísticas sobre línguas indígenas ameaçadas, 2009.

51
possa se tornar uma aliada estratégica na valorização das línguas e culturas
indígenas, inclusive, no enfrentamento e superação das práticas e culturas
colonialistas. Particularmente, a escola indígena (escola da/na comunidade
indígena) assume um papel essencial e focal nessa complexa missão da qual
não pode se eximir. Não penso que seja difícil imaginar o que fazer. O proble-
ma está em como fazer do ponto de vista da natureza política da instituição.
A questão, portanto, é de ordem política e não pedagógica. Ora, a escola,
enquanto instituição, é um instrumento ideológico do Estado e, como tal,
tende a seguir a sua visão predominante que é ainda muito eurocêntrica e
branqueocêntrica.
Mas, o Estado não é homogêneo, pois, do ponto de vista político
-ideológico e sociocultural, a sociedade que o constitui e legitima também
não é. Além disso, há uma constituição que garante aos povos indígenas o
reconhecimento e a valorização de suas línguas e culturas. Assim, existe a
possibilidade concreta da escola indígena ser uma poderosa aliada na luta pelo
resgate e valorização das línguas e culturas indígenas que, em tese, somente
precisaria da decisão política de fazer ou pelo menos deixar fazer por parte
do próprio Estado. Mas, cabe também decisão e vontade política dos próprios
povos indígenas para fazer valer seus direitos e seus projetos educativos à luz
de suas autonomias etnopolíticas e de seus direitos conquistados na forma da
lei. É importante destacar que a grande maioria das escolas indígenas está sob
o comando dos próprios indígenas, enquanto, caciques, gestores, técnicos, do-
centes e discentes, com inestimáveis potencialidades para a concretização das
mudanças necessárias e desejáveis, na organização curricular e, principalmente,
no Projeto Político-Pedagógicos da escola. A escola indígena, protagonizada e
gerida pelos próprios indígenas, apresenta um inestimável potencial transfor-
mador nos processos educativos das comunidades indígenas e da sociedade
mais ampla, por meio de suas práticas inovadoras no campo do ensino, apren-
dizagem, revitalização, resgate e vivências das línguas e culturas indígenas.
No entanto, para isso, a escola precisa realizar uma transformação
radical na sua matriz cultural, pedagógica, metodológica, filosófica, política
e epistemológica – toda ela referenciada e legitimada pela visão etnocêntrica
das sociedades europeias – para abrir possibilidades concretas de incorporar
outras matrizes socioculturais e epistemológicas e outros sujeitos de transmis-
são de conhecimentos (como os povos indígenas e seus sistemas linguísticos),

52
envolvendo, nas práticas cotidianas, as mães, os pais, os mais velhos, as lide-
ranças e os sábios tradicionais. A escola indígena precisa deixar de ser o lugar
exclusivo do professor e do aluno. No campo da transmissão de conhecimentos
tradicionais por meio das línguas indígenas, o professor, ainda que indígena, é
com certeza, o menos preparado para assumir e realizar essa função pela sua
própria bagagem e percurso formativo.
Outro aspecto desafiador é a existência de grande número de línguas
indígenas faladas no Brasil. Segundo dados do IBGE, do ano 2010, ao todo,
são 274 línguas indígenas. Porém, é bom lembrar que esse número representa
menos de um terço das línguas faladas no Brasil à época da conquista portu-
guesa, estimada entre 1200 a 1500 línguas indígenas.15 Pouco ou quase nada
se conhece da situação dessas línguas. O número de linguistas no Brasil é
extremamente reduzido. Um dos maiores problemas enfrentados pelos cursos
de formação de professores indígenas é a ausência de linguistas estudiosos de
línguas indígenas. Sem esses especialistas como abordar de forma adequada
a questão linguística nesses processos formativos tão importantes para a va-
lorização, o resgate e o tratamento adequado das línguas indígenas dentro e
fora das escolas? Além disso, sem os linguistas especialistas, como produzir
material didático bilíngue ou monolíngue nas línguas indígena?
No estado do Amazonas essa situação chega a ser dramática para
os cursos de formação, pois, diante da existência de 39 línguas indígenas fala-
das, não há sequer um linguista especialista em uma dessas línguas em todo
o Estado. Há, portanto, uma necessidade urgente de realização de estudos e
pesquisas sociolinguísticas acerca da situação das línguas indígenas no Brasil
e, principalmente, sobre as atuais atitudes das gerações falantes dessas línguas
para se saber do futuro delas. Da mesma forma é urgente ampliar e acelerar
a formação de linguistas, preferencialmente, indígenas. É necessário que as
universidades criem novos cursos de linguística. Penso que seja necessário
e urgente a criação de cursos apropriados e com turmas específicas para for-
mar linguistas indígenas, ainda que seja na modalidade de projeto, frente à
urgência e relevância que a temática requer, assim como são as temáticas da
educação, saúde, gestão territorial e outras áreas de conhecimento. Sabemos
que no campo da saúde, da gestão territorial e, principalmente, no campo
da formação de professores indígenas, algumas universidades brasileiras já
15
Luciano, O índio brasileiro, 2006.

53
estão oferecendo cursos com turmas específicas para indígenas. Penso que
a linguística é uma dessas urgências e relevâncias, antes que seja tarde, pois
sabemos que se nada for feito, continuaremos assistindo ao desaparecimento
e morte de muitas línguas indígenas e, com elas, o fim de muitos saberes de
povos inteiros, que são partes importantes da nossa humanidade e de muitos
mundos fascinantes e obras magníficas da Grande Natureza ou do Grande
Universo, como diriam os povos indígenas.
Antes de concluir é necessário destacar alguns aspectos relevantes
da função política das línguas indígenas no contexto das lutas mais amplas
do movimento indígena. O primeiro aspecto é o poder prático e simbólico
que as línguas indígenas possuem entre os povos indígenas e na sociedade
mais ampla. As línguas indígenas são fundamentais nos processos de luta por
reconhecimento e legitimação material da identidade étnica, que resultam
em reconhecimento de direitos específicos. Além disso, as línguas indígenas,
proporcionam a autoestima dos indivíduos e grupos falantes no contexto das
alteridades e autonomias étnicas e linguísticas.
Em função disso, a prática de educação bilíngue intercultural que
valoriza o pertencimento étnico e cultural é condição para a promoção de uma
educação inter-epistêmica de longa duração com reformas do Estado e das
políticas educacionais e culturais da sociedade nacional, capaz de superar as
limitações teóricas e práticas das noções de interdisciplinaridade e de transdisci-
plinaridade, ambas aprisionadas pela visão fragmentada e colonialista do saber
e do poder disciplinar homogeneizador e autoritário. Uma educação pautada
pela perspectiva ontológica de inter-epistemologias e cosmopolíticas abarca a
noção holística da epistemologia intercósmica, própria das ontologias indígenas.
Neste sentido, a educação bilíngue, intercultural e intercósmica aponta para
a necessidade de construção de novos paradigmas epistemológicos e novas
atitudes políticas e sociais da sociedade dominante e dos povos indígenas.
Utilizo aqui a noção de cosmopolítica para designar o caráter holís-
tico, orgânico e interdependente da natureza/cosmo. Essa interdependência
cósmica, própria das cosmologias, ontologias e epistemologias indígenas,
coloca o imperativo cosmopolítico da linguagem e da comunicação entre
todos os seres co-habitantes do planeta e do mundo. Em consequência dessa
cosmovisão, pensar a sustentabilidade da vida, do planeta e do mundo exige
levar em consideração todos os sujeitos humanos e não humanos, materiais e
imateriais existentes. A sustentatabilidade ambiental ou ecológica do planeta,
54
por exemplo, não depende apenas de negociações entre os humanos, mas tam-
bém dos humanos com todos os outros sujeitos, entes, agências que compõem
e constituem a cadeia ecológica, humanos e não humanos.

Considerações finais
É importante salientar que as línguas indígenas, enquanto patrimônio
da humanidade, gozam de reconhecimento, proteção e promoção da Cons-
tituição Federal (CF) brasileira e de leis internacionais. A CF, em seu artigo
231, assim determina: “são reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens”.
O artigo 210 da mesma CF faculta às comunidades indígenas a uti-
lização de suas línguas maternas e seus processos próprios de aprendizagem
no ensino fundamental. Tais instrumentos legais declaram o rompimento da
política integracionista de homogeneização cultural, étnica e linguística na
sociedade brasileira e garante aos povos indígenas os direitos de continuarem
falando suas línguas e praticando suas culturas e tradições, dentro e fora da
escola.
Mas, para que essa declaração resulte em realidade concreta, é ne-
cessário que as línguas indígenas sejam valorizadas, faladas e escritas nos
ambientes das escolas e das universidades e em toda a sociedade, de forma
permanente, tomando-as como línguas de instrução materializadas por meio de
aulas orais, cantos, exercícios e tarefas escritas e orais cotidianas, elaboração e
uso de livros didáticos, elaboração e defesa de monografias, dissertações e teses
em línguas indígenas. Além disso, essas línguas precisam alcançar os meios
de comunicação de massa: televisão, rádio e jornais impressos, bem como, as
igrejas, os quartéis, os sindicatos e outros espaços relevantes.
A existência viva das diferentes línguas é fundamental para se estabe-
lecer a prática do diálogo e do intercâmbio de saberes, valores e experiências
de vida e de mundos. A diversidade de línguas possibilita o estabelecimento
de diálogos cosmopolíticos e conexões transcendentais, envolvendo holisti-
camente inter-espiritualidades, inter-subjetividades, inter-epistemologias e as
importantes capacidades de articulação das multireferencialidades cósmicas, as
multidimensionalidades ontológicas humanas e as multicosmologias linguísticas
e ecológicas. As línguas carregam e sustentam mundos, valores e existências
humanas e não humanas únicas, porém, diversas, interdependentes.

55
Os diálogos inter-linguísticos são diálogos filosóficos, cosmológicos
e cosmopolíticos que podem ajudar a romper a subalternidade interétnica
colonialista, na medida em que ajudem a construir processos educativos e a
exercitar atitudes objetivas e transformadoras propícias ao diálogo político e
epistemológico de rompimento com o poder subjetivo da subalternidade e da
colonialidade tutelar, etnocêntrica, eurocêntrica, historicamente enraizadas em
nossa sociedade. Entre os povos indígenas, o diálogo simétrico atua sempre
na perspectiva da lógica e da prática de complementariedade, intercâmbio,
troca, reciprocidade, interaprendizagens, negociação político-linguística e
político-cosmológica, ou seja, de um diálogo para o respeito, para o reconhe-
cimento e para a solidariedade entre humanos e não humanos. Assim sendo,
a manutenção escrita ou falada de uma língua indígena é um verdadeiro ato
de resistência sociopolítica, que busca uma relação de reconhecimento e de
respeito ainda que de modo subalterno ou assimétrico.
Por fim, destaco que ainda observo com muita tristeza a falta de
interesse em nossa sociedade pela vivência da interculturalidade enquanto
vivência intermundos e exercício vivo do bilinguismo linguistico e cultural
na escola, na comunidade e na sociedade, apesar dos discursos e das normas
bem elaboradas, mas muito pouco praticadas. Insisto no diálogo linguístico,
enquanto diálogo epistemológico para uma compreensão mútua e recíproca
entre os distintos mundos que povoam, enriquecem e embelezam o nosso
mundo. Para isso, o diálogo intercultural é o começo, um importante começo,
porém, o desafio é alcançar o diálogo cosmopolítico, único capaz de tornar
sustentável a vida no mundo.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHINOV, Valentin Nikolaïevitch). Marxismo e filo-
sofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução de Michel Lahud e Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
1993.
HAMEL, Rainier Enrique. Conflicto sociocultural y educación bilíngue: El caso de
los indigenas Otomíes en México. In: Revista Internacional de Ciencias Sociales –
La interacción por medio del Lenguaje. Paris: Unesco, 1984, v.36, n.99, pp. 117-132.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/SECAD. Rio de Janeiro:
LACED/Museu Nacional, 2006.
PIMENTEL DA SILVA, Maria do Socorro. Reflexões sociolinguísticas sobre lín-
guas indígenas ameaçadas. Goiânia: Ed. Da UCG, 2009.

56
Identidade e literatura indígena: o
encontro necessário na escola brasileira
Edson Kayapó

Introdução
Os “tempos de direitos”, abertos com a constituição cidadã promul-
gada em 1988, trouxeram consigo a garantia legal do direito à diversidade
sociolinguistica dos povos indígenas em seus territórios e a possibildade da
inovação no diálogo curricular, com a implementação de novas abordagens
sobre a temática indígena na escola, alargando o foco de compreensão sobre
a formação da sociedade brasileira.
Considerando que o Estado brasileiro foi construído sob a égide
da opressão e da violência sem limites contra os povos indígenas, constata-
se que escola tem servido de guardiã das ações genocidas. A escola e seus
currículos vêm acompanhando, de forma explícita ou não, as ações genocidas
do Estado brasileiro, seja no silenciamento desses povos ou no seu tratamento
como a expressão do folclore nacional ou, ainda, condenando-os a um pas-
sado longínquo da nossa história. Os povos indígenas são oportunamente
lembrados nas aulas de História que tratam da “descoberta do Brasil” e
da montagem do sistema colonial e, eventualmente, em momentos pon-
tuais da história nacional, especialmente nas manifestações do dia 19
de abril, quando as crianças aprendem sobre o encontro dos portugueses

57
com esses povos que viviam nus, falavam a língua tupi, adoravam o Deus
Tupã ou a Lua (Jacy), além de viverem isolados no tempo e no espaço.
Cria-se, desse modo, o mito do índio genérico.
Nos dias atuais, os diálogos multiculturais incitados nas instituições
de ensino e o avanço do protagonismo indígena na condução de suas histórias
sugerem a superação do silêncio e dos esteriótipos indígenas. A sociedade
e os próprios indígenas se mobilizam pela construção de outras histórias,
que rompam com a perspectiva eurocentrica e opressora que pautam o senso
comum e os pressupostos teóricos e metodológicos da história oficial sobre
os povos indígenas.
É nessa dinâmica de questionamentos sobre a formação da socie-
dade brasileira que a literatura indígena assume um importante papel, cola-
borando de forma protagonizada no processo de promoção da audibilidade
e visibilidade dos povos indígenas no Brasil, às suas identidades, línguas,
cosmologias, espiritualidades e modos de conceber e habitar o mundo.
No presente capítulo, analiso as questões acima suscitadas, eviden-
ciando o movimento de imposição das ações políticas e dos princípios que
pretenderam abalar a existência dos povos indígena no Brasil. Desta forma,
serão questionadas as ideias de inferidade biológica e cultural, o “extermínio
natural” e a constituição do “índio genérico”, assim como serão expostas as
contradições sociais e os grupos políticos que atuaram neste cenário.
No bojo dos debates serão discutidas as possibilidades e os de-
safios do diálogo da escola com a temática indígena, no contexto da Lei
11.645/08 - que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história e
cultura indígena nas escolas de nível básico.

Construção do Estado brasileiro: ações genocidas e silenciamento dos po-


vos indígenas
A problemática indígena no Brasil teve início com a chegada dos
portugueses, no ano de 1500, e a sucessiva ação de expropriação dos territó-
rios originários e a desestruturação das tradicionais formas de organização
dos povos indígenas.
A ideia de civilizar e integrar os povos indígenas à comunhão nacional
está presente desde o início de montagem do sistema colonial. A esse respeito,

58
Ribeiro constata que, por mais que os povos indígenas tenham apresentado
resistência ao projeto cristão-jesuítico, o preço da “salvação das suas almas”
foi a imposição da uma nova língua – língua geral (nheengatu) e a implantação
arbitrária de novos hábitos, pautados na moral cristã e no ideário civilizatório
europeu.1
Analisando as ações colonizadoras e a obra de conversão dos povos
indígenas no Brasil, Manuela Carneiro da Cunha esclarece que os jesuítas
mantiveram diferentes e contraditórias relações com esses povos, identificando
-os como bons ou maus, bravos ou mansos, inimigos ou aliados, inocentes ou
pecadores. A autora constata que o padre Manuel da Nóbrega, por exemplo,
identificava os indígenas como bárbaros, luxuriosos, sodomitas, mentirosos
e infiéis.2
Outra curiosa representação dos povos indígenas no século XVI
foi cunhada por Pero de Magalhães Gândavo, um cronista português que
trabalhou na fazenda da Bahia. Segundo Cunha, o cronista analisou a língua
falada pelos indígenas no litoral da Bahia e concluiu que a ausência do F, L e
R naquela língua significava que os falantes não tinham Fé, Lei e Rei, o que
confirmava e explicava para Gândavo, as características selvagens e o total
estado de “anarquia” em que aqueles povos viviam.
A partir de 1611, a coroa portuguesa definiu o destino dos povos
indígenas estabelecendo que, nos aldeamentos, o poder espiritual ficaria a
cargo dos jesuítas, enquanto que o poder temporal seria de responsabilidade de
um capitão de aldeia, uma situação que prevaleceu até a expulsão da Ordem
Companhia de Jesus, em 1759.3
As ações missionárias dos jesuítas entre os indígenas e a imposição de
uma “nova ordem” nas suas organizações originárias foram complementadas
pela política das “guerras justas” decretadas aos indivíduos e grupos que não
aceitassem as ordens reais ou a fé cristã. Ribeiro lembra que as “guerras justas”
oficializaram a escravização e o extermínio dos povos indígenas durante todo
o período colonial brasileiro.4
A presença sistemática dos jesuítas foi substituída pelo Diretório dos
1
Ribeiro, O índio na história do Brasil, 2009.
2
Cunha, Imagens de índios do Brasil, 1990, p. 106.
3
Ribeiro, Op. cit., 2009.
4
Ibidem, p. 39.

59
Índios, instituído na colônia pelo Marquês de Pombal, em 1757. Declarada-
mente, o Diretório visava a transformação dos povos indígenas em cidadãos
portugueses, uma cidadania que tinha como resultado a anulação das identi-
dades étnicas desses povos.
Mauro Coelho lembra que, no mesmo ano da ascensão do Marquês
de Pombal ao cargo de primeiro-ministro, Portugal assinou com a Espanha
o Tratado de Madri, instituindo a atual configuração das fronteiras entre as
duas nações nas terras sul-americanas.5 Com a nova definição territorial, o
Estado português buscou imediatamente transformar os povos indígenas em
guardiões dos territórios fronteiriços, concedendo-lhes o título de “cidadãos
portugueses” através do Diretório.
Objetivamente, o Diretório dos Índios foi uma política voltada para
a proteção do território português na América do Sul, com os indígenas sendo
“educados” para assumir a função de “soldados de fronteira”. Como parte
do plano de racionalização administrativa, o Diretório impôs aos indígenas a
lógica do trabalho e da produção econômica sistemática, transformando-os em
trabalhadores regidos por severos princípios de conduta moral. Analisando a
questão, Coelho entende que o Diretório foi também um projeto de “educação
para os índios”, uma vez que as normativas instituídas definiam que:
A reformulação dos costumes iniciar-se-ia pela adoção da
língua portuguesa, estabelecendo um corte com o duplo
passado: o nativo, representado pela língua nativa, e o da
sujeição anterior, na figura da língua geral ensinada pelos
religiosos (...). Deveriam, por conseguinte, assumir sobre-
nomes portugueses, “como se fossem brancos” e morar
em casas “à imitação dos brancos; fazendo nelas diversos
repartimentos, onde vivendo as famílias em separação,
possam guardar, como racionaes, as leys da honestidade,
e polícia”. Acrescentava a importância de andarem vesti-
dos para que tivessem desperta a imaginação e o decoro
e, ainda, que evitassem a bebida, num processo paulatino
de abandono dos vícios.6

De forma complementar, Mércio Gomes destaca que o Diretório é


um documento que pode ser assim resumido:

5
Coelho, Amazônia, 2001.
6
Ibidem, pp. 65-66.

60
Conjunto de 95 artigos, que constituem o último orde-
namento português sobre os índios. Reitera a retirada
dos poderes temporal e espiritual dos jesuítas. Concede
liberdade para todos os índios. Favorece a entrada de não
índios nas aldeias, incentiva casamentos mistos, cria vila
e lugares (povoados) de índios e brancos. Nomeia direto-
res leigos. Promove a produção agrícola e cria impostos.
Manda demarcar áreas para os índios. Proíbe o ensino
das línguas indígenas e torna obrigatório o português.7

O Diretório dos Índios pretendia a um só tempo alcançar três objetivos:


resguardar as fronteiras brasileiras, transformar os indígenas em vassalos da
coroa portuguesa e estabelecer a lógica do indígena como “trabalhador livre”,
produzindo para o desenvolvimento da colônia. Mais do que um modelo de
educação para esses povos, o Diretório dos Índios foi uma política de explo-
ração do trabalho e eliminação dos povos indígenas.8
Diante do exposto, podemos observar que o Diretório foi a concessão
de uma estranha cidadania, que transformava os indígenas em súditos em troca
de suas terras e de sua alma originária.
Analisando o Diretório dos Índios, Almeida entende que
A política assimilacionista para os índios, iniciados com
as reformas pombalinas em meados do século XVIII, teve
continuidade no Império brasileiro e também na Repúbli-
ca. Ainda que diferentes legislações garantissem as terras
coletivas e alguns outros cuidados especiais para os ín-
dios enquanto eles não fossem considerados civilizados,
a proposta de promover a integração e extingui-los como
grupos diferenciados iria se manter até a constituição de
1988.9

A revogação do Diretório dos Índios, pela Carta Régia de 12 de


maio de 1798, abriu um vazio na legislação indigenista no Brasil, mas Cunha
chama atenção para o fato de que, “a questão indígena deixou de ser essen-
cialmente uma questão de mão-de-obra para se tornar uma questão de terras.
Nas regiões de povoamento antigo, trata-se mesquinhamente de se apoderar
das terras dos aldeamentos”.10 A ausência de uma legislação específica para
7
Gomes, Os índios e o Brasil, 1988, p. 73.
8
Coelho, Amazônia, 2001
9
Almeida, Os índios na História do Brasil, 2013, p. 18.
10
Cunha, História dos Índios no Brasil, 1992, p. 133.

61
reger as ações do Estado em relação aos povos indígenas abriu espaço para
mais expropriação desses povos.
O século XIX foi particularmente proliferador de teorias racistas e
exterminacionistas voltadas contra os povos indígenas no Brasil. A esse respeito
é ainda Cunha quem esclarece que:
debate-se a partir do fim do século XVIII até meados do
século XIX, se deve exterminar os índios “bravos”, “de-
sinfetando” os sertões – solução em geral propícia aos co-
lonos – ou se cumpre civilizá-los e incluí-los na socieda-
de política – solução em geral propugnada por estadistas
e que supunha sua possível incorporação como mão de
obra.11

Foi nesse contexto que Francisco Varnhagem, respeitado membro


do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, defendeu a tese de que “no
reino animal, há raças perdidas; parece que a raça índia, por um efeito de sua
organização física, não podendo progredir no meio da civilização, está con-
denada a esse fatal desfecho”.12 A sentença de Varnhagen, no final do século
XIX, estava definida: a extinção dos povos indígenas pela incapacidade deles
sobreviverem no “mundo civilizado”.
Paralelamente ao avanço das teorias racistas contra os povos indíge-
nas, o romantismo literário e artístico brasileiro pautou suas representações no
indígena idealizado como ingênuo, forte e bom, sendo este um dos elementos
fundantes da cultura genuinamente brasileira. O indígena se transformava num
mito, que ao final é batizado, assimilado e morto. Portanto, o índio morto ou
assimilado do romantismo está na origem da formação do Brasil.
Analisando a representação do indígena no romantismo, particular-
mente nas obras de José de Alencar, Bosi avalia que “é pesadamente ideológica
como interpretação do processo colonial”. O indígena, fundador da identidade
brasileira, é batizado, recebe sobrenome português e no final é morto, criando
uma situação fictícia que Bosi identifica como “um regime de combinação
com a franca apologia do colonizador”. 13
O desfecho do destino produzido pelo romantismo se consuma nas
artes plásticas. A tela “Moema” (1866), de autoria do artista plástico Vitor
11
Cunha, História dos Índios no Brasil, 1992, p. 134.
12
Ibidem, p. 135.
13
Bosi, Dialética da colonização, 1992, p. 179.

62
Meirelles, representa a figura do índio genericamente idealizado como belo e
exótico, porém, o desfecho é seu desaparecimento, representado na imagem
da índia morta.
Em sintonia com os rumos apontados pelo romantismo literário
alencariano e as teorias exterminacionistas do final do século XIX, verifica-se
que as duas primeiras constituições brasileiras, datadas de 1824 e 1891, respec-
tivamente, não fazem qualquer referência aos povos indígenas, tornando-os
invisíveis perante à sociedade e ao Estado brasileiro.
Portanto, o cerco se fechava para os povos indígenas. Suas identi-
dades eram sistematicamente negadas pela sociedade, seus territórios eram
expropriados e suas línguas exterminadas, enquanto sua existência objetiva
era invisibilizada através de instrumentos jurídicos, fazendo-se consumar a
unidade nacional homogênea e a rejeição da pluralidade étnica e a diversidade
cultural na composição da nação brasileira.
O crescente avanço das ações genocidas e as consequentes pressões
nacionais e internacionais dos setores progressistas, em defesa dos direitos
humanos, repercutiram nos encaminhamentos das políticas públicas para
o trato com os povos indígenas. Em 1910, o governo republicano criou um
órgão específico para assumir oficialmente as políticas indigenistas no Brasil.
Sob inspiração positivista, o Serviço de Proteção aos Índios – SPI
– assumiu a tutela desses povos, tendo como objetivo final a declaração da
“integração dos índios à comunidade nacional”.14 Reforçando o regime tute-
lar instituído pelo SPI, o Código Civil Brasileiro, de 1916, determinou que os
indígenas fossem “tratados como relativamente incapazes para o exercício de
determinados atos da vida”.
É importante ressaltar que o SPI tinha também um compromisso com
a nacionalização das zonas de fronteiras territoriais. O regulamento do órgão,
aprovado pelo Decreto 736, de 06 de abril de 1936, deixava clara a intenção
de transformar os indígenas em guardiões de fronteira, utilizando para tal
finalidade “a pedagogia da nacionalidade e do civismo”.15
Portanto, o SPI deveria conduzir os povos indígenas ao seio da nação
brasileira até que todos eles fossem integrados. A partir de então, a função do
órgão estaria cumprida e os povos indígenas não mais existiriam.
14
Santos, A temática indígena na escola, 2004, p. 98.
15
Lima, História dos Índios no Brasil, 1992, 165.

63
No contexto do indigenismo do SPI foram criadas as primeiras escolas
indígenas nos moldes curriculares modernos. Tais escolas eram mantidas pelo
governo federal e seguiam os parâmetros curriculares e administrativos das
escolas rurais, com ênfase em atividades profissionais e alfabetização em língua
portuguesa, apesar das orientações da UNESCO por uma educação bilíngue
para os indígenas, como demonstra Luciano.16 As práticas curriculares criadas
pelo SPI colaboraram diretamente com a política de “integração dos indígenas
à comunhão nacional”, tendo suas propostas curriculares pautadas na “peda-
gogia da nacionalidade e do civismo”, conforme previa o regulamento do SPI.
Do ponto de vista constitucional, o Estado brasileiro passou a assumir
compromissos com a temática indígena a partir de 1934, reconhecendo o direito
desses povos à terra, tendo a União como a instância fundamental para lidar
com o assunto. Tais compromissos se mantiveram nas constituições de 1937
e de 1945, no entanto, o ideário de incorporação dos indígenas à comunhão
nacional permaneceu.
No bojo da ditadura militar, implantada em 1964, o SPI foi apontado
como incapaz de manter-se na gestão dos assuntos indigenistas no Brasil. Em
1967, o órgão foi extinto e no mesmo ano foi criada a Fundação Nacional do
Índio - FUNAI, dirigida por militares de alta patente e por grupos anti-indí-
genas que mantiveram as diretrizes políticas de integração dos povos indíge-
nas.17 Complementarmente, em dezembro de 1973, foi publicado o Estatuto
do Índio, documento que reafirmava a “relativa capacidade dos indígenas”
e a manutenção da tutela como política oficial. De igual modo, as escolas
indígenas criadas pela FUNAI passaram a ter compromisso com a aceleração
do processo de “integração do índio”, mantendo-se a tutela e a ideia de que a
“condição indígena” era apenas uma fase transitória a ser superada.
As evidências até aqui apresentadas não deixam dúvidas de que o
Estado brasileiro foi construído sobre os cemitérios, os antepassados e os ter-
ritórios sagrados dos povos indígenas. Desde o início da instalação do projeto
colonial os colonizadores deixaram claro que no “progresso” projetado não
haveria espaço para a diversidade indígena.
Até recentemente, a escola brasileira compactuou firmemente com o

16
Luciano, O índio brasileiro, 2006.
17
Gomes, Os índios e o Brasil, 1988.

64
projeto de integração e com o silenciamento dos povos indígenas. Por séculos
os curriculos escolares reproduziram generalizações e estereótipos e, frequente-
mente, assumiu o discurso do desaparecimento dos povos indígenas. De modo
similar, as escolas ensinavam que os povos indígenas foram extintos, deixando
apenas heranças ainda visíveis na formação da sociedade brasileira, como
tomar banho diariamente, comer peixe assado, farinha e açaí, por exemplo.
O senso comum escolar era fundado na ideia da passividade dos
indivíduos e grupos indígenas, os quais teriam sido vitimados por uma rela-
ção de dominação que não deixou margem para nenhum tipo de reação ou
inovação cultural. A escola e seus currículos desconsideravam que a cultura
é um processo em construção, que no entendimento de Almeida é “produto
histórico, dinâmico e flexível, formado pela articulação contínua entre tradições
e novas experiências dos homens que a vivenciam”.18
O estudo da história e cultura dos povos indígenas nas escolas enfati-
zou por muito tempo as histórias das derrotas e das perdas que culminam no
extermínio desses povos. Essa perspectiva anula as histórias das resistências
e as estratégias de continuidade e manutenção das tradições desses povos,
tirando-lhes a potência de sujeitos e grupos históricos.
Em outros momentos, os currículos escolares insistiam na ênfase da
visão romântica e folclórica dos povos indígenas, condenando-os não apenas
ao passado, mas também à pobreza naturalizada, à preguiça, ao isolamento e a
uma pretensa inferioridade biológica e cultural. Em última instância, a escola
referendava a versão que identificava os povos indígenas como inimigos do
progresso nacional, entre outros motivos por estarem situados em territórios
que guardam grandes riquezas naturais que não estão acessíveis facilmente
à exploração.

Identidade e literatura indígena em tempos de direitos


A partir do final da década de 1970, novos ventos começaram a soprar
mudanças para os povos indígenas e para a temática indígena na escola. Foi
nessa década que os movimentos sociais brasileiros fizeram grandes mobilizações
pela redemocratização do país e pelo reconhecimento dos direitos à igualdade,
à diferença e à diversidade. Neste contexto histórico, jovens indígenas fizeram
uma mobilização nacional para a criação do movimento indígena no país.

18
Almeida, Os índios na História do Brasil, 2013, p. 22.

65
Luciano identifica o movimento indígena como:
aquele que busca articular todas as diferentes ações e
estratégias dos povos indígenas, visando a uma luta arti-
culada nacional ou regional que envolve os direitos e in-
teresses comuns diante de outros segmentos e interesses
nacionais e regionais [...]. No Brasil, existe de fato, desde
a década de 1970, o que podemos chamar de movimento
indígena brasileiro, ou seja, um esforço conjunto e articu-
lado de lideranças, povos e organizações indígenas objeti-
vando uma agenda comum de luta, como é a agenda pela
terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos.19

Os anos 1970 e a década seguinte foram significativos para a conquista


de direitos dos povos originários, pois o movimento indígena nascente buscou
espaço político nos debates em torno da construção da nova constituição na-
cional. Abriram-se novos canais em busca da superação da opressão histórica
e de novos horizonte que foram expressos no reconhecimento dos direitos
dos povos originários, previstos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal
(CF), promulgada em 1988.
A nova Constituição e as garantias do direito à igualdade e à di-
versidade tiveram desdobramentos em legislações específicas, a exemplo da
lei 11.645/08, que manifesta a pressão dos movimentos sociais e dos povos
indígenas pela revisão dos currículos escolares, buscando romper com as con-
cepções eurocêntricas, discriminatórias e silenciadoras dos povos originários.
Refletindo sobre as mudanças acima citadas, Bittencourt lembra que
atualmente a escola vem assumindo novas posturas em relação à temática
indígena e aos povos indígenas.20 A ideia do “índio genérico” e a lógica,
criteriosamente, montada que identificava os povos indígenas como selvagens,
bárbaros, infiéis, traiçoeiros, mentirosos e preguiçosos foram colocados sob
suspeita à medida em que a democracia se consolidava no país.
A lei 11.645/08 propõe a revisão dos currículos escolares e a atua-
lização dos livros didáticos, visando romper o silêncio e as discriminações,
promovendo a audibilidade e a visibilidade dos povos indígenas, evidenciando
também a dinâmica de produção e ressignificação dos modos de vida, costumes
e cosmologias dos povos indígenas.
19
Luciano, O índio brasileiro, 2006, pp. 58-59.
20
Bittencourt, Ensino de História e culturas afro-brasileiras e indígenas, 2013.

66
Superar a imagem do índio genérico, folclórico, exótico e inimigo
do progresso nacional está entre os desafios da escola hoje e o enfrentamento
desses desafios pode ter um forte aliado: a literatura indígena. O diálogo da
escola com a literatura indígena tem como pontos relevantes o protagonismo
indígena na produção e condução de suas histórias, memórias e outras expres-
sões do pertencimento. É a possibilidade de a sociedade brasileira ter acesso às
diversas manifestações vivas desses povos e, particularmente, às manifestações
produzidas pelos próprios indígenas.
Para fins das análises e reflexões aqui realizadas, será utilizado o
entendimento da literatura indígena proposto por Munduruku, que faz a
seguinte consideração:
Nossa literatura não está limitada pela escrita. Ela é tam-
bém silêncio. Ela é também meditação. Ela é sons da
mata, da água, de bicho, de espíritos ancestrais, habitan-
tes de um mundo sensível. Ela é feita de batidas rítmicas
de pés no chão acolhedor; é feita de entoação de cantigas
imemoriais; de corpos marcados por registro de histórias
vivas; de adornos que embelezam os corpos e trazem a
lembrança de que somos parte do todo. Nossa literatura é
o canto da resistência.21

O autor é um intelectual indígena comprometido politicamente com


a identidade dos povos originários. A literatura indígena apresentada por ele
está intrinsecamente vinculada às cosmologias e espiritualidades e aos modos
de compreender o mundo desses povos. Nessa perspectiva, literatura é uma
produção coletiva, originária e firmemente posicionada em termos identitários.
Torna-se importante referendar o entendimento de que as relações
entre literatura e identidade indígenas e escola são necessárias e possíveis,
devendo ser encaminhadas e compreendidas como uma articulação dialogada
e orquestrada no sentido de promover a valorização e o fortalecimento das
histórias e identidades indígenas, provocando ao mesmo tempo a transformação
nas velhas estruturas curriculares eurocentradas e silenciadoras da temática
indígena na escola.
Assim pensada, a literatura indígena pode ser entendida como elo
das histórias e identidades indígenas com a escola, tendo como ponto alto o
21
Munduruku, Revista do Laboratório de Linguagens da Ufscar/Leetra Indígena, 2013, p. 9.

67
protagonismo indígena na condição de mediador. Partindo do princípio de
que a literatura indígena não se limita à escrita, pode-se pensar no trânsito
costumeiro de indígenas na escola, relatando suas memórias, histórias e a
atual situação de seus povos. Pode-se também viabilizar a visita dos estudan-
tes em aldeias, onde poderão presenciar e participar do cotidiano dos povos
originários, enxergando-os para além dos estereótipos criados e reproduzidos
pela escola e pelos meios de comunicação.
Tais ações pedagógicas, entre outras possíveis, podem colaborar na
promoção de outro olhar para os povos indígenas, guiado por outros princí-
pios, outra ética e outra lógica. Reconhecendo as deficiências da escola e a
vigência do senso comum em relação à temática, o caminho é a busca de novos
conhecimentos e novas fontes de saber que sejam capazes de romper com as
visões estereotipadas e generalistas dos povos indígenas.
Os esforços acima indicados convergem com a proposição feita por
Rosa Helena Silva ao sugerir que:
Através de informações amplas e corretas sobre os dife-
rentes povos e culturas que contribuem para a formação
da sociedade brasileira, as crianças poderão entender a
importância da diversidade e formar uma postura de cida-
dania, onde a pluralidade é um valor. Com certeza, todo
esse processo ajudará na superação real dos preconceitos
e discriminações.22

O trabalho com a literatura indígena na escola, particularmente com


a literatura indígena escrita, pode auxiliar no processo de revisão da história
brasileira, colocando em xeque as teorias e currículos que tratam da cultura
indígena apenas como traços herdados de povos extintos, no processo de
formação da nossa nação.
A legitimidade dos conhecimentos contidos na literatura indígena
escrita está no fato de serem conhecimentos milenares que até então estavam
no campo da oralidade. Trata-se de saberes coletivos que, via de regra, têm
como fonte os sábios, mestres e outros sujeitos e grupos indígenas (curandeiras,
ervateiras, pajés, parteiras, caçadores, escritores, pesquisadores e educadores)
que narram memórias e histórias dos antepassados nos cotidianos das aldeias,
enquanto os jovens transformam as narrativas orais em textos escritos e res-
significados, tornando-se literatura indígena escrita.
22
Silva, Urucum, jenipapo e giz, 1997, p. 56.

68
Refletindo sobre essa literatura indígena e seus protagonistas consi-
dero que
os escritores indígenas têm uma responsabilidade gran-
diosa e nobre. Desmontar e remontar a história do Brasil,
desnaturalizando os preconceitos contra os nossos povos,
entre os quais estão as falácias de que somos preguiçosos,
cachaceiros, bagunceiros, sodomitas, ladrões... A litera-
tura indígena tem uma tarefa ainda mais grandiosa, que
tem a ver com a construção da paz, do respeito à diver-
sidade dos nossos povos e a segurança da continuidade
da vida no planeta. O princípio dessa lógica é que nossos
povos não querem mais guerrear de forma violenta, esta-
mos abertos ao diálogo para colaborar na reconstrução
de tudo o que os homens destruíram, em nome do de-
senvolvimento. Tal diálogo, que nunca foi fácil, pretender
indicar alternativas para a degradação das relações socio-
ambientais no planeta.23

A operacionalização das atividades pedagógicas, dialogadas com


a literatura indígena nas escolas, produz as condições para a construção de
novas abordagens no estudo da história e cultura dos povos indígenas. Abre-
se a possibilidade para os professores analisarem os conteúdos curriculares
e, em especial os livros didáticos, comparando-os com os textos indígenas,
identificando as diferentes formas de abordagem da temática, os estereótipos
e as omissões que a prática curricular tem reproduzido ao longo dos séculos.
O exercício proposto auxilia na visualização clara dos grupos sociais
que querem manter a prática genocida e os instrumentos políticos/jurídicos
utilizados nas ações históricas de extermínio, inclusive as ações atuais, a
exemplo do Projeto de Emenda Constitucional 215, que está tramitando no
Congresso Nacional e estabelece que o processo de demarcação das terras
indígenas sairá da responsabilidade do poder executivo (FUNAI), passando a
ser de responsabilidade do poder legislativo federal, sendo que a sua aprovação
prevê também a reavaliação das terras indígenas já demarcadas.
O diálogo da escola com a literatura indígena pode também abrir o
horizonte da percepção sobre as contribuições desses povos à cultura brasilei-
ra, rompendo com o simplismo que atribui à herança indígena um conjunto
pequeno de hábitos detectados como pertencentes aos costumes do povo
23
Kayapó, Revista do Laboratório de Linguagens da Ufscar/Leetra Indígena, 2013, p. 31.

69
brasileiro. A ação dialógica, nesse sentido, pode colaborar ainda nas reflexões
sobre as atuais problemáticas e desafios enfrentados pela sociedade moderna.
A literatura indígena trás em seu corpo saberes milenarmente cons-
truídos e tecnologias socioambientais comprometidas com a preservação da
vida e do equilíbrio das relações humanas na terra. Esses saberes passam pelo
campo do manejo florestal, das práticas agrícolas e medicinais sustentáveis e
pelas atitudes educativas e coletivas que fazem parte do cotidiano nas aldeias,
como demonstra Munduruku.24
Considerando que vivemos em tempos de crises econômicas, so-
cioambientais e de valores éticos, é válido voltar os olhos às formas de vida
dos povos indígenas, procurando elementos que possam auxiliar na busca de
alternativas para as crises instaladas. Entre outras lições, as práticas sociocul-
turais dos povos indígenas evidenciam formas simples de vida, rompendo com
o comportamento consumista desenfreado e próprio do modo de produção
capitalista. De igual forma, esses povos têm convivido de forma equilibrada
com o meio natural, o que significa que são portadores de saberes que envol-
vem experimentações e relacionamentos vinculados às suas espiritualidades,
como expressam os seus rituais e as narrativas escritas.
Os textos indígenas publicados narram memórias e histórias sempre
relacionadas ao caráter sagrado das forças naturais e da vida em todas as suas
expressões. As narrativas tratam de histórias de origem e relações sociais nas
quais seres humanos, animais e outros elementos da natureza (animados e
inanimados) convivem de forma pacífica, sem a imposição de hierarquias
entre eles, sendo que frequentemente a origem de todas as coisas é atribuída
a seres espirituais ou não, em forma de animais.
Entender e ensinar sobre os princípios da organização dos povos in-
dígenas em seus territórios e em seus cotidianos torna-se importante para que
os estudantes percebam que o próprio processo de desestruturação histórica
dos modos de vida dos povos indígenas está relacionado a um projeto maior de
desenvolvimento, que tem colocado sob ameaça não apenas a vida dos povos
indígenas, com todas as suas tradições milenares, mas toda a humanidade e
a vida no planeta.
Nessa perspectiva, a literatura indígena é um instrumento educativo
24
Munduruku, Coisa de índio, 2003.

70
para demonstrar que, apesar da organização socioambiental indígena ocorrer
em outras lógicas (não ocidentais), trata-se de povos de carne e osso que não
podem mais ser idealizados como personagens de ficção romântica do pas-
sado. Entre tantos ensinamentos, a literatura indígena escrita pode auxiliar
na compreensão de que os indígenas não estão apenas nas aldeias. Eles estão
espalhados pelo Brasil, nas cidades, nas universidades, nas escolas e nos demais
espaços sociais, ocupando funções e profissões diversas. Buscando romper com
o ideário absoluto do índio aldeado, Krenak faz a seguinte provocação: “na
cidade, formam redes de reciprocidade e sempre riscam uma linha de onde
estão agora que vai dar lá no parque da antiga aldeia, vila ou paróquia da
missão onde foram seus avós aldeados. Estão na cidade, mas, definitivamente,
não são da cidade”.25
Seja nas aldeias ou nas cidades, os indígenas e suas identidades po-
dem ser mais conhecidos pelos brasileiros por intermédio dos textos escritos e
protagonizados por eles mesmos. É uma literatura recente, inclusive porque a
tradição indígena é fundamentalmente oral, mas essa literatura escrita tem força
suficiente para que a sociedade brasileira consiga dimensionar a diversidade
desses povos, seus hábitos cotidianos, a luta pelo território, suas memórias,
línguas, tradições e espiritualidades.
A literatura indígena propicia o diálogo intercultural na escola não
-indígena, colocando em xeque a concepção da sociedade homogênea acerca
do índio genérico e seu desaparecimento na história nacional. Ela explicita o
movimento dos povos indígenas hoje, apresenta a cultura viva desses povos,
sua dinamicidade e seus diálogos com o passado e com a projeção do futuro.

Considerações finais
Para alinhavar as considerações finais da discussão, quero me despir
de toda a couraça e roupagem positivista impressa no discurso da imparcia-
lidade acadêmica, assumindo minha identidade indígena na escrita do texto.
Para tanto, vou me apropriar do “eu” de pertencimento, que é também a voz
de uma coletividade identitária marcada pela diversidade de povos.
Evocando as forças dos nossos antepassados, quero atestar que a
literatura indígena tem a sua validade legitimada na nossa condição de povos
originários, pertencentes a territórios originários, reconhecidos pela própria

25
Krenak, Antologia indígena, 2009, p. 42.

71
legislação brasileira. Nesta perspectiva, a literatura indígena representa o jeito
de ser dos nossos povos, suas espiritualidades, cosmologias, lutas e concep-
ções de mundo, portanto, são expressões literárias mais do que posicionadas
politicamente, são expressões cotidianamente vivenciadas e ressignificadas no
tempo e nas relações interetnicas.
Assim entendido, o estudo da história e cultura indígena nas escolas
brasileiras deve assumir um compromisso político e ético pela visibilidade e
audibilidade da diversidade dos povos indígenas na história, pois se trata de
grupos humanos que têm seus direitos originários historicamente desrespei-
tados, além de serem vítimas de sistemáticas discriminações na sua terra de
origem, no passado e no presente.
O Estado brasileiro utilizou da violência sem limites contra os povos
indígenas, provocando o que Boaventura Santos identifica como epistemicídio,
que é o extermínio de um conhecimento local perpetrado por uma ciência exte-
rior, alienígena.26 Segundo esse autor, o epistemicídio provoca a subalternização
dos grupos sociais cujas práticas se assentam em conhecimentos específicos e
diferentes dos conhecimentos consagrados pela “ciência universal”.
Tanto as ações instituídas pelos jesuítas, que pretenderam catequisar
para dominar, produzir excedente e transformar os indígenas em mão-de-obra
disponível para as missões/colonização, quanto as ações do Diretório dos
Índios, do Serviço de Proteção aos Índios – SPI e da Fundação Nacional do
Índio – FUNAI, são exemplos da institucionalização das políticas epistemi-
cidas e genocidas.
A escola tem o dever de se adequar aos “tempos de direitos” e abrir
o diálogo sobre a presença dos povos indígenas na história, ressaltando suas
diversidades, suas contribuições para a formação do Brasil e seus projetos de
resistência contra o genocídio histórico.
O processo de formação inicial e continuada dos professores tem à
sua disposição um forte aliado: a literatura indígena em seu sentido amplo,
tanto a literatura oral quanto a escrita. É importante que as instituições e
agências de formação docente dialoguem e busquem a aproximação com as
comunidades, lideranças e escritores indígenas, facilitando o diálogo com
protagonismo, por intermédio da participação dos povos indígenas em forma
26
Santos, A gramática do tempo, 2006.

72
de palestras, de entoação de cantos, danças, oficinais de grafismos e outras
artes do corpo e da palavra. Tais ações podem ser planejadas no cotidiano
curricular da escola e voltadas para os estudantes.
Os cursos de licenciaturas, por sua vez, devem realizar o debate de
forma profunda nas instituições de ensino superior, realizando reformulações
em suas estruturas curriculares a fim de contemplar a história e cultura indí-
gena, seja com a criação de disciplinas específicas ou organização transversal
da temática nos conteúdos curriculares.
É necessário que professores, alunos e demais agentes das escolas
problematizem e se apropriem dos conhecimentos sobre o tema, tornando-se
pesquisadores e propositores de novas metodologias de ensino-aprendizagem
e de outras narrativas que se insurjam contra a versão hegemônica da história.
Os esforços para a promoção da Lei 11.645/08, no que tange ao
estudo da história e cultura indígena, esbarram em limites complexos, entre
eles, a morosidade e o reduzido interesse das escolas e do poder público para
promover cursos de formação de professores e o diálogo deles com a literatura
indígena. Como já assinalado, os cursos de licenciatura prosseguem suas ações
curriculares dando pouca ou nenhuma importância para a temática indígena,
mantendo uma formação de professores sem as competências e habilidades
necessárias para atuar de forma coerente com a história e cultura indígena.
Outro compromisso necessário que a escola deve assumir é a forma-
ção para a cidadania, o que significa reafirmar que ao lado da igualdade há
outro direito fundamental: o direito a diversidade étnico-cultural. Como afirma
Cury, uma sociedade justa e democrática não pode abrir mão do princípio da
igualdade, resguardando o direito à diferença e à diversidade.27 Essas temáticas
podem ser contempladas no diálogo da escola com as literaturas indígenas.
É importante ressaltar que as vertentes intelectuais e acadêmicas
que persistem na posição de negar a possibilidade de uma literatura indígena,
sejam por quais argumentos forem, precisam repensar seus posicionamentos.
Os povos indígenas são povos originários, detentores de territórios, línguas,
hábitos, costumes e saberes milenares que precisam ser respeitados nas suas
expressões originárias.

27
Cury, Cadernos de pesquisa, 2002.

73
Buscando demonstrar a amplitude da literatura indígena, Munduruku
escreve:
Nossa literatura vai além dos ismos, vai além das logias,
está acima das demagogias militantes. Ela é, enfim, nos-
so jeito de atualizar as lutas de nossos antepassados. É
nosso pedido de solidariedade. É a forma de agradecer às
gentes de bem que bem antes de nós se sacrificaram para
que pudéssemos viver o atual momento. É também nosso
compromisso com o hoje, o agora que nos desafia a ser
criativos para continuarmos não permitindo que a ganân-
cia destrua o que, na verdade, é patrimônio de todos nós:
a natureza que faz desse país nosso lar.28

A negação de uma literatura indígena pelos setores conservadores


da academia evidencia o desejo de perpetuar os cânones literários, rejeitando
outras vozes que expressam de diversas formas o seu carinho pela natureza e
pelo semelhante. Trata-se de uma prática autoritária que nos remete às velhas
políticas colonialistas, eurocêntricas e homogeneizantes.
A literatura indígena explicita a diversidade dos povos indígenas no
Brasil. Evidencia o reflorescimento desses povos e o olhar sagrado que eles
têm para as forças da natureza. Constata o movimento de revitalização socio-
cultural desses povos, superando a lógica do extermínio.

Referências
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FGV, 2013.
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cola: memória e esquecimento. In: PEREIRA, Amilcar Araujo; MONTEIRO, Ana
Maria (Orgs.). Ensino de histórias afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro:
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(séculos XVIII e XIX). Belém: UFPA/NAEA, 2001.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Estu-

28
Munduruku, Revista do Laboratório de Linguagens da Ufscar/Leetra Indígena, 2013, p. 9.

74
dos Avançados, v. 4, n. 10, São Paulo, set./dez. 1990.
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
CURY, Carlos R. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Ca-
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KAYAPÓ, Edson. Literatura indígena e reencantamento dos corações. In: Revis-
ta do Laboratório de Linguagens da UFSCAR/LEETRA Indígena (Antologia dos
Morõgetás: olhares indígenas), v. 2, n. 2, 2013.
KRENAK, Ailton. Trilhos Urbanos. In: MUNDURUKU, Daniel; WAPICHANA,
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MUNDURUKU, Daniel. Coisa de índio. São Paulo: Callis, 2003.
MUNDURUKU, Daniel. Apresentação. Literatura indígena e reencantamento dos
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RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura
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L. D. Benzi (Org.). A temática indígena na escola: subsídios para professores de pri-
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que a escola tem com isso? In: GOVERNO DE ESTADO DO MATO GROSSO.
Secretaria de Estado da Educação. Conselho de Educação Escolar Indígena do
Mato Grosso. Urucum, Jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate.
Cuiabá: Entrelinhas, 1997, pp. 49-68.

75
A política dos artistas na pedagogia
Huni Kuin
Amilton Pelegrino de Mattos

Agradeço ao Edson Kayapó pela interlocução com as


ideias aqui esboçadas e, como ele disse que devemos ou-
vir os sábios, dedico este texto à Ana Pizarro, por sua ge-
nerosidade.

Apresentação
Tanto os títulos dos textos e falas dos demais colegas quanto minha
fala devoram conceitos que veem sendo elaborados ao longo dos anos por Ibã:
política dos artistas e pedagogia Huni Kuin. A natureza deste texto assim como
do filme O sonho do nixi pae não é explicar, interpretar, mas de experimentação
e bricolagem. Não se trata de compreender, mas de colocar os textos um ao
lado do outro, como as imagens dos cantos huni meka: nai mãpu yubekã (céu
pássaro jiboia). Parataxe, bricolagem.

77
Puke Dua Ainbu, obra do MAHKU, realizada durante o IX Simpósio Linguagens e Identidades da/
na Amazônia Sul-Ocidental: “Línguas e literaturas indígenas”

É importante que se entenda que este é um projeto independente


da universidade e é importante que se entenda que o mesmo também é uni-
versidade. Não universidade institucionalizada, mas universidade nômade,
universidade da floresta (e afinal todas as universidades são universidades da
floresta, sejam elas amazônicas ou não), da única maneira que pode existir:
nômade. Ibã é indígena, seu pensamento não foi integrado pela academia,
mas também não pode ser pensado como algo externo à academia, algo que
possamos tomar como produto da academia, algo que possa vir a ser feito e
pensado pelos acadêmicos.
Isso pode ser chamado de antropologia reversa, isto é, quando nós,
ocidentais, ou nosso pensamento somos olhados por uma antropologia nativa.
E ele não apenas está fazendo isso, como está nos chamando para um... não
gosto da ideia de diálogo, mas para uma composição. Convida-nos para uma
experimentação conosco, com nosso pensamento. Sua maneira de fortalecer
sua língua e seus cantos não é se voltar para um narcisismo identitário, mas
buscar no outro, na troca, roubo, no confronto, no aliado-inimigo, sua pos-
sibilidade de aprender, sua possibilidade de fazer-se huni kuin. Somente me
interessa o que não é meu. Ele aprende conosco na universidade, no mundo
da arte, no mundo dos brancos como aprendiam seus antepassados com os
estrangeiros: o jacaré, a jiboia, o cipó... Além de aprender, também ensina. Nos
ensina, não romanticamente, a sermos mais sensíveis. Nos ensina a buscarmos
nos pressupostos do nosso pensamento (na epistemologia, na ontologia, em
nossa relação com a escrita, nossa imagem da subjetividade, etc) a origem
78
do narcisismo que nos trouxe aqui, a esse grande impasse. Pois havemos que
concordar que há um impasse. É por isso que para falar do nosso trabalho
no projeto Espírito da Floresta e no MAHKU, não vou falar de Ibã, não vou
explicar o que fazem, encerrando-os de novo como objetos de meu discurso,
mas também preciso falar de nós, ocidentais, e do nosso pensamento.

Cosmopolítica
Quando se fala em civilizado, eu não quero esse tipo de
civilização.1 
Esta sopa de lama tóxica que desce no rio Doce e descerá
por alguns anos toda vez que houver chuvas fortes e irá
para a região litorânea do Espírito Santo (ES), espalhan-
do-se por uns 3.000 km2 no litoral norte e uns 7000 km2
no litoral ao sul, atingindo três UCs marinhas - Com-
boios, APA Costa das Algas e Refúgio de Vida Silvestre
de Santa Cruz, que juntos somam uns 200.000 ha no mar.
Os minerais mais tóxicos e que estão em pequenas quan-
tidades na massa total da lama, aparecerão concentrados
na cadeia alimentar por muitos anos, talvez uns 100 anos.
Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz é um dos mais
importantes criadouros marinhos do Oceano Atlântico. 1
hectare de criadouro marinho equivale a 100 ha de flores-
ta tropical primária. Isto significa que o impacto no mar
equivale a uma descarga tóxica que contaminaria uma
área terrestre de de 20.000.000 de hectares ou 200.000
km2 de floresta tropical primária. E a mata ciliar também
tem valor em dobro. Considerando as duas margens são
1.500 km lineares x 2 = 3.000 km2 ou 300.000 hectares de
floresta tropical primária. Vocês não fazem ideia.
O fluxo de nutrientes de toda a cadeia alimentar de 1/3
da região sudeste e o eixo de ½ do Oceano Atlântico Sul
está comprometido e pouco funcional por no mínimo 100
anos! Conclusão: esta empresa tem que fechar. Além de
pagar pelo assassinato da 5ª maior bacia hidrográfica bra-
sileira. Eles debocharam da prevenção e são reincidentes
em diversos casos. Demonstram incapacidade de opera-
ção crassa e com consequências trágicas e incomensurá-
veis. Como não fechar? Representam perigo para a segu-
rança da nação!
O que restava de biodiversidade castigada pela seca ago-

1
Valdelice Veron.

79
ra terminou de ir. Quem sobreviverá? Quais espécies de
peixes, anfíbios, moluscos, anelídeos, insetos aquáticos
jamais serão vistas novamente? A lista de espécies desa-
parecidas foram quantas? Se alguém tiver informações,
ajudariam a pensar. Barragens e lagoas de contenção de
dejetos necessitam ter barragens de emergência e plano de
contingência. Como licenciar o projeto sem estes quesitos
cumpridos? Qual a legalidade da licença para operação
sem a garantia de segurança para a sociedade e o meio
ambiente?
Mar de lama... mas não seria melhor evitar que a lama
chegasse ao mar? Quem teve a brilhante ideia de abrir as
comportas das barragens rio abaixo em vez de fechá-las
para conter a lama e depois retirar a lama da calha do rio?
Quem ainda pensa que o mar tem o poder de diluição
da poluição? Isto é um retrocesso da ciência de mais de
1 século!!!!! Sendo Rio Federal a jurisdição é do governo
federal portanto os encaminhamentos devem serem feitos
ao MPF.2
No dia 05 de Novembro, na cidade de Mariana/MG,
duas barragens de rejeitos da Samarco Mineração e Vale
se romperam, causando uma enxurrada de lama que des-
truiu o distrito de Bento Rodrigues, causando mortes,
desaparecimentos, destruindo famílias, e trazendo pânico
àquela população. 
Mas o estrago não para por aí! Essa lama, comprovada
que é tóxica, veio passando por diversas outras cidades...
e chegou aqui, na Princesa do Vale, invadiu o nosso Rio,
acabou com nossa água. 
A cidade não tem água! É isso mesmo gente: NÃO TEM
ÁGUA! Nem no Rio, nem nas torneiras... não há abaste-
cimento de água e a previsão é que isso irá durar no míni-
mo 30 dias! E o que é ainda pior.... Não temos água nem
para comprar! Sim! É verdade! Acabaram os estoques dos
supermercados! Estamos todos desesperados por água! É
fácil saber quando chega algum caminhão com água...há
filas kilométricas com pessoas e seus galões para comprar
água, que muitas vezes são limitadas as vendas a 1 ou 2
galões por pessoa.
É surreal! As pessoas brigam por água! Boletins de ocor-
rência são feitos por causas das desavenças. Ladrões ago-

2
André Ruschi, Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi, Aracruz, Santa Cruz, Espírito
Santo.

80
ra roubam água... é perigoso andar na rua com galão de
água. Estão roubando mesmo! E além dos ladrões desca-
rados, há também aqueles que se aproveitam do momen-
to, comerciantes sacanas que elevaram o preço do galão
para obter lucro exorbitante dessa população que tanto
sofre. Os caminhões com água que chegam a Valadares,
estão vindo escoltados pela Polícia! Acha que é exagero?
Não é não! Saquearam carga de galões de água! Valadares
vive dias de puro terror! O clima é de medo, apreensão,
incertezas, desespero e muita tristeza. Universidades, es-
colas, comércios, estão parados! A cidade fede! As pesso-
as vão para as pontes ver o antigo Rio, incrédulas, e saem
de lá na mais profunda tristeza ao ver milhares de peixes
agonizando, sem água, e não sabendo como será Valada-
res no futuro!3
Quando saí de casa, na semana passada, pensava vir aqui falar do
trabalho que, a partir de uma perspectiva literária e linguística, vem sendo
realizado há anos pelo Ibã, os artistas Huni Kuin e por mim. Porém, algo
mudou no caminho e a Terra entrou em minha fala de maneira devastadora.
A filósofa belga Isabelle Stengers cunhou uma expressão para refe-
rir-se ao que estamos vivendo no planeta e nas ciências humanas: intrusão de
Gaia, isto é a intrusão da Terra. Ela define o conceito de cosmopolítica como
a insistência do cosmos na política. Como não falar hoje sobre isso, se a Terra
irrompe como problema urgente. Estou falando da tragédia da Vale do Rio
Doce sim, mas também dessa lama do código de mineração que vem arras-
tando IIRSA, Belo Monte, PEC 215 etc. E não se trata de falar de ecologismo
ou jornalismo ambiental (duas competências das quais quero aqui, sobretudo,
me distanciar). Estamos tratando de outro assunto. Se o humano e sua força
destrutiva se tornam uma potência geológica isso é sim um problema para as
ciências humanas também. Isso pode ser pensado, inclusive, como o grande
problema das ciências humanas, pois, como pensar agora a perspectiva e os
pressupostos com que olhamos os outros povos, as outras espécies?
É em relação a esse etnocentrismo e esse especismo que gostaria aqui
de apresentar o trabalho do MAHKU e o tipo de pacto etnográfico ou a TAZ
(Zona Autônoma Temporária) ou a máquina de guerra que pensamos resultar
dessa zona de vizinhança (os dois termos são de Deleuze e Guattari) entre
distintos regimes de pensamento. Mas espera... o que tem a ver arte e ecologia?
3
Thatiane Carvalhais, moradora de Governador Valadares.

81
Será que é porque nós, no MAHKU, desenhamos animais e plantas? Não, não
é definitivamente o fato de desenharmos animais e plantas, não é disso que se
trata. Pensamos que operamos numa ecologia que não se restringe ao que se
costuma chamar de natureza (em oposição à cultura, separação que constitui
o mito por excelência do pensamento ocidental), mas numa ecologia que atra-
vessa as subjetividades, as socialidades, à ciência. Talvez uma cosmopolítica, já
que começamos com Stengers, termo também utilizado por Gersem Baniwa.4
Desse modo, o que quero fazer a partir daí é começar a tratar do
MAHKU (e do projeto Espírito da Floresta) a partir de um diálogo com a obra
recém-publicada de Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami, A queda do céu.
Esse livro, que levou quase trinta anos para ser escrito, consiste basicamente
num exercício xamânico em que Davi nos descreve detalhadamente como os
xapiri veem o mundo e, principalmente, com veem os brancos. Ele também
consiste, de certa forma, em um totem para uma antropologia contemporânea
que articula na noção de cosmopolítica dois problemas: o perspectivismo ame-
ríndio e o Antropoceno. Cosmopolítica seria uma outra maneira de ver aquilo
que chamamos de animismo para, de certa forma, zombar do pensamento dos
indígenas quando nos diziam que tudo o que sabiam aprenderam e aprendem
no exercício dessa cosmopolítica.

Feridas Narcísicas
Quero contar uma experiência que vivi quando estive pela primeira
vez entre os Kaiowa, no ano 2000, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Passei
um mês acompanhando o trabalho dos professores nas escolas e escrevi um
relatório. Quando estava indo embora, a professora Edina Souza, filha do
grande líder guarani Marçal de Souza, assassinado pelo agronegócio (em 1983),
que era a coordenadora do projeto e me presenteou com Nhande Rembypy, um
grande acervo das artes verbais Kaiowa. Nesse livro ela escreveu uma epígrafe
em que dizia que esperava que eu fosse uma estrela brilhante para o meu povo.
O leve desapontamento que tive na hora (visto que esperava ser uma estrela
brilhante para os Guarani) guardo até hoje como a grande lição que ela me
deu então, algo como: “- Nós não precisamos de ajuda, vocês precisam”.
O crime da Vale escancara de vez como funcionam os tantos poderes
do Estado (e paralelos a ele) no capitalismo. Além do marco de um dos maiores,
senão o maior, crime socioambiental de nossa história, estamos diante de um
4
Cf. capítulo 3 deste livro.

82
outro marco. Trata-se de um marco de linguagem: o modo como a empresa
pode se servir dos meios de comunicação que possuem concessão do Estado
como sua gerência de relações públicas: à mídia foi delegada a função de manter
imaculado de lama o novo código de mineração em preparação.
Mas e a universidade? Não a universidade enquanto parte da sociedade
(solidária às vítimas desse crime), mas enquanto potência de pensamento? E
essa universidade de resultados, está comprometida com quem? Como lidar
hoje com o prêmio sustentabilidade da Capes, patrocinado pela Vale? É disso
que se trata, é isso que precisamos refletir quando nos dispomos a “ajudar” os
povos indígenas. Quem realmente precisa de quem? Como afirmou Marcela
Orellana, não tenho respostas, apenas perguntas.
Sabemos que o antropólogo Pierre Clastres, quando revolucionou a
antropologia política cunhando a termo Sociedades contra o Estado, referia-se
não simplesmente a como se organizavam os povos ameríndios, mas à maneira
de percebermos esses povos do continente sempre como povos a quem falta
algo: Sociedades sem escrita, sem história, sem Estado, sem fé, sem lei, sem
rei. Porém, quando as tomamos como Sociedades contra Estado, afirmamos
sua positividade (a possibilidade da multiplicidade, de um outro movimento
que não leva necessariamente até nós, os civilizados), já que são aquelas so-
ciedades que criam dispositivos para inviabilizar a concentração do poder, isto
é, o Estado e tudo o mais que vem com ele.
Com esse movimento, Clastres propunha que o pensamento selvagem,
no sentido que o antropólogo Claude Lévi-Strauss dá ao termo, não era um
instrumento para explicarmos, amansarmos ou até defendermos os indígenas,
e sim um instrumento para percebermos, a partir da perspectiva indígena,
como o Estado está impregnado em nosso pensamento acadêmico, em nossa
percepção, em nossa linguagem.
Vou contar outra história. Ela está no filme O sonho do nixi pae. É
rápida, talvez não se perceba bem. Em 2012, fomos convidados a falar no
CESTA, Centro de Estudos Ameríndios, na USP. Quero que me entendam, não
falo de pessoas, falo de uma mentalidade que pode nos ensinar algo. E reitero
que isso não é uma denúncia, não nos estou vitimizando, só quero apresentar
como se dá o conflito de pensamentos em uma experiência prática. O vídeo
está disponível na íntegra na página do CESTA, no Vimeo. A professora e

83
antropóloga Dominique Gallois, que coordena o grupo pergunta a Ibã, que
está ao meu lado:
Dominique: - Vou te dizer que minha pergunta é de muita
curiosidade, por que em geral na Amazônia os programas
de formação de pesquisadores indígenas na universidade
não são lá muito bons. Eu queria entender o que que você
sentiu, qual foi a diferença, se a universidade te trouxe
novas ideias de fazer pesquisa, ou se você continua pes-
quisando como você aprendeu no começo?
Ibã: - Realmente a universidade é uma instituição maior,
mas ao mesmo tempo a universidade tem que aprender
comigo... (...)
Não satisfeitos com a resposta de Ibã, prosseguiram:
Aluna: - Você falou que a Universidade tem aprender com
você. Eu queria saber como que isso acontece?
Ibã: - Meus conhecimentos são diferentes, mas mesminho
conhecimento, eu sou da cultura diferente; eu aprendo
com a Universidade, a universidade tem que aprender co-
migo, é isso que eu tô olhando; eu tô vendo isso acontecer.
Um aluno e Dominique: - Dá um exemplo Ibã!
Ibã: - Eu falo na minha língua: ‘Nai mãpu yubekã’, você
entende? ‘Não’ Aí você tem que me perguntar. (Risos)
Dominique: - Mas você criou alguma disciplina nova ou
você e os outros índios tem que se encaixar dentro das
disciplinas que os acadêmicos... é isso que eu queria en-
tender, se você criou, se a universidade aprende com você,
a universidade mudou o seu programa com base na tua
sugestão ou ainda são vocês que se encaixam dentro do...
Ibã: - Nós se encaixa dentro do...

Literatura indígena

Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é


a sua? Ou então não conhecem mesmo mais a sua, ou
não ainda, e conhecem mal a língua maior de que são
forçados a se servir? Problema dos imigrados, e sobretudo
de seus filhos. Problema das minorias. Problema de uma
literatura menor, mas também para nós todos: como ar-
rancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz

84
de escavar a linguagem, e de faze-la escoar seguindo uma
linha revolucionária sóbria? Como devir o nômade e o
imigrante e o cigano de sua própria língua? Kafka diz:
roubar a criança no berço, dançar sobre a corda bamba.5

Inspirado em Deleuze e Guattari, falando em literatura, vou enfocar


rapidamente uma noção que me parece central para fazer uma articulação entre
o que entendemos por literatura e a imagem que podemos fazer do MAHKU:
trata-se da noção de autor.
A noção de autoria sofreu um grande golpe com a polifonia que
Mikhail Bakhtin soube ler e explorar como conceito inovador na literatura
de Dostoievski. Outro golpe na ideia de autor que nos interessa aqui marcar
é aquele indicado pela obra de Foucault, que se interessa por ela não mais
apenas no escopo literário, mas também na ciência e em toda produção do
pensamento ocidental. O problema: o que é um sujeito, o que define uma
pessoa? Problema esse, colocado, insistentemente, por Foucault e retomado
por Deleuze e Guattari, quando recebe seu golpe final, no século passado.
Penso que sua noção de literatura menor, conceito elaborado a partir da obra
do escritor tcheco Franz Kafka, assim como o conceito de agenciamento coletivo
de enunciação radicalizam antropologicamente o conceito de autor já fraturado
por Bakhtin e Foucault.
Em que consiste um sujeito, o que é uma pessoa? Esse é hoje um
dos problemas fundamentais para aqueles que, da perspectiva ocidental, se
dedicam a dialogar com ou entender o pensamento ameríndio e que, com essa
perspectiva indígena, se voltam para o que sobrou de nossa imagem do sujeito.
O que é uma pessoa, quem é pessoa, quem pode dizer nós, os hu-
manos? O que se quer dizer com o huni kuin casou com a jiboia? Aprendeu
com jiboia? O que os huni kuin podem estar nos dizendo quando cantam os
ensinamentos que vieram da boca da jiboia ou do pensamento-música do cipó
nixi pae? O que é do MAHKU, quando as vozes de huni kuins e as vozes dos
acadêmicos e do coral da UFAC compõem um coro e entoam um canto huni
meka? Quem são os integrantes do MAHKU? São apenas as pessoas aqui
pintando, são apenas os indígenas ou podemos ser, sobretudo, de maneira
molecular, todos MAHKU?

5
Deleuze e Guattari, Kafka, por uma literatura menor, 2014.

85
Oficina de canto Huni Kuin com a participação do Coral da UFAC, durante o IX Simpósio
Linguagens e Identidades

O que é nosso e o que é deles quando dizemos que o animismo ame-


ríndio se explica pela noção de “crença”? E se alcançássemos essa “crença” ao
status de pensamento? O que veríamos nas paredes dessa sala quando ecoam os
cantos huni meka em termos de conhecimento? O certo é que se trata sempre
de nos voltarmos para os nossos pressupostos quando nos dispomos a julgar
esse outro conhecimento, esse conhecimento que se volta para interagir com
o nosso apesar de todas as nossas negativas.
Quando nos aproximamos de um regime de criação em que nossos
recursos (escrita alfabética, artes visuais, pesquisa acadêmica, audiovisual,
arte eletrônica) interagem com o xamanismo, ou ainda, quando tais recursos
operam ou são apropriados por um pensamento selvagem ou xamânico, nossas
noções de arte, autoria, leitura entre outras precisam ser vistas com um certo
cuidado, pois tais termos podem não mais dizer a mesma coisa.
Enquanto buscamos entender suas artes verbais para encaixar em
nosso cânone, instituir prêmios literários, realizar traduções, criar leis para
obrigar a adoção de obras indígenas, disponibilizar nas escolas como política
pública, etc, dificilmente vamos entender que ponte-jacaré é essa que o MAHKU
atualiza. Dificilmente vamos entender que não se trata de uma ponte meta-
fórica (como disse Joaquim Maná). Em vez de “incluirmos o outro”, trata-se
da possibilidade de interagirmos com o diferente (e a diferença) em termos
que já não são os nossos.

86
Pensamento selvagem
O antropólogo Pierre Clastres, em um pequeno texto, trata de uma
questão que lhe interessa por toda sua obra: de que natureza é “nossa” inca-
pacidade de “nos” comunicarmos com os povos originários deste continente.
O uso que ele faz do “nós” merece atenção. Nós somos os ocidentais, os
colonizadores, os antropólogos, etc. Porém, cuidado, pois aqui se trata de um
texto sobre Lévi-Strauss, o que muda ligeiramente a natureza desse pronome
nós. Quando nos referimos a nós e eles, a partir de Lévi-Strauss, falamos do
pensamento de uma maneira muito distinta da que se falava até então. Até
então, década de 1960, quando este autor escreve O pensamento selvagem, os
indígenas eram considerados primitivos ou como se estivessem numa espécie
de infância do pensamento.
Com Lévi-Strauss e a ideia de pensamento selvagem, isso muda
e abrimos uma dimensão em nossa tradição epistêmica (e ontológica) para
imaginar imaginações diferentes da nossa. Voltando a Clastres, a ele interessa
justamente isso: como podemos imaginar uma outra imaginação se o que de-
fine o nosso pensamento é a violência com o outro, o silenciamento violento
da alteridade justamente no plano do pensamento?
Para resumir, Clastres conclui apontando para as monumentais
Mitológicas de Lévi-Strauss, que se trata de criar uma nova linguagem. Perce-
bam, essa nova linguagem é justamente o que me interessa, pois penso que ela
funciona como uma chave não para explicar o que Ibã está fazendo, mas para
nos darmos conta da dificuldade que é, para nós, sairmos do cerco instaurado
por nossa imagem do pensamento. Trata-se, portanto, de uma chave que nos
permite saber ao menos em que consiste imaginar uma outra imaginação,
ou compreender o que acontece quando nosso pensamento se encontra e se
confronta com um pensamento outro, já que esse é o problema fundamental
que atravessa o obra de Lévi-Strauss.
Não quero, portanto, aqui incorrer no erro de explicar Ibã, explicar
o MAHKU, explicar os huni kuin. O que pretendo é criar referências para que
nós, que estamos aqui, tenhamos a possibilidade de interagir com o tipo de
cosmopolítica que esses pajés-artistas constroem com seus aliados acadêmicos
ou artistas (aliado que é sempre o inimigo possível) por um lado, e com seus
aliados espíritos, por outro, para dar continuidade à sua velha guerra pela
supervivência.

87
Por isso acredito que se trata sim de literatura. Porém não de uma
literatura entendida em nossa tradição representacional em que o livro é a
imagem do mundo, mas, para buscar o rizoma que abre o livro para todas
as conexões cósmicas, um livro vivo, um livro cantado, um livro ritual com
todas as suas dimensões semióticas: corpo, tempo, espaço, velocidade, sons,
imagens, etc.

Mana Huni Kuin pintando o canto Hawe Matsi Kawanai

Afirmei para Ana Pizarro que retomaria sua fala do ponto em que a
mesma parou porque penso que outras maneiras de ler a literatura se abrem em
momentos de uma revolução tecnológica dos meios, uma revolução de tantas
dimensões como a pela qual passamos, redefinindo completamente nossa relação
com a linguagem e redefinindo, sobretudo, o que somos. Penso que vivemos
uma revolução nas proporções da que viveram os gregos com a invenção e
prática do sistema alfabético. Assim como aquela transformou a percepção do
mundo, o corpo e a própria “realidade”, instaurando uma ontologia própria,
nesta revolução que vivemos, aprender a ler implica transformar a percepção
e transformar o que entendemos por mundo, corpo, humano. Nesse processo,
aproveitando-se dessa revolução, os Huni Kuin veem aqui uma brecha, uma
entrada para o mundo, até então fechado para essas outras “línguas” e esses
outros pensamentos humanos e extra-humanos – a exemplo da fala da jiboia,
do jacaré, do cipó nixi pae e tantos outros espíritos yuxibu – que nos incitam a
experimentar as delícias da terra, assim como nos incitam a nos impactarmos
com o mar de morte da mineradora Vale/Samarco.
88
Referências
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– Movimento dos Artistas Huni Kuin” In: DOMINGUEZ, M. E. (Org.) Anais do
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros
ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

89
Desde la piedra: aproximaciones a los
animales mitológicos en el arte antiguo
amazónico
Rocío Casas Bulnes

Esta investigación parte preguntándose dónde quedan las representa-


ciones de animales en los estudios del arte prehispánico amazónico, cultural-
mente, dentro de su relación con las áreas Andina y Mesoamericana que han
sido mucho más estudiadas en este sentido. La búsqueda aquí es encontrar una
propuesta de lectura para las producciones amazónicas, ocupando y poniendo
a prueba los estudios de dichas áreas circundantes. Los estudios arqueológicos
son un pilar dentro del trabajo, pues gracias a ellos hemos conocido la mayoría
de los petroglifos y pinturas rupestres antiguas de la Amazonía. Es notable cómo
en los animales aparecen también las relaciones del norte y sur de América
con el centro selvático. Hay, por ejemplo, animales que no son de esa zona y
sin embargo se les retrata. Las características de estos animales se ponen en
relación con sus contenidos simbólicos y mitológicos, tanto latinoamericanos
como universales en caso de que la lectura pueda enriquecerse.
Estamos ante un arte que desaparece muy rápida y fácilmente, ya sea
por la naturaleza devoradora, porque el río los oculta, o los procedimientos
científicos como el carbono catorce sólo se pueden aplicar en materiales biode-
gradables que no duran mucho. Estas manifestaciones son por supuesto hechas
por manos desconocidas y en su mayoría intervenidas a través del tiempo.
91
Epistemológicamente los círculos hermenéuticos gadamerianos se
plantan como sustento epistemológico, pues en ellos nos acercamos a objetos
de estudio muy lejanos y que poco o nada se sabe de ellos, ocupando como
un provecho el enorme paso del tiempo. Así mismo la metáfora de la semilla
en Hegel, donde su espíritu es el mismo siendo también germen, flor o árbol,
sirve para observar el cambio de cuerpos en las representaciones de animales.
Este es puesto en relación a las Metamorfosis de Ovidio, donde la vida pasa de
cuerpos animales a vegetales y humanos en un eterno fluir.

Las piedras también hablan


Las piedras también hablan: es una frase que parece conveniente
para comenzar esta exposición. Pues cada ser vivo se comunica a partir de
quién es, y es evidente que nosotros humanos no somos la excepción, estemos
conscientes de eso o no. En mi caso, como mujer occidentalizada, de raíces
mexicanas y chilenas, he llegado a este lugar por primera vez en la vida. No
conocía la selva, salvo por lecturas y fantasías, y nunca he visto en vivo uno
de sus petroglifos. En mi preparación de tesis doctoral sobre los animales
mitológicos de la antigua América, específicamente dentro de las zonas de
Mesoamérica y Los Andes, busco una etología propia que se manifiesta en
las representaciones del arte y la literatura prehispánicas. Pero ¿qué sucede
con este enorme pedazo de tierra en medio que es la Amazonía?, ¿es posible
ignorarlo, incluso en un estudio académico que exige la mayor especificidad?,
¿pueden ser útiles las referencias y avances mesoamericanos y andinos para
ponerlos a prueba aquí, observando entonces las similitudes y diferencias?
Como ven he llegado con más preguntas que respuestas. No vengo a compro-
bar nada. Forzar eso sería, como poco, irresponsable. Lo que sí puedo hacer
es ensayar una propuesta de lectura para las representaciones de animales en
los petroglifos de la selva con el fin de ponerla a prueba, y que por supuesto
quede abierta y accesible a quien quiera utilizarla.
Los animales aparecen como protagonistas en los petroglifos, en el
sentido de que se han registrado más representaciones animales que humanas
o abstractas sin referencias naturales, razón primera por lo que es útil escuchar-
los. Entiendo en los animales mitológicos tanto a los seres fantásticos como
a quienes son parte de la naturaleza del lugar y participan activamente en sus
mitologías, aunque veremos que las distinciones entre uno y otro se desdibujan
cuando nos acercamos.
92
Volviendo al prehispanista mexicano de la literatura y la filosofía
Miguel León Portilla y sus recomendaciones tan útiles para leer literaturas
antiguas de esta naturaleza, él recuerda cómo su maestro Ángel María Garibay
solía decir “no mires sólo al indio muerto, mira también al indio vivo” (Video
entrevista). En este caso se busca mirar al animal dentro de la piedra y también
al animal fuera de él. Por eso propongo un acercamiento a los animales bajo la
luz de sus mitologías y símbolos, sus relatos y específicos conocimientos que
nos entrega la etología entendida como el estudio del comportamiento animal.
En cuanto a la mitología me enmarco en el pensamiento de Mircea
Eliade en el sentido de que cuando hablamos de mitos no quiere decir que
estemos parados en el completo territorio de la fantasía sino de una realidad
concreta, palpable, que se puede ver en el día a día, que nosotros vivimos.
Una mitología que además trabaja de forma literaria con narraciones que se
remontan hasta la antigüedad y también con poesía porque si la leemos de
forma literal no vamos a llegar a su sentido más profundo. Estudiar a los ani-
males desde la mitología en sus representaciones antiguas crea forzosamente
una etología propia que debería ser útil en nuestro proceso de comprensión
animal llegando profundo, hasta donde la ciencia muchas veces no alcanza.
Es lo que Mircea Eliade señaló al escribir que “El conocimiento del origen
y la historia ejemplar de las cosas confiere una especie de dominio mágico
sobre ellas. Pero este conocimiento abre así mismo el camino a las especula-
ciones sistemáticas sobre el origen y las estructuras del mundo”. Para Eliade
la memoria es por eso la mayor forma de conocimiento, y aquel que hace el
ejercicio de recordar se está alimentando más con esa “fuerza mágico- religiosa
más preciosa que el que conoce el origen de las cosas. En la antigua India, por
ejemplo, se distingue claramente la diferencia entre el conocimiento “objetivo”
del origen de las distintas realidades y el conocimiento “subjetivo” basado en
la memoria de las existencias anteriores”.1
El mito, por lo tanto, se entiende aquí como una realidad completa
que construimos y nos construye, de manera similar a la realidad de los sue-
ños. Jung lo dijo en su momento y ahora la física lo llama desdoblamiento del
tiempo, como si la ciencia llegara muchas veces tarde a definir cuestiones que
ya sabemos o que la intuición nos indica. En esta imaginería se comprende
que los sueños no son simples proyecciones mentales a la manera de Freud,
1
Eliade, Mito y realidad. 2010. p. 90.

93
sino que dentro de nuestra vida humana hay momentos que transcurren
dentro del cuerpo y otros fuera de él. Ninguno es menos real que el otro. Es
en las realidades fuera del cuerpo donde nos topamos con muchas imágenes
mitológicas y simbólicas que pueden tener sincronías y similitudes pese a la
diferencia temporal o cultural.
Continúo entonces con una cita de un arqueólogo, Fernando Urbina
Rangel, a quien también nos vamos a encontrar más adelante, porque él notó
en su artículo sobre mitos y petroglifos amazónicos, que el estudio del arte
antiguo amazónico se inicia desde tiempos muy tempranos.
Cuando las oleadas sucesivas de pobladores toparon las
obras pintadas o talladas sobre las rocas por pueblos más
antiguos; en ocasiones rehicieron los glifos, o superpu-
sieron y emparejaron sus propias creaciones; como todo
conglomerado humano interpretaron lo que iban encon-
trando, dejando las opiniones consignadas en sus mitolo-
gías y en sus trazos.2

Aquí ya se rompe todo mi esquema mental, por suerte, pues yo me


estoy dedicando a estudiar lo prehispánico desde Mesoamérica y desde la zona
andina. Pero se sabe que las relaciones entre ambas regiones eran variadas y
ricas, por lo que descartar el territorio de la Amazonía sin más, tan solo en la
búsqueda de una mayor especificidad y rigurosidad académica, parece peli-
groso. Y más encima considerando, y está estudiado, cómo de verdad tenían
conexiones entre ellos desde tiempos muy antiguos. Yo pensaba antes que
las artes visuales me servían de anclaje. Porque, a diferencia de las literaturas
prehispánicas, no han sido intervenidas a través del tiempo en el caso mesoa-
mericano o andino. Pero aquí vemos cómo los petroglifos amazónicos sí han
sido intervenidos a través del tiempo, por diferentes manos. Así que, en este
sentido, se parecen mucho a la naturaleza de la literatura prehispánica. Se
ve en la cita anterior cómo para este arqueólogo el estudio de los mitos fue
fundamental al analizar su objeto de estudio.
Hay una cita de Hegel que utilizaré aquí.
El capullo desaparece al abrirse la flor, y podría decirse
que aquél es refutado por ésta; del mismo modo que el
fruto hace aparecer la flor como un falso ser allí de la

2
Rangel, Mitos y petroglifos en el río Caquetá, 1997, p. 24.

94
planta, mostrándose como la verdad de ésta en vez de
aquélla. Estas formas no sólo se distinguen entre sí, sino
que se eliminan las unas a las otras como incompatibles.
Pero, en su fluir, constituyen al mismo tiempo otros tan-
tos momentos de una unidad orgánica, en la que, lejos
de contradecirse, son todos igualmente necesarios, y esta
igual necesidad es cabalmente la que constituye la vida
del todo.3

Esto lo dice este filósofo alemán en su Fenomenología del espíritu que


es, además, un libro que trabaja todo el tiempo con imágenes y metáforas muy
en sintonía con la naturaleza de la mitología que estamos tratando aquí. Entre
esas imágenes está la de la semilla y la flor para explicar cómo ambas son una
misma cosa en diferentes momentos de su evolución y hay que considerarlas
en movimiento. Entramos a una realidad que comprende el cambio constante
de cuerpos. Esta es la misma idea que desarrolló Ovidio en sus Metamorfosis.
Allí él presenta un universo en donde hay plantas, animales, humanos, piedras,
y el espíritu deambula entre ellos, va cambiando de un cuerpo a otro en un
eterno fluir. Entonces dentro de esta concepción del cambio de cuerpos nos
vamos a ir moviendo para comprender a los animales mitológicos. Tomo una
imagen de Ovidio que es un momento en el que Febo, el dios del Sol, tiene una
actitud un poco soberbia y critica a Cupido, se burla de él diciendo que es un
niño malcriado y caprichoso que además dispara a donde sea sin apuntar bien.
Febo dice que él tiene una puntería mucho más precisa. Cupido lo escucha y
decide darle una lección, pronunciando las siguientes palabras.
Tu arco lo traspasa todo, Febo, pero el mío te traspasará a
ti; cuanto más vayan cediendo ante ti todos los animales,
tanto más superará mi gloria a la tuya”. Y hendiendo el
aire con el batir de sus alas y sin pérdida de tiempo, se
posó sobre la cima umbrosa del Parnaso; saca dos flechas
de su carcaj repleto, que tiene diversos fines: una ahuyen-
ta el amor, y otra hace que nazca.4

De esta manera Febo queda encadenado para siempre en el flechazo


de Cupido. Ya no hay marcha atrás. Él no sabe cómo el pequeño dios al que
antes despreció le ha dado una lección que jamás olvidará, donde un bien
preciado como el amor puede convertirse en el tormento más grande cuando
3
Hegel, Fenomenología del Espíritu, 1985. p. 8.
4
Ovidio, Metamorfosis, 2007, p. 168.

95
tratamos de poseer desesperadamente nuestro objeto del deseo. Resulta muy
interesante que el dios del Sol se vea en esta situación debido a su soberbia, y
no por un simple juego del pequeño dios alado o por un capricho como él antes
supuso que funcionaba. Su desmedido desprecio por el poder del otro, y una
sobrevaloración de sus propios poderes trazan el tormento que está apunto de
experimentar. Esta es una imagen que funciona muy bien para nuestra propia
producción intelectual, e iremos viendo porqué. Por ahora, ya se dijo, Febo
no lo sabe. Vive en el encanto de su propio engaño.

Todo se transforma
Detengámonos un momento aquí pues puede ser que surja una
incomodidad. ¿Por qué utilizar referentes tan europeos y tan canónicos para
acercarnos a un objeto de estudio que está en la selva amazónica, que es lati-
noamericano, que tiene sus propias características? Otro europeo, Hans-Georg
Gadamer en Verdad y método, dice al respecto que la distancia en el tiempo es
la única que posibilita verdaderamente la cuestión crítica de la hermenéuti-
ca, que debiera ser distinguir los prejuicios verdaderos quienes nos ayudan a
comprender, de los prejuicios falsos que son la causa de los malentendidos. El
proceso de comprensión “comienza allí donde algo nos interpela. Esta es la
condición hermenéutica suprema. Ahora sabemos cuál es su exigencia: poner
en suspenso por completo los propios prejuicios”.5
Gadamer es muy bienvenido aquí porque, como bien sabemos, en
su pensamiento hermenéutico él considera que la distancia en el tiempo que
nos aleja de nuestro objeto de estudio, que en este caso es mucha, no debiera
ser un impedimento sino todo lo contrario. Nos vamos acercando al objeto de
estudio por medio, también, de una imagen. Los círculos hermenéuticos. Y
en cada círculo vamos utilizando todas las herramientas que esa distancia del
tiempo nos va aportando. Entonces, utilizando todas esas herramientas que el
tiempo nos aporta podemos justamente enriquecer nuestra lectura y proponer
más cosas para acercarnos al pasado.
El mismo Miguel León Portilla, a quien le debemos los estudios más
exhaustivos hasta el momento de la literatura prehispánica, así como muchas
de las más completas compilaciones, también fue interpelado por esta imagen
que utiliza Gadamer o fue flechado por cupido. Fue cuando él estudiaba filo-
5
Gadamer, Verdad y médodo, 1977, p. 369.

96
sofía y estaba muy interesado en los presocráticos, y de pronto se dio cuenta
que en los poetas aztecas había una filosofía muy similar a la presocrática.
Así fue como comenzó a estudiar a la filosofía azteca y, justamente, los az-
tecas escribían filosofía en poesía. Era necesario, entonces, adentrarse en la
literatura, en el lenguaje poético, simbólico, mitológico y narrativo que esta
contiene dentro de su propia naturaleza. Entonces, de nuevo, no debiera ser
un impedimento tomar referencias culturales lejanas, en este caso, o ajenas si
es que las podemos poner a prueba y nos sirven.
El pensador argentino-mexicano, Enrique Dussel, en su “Europa,
modernidad y eurocentrismo” nos dice algo muy interesante y es que “La
Modernidad nace realmente en el 1492” con el supuesto descubrimiento de
América. Él no es el primero en notar esto pero realmente explica muy bien
una construcción implantado, un discurso que tienen los europeos y hemos
heredado de ellos que ya está instalado y es la idea de que Grecia es la cuna
de la civilización occidental. ¿Qué es eso?, si Grecia no era Occidente. Grecia
era Oriente. Grecia no es la cuna de la historia europea, he aquí una primera
construcción. De hecho Dussel llega aun más lejos al decir que el “invento
ideológico” que ordena cronológicamente a Grecia, Roma y Europa tiene
que ver con el modelo ario alemán de fines del siglo XVIII, construcción por
lo demás racista”.6
Lo Occidental, por lo tanto, verdaderamente ha sido Europa-Ro-
ma-Constantinopla. La Europa que hoy conocemos en este primer momento
es para los griegos la imagen de todos los pueblos del norte. Es decir unos inci-
vilizados, bárbaros, en su opinión, ya que en primer lugar no hablaban griego y
en segundo lugar no poseían todos los avances y conocimientos que la Grecia
antigua valoraba tanto. En verdad el desarrollo cultural y de pensamiento venía
de Asia, en África el muy desarrollado Egipto y luego el mundo musulmán.7
Así que para leer todas estas mitologías griegas deberíamos partir leyendo La
epopeya de Gilgamesh, estudiando a los egipcios y el resto de manifestaciones
artísticas de las culturas más antiguas provenientes de esa zona del mundo.
En mayor medida lo que hoy llamamos Medio Oriente.
Entonces vamos a ir acercándonos, ahora sí, a nuestro objeto de es-
tudio. Como decía desde tiempos muy antiguos hay relaciones entre el mundo
6
Dussel, Europa, modernidad y eurocentrismo, 2000, p. 1.
7
Ibidem, p. 4.

97
prehispánico mesoamericano y andino y el área amazónica. El mismo Fei
Gaspar de Carvajal, uno de los primeros expedicionistas del Amazonas, notó
cómo en Omagua, una región de la llamada selva baja, habían manifestaciones
artísticas curiosamente similares a las de los incas del Cuzco y él no se podía
explicar tal cosa. “Achou-se ali um machado de cobre como os que usam os
índios no Peru. Num galpão ou casa principal acharam-se dois ídolos grandes,
do tamanho de gigantes, tecidos com (fibra de) palmeira e tinham orelhões
como os incas de Cuzco”.8
Me detengo aquí porque hay, al menos, cuatro problemas que debié-
ramos tener muy en cuenta para ahora sí penetrar en la selva y encontrarnos
con los petroglifos. El primer problema es que en la Amazonía no tenemos,
hasta el momento al menos, algo así como un equivalente al Popol Vuh maya,
al Huehuetlatolli azteca, a Dioses y hombres de Huarochirí en el caso quechua,
que se pueden leer en el sentido de biblias de esas culturas o como textos que
compilan intencionalmente, en los primeros años de invasión europea, lo
que antes fue el arte de la palabra de esas culturas. No tenemos esto, un texto
antiguo que compile conscientemente la mitología antigua de la Amazonía.
Lo cual por un lado puede ser un problema porque de tenerlo nos entregaría
más herramientas de lectura, pero por otro lado nos da mucha libertad. En
los estudios prehispánicos a veces se cae demasiado en la tentación de encajar
todo dentro de estos relatos, en muchas ocasiones a la fuerza, y no es fácil
dejar a un lado las imaginerías de esos libros aun cuando el objeto mismo de
estudio lo exige. Entonces debemos hacer un esfuerzo mayor.
Por otro lado está el problema de la misma naturaleza, la naturaleza
de la selva, que se come constantemente a estos petroglifos y a las otras ma-
nifestaciones de artes visuales. Simplemente desaparecen. Lo mismo sucede
en el caso incaico y maya en otro sentido. Pero, por un lado, son estructuras
monumentales así que si uno se sube a una pirámide en la zona selvática de
Mesoamérica se pueden ver a lo lejos pequeños cerros y sabemos que debajo
hay pirámides, y por lo tanto dónde hay que excavar si es que hubiesen los
recursos o el interés estatal necesarios. En este caso como, por un lado, no hay
estructuras monumentales prehispánicas hasta ahora conocidas y, por otro
lado, la selva de verdad es incontenible, la naturaleza efervescente se ha ido
devorando a estas manifestaciones, las va ocultando y también duran menos
a través del tiempo.
8
Carvajal, Relação do rio Marañón, 1993, pp. 50-51.

98
Esto me lleva al tercer problema que es el fechado de las obras. No
podemos saber a ciencia cierta de qué época eran porque el gran recurso del
carbono catorce es muy útil para determinar un fechado tentativo de los pro-
ductos culturales más antiguos pero sólo se puede aplicar en materiales orgá-
nicos. Cuando uno va a una pirámide de México se sabe aproximadamente
de qué época es porque alrededor hay entierros, restos de rituales, cerámica,
esqueletos y es ahí donde se aplica el carbono catorce y en relación a eso más
o menos se deduce de qué época era la pirámide. Así que aquí no sabemos a
ciencia cierta de qué época estamos hablando, pues los materiales orgánicos
que pudieron rodear o acompañar a los petroglifos amazónicos ciertamente ya
desaparecieron hace mucho tiempo. Sabemos, eso sí, que estamos hablando
de producciones muy antiguas.
El cuarto problema sería la misma fauna amazónica porque todo el
tiempo se descubren especies nuevas, y la antigüedad no era una excepción.
Por lo tanto también hay un conflicto para detectar exactamente cuáles son
estos animales o qué combinación de cuerpos hay ahí. Sin embargo, dentro
del pensamiento en que nos estamos enmarcando aquí, sabemos que los ani-
males se transforman en mitológicos al entrar en el arte antiguo. Los cambios
de cuerpos suceden y otros comportamientos que no se manifiestan en la
naturaleza a nivel consciente.
Ana Pizarro en su libro Amazonía. El río tiene voces dice que mientras
nos vamos acercando a nuestro tiempo presente, todas las voces de la región
amazónica se pluralizan aún más. Para pensar los comienzos de estas hay que
llevar nuestra memoria a las primeras exploraciones occidentales que se reali-
zaron en el siglo XVI, las que si bien contienen información valiosa también
aparecen ahí tan sólo las “voces del poder” a las que ahora podemos acceder
porque algunas publicaciones y documentos han sobrevivido hasta el día de hoy.
El desarrollo del conocimiento científico aún no ha per-
mitido leer los signos de las sociedades hoy inexistentes.
Tal vez la arqueología en algún momento pueda construir
líneas o fragmentos de discurso a través de petroglifos, ce-
rámica u otros elementos que el tiempo va poniendo al
descubierto.9

Lo anterior es muy cierto. La arqueología es la disciplina que más ha


avanzado en el estudio de estos petroglifos y, aunque aquí yo estoy tratando de
9
Pizarro, Amazonía. El río tiene voces, 2012, p. 132.

99
proponer una lectura desde la literatura y el arte, me baso mucho y agradezco
las propuestas que han hecho estos arqueólogos. Es también dentro de estas
lecturas donde nos estamos internando ahora para llegar a mi concusión.
Urbina Rangel, en su estudio sobre mitos y petroglifos, dijo lo siguiente.
Dentro de la impresionante diversificación mitológica de
los pueblos amazónicos, se dan algunas líneas comunes.
La idea dominante (Reichel, 1968: 33 y ss.), expresada
de múltiples maneras, es la de concebir la realidad como
un complicado juego de relaciones en donde la energía
total se reparte entre los diferentes grupos de seres confor-
madores del mundo. El cosmos resulta un equilibrio de
fuerzas. El hombre debe ocupar su puesto: los animales y
las plantas el suyo. El intercambio energético es la clave
del equilibrio.10

Este arqueólogo llegó a tal conclusión con el simple registro y ob-


servación de los petroglifos y es algo que nos han estado explicando en el
Simpósio,11 de múltiples maneras, entre ellos las personas que vienen de las
culturas de la selva. Él además se vio obligado a utilizar la mitología para
estudiar los petroglifos, el mismo arqueólogo en cuestión lo admite de forma
textual, porque le era una herramienta de lectura muy útil. Encontró, de he-
cho, en sus estudios sobre los petroglifos de la selva colombiana una versión
muy fuerte sobre el vínculo humanidad- serpiente en un mito huitoto. Con lo
que bien llega a establecer sincronías con el Quetzalcóatl mesoamericano y
podría haber incluido así mismo al gran Amaru andino, a la pareja Caicai y
Trentren de los Mapuche o incluso yéndonos hasta tiempos más inmemoriales
a la serpiente sagrada de Gilgamesh.
Existen similitudes formales no sólo en los temas (hom-
bre, serpiente, rapaz, sapo, lagarto, mico, peces, aves, etc.)
sino en las relaciones entre temas (hombre-serpiente, pá-
jaro serpiente), en el tratamiento estilístico y en las técni-
cas de ejecución, entre los petroglifos de vastas regiones
amazónicas y extraamazónicas, lo cual supone una gran
antigüedad para los complejos de creencias allí plasma-
dos.12

10
Rangel, Mitos y petroglifos en el río Caquetá, 1997, p. 12.
11
Referência ao IX Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental –
“Línguas e literaturas indígenas”, realizado no campus da Universidade Federal do Acre, entre
os dias 9 a 13 de novembro de 2015 (NE).
12
Rangel, Mitos y petroglifos en el río Caquetá, 1997, p. 32.

100
Ya hemos visto cómo en la Amazonía, si bien se tienen documentos
antiguos partiendo del siglo XVI, estos pertenecen a discursos europeos. Las
compilaciones de relatos y poemas de la gente que allí habitaba se han reali-
zado más recientemente, por lo que hasta el momento no hay un traspaso de
la palabra antigua cercano a los momentos amazónicos precolombinos. Con-
tinúa Urbina Rangel diciendo que “Tampoco se puede establecer un vínculo
directo entre los pueblos que habitaron las regiones en que se dan estas obras
y los pueblos que las ejecutaron, toda vez que los actuales no realizan este
tipo de labor. Las vías de interpretación son, pues, tortuosas, indirectas”. Esto
como ya hemos dicho se puede leer como una complicación adicional, pero
también como el signo de más flexibilidad para la lectura. Por otro lado, basar
únicamente la interpretación de los petroglifos a las opiniones de los indígenas
actuales resulta de gran utilidad, pero no es totalmente inequívoco. Porque ya
hemos visto cómo “los seres humanos tienden a explicar en los términos de
su cultura particular todo lo que experimentan”.13
Hay otro problema en el estudio de estos petroglifos, uno práctico,
y es que existen artículos y estudios pero no tienen buenas reproducciones
visuales, así que uno como investigador debe imaginarlas incluso observando
la imagen. Este trabajo de registro hoy puede realizarse a nivel fotográfico y
es una tarea muy importante que aun está pendiente.
El peruano José Joaquín Narváez Luna hizo una muy completa
“Bibliografía arqueológica de la Amazonía peruana”, a modo de listado. Ahí
dice que la arqueología peruana necesita detenerse en algunas dificultades al
encontrarse con el trabajo de campo en la selva. En la relación de ella, por
ejemplo, con la zonas andina antigua. Él observa un típico ejemplo en el muy
citado Julio C. Tello, a quien se le conoce como el padre de la arqueología
peruana. Tello planteó que las culturas andinas provenían de, la por él descu-
bierta en 1919, cultura Chavín. “Pero, según Tello, Chavín habría tenido sus
orígenes más remotos en la Amazonía ya que, como afirmaba, las figuras de
monos, jaguares y serpientes tan difundidas en el arte Chavín son representa-
ciones de especies que sólo existen en la selva amazónica”. Así mismo muchos
cultivos vegetales como la yuca, el camote, el maní o la coca habrían tenido
su origen en la selva. El mayor problema que señala Narváez Luna respecto
a esta muy interesante teoría es que Julio C. Tello nunca demostró su teoría
13
Rangel, Mitos y petroglifos en el río Caquetá, 1997, p. 32.

101
con pruebas empíricas, ya que no realizó jamás algún trabajo de campo en el
área amazónica.14
Joaquín Narváez Luna encuentra que no es hasta que llegaron los
arqueólogos estadounidenses, Betty Meggers y Clifford Evans, que la arqueo-
logía amazónica y no sólo peruana sino en general dio un gran despegue.
Meggers y Evans realizaron excavaciones sistemáticas en la desembocadura
del Amazonas en el Brasil a partir de los cincuentas,15 mostrando cómo a
lo largo del tiempo ciertamente existió una relación cultural muy cercana y
desde épocas muy tempranas entre ambas regiones. Se pueden observar en
productos selváticos en la costa y la sierra, y viceversa. También en la cerámica
que varias veces contiene similares técnicas de elaboración en determinados
momentos. Sin embargo esto no determina que la cultura andina autóctona
provenga de forma única y directa de la Amazonía.16 Tal cosa parece hoy en
día demasiado reduccionista.
Fernando Urbina Rangel podría decir respecto a lo anterior que “no se
trata, por supuesto, de afirmar la dependencia de las culturas mesoamericanas
o andinas respecto de las amazónicas con la pretensión de derivar de esto el
orgullo de una antecedencia. Sería sucumbir al prejuicio de considerar que todo
depende del origen”.17 Sin embargo, responde Narváez Luna, la información
obtenida de las comunidades indígenas que tienen como antepasados a esos
hombres desconocidos que grabaron animales en las piedras, sí entregan suge-
rencias valiosas.18 Por algo las investigaciones arqueológicas constantemente
vuelven a ellas. Mi posición aquí es que utilicemos los recursos a nuestra
disposición de forma interdisciplinaria, siempre que nos ayuden a encontrar
más y ojalá mejores formas de comprensión. Pues “Todo se transforma, nada
perece”, como bien dijo Ovidio al final de sus Metamorfosis.
Elizabeth H. R. Von Hildebrand es una excepción del problema que
comenté anteriormente sobre la falta de registros visuales en los petroglifos
amazónicos. Ella hizo un registro visual muy detallado sobre los petroglifos
del río Caquetá entre La pedrera y Araracuara. Este registro es muy útil pero
aquí hay un problema típico de la arqueología, y por eso hay que hacer invita-
14
Luna, Bibliografía arqueológica de la Amazonía peruana, 1999. p. 360.
15
Ibidem, p. 356
16
Ibid., pp. 360-361.
17
Rangel, Mitos y petroglifos en el río Caquetá, 1997, p. 4.
18
Luna, Bibliografía arqueológica de la Amazonía peruana, 1999. p. 361.

102
ciones a más investigadores de otras disciplinas para que nos arriesguemos a
proponer lecturas. Pues es justamente lo que les falta a los arqueólogos, incluso
a muchos antropólogos e historiadores que, por temor a cometer errores al leer
lo prehispánico no se arriesgan a proponer lecturas. Ella parte exponiendo su
propia condición como individuo, similarmente a como yo misma debí hacerlo
en el comienzo de este artículo. Debido a reconocer sus propias limitaciones de
analizar las figuras según códigos etnocentristas, dice Hildebrand, así como la
incapacidad de acercarse a los símbolos de una cultura en completo diferente
a la suya para comprenderlos, se limitará en el estudio que aquí estoy citando
a situar y describir dichas figuras, absteniéndose sin embargo de la tentación
de interpretarlas. Pero esta investigadora parece contradecir sus propias pala-
bras, de la mejor manera, porque logra proponer una posible visión de lo que
dichos materiales visuales en su naturaleza profunda. En sus propias palabras,
encuentra lo siguiente.
Concluyo, sin embargo, que se trata de un arte figurativo
(no realista ni naturalista en nuestros términos culturales)
bastante evolucionado, que estaría transmitiendo imáge-
nes simbólicas quizá referentes a una cosmología com-
puesta de conceptos muy elaborados, fruto de una larga
tradición. Los grabados [dice ella] no se pueden asociar a
una escritura pero sí quizás a una picto-ideografía o mito-
grafía no-lineal.19

Pero ¿será esto cierto?, sobre todo si aquí proponemos movernos en


el área del mito, de la metáfora, de la poesía, y no de las estructuras en línea
recta, de los métodos que pueden ser “comprobados”? El Rongo Rongo por
ejemplo, la antigua escritura de Rapa Nui luego bautizada Isla de Pascua, fue
ignorada durante siglos y despreciada por la mirada occidental. Ahora se ad-
mite que ciertamente es una escritura, al parecer configurada peculiarmente,
con formas que podrían estar entre los ideogramas chinos y los jeroglíficos
egipcios, aunque a su lectura no se ha llegado porque los sacerdotes de la isla
que sabían leerla ya en el siglo XIX prefirieron morir torturados antes que
entregarle ese conocimiento a los curas europeos.
Entonces aquí voy llegando a mi conclusión y a mi propuesta de
lectura. Tomemos, por ejemplo, lo que dice Elizabeth H. R. Von Hildebrand
19
Hildebrand, Levantamiento de los petroglifos del río Caquetá entre La pedrera y Araracuara,
1975, p. 304.

103
sobre que estos grabados no se pueden asociar a una escritura pero pongámoslo
un poco en duda. ¿Se podría asociar, quizás, a una escritura en el sentido de
que una producción de palabra escrita pueda surgir de ella?
Diego Martínez Celis hizo una “Propuesta para un análisis icono-
gráfico de petroglifos”. Me parece inteligente partir por algo básico como lo
puede ser un análisis iconográfico en el sentido de una “descripción y tratado
descriptico o colección de imágenes”, como lo define el Diccionario de la Real
Academia Española, que es lo que han hecho estos arqueólogos en su mayoría.
Recordemos rápidamente que en términos de Panofsky el método iconográ-
fico, entendido como el estudio sistemático de las imágenes, tiene por objeto
interpretar el contenido temático y el significado de las obras de arte. Un primer
nivel de interpretación, la descripción pre-iconográfica, implica la identificación
de los motivos reconocidos a simple vista; en el segundo nivel, iconográfico, se
reconocen los temas o conceptos expresados, las formas como imágenes; y en
el tercer y último nivel, el iconológico, se encontraría el significado intrínseco
de la obra, su calidad como síntoma cultural de un momento histórico deter-
minado, representado en valores “simbólicos”.
Hay que decir que esto no nos salva de complejidades. En el arte
rupestre, por ejemplo, los análisis iconográficos apuntan principalmente a la
identificación de los objetos y escenas representadas sobre las rocas. “Este
ejercicio ha sido ampliamente debatido toda vez que esta identificación suele
ser simplemente una interpretación condicionada por el sistema de percepción
y los patrones culturales propios del investigador u observador contemporáneo,
con lo cual se hace una traducción que no necesariamente concuerda con los
términos de sus artífices originales”.20
Sin embargo, y sin dejar de considerar lo anterior, es sumamente
necesario arriesgarse a proponer lecturas que nos acerquen más a estas ma-
nifestaciones. Aunque sea en un ejercicio de ensayo y error. Partir de una
observación de las imágenes, de algo tan simple como acercarse y mirar. Esto
lo defendió Beatriz de la Fuente, la gran prehispanista mexicana quien fue la
primera en proponer una lectura a lo prehispánico exclusivamente desde el
arte, no desde la arqueología o la antropología o la historia que son las que más
se han hecho cargo de estas manifestaciones. Ella pensaba ¿cómo hacerlo?,
pues no sabemos prácticamente nada en el rigor de la ciencia cierta. Pues, de
nuevo, acercarse y mirar, con la ingenuidad de un niño, y ver qué nos dicen
20
Celis, Propuesta para un análisis iconográfico de petroglifos, 2008. p. 4.

104
estas imágenes. Entonces la tomo a ella para proponerles, acercarse y mirar,
hacer una descripción sobre lo que sucede ahí y entonces ir hilando estas des-
cripciones y ver lo que sucede.

Ninfa y árbol
En el caso de nuestro objeto, ese arte antiguo en forma de Dafne,
esta perspectiva del pensamiento es útil de recordar. Le agrega a la mirada
abarcadora de la hermenéutica gadameriana la consciencia de saberse por-
tador de un uso del lenguaje. Uno, por cierto, diferente al que se recurrió
para escribir con caracteres españoles palabras de idiomas antiguos. Uno que
tiene crecimiento propio, como árbol dejado a la buena del sol y el agua, tan
lejos del manipulado bonsái en que se convertiría este trabajo si tratamos de
defender un procedimiento. Somos portadores de un uso del lenguaje que a la
vez está conectado con otros, como un animal mitológico que muta a través
de las eras y a la vez se conserva a sí mismo. Febo, a quien hemos visto ser
flechado por Cupido, vio en su camino a la ninfa Dafne y cayó presa de amor
por ella. La persigue y la asedia, lo único que desea es consumar ese amor. En
este momento corre tras de Dafne por los matorrales, le grita a la ninfa que
se detenga porque puede lastimarse, que él no la persigue para atacarla sino
para amarla. Pero ella continúa presa del terror y entre más se esmera en huir
el ansia de amor de Febo es mayor. Se ha convertido en una bestia, poseído
por una fuerza que lo rebasa.21
En su conferencia “Linguas minorizadas da Amazônia”, José Ribamar
Bessa Freire dijo que las lenguas indígenas no son patrimonio de los indios, ni
amazónico, sino que es un patrimonio de la humanidad.22 Lo mismo, digo yo,
sucede con estas manifestaciones de éste arte antiguo. Aquí entonces vuelvo
a la imagen de Febo que sigue persiguiendo a Dafne, ya en este momento
está loco de amor por ella quien huye de él pues lo único que desea la ninfa
es ser virgen por siempre. El dios la está persiguiendo y le trata de explicar
que no quiere hacerle daño, que sólo desea amarla y poseerla. Pero ya, en su
carrera, se ha vuelto una bestia y ella huye despavorida. Se mete en la maleza,
las plantas están rajando su piel, y cuando él está apunto de atraparla ella le
ruega a su padre, el dios del río Peneo, que la ayude. Es en ese momento que
empieza su proceso de metamorfosis para transformarse en un árbol. Él logra
21
Ovidio, Metamorfosis, 2007, p. 169.
22
Freire, Linguas minorizadas da Amazônia, 2015.

105
atraparla pero sus manos ya no pueden tocar el cuerpo que antes amó. Su piel
se está cubriendo por una corteza, de su pelo salen ramas y ella trata de seguir
huyendo pero ya hay raíces que penetran la tierra y ya es demasiado tarde.
Febo ama y luego de ver a Dafne desea ardientemente
unirse a ella; espera lo que desea y sus oráculos le enga-
ñan. A la manera como arde la ligera paja, sacada ya la
espiga, o como arde un vallado por el fuego de una antor-
cha que un caminante por casualidad la ha acercado de-
masiado o la ha dejado allí al clarear el día, de ese modo
el dios se consume en las llamas, así se le abrasa todo su
corazón y alimenta con la espera de un amor imposible.23

Un mito contiene dentro de sí algo que ha sobrevivido tiempos incal-


culables, y la Dafne y el Febo de Ovidio nos pueden señalar direcciones para
que esta lectura sea más rica y amplia. Dafne y Febo como la eterna carrera
de perseguir una lectura completa de los animales mitológicos en arte antiguo
amazónico. No sabemos si existe, pero si así fuera no está a nuestro completo
alcance, y al parecer la unión entre ambos no sucederá. Jamás harán el amor.
Queda rendir homenaje a ese árbol que se dibuja mientras nos acercamos a
ella con el pensamiento, tratando de comprenderla sin acapararla. Tarea que
mantiene fresca la flecha con la que Cupido atravesó al inclemente y antes
indestructible dios sol.
Gerson Albuquerque dijo que hay una “intensa y profunda narrativa
que se materializa de manera gráfica”.24 Podemos pensar a la narrativa mate-
rializándose en visualidad, entonces, ¿por qué no ensayar también el ejercicio
contrario? Practicar, desde la visualidad, un relato que surja de ahí. Una na-
rrativa poética, como la misma naturaleza de los mitos. Quizás culturalmente
tenemos un excesivo respeto por la palabra, en contraste con las imágenes
visuales, incluso por la oral, qué decir por la palabra escrita.
Tomemos esta imagen del árbol para volver a los círculos hermenéuti-
cos de Gadamer y a la imagen de la semilla y el árbol en Hegel, e imaginemos
unos círculos concéntricos que nos van acercando a nuestro objeto de estudio.
Propongo aquí, y por supuesto no es la única forma sino que podemos poner
a prueba diferentes figuras, la imagen del espiral para tomar justamente lo que
se ha estudiado de Mesoamérica y la zona andina e ir incorporándolo dentro
23
Ovidio, Metamorfosis, 2007, p. 169.
24
Albuquerque, Presentación, 2015.

106
de estas lecturas en el área amazónica tomando los relatos de las personas que
viven en la selva, las mitologías universales, el estudio del comportamiento
animal y toda aquella disciplina que se quiera aportar. Ir incorporando cada
instancia en las lecturas de los petroglifos y uniendo todo esto en un relato de
relatos. Un relato que no tiene un principio ni un final claro, sino que está en
permanente evolución y que se puede abrir constantemente también. Con esta
imagen del espiral, por cierto, es como comprendieron los antiguos el tiempo.
Es bastante transversal. Los aztecas, por ejemplo, relataron premoniciones a
la llegada de la invasión española después de que esta sucediera. Lo cual no
era ninguna trampa, se podía comprender perfectamente porque el tiempo
para ellos es algo circular. Pero no un círculo que se cierra en sí mismo sino
que funciona a manera de espiral y nunca deja de girar, y los eventos allí se
repiten pero con ligeras modificaciones.
Es esta imagen del espiral donde llegamos al fin de nuestro recorrido.
Por cierto dicha figura también existe si imaginariamente se corta un árbol
para ver los círculos concéntricos que él, a medida que crece, va generando.
Es una metodología dialéctica hablando en términos teóricos y es la única
manera en la que se puede hacer un estudio de este tipo. En movimiento
permanente. El dios del Sol no puede poseer a la ninfa Dafne pero sí puede
observarla, adorarla y rendirle homenaje. Esto es lo mismo que sucede con
nuestros objetos de estudio. No podemos poseerlos y detenerlos en el tiempo
porque en el momento en que los atrapamos ya son otra cosa. Están en cons-
tante transformación, como los animales mitológicos.

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107
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108
Identidades em trânsito e hibridismo
cultural em Eloy Añez Marañón
Francemilda Lopes do Nascimento

Introdução
O Departamento de Pando tem uma extensão de cerca de 63.827
km , sendo a região mais tropical da Bolívia. A cidade de Cobija, capital desse
2

Departamento, está localizada na parte norte do território boliviano, apresen-


tando uma população de aproximadamente 28.000 habitantes. O crescimento
da população deu-se, especialmente, pela migração de grupos vindos do interior
da Bolívia e de outras partes do mundo que buscaram na região um lugar para
seu desenvolvimento e permitiram que a cidade se mantivesse firme até hoje,
após inúmeras crises econômicas vivenciadas na região. Segundo Limpias
Ortiz, Cobija é a mais jovem e menos povoada cidade boliviana e, ao lado das
cidades brasileiras de Brasiléia e Epitaciolândia, com as quais faz fronteira, está
assentada às margens do rio Acre: “las tres comparten su destino apartadas
del mundo, en pleno corazón del continente sudamericano”.1
Na área central de Cobija, está encravada a Igreja Nuestra Señora
del Pilar, que representa uma das mais conhecidas obras da arquitetura dessa
cidade boliviana, que é situada em uma área geográfica afastada do restante
do território nacional daquele país. Para muitos historiadores da cidade, essa
1
Limpias Ortiz, Arquitectura y urbanismo en la Amazonía boliviana, 2001.

109
localização fez com que fosse adotada uma tipologia arquitetônica mais próxima
de países de outras regiões do mundo. Nessa direção, dentre os monumentos
que representam a história de Cobija, essa igreja pode ser considerada como
a mais conhecida por sua arquitetura e posição estratégica na parte central da
cidade, constituindo-se em um dos mais reproduzidos cartões postais do lugar.
Formulando uma análise tipológica globalizadora que integra o
conceito de “tipologia arquitetônica” à interpretação morfológica, funcional
e tecnológica das edificações urbanas, Limpias Ortiz reconhece sete tipologias
arquitetônicas historicamente relevantes na cidade de Cobija. A Igreja Nuestra
Señora del Pilar se situa na tipologia 5 “Volúmen con elevación ecléctica”.
Conforme o autor, essa tipología, exclusivamente pública, também influenciou
obras residenciais do pasado, consistindo em “volúmenes convencionales de
adobe en madera o adobe y cubierta de calamina, adornados con elevaciones
de adobe con decoración ecléctica”, restando atualmente apenas a Igreja
Nuestra Señora del Pilar e o Cuartel Militar del Regimiento “Riosinho”, como
exemplos dessa tipologia arquitetônica.
Inaugurado en 1930, el templo principal de Cobija fue
ampliado en 1977. La solución original contemplaba una
nave salón con espadaña de adobe adornada con motivos
neogóticos. La ampliación convirtió la nave original en
transepto, mientras que la nueva nave se aproximaba a
una esquina de la plaza principal. Esta ampliación repro-
dujo fielmente la espadaña original, detrás de una plazue-
la a modo de atrio. El volumen está dominado por galerí-
as exteriores de columnas de maderas esbeltas y cubierta
de chapa galvanizada.2

Também analisando a historicidade da cidade e de sua arquitetura,


Velasco afirma que a construção da Igreja “Nuestra Señora del Pilar” data de
1930, tendo sido ampliada em 1977, sendo que sua construção se deu a partir
da doação dos fieis e autoridades da Delegación del Territorio de Colonias del
Noroeste da época. Em 2000, a prefeitura municipal retirou as ruas principais
da Praça Germán Busch e as converteu em passeio o que possibilita uma loca-
lização privilegiada à igreja. Ainda de acordo com Velasco, a Igreja de Nuestra
Señora del Pilar apresenta em seu interior um conjunto de obras artísticas, em
especial, os quadros e murais desenhados pelo pintor autodidata nascido em
2
Limpias Ortiz, Arquitectura y urbanismo en la Amazonía boliviana, 2001.

110
Pando, Eloy Añez Marañón, em uma produção artística inspirada em motivos
religiosos com elementos pertencentes ao contexto social e econômico dessa
fronteira amazônica, tendo sido solicitadas por Don Casto Burgoa.3
Na apresentação da obra Patrimonio histórico y cultural de Cobija, Ve-
lasco indica que “el lector encontrará también en esta modesta obra algunas
menciones rápidas y muestras de la pintura cobijeña, un tema casi descono-
cido en nuestra ciudad, aunque vemos sin advertir sus muestras en edificios y
lugares que visitamos continuamente”.4
Pouco conhecemos sobre as manifestações e produções artístico-
culturais desenvolvidas nessa região boliviana, o que demonstra que viver
na fronteira não significa compartilhar de todos os aspectos sócio-culturais
da mesma. Porém, ao tratarmos de manifestações e movimentos artísticos
verificamos que o continente americano sempre recebeu com atraso essas
tendências e movimentos, o que não significa dizer que tais produções não
existam, ou existiram antes mesmo da chegada dos colonizadores. Ou seja,
sempre se produziu conhecimento, imagens, símbolos e modos de significa-
ção no continente americano, que por séculos foram reprimidos e, por vezes,
invisibilizados. Conforme Quijano:
De la misma manera, no obstante que el colonialismo po-
lítico fue eliminado, la relación entre la cultura europea,
llamada también “occidental”, y las otras, sigue siendo
una relación de dominación colonial. No se trata sola-
mente de una subordinación de las otras culturas respecto
de la europea, en una relación exterior. Se trata de una
colonización de las otras culturas, aunque sin duda en di-
ferente intensidad y profundidad según los casos. Consis-
te, en primer término, en una colonización del imaginario
de los dominados. Es decir, actúa en la interioridad de ese
imaginario. En una medida, es parte de él.5

Mesmo com a “emancipação política”, observa-se que existe a ne-


cessidade de uma emancipação do sujeito, pois a repressão e controle social
e cultural sempre se manteve presente no continente, forjando um imaginário
de que nada pode ser produzido fora dessas relações de poder. O que necessi-
taria de uma ruptura dos padrões lógicos pré-estabelecidos e impostos. Uma
3
Velasco, Patrimonio histórico y cultural de Cobija, 2004, pp. 125-126.
4
Ibidem, p. 14.
5
Quijano, Colonialiad y modernidad/racionalidad, 1992, p.12.

111
tentativa de ruptura em relação às artes e a literatura pode ser vista nos movi-
mentos de vanguarda que antecipam o que é denominado pela historiografia
de “modernismo”.
Conforme Margarita Vila, as vanguardas chegaram com certo atraso
na Bolívia se comparado com o que ocorreu nos casos do Brasil e Argentina,
por exemplo. Para ela, tais movimentos artísticos se manifestaram de forma
lenta e irregular, considerando ainda que a recepção das vanguardas nesses
países se daria, especialmente, por questões de estratégia geográfica e marítima,
tendo em vista que países da América latina como a Bolívia estariam mais
“cerrados”, dificultando a comunicação e deslocamentos. Não por acaso, é
possível observar que, ao contrário de outros países, o único pintor boliviano
que esteve na Europa nos anos 1920 foi Cecílio Guzmán de Rojas. Em relação
às artes plásticas, Vila ressalta que a temática em voga nessa área artística era
sempre a natureza e, mais especialmente, o indígena.
Margarita Vila, citando Querejazu, declara que “el indigenismo se
convertió en el arte de la alta sociedad paceña, que se olvidó como el propio
Guzmán “del problema social y económico escondido detrás de ello”.6 O
problema é que a temática e questão indígenas eram concebidas ainda de
modo ingênuo, idealizado, superficial e caricaturesco. Mesmo superando tal
visão, alguns artistas seguiam influenciados pelos cânones europeus. Existia
também por parte de muitos artistas a crítica àqueles que servilmente copiavam
os “estilos modernos”. Segundo Vila, após esse período de crítica aos “ismos”
propiciados, principalmente, por Arturo Borda “se manifestarían con mayor
claridad en el arte boliviano a través de artistas nacidos al amparo del espíritu
revolucionario nacionalista y de la exposición de pintores abstractos que tuvo
lugar en 1954”.7
Conforme Vila, artistas como María Luisa Pacheco e outros ma-
nifestaram produções vagamente cubistas mais voltadas para Cézanne, que
Picasso. Ainda pode ser observada na área das artes plásticas uma orientação
de temática popular e, um pouco menos cultivada, a chamada Arte Cinético e
o Op Art. A autora declara que desde os anos 50, vários artistas do “Grupo
Independiente”, do Institute of Contemporary Arts de Londres, começaram
a se interessar pela natureza da cultura popular urbana, surgindo o estilo
6
Vila, La influencia de las vanguardias en el arte boliviano del siglo XX, 1998.
7
Idem.

112
chamado de “Pop Art”, cultivado na Bolívia, mas que assumiu uma conside-
rada influência em obras realizadas nos anos 70 e 80 por Sol Mateo, Roberto
Valcárcel, Gastón Ugalde y Efraín Ortuño.
Como podemos observar por esse breve panorama de manifestações e
movimentos artísticos que influenciaram a área das artes plásticas na Bolívia,
desconhecemos toda essa história de construções e desconstruções no campo
pictórico. De modo geral, podemos considerar que uma das manifestações
artísticas de vanguarda que mais influenciou os artistas latinoamericanos que
se “interessavam pela modernidade como estilo” foi o cubismo.8 Um exemplo
dessa influência cubista se reflete nas obras do artista pandino Eloy Añez Ma-
rañón. Esse reconhecido pintor boliviano nasceu em 1966, na cidade de Puerto
Rico, Pando, Bolívia. Autodidata de formação, também atua no jornalismo
dirigindo o periódico “Expresión Amazónica”, que circula na cidade de Cobija.
Marañón realizou diversas exposições individuais e coletivas em diferentes
cidades bolivianas, em Rio Branco-Acre, e em algumas cidades espanholas,
especialmente, em Barcelona, onde reside desde 2002.
Em trânsitos geográficos, identitários e culturais, em suas produções
artísticas o pintor procura transmitir sua trajetória, memória, identidade e
cultura. Suas obras transcendem fronteiras, tratando assuntos intimamente
relacionados à realidade boliviana, com uma concepção artística que se mescla
à materialização de historia e memória, constituintes de lutas e resistências. Os
deslocamentos que se configuram a partir da alteridade, mas também da “mes-
midade”, da diferença e da semelhança, que transita entre diferentes espaços.
Pero lo que más me impresiona de Eloy es su perseveran-
cia, tesón y empeño en perfeccionar su arte y transmitir
a sus nuevos paisanos, los catalanes, la vida hecha color,
de su natural patria primera. Es por ello que lo veo como
un ejemplo y una motivación para todos los demás inmi-
grantes, pues sin dejar de ser lo que es y de donde es, se ha
integrado en Cataluña hasta llegar a aprender su lengua y
sentir sus colores.9

Suas obras, de cunho cubista, evidenciam como característica desse


movimento as formas geométricas, disformes, irregulares, com cores fortes
8
Ades, Arte na América Latina, A Era Moderna, 1997 (Tradução nossa).
9
Depoimento de José Antonio Martínez Díez, disponível em: www.bolivianet.com/arte/
eloyanez

113
que remetem, especialmente, a vivacidade e colorido da floresta, que passa
a ser uma temática recorrente e de interesse do artista, tratando do universo
amazônico do período do ciclo da borracha, representado através do seringal,
da seringueira, do seringueiro, da extração do látex e coleta da castanha, dos
animais da floresta, etc., ou seja, elementos identitários de uma memória e
história amazônidas. Conforme comenta o próprio pintor: “me inspiro en la
naturaleza salvaje, el esfuerzo, el coraje, el sacrificio y las esperanzas de los
hombres y mujeres de esa bendita tierra mía (Pando)”. E, ainda, “Mis obras
de caracter amazónico, donde el tema principal es la extracción y producción
tradicional del látex de la siringa […] producto de la que mi pueblo Pando fue
produtor y que agora se reduzir a producción de sobrevivencia por parte de
los siringueros (trabajadores del caucho)”.10
Frente a essas considerações, passamos a descrever tais obras pelas
palavras do próprio pintor, a partir de uma entrevista que nos foi concedida.

Descrição do quadro “Cristo Siringuero”

Fonte: http://www.bolivianet.com/arte/eloyanez/index.html

El cuadro, un acrílico sobre tela, lo pinté en 1987, en Co-


bija (Departamento de Pando-Bolivia), a propuesta del
entonces párroco de la Iglesia Nuestra Señora del Pilar,
donde además tengo pintado dos murales, El Nacimiento
Siringuero y La Resurrección Siringuera.
10
Fonte: blog do pintor “Arte Pan”, disponível em: http://artepandinoartepan.blogspot.com.
br.

114
El Pa. José Antonio Martínez (España) con quien había
hecho amistad, era practicante de la Teología de la Libe-
ración, y como sabía que pintaba, un día me llamó y me
hizo pasar al patio de la Iglesia donde tenía puesto sobre
una mesa grande, una tela preparada y latas de pintura
acrílica y me dijo que “pintara lo que quisiera” que esa
tela era para que pinte un cuadro. Yo decidí pintar una
crucifixión, pero no una crucifixión clásica, ni un Cristo
como lo describen y pintaron los grandes maestros de la
pintura.

Mi Cristo sería un siringuero (trabajador del caucho), por-


que yo quería “humanizar” y “regionalizar” la figura de
Jesucristo.

No estaría crucificado en el madero, sino en un árbol de


siringa (caucho), en vez de clavos, manos atadas, y en el
cartel decidí cambiar el INRI por un mensaje más social.

El Gólgota sería una parte de la selva ya deforestada, con


algunos árboles fantasmagóricos.

Me basé en un cuadro que pinté unos años antes en La


Paz mientras viví en esa ciudad, “El Cristo del Siringal”
(lo vendí al Sindicato de Trabajadores Siringueros del
Acre el año 1988), que a su vez me había inspirado en la
obra de Dalí “Cristo de San Juan de la Cruz”.

Descripción

El rostro de Cristo siringuero no es un rostro sufrido, sino,


un rostro sonriente, vencedor más que vencido, porque yo
consideraba, y sigo considerando, que los campesinos de
mi tierra y de esa parte de la amazonia, siguen de pié, a
pesar de la situación de injusticia económico-social a la
que fueron sometidos, ayer por los patrones y el Estado,
hoy, además, por la economía de mercado y la globaliza-
ción.

En su cuerpo, en vez de la tradicional herida de lanza san-


grante, pinté el corte del rayado del árbol de siringa.

El cuerpo de mi Cristo hasta la cintura está pintado como


un cuerpo normal, pero de la cintura para abajo, pinté
las piernas y los pies “deformes”, porque la realidad e

115
historia de Pando eran deformadas y tergiversadas por el
desconocimiento por parte del resto de Bolivia. Mi tierra
era apenas nombrada por los medios de comunicación o
los libros de textos!

Una tichela recibe la sangre del Cristo Siringuero y en el


suelo una poronga abandonada, como estaba mi pueblo
entonces, por parte de los bolivianos y sus gobernantes.

Un cielo crepuscular de fondo, con árboles secos en un


campo por la quema de la selva y la tala indiscriminada y
furtiva de madera que sufría entonces y sufre la amazonia
aún hoy.

Finalmente, el cartel, en vez del INRI coloqué el mensaje


“Cristo Siringuero, crucificado por pretender organizar
la comunidad donde trabajaba y vivía”, que tuvo mucha
crítica y escandalizó a los más conservadores, principal-
mente a las autoridades del gobierno departamental de
entonces, que llamaron la atención al Pa. José Antonio
por haber colgado el cuadro detrás del pulpito donde re-
alizaba las homilías dominicales, instándoles a que lo re-
tirase.11

O quadro não foi retirado. E de igual forma, os dois murais pintados


na Igreja de Nuestra Señora del Pilar apresentam motivos seringueiros em que
vemos um Cristo (também seringueiro) ressuscitado, mostrando as marcas em
suas mãos e pés, e, ao seu redor, a representação da vida no seringal, contem-
plada e abençoada por este Cristo. Já no outro mural, na representação do
nascimento de Cristo temos os reis magos, ambientados como seringueiros
trazendo em oferta, a goma.

11
Eloy Añez Marañón, entrevista realizada em 2 de maio de 2016.

116
Fonte: http://www.bolivianet.com/arte/eloyanez/index.html

Na obra de Eloy Añez Marañón surgem murais com tipos religiosos


a partir dos quais se projeta um hibridismo que rompe com a perspectiva do
discurso tradicional religioso. Observamos uma construção artística que as-
sume uma forma de olhar o contexto e a realidade amazônica, apresentando
um “fundo de interpretação visual”, que nos permite individualizar de forma
interpretativa as unidades constitutivas do objeto manipulado pelo artista. O
que se observa é que o trânsito e transculturação das representações identitárias
manifestadas através da pintura, que dialoga ao mesmo tempo com o velho
e o novo, o encontro e o desencontro de concepções artísticas europeias com
conteúdo amazônico, num entrecruzamento transdisciplinar.
Ao tratar do conceito de hibridismo, Ramos se refere à pluralidade
dos processos criativos, temas e práticas a que assistimos ao longo das últimas
décadas, às quais considera sintomáticas da dilatação do campo pictórico.12
Tais processos não podem ser tomados apenas como manifestações ou criações
originais, mas também não deixam de ser, na medida em que se mesclam, se
incorporam e se ressignificam possibilitando o novo. Ainda que alicerçado em
bases “antigas” reconfiguram-se em uma linguagem própria, singular e plural

12
Ramos, Hibridismos – sintomas de expansão na pintura contemporânea, 2011, p. 06.

117
numa teia de ressignificações por meio da sensibilidade e tenacidade do artis-
ta. Como sugere Canclini “entendo por hibridação processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se
combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.13 Essa percepção
pode ser surpreendida quando analisamos as características e objetivos das
obras desse artista cobijeño, que pretende “valorizar ou re-valorizar” seu lugar
de pertença, na sua condição de sujeito “transculturalizado”.
Na construção artística de Eloy Marañón, percebemos, uma obra
preocupada não apenas com o “belo”, mas em revelar um modo de ser e ver o
mundo. Nas palavras de Rita de Cassia Demarchi, a arte não pode ser apenas
um conteúdo, mas uma “ferramenta” que possibilite aproximar e valorizar os
indivíduos e grupos sociais. Uma ferramenta social que promova as trocas de
saberes, as demandas e necessidades, as representações da realidade. Segundo
Peter Burke, existe uma tendência da contemporaneidade à mistura, que re-
sulta de intercâmbios conscientes e inconscientes em diferentes aspectos, que
envolve o espaço imaginário e a cultura.14 Para esse autor, as trocas culturais
proporcionam enriquecimento e conhecimento, mas, às vezes ou quase sempre,
também nos deparamos com a perda (ou esquecimento) “de tradições regionais
e de raízes locais” em detrimento de uma maior valoração do outro, fazendo
com que de algum modo percamos um pouco das nossas referências. Não que
uma permaneça mais do que a outra: elas acabam se transformando em algo
novo, em uma junção do local com o global.15
Desse modo, podemos considerar que as trocas culturais em diferentes
campos, proporcionam algo novo à mistura, mas que não deixa de ser também
singular e, ao mesmo tempo plural. Assim, todas as experiências (boas ou
ruins), todos os processos que vivemos ao longo da historia contribuem para
a nossa constituição enquanto sujeitos sociais, produtores de significações e
ressignificações a partir das linguagens.
Nas palavras de Margarita Vila,
el problema del artista actual cuando el Posmodernismo
legitima cualquier revisión o revitalización del arte del pa-
sado, así como todo tipo de manifestaciones “artísticas”

13
Canclini, Culturas híbridas, 2003, p. 19.
14
Burke, Hibridismo cultural, 2003, p. 14.
15
Ibidem, p. 18.

118
en un mundo en el que “todo es igual” y “todo vale”, no
es pues, el de ser pionero en una corriente artística, sino
hacer un arte, en verdad, auténtico. Ser auténtico es ser
uno mismo y no lo que los otros dicen que hay que ser, o
se vende, o está de moda; es ser capaz de plasmar, en una
obra, lo que de verdad uno ve, oye, teme, siente o sueña.16

Nessa direção, podemos considerar que ocorre na produção artística


de Eloy Añez Marañón uma valorização do sujeito pandino, que, notada-
mente, se revela na construção discursiva plasmada pela memória individual
e coletiva do autor em suas manifestações plásticas. Não que se trate de uma
construção ontológica, pois, somos sujeitos sociais constituídos de diferentes
outros, mas, de uma perspectiva social e cultural que revela uma relação entre o
indivíduo e algo, entre o indivíduo e outros saberes, entre o indivíduo e a vida.
Surge, em sua produção, a manifestação de diferentes orientações artísticas e
culturais que se mesclam às relações individuais e coletivas do contexto em
que o artista se insere, permitindo produzir e intercambiar na obra artística
sua cultura e sociedade.

Referências
ADES, Dawn. Arte na América Latina, a Era Moderna. São Paulo, Cosac e Naif,
1997. Disponível em: https://goo.gl/UTD4mT.
BURKE,Peter. Hibridismo cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopol-
do (RS): Editora Unisinos, 2003.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas - estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo:
Edusp, 2003.
DEMARCHI, Rita de Cássia. Arte como conhecimento, patrimônio e identidade
cultural. Arte despertar. Disponível em: https://goo.gl/7dFQDH.
Eloy Añez Marañon. Diccionario Cultural Boliviano. Disponível em: https://goo.
gl/C64zIR.
Eloy Añez Marañon e a arte da seringa. Disponível em: https://goo.gl/vm51zA.
LIMPIAS ORTIZ, Victor Hugo. Arquitectura y urbanismo en la Amazonía boli-
viana. Arquitextos. 019, 02 ano 02, dezembro de 2001. Disponível em: https://goo.
gl/gDrSDE.
QUIJANO, Aníbal. Colonialiad y modernidad/racionalidad. Perú Indig. 13(29):
11-20, 1992.
RAMOS, Rosa Coelho. Hibridismos – sintomas de expansão na pintura contem-
porânea. Mestrado em Pintura. Universidade de Lisboa. Faculdade de Belas-Artes,
16
Vila, La influencia de las vanguardias en el arte boliviano del siglo XX, 1998.

119
2011.
VELASCO, Carlos Saavedra Pérez. Patrimonio histórico y cultural de Cobija. 
Prefectura Del Departamento de Pando – Unidad de Turismo. Cobija: Franz 
Tamayo, 2004. 
VILA. Margarita. La influencia de las vanguardias en el arte boliviano del siglo
XX. Revista Ciencia y Cultura, n. 4, La Paz, 1998. Disponível em: https://goo.gl/
oYMa6f.

120
A cidade de Cobija e os lugares de
memória da Revolução Acreana/
Guerra do Acre
Francisco Bento da Silva

A memória coletiva é não somente


uma conquista, é também um
instrumento e um objeto de poder.
(Jacques Le Goff)
Neste texto procuramos fazer uma abordagem sobre alguns dos atuais
lugares de memória presentes no Departamento de Pando, notadamente na
cidade boliviana de Cobija, que remetem a um conjunto de eventos ocorridos
em fins do século XIX e anos iniciais do século posterior. Esses acontecimentos
são marcados por conflitos armados, disputas diplomáticas, interesses econô-
micos e territoriais numa zona de contato amazônica envolvendo a supracitada
região boliviana de fronteira e parte do atual território do estado do Acre,
incorporado ao Brasil, em 1903, por força do Tratado de Petrópolis, celebrado
entre o Brasil e a Bolívia.
O interesse em abordar esta temática se deu ao observar que a cidade
de Cobija, localizada numa zona de fronteira com duas cidades brasileiras
(Brasiléia e Epitaciolândia), separadas apenas pelo Rio Acre, carrega ainda
hoje fortes referenciais aos conflitos ocorridos há mais de um século. São mo-
numentos cívicos, avenidas e ruas, empresas de transportes públicos, estátuas e

121
diversos topônimos que lembram da chamada “Guerra do Acre” (termo usado
amiúde pelos bolivianos) ou “Revolução acreana” (termo de uso corrente no
Brasil). Para a presente análise, selecionamos algumas imagens fotográficas
contemporâneas desses espaços/objetos tornados semióforos. Além de um
preâmbulo que remete a algumas questões de contexto do referido conflito e
da cidade boliviana e suas múltiplas narrativas, iremos centrar a discussão em
torno dos aspectos de parte dessa memória coletiva e individual e algumas das
versões historiográficas produzidas nos dois países, coevas aos acontecimen-
tos do passado e atuais. Para tanto, dialogamos com autores como Benedict
Anderson, Andreas Huyssen, Pierre Nora e Michel de Certeau, de onde ex-
traímos suportes teóricos e conceituais para abordar questões como memória,
monumento, representação e a invenção de comunidades imaginadas.

À guisa de contexto
Guerra ou Revolução? De quem? Na expressão de uso mais comum
na Bolívia, Guerra do Acre, temos uma preposição que remete ao sentido ativo.
O Acre fez a Guerra. Ou melhor, os brasileiros do Acre fizeram a guerra. Ini-
ciaram o conflito. São os agressores. Semelhante ao termo Guerra do Paraguai,
pespegado na historiografia brasileira como herança do discurso político do
Segundo Reinado. As vítimas são claras em tais narrativas memorialísticas e
historiográficas: no primeiro caso, a Bolívia, a quem as terras acreanas per-
tenciam por direito e reconhecimento diplomático até 1903. No segundo, o
Brasil: aviltado pelo indigitado tirano Solano Lopez, que invadiu o solo pátrio
do país vizinho.
Por outro lado, quando os brasileiros/acreanos usam a expressão
Revolução Acreana, ela vem carregada também de sentidos variados. Um deles
remete ao fato de se sentirem explorados, humilhados e abandonados. Seria a
revolução contra a dominação opressora e injusta de outra nação. Tal discurso
apaga as diferenças entre os “acreanos revolucionários”, como se todos com-
partilhassem dos mesmos propósitos e estivessem na mesma situação social e
econômica naqueles conflitos iniciados já em fins do século XIX, fossem eles
seringueiros, seringalistas, comerciantes, profissionais liberais, trabalhadores
diversos, homens e mulheres (indígenas ou “brancos”).
Traz a aura da luta por libertação de uma “comunidade imaginada”
que se une para buscar sua autonomia e “inventar e reinventar” sua identi-

122
dade coletiva a partir do conflito com o outro. Sem querer adentrar em uma
discussão mais profunda, o uso clássico do termo “revolução” geralmente
remete às mudanças estruturais em uma determinada sociedade a partir do
momento em que um grupo de pessoas chega ao poder quebrando o status
quo até então vigente.
Comumente mudam-se ou reelaboram-se a forma de governo (Monar-
quia/República), sistema de governo (presidencialismo e parlamentarismo); a
economia (planificada e livre); a ideologia (socialista/comunista/capitalista),
ditadura ou democracia, entre outros aspectos complexos, combinados ou
isolados. O marco referencial no Ocidente é a Revolução Francesa de vertente
jacobina, os movimentos socialistas do século XIX e XX, bem como os movi-
mentos de libertação colonial no século XX.1 No caso do Acre, a “revolução”
ficou apenas nos laivos libertários da “comunidade imaginada” que se dizia
oprimida pelo estrangeiro. Nada para além disso, passado o furor dos conflitos
bélicos e disputas pelo domínio territorial. Após isso, vieram e ainda estão
presentes as “batalhas da memória”.
Discutir aspectos relacionados aos “usos e abusos” dessas memórias
históricas nos remetem ao enfrentamento analítico dos monumentos arquite-
tônicos, das datas cívicas e suas comemorações, dos discursos políticos, das
produções jornalísticas (textos escritos e imagens), obras memorialísticas e
aquelas de tom mais acadêmico. O professor de literatura comparada Andreas
Huyssen assinala, em sua obra Seduzidos pela memória, que são muito amplos
os “usos” políticos a que a memória pode ser submetida. Diz ele que “o real
pode ser mitoligizado tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de
realidade”.2 Assim, teríamos mais memórias imaginadas do que memórias
vividas. As primeiras seriam mais facilmente esquecidas que as últimas, defen-
dem alguns analistas. Mas cabe apontar que toda memória vivida, logo passa
a ser imaginada por aqueles que a viveram, num complexo jogo de escolhas,
seletividades e esquecimentos. Já o historiador Pierre Nora,3 vai dizer que a
mundialização, midiatização, massificação e criação dos estados nacionais
conduziu uma infinidade de sociedades do “sono etnológico” para a histori-
cidade pela violência colonial. Seriam, para ele, sociedades de forte bagagem
memorial e fraca bagagem histórica. Ou seja, ele entende que as chamadas
sociedades “modernas” são fadadas ao esquecimento, ao predomínio do fugaz
1
Furet, O passado de uma ilusão, 1995.
2
Huyssen, Seduzidos pela memória, 2000, p. 16.
3
Nora, Entre a memória e a história, 1993, p. 08.

123
e do repentino. Então quais os sentidos desses “lugares de memórias”? Pierre
Nora nos diz que:
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento
que não há memória espontânea, que é preciso criar ar-
quivos, que é preciso manter aniversários, organizar cele-
brações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, por-
que essas operações não são naturais. (...) Sem vigilância
comemorativa, a história depressa os varreria. São basti-
ões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem
não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de
construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembran-
ças que eles envolvem, eles seriam inúteis. Se a história
ao se apoderar deles para deformá-los, transformá-los e
petrificá-los, eles não se tornariam lugares de memórias.4

É sobre alguns desses lugares de memórias que iremos tratar neste


artigo. Mais precisamente de lugares memorialísticos localizados na cidade
boliviana de Cobija, situada na fronteira com o Estado do Acre, Brasil. Uma
região que há pouco mais de um século não estava separada pelas fronteiras
políticas dos dois estados nacionais fronteiriços. A cidade boliviana de Cobija,
sede da Província de Nicolas Suarez e capital do Departamento de Pando, é
uma cidade em fronteiras desde a sua dita fundação oficial, datada de 1908,
quando já era um pequeno povoado originado a partir da sede de um barracão
de seringal na margem esquerda do rio Acre que separa atualmente o Brasil da
Bolívia. A localidade é assim descrita em tom oficial em documento recente:
Cobija se estableció en 1906 bajo el nombre de Bahía o
Barraca de Bahía y su actual nombre lo recibió en 1908
en conmemoración al antiguo puerto del mar boliviano
Cobija (Lamar) en el Pacífico, que actualmente está en
poder de Chile desde la Guerra del Pacífico (1879-1883).5

Na mesma direção, o médico e memorialista cobijano Hernan Mes-


suti Ribera oferece sua narrativa sobre a origem de Cobija no momento dos
preparativos do centenário. Inclusive, sobre a mudança do nome, ele atesta
que foi em virtude do nome Bahia causar confusão com o Estado brasileiro
homônimo, pois muitas mercadorias enviadas de diversas partes do mundo
erroneamente paravam no Brasil. Mas essa mudança ele considera que apaga

4
Nora, Entre a memória e a história, 1993, p. 13.
5
Fonte: https://goo.gl/ct0x1P. Acesso em 21 de junho de 2016, p. 06.

124
o passado de glória das lutas contra os brasileiros ocorridas no antigo Seringal
Bahia, ao ponto deste autor afirmar: “se hubiera meditado un poco se habría
subsanado el problema añadiéndole un calificativo como Bahia Verde, Bahia
hermosa, etc”.6 A sugestão dos dois qualificativos ou outros semelhantes re-
mete tangencialmente a uma imagem edênica da região amazônico-boliviana:
verde e formosa, tal qual um paraíso terreal. As belezas naturais e produzidas
pela mão humana que “civiliza” o espaço antes esquecido, vazio e bárbaro,
são realçadas como marcas de uma identidade local.
Cerca de cem anos depois, Hernan Ribera procura narrar aos con-
temporâneos o passado de fausto, riqueza e “desenvolvimento” alcançados
pela cidade de Cobija ao dizer que ali existia, por volta de 1910, a população
melhor organizada da Amazônia, perdendo em importância apenas para a
cidade de Manaus, no Brasil. Para evidenciar essa afirmativa, pontua que havia,
então, “quase todas as comodidades modernas”: cassinos, fábricas de gelo e
refrigerantes, cinemas, ruas com calçamento, hotéis de luxo, água encanada
e luz elétrica.7
Esses signos se efetivavam pela riqueza proporcionada pelo impulso
da exploração do látex na região. Ao ponto, segundo Ribera, desse esplendor
de modernidade e desenvolvimento ter rompido as fronteiras da Amazônia
sul-ocidental à época, pois um jornalista de Manaus teria atribuído a Cobija o
título de “Peróla do Acre”. E, em tom lamentoso, Hernan Ribera atesta: “El
título perdura. El esplendor se apago”.8
Abaixo, podemos ver hoje que há um esforço em fazer com que o
epíteto sobreviva. O apodo pode ser visto em alguns taxis e vans que transitam
pelas ruas de Cobija, bem como aparece como um dístico apontado ao visitante
que entra em Cobija pela ponte que faz fronteira com a cidade brasileira de
Epitaciolândia. Está postado próximo à aduana boliviana, conforme podemos
visualizar na imagem abaixo (Imagem 01).

6
Ribera, Fundación de la ciudad de Bahia, hoy Cobija, 2014, p. 297.
7
Idem.
8
Idem, Ibidem, p. 298.

125
Imagem 01: Portal na ponte internacional Cobija (Bol) – Epitaciolândia (Brasil).
Fotografia: Francisco Bento, janeiro de 2015.

A pérola do Acre torna-se uma compensação saudosista que parece


substituir um Acre por outro Acre. Sai de cena a alusão à região perdida/cedida
para o Brasil e permanece a referência ao rio que banha a cidade. Conserva-se
o nome, mas ele, ao ser ressignificado, diz outras coisas. A pérola que brilhava
pelo fausto da borracha, parece querer brilhar nos dias de hoje pelo comércio
de importados, voltado, basicamente, para o consumo de brasileiros que por
ali transitam.
Na emergência de seu aniversário centenário, tendo como referen-
cial inaugural o ano de 1906, uma série de semióforos9 foram colocados em
evidências nesta cidade. Neste texto iremos dialogar com alguns deles, pen-
sando-os no sentido atribuído por Marilena Chauí ao dizer que o semióforo
“é um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição
retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida coti-
diana porque são coisas providas de significação ou valor simbólico, capazes
de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço ou no tempo”.10

9
Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, 2000.
10
Idem, ibidem, p. 12.

126
Mapa 01: Departamento de Pando (Bolívia) e suas Províncias

Fonte: http: https://goo.gl/ct0x1P, acessado em 21 de junho de 2016.

Neste caso, a homenagem à cidade é um semióforo que, mais uma


vez, parece ser uma compensação saudosista de uma perda sofrida na guerra
com o Chile, no século XIX, quando a Bolívia perdeu sua saída ao oceano
Pacífico e ainda hoje a contesta em Cortes internacionais. A Cobija perdida
“renasce” recriada semanticamente noutro lugar, esvaziada de sentido origi-
nal. Do núcleo de um antigo seringal chamado Bahia, se erigiu no alvorecer
do século XX uma pequena vila, que se queria cidade, como tantas outras
nesta parte da Amazônia de tríplice fronteira, marcada pela exploração de
borracha natural extraída do caucho e da seringueira. Além da cidade, o nome
do Departamento remete à figura do militar José Manuel Pando, presidente
da Bolívia entre 1899 e 1904, que esteve pessoalmente na região acreana, em
princípio de 1903, liderando um destacamento militar de combate aos brasi-
leiros insurgentes.
A presença do então presidente do país andino na região de conflitos
expressa a importância que a Bolívia deu à época a esta disputa territorial.
Isto é descrito da seguinte forma em uma obra intitulada História de Bolívia:
Pando combatió y venció [Plácido de] Castro en el río
Orton. En tanto, la columna Porvenir organizada y finan-
ciada por Nicolas Suarez combatió heroicamente en Baía
(hoy Cobija), venciendo a los filibusteros e defendiendo

127
esa región de nuestro território.11

Interessante notar que, ainda hoje, temos por parte de políticos, pes-
quisadores, intelectuais e cidadãos da Bolívia a aceitação de uma narrativa
que contrasta com aquela que se tornou hegemônica no Brasil e, em particular,
no Estado do Acre. Vale ressaltar que muitos escritos bolivianos mais antigos
foram produzidos por governantes – geralmente militares, militares graduados
e grandes comerciantes com interesses localizados na região litigiosa do Acre:
entre tantos, os mais conhecidos e referenciados são os textos narrativos de
corte memorialísticos produzidos por Nicolas Suarez, Felix Avelino Aramayo,
Lino Romero, Artur Ponansky, José Manuel Pando12 e José Achá. Temos nesses
textos uma memória que se quer nacional, patriótica e triunfante-lamentosa.
Mas é em essência apagadora de outras memórias e histórias específicas dos
subalternos colonizados e dominados.
Nesse período conflituoso, as grandes áreas produtoras de goma
elástica na Bolívia encontravam-se localizadas em todo o atual Departamento
de Pando e ao noroeste do Departamento de Beni, segundo Mesa, Gisbert &
Gisbert.13 Diante do crescente interesse em exercer o domínio sobre o vasto
território já ocupado por muitos brasileiros, em 1900, a Bolívia cria nesse es-
paço geográfico, que incluía o atual estado do Acre, o seu Território Nacional
de Colônias – TNC.14 Com o desmembramento do Acre em 1903, o chamado
Território Nacional de Colônias continuou vigorando até 1938, quando passa
a ser chamado de Departamento de Pando.15
O TNC, quando foi criado, ficou vinculado ao Ministério de Coloni-
zação da Bolívia. Era uma espacialidade administrativa de “Leyes peculiares”,
segundo palavras do geógrafo J. T. Camacho, membro da Sociedade Geográ-
fica de La Paz e autor do relatório oficial intitulado El Territorio Nacional de
Colonias.16 Sua organização e divisão político-administrativa tinha três partes
complementares (cantones, alcaldias e jefaturas) com suas respectivas autoridades,

11
Mesa, Gisbert y Gisbert, Historia de Bolivia, 2003, pp. 524/525.
12
José Manuel Pando, então coronel do exército boliviano, esteve inicialmente na região da
Amazônia boliviana entre o início de 1893 e 1894 à frente de uma expedição de reconhecimento
do território.
13
Mesa, Gisbert y Gisbert, Historia de Bolivia, 2003, pp. 522.
14
Para maiores informações sobre a instituição do Território Nacional de Colonias, Cf. Bolivia. El
território Nacional de Colonias, 1903.
15
Mesa, Gisbert y Gisbert, Historia de Bolivia, 2003.
16
Bolívia, El território Nacional de Colonias, 1903.

128
todas subordinadas ao Delegado de governo no TNC que era a autoridade
maior nomeada pela presidência da república andina. Os chamados cantões, de
nomes pomposos com vertentes semânticas eurocêntricas, nada mais eram que
as sedes dos seringais mais importantes da região acreana de então: Humaitá,
Bagazo, Vuelta da Empreza, Capatará, Amelia, Carmen, Riosiño e Porvenir.17
Segundo cronistas bolivianos, a borracha natural representava desde
os anos finais do século XIX o segundo produto na pauta de exportações do
país andino, algo que perduraria até 1915.18 Mas as autoridades acreditavam
que a maior parte da borracha produzida sob seus domínios legais era des-
viada de maneira constante pelo território brasileiro e exportada com amplas
vantagens financeiras e fiscais ao país vizinho. Diante dos impasses que iam se
avolumando, em 1902, iniciou-se um novo conflito entre brasileiros e bolivianos
pela disputa da região. Os primeiros, articulados de maneira privada e ligados
aos interesses de seringalistas, comerciantes locais e de Manaus e Belém, sem
apoio aberto do governo brasileiro. Os segundos, de caráter oficial com apoio
militar e político das autoridades de La Paz e comerciantes ligados à indústria
gomeira boliviana. Assim, Mesa et alli descrevem sucintamente o conflito pelo
olhar de uma narrativa boliviana com vieses nacionalistas:
El origen de esta guerra está en las diferencias de límites
con el Brasil y la importância económica de la goma en
la región. (...). Em 1896 el próprio Pando firmó un acuer-
do con Brasil en el limite de los rios Purus y Acre. Pero
el detonante fue, outra vez, una questión económica. La
fundación de Puerto Alonso em 1899 (Puerto Alonso se
conoció luego como Puerto Acre, capital del Territorio de
Colonias a orillas del rio Acre, hoy en território brasileño)
se hizo para instalar un puesto aduanero de recaudación
de impuesto sobre exportaciones de goma. Esto molesto
a los aventureros que explotaban goma y la contrabandea-
ban sin rubor a los estados vecinos de Pará e Amazonas.19

Essas narrativas dos conflitos envolvendo as disputas pela região


acreana ganharam, de lado a lado, tons heroicos, triunfalistas e patrióticos
que são percebidos ainda nos dias hoje nas múltiplas produções acadêmicas,
literárias, discursos políticos e naquelas narrativas voltadas para um público
17
Bolívia, El território Nacional de Colonias, 1903, p. 43.
18
Mesa, Gisbert y Gisbert, Historia de Bolivia, 2003, p. 523.
19
Ibidem, p. 532.

129
mais amplo, divulgadas através da imprensa e plataformas on line, tais como
sites e blogs. Do lado boliviano, atualmente as marcas na cidade de Cobija se
evidenciam em monumentos historicizantes e “centenários”, como aquele
erguido em uma rotatória da movimentada Avenida 09 de Febrero (Imagem
02, a seguir) chamado popularmente de “Trez Cabezas”.

Imagem 02: Monumento Trez Cabezas – Cobija, Pando.


Fotografia: Francisco Bento, janeiro de 2016.

Uma das placas colocadas no pedestal deste monumento foi doada


pela reitoria da Universidade Autônoma de Pando, em 2006, e diz “En honor
al centenário de fundacion del Puerto Bahia, hoy Cobija” e faz referência à
chamada Batalha do Bahia. Nesta linearidade fundacional, Cobija é herdeira
de Puerto Bahia que tem sua origem ligada a uma batalha tornada épica por
tais narrativas.
Outra placa, afixada no mesmo monumento foi oferecida pela Sociedade
Geográfica e Histórica de Pando e é mais detalhada em alguns aspectos do texto
afixado no pedestal. A temática da placa gira também em torno da Batalha
do Bahia e seus decantados heróis. O título é “Perfil historico del monumento
a los ‘heroes de Bahia’”. Porém, o texto gravado na placa metálica procura
trazer uma explicação da composição de todo o monumento para aqueles que
ali chegam leigamente para observá-lo. Há uma instrução didática que diz ao

130
leitor ter sido o monumento composto de quatro partes, três blocos inferiores
e o seu ponto mais elevado, chamado de culminação (imagem 03, a seguir).

Imagem 03: Detalhe da placa fixada no pedestal do monumento Trez Cabezas.


Fotografia: Francisco Bento, janeiro de 2016.

A primeira parte seria uma espécie de alicerce inaugural e figurativo da


região do Departamento de Pando. É dedicada à fauna, à flora e aos indígenas
através da etnia dos Araonas, que serve de metonímia para todos os povos ori-
ginais, chamados ali genericamente de “raças nativas”. De acordo com o padre
espanhol Nicolás Armentia, em seu texto “Tribus de la Amazonia”, publicado
em 1887, os Araonas constituíam, juntamente com os Cavinas, os principais
grupos indígenas da região e estavam tão “mezclados” que compartilhavam a
mesma língua (Tupi), a mesma religião e os mesmos costumes. Mas já haviam
sofrido um processo de intensa diminuição populacional por assassinatos e
131
mortes por doenças legadas pelo contato colonial.20 Outro cronista assim narra
a incorporação forçada dos Araonas e demais comunidades indígenas nas ati-
vidades de exploração colonial, com destaque para a particularidade Araona:
“índole mansa y ciertas dotes de inteligência. Los Araonas habían mostrado
más de uma vez tendencias a adaptarse a ciertas formas de civilización”.21
Nesta perspectiva, a natureza e os indígenas “não civilizados” an-
tecedem a história e a cultura: estão à margem, à espera da civilização e
colonização que viriam pelas “leis naturais” do progresso. O apagamento, o
extermínio e a invisibilidade dos indígenas se naturalizam por eles serem vistos
como parte integrante do mundo natural. Eles são aceitos e até exaltados de
maneira tutelada e caridosa quando são “mansos”, “amigos” dos colonizadores
e “parceiros” desiguais do processo de conquista e “civilização”.
Retroativamente, o “resgate” da memória e história dos indígenas,
quando ocorre via monumentos e textos escritos, exalta a incorporação e con-
tribuição deles ao processo colonial que os invisibiliza. Ou seja, os indígenas
para serem aceitos na narrativa heroica do conquistador precisa se submeter
a ele, precisa deixar de ser índio. Nesta perspectiva, a narrativa deixa de ser
tragédia e torna-se apenas farsesca. Busca se construir uma comunidade
imaginada como harmônica, de passado de superação, de evolução linear, de
mesclas étnicas, mestiçagens culturais e de lutas contas os inimigos como bem
demonstra o historiador Benedict Anderson em seu estudo mais conhecido
sobre este assunto.22
O segundo bloco do monumento homenageia os exploradores do
antigo TNC e centra-se na figura do seringueiro/caucheiro genérico e das
imagens alusivas ao embarque de borracha em vapores fluviais que singravam
os rios da região. Metidos dentro de uma selva feroz que lhes servia de cárcere,
isolados de seus semelhantes, esses homens esforçados enfrentavam os mais
variados perigos para amansar a região, conforme apresenta tal entendimento
o texto de Jaime Mendoza.23
O terceiro bloco – como diz o texto grafado – é em alusão “ao holo-
causto da Guerra do Acre, refletido na Batalha de Bahia”. Antes de chegar à

20
Armentia, Tribus de la Amazonia [1887], 2014, pp. 20/23.
21
Mendoza, Páginas bárbaras [1916], 2014, p. 118.
22
Anderson. Comunidades imaginadas, 2008.
23
Mendoza, Páginas bárbaras [1916], 2014, p. 116. Paráfrase de tradução livre do autor do
texto.

132
composição final do monumento, uma referência aos “heróis do Acre”: Bruno
Racua (indígena), chamado de grande arqueiro que aponta seu arco tenso ao
futuro; José Manuel Pando (militar e político), denominado de o expedicionário
das terras do norte boliviano; e, Nicolas Suarez (seringalista), exaltado como
comandante da Coluna Porvenir e herói da batalha do Bahia. São estes três
que compõem o ponto mais alto do monumento “Trez Cabezas”, o elemento
culminante, com as efígies das três personagens consideradas as precursoras
do Departamento de Pando, descritos como aqueles “cujos rostos irradiam
no ponto mais elevado do monumento”.24
No entanto, em 2011, o blog Sol de Pando publicou uma matéria
trazendo detalhes do monumento inaugurado em 2006, que oficialmente é
chamado de “Héroes de Bahia”. Assim ele é descrito:
Diseñado por el escultor cruceño, nacido en Maraina,
David Paz Ramos, y construido por el soldador Ángel Ji-
ménez Román, el monumento a los Héroes de Bahía fue
eregido en el 2006 en conmemoración a la fundación de
Cobija. La base de la estructura monumental representa
la fuente ornamental con caídas de agua y figuras en alto
relieve de caimanes, capiguaras, urinas y el tigre america-
no a su alrededor. Se muestra, además, la selva exuberan-
te con sus valores hídricos, fauna y flora en su magnífica
potencia que abarca la geografía del departamento y figu-
ras de hombres que representan las heroicas escenas de
la batalla de Bahía. En la cúspide del obelisco, con una
altura de 14 metros, se exhibe la inmortal trilogía con las
figuras del ixiameño Bruno Racua, el General José Ma-
nuel Pando y el empresario siringuero Don Nicolás Suá-
rez Callaú, como los precursores de la heredad pandina.
Esta obra artística es considerada una de las esculturas
más gigantescas entre las ciudades amazónicas de Boli-
via; se halla al inicio de la avenida principal de Cobija, la
9 de de Febrero.25

Percebemos que neste fragmento há uma clara tentativa de produzir


uma síntese histórica linear e civilizacional, do colonizador e do colonialista.
Para Albert Memmi, o colonialista é o colonizador que se aceita como tal.26
Muitos dos “desbravadores” do TNC vieram de outras áreas do território nacio-

24
A tradução no todo ou em partes dos textos em espanhol presentes nas placas são do autor
desse texto, bem como a autoria das imagens mostradas.
25
Fonte: https://goo.gl/TtrgVX. Acesso em 02 de julho de 2016.
26
Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 1967, p. 51.

133
nal com suas práticas e ideologias colonialistas. São homens que “reivindicam
as deferências e as honras” mesmo quando já mortos.27 Tem seus seguidores à
posteridade, que ao pensarem o mundo social, carregam a crença no princípio
hierarquizador tanto da história como da sociedade e dos indivíduos. Aqueles
que idealizaram o citado monumento, narram uma visão da sociedade local
envolta em tons evolutivos, marcada pela perspectiva dos valores do progresso,
da positividade da colonização e do elogio da conquista. Por fim, esse mesmo
texto jornalístico traz ainda um discurso carregado de tons ufanistas ao dizer
que a obra é uma das esculturas mais gigantescas existente nas cidades da
Amazônia boliviana.
Mesmo internamente na Bolívia, parece que tal narrativa sobre os
“heróis do Acre” não foi incorporada plenamente com as mesmas personagens.
Em La Paz, há na parte central da cidade uma rua cujo nome é Herois del Acre.
No entanto, as personagens que compõem a tríade da homenagem não são
Bruno Racua, José M. Pando e Nicolas Suarez. São exaltadas as figuras de
Ismael Montes, Pedro Kramer e Lucio Pérez Velazco.28 Homens do altiplano
que em momentos distintos se envolveram de maneira direta na Guerra del
Acre. Heróis mais “cultuados” e reconhecidos no altiplano pacenho, diferentes
dos três homenageados no monumento em Cobija, que são os heróis locais
da Amazônia pandina. Os três primeiros, inclusive foram homenageados em
uma pintura histórica realizada pelo pintor boliviano Angél Ismael Dávalos,
que em 1901 pintou o quadro Herois del Acre (Imagem 04, abaixo).

27
Ibidem, p. 54.
28
Ismael Montes foi presidente da Bolívia (1904-1909), ministro da Guerra (1889-1904) e
militar que liderou uma das expedições bolivianas enviadas à região Acreana entre 1899 e
1900. Lucio Pérez Velazco, também político e militar, foi vice-presidente durante o governo
de J. M. Pando e chefiou uma das expedições enviadas ao Acre na virada do século (Cf. Mesa,
Gisbert & Gisbert, História de Bolívia, 2003, pp. 518/526). Pedro Kramer (1869/1899), era
um jornalista boliviano de origem alemã, membro de sociedades históricas e geográficas
de seus país, autor de livros sobre a historia da Bolívia, foi deputado provincial e quando
começaram os conflitos na região acreana ele se incorporou numa das expedições militares
e veio a falecer de febre amarela ao chegar na zona de conflito. Fonte: Dicionário Cultural
Boliviano, disponível em https://goo.gl/d1oEwC. Acesso em 19 de setembro de 2016.

134
Imagem 04: Quadro Herois del Acre (1901) – Angél Dávalos. Fonte: Gumucio, Pando y la Amazonia
boliviana, 2014, p. 65.

Considerações finais
O monumento “Tres Cabezas” expressa, com muita propriedade, uma
espécie de musealização a céu aberto de parte do espaço urbano da cidade de
Cobija. Espaço carregado de múltiplas grafias das narrativas históricas que
buscam sedimentar uma “recordação total”, marcada pelo desejo de “puxar
o passado para o presente”29 e integrá-lo na construção da comunidade ima-
ginada, local e nacional.
Os monumentos são “lugares de memória”, nas palavras de Pierre
Nora, pois funcionam como “rastros, distâncias, mediações” do passado.
Quando isso ocorre, ressalta ele, “não estamos mais dentro da verdadeira me-
mória, mas dentro da história”.30 Para Nora, a memória seria viva, movente,
impossível de se cristalizar no tempo e no espaço. Seja em um monumento
físico incrustado numa praça, seja no indivíduo ou na coletividade. Assim, tais

29
Huyssen, Seduzidos pela memória, 2000, p. 15.
30
Nora, Entre a memória e a história, 1993, p. 09.

135
monumentos estão mais para a história do que para a memória. Encarnados
numa narrativa histórica seletiva, parcial, que atende interesses determinados
e situados. Todos os “lugares de memória” abarcariam três sentidos, segundo
Pierre Nora: têm materialidade, têm simbologia e têm funcionalidade.
Os monumentos são suportes físicos – materiais – que buscam sim-
bolizar à posteridade um recorte do acontecido “digno de ser lembrado”. Têm
entre outras funções, querer ser objeto de civismo, de admiração, de culto e
pedagógico, pois têm sempre “mensagens” do passado para os vivos. Criam-
se então as ilusões de eternidade, os rituais de sociedades sem rituais, como
bem aponta Pierre Nora.31
O fato é que dos dois lados, brasileiro e boliviano, temos a produção
antiga e atual de um historicismo triunfalista que se quer hegemônico. Calcado
nas narrativas do progresso e da colonização dos “desbravadores” de uma região
“atrasada” e que passa a ser inserida na lógica capitalista, algo que pode ser
percebido no fragmento abaixo em texto de autoria de Gerson Albuquerque:
a Amazônia acreana é compreendida e inserida como
parte da história somente a partir da economia gumífera,
cujos empreendimentos foram motivados e articulados
em torno dos interesses das indústrias internacionais por
uma matéria-prima oriunda das florestas amazônicas: a
borracha “fabricada” a partir do corte (extração), coleta
e defumação ou prensa do leite da seringueira (hevea bra-
siliensis).32

Ou seja, antes da chegada do “branco”, apontado como conquistador


e explorador que nomeia e domina, a região e suas gentes diversas nada mais
são que um grande quadro da natureza selvagem e bárbara. Tal entendimento
é fundamental para justificar e levar à frente todo tipo de ação que redunde
na imposição dos valores e desejos dos adventícios sobre os nativos. Isso se
realiza em nome do progresso, dos interesses da nação, da expansão da fé
cristã e da cultura civilizada.
Geralmente temos daí derivada uma historiografia do triunfo da
civilização sobre a barbárie e de derrota do inimigo. Sejam nas versões boli-
vianas ou brasileiras, perduram tais entendimentos mais gerais na formação

31
Nora, Entre a memória e a história, 1993.
32
Albuquerque, História e historiografia do Acre, 2015, p. 12.

136
do território nacional, da qual o Departamento de Pando e o Estado do Acre
fazem parte e compartilham os referenciais do passado que consideram exitosos.
No caso acreano, com bem diz Durval Albuquerque Jr., “sua incorporação
territorial e militar ao espaço nacional é tomado como um dos grandes feitos
dos nordestinos, como a maior e decisiva contribuição nordestina à formação
da nacionalidade”.33

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Acre. La Paz: Tipografia artística – Velarde, Aldazosa y Co. 1902. Arquivo y Biblio-
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33
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137
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SUAREZ, Nicolas. Anotaciones y documentos sobre la campaña del Alto Acre
(1902/1903). Barcelona: Tipografia La Académica, 1928.

138
O processo de crioulização e a estética
barroca em Édouard Glissant
Enilce do Carmo Albergaria Rocha

O termo crioulização1 vem do termo créole que designa as línguas


crioulas e refere-se inicialmente a dois processos: o processo através do qual
essas línguas se constituíram no Caribe; e ao processo de elaboração das culturas
no Caribe e nas Américas “marcadas” pela presença das culturas africanas.
Posteriormente, Glissant amplia a abrangência do termo crioulização que
passa a caracterizar, igualmente, o processo cultural vivenciado hoje pelas
culturas da totalidade-terra, em Relação.2 Cabe aqui ressaltar que o importante
na crioulização são os processos através dos quais esta se dá e não seus con-
teúdos particulares; e, como todo e qualquer processo, a crioulização implica
dinâmica. Ela não propõe nenhum “ser” absoluto, nem tampouco “modelos”
generalizáveis a todas as culturas, ou seja, modelos abstratos, abstraídos da
concretude das culturas, em Relação. A crioulização é movimento permanente
do “sendo”3 dos homens e das culturas.
1
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005.
2
A noção de Relação ressalta a importância de se considerar a confluência da multiplicidade
das expressões culturais dos povos e das minorias na abordagem do fenômeno da globalização,
uma vez que o discurso dominante considera, de forma quase que exclusiva, apenas seus
aspectos políticos e econômicos. A confluência das culturas está determinando transformações
tanto nas sociedades e comunidades, quanto nas sensibilidades dos seres humanos; e os povos,
sobretudo os que emergem da colonização, vêem-se confrontados a um movimento duplo e
aparentemente contraditório: o de seu enraizamento cultural, necessário à sua sobrevivência,
e o da Relação da totalidade das culturas.
3
“Sendo”: étant é traduzido para o português, de forma consensual, como “ente”, definido pela

139
Penso que chegamos a um momento da vida das huma-
nidades em que o ser humano começa a aceitar a ideia de
que ele mesmo está em perpétuo processo. Ele não é ser,
mas sendo, e que como todo sendo, muda. Penso que esta
é uma das grandes permutações intelectuais, espirituais e
mentais de nossa época que dá medo a todos nós.4

O processo de crioulização, contrariamente ao de mestiçagem, se


caracteriza pela imprevisibilidade. Glissant exemplifica a imprevisibilidade por
meio do processo de elaboração das línguas crioulas na Martinica e Haiti. Era
absolutamente imprevisível que em dois séculos uma comunidade escrava pu-
desse produzir uma língua tão inusitada, a partir de elementos tão heterogêneos.
E o que é uma língua crioula? É uma língua compósita,
nascida do contato entre elementos linguísticos absoluta-
mente heterogêneos uns aos outros. Os crioulos francófo-
nos do Caribe, por exemplo, nasceram do contato entre
falares bretões e normandos do século XVII, com uma
sintaxe que, embora não saibamos muito bem como fun-
ciona, pressentimos ser uma espécie de síntese das sinta-
xes das línguas da África negra subsaariana do oeste. Isso
significa, então, que o léxico, o vocabulário, o falar da
Normandia não têm nada a ver com a sintaxe que talvez
seja uma “sintaxe-de-sintaxe” dessas línguas africanas. A
combinação desse léxico e dessa sintaxe – que começa
sob a forma de um linguajar rudimentar, pois tratava-se
de resolver os problemas de trabalho nas ilhas do Caribe,
é imprevisível.5

Glissant retoma a distinção feita por Darci Ribeiro, no Brasil, Emma-


nuel Bonfil Batalla, no México, e Rex Nettleford, na Jamaica, que distinguem as
Américas em três diferentes: a Meso-América, a Euro-América e a Neo-Amé-
rica. A Meso-América corresponde às terras e culturas dos povos autóctones.
A Euro-América corresponde à América marcada pelas culturas europeias,
ou seja, por povos que preservaram no novo continente os usos, costumes e
tradições de seus países de origem. Na Euro-América se encontram o Canadá
de origem inglesa, e o Quebec de origem francesa; os Estados Unidos; e uma
parte do Chile e da Argentina. A Neo-América, aquela que Glissant irá pri-
filosofia como “cada um dos múltiplos seres existentes e concretos da realidade circundante,
ou seja, os seres humanos, os seres vivos, os objetos do pensamento e da natureza, etc. (Dic.
Houaiss). Entretanto, optamos por traduzi-lo por “sendo”, termo que enfatiza a presença do
sema de “movimento” presente no particípio presente étant (N.T.)
4
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005, p. 33.
5
Ibidem, p. 24.

140
vilegiar em suas discussões sobre como se dão os processos culturais, emerge
do processo de crioulização e se constitui, portanto, culturalmente, a partir
desse processo.
O autor destaca no processo de crioulização da Neo-América a presen-
ça das culturas africanas cuja presença compreende grande parte do Brasil, as
Guianas, Curaçao, o Sul dos Estados Unidos, a costa caribenha da Venezuela
e da Colômbia, e uma parte da América Central e do México.
A crioulização na Neo-América deu-se através de um processo de
choques, de distorções, de interferências, de harmonias, de desarmonias e de
combinatórias culturais e linguísticas entre culturas heterogêneas europeias e
africanas, predominantemente, mas também asiáticas, como é o caso da vinda
de hindus para as Antilhas (depois de 1848). Essas culturas em Relação pro-
duziram algo novo em termos culturais: as culturas compósitas. Entretanto, a
crioulização no Caribe, e em toda a Neo-América, foi um processo vivenciado
na dor do tráfico, no aviltamento, humilhação e aniquilamento das culturas
indígenas e africanas que foram submetidas à opressão exercida pelos diversos
sistemas colonialistas e escravagistas implementados nas Américas.
Enquanto processo relacional, a crioulização da Neo-América nutriu-
se, transformou-se, e continua a se transformar em contato com as demais Amé-
ricas - a Euro-América e a Meso-América, influenciando-as e transformando-as,
e sendo, por sua vez, por elas transformada. Nesse sentido, a crioulização gerou
nas Américas microclimas culturais e linguísticos originais e inesperados, nos
quais as repercussões das culturas e das línguas em Relação, desde o início do
processo, aconteceram em um tempo abrupto, imediato. Para Glissant, esses
microclimas culturais e linguísticos gerados nas Américas pela crioulização
são representativos do que vem acontecendo hoje, realmente, no mundo.
A tese defendida pelo autor é a seguinte: o processo de crioulização
tal como ele se dá de forma permanente nas Américas, a partir da irradiação
processada pela Neo-América, estendeu-se hoje pela totalidade do mundo,
e vem gerando nas culturas microclimas e macroclimas de interpenetração
cultural e linguística que se constituem como regiões abertas, espécie de ilhas
culturais aglomeradas em arquipélagos, cujos mosaicos se transformam muito
rapidamente.
Os conjuntos geoculturais, agregados através de encon-
tros e destinos comuns, mudam no mundo com uma rela-

141
tiva rapidez. Existe, por exemplo, uma comunidade real
de situação entre os povos crioulos do Caribe e os do oce-
ano Índico (povos da Reunião ou das Ilhas Seychelles),
mas nada nos pode dizer se uma evolução acelerada não
provocará encontros tão fortes e determinantes quanto
estes, muito em breve, entre o Caribe e o Brasil, ou entre
as pequenas Antilhas francófonas e anglófonas, levando
à constituição de novas zonas de comunidade relacional.
Não poderíamos fundar um pensamento ontológico so-
bre a existência de tais conjuntos, cuja natureza é a de
variar prodigiosamente na Relação.6

Portanto, na contemporaneidade, não estaríamos mais diante de


mestiçagens culturais, ou de melting–pots, conceitos que pressupõem identida-
des exclusivas, singulares, que preexistem à Relação, e que entram em contato
umas com as outras. Estamos vivenciando a própria dinâmica da elaboração
das culturas, processo que é permanente. Hoje, segundo Glissant, as culturas
procedem da crioulização, e estão em processo de crioulização.
A tese que defenderei é a de que o mundo se criouliza.
Isto é: hoje, as culturas do mundo colocadas em contato
umas com as outras de maneira fulminante e absoluta-
mente consciente, transformam-se, permutando entre si,
através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas,
mas também através de avanços de consciência e de espe-
rança que nos permitem dizer - sem ser utópico, e mesmo
sendo-o - que as humanidades de hoje estão abandonan-
do dificilmente algo em que se obstinavam há muito tem-
po - a crença de que a identidade de um ser só é válida e
reconhecível se for exclusiva, diferente da identidade de
todos os outros seres possíveis.7

Profusão da diversidade, negação dos modelos universais generalizá-


veis a todas as culturas da totalidade–mundo, toda crioulização é uma forma de
barroco em elaboração, em ato. Segundo Glissant o barroco é a fala privilegiada
das culturas compósitas. Entretanto, o barroco está presente, igualmente, em
nossos dias, na fala das culturas atávicas, já que estas se tornam compósitas
através dos processos difusos de crioulização que se dão hoje no mundo. Ou
seja, o barroco se naturaliza no mundo: torna-se um lugar-comum.8
6
Glissant, Poétique de la relation, 1990, p. 156. Tradução nossa.
7
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005, p. 18.
8
Lugar-comum: Glissant opõe “lugar-comum” (com hífen) – no qual um pensamento do
mundo encontra outro pensamento do mundo – a “lugar comum” (sem hífen), e caberia aos

142
O classicismo e o barroco, em movimento dialético, coexistiram
historicamente, em todas as culturas. Segundo Glissant, todas as culturas co-
nheceram um classicismo que corresponde a uma era de certezas dogmáticas;
e, em um dado momento histórico, em plena vigência do classicismo, elabo-
raram “desregramentos” barrocos que questionavam o classicismo, tornando
possível, dessa maneira, a ultrapassagem de suas certezas, normas e medidas.
O barroco emerge no Ocidente nos séculos XVI e XVII, período his-
tórico em que predomina na filosofia ocidental a hipótese de que a natureza e
os homens possuem uma essência, e que o real, considerado como harmonioso
e homogêneo, é conhecível na sua verdade, na sua essência profunda. Assim,
a representação artística do real, a sua imitação, pressupõem, igualmente, sob
a aparência do real, uma verdade indubitável e uma profundidade da qual
a arte enquanto imitação se aproximaria, à medida que sistematizasse suas
reproduções desse real.
Segundo Glissant, as técnicas barrocas são uma resistência a essa
ideologia da pressuposição da transparência do humano e da matéria, e visam
à dilatação da extensão, à profusão do conhecimento em extensão, conheci-
mento sempre inalcançável, em devir: um vir a ser em movimento. Através
das técnicas barrocas o real multiplica-se, diversifica-se, e não é quantificável; a
natureza, os homens e suas culturas, não obedecem a um modelo transparente
e universalizante, mas, sim, barroquizam infinitamente.
Na totalidade-terra hoje realizada, essa “barroquização” dos homens
e das culturas provoca um ser-estar–no–mundo (um être-dans-le-monde) que
necessita da totalidade de todas as formas de ser-estar-em–sociedade (toutes
sortes “d’être en société”).
A arte barroca foi uma reação à pretensão realista em pe-
netrar em um movimento uniforme e decisivo: os arcanos
do conhecido. O arrepio barroco tem como objetivo sig-
nificar que todo conhecimento está por vir, e que é exa-
tamente este o valor de todo conhecimento. A arte bar-
roca apela aos contornos, à proliferação, à redundância
do espaço, a tudo o que ridiculiza e escarnece a pretensa
unicidade da coisa conhecida e seu conhecedor, àquilo
que exalta a quantidade infinitamente multiplicada, a to-
talidade infinitamente recomeçada.9

poetas e às artes em geral desvelá-los.


9
Glissant, Poétique de la relation, 1990, p. 91. Tradução nossa.

143
Durante a colonização, a pulsão clássica e a pulsão barroca coabitaram
e entraram em conflito. Isto porque no momento mesmo em que as culturas
ocidentais - e seus valores particulares considerados como válidos para todos,
ou universais - foram exportadas pela colonização europeia para o mundo,
a pulsão barroca se generalizou, isto é, o barroco, que é a arte da extensão,
estendeu-se “concretamente” pelo mundo.
Dizem que sou antiocidental. De jeito nenhum! Pen-
so que o Ocidente foi um fundamento, primeiramente
porque foi ele quem inaugurou o encontro das culturas,
através de sua expansão no mundo, mas também porque
o Ocidente foi até o fim no seu trabalho de desvendar o
ser, a transparência, o universal. E agora ele deve, como
Ocidente, não obstante o seu poder econômico e político,
entrar no jogo da Relação.10

Na América Latina, como, por exemplo, no México e no Brasil, a arte


religiosa barroca na sua representação visual, arquitetônica, musical e teatral
foi executada por negros, indígenas e mestiços que misturaram elementos e
interpretações autóctones aos elementos ocidentais, tanto do ponto de vista da
forma, quanto do ponto de vista do conteúdo. Segundo Glissant, os elementos
autóctones assim introduzidos não intervêm simplesmente como inovações na
representação do real, mas trazem informações inéditas sobre uma natureza
“nova”, que resiste à simplificação.
A estética barroca inaugura, portanto, uma visão inovadora do real,
e acaba por consagrar outra concepção do existente e da natureza, concepção
esta que se expressa na vertigem da mescla que emerge do contato dos estilos
e das linguagens das culturas dos diferentes sendos do mundo, e da diversidade
das paisagens.
O barroco é o anticlassicismo, isto quer dizer que o pen-
samento barroco diz que não existem valores universais,
que todo e qualquer valor é um valor particular que será
colocado em relação com outro valor particular e que,
conseqüentemente, não existe a possibilidade de que um
valor particular qualquer possa legitimamente se conside-
rar, ou se apresentar e se impor como valor universal. [...]
É isso que o pensamento barroco diz (e nesse sentido todo
processo de crioulização é uma forma de barroco em ple-
no processo de realização, em ato). Aliás, o barroco, que é
10
Ludwig, Écrire la parole de nuit, 1994, p. 127. Tradução nossa.

144
primeiramente uma reação à Contra-Reforma na Europa,
naturalizou-se no mundo. Quando o barroco atravessou
os oceanos e chegou à América Latina, os anjos e as vir-
gens tornaram-se negros, Jesus-Cristo tornou-se um Índio
e tudo isso rompeu o processo de legitimidade. O barroco
naturalizou-se. A crioulização é sempre barroca.11

O barroco a partir do neoclassicismo, século XVIII, foi considerado


na Europa como “desregramento” e “ausência de regras”, em oposição ao
classicismo que funcionava com categorias que se opunham entre si, e distin-
guia as diferentes “essências”, determinando normas estéticas generalizantes.
Segundo Glissant, na totalidade-terra hoje realizada, o barroco substitui-se
à obra estabilizadora e perene reivindicada pelos antigos classicismos, e se
constitui como a expressão de tudo o que se dispersa, se reúne, e se acrescenta:
ou seja, ele expressa a violência manifestada e integrante das contaminações.
Nos tempos atuais, o barroco seria a resultante de componentes e fragmentos
de formas da totalidade-terra que a estética do “Caos-Mundo” reúne e faz
convergir em cada um de nós, e para nós: o concerto barroco constitui a trama
violenta e ampliada de nossa intertextualidade contemporânea:
Chamo de caos-mundo o choque, o entrelaçamento, as
repulsões, as atrações, as conivências, as oposições, os
conflitos entre as culturas dos povos da totalidade-mun-
do contemporânea. Portanto, a definição ou a abordagem
que proponho dessa noção de caos-mundo é bem precisa:
trata-se da mistura cultural, que não se reduz simples-
mente a um melting-pot, graças à qual a totalidade-mun-
do hoje está realizada.12

A mundialização do barroco, que se manifesta na extensão, pode ser


observada em nossos dias no movimento operado pelas ciências: a “relação de
incerteza” de Heisenberg, conforme explicado abaixo, provocou as incertezas
racionais, e estas levam a ciência a reconhecer que é preciso penetrar o real
em suas profundezas para conhecê-lo, mas que esse conhecimento é sempre
deferido, pois não se pode mais surpreender o “essencial” em bloco:
Heisenberg explica que as partículas só são visíveis quan-
do iluminadas. Entretanto, quando as iluminamos, altera-
mos certamente a sua velocidade e a sua orientação e tal-
11
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005, p. 62.
12
Ibidem, 2005, p. 98.

145
vez até a sua natureza. Essa relação de incerteza tornou-se
um dos lugares-comuns do pensamento contemporâneo,
pois existe uma opacidade da matéria que é incontorná-
vel, intransponível. E foi a partir dessa constatação que
a ciência ocidental fez sua própria revolução e produziu
a parte da ciência que deu origem às ciências do caos,
na qual os cientistas renunciam à linearidade equacional,
isto é, à pretensão de descer às profundezas da matéria
(ou seja, à raiz única...) em busca de uma verdade que
corresponderia à verdade da matéria. Começa-se então a
pensar que é preciso descrever o que está na extensão e
que é indescritível. É preciso tentar descrevê-lo, sem, en-
tretanto, pretender alcançar um conhecimento absoluto.
Essa evolução da ciência me parece estar relacionada à
concepção do ser e do sendo. Em outras palavras, a ciên-
cia triunfante teria a ver com a filosofia do ser, e a ciência
que duvida, que reduz suas certezas e afirma que circu-
laremos pesquisando na extensão, ou seja, que não nos
movimentaremos mais na linearidade, essa ciência teria a
ver com os imprevistos do sendo.13

As culturas compósitas e as culturas atávicas – aquelas que não viven-


ciaram o processo de crioulização ou o vivenciaram em um tempo longínquo
- reagem diferentemente à atual trama barroca das culturas. O movimento no
qual se inserem as culturas se delineia, então, da seguinte forma: as culturas
compósitas tendem a se tornar atávicas, isto é, a reivindicar a duração e a
honorabilidade do tempo, critérios reivindicados por toda cultura que emerge
de um processo de colonização, e que necessita afirmar a sua identidade; e as
culturas atávicas, embora reivindiquem na contemporaneidade sua legitimidade
e sua identidade raiz-única,14 tendem a se crioulizar; ou seja, a ver questionada
essa mesma legitimidade, uma vez que nelas a permanência do ser tende ao
sendo, devido à pressão do processo de crioulização que nos dias atuais se
generalizou na totalidade-terra. Então, contrapondo-se a esse processo, as
culturas atávicas defendem, de forma geralmente dramática e terrível, sua
legitimidade identitária e territorial:

13
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005, p. 90.
14
Raíz única: Deleuze e Guattari, na obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Ed. 34, Rio
de Janeiro, 1996) propõem, do ponto de vista do funcionamento do pensamento, o pensamento
da raiz e o pensamento do rizoma. A raiz única é aquela que mata à sua volta, enquanto o
rizoma é a raiz que vai ao encontro de outras raízes. Glissant estende essa imagem da raiz
única e do rizoma à discussão sobre a identidade.

146
O problema que temos de enfrentar é como mudar o ima-
ginário, a mentalidade e o intelecto das humanidades de
hoje, de tal forma que no interior das culturas atávicas
os conflitos étnicos cessem de ser considerados como se
fossem inexoráveis, e que nos países crioulizados os con-
flitos étnicos e nacionalistas cessem de ser vistos como
necessidades impossíveis de serem evitadas.15

Glissant aponta algumas das características do processo de criouli-


zação das culturas nos nossos dias atuais:
a) O tempo imediato e acelerado no qual acontecem intera-
ções entre as culturas. Ora, a presentificação do tempo, im-
posta pelos avanços tecnológicos e pela visão e práticas mer-
cadológicas, entra em choque com as diversas concepções
de tempo presentes nas culturas não hegemônicas. Seria esse
choque temporal que, segundo o autor, caracterizaria a irrup-
ção dos povos periféricos na modernidade, pois estes vivem
seu país/paisagem em um tempo duradouro que conflita com
essa aceleração do tempo imediato.

b) A consciência que temos das interações culturais. Essa


consciência opera diferentemente de como operava em um
tempo que era apenas duradouro, e no qual a consciência
das transformações culturais ocorridas manifestava-se em
um tempo bem posterior, décadas ou séculos depois. Hoje,
o indivíduo e as comunidades são atravessados por lampejos
de suas transformações que revelam uma consciência aguda,
como se fora uma espécie de estilete, a ponta de um iceberg,
que Glissant caracteriza como “a consciência da consciência”
do movimento do sendo.

c) A imprevisibilidade das culturas resultantes das infinitas


interações, já que o processo de crioulização não se limita
a uma mestiçagem cujas sínteses poderiam ser previstas. A
crioulização, que não se confunde com a mistura de raças – la
politique du sang mêlé, é um processo cultural que descarta toda
e qualquer previsibilidade.

d) A intervalorização. Ela pressupõe a equivalência interna e


externa, em termos de valor, dos elementos culturais coloca-
dos em presença uns dos outros de forma abrupta, imediata.
Isto significa que a comunidade X aquilata seus elementos
15
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005, p.74.

147
culturais e os da cultura do Outro respeitando a igualdade e
a opacidade das culturas, posto que a crioulização não supõe
uma hierarquia de valores.16

Na Neo-América, onde o processo de crioulização implicou a desva-


lorização dos elementos culturais africanos, brotaram movimentos culturais
que lutaram por essa equivalência buscando uma revalorização da herança
africana: o Indigenismo no Haiti, o Renascimento Negro no Harlem, e o
movimento da “Negritude”:
Isso significa que, se nos elementos culturais colocados
em relação, alguns são inferiorizados em relação a outros,
a crioulização não se dá verdadeiramente. Ela se dá, mas
de modo desequilibrado, que deixa a desejar, e de manei-
ra injusta. É por essa razão que em países oriundos do
processo de crioulização, como é o caso do Caribe ou do
Brasil, nos quais os elementos culturais foram colocados
em presença uns dos outros através do modo de povoa-
mento representado pelo tráfico de africanos, os compo-
nentes culturais africanos e negros foram normalmente
inferiorizados. A crioulização se dá, entretanto, também
nesses casos, nessas condições, mas deixa um resíduo
amargo, incontrolável.17

O critério de equivalência impoe-se, portanto, como fundamental no


processo de crioulização visto que as culturas ocidentais, culturas que tendem ao
Uno e ao Mesmo, tenderam, como corolário, a apenas a re-conhecer os elementos
da cultura do Outro, isto é, a remetê-los à transparência de sua própria essência
para conceituá-los positiva ou negativamente; ou, simplesmente negaram-lhes
reconhecimento e, consequentemente, o direito de serem preservados.
Finalizando esta nossa abordagem sobre o processo de crioulização
das culturas e a estética barroca, ressaltamos que Glissant propõe que se qui-
sermos captar o que se passa em nossos dias no Todo-o-Mundo, conforme
citação abaixo, necessitamos entender essa trama barroca de convergências, e
considerar dois dados importantes: que a maioria das culturas que hoje confluem
para a totalidade terra realizada - graças à luta dos povos e das minorias, aos
avanços tecnológicos, e à globalização - não tiveram tempo de elaborar o “seu”
próprio classicismo antes dessa convergência, ou desse conflito planetário; e
16
Glissant, Introdução a uma poética da diversidade, 2005.
17
Idem, ibidem, p. 21.

148
que muitas delas tiveram contato com o classicismo através da imposição e
opressão das culturas europeias particulares:
Todo-o-Mundo: a totalidade realizada dos dados conhe-
cidos e desconhecidos dos nossos universos, o sentimento
de que eles nos ocupam infinitamente, como sobre um
palco que nossas posturas compartilham e onde cresce-
mos sem limites. Também a certeza de que o mais ínfimo
desses componentes nos é insubstituível.18

Referências
GLISSANT, Édouard. Poétique de la relation. Paris: Gallimard, 1990.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enil-
ce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora (MG): Editora UFJF, 2005.
GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor – La cohée du Lamentin. Tradu-
ção de Enilce do Carmo Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora (MG):
Editora UFJF, 2014.
LUDWIG, Ralph. Écrire la parole de nuit: la nouvelle littérature antillaise. Paris:
Gallimard, 1994.

18
Glissant, O pensamento do tremor, 2014, p. 91.
149
Silenciamentos e discursos da conquista: Henry
Bates e expedições científicas na Amazônia do
século XIX

Raquel Alves Ishii

Antes que este texto possa ser alvo de críticas que o classifiquem como
“amazonialista”, no sentido atribuído por Gerson Albuquerque, devo proceder
às devidas ressalvas sobre o conceito de “Amazônia”. A “Amazônia”, para
mim, diferentemente da Amazônia de Henry Bates, é entendida como uma
construção discursiva e não um dado à priori, uma “região” ou “localidade”
cuja existência se deu de maneira natural, sem os direcionamentos políticos
que marcam os discursos hegemônicos que inventam e reinventam espaços a
serem ou não conquistados. Assim, na ausência de um termo mais adequado,
a referência à palavra/conceito “Amazônia”, neste texto, se dará de forma as-
peada, com o objetivo de marcar esta compreensão na própria palavra. Quando
muito, a palavra “Amazônia” poderá vir com a marca do plural “amazônias”,
sem letra maiúscula, na tentativa de atribuir-lhe o sentido da pluralidade dos
modos de vidas e os trânsitos culturais nela existentes em oposição ao enalte-
cimento de uma singularidade cultural, rodeada de peculiaridades, típica de
culturas atávicas, e que se constitui, a meu ver, como uma espécie de convite
para o mundo europeu ocidental implantar o projeto colonial, a pretexto de
arrancar das “trevas” essas “civilizações primitivas”.

151
Feitas essas ressalvas, me proponho agora a analisar os silenciamentos
e os discursos da conquista presentes na narrativa do naturalista inglês Henry
Walter Bates (1825-1982), publicada no Brasil pela Editora Itatiaia e Edusp,
no ano de 1979, intitulada “Um naturalista no Rio Amazonas”. No percurso
desta análise, mantenho diálogos com as leituras e reflexões desenvolvidas
por Hideraldo Costa, João Pacheco de Oliveira Filho, Mary Louise Pratt, Eni
Orlandi, Edward Said e Paul Gilroy.
Pretendo apresentar, ainda que brevemente, um estudo no campo dos
gêneros do discurso, a partir da literatura de viagem, compreendendo seu con-
texto de produção, seu tema, propósito comunicativo, papel dos interlocutores,
suporte, meios de transmissão, em outras palavras, um estudo que busca mais
do que constatar o quê e como se escreve, compreender as relações intrínsecas,
nem sempre evidentes, entre quem escreve, para quem escreve e quando se
escreve. Para tanto, dividi esta reflexão em duas partes que apresento a seguir.

Etnocentrismo e englishness: quem e quando escreve


A narrativa de Bates, como é característico dos relatos de viagem, é
predominantemente descritiva de aspectos da paisagem, fauna, flora, clima
e dos percursos do viajante desde seu embarque em Liverpool em 26 de abril
de 1848, até seu último dia em solo paraense, em 2 de junho de 1859. Ele e o
conhecido naturalista, também inglês, Alfred Russell Wallace, que compartilha
do mérito sobre o desenvolvimento da teoria da evolução, paralelamente a
Charles Darwin, viajaram juntos para o Brasil e, aos 26 dias do mês de maio,
estavam em Salinas, última escala para os navios em direção ao Pará. Aporta-
ram em Belém no dia 28 de maio de 1848 e, após aí residirem por cerca de um
ano e meio, Wallace seguiu rumo ao Baixo Amazonas e Bates deu início à sua
longa viagem em direção ao Alto Amazonas, atingindo a fronteira com o Peru
por meio do Rio Javari. Sobre a formação ou pré-requisitos para se tornarem
viajantes naturalistas, Bates e Wallace são classificados como pertencentes a
um determinado grupo de “homens de ciência”, com “formação diversificada,
mas que demonstram algum interesse pela história natural”, pois ambos
tiveram uma formação dirigida para o aprendizado de
uma determinada profissão com a qual, ganhavam o pró-
prio sustento. Wallace formou-se em engenharia, mas
logo em seguida foi ser mestre-escola em um colégio pú-
blico. Bates, por sua vez, depois de uma instrução básica
foi encaminhado por seu pai para a prática do comércio.

152
Desde que Wallace se instalou em Leicester (1844), am-
bos tiveram muito contato, desenvolvendo acentuado in-
teresse pelo estudo das ciências naturais. Em, 1847, após
a leitura de um livro de viagem sobre a Amazônia, Walla-
ce e Bates planejaram viajar para a região amazônica para
estudar em detalhe a sua fauna (sobre a qual muito pouco
então se sabia), pensando em pagar os custos da viagem
com a venda de duplicatas das coleções que por lá consti-
tuíssem. No ano seguinte, antes de embarcar para o Pará,
despenderam três meses em Londres, estudando as cole-
ções do Museu de História Natural e do Jardim Botânico
de Kew, fazendo inúmeras consultas a bibliotecas em bus-
ca de informações variadas sobre o Amazonas.1

Onze anos é o tempo que Bates dispensou aos rios e cidades da


“Amazônia” brasileira. Nesse tempo, compôs numerosas coleções de insetos
e levantou detalhes minuciosos a respeito de plantas e mamíferos com os quais
se deparou, mas também detalhou aspectos culturais das populações com as
quais manteve contatos. Em seu primeiro passeio em terras “estrangeiras”,
relatou a vida na cidade de Belém da seguinte maneira:
As impressões que tive nesse primeiro passeio jamais se
apagarão completamente de minha lembrança. Passa-
mos primeiramente por algumas ruas próximas do porto,
margeadas por prédios altos e sombrios semelhando con-
ventos, pelas quais transitavam ociosamente alguns sol-
dados de uniformes rotos, com seus mosquetes apoiados
displicentemente no braço, bem como sacerdotes, mulhe-
res negras com potes d’água na cabeça e índias de ar me-
lancólico, carregando os filhos nus escanchados sobre os
quadris.2

Durante sua narrativa, pode-se dizer que as impressões do viajante são


marcadas pelo olhar que classifica, enquadra, descreve e analisa o que vê. Seus
olhos possuem lentes que filtram o olhar. Seu filtro é o paradigma quantitativo
das Ciências Naturais que descreve sujeitos e relações entre sujeitos como se
fossem objetos, animais e plantas, indissociáveis da paisagem que ele pinta com
sua escrita. Ao lado da descrição de uma cidade que se vislumbra como aban-
donada e “sombria”, estão soldados de farda rota, sacerdotes, mulheres negras

1
Mello Leitão, 1944, p. 07, citado por Oliveira, Elementos para uma sociologia dos viajantes,
1977, pp. 116-117.
2
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, p. 12.

153
com potes d’água na cabeça e índias de ar melancólico. Homens e mulheres
que não terão nome nem voz em sua narrativa, cabendo a eles apenas serem
descritos ou narrados pelo viajante. A narrativa de Bates não será, portanto,
uma narrativa escrita a partir da história e voz dos locais ou, dito de outro
modo, como nos lembra Eni Orlandi,3 os locais não falarão, serão falados.
Assim, a paisagem inicial de Belém, da qual Henry Bates dificilmente
se esquecerá é, recorrentemente, tecida em seu relato de viagem. Os negros,
sejam eles escravos ou não, dificilmente possuem nome; os índios são descritos,
incansavelmente, como apáticos e melancólicos. A moldura com a qual os
personagens do viajante são confinados é enclausuradora de suas identidades.
Bates assim procede com seus sujeitos, por proceder de igual modo com os
aspectos e seres do mundo natural, como o clima e a flora da região:
Na hora mais quente do dia – cerca de duas horas da tar-
de – a temperatura geralmente oscila entre 31° e 34° Cel-
sius, mas por outro lado, nunca desce abaixo de 22°, de
forma que, de um modo geral, prevalece uma temperatura
alta, sendo que a média anual é de 27° Celsius. A floresta
é praticamente igual em todas as terras baixas, e por con-
seguinte uma única descrição servirá para todas.4

Generalizações e mais generalizações a respeito de homens, mulheres


e crianças das muitas “Amazônias” que encontrou é o que o naturalista viajante
promoveu, a partir de superficiais observações e primeiros contatos, quando
sequer entendia ou se fazia entender em língua portuguesa ou na língua geral,
amplamente utilizada por grupos indígenas.
A supervalorização da natureza em detrimento das práticas culturais
produzidas pelos sujeitos que ali residiam, produzindo na paisagem contrastes
observados em sua narrativa, marcam as descrições que estabeleceram uma
nova hierarquia entre o “homem do novo mundo” e o mundo natural. Nessa
pirâmide, a natureza está no topo e os locais encontram-se na base da relação:
Grupos de pessoas tomavam a fresca à porta de suas ca-
sas – gente cuja pele tinha todas as tonalidades, europeia,
negra e indígena, mas era principalmente uma confusa
mistura das três raças. Entre eles viam-se belas mulheres
desleixadamente trajadas, descalças ou de chinelos, mas

3
Orlandi, Terra à vista! Discurso do confronto, 1990, p. 50.
4
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, pp. 22 e 27.

154
usando brincos caprichosamente trabalhados e colares
de enormes contas de ouro. Seus olhos eras negros e ex-
pressivos e elas exibiam uma massa de cabelos espessos
e negros que chamava a atenção. Talvez fosse uma fan-
tasia de minha parte, mas achei que aquela mistura de
esqualidez, luxo e beleza daquelas mulheres se harmoni-
zava perfeitamente com o resto do cenário, de tal forma
era surpreendente aquela associação de riquezas naturais
com a miséria humana.
As casas, em sua maioria, achavam-se em estado bastante
precário, e por toda parte se viam sinais de indolência e
desleixo. As estacas de madeira que cercávam os quintais,
invadidos pelo mato, jaziam quebradas pelo chão, e ma-
gros porcos, cabritos e galinhas entravam e saíam pelos
buracos na cerca. No meio de tudo isso, porém, e com-
pensando todas as falhas, ressaltava a esplendorosa beleza
da vegetação.5

O que Bates considera a “miséria humana” são nada menos que as


práticas culturais de homens e mulheres marcados pela relação assimétrica
de culturas letradas e orais assentadas em um forte projeto colonial, em uma
modernidade inconclusa. As paisagens naturais, por sua vez, são alvo de
constantes exaltações na pena de Bates, mesmo quando admite que haviam
expectativas não correspondidas com tudo que havia lido sobre a “região”
desde à Inglaterra.
A região é livre de endemias, tendo sido em outros tem-
pos muito freqüentada por americanos inválidos, que
vinham de Nova York e Massachusetts. A temperatura
amena, o permanente verdor da vegetação, a frescura da
estação da seca, quando o calor do sol é abrandado pelas
fortes brisas marinhas, bem como a moderação das chu-
vas periódicas tornam o seu clima um dos mais privilegia-
dos da face da terra.6

Condições climáticas favoráveis e infinidade de recursos naturais,


tornam os escritos do viajante um diagnóstico a respeito da salubridade do
local, não mais com a visão edênica que marcam os relatos de viagem do século
XVI, mas a visão científica de quem esteve no local para comprovar o fato. A

5
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, pp. 12-13.
6
Ibidem, p. 23.

155
pretexto de uma expedição científica, diagnósticos como esses contribuíam
muito para alimentar pretensões exploratórias de nações estrangeiras, não mais
por limites de terra, mas por recursos naturais que, por sua vez, são ignorados
pelos moradores locais, tal sua “falta de iniciativa” e “desleixo”.
No obituário de H. Bates, seu velho amigo o Sr. W. L. Distant, um
reconhecido entomologista, deu destaque a uma significativa declaração do
viajante referindo-se às belezas naturais da região e seu potencial econômico
nas mãos dos ingleses:
Seu primeiro artigo para o ‘Zoologista’, 1852, foi um ex-
celente relato sobre o Macaco Douroucouli (Aotus trivir-
gatus Humb.), e seu segundo artigo do mesmo ano con-
clui com uma observação sobre a fertilidade das terras do
Alto Amazonas – “Nas mãos dos Anglo-Saxões, um dia,
que rico país poderá se tornar o Brasil”.7

É este o retrato a ser por ele pintado e emoldurado em sua narrativa,


sendo exportado para encher os olhos da Inglaterra e sua sociedade científica.
Bates traduz bem o que Paul Gilroy denomina como Englishness, ou anglicidade,
preocupando-se em delimitar a superioridade inglesa em relação às demais
nacionalidades européias.8 Ao referir-se aos brasileiros, Bates comenta: “Eles
começavam a se libertar gradativamente das ideias retrógradas, e preconcei-
tuosas que haviam herdado de seus ancestrais portugueses, principalmente no
que se referia ao tratamento dado às mulheres”.9
Para Keith Thomas, em “O homem e o mundo natural”, outras
nacionalidades que não a inglesa, eram compreendidas com menor grau de
humanização, como é o caso dos irlandeses. Como reflexo da mudança de
visão entre o mundo natural e o mundo dos homens, ocorrida entre os séculos
XVI e XVIII, promoveu-se na Inglaterra uma separação entre os possuidores
da “essência da humanidade” e os “animais”. Tendo por base essa lógica,
7
No original: His first communication to the ‘Zoologist’, 1852, was an excellent account of the
Douroucouli Monkey (Aotus trivirgatus Humb.), and his second paper of the same year concludes with a
remark on the fertility of the lands of the Upper Amazons – “In the hands of the Anglo-Saxons, at some
future day, what a wealthy country it may become!” (Obituary: Henry Walter Bates, 1892, p. 250).
8
Sobre a negação da presença do elemento cultural negro na constituição da identidade inglesa,
Gilroy desenvolve um argumento que ele entende como sendo o problema da nacionalidade
inglesa e pontua que tanto artistas ingleses como William Turner e John Ruskin, quanto
intelectuais da chamada nova esquerda reafirmaram o “nacionalismo e etnocentrismo [inglês]
negando à anglicidade imaginária e inventada, absolutamente quaisquer referentes externos. A
Inglaterra dá à luz incessantemente a si mesma, aparentemente a partir da cabeça de Britânia”.
Cf. Gilroy, Atlântico negro, 2001, p. 56.
9
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, p. 25.

156
negros e índios da América eram vistos como sub-humanos ou semi-animais,
de modo que a desumanização desses homens serviria para justificar os maus
tratos e a domesticação atuaria como fornecedora das técnicas para a subordi-
nação social, “freios para mulheres rabugentas; celas, correntes e palhas para
os loucos; cabrestos para mulheres vendidas no leilão do mercado”.10

Silenciamentos e discursos da conquista: o que se escreve


Durante sua estadia no Pará, além de Belém, Bates visitou as cidades
de Cametá, Óbidos, Manaus, Ega e outras que ficavam às margens dos rios
que navegou, sempre acompanhado de tripulação composta por negros e indí-
genas que, além de remadores, eram guias, cozinheiros, carregadores, enfim,
factótuns, ou faz-tudo, a exemplo de Isidoro, um “negro livre” contratado logo
que Bates e Wallace chegaram ao Brasil.
Na visão do viajante, a mestiçagem que predominava na “Amazônia”,
oriunda da mistura entre branco, negro e índio, era um fator interessante a
ser analisado, pensando no fortalecimento da “raça”, analogamente como
ocorre com os animais de variadas espécies. Essa peculiar compreensão de
Bates estava alinhada com as correntes evolucionistas de seu tempo, a respeito
dos indígenas. Sobre essa questão, ganha importância o estudo de Hideraldo
Costa, sobre os viajantes naturalistas da Amazônia no século XIX. Referindo-
se a Bates, Costa afirma:
Ainda que o próprio viajante denunciasse a escravidão
indígena em sua narrativa de viagem, o corolário de suas
conclusões foi legitimar, e iniciar um discurso de justifi-
cativa para o extermínio em marcha, acelerado desde o
século 16, de centenas de nações indígenas, pois nunca se
“adaptariam” inteiramente ao seu habitat.
Assim, o viajante, utilizando-se de um discurso que tinha
como base para sua legitimação a ciência, parece ter en-
contrado a justificativa necessária para iniciar uma práti-
ca discursiva sustentada no discurso da expropriação das
terras dos grupos indígenas. Uma prática de colonização
também desenvolvida em outras partes do mundo.11

O futuro dos indígenas, pois, seria o extermínio “natural”, por ser uma
“raça” fraca, degenerada, que não sobreviveria ao contato com os “caucasianos”,
10
Thomas, O homem e o mundo natural, 1988, p. 54.
11
Costa, Cultura, trabalho e luta social na Amazônia, 1995, p. 53.

157
considerados naturalmente superiores. A mestiçagem se configuraria como
um período de transição entre o primitivo e o civilizado, como uma espécie
de caminho para a melhoria da qualidade da “raça”,12 assim como ocorre
com as saúvas aladas que voam para longe para acasalarem com membros de
colônias distantes garantindo, a sobrevivência da espécie.
Acompanhando o pensamento de John Burke, que classificou o homo
sapiens em seis “variedades”, como nos lembra Mary Pratt, Bates, ao mesmo
tempo que dá conta do extermínio de grupos indígenas inteiros, classifica os
mestiços do Pará em cinco “tipos”:
A província da qual a cidade do Pará é a capital era, à
época a que me refiro, a mais extensa de todo o impé-
rio brasileiro, medindo cerca de 2.300 quilômetros de
extensão, no sentido leste-oeste, por 900 de largura. De-
pois dessa época – ou melhor, em 1853 – ela foi dividida
em duas partes com a separação do Alto-Amazonas, que
passou a formar uma nova província. Anteriormente ela
havia constituído uma capitania da colônia portuguesa,
e primitivamente fora habitada por numerosos índios,
cuja condição variava de acordo com a tribo a que per-
tenciam mas que apresentavam, todos eles, os mesmos
caracteres, semelhantes aos dos peles-vermelhas ameri-
canos mas com algumas modificações causadas por uma
longa permanência na selva equatorial. A maioria dessas
tribos estão agora extintas ou abandonadas à sua sorte,
pelo menos as que povoaram primitivamente as margens
do rio principal, tendo-se misturado os seus descenden-
tes com os imigrantes brancos e negros. [Neste ponto,
em relação à questão étnica, Bates insere uma nota
de rodapé, cujo teor está descrito a seguir]. Os vários
tipos de mestiços que agora constituem provavelmente a
maior parte da população têm, cada um, a sua denomina-
ção própria. Mameluco é o mestiço de índio com branco;
mulato, o de branco com negro; cafuzo, o de índio com
negro; curiboca, o de cafuzo com índio, e xibaro, o de ca-
fuzo com negro. Esses tipos nunca são, entretanto, muito
bem definidos, havendo entre uns e outros todos os mati-
zes de cor possíveis e usando-se as denominações apenas

12
Embora não seja objetivo problematizar o conceito de raça nesse breve artigo, devo mencionar
que compartilho das assertivas de Paul Gilroy que faz oposição ao uso dos conceitos de nação,
raça e etnia como pilares de abordagens nacionalistas e etnicamente absolutas.

158
para classificá-los de um modo geral. O termo crioulo é
aplicado exclusivamente a negros nascidos no País. O ín-
dio civilizado é chamado de tapuia ou caboclo.13
Além da comentada prática de generalizar os povos indígenas da
Amazônia, que reconhece ser composta por numerosos sujeitos, embora
os defina como possuidores das mesmas características, como uma massa
uniforme, sem distinção e limitada, Bates apresenta os “tipos” racializados
que predominam na paisagem amazônica: o mameluco, o mulato, o cafuzo,
o curiboca e o xibaro.
É interessante que, ao atentar para essa classificação ou catalogação,
me vem à lembrança ter tido contato com a mesma, quando estudava a 4ª série
do Ensino Fundamental, momento em que tais “tipos”, com as devidas repre-
sentações em desenhos, eram apresentados como sinônimo de miscigenação
racial. Obviamente, não lembro de ter presenciado qualquer debate no sentido
de discutir os “tipos”, posto que apenas os deveríamos tomar como um dado
natural, uma classificação que buscava apenas estabelecer uma fronteira entre
quem era ou não era branco.
Merece destaque que, em sua narrativa, Bates se aproxime das visões
constantes dos relatos de John Barrow sobre a África Meridional, analisadas por
Mary Pratt, que as denomina de “o espírito britânico de aperfeiçoamento”,14
isto é, aquele que examina as potencialidades de territórios a serem ocupados
e os recursos a serem explorados, além de projetar no tempo, as consequências
positivas das intervenções na paisagem. Imbuído de um “olhar aperfeiçoador”,
Bates colocou em destaque as qualidades da província que visitou ao mesmo
tempo em que descaracteriza o povo que nela vivia:
A província é governada, como todas as outras do impé-
rio, por um Presidente, como suprema autoridade civil.
(...) Os assuntos municipais e locais são resolvidos por
uma assembléia provincial eleita pelo povo. Qualquer vila
ou arraial, em toda a província, também possui seu con-
selho municipal, e nos distritos escassamente povoados
os habitantes elegem um juiz de paz de quatro em quatro
anos para decidir sobre pequenas questões entre vizinhos.
(...) Foi instituído o julgamento por júri, sendo os jurados
escolhidos entre os chefes de família, sem levar em con-
13
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, p. 22.
14
Pratt, Os olhos do império, 1999, p. 115.

159
ta sua raça ou cor. Tive oportunidade de assistir a uma
sessão do júri em que se sentavam lado a lado no banco
dos jurados um mercador branco, um lavrador negro, um
mameluco, um mulato e um índio. De um modo geral, a
constituição brasileira parece combinar acertadamente os
princípios de auto-determinação, nas províncias, e de cen-
tralização, faltando apenas no povo uma adequada dose
de virtude e inteligência para conduzir a nação a uma
grande prosperidade.15

A separação entre paisagem e pessoas, entre a organização política


e jurídica da sociedade, contribui para produzir os contrastes necessários que
justificam uma intervenção cultural. De um lado, um sistema político-admi-
nistrativo que regula “adequadamente” a vida social, de outro, um povo des-
provido de “virtude” e “inteligência” para conduzir a nação à prosperidade:
os naturais do Pará eram muito inferiores ao brasileiro
do Sul em matéria de energia e iniciativa. Sendo bara-
to os víveres e os aluguéis, e poucas as necessidades do
povo – pois eles se contentavam com tipos de alojamentos
e comida que seriam recusados até pela classe indigen-
te da Inglaterra – eles passavam a maior parte do tempo
entregues a desregramentos ou divertimentos fornecidos
gratuitamente pelo governo ou cidadãos mais abastados
da cidade.16

As ausências identificadas no “olhar aperfeiçoador”, como a ausência


de energia e iniciativa, indicam as lacunas a serem preenchidas por aqueles
que possuem as “condições de morais” de elevar à civilização os povos “não
merecedores” da residência em um local tão abundante em riquezas naturais e
promissor do ponto de vista econômico. Para o olhar viajante, não há sentido
passar a maior parte do tempo “entregues a desregramentos ou divertimentos”,
por não condizer com uma civilização que deve almejar o “desenvolvimento
pleno”, aos moldes do império colonial inglês e sua sociedade industrial. O
olhar aperfeiçoador carece de aperfeiçoamento, pois para os locais, despojados
de uma lógica disciplinar do tempo do relógio das sociedades fabris, o uso
de seu tempo é totalmente preenchido das mais variadas práticas culturais
imperceptíveis aos olhos do viajante.
Tanto a expedição de H. Bates quanto a de Wallace “foram finan-
15
Bates, Um naturalista no Rio Amazonas, 1979, p. 23.
16
Ibidem, p. 25.

160
ciadas por fundos privados, viabilizadas economicamente por meio de uma
articulação com o mercado de coleções de História Natural”.17 Assim, como
mencionado anteriormente, o
pagamento dos custos das viagens era feito com a ven-
da de duplicatas e de coleções inteiras, quer fosse para a
grandes museus na Europa, para outros cientistas de vul-
to, ou mesmo para colecionadores de maior porte. (...)
Durante onze anos, ele enviou regularmente coleções
para Londres a fim de serem vendidas e lhe garantirem a
permanência e a continuidade de seus estudos na região
amazônica.18

Bates se configurou como um dos grandes fornecedores das valiosas


coleções que alimentaram o mercado londrino de História Natural, em que
pese o fato de suas vendas não terem resultado a ele nenhuma fortuna. Seu
retorno à Inglaterra coincidiu com a publicação de “A origem das espécies por
meio da seleção natural”, de Charles Darwin, com quem manteve uma relação
amistosa e profícua. A publicação da obra de Bates, cujo editor, John Murray,
fora indicado pelo próprio Darwin, saiu em dois volumes, no ano de 1863. Sua
coleção de besouros e borboletas foi depositada no Museu Britânico e, para
se manter na cidade de Londres, já casado e com duas filhas, Bates aceitou a
indicação para assumir o cargo de Secretário Assistente da Royal Geographical
Society of London – RGS, em 1864.19
Concluo pontuando algumas questões sobre a instituição de pesquisa
que, durante seis anos, acolheu Bates como um de seus ilustres funcionários.
Mesmo considerando que a RGS não tenha assegurado o financiamento de
suas expedições pelos rios da “Amazônia”, não podemos deixar de mencionar
que essa instituição de pesquisa promoveu a “febre exploratória” em “regiões
desconhecidas do globo”, constituindo-se como “a vanguarda da expansão
do Império Britânico”.20 As explorações científicas passaram a ser o principal
foco da sociedade a partir da década de 1860. Foi por indicação de Sir Clemens
Markham, um dos diretores da RGS, que Bates assumiu o cargo na institui-
ção. Por intermédio de Clemens Markham, o botânico Richard Spruce e W.
J. Hooker, diretor do Kew Gardens, os ingleses contrabandearam, em 1860,
17
Costa, Cultura, trabalho e luta social na Amazônia, 1995, p. 36.
18
Oliveira, Elementos para uma sociologia dos viajantes, 1977, p. 107.
19
Ferreira, Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução, 1990.
20
Idem, ibidem, p. 78.

161
a cinchona do Peru para a Malásia, onde desenvolveram
a extração da quinina. (...) Markham e J.D. Hooker
[filho de W. J. Hooker] também estiveram envolvidos no
contrabando de milhares de sementes de Hevea brasiliensis
pelo botânico Henry Wickham, em 1876.21
Episódios como esses nos ajudam a compreender aquilo que Edward
Said enfatiza ao pontuar que “as narrativas desempenham um papel notável
na atividade imperial”22, pois, na condição de narrativas geográficas, tornam-
se narrativas da conquista. A narrativa naturalista, a exemplo da narrativa de
Henry Bates, é incorporada ao discurso imperial, que dela faz uso para propó-
sitos, muitas vezes, sequer imaginados pelo viajante que a concebeu. O mundo
da História Natural de Londres do século XIX, porque regido por relações de
poder e convenções acadêmicas, não foi muito grato à pessoa de Bates (sua
condição de fellow somente foi concedida em 1881),23 mas certamente o império
britânico está em dívidas com o viajante pela valiosa cartografia que o mesmo
forneceu sobre rios e cidades da “Amazônia”, posto que continua a colaborar,
ainda nos dias de hoje, com os silenciamentos e discursos de invenção e con-
quista da “região”. Uma “região” para a qual o projeto imperial “moderno”
previa – e prevê – a permanente exploração da natureza, concomitantemente
à exploração e ao não reconhecimento das práticas e modos de vidas de suas
populações.

Referências
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. “Amazonialismo”. In: ALBUQUER-
QUE, Gerson Rodrigues de e PACHECO, Agenor Sarraf (Orgs.). Waküru: Dicioná-
rio Analítico - I. Rio Branco (AC): Nepan Editora, 2016.
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Trad. Regina Regis Jun-
queira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.
COSTA, Hideraldo Lima da. Cultura, trabalho e luta social na Amazônia: discur-
sos dos viajantes – século 19. Manaus: Editora Valer e Fapeam, 2013.
FERREIRA, Ricardo. Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução. Brasília: Edi-
tora Universidade de Brasília; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1990.
OBITUARY: HENRY WALTER BATES, F. R. S. Proceedings of the Royal Geo-
graphical Society and Monthly Record of Geography. New Monthly Series, v. 14,
n. 4 (Apr. 1892), pp. 245-257. Disponível em: https://goo.gl/ZVpLrR. Acesso em 31

21
Ferreira, Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução, 1990, pp. 78-79.
22
Said, Cultura e imperialismo, 1995, p. 22.
23
Ferreira, Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução, 1990, p. 93.

162
de julho de 2016.
OLIVEIRA, João Pacheco. Elementos para uma sociologia dos viajantes. In: OLI-
VEIRA, João Pacheco. (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio
de Janeiro: Marco Zero Editora, 1987. Disponível em http://goo.gl/19U31Z. Aces-
so em 30 de julho de 2016.
ORLANDI, Eni Puccineli. Terra à Vista! Discurso do confronto: Velho e Novo
Mundo. Campinas: Cortez, Editora da Unicamp, 1990.
PRATT, Mary Louise Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Trad. Jézio Hernani Bonfim Gutierre. São Paulo: Edusc, 1999.
SAID, Edward Wadie. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudança de atitude em relação às
plantas e os animais (1500-1800). Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Cia
das Letras, 1988.

163
Entre silêncios e narrativas: expressões
artísticas em um contexto psiquiátrico
amazônico
Jamila Nascimento Pontes

Espaço, loucura, exclusão e contato


Aquele cheiro... aquele cheiro medicinal, aquele outro cheiro. Mais
cheiros. Estava eu em meu novo ambiente de trabalho, em setembro de 2011.
Pessoas sentadas, olhando para algum lugar. Corpos parados, corpos em
movimento. Alguém me recepcionou: “Muito boas tardes, senhora”. Segui
caminhando e cheguei ao último setor. Era um fim de tarde chuvosa. Alguém
me alertou: “Olha, você não dê confiança. Não deixe que eles te toquem”.
Porém, assim de súbito, puxada pelo punho corri, de uma ponta a outra do
longo corredor. Aquilo iria se repetir no contexto de toda minha experiência
naquele lugar. Correr com os “loucos”, falar em outras línguas, comunicar sem
raciocínio formal, responder um boa noite com o sol escaldando a moleira.
Continuar ouvindo mesmo sem entender. O que importa não é o que se diz,
mas as relações que se criam. Como se fosse um chamado, saí dali tocada dos
cabelos aos pés.
Para mim, é um grande desafio escrever sobre um tema que me leva e
me arrasta para onde fui como uma desatinada: de anja a diaba. Sei que de lá
não saí ilesa. Corri para não apanhar. Nem por isso escapei! Lá recebi patente

165
de General. Assim, pude nomear os meus subordinados e resolver os casos!
Tachada de atrasadinha que não merecia um vale no final do mês. Recebi os
abraços mais acalorados/apavorantes, aqueles que te confortam/sufocam e
te suspendem do chão... Está claro que não segui as orientações: “não deixe
que eles te toquem”.
Existe uma contradição na escrita deste texto, pois, o iniciei sem saber
por onde começar. Me sinto como se estivesse entrando em um ordenamento
onde não consigo me expressar devidamente. “Falar (ou escrever) em nome
próprio significa abandonar a segurança de qualquer posição enunciativa
para se expor na insegurança das próprias palavras, na incerteza dos próprios
pensamentos”.1 Transformar uma experiência em escrita implica em fazer
da escrita uma experiência: o aqui agora é o fenômeno do presente, não um
retorno ao passado.
Gostaria de escrever, mas escrever bem, fazer com que as páginas
transbordem. Mas as palavras me escapam como as tintas e os rabiscos sobre
as telas e papéis daquele “ambiente moribundo”. O que escrevo são minhas
experiências. Trata-se de uma narrativa errática, que “não está interessada
em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um
relatório”.2 Por isso convido o leitor a
abandonar a linguagem dominante da pedagogia, tanto a
linguagem da técnica, do saber e do poder, como a lingua-
gem da crítica, da vontade e da ação, estas linguagens que
não cabem na vida, que estão cheias de formas, que se
ajusta perfeitamente à lógica policial, da biopolítica, lin-
guagem emprestada da economia, da gestão, das ciências
positivas que torna tudo calculável, identificável, mensu-
rável, manipulável.3

Ao ler fragmentos de cartas e dramas, assim como os desenhos e


pinturas, devaneio, debato-me em silêncio, e o que fica em mim não cabe no
papel, não se escreve, porque derramo ou retenho, não se enquadrada na for-
matação destas páginas e acabo caindo no vazio, assim, mesmo sem palavras.
Admito que, em todos os aspectos desta escrita, há nuances ficcionais.

1
Larrosa, Tremores. 2014, p. 70.
2
Benjamin, O narrador, 1993, p. 205.
3
Larrosa, Tremores, 2014, p. 69.

166
“A realidade física parece recuar na medida que atividade simbólica avança”.4
Não ambiciono retratar a realidade bruta vivida naquele contexto, pois não
conseguiria. Hall afirma que a realidade não vem com a linguagem, embora
seja mediada por ela.5 Penso também que, quando adentrava naquele ambiente,
eu já era pura ficção ou quase isso.
Antes de apresentar as pinturas produzidas em um hospital psiquiátrico
na Amazônia brasileira, decidi preambular em outros espaços com as mesmas
conotações, como forma de ouvir gritos de outros desatinados, assim como
as críticas empreendidas por Foucault em relação à loucura, especialmente,
quando esta fica sob o domínio da medicina e justifica a interdição das pessoas.6
Os loucos foram enclausurados não para sua cura ou para a proteção
da sociedade, mas para ratificar um discurso vigente. Assim, eles foram obser-
vados, catalogados, classificados como plantas em estufas, ou melhor, como
animais em cativeiro. A medicina, de acordo com Foucault, tomou grandes
proporções e, de fato, os “loucos” deixaram de circular.7
Experiência singular, Camille Claudel clama e exige sua “liberdade aos
gritos”. Aos “loucos” foram cerceados os vínculos afetivos e os bens culturais.
8

Os “loucos” foram confinados nos barcos, nas penitenciárias e, posteriormen-


te, quando a loucura foi inventada como doença, em hospitais. Os “loucos”
condenados a morte, ainda que simbólica, amontoados em cárceres, ganharam
status de doentes mentais, ficando sob os “cuidados” dos “pais da loucura”:
os médicos psiquiatras. Esse processo histórico, de acordo com Foucault, foi
marcado por terríveis poderes, a partir dos quais “a verdade assume a tarefa
de justificar a interdição da loucura”.9 Outra experiência singular, Sarah Kane
implora: “Por favor, não me corte para descobrir como morri/ Eu te digo como
morri/ Cem de Lofepramina, quarenta e cinco de Zopiclona, vinte e cinco de
Temazepam, e vinte de Melleril”.10 A vigilância sobre o “louco”, ou melhor,
sobre o doente mental, passou a ser inscrita no corpo, com atos e palavras.
Mas o que é, realmente, a loucura? É a forma como determinado sujeito

4
Ostrower, Criatividade e processos de criação, 2013, p. 22.
5
Hall, Da diáspora, 2012.
6
Foucault, História da loucura na idade clássica, 1978.
7
Idem.
8
Wahba, Camille Claudel, 1996, p. 86.
9
Foucault, A ordem do discurso, 2005, p. 20.
10
Kane, Teatro completo, 2007, p. 31.

167
utiliza a linguagem em seu cotidiano? A loucura não está fora da linguagem.
Caracteriza-se como o oposto da razão e ambas são construídas socialmente.
A produção do discurso sobre a loucura é analisada por Michel Foucault, que
não apenas criticou e abalou o pensamento tradicional, mas produziu novas
formas de pensar e interpretar a loucura.
Paula Amarante afirma que tais críticas impulsionaram os primeiros
movimentos da reforma psiquiátrica.11 A discussão ganhou corpo nos espaços
públicos – ruas, becos, praças e lares, forçando uma nova forma de pensar o
“louco” e, não por acaso, dando a ele a palavra – um direito que foi negado
durante séculos: ao invés do tratamento, ou melhor da cura do “louco”, a
sociedade deve aceitá-lo e não mais excluí-lo.
Artaud, em suas cartas, assegura que os loucos são, por excelência,
as vítimas da ditadura social. Uma de suas frases mais conhecidas e citadas
é “não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam
ouvidos”.12 Nessa direção, seguimos nas trilhas abertas pelas palavras de Fou-
cault. Para ele o saber médico sobre a loucura está fundado em um discurso
de ciência que, ao longo dos anos, produziu e continua produzindo um saber/
poder sustentado na força da instituição médica.13
A loucura foi tematizada em Molière, com seu O doente imaginário,
e também em Machado de Assis, com O alienista. Outros artistas fizeram
importantes críticas às formas de tratamento dispensadas pelas instituições
e sociedade em relação ao “louco”. Artaud escreveu inúmeras cartas ao seu
médico, durante os quase dez anos de internação e, mais recentemente, a dra-
maturga americana Sarah Kane, antes de cometer o suicídio em um hospício,
escreveu de forma crua e seca Psicose 4.48. O poder da instituição e do saber
médico sobre seu corpo, sobre sua vida, e porque não sobre sua morte?
A produção do discurso sobre a loucura sempre foi feita por um su-
jeito (físico ou jurídico) dotado da “razão”, produzindo todo um ordenamento
institucional. Os discursos têm suas leis: “que não se pode dizer tudo, que
não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um não
pode falar qualquer coisa”.14 Por intermédio da arte, porém, se sobressaíram
outras narrativas, sobretudo, as narrativas dos “loucos”, que somente eram

11
Amarante, Michel Foucault e a “História da loucura”, 2015.
12
Artaud, Cartas, 2015, p. 15.
13
Foucault, História da loucura na idade clássica, 1978.
14
Foucault, A ordem do discurso, 2005, p. 9.

168
ouvidas no teatro.15
Camille Claudel, em uma carta à sua mãe, afirma: “as casas de loucos
são lugares especialmente feitos para causarem sofrimento, não se pode fazer
nada... estou tão desolada por continuar a viver aqui que não sou mais nem
uma criatura humana”.16 O discurso do “louco” chega até nós por intermédio
da arte; por intermédio da ciência chega o discurso sobre a loucura. As cartas
de Artaud, as de Camille Claudel e os textos de Sarah Kane são gritos silencia-
dos, pois, “desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode
circular como os dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada
nula e não seja acolhida”.17
As cartas, textos dramáticos e o tratado da encenação teatral de Artaud,
que chega até nós como proposta estética, é também um grito para despertar
outras possibilidades: ver o mundo que somente se percebe por intermédio da
arte, momento que os sentidos são aguçados.
Tentando ouvir os “loucos”, não com o intuito de entendê-los e nem
de curá-los, fui trabalhar em um desses ambientes nos quais Nise da Silveira,
em Casa das Palmeiras, possibilita apreender outras formas de relação. Viven-
ciei esse trabalho não como uma experiência estética, mas como experiência/
vivência com sujeitos de “carne e osso”, experimentando o dia-a-dia de uma
instituição psiquiátrica. Em meio a interdições e a seres interditados ouvi outras
vozes e murmúrios silenciados. Embalada pelas primeiras e poucas leituras
de Foucault e afetada pelas experiências poéticas, na prática, vi que a fala do
louco não é ouvida e, se de algum modo ecoa, logo em seguida é esquecida.18
O contrário a esse apagamento da experiência do “louco”, passei a
viver a partir de certa manhã de fevereiro de 2012, dia em que teve início a
oficina de pintura em tela, realizada na internação hospitalar por uma equipe
com pensamentos e ações diferenciadas e, muitas vezes, contrárias às velhas
e tradicionais rotinas. O primeiro dia da oficina consistiu em leituras de ima-
gens. Vários pacientes adentraram o espaço organizado por nós, propositores
da oficina. Bem a frente, estavam dispostos os quadros do artista plástico João
Bosco, coordenador da oficina. Ouvíamos atentamente os “loucos” e, em certo

15
Idem.
16
Wahba, Camille Claudel, 1996, p.15.
17
Foucault, A ordem do discurso, 2005, p. 10.
18
Idem.

169
momento, entre as falas, percebi os olhos atentos de um sujeito surdo que, na
manhã seguinte, foi um dos primeiros a adentrar o espaço para confeccionar
as telas que seriam pintadas. No transcorrer dessa oficina, vivemos intensas e
impactantes manhãs de diálogos entre os tinidos dos instrumentos e os barulhos
externos, de cadeados e grades, enquanto histórias e narrativas eram contadas,
com significativas imagens surgindo nas telas confeccionadas.
Naqueles dias, ficou nítido que o visível pode ser tornar invisível e que
o invisível pode se tornar visível, com as espessuras dos muros sendo diminuí-
das, em especial para o sujeito de olhos atentos que, em certa ocasião, na saída
da sala, sorrindo, confessou-me que tinha esquecido que estava ali, pois, ainda
que permanecesse naquele hospital, acessava outros lugares. A finalização da
oficina culminou em uma exposição dentro da instituição: as telas, expostas
no pátio feminino, local de visita, eram observadas pelos funcionários e fami-
liares com uma atenção que talvez nunca tenha sido dispensada aos “loucos”
daquele lugar, e aos seus sentimentos e perspectivas.
Por intermédio dessas telas e das narrativas tecidas enquanto eram
pintadas, surpreendemos anseios e sonhos. Confinados dentro da instituição,
muitos fizeram “o caminho de volta para casa” e, mesmo aqueles que já tinham
perdido os vínculos com os familiares, amigos e conhecidos, em suas pinturas,
atualizavam e defendiam tais vínculos e seus espaços, talvez, na tentativa de
garantir uma individualidade arrancada e diluída no momento da internação
naquela instituição hospitalar. Sonhos ou desejos individuais de ter um quarto
e guardar seus pertences, por exemplo, passaram a ganhar materialidade sobre
a tela, simbolizados em portas e janelas. Em outras telas, surgiam também
ambientes campestres e celestiais, a exemplo da tela (Figura 1) pintada pelo
sujeito de olhos atentos.

170
Fig. 1 – “Céu”, de autopria do sujeito de olhos atentos, 2012.

O sujeito surdo que participou da oficina estava internado há poucos


meses. Sua pintura foi nomeada, posteriormente, de “Céu”. Lugar que para
alguns remete a Deus, isto é, ao lugar do Senhor. Para ele não é diferente, pois
trata-se do lugar que imaginava estar outros entes queridos, a exemplo de sua
mãe que se tornou protagonista de suas telas, talvez na tentativa de mantê-la
perto ou ainda sancionar a abrupta separação quando da morte da mesma.
Soube que sempre lhe pouparam de notícias tristes e fortes emoções.
Assim, os detalhes da morte de sua mãe lhe foram ocultados. Sabia apenas que
tinha sido um acidente de carro, mas não foi permitido que ele participasse
do ritual de sepultamento. Disseram-lhe: “foi morar no céu”. Com efeito, a
referência ao céu era comum, pois no início da internação, que se deu por
ordem judicial, suas conversas comigo giravam em torno da mãe, da avó e do
avô materno que, segundo ele, moravam “lá em cima” e apontava o céu, para
onde dizia querer ir nos momentos mais críticos da internação. O céu repre-
sentava o desejo do encontro, ainda que fosse por intermédio da morte, já que
eles, os mortos, não voltariam nunca, mas, um dia, os bondosos se juntariam
a eles naquele lugar de Deus.
Em meio a essas questões, não podia deixar de lembrar que antigas
e abomináveis formas de exclusão, como o encarceramento do “louco”, ainda
eram e são práticas comuns. A exclusão e a falta de comunicação entre médi-
co e paciente entra em foco no último texto da Sarah Kane que, assim como
outros artistas, grita através da arte sua experiência e sua dor.

171
Completa minha humilhação quando tremo sem razão e
tropeço nas palavras e não consigo dizer nada sobre mi-
nha doença. Estou trancada até a morte pela suave voz
da razão de um psiquiatra que me diz que existe uma re-
alidade objetiva onde meu corpo e minha mente são uma
só.19

A palavra que liberta é a mesma que aprisiona. O discurso tem seu


ritual, coloca cada coisa em lugares previamente definidos. Contudo, a arte o
subverte. A linguagem pode delirar, livrar-se dos trilhos, seja na prosa, verso,
nas cores, formas, linhas, sons e ainda no palco. Fora do contexto da arte, na
realidade bruta da vida, porém, isso é praticamente impossível. Nesta, o pen-
samento pode até delirar, mas não a palavra e muito menos o corpo, porque
o gesto, assim como a palavra, é vigiado. Exemplo disso pode ser encontrado
em certo prontuário que diz: “A Sra. Claudel está calma. Manifesta-se sempre
o desejo de aproximar-se de Paris e de sua família. Sua saúde física é boa”.20
É por intermédio da linguagem que o sujeito é diagnosticado, medicado, ob-
servado e classificado, em especial depois do século XIX.
O saber/poder médico tem autoridade para “limpar” a sociedade, as
cidades “modernas” de diversos problemas sociais: “prostitutas”, “pobres”,
“vagabundos”, “libertinos”, “ladrões”, “andarilhos”, “assassinos”, “leprosos”,
“deficientes” e “loucos” ou “sensíveis”. Estes, por não aprenderem a controlar
suas emoções ou por não se fazerem entender. Existe uma fronteira secreta
entre a “loucura” e a “lucidez” que não tem espaço na produção do discurso
sobre a loucura. Talvez não seja na psiquiatria, nem na antipsiquiatria, mas no
ínterim em que a ciência precisa silenciar para ouvir os gritos silenciados dos
“loucos” ao invés da voz altiva e cega que perdura até os dias atuais. Então,
“é preciso aceitar todas as deformações que nossa observação retrospectiva
impõe. Queremos crer que é por havermos conhecido mal a natureza da lou-
cura, permanecendo cegos a seus signos positivos, que lhe foram aplicadas as
formas mais gerais e mais diversas de internamento”.21

19
Kane, Teatro completo, 2007, p. 8.
20
Wahba, Camille Claudel, 1996, p. 69.
21
Foucault, História da loucura na idade clássica, 1978, p. 121.

172
Fig. 2 – “Autorretrato”, de autoria do sujeito de Olhos Atentos, 2012

Quando estivermos preparados para rever as formas com que foram


produzidos os discursos sobre o “louco” e enxergarmos outras possibilidades,
talvez possamos ouvir sua voz não apenas no domínio da razão científica e da
desrazão do “louco”, mas no agenciamento, nas malhas tecidas em diferentes
espaços. Nise da Silveira, por exemplo, resistiu aos violentos métodos tradicio-
nais e não aplicou os choques elétricos, práticas comuns no Brasil e em outras
partes do mundo. Em contrapartida, empreendeu outras formas de relação.
Artaud denunciou e descreveu o uso de eletrochoques com o conhecimento
de quem passou por essa experiência:
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me
revoltar. Essa medicina chama-se eletrochoque, consiste
em meter o paciente num banho de eletricidade fulminá
-lo e pô-lo bem esfolado a nu e expor-lhe o corpo tanto
externo como interno à passagem de uma corrente que
vem do lugar onde não se está nem deveria estar para lá
estar. O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam
sei lá como, que deixa o corpo, o corpo sonâmbulo inter-
no, estacionário para ficar sob a alçada da lei arbitrária do
ser, em estado de morte por paragem do coração.22

A dramaturga Sarah Kane destaca outros procedimentos comuns:

22
Artaud, Cartas. 2015, p. 13.

173
“Tudo bem, vamos lá, vamos às drogas, vamos para a lobotomia química,
vamos desligar as funções mais altas do meu cérebro e talvez eu me torne um
pouco mais fodidamente capaz de viver”.23 Nise da Silveira, de acordo com
Dias,24 após se recusar a realizar tais práticas, optou por outra forma de trata-
mento, destacando-se as práticas artísticas, uma vez que no fazer artístico “o
sujeito, tanto nas relações com o inconsciente como nas relações com o outro,
põe em jogo a ficção e a narrativa de si mesmo”.25
Na experiência com a oficina de pintura em tela que realizamos,
o sujeito surdo se reelaborava entre silêncios e rabiscos, paginava inúmeras
revistas para se auto narrar e “em vez de substituir a realidade, é a realidade;
é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articu-
larmos, em nós e perante nós, em níveis de consciência mais elevados e mais
complexo. Somos, nós, a realidade nova”.26
Aos poucos, por intermédio das imagens traçadas em papéis e telas,
manipulando pincéis, lápis, borracha e giz de cera, o sujeito se elaborava, se
auto narrava por meio das imagens. Muitas vezes, quando me entregava sua
pintura ou a deixava com alguém, acrescentava algo em gesto ou apenas dei-
xava seus “fardos em nossas mãos”. E assim se afastava, deixando os braços
amolecerem ao longo do corpo. Semelhante aos desenhos que nos entregava
(figura 3).

Fig. 3. Sem título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012.

Às vezes é “preciso partir do nível não verbal com aquele que se


acha mergulhado na profundeza do inconsciente, isto é, no mundo arcaico de
23
Kane, Teatro completo, 2015, p. 14.
24
Dias, Arte, loucura e ciência no Brasil, 2003.
25
Barbosa, Processo civilizatório e reconstrução social através da Arte, 2001, p. 3.
26
Ostrower, Criatividade e processos de criação, 2013, p. 28.

174
pensamentos, emoções e impulsos fora do alcance das elaborações da razão
e da palavra”.27 O sujeito surdo de olhos atentos tinha dificuldade de criar a
relação e uma das barreiras era a comunicação verbal. Quando conversava,
não conseguia transitar na temporalidade: ano, mês, semana, dia, além de não
conseguir nomear as coisas. Esbarrava no transitar das palavras, mesmo quando
dialogava diretamente comigo, fluente na Língua Brasileira de Sinais – Libras.
A relação confiante se estabeleceu com a equipe à medida que incor-
porava, de alguma forma, uma língua e uma forma diferente de materializar seu
pensar, de dizer as coisas no corpo e com o corpo – do movimento à inércia.
Aos poucos, ele criou vínculo e transitava melhor dentro e fora do hospital:
a volta à realidade depende, antes de tudo, do relacionamento confiante com
alguém, como afirmou Silveira.
Ao observar as imagens (figuras 2 e 3), alguns traços são recorrentes,
a exemplo dos traços semelhantes aos da máscara da tragédia: sobrancelhas,
boca e olhos recaídos. O que me remente ao estado de sofrimento e tristeza
presentes na figura 2. A disposição do prédio inclinado sobre ele é ressaltada
pelas pernas surgindo do pescoço (garganta) de onde sai o grito. As pernas
que saem do pescoço são, além do grito, a possibilidade de correr e livrar-se do
lugar de isolamento, confinamento, abandono; de correr para junto dos seus.
A ideia de movimento se repete na figura 3. Os dedos do pés e a mão
apoiando o queixo remete à espera, à inquietação de estar ali. O desejo de
fugir me era confessado com frequência, até mesmo os planos. As imagens são
parte daquilo que somos, a existência se desdobra em um rolo de filme.28 A
narrativa que ele atualiza antecede seu nascimento, como se observa na figura
4. A imagem de sua mãe grávida se apresenta continuamente.

27
Silveira, O mundo das imagens, 2012, p. 3.
28
Manguel, Lendo imagens, 2001.

175
Fig. 4. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

A medida que observava e lia as imagens que ele me entregava, en-


tendia melhor sua trajetória, colando os pedaços sem a pretensão de narrar
a “realidade”, mas mantendo, de certa forma, uma sequência. Certo dia,
após a visita, mostrei para a irmã dele as imagens. Ali, sobre a grande mesa
do auditório, ela reconhecia os espaços e as coisas que ele gostava. Quando
percebeu a quantidade de imagens de uma mulher grávida se estabeleceu um
longo silêncio entre nós duas. Depois acrescentou que sua mãe ficava grávida
todos os anos. Mas algo me chamava a atenção: a criança que aparecia no colo
(figura 5), sendo acolhida e acalentada, era sempre a mesma.

176
Fig. 5. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

Essa imagem se manifestava sempre e sempre. Outra coisa também


me chamou a atenção: a simbiose entre mãe e filho. Em nenhum momento
aparecem outras crianças junto à mãe, nem mesmo os objetos ou utensílios
domésticos, apenas o que afaga a relação: as mantas. O que torna a relação
mais íntima, na figura 5, são os olhos fechados, além da força de tração que se
exerce entre um e outro. A cabeça dela está inclinada para baixo e a da criança
para cima, o que aumenta a força entre os corpos – pele a pele – em especial
nas faces. O lado que toca o rosto da criança foi alongado, o que aumenta
a extensão do contato. Isso também se repete na figura 6, em que a força de
tração aumenta pela horizontalidade.

177
Fig. 6. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

Na imagem da figura 6 há uma diluição dos traços entre mãe e


filho, ao contrário dos traços dos contornos externos. A cabeça do filho está
completamente apoiada nos seios, achatando-os e, à medida que os braços da
mãe se erguem para sustentá-lo, um dos braços dele relaxa e espalha-se por
completo sobre o corpo da mãe. No pano de fundo: acima e atrás, segue o
silêncio, representado no branco, conforme Manguel, como se fosse o infinito.
Nada mais a dizer, nada mais a narrar, apenas os dois em cena.
A simbiose e os traços fortes são mais evidentes na figura 7. Nesta,
apenas as cores contornam os corpos. Não há separação ou traços entre mãe
e filho. É como se ele ainda estivesse no útero materno. As formas do filho
cabem nas formas da mãe, ao contrário da imagem em que ele aparece ao lado
do pai, pois, além dos traços fortes dos contornos, há ainda um campo vazado
entre ambos, o que aumenta a distância e, enfim, a separação. 2IR EMBORA
OLHAR NÃO. Ao contrário do que ele fez na imagem (figura 7).

Fig. 7. “Separação”, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

Esta imagem da figura 7 propiciou-nos longa conversa em uma tarde

178
de chuva, momento em que a maioria dos pacientes estava dormindo. Já perto
de ser liberado do hospital, ele me chamou para conversar e a imagem foi o
ponto de partida. Ali, com vários desenhos espalhados sobre a mesa do setor
de terapia ocupacional, ele narrou sua história: dor e sofrimento, não mais
por estar ali, como geralmente fazia, mas destacando os fatos marcantes que
antecederam sua chegada ao hospital. A separação de seus pais: o sofrimento
da mãe e a distância do pai.
Ali, em sua presença, compartilhei de uma memória que se atuali-
zava em língua de sinais, com palavras, imagens e gestos ocupando espaço
na trama urdida em desafio ao esquecimento e às interdições. Narrou seus
percursos com uma riqueza inexprimível, apreendida na instantaneidade da
presença, com longos momentos de silêncio que me apavoravam. Em outros
momentos, explosões de gestos, movimentos, ações e emoções. Contudo, por
uma questão de ética e de confiança que se criou ao longo do tempo, aquela
conversa permanece onde parou, naquela sala ao som da chuva e de outras
vozes daquele “espaço moribundo”.
A imagem da figura 8 chegou até mim após essa conversa no setor
de Terapia Ocupacional. Por seu intermédio, o sujeito de olhos atentos, narra
o início de sua chegada ao hospital. No recorte da imagem, observa-se o po-
der dos corpos sobre os corpos. Em poucas palavras desabafou: “EU FICAR
CHÃO AMIG@ PAREDE. 2s ARRASTAD@1s MORAR AQUI. MEU@
AMIG@ SABER-NÃO, NADA!”

Fig. 8, Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

Ao chegar no hospício, o sujeito passa a ser observado, vigiado e


controlado. Sobre ele recaem “os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos
e, em parte também, políticos [que] não podem ser dissociados desta prática

179
de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo,
propriedades singulares e papéis preestabelecidos”.29 Nesse tipo de instituição
hospitalar, os papéis se firmam e se definem dentro de uma lógica estabelecida
ao longo dos tempos. Os poderes mais terríveis se insinuam às vezes discre-
tamente, outras vezes nem tanto. Contudo, a vigilância também é prática dos
internos: o buraco da fechadura torna-se uma janela.
O olhar do sujeito de olhos atentos foi transformando em cores, tra-
ços e linhas tudo o que via ou imaginava. Para quem conhece o espaço e as
pessoas, é realmente fácil identificar a situação. A “realidade” trazida para a
pintura ganha outras cores. Ao adentrar a enfermaria feminina, geralmente,
encontramos uma mulher. Uma mulher que fica sentada, grande parte do
tempo, nessa posição em que foi capturada por ele (figura 9). Flagrar o olhar,
os detalhes, além das pregas da saia e das silhuetas do corpo e o corte de ca-
belo é poetizar o espaço de tristeza em que vivem os internos. As paredes são
gastas e sem cores, ao contrário da imagem.

Fig. 9. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

Há quem se engane. Nesse hospital o tratamento não se resume a


muro e medicamento. É um lugar também de encontro: olhares, paqueras,
amizades e amores. Inúmeras são as paixões que aí transbordam. Nas vezes
que me solicitaram para escrever recados e cartas de amor, presenciei inúme-
ros afetos: sentimentos e sensualidades. Sensualidades que ganham cores nas
obras do sujeito de olhos atentos, tornando-se, inclusive, seu ponto central;
algumas mais românticas outras mais picantes. Estas fizeram parte da expo-
29
Foucault, A ordem do discurso, 2005, p. 39.

180
sição permanente “O ser da arte”, do Projeto Arte de Ser, coordenado por
Fabiano Carvalho.

Fig. 10. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

A alegria de sair, comer pipoca e ir ao cinema também ganhou cores


e foi transfigurada para o papel, além das narrativas que me eram contadas
em Libras, após cada passeio. À medida que o tempo passava, aumentava o
vocabulário, tanto o meu quanto o dele, graças ao contato estabelecido com o
Centro de Apoio ao Surdo (CAS), órgão que deu assistência, principalmente,
nas consultas de perícia médica.
Pouco tempo antes de ser liberado, o sujeito se comunicava com mais
fluência, passando a usar mais as cores e a criar as imagens a partir do cotidiano.
No início, geralmente copiava de revistas tal qual, depois passou a incorporar
outros elementos e a criar a partir das próprias experiências no cotidiano do
hospital, inclusive as práticas institucionais, desde a administração de remédios
às práticas recreativas e terapêuticas. Como segue na imagem da Figura 11.

181
Fig. 11. Sem Título, autoria do sujeito de olhos atentos, 2012

A sensação de trazer essa experiência para a escrita é chegar aqui


de “mãos vazias” e completamente sem saber o que dizer. Talvez a noção de
experiência me ajude a continuar a falar/escrever, já que a experiência é o que
nos toca e para algo nos tocar e acontecer é preciso um gesto de interrupção.30
Posso afirmar que nunca imaginei essa interrupção, pelo contrário. Mas, ao me
deparar naquele espaço com os sujeitos “loucos”, nada soube fazer. Tive que
me desnudar de tudo o que sabia, de todas as leituras, de tudo o que me foi
atribuído a fazer enquanto profissional da educadora física ou mesmo como
propositora de artes. Então, foi um
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demora-se
nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, sus-
pender a vontade, suspender o automatismo da ação, cul-
tivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvido.31

Jamais fui uma profissional, uma técnica, uma profissional da edu-


cadora física, ou ainda um propositora de artes. Antes de tudo, fui alguém que
não sabia o que fazer, o que dizer, como pensar, como me aproximar. Mas algo
foi trazido até mim e eu estava lá desprotegida do saber, do poder, ou melhor
dos “terríveis poderes”,32 não porque não quisesse, mas porque realmente não
sabia. Para mim, era um terreno nunca pisado. Mesmo se eu o pisasse, no dia
30
Larrosa, Tremores, 2014.
31
Idem, ibidem, p. 25.
32
Foucault, A ordem do discurso, 2005.

182
seguinte deveria pisar diferente, de outra forma.
Sei também que é necessário desconfiar desta escrita, porque ela não
retrata o reino da ciência (razão), nem mesmo da arte, mas sim de minhas
experiências. E sendo experiência é sempre “impura, confusa, demasiado li-
gada ao tempo, à fugacidade e à mutabilidade do tempo, demasiado ligada a
situações concretas, particulares, contextuais, demasiadamente ligada ao nosso
corpo, às nossas paixões”.33 Posso dizer que minha experiência está ligada à
experiência do outro, no abrir das portas, no ver e ouvir pela janela ou ver e
ouvir por trás da janela.
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só uma janela fechada, é todo mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o se ver quando se abre a janela.34

Eis que, de repente, ouve-se por trás da janela de ferro: “Tem um bom-
bom aí? Eii! hoje vou fugir!” Ou, então, simplesmente o som de uma canção.
Ou ainda um desenho entre as brechas. E ali, por trás e/ou entre as brechas da
janela, entre sorrisos e outras coisas mais, termina mais um dia de trabalho e
logo se tem o aconchego do lar. E eles ficam lá, onde se exercem os “terríveis
poderes”, mas, também um lugar de vida, descobertas e acolhimentos; lugar
de esperanças, desejos, namoros, olhares, enfim de distintas relações. Nunca
fui tão tocada, tão perdida e tão encontrada.

Referências
AMARANTE, Paulo. Michel Foucault e a “História da loucura”: 50 anos trans-
formando a história da psiquiatria. In Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. v. 3.
Florianópolis, 1984.
ARTAUD, Antonin. Cartas. Disponível em: https://goo.gl/YmAL1R. Acesso em
10/01/2015.
­­­­ARTAUD, Antonin. Teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo:

33
Larrosa, Tremores, 2014, p. 39.
34
Pessoa, Alberto Caeiro, 2008, p. 159.

183
Martins Fontes, 1999.
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­BARBOSA, Ana Mae. Processo Civilizatório e reconstrução social através da
Arte. Disponível em: https://goo.gl/sBUXcV. Acesso em: 01 out. 2012.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
DIAS, Paula Barros. Arte, loucura e ciência no Brasil: As Origens do Museu de
Imagens do Inconsciente. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro,
2003.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. Tradução de José Tei-
xeira Coelho Netto. 1. ed., São Paulo: Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 5.
ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida
Sampaio, São Paulo, 2005.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Ade-
laine La Guardia Resende e outros. Belo Horizonte (MG): Editora da UFMG, 2008.
KANE, Sarah. Teatro completo. Tradução Pedro Marques. São Paulo: Campo das
Letras, 2007.
KOJIMA, Catarina Kiguti. Libras: Língua Brasileira de Sinais – a imagem do pensa-
mento. São Paulo: Editora Escala, 2008.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução Cristina Nunes e
João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte (MG): Autentica, 2014.
MANGUEL, Albert. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. Tradução de
Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg e Claudia Strauch. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 29. ed., Petrópolis (RJ):
Vozes: 2013.
PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro: poemas completos. São Paulo, Nobel 2008.
SILVEIRA, Nise da. O mundo das imagens. Disponível em https://goo.gl/JP0hRY.
Acesso em: 01 out. 2012.
WAHBA, Liliana Liviano. Camille Claudel: criação e loucura. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1996.

184
Ediney Azancoth: percursos de uma
vida no palco
Carlos André Alexandre de Melo

Rádio e teatro: elementos de integração na Amazônia


Ao estabelecer um diálogo entre várias cidades da Amazônia brasilei-
ra, dois elementos se destacam: o rádio e o teatro. Nesse cenário de memórias
de rádio, de experimentações infantis de teatro e de sessões de cinema surgiu,
na cidade de Manaus dos anos 1960, a figura de Ediney Azancoth. Com o
presente texto, procuro fazer jus à memória desse escritor, dramaturgo, ator,
diretor, historiador, professor, protagonista da cena teatral amazonense.
Publicando pesquisas e memórias sobre a cena artística amazonense,
Azancoth permaneceu produzindo até sua morte, em dezembro de 2012, mesmo
quando parou de atuar efetivamente, subindo aos palcos e encarnando, dentro
e fora do Teatro Experimental do Sesc (Tesc), personagens memoráveis, como
o Branco (com máscara de Carlitos), de Dessana, Dessana (1975) ou o Irmão
Carmelita, em A Paixão de Ajuricaba (1974).
Azancoth foi fundador de importantes grupos na cena manauara,
como o Teatro Universitário do Amazonas (TUA), até integrar o Tesc, com o
qual viajou pelas Amazônias e pelo Brasil.
Em sua autobiografia, publicada em 1993, Ediney reservou espaço

185
para as memórias de rádio, como elemento importante em sua formação,
comprovando o caráter fomentador desse meio de comunicação. Tendo suas
primeiras transmissões ocorridas em meados dos anos 1920, o rádio se tor-
nou, e ainda é, mais que um difusor de notícias, um fator de integração para
várias comunidades, aproximando municípios mais remotos, terras indígenas,
seringais, ramais, colocações. Faz parte da memória e do imaginário dos ama-
zônidas, não apenas as músicas, mas os programas de mensagens enviados de
uma cidade ou colocação para outra.
No que tange ao teatro, notadamente, até a década de 1980, ele foi
fundamental para divertir, aproximar, discutir, denunciar questões sociais, po-
líticas e culturais da vida amazônida. Um conjunto de importantes pesquisas
e estudos1 dão conta de vários grupos que se reuniram e conseguiram imple-
mentar uma agenda de espetáculos que circulou por várias cidades da região
norte do Brasil, integrando os estados e estabelecendo uma rede de diálogos
entre várias localidades, especialmente cidades do Amazonas, Pará e Acre,
favorecendo a troca de informações, textos, técnicas, experiências e público.
A tônica na produção daqueles grupos era, em sua maioria, o diletan-
tismo. No entanto, buscava-se suprir a pouca formação nas artes cênicas por
intermédio de cursos, alguns deles informais, em maior ou menor extensão, com
instrutores vindos do sul e sudeste ou cuja atuação se lhes atribuía autoridade.
Este foi o caso do Tesc, cuja fundação se deu a partir de um curso oferecido
pelo Sesc - Amazonas para os comerciários, tendo o diretor paulista Nielson
Menão2 como instrutor, a convite do poeta Aldísio Filgueiras.
Ao se observar a trajetória de palco de Azancoth, pode-se divisar,
em sua história de vida, um paralelo com a história do teatro na Amazônia
da segunda metade do século XX.

EdineyAzancoth e o palco
Ainda criança, na década de 1940, EdineyAzancoth desenvolveu o
gosto pelas artes. Inicialmente, no Cine Guarany, com as exibições, por exem-
1
Cf. Souza, O palco verde, 1984; Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993; Azancoth e
Costa, Cenários de memórias, 2001 e Tesc, 2009; Marques, A cidade encena a floresta, 2005.
2
Nielson Menão (Avaí/SP – 30/10/1944): Diretor, dramaturgo e ator de teatro, cinema e
TV. Em São Paulo, participou de montagens importantes para o teatro brasileiro, como, entre
outras: Hair (1970/1971), de James Rado e Gerome Ragni, sob direção de Ademar Guerra, O
Arquiteto e o Imperador da Assíria (1976), de Fernando Arrabal, Santo Inquérito (1987/1988), de
Dias Gomes. Teatropedia. Nielson Menão. Disponível em: https://goo.gl/NdC8Jw. Acesso
em 08 ago 2016.

186
plo, de “A Deusa de Joba”,3 seriado estadunidense dos anos 1930, estrelado
por Clyde Beatty, então um famoso caçador e domador de leões, apresentado
como “The World’ s Greatest Wild Animal Trainer” nas aberturas de seus filmes.
Aquelas películas, com suas visões estereotipadas de selva e de africanos, ser-
viram como parâmetro para sérias brincadeiras de teatro de fundo de quintal,
como declarou Azancoth em suas memórias:
Os garotos elaboravam o roteiro do espetáculo, ensaiavam
e confeccionavam figurinos com papel de seda e crepom e
saíam pela vizinhança convidando os espectadores.
A encenação tinha números variados. Havia duetos mu-
sicais, declamações de poesia, cantos e danças. O meu
irmão (Mayr) era o responsável pelos números de mágica.
(…) No final, um pequeno drama em forma de opereta
constituía o sucesso do espetáculo.4
O trabalho sério veio com as experiências de teatro catequético,
oriundo de ordens religiosas na Amazônia, quase um pré-requisito para atores
do norte, naqueles tempos. Em 1956, declarado pelo autor como o “ano que
marcou o início de minha carreira teatral”,5 Azancoth atuou em um espetáculo
que encenava a paixão de Cristo. Apresentado por um amigo ao “Teatro Juve-
nil”, que ocupava a “Casa da Divina Providência”, dos padres Capuchinhos
da Igreja de São Sebastião, Ediney teve carreira promissora: inicialmente um
anônimo figurante soldado que guardava o Santo Sepulcro, foi logo promo-
vido a personagem com nome: Longinos, o soldado cego que, ao traspassar a
lança no peito de Cristo, curou-se ao ter o rosto banhado pelo sangue divino.6
Essas ordens religiosas, tanto no Amazonas como em outros estados
do Brasil e em países da América Latina como um todo, foram fomentadoras
da produção teatral, de acordo com Azancoth,7 ainda que primando pelo
apoio a encenações religiosas, comédias e dramas de cunho moral. Em outras
localidades, grupos de militância teatral estavam ligados a pastorais, especial-
mente comunidades de base vinculadas à Teologia da Libertação. Elas davam
apoio a produções com viés didático que denunciassem a opressão vivida pelos
ditos mais fracos.
3
Darkest Africa - Republic Pictures, 1936
4
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p 11.
5
Ibidem, p. 19.
6
Ibid., p. 23.
7
Ibidem, p. 21.

187
Em 1961, Azancoth ingressou no movimento estudantil, e partici-
pou da fundação do Teatro do Estudante Universitário, deixando de lado os
espetáculos de orientação religiosa. Convidado a participar do IV Festival
Nacional de Teatro do Estudante,8 o grupo foi ovacionado e Azancoth rece-
beu prêmio de melhor ator com o espetáculo “A beata Maria do Egito”, de
Rachel de Queiroz.9
Com o espetáculo, o grupo já encetaria um caminho de preocupa-
ção com a realidade brasileira, no caso, o fanatismo religioso nordestino e a
inabilidade do estado em resolver os problemas sociais. Azancoth comenta a
encenação e recepção:
As nossas interpretações eram sóbrias, sem clichês e ca-
ricaturas tão comuns quando são abordados temas nor-
destinos. O público e o júri do festival captaram isso e o
espetáculo foi interrompido várias vezes sob o barulho de
aplausos e a expressão “bravo”. Ao terminar, aplausos e
o público de pé renderam um verdadeiro tributo ao nosso
tímido grupo.10

No início do governo militar, Azancoth, junto com colegas da Fa-


culdade de Filosofia, fundou o Grupo Decisão. Influenciados, eles o fizeram
aos moldes do Grupo Opinião11 (a semelhança do nome não é mesmo mera
coincidência), em que apresentavam textos entremeados com músicas, ambos
encetando um discurso claramente de resistência política. Nesses moldes, ence-
naram “O Romanceiro da Inconfidência”, também com situações semelhantes
às do grupo carioca, como ter a plateia repleta de policiais para intimidá-los.12
Em 1966, Azancoth integrou o Teatro Universitário do Amazonas,
criado pelo Diretório Central dos Estudantes. Como primeiro espetáculo, en-
cenaram uma comédia que troçava com a figura de generais: “Toda donzela

8
Ocorrido em Porto Alegre, em janeiro de 1962.
9
Souza, A expressão amazonense, 2003, p. 250.
10
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 29
11
O Grupo Opinião, fundado em 1964, foi um grupo carioca que implementouum teatro de
protesto e de resistência, com núcleo de estudos e optando por textos da dramaturgia nacional
e popular. Foi formado por um grupo de artistas ligados ao Centro Popular de Cultura da
UNE. Foi responsável pelo show musical Opinião, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão
(substituída por Maria Bethânia), com direção de Augusto Boal, espetáculo que se tornou
referência naquele período. Enciclopédia Itaú Cultural. Grupo Opinião. Disponível em
https://goo.gl/wA7AEh. Acesso em 8 ago 2016.
12
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 33.

188
tem um pai que é uma fera”, de Gláucio Gill,13 no Teatro Amazonas, com
estreia no dia 13 de dezembro de 1966, atingindo grande sucesso de público.
Com a venda de um espetáculo para a Secretaria de Educação e
Cultura, compraram passagens para o vizinho estado do Acre. A viagem
foi muito bem sucedida. A peça foi encenada no teatro de uma escola, com
lotação esgotada, inclusive, com presença de autoridades locais.14 Resultante
dessa viagem, foram firmados contatos e amizades entre o grupo e artistas
acreanos, que culminariam na encenação, pelo grupo acreano Semente (1980),
do texto de Azancoth “A vingança do carapanã atômico”.
Em 1968, o TUA encenou, pela primeira vez no Amazonas, um
texto de Bertolt Brecht: “A exceção e a regra”. Foi um atrevimento. O texto
era político e os tempos bicudos. Os cuidados com a cenografia os fizeram
montar estruturas com quarenta e dois móveis de madeira e sombras que se
projetavam em um telão. Com o espetáculo, participaram do V Festival de
Teatro de Estudantes, no Rio de Janeiro. Novamente sucesso, novamente
premiação para o grupo: a encenação ganhou um prêmio de mérito e Roberto
Evangelista15 ganhou o prêmio de interpretação masculina.16
Em 1972, Azancoth participou de reuniões do Teatro Experimental
do Sesc (Tesc). Mas se afastou para ir à Curitiba fazer um curso de História,
na Faculdade de educação da Universidade do Paraná. Ao voltar, foi convi-
dado pelo grupo para dirigir “O marinheiro”, de Fernando Pessoa. Foi por
essa encenação que Márcio Souza17 decidiu unir-se ao Tesc. O primeiro texto
13
Gláucio Gill (?/1932 – 13/ago/1965), foi um ator, autor, jornalista e dramaturgo,
responsável por sucessos do palco como Toda Donzela tem um pai que é uma fera e Procura-se uma
rosa. Enciclopédia Itaú Cultural. Grupo Opinião. Disponível em https://goo.gl/1QM6BU.
Acesso em 8 ago 2016.
14
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 37.
15
Evangelista, ator e artista plástico, participou do Grupo Decisão, Teatro Universitário
do Amazonas e participou da fundação do Grupo Sete. Cf. Azancoth & Costa, Cenário de
memórias, 2001.
16
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 41.
17
Márcio Gonçalves Bentes de Souza, ou Márcio Souza (04/03/1946, em Manaus). Escritor,
dramaturgo, cineasta e jornalista. Ainda jovem, começou a escrever críticas de cinema no
jornal O Trabalhista. Com 19 anos, coordenou as edições do governo do estado do Amazonas,
mas, logo depois, mudou-se para São Paulo para cursar Ciências Sociais, na USP. Em 1969,
retornou à Manaus, interrompendo seus estudos por estar sendo perseguido pela ditadura
militar. Ali, ingressa no Tesc, assumindo, por fim, a direção do grupo. Por divergências com
políticos amazonenses, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1983. Foi Presidente da Fundação
Nacional de Arte – Funarte, no período de 1995 a 2002. Entre suas obras estão “Galvez,
Imperador do Acre” (1976), “Mad Maria” (1980), “A resistível ascensão do Boto Tucuxi”
(1982), “Teatro indígena do Amazonas” (1979), “Breve história da Amazônia” (1992). Dirigiu
o filme “A Selva” (1970). Enciclopédia Itaú Cultural. Grupo Opinião. Disponível em https://

189
de Souza no grupo seria “Zona Franca, meu amor”. No entanto, eles não
chegaram a estrear, uma vez que a censura federal o interditou.18
A peça falava da menina dos olhos do governo federal: a Zona Franca
de Manaus. Sobre ela, Márcio Souza esclareceu como surgiu o texto:
O Roberto Campos, quando era ministro da Fazenda,
transformou Manaus numa Zona Franca, uma zona de
livre comércio, e isso provocou um delírio na cidade. As
pessoas tinham a impressão de que estavam voltando à
época da borracha, quer dizer, podiam comprar a mesma
marca de manteiga que o avô comprava em 1918 e aquilo
era o máximo. Estavam todas enlouquecidas. Minha peça
era uma comédia na qual se fazia uma brincadeira com o
delírio local, embarcando nesse sonho, quando, na verda-
de, a Zona Franca as estava retirando de cena.19

A censura abalou o grupo.


Três meses de ensaio, leituras, questionamentos, tudo jo-
gado fora pelo arbítrio policial-militar, travestido de cen-
sura. Para eles, a ousadia em montar um espetáculo criti-
cando aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais,
nos anos de vigência do novo modelo econômico para o
Amazonas, representava uma afronta ao governo militar,
às elites executivas da nova administração do Estado: a
Superintendência da Zona Franca de Manaus – Sufra-
ma.20

Em meio às discussões de como lidar com a interdição e o risco de o


grupo se desfazer, a solução representou o maior passo para a carreira do Tesc.
Estabelecendo outro eixo temático para sua atuação e, como forma de evitar
a censura, com uma obra sobre uma lenda, aparentemente longe de criticar
os empreendimentos do Governo Federal, em 1974, com texto e direção de
Márcio Souza, estreou “A Paixão de Ajuricaba”, com o qual participaram do
IV Festival de Teatro de Campina Grande. Mais um sucesso do Tesc, que abriu
espaço para o grupo fora do Amazonas. Na peça, Azancoth interpretou um
irmão carmelita, além de fazer parte do coro, que deu ares de uma tragédia
greco-amazônica ao espetáculo:
goo.gl/c0aOBz. Acesso em: 8 ago 2016.
18
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 48.
19
Garcia, Odisséia do teatro brasileiro, 2002, p. 185.
20
Azancoth e Costa. Tesc, 2009, p. 121.

190
O corifeu anunciava a tragédia do índio Ajuricaba! Gran-
des personagens debatiam-se em meio à luta dos índios
contra os colonizadores portugueses. Súbito, o coro inter-
rompia a ação da peça e clamava aos deuses compaixão
pelo sofrimento do herói de tragédia grega.21

Em poucas semanas o texto estava pronto e, ainda segundo Ediney


Azancoth, Ajuricaba se tornou um símbolo para o grupo. Revestiu-se de no-
vos significados. Mais que uma lenda popular, ele passou a representar todos
os índios, cada uma das etnias que resistiram ao extermínio do europeu na
Amazônia.
O grupo encontrava definitivamente sua linha de atuação. Seguiram-
se “Dessana, Dessana” (1975), “A maravilhosa estória do Sapo Tarô-Bequê”
(1975), “As folias do látex” (1976), “Tem piranha no pirarucu” (1978). As
peças passaram a se alinhar aos dois eixos centrais da atuação do Tesc: (1) a
construção de um discurso sobre a ocupação e estratégias de desenvolvimento
para a região e (2) a crítica dos maus costumes políticos de Manaus, em que
são conjugados o imaginário amazônico com os elementos mitológicos, que
lhe são caros, com a linguagem e a ferina visão dos resquícios de colonialismo
que subjaz às ações da aristocracia e autoridades da região.

Ediney dramaturgo e escritor


Memorialista, ator e militante de teatro com um vasto repertório,
enquanto escritor Azancoth tem uma produção pequena, mas relevante. O
primeiro texto para teatro foi a peça infantil “A vingança do carapanã atômi-
co”.22 Inicialmente foi pensado apenas como um exercício de escrita teatral. Até
então, Ediney havia atuado como ator e diretor e não tinha pretensões como
dramaturgo. Daí há uma pista para se compreender o tom despretensioso do
texto, criado em um momento de atividade intensa no Tesc, em que Márcio
Souza cobrava insistentemente que o elenco experimentasse o ato de escrever.
A peça troça com elementos como os interesses americanos e do
império britânico na Amazônia, uma floresta-paraíso, onde habitam animais
e seres encantados. Aliando-se ao início das discussões sobre ecologia, o autor
teve o mérito de trazer para o público infantil o tema da invasão estrangeira

21
Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 49.
22
Publicado originalmente, em 1976, pela Fundação Cultural do Amazonas e reeditado, em
2003, pela Editora Valer.

191
na região.
Azancoth também escreveu a peça “Arriba La Chunga”,23 mais um
exercício quando ligado ao Tesc, que não chegou a ser encenada ou publica-
da. No entanto, é possível se encontrar cópias datilografadas entre bancos de
textos dramaticos.
Em 1993, publicou suas memórias, “No palco nem tudo é verdade:
memórias de um ator amazonense”.24 Escritas em um estilo bem particular
do autor, muito marcado por referências culturais populares, especialmente
cinematográficas, o que já deixam claras as influências que o acompanharam
desde a infância.
A partir de 2001, com a publicação de “Cenário de memórias - Movi-
mento Teatral em Manaus (1944-1968)”, teve início uma importante parceria
entre Azancoth e a professora Selda Vale da Costa, da Universidade Federal
do Amazonas. A dupla efetuou um denso estudo sobre a cena teatral amazo-
nense do século XX, valendo-se das investigações de Costa e de entrevistas dos
autores com protagonistas da cena teatral do período e da memória e rede de
amigos de Azancoth. Eles ainda publicariam “Amazônia em cena – grupos
teatrais em Manaus (1969-2000)” e “Tesc – nos bastidores da lenda”, obras
de importância capital para pesquisadores que se debruçam sobre a produção
artística, histórica e social no Amazonas. Com tais obras, Azancoth e Costa
traçaram um perfil da produção teatral no Amazonas, e, por extensão, na região
norte e no Brasil, em uma obra que se configura em documentos importantes
para aqueles que se interessam em e se dedicam a pesquisá-la, um trabalho
ainda não suficientemente representado na produção bibliográfica histórica
e teatral na Amazônia.

Para começar outras histórias


Traçar o percurso de vidas como a de Azancoth se mostra funda-
mental para suprir lacunas. A bibliografia sobre teatro na Amazônia, e sobre
o teatro da Amazônia, assim como a publicação da dramaturgia de autores
amazônidas, ainda carece de títulos que possam dar conta da riqueza de sua

23
Em sua autobiografia, Ediney Azancoth dá conta de um famoso “Cabaré La Chunga”, em
Manaus, a respeito do qual o Tesc se reuniu para ouvir uma palestra para preparação de um
espetáculo. Cf. Azancoth, No palco nem tudo é verdade, 1993, p. 19. O lugar também surge
como cenário em A resistível ascensão do Boto Tucuxi (1982), de Márcio Souza, encenada pelo
grupo.
24
Marco Zero, 1993 (esgotado).

192
produção e história.
Considerando o caráter efêmero da encenação, a publicação das obras
se torna necessária por uma intenção de visibilidade e reconhecimento dos
textos, autores, atores, técnicos, e, para além disso, a necessidade de documen-
tação. É por este fim que as tragédias gregas chegaram até nós, atravessando
séculos. Shakespeare, Suassuna, Molière, Aristófanes, Sófocles, Gil Vicente,
Anchieta, apenas para citar alguns, são reconhecidos até os dias atuais a partir
do trabalho de coleta e publicação de seus textos.
Nessa direção, ganha importância destacar as iniciativas da Editora
Valer, que tem se dedicado em recolocar (ou mesmo colocar pela primeira
vez) no mercado importantes textos teatrais, como é o caso do texto de Azan-
coth, sem impressão desde os anos 1970, que ganhou nova edição em 2003,
em parceria com o Governo do Estado do Amazonas. São raras as editoras
comerciais interessadas em despender recursos para lançar livros de textos
dramáticos. Este quadro se torna ainda mais preocupante se pensarmos em
peças de autores do norte e de trabalhos produzidos há mais de 40 anos.
A necessidade de publicação e pesquisas sobre o teatro nas Amazô-
nias torna-se mais evidente ao se observar as edições da Editora Valer, que, via
de regra, e ainda que considerando sua relevância, carecem de informações
históricas, especialmente quanto ao contexto de produção e de sua recepção,
dados importantes que ficam perdidos ou, muitas vezes, restritos aos arquivos
pessoais e memórias de atores ou diretores que participaram das encenações.

Referências
AZANCOTH, Ediney. No palco nem tudo é verdade: memórias de um atoramazo-
nense. São Paulo: Marco Zero, 1993.
AZANCOTH, Ediney. A vingança do Carapanã Atômico. Manaus: Valer; Governo
do Estado do Amazonas, 2003.
AZANCOTH, Ediney; Costa, Selda Vale. Cenário de memórias - movimento teatral
em Manaus (1944-1968). Manaus: Valer; Governo do Estado do Amazonas, 2001.
AZANCOTH, Ediney; Costa, Selda Vale. Tesc: nos bastidores da lenda. Manaus:
Valer/Sesc, 2009.
GARCIA, Silvana. Odisséia do teatro brasileiro. São Paulo: SENAC, 2002.
MARQUES, Maria do Perpétuo Socorro Calixto. Yuraiá: um afluente da drama-
turgia de João das Neves. Dissertação de mestrado apresentada aoPrograma de Co-
municação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo. São Paulo,

193
1997.
MARQUES, Maria do Perpétuo Socorro Calixto. A cidade encena a floresta. Rio
Branco: EDUFAC, 2005.
MELO, Carlos André Alexandre de. Universo carnavalizado em “A vingança do
carapanã atômico”, peça teatral de Ediney Azancoth. 2008. 96 f. Dissertação
(Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade) – Universidade Federal do Acre. Rio
Branco. 2008.
PEIXOTO, Fernando. Um teatro fora do eixo. São Paulo: Hucitec, 1993.
SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2001.
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. 2.
ed.Manaus: Valer, 2003.
SOUZA, Márcio. A paixão de Ajuricaba. 2. ed. Manaus: Valer; Prefeitura de Ma-
naus; Edua, 2005.
SOUZA, Márcio. O palco verde. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.

194
Um mercado, uma cidade: memórias
arquitetônicas, narrativas etnográficas
e linguagens dos becos1
Gerson Rodrigues de Albuquerque
Jones Dari Goettert

Falta sempre uma coisa, um copo,


uma brisa, uma frase, e a vida dói
quanto mais se goza e quanto mais
se inventa.
(Fernando Pessoa)

Palavras iniciais
A caixa d’água do Mercado de Rio Branco desapareceu. Sua estru-
tura com capacidade para aproximadamente vinte e dois mil litros de água,
esfacelou-se nas intempéries de um mundo que tornou “invisível” a existência
e a materialidade de centenas de mulheres e homens que se “atreveram” a
transformar e a incorporar o que era “moderno”, re-significando o território
da Praça da Bandeira, no centro da capital do Acre, e construindo identidades/
territorialidades nas práticas de trabalho, afazeres e no re-ordenamento do es-
paço público. Nesse processo, foram condenados à indiferença do não-tempo,
1
Uma versão preliminar deste estudo, com o título “O coração rural da cidade na floresta”,
foi apresentada em forma de comunicação livre e publicada nos Anais do IX Congresso
Latinoamericano de Estudos sobre América Latina e Caribe – SOLAR – “A integração da
diversidade racial e cultural do novo mundo”, “Festival da Raça Cósmica”, realizado na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no período de 22 a 26 de novembro de
2004.

195
não-espaço, não-política, não-local.
O próprio mercado “desapareceu” em um lento e significativo processo
no qual a cidade “real” foi “devorando” a cidade “ideal”. Nesse processo, como
lembra Sérgio Roberto, o marco inicial das transformações modernizadoras
de Hugo Carneiro, governador do Território do Acre na segunda metade da
década de 1920,2 foi sendo “sufocado” pelas pequenas bancas de vendedores
ambulantes – com lonas pretas, amarelas, azuis, esticadas sobre varas para
impedir que o sol e a chuva estragassem suas mercadorias –, pensões, lojas
de miudezas e confecções, botecos e pequenos bordéis, entre outros espaços e
estratégias de sobrevivência de centenas de famílias que passaram a se deslo-
car e a ser deslocadas para os arredores da cidade de Rio Branco, com maior
intensidade a partir de 1960, expropriadas do interior da floresta.

Inauguração do Mercado Municipal de Rio Branco, capital do Território Federal do Acre, no


Governo de Hugo Carneiro – 1927-1930 (Acervo do Madhis – UFAC)

A imagem fotográfica da inauguração do mercado – com uma parte


da população riobranquense, de fins dos anos 1920, perfilada à sua frente – nos
serve como uma espécie de referência para dialogarmos com as preocupações
de Hugo Carneiro em produzir imagens de uma “vida civilizada”, domando
“os sertões amazônicos” em ambientes “limpos” e “assépticos”, mas, também,
com a produção, reprodução e difusão dessas imagens como signos de uma
administração pública de realizações empenhadas em suprimir o “velho” e
“tosco mundo primitivo e insalubre”.3 A fotografia da arquitetura do mercado
encerra um discurso que se impõe como um dado objetivo – caricatura do des-
2
Souza, Fábulas da modernidade no Acre, 2001, p. 63.
3
Hugo Carneiro, Relatório apresentado a Augusto Vianna do Castello, 1928-1930.

196
gastado bordão “a imagem fala por si” –, recortando uma parte da “realidade”
e a transportando em textos, falas, inaugurações e homilias. Mas, para além
das bordas e das molduras, para além do foco da objetiva, do olhar seletivo
do fotógrafo e dos editores de tablóides e hebdomadários estavam e estão os
mundos feitos de casas, ruas, discursos, práticas culturais, cidades, florestas,
rios e gentes diversas.
Em nossa abordagem, a partir das reflexões com o legado teórico de
Stuart Hall, compreendemos a modernidade como um significante que necessita
ser colocado sob o crivo da constante problematização/interrogação, posto que:
o conceito de ‘moderno’ com os seus múltiplos derivados
– protomoderno, moderno mais recente, pós-moderno,
modernidade, modernismo – foi eficazmente apropriado
pela narrativa do Ocidente, conferindo à civilização
ocidental o privilégio exclusivo de viver integralmente as
potencialidades do presente ‘a partir de dentro’. Por isso,
é difícil imaginar esta narrativa sem ser como oposição
binária entre a modernidade e os seus ‘Outros’. Assim,
apenas duas hipóteses narrativas parecem Ou a história
é contada a partir da perspectiva da modernidade, sendo
assim difícil evitar que ela se transforme numa narrativa
triunfal, em que os ‘outros’ são sistematicamente
marginalizados; ou então a história é reorientada para as
suas margens, procurando-se, com este gesto, inverter a
ordem estabelecida, romper com ela, dando visibilidade
a tudo o que é ocultado ou estruturalmente obscurecido
pela perspectiva habitual.4

Nessa direção, consideramos a modernidade como uma invenção do


ocidente para fazer com que os Outros aceitem e/ou se enquadrem na lógica
de sua dominação e coisas de seu mercado, adotando essa percepção crítica
para produzir leituras de contextos socioculturais amazônicos nos quais as
injunções do ideal “moderno” também foram reproduzidas e normalizadas
historicamente por um modo de vida “ocidentalizado”, permeando represen-
tações de mundo e alterações no espaço público, especialmente, a partir de
projetos de intervenção estatal.
As observações, entrevistas e produção de imagens que nos propicia-
ram a elaboração deste ensaio foram feitas setenta e cinco anos após a inau-
guração do mercado de Hugo Carneiro. Nosso laboratório principal era o Bar
4
Hall, A modernidade e os seus Outros, s/d, p. 2. Disponível em https://goo.gl/l4c5I9.
Acesso em 11 de julho de 2016.

197
do Chico, com sua “clássica” ornamentação de garrafas de diferentes bebidas
ladeando as paredes em estantes (im)provisadas. Desde esse singular ponto de
apoio e inspiração, observamos as teias de aranha e os fios distribuindo corrente
elétrica para os compartimentos de salões de beleza, comércios de plantas e
ervas medicinais, louças, roupas, bijouterias e outros produtos de proprietários
regulados pelas taxas e impostos municipais, disciplinados pela presença da
autoridade de um “Fiscal da Prefeitura”, responsável pelo cumprimento das
regras, códigos oficiais e por fazer valer o permitido e inibir o proibido nos
342 metros quadrados da área do “velho” Mercado Municipal, na Praça da
Bandeira, no “centro” de Rio Branco, a capital do estado do Acre.
Labirinto de pequenas e economicamente empobrecidas lojas, par-
cialmente controladas pela “insolência” do olhar do fiscal ou do “cara da
prefeitura”, como afirmavam os “larápios” e as “putas” da Praça da Bandeira,
o mercado era, na arguta percepção do cineasta Ney Ricardo, a expressão da
ruptura com a lógica do progresso, mitificada pela imagem da modernidade
ocidental como sinônimo de desenvolvimento, bem-estar, conforto, qualidade
de vida. “Se não fosse assim”, insistiu o autor de “O mundo entre as pontes”,5
hoje, “isso aqui seria um shopping center ou um conjunto de galerias comer-
ciais. Mas não é. E isso mostra o quanto é artificial e a-histórica a ideia de um
tempo congelado, estratificado em passado, presente, futuro”.6 Sem deixar de
ressaltar o paradoxo na alegoria de Ricardo, devemos pontuar que predomina
aí uma perspectiva de desenvolvimento linear e de progresso humano como
algo definido por uma instância exterior à realização do viver, à materialidade
da vida de crianças, mulheres e homens.
Ambiente de referência para muitos olhares e percepções, o Bar do
Chico, nos possibilitou um dos primeiros ângulos para olhar o mercado na
condição de quem buscava observar e apreender sentidos e práticas culturais.
É claro que, nesse caso, os observadores eram os mais observados, eliminan-
do, portanto, qualquer possibilidade de relação hierárquica. Posicionados na
primeira mesa, à esquerda de quem entrava ou à direita de quem saia daquele
bar, tínhamos à nossa frente um dos grandes portões de ferro, construídos com
quatro metros de altura e, aproximadamente, três metros de largura, encimados
5
Ricardo e Freire, “Mundo entre as pontes”, 2003.
6
Debate “O papel das Ciências Humanas e Sociais na construção da cidadania”, realizado
pelos Centros Acadêmicos de Direito, Ciências Sociais e História Noturno, no Anfiteatro da
UFAC, como atividade de abertura do ano letivo de 2004.

198
por “bandeiras de ferro em semicírculo”.7 Por entre esse portão, era possível
visualizar um estreito corredor que funcionava como passeio entre boxes de
lojas que anunciavam, em inusitados cartazes, o ex-salão da Zete, depois Gil
Cabeleireiro e mais ao lado e à frente, a Lourdes Cabeleireira, o Salão Novo
Visual, a Casa das Ervas, a Alfaitaria São Francisco, a Ouriversaria Kadoshi,
entre outros.
À direita de quem saía do bar, tinha-se um corredor lateral, com acesso
ao Restaurante Barriga Cheia e outras pensões onde eram servidas refeições a
“preços populares”. À esquerda, outro corredor lateral, com acesso ao Bar e
Restaurante da Loura (então, um dos mais badalados e frequentados da pra-
ça), a Casa do Pescador, a Ouriversaria Juliano Júnior e a Beth Restaurante.
Ainda, para quem saía pela esquerda, tinha-se acesso ao rio Acre e a uma
infinidade de outros ambientes e territorialidades configuradas na forma como
diversificados sujeitos sociais interagiam, incorporavam e se apropriavam do
mercado e de toda a Praça da Bandeira.
Percorrendo a trilha de mulheres e homens desse universo, encravado
no coração rural da cidade entre o rio e a floresta, tínhamos a possibilidade
de antever que a diversidade estava inserida nos deslocamentos comerciais e,
também, nos deslocamentos de ambientes, bares e casas de entretenimento.
A multiplicidade de becos, canais de circulação e acesso refletia mundos des-
conhecidos, mundos do trabalho regidos por regras e códigos específicos e, na
maioria das vezes, inacessíveis ao olhar do “outro”. Mundos esses produzi-
dos pelas práticas sociais dos grupos humanos que o atravessavam com suas
percepções, sentimentos e lutas pela sobrevivência; mundos que procuramos
captar com nossas palavras escritas e imagens fotográficas, na tentativa não
apenas de representá-los, mas de interpretá-los a partir de nossas escolhas
metodológicas e, portanto, políticas.

7
Dados do “construtor Salles Corrêa” a João da Selva, da Folha do Norte, de Belém, 1929.

199
Praça da Bandeira (2004), sob as lentes de Jones Dari Göettert (Acervo pessoal)

Desde a “Ponte Nova”, que interliga as duas margens do rio Acre,


utilizando determinado tipo de equipamento, o fotógrafo escolhe um ângulo
a partir do qual deseja conduzir o observador/leitor a perceber não apenas o
“derretimento” ou a erosão do barranco nas encostas do Mercado Municipal,
mas uma parte de sua “moderna” estrutura sendo “engolida” pelos botecos,
pensões e outras lojas de comércio: o interesse aqui é para uma dimensão au-
tofágica da cidade, a partir da qual formas cotidianas de produção social do
espaço, em históricos processos de incorporação e transformação da cidade,
“devoram” um “urbano” idealizado pelo poder público.
A etnografia física e social da praça, incessantemente realinhada em
uma luta contra o desbarrancamento das margens do rio, passou a obrigar
muitos proprietários e locatários a contínuos deslocamentos no sentido beira
do rio–Rua Epaminondas Jácome, em mutações espaciais/sociais/temporais
que refletiam a própria cidade em movimento, permitindo-nos surpreendê-la
como “um organismo em mutação”, para usar as palavras de Rogério Lima,
enfatizando que, “a cada instante, há algo mais que a vista não alcança, mais
do que o ouvido possa perceber, uma composição nova em um cenário novo
que espera para ser analisado”.8
A cidade/praça/mercado se movimenta. Movimento da terra e dos
8
Lima; Fernandes, O imaginário da cidade, 2000, p. 9.

200
seres sobre a terra em estreitos vínculos com a floresta e o rio. Movimento
refletido no emaranhado de vielas, como o Beco São Domingos onde se loca-
lizavam pensões, bares e lojas de comércio de produtos de pesca e miudezas,
com destaque para o Bazar Almeida e as pensões R. M. Litoral e Beira Rio.
Mais à frente, na confluência, estava o Beco Lua 13, com as lojas Labirinto
do Rato, Casa Oxalá, Gilda Refeições e Faynna Restaurante. Cruzando outra
esquina estava o Beco 18, onde se situava o Lanche do Mourão, a Casa da
Sinuca número 31 e a Norte Confecções. Andarilhando um pouco mais, en-
contrávamos outro beco, que abrigava o Amarelinho, a Casa das Ervas (Banca
do Tempero), o Bazar Chefe e a Banca do Brilhante.
Caminhamos pelos becos e nossos olhos, “afinidades eletivas”, mãos
e artefatos caminharam – e continuam a caminhar – conosco. Sentimos a vida
pulsante nas artérias dos becos – nas casas, bares, pensões, nas pessoas – que,
obsessivamente, intentamos descrever desde o Bar do Chico, perpassando
inúmeros outros locais e territorializados sentimentos, afetos, memórias im-
possíveis de serem transformadas em palavras. Inúteis também as fotografias,
recurso utilizado para capturar o real, congelar o tempo/espaço, devolven-
do-nos sombras refletidas na luz capturada por nossas “câmeras escuras”.
Porém, se a escrita das “pequenas histórias” de mulheres e homens alvejados
pela ordem do progresso, que é sempre excludente, nos permite lançar uma
“iluminação profana”9 sobre o passado, desordenando sua sacralidade, com
as imagens fotográficas temos a possibilidade de suspender o contínuo do
tempo e do olhar histórico, permitindo pararmos para pensar sobre o instante
da produção da imagem e, muito além da qualidade do equipamento ou das
técnicas do fotógrafo, no dizer de Benjamin, sermos obrigados
a procurar em tal retrato a minúscula faísca de acaso, de
aqui e agora, com que a realidade igualmente ultrapas-
sou o caráter de retrato para encontrar o incerto lugar em
que, por ser assim, ainda hoje e com tanta eloquência, se
aninha o futuro naquele momento há muito já transcorri-
do, a ponto de, olhando para trás, nós mesmos podermos
descobri-lo.10

Inspirados nas reflexões desse autor, temos a possibilidade de lançar


interrogações, refletir sobre o vivido e ler nossas próprias fotografias como
parte de um diálogo com a cidade e com as pessoas da cidade, pessoas e suas
9
Cf. Benjamin, Magia e técnica arte e política, 1993; Sarlo, Paisagens imaginárias, 1997.
10
Benjamin, Pequena história da fotografia, cf. Kothe (Org.), Walter Benjamin, 1985, p. 222.

201
trajetórias visualizadas fora do tempo “vazio e homogêneo” da linear história
oficial da cidade, a história dos vencedores, nas palavras do próprio Walter
Benjamin em suas teses sobre o conceito de história.

Diferentes becos e corredores configuram-se como diferentes formas de “geo-grafar” os territórios


da Praça da Bandeira (Fotografia de Jones Goettert, 2004. Acervo pessoal)

As imagens fotográficas dos becos e toda materialidade/imateriali-


dade a elas vinculadas não nos permitem apreender a intervenção “moder-
nizadora” que desmontou e reordenou os territórios da Praça da Bandeira.
São instantâneos de territórios eliminados pela “ordem e progresso” da “flo-
restania”, territórios que ficaram fora do “novo tempo” que “humanizou” e
“revitalizou” o “mercado velho” entre os anos 2004 e 2006, transformando-o
em “novo mercado velho”. Quem hoje se dirige a esse “novo mercado velho”
não encontra os becos, as pessoas e territorialidades que ali se expressavam,
posto que, pulverizados pelo obssessivo discurso de modernidade, pertencem a
outra ordem da vida e das práticas culturais. Uma ordem que se insurge como
imagens efêmeras, intensas e velozes de um passado que se contrapõe à lógica
do asséptico ponto turístico da cidade dos dias atuais.

Tecendo redes e lembranças no coração da “cidade/floresta”11


Os homens, crianças e mulheres da cidade a transformam todos os
dias em processos criativos a partir dos quais inventam e reinventam formas
de produção de seu espaços/tempos, de suas narrativas de lugar e mundo. As
mulheres, as crianças e os homens fazem a cidade. Uma cidade é como um

11
Cidade-Floresta no sentido cunhado por Agenor Sarraf Pacheco. Cf. Albuquerque e Pacheco
(Orgs.), Waküru - Dicionário Analítico, 2016.

202
sonho, escreve Ítalo Calvino, nos conduzindo pelos significativos caminhos e
diálogos de seus personagens em “cidades invisíveis”. Tudo o que a imaginação
produz o sonho captura, embora imaginação e sonho possam nos conduzir
aos inesperados labirintos dos desejos e dos medos: as cidades, assim como
os sonhos, insiste o autor, “são construídas por desejos e medos, ainda que o
fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas,
as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra”.12
Desejos e medos que pudemos surpreender nos relatos de mulheres e homens
da Praça da Bandeira, como Pedro de Souza, que, desde sua chegada a Rio
Branco, sempre trabalhou no mercado, com comércio:
desde o dia 11 de abril de 1970. Comecei com perfumaria
e miudezas em geral, depois mudei para ferragem e mate-
rial de pesca. Agora vendo de tudo como forma de sobre-
viver, porque se não a gente não vende nada, pois, o fre-
guês vem comprar tabaco e a gente oferece outras coisas
que eles podem precisar. Com o comércio, eu já ganhei
muito dinheiro quando o mercado era aqui. Com o co-
mércio, eu comprei carro, terreno, telefone, depois quan-
do tiraram o mercado, em 01 de julho de 1980, quando
saiu a feira que teve a primeira queda; depois, quando os
ônibus deixaram de parar na Alegria, teve a segunda que-
da. Aí eu fui e vendi tudo. Vendi tudo mas fiquei aqui e
num saio daqui porque não tenho dinheiro para comprar
um outro ponto, em outro local melhor. Tô ficando aqui
eu e uns outros dois, tamos ficando de teimoso que so-
mos, mas não tem o que fazer. O jeito é ir sobrevivendo.13

Enquanto falava, tecendo lembranças a conduzir sua narrativa, Pedro


ia tecendo com rapidez e aparente facilidade os intricados pontos de uma rede
de pesca. Atividade que acompanhava o ritmo de sua voz, produzindo o ritmo
de um tempo marcado pelo compasso do próprio movimento do mercado e
das sociabilidades a ele inerentes. Nesse espaço/tempo das mãos e da voz, ia
articulando os fios e as malhas da rede como quem articula novos sentidos aos
significantes ócio e solidão, tecidos de lembranças daquilo que para ele foi e
é extremamente significativo: o momento em que “tiraram a feira daqui”. No
contexto histórico desse “tiraram a feira daqui”, ao qual se refere, o Mercado
12
Calvino, Cidades invisíveis, 1990, p. 44.
13
Pedro de Souza, comerciante da Praça da Bandeira, 2004. Na data da entrevista o depoente,
originário do Seringal Amapá, no rio Yaco, município de Sena Madureira, contava com a
idade de 66 anos.

203
Municipal da Praça da Bandeira, erguido entre 1928-29, como símbolo ou
marco “fundador” de um “novo tempo” ou de uma “modernidade” inventada
pela retórica de um governante, foi substituído pelo “Mercado Novo” – outro
“novo tempo” e outra “modernidade”, reinventados por outro governante
– das proximidades do Bairro da “Cadeia Velha” para onde, em seguida,
foi transferido o ponto terminal dos ônibus responsáveis pelos transportes
coletivos da cidade. Essa mudança assinalou o gradativo início do processo
de diminuição da circulação de pessoas entre as lojas de comércio da Praça
da Bandeira. Com os açougues e os verdureiros, desapareceram também os
fregueses e uma significativa parte da “economia de Rio Branco” com suas
intrincadas relações sócio-culturais, deslocando vozes, trajetórias, lojas, ruas,
pensões, casas comerciais, tráfego de veículos e pessoas.
O “deslocamento do mercado”, ao qual se refere Pedro de Souza,
representou uma intervenção urbana com forte impacto na vida de amplas
coletividades. A cidade foi totalmente reordenada em sua dimensão social e
física, na proporção em que “a cidade não é feita de pedras, é feita de homens”,
como nos adverte Marsilo Ficino.14 Nesse sentido, não foi a arquitetura das
pequenas lojas e as estruturas de cimento e ferro dos vendedores de carne, frutas
e verduras que se reordenaram, mas os sentidos de circulação e orientação, os
ambientes sociais, enfim, as sociabilidades de diferentes práticas culturais dos
habitantes de Rio Branco.
A partir do comércio na Praça da Bandeira, Pedro Souza “comprou
tudo” e, na proporção em que esse próprio comércio teve suas “quedas”, tam-
bém “vendeu tudo”. Vendeu, mas ficou aguardando a melhora, convivendo
com outros homens, “envelhecidos” como as paredes e o teto do mercado.
Teto repleto de teias de aranhas sobre as cabeças de homens repletos de redes,
tecendo fios de uma memória infinita e aberta, atualizando o vivido como
reconforto para suas existências; reconstruindo de diferentes formas suas ex-
periências de vida não como apego nostálgico ao passado, mas como crítica
a um presente marcado por novas ameaças e novas tensões “modernizantes”.
Nos seus trabalhos da memória, mulheres e homens que viviam no
mercado, na área entre as “cabeças” da “Ponte velha, de metal” e da “Ponte
nova, de concreto”, rememoraram narrativas e interpretaram suas trajetó-

14
Segre, Havana: o resgate social da memória, 1992, p. 101.

204
rias. Em tal rememorar, foram respondendo ao vivido que foi interiorizado,
rearticulando/atualizando/tecendo acontecimentos, datas e pessoas em uma
representação própria do “real vivido”, “ouvido” ou “imaginado”. Nesse sen-
tido, é interessante ouvirmos a fala de Pelegrina da Silva Maia, entrevistada
principal do vídeo documentário “Mundo entre as pontes”:
Eu nasci em 1930; tenho 74 anos. Quando eu cheguei
aqui, eu cheguei em 1965. Ainda era mulher nova e ainda
tive três filhos: duas meninas e um menino. Eu comecei
a trabalhar nessa pensão em 66. Eu vim trabalhar aqui
porque eu morava no seringal, no rio Yaco, aí eu adoeci
do baço, aí minha mãe me trouxe pra tratar em Rio Bran-
co (...) Quando eu comecei a trabalhar aqui, não tinha
ninguém, só era só essas barraquinha. Isso era só umas
lona. Era só o mercado. O resto tudo era só lona. Aí, de-
pois, a prefeitura deu ordens pra quem quisesse fazer suas
casinha, fizesse, assim como tá aqui. Aí a mãezinha foi
e pediu pra prefeitura fazer que ela pagava. Todo mundo
fez. Aquele que tinha dinheiro fez e o que não tinha a pre-
feitura fez. Aí eles pagava pra prefeitura. Era dona Feli-
cidade, dona Maria Secundina, dona Raimundinha, dona
Sebastiana, isso tudo era mulher que trabalhava aqui, nas
pensão (...) Vige! Eu fiz muitos amigo aqui nesse merca-
do: era o Álvaro, o cunhado do Álvaro, o Tributino e mui-
tos outros que eu num to lembrada dos nomes (...) Faz
muito tempo. Isso tem mais de 30 anos, mais de 35 anos
que eles trabalhavam aqui. Aí tiraram o mercado daí. Isso
já faz mais de 15 anos, mais de 20 anos que eles tiraram
o mercado daqui: ficou só as pensão. Aí fracassou tudo.
Foi todo mundo embora. Os açougueiros foram embora,
foi todo mundo embora. Aí foi o tempo que minha mãe
faleceu, aí eu fiquei sozinha. Sozinha mesmo de tudo (...)
Quando a mãe da gente morre, o mundo parece que aca-
ba pra gente, a gente num pisa no chão, num tem chão (...)
Hoje pra mim ta bom demais, porque eu num tenho outra
vida pra mim viver: minha vida é aqui no mercado (...)
Minha mãe morreu em 88, o nome dela era Lúcia, mas
chamavam ela de dona Santa, de Mãezinha...15

A construção da narrativa de dona Pelezinha, como era conhecida


pelos frequentadores do “mercado velho”, segue as trilhas de uma trajetória
15
Pelegrina da Silva Maia, proprietária de uma pensão na Praça da Bandeira, em entrevista
concedida a Ney Ricardo e Assis Freire, em “Mundo Entre as Pontes”, 2003.

205
comum às histórias de muitas mulheres e homens amazônicos: saídos do
seringal em direção às cidades, não obstante à invisível linha fronteiriça que
separa florestas e cidades constituídas nas práticas sociais e nos intercâmbios
com o “mundo natural” e sua produção de espaços sócio-naturais, recolocando
em cena a necessidade de uma maior atenção para o debate acerca das com-
plexas relações natureza-cultura. Nessa direção, torna-se imprescindível um
estreitamento de laços e, mais que isso, um diálogo aberto entre disciplinas e
áreas do conhecimento que a visão positivista “encarcerou” como “ciências”
diferenciadas, substituindo o todo pela parte e restringindo nossas possibili-
dades de percepção dos seres vivos no mundo e suas múltiplas linguagens e
extralinguagens. Em tal diálogo, poderíamos partir da provocativa premissa
sublinhada por Carlos Walter Porto Gonçalves ao afirmar que a “sociedade
no seu devir histórico não é a-geográfica”, na proporção em que “se a história
se faz geografia é porque, de alguma forma, a geografia é uma necessidade
histórica e, assim, uma condição de sua existência que, como tal, exerce uma
coação que, aqui deve ser tomada ao pé da letra, ou seja, como algo que coage,
que age com, é co-agente”.16
Nas reflexões de Pelezinha o tempo é urdido pelas coisas que dão
ênfase aos seus gestos, expressões e indicações de um olhar que, dissipando
as fronteiras entre o visível e o invisível, nos remetem ao universo de suas me-
mórias, suas lembranças daquilo que quer ou pode lembrar. Nesses processos
de lembrar, marcados pelas lógicas do tempo presente, devemos destacar,
lançando mão das reflexões de Alessandro Portelli, os muitos acontecimentos
estão marcados por sentimentos, emoções, crenças, interpretações e é isso que
confere sentido e legitimidade ao vivido que é narrado.17
Toda memória tem, por princípio, uma base social, uma coletividade
e “por suporte um grupo limitado no espaço e no tempo”.18 Desse modo, um
indivíduo está sempre recorrendo a lembranças que envolvem suas experiên-
cias e as experiências das pessoas que com ele convivem ou conviveram em
dadas circunstâncias, reformulando-as ou reconstruindo-as no presente. Nessa
perspectiva, é possível visualizarmos a fala de “Pelezinha” como um “raio de
luz” vasculhando coisas obscuras, lembranças “desarrumadas” e silenciadas
no passado. Vasculhar esse no qual vai recompondo os conflitos e as tensões
16
Gonçalves, Da geografia às geo-grafias, 2001, p. 15.
17
Portelli, Tentando aprender um pouquinho, 1997, p. 25.
18
Halbwachs, A memória coletiva, 1990.

206
que marcaram as intervenções do poder público na cidade de Rio Branco,
especificamente, no mercado municipal da Praça da Bandeira.
Articulando seu mundo de forma significativa, utilizando palavras
simples, comovidas e, muitas vezes, doloridas, a “velha cozinheira” redesenha
a lógica da racionalidade estatal, apresentando outros rostos, outras vozes,
outras experiências grafadas no interior e nos arredores do mercado. Nesse
cenário, chama a atenção o fato de que, assim como as sociedades são mó-
veis, também, são móveis as ruas, os bairros, as casas e prédios e o próprio
mercado. Móveis e repletos de acontecimentos históricos que se manifestam
nas pessoas, nos sujeitos, “mulheres e homens-memória”, como pontua Pierre
Nora, alertando que é a diferença que procuramos aí desvendar e, “no espetá-
culo dessa diferença, o brilhar repentino de uma identidade impossível de ser
encontrada”, mas, cujo interesse não é mais sua gênese e sim “o deciframento
do que somos à luz do que não somos mais”.19
No primeiro semestre do ano letivo de 2004, em um debate com
alunos do Curso de História da Universidade Federal do Acre, o documenta-
rista e professor de história, Ney Ricardo, afirmou que “a Pelezinha dialoga
com fantasmas, pois no mercado em que ela viveu e vive, eles estão por toda
parte”. Porém, devemos acrescentar, esses “fantasmas” são de carne e osso
e, portanto, anti-fantasmagóricos com seus nomes, experiências e vivências
lembradas: Álvaro, Tributino, cunhado do Álvaro e muitos outros tornados
invisíveis pela memória oficial da cidade, resistem às intempéries do esqueci-
mento nas “paredes da memória” de Pelezinha e de muitos outros seus paren-
tes, vizinhos e amigos. Assim como resistem e se insurgem os nomes de Dona
Felicidade, Dona Maria Secundina, Dona Raimundinha, Dona Sebastiana e,
a mais recorrente de todas, Dona Santinha, a mãe de Pelezinha. Mulheres,
artesãs de um patrimônio material e imaterial de nossas sociedades: o alimen-
to, com seus sabores, saberes e odores. Mulheres cujos nomes emprestavam
legitimidade, respeitabilidade e prestígio aos ambientes das pensões às quais
dedicaram suas vidas.
A transformação social do mercado, construído/inaugurado por
Hugo Carneiro para servir de referencial de “modernidade” na cidade de
Rio Branco, ponto de partida para uma cidade “próspera”, “higienizada” e
marcada pela racionalidade técnico-científica, produziu um contra-discurso

19
Nora, Entre memória e história: a problemática dos lugares, 1993, p. 20-21.

207
ao progresso. Contra-discurso esse no qual a característica mais forte não se
circunscreve nas teias de aranha de seu teto central ou no “desaparecimen-
to” de sua imponente e alienígena arquitetura, mas, na ação daqueles que,
oriundos do mundo real, impulsionados pelas necessidades de sobrevivência
ali interviram e guardaram as lembranças dessa intervenção, mesmo quando
ficaram sozinhos, como enfatizou Pelezinha que, após a morte de sua mãe,
ficou “sozinha. Sozinha mesmo de tudo...”
Com esse ficar “sozinha de tudo”, Pelezinha dispara suas críticas sob
o sol do tempo presente em uma mistura de “amor” e “desilusão” pelo passado.
Sua narrativa nos coloca diante do tema da solidão que, para Foot Hardman,
é o contraponto do fantasma: “somente homens solitários têm visões, ou pelo
menos esse estado é mais propício para a emergência do insólito”.20 Como
uma “velha cega”, “atormentada” por seus “fantasmas”, dona Pelezinha di-
rigia-se todas as manhãs para o mercado da Praça da Bandeira onde, em sua
pensão, no box número 74, era conhecida e reconhecida por seus dons de boa
cozinheira, territorializando-se nas práticas e domínio de sua cultura material,
patrimônio que a identificava também como patrimônio em um mundo repleto
de múltiplas territorialidades.21
Atravessando de ônibus uma Rio Branco de caos e graves problemas
no tráfego de veículos, dirigindo-se ao “Mercado Novo” onde adquiria os
produtos para o preparo das refeições aos seus tradicionais clientes, que lhe
garantiam uma renda diária que quase nunca ultrapassava simbólicos dez reais,
dona Pelezinha experimentava, como muitos continuaram a experimentar, os
conflitos cotidianos pela sobrevivência naquela “Praça da Bandeira” comple-
tamente “invisível” para a maioria dos habitantes da cidade. Uma “praça”
atingida pelos constantes desbarrancamentos do rio Acre e pela “nova inter-
venção” no local, resultado de parceria entre o poder público e o Sebrae, com
o objetivo de viabilizar sua “humanização”. Uma intervenção cujos efeitos se
materializaram no universo mental daqueles que ali desenvolviam suas práticas
e estratégias de sobrevivência: o medo do despejo ou do deslocamento para
locais incertos ou, como afirmava a própria Pelezinha, apenas o medo de sair
do mercado, pois: “sair daqui eu acho que é um pedaço que tiram de mim...”22

20
Hardman, Trem fantasma, 1988, p. 174.
21
Reflexões produzidas e inspiradas a partir de Gonçalves, Geografando nos varadouros do
mundo, 1998.
22
Depoimento citado.

208
Em fins do mês de junho de 2004, quando faleceu, dona Pelezinha
havia colocado uma placa de venda na entrada de sua pensão, mesmo sem
querer sair ou saber para onde ir. Naquele contexto, a “humanização” ou
“revitalização” da Praça da Bandeira, com a “re-modernização” do “mercado
velho” e seus drásticos efeitos para a maioria dos comerciantes, trabalhadoras
e trabalhadores daquela área ainda não tinha se concretizado. Porém, em
tal contexto, já visualizávamos que a “humanização” podia implicar muitas
coisas, mas, somente seria possível humanizar o que não fosse humano, ou
seja, os ratos, baratas, moscas, aranhas, pulgas, piolhos, cachorros e gatos que
compartilhavam os ambientes da praça com os seres humanos: decididamente
não era esse o projeto estatal/privado.
O que estava em curso era um “novo espetáculo” de intervenção go-
vernamental na vida de centenas de pessoas, deslocadas para locais distantes
como parte inexorável do projeto de “racionalização” e interdição do espaço
público, instituindo a “normalidade” e a “coerência” frente à “desordem” que
imperava na “doentia” e “caótica” Praça da Bandeira.23 Inevitavelmente, a
transformação da arquitetura e o “novo” ordenamento espacial do mercado e
da praça refletiriam a lógica privatizante de seus mentores e a “humanização”
foi mais trágica, pois, propiciou não apenas a eliminação de animais e bichos
peçonhentos frente à impossibilidade de humanizá-los. No âmbito da racionali-
dade instrumental, desagregando as territorialidades da Praça da Bandeira sob
a égide de um discurso neo-higienista, neo-sanitarista, neo-desenvolvimentista
e neo-acreanista, o estado propiciou uma onda de “desmonte” das possibili-
dades de reprodução material24 das famílias de trabalhadoras, trabalhadores
e outros sujeitos sociais da cidade que ali viviam/sobreviviam.
Nessa direção, vale a pena fazermos uma releitura de Foot Hardman
e lamentar que, mesmo diante do inquietante protesto de ratos e baratas, o
“grotesco da técnica” ocupou completamente a cena histórica e, premida pela
bajulação de uma mídia suscetível aos apelos financeiros das assessorias de
comunicação social, a “rota do desconhecido, calcada em um sono amnésico”,
conduziu todos ao engodo de uma nova fantasia e a um “reino dos fantasmas,
em que representações culturais do tempo e do espaço adversas entram em
choque”25 com o “mito do progresso” presente em “humanizações” ou “re-
23
As reflexões aqui pontuadas encontram inspiração em Lefebvre, O direito à cidade, 1991.
24
Bouças, Mascaramentos da cidade, 2000, p. 9.
25
Hardman, Trem fantasma, 1988, p. 178.

209
vitalizações” como essas.
Se no governo de Hugo Carneiro, a construção do mercado mu-
nicipal, embora tivesse a pretensão de apontar para o “Acre do futuro, livre
das construções em madeira e de tradições tidas como ‘primitivas’”,26 não
produziu o desmonte de espaços sociais e de estratégias de sobrevivência de
mulheres e homens na cidade de Rio Branco, não podemos deixar de frisar
sua característica bizarra e a ironia burlesca ao produzir uma representação
da Amazônia acreana baseada em ações e obras extemporâneas que, em nome
da “modernidade”, negavam por completo as culturas e práticas sociais locais.
É de Karl Marx a noção de que a história se repete. Uma noção quase
profética se tomarmos como exemplo uma série de ações do poder público
acreano na primeira década do século XXI. No caso do mercado da Praça da
Bandeira, o projeto de sua “revitalização” ou “modernização humanizadora”
levado a cabo pelo governo de Jorge Viana, representou o apagamento e a ex-
clusão de práticas sociais e do direito à cidade aos diferentes grupos humanos
que ali se territorializavam. Frente ao frenesi que marcou a inauguração do
“novo mercado velho”, poderíamos acrescentar, em analogia a Marx, que a
história se repetiu, mas com certa dose de inversão, pois, entre os anos 2004-
2006, a intervenção “humanizadora” na Praça da Bandeira se converteu não
apenas em farsa, mas, também, em tragédia.

Intervalo: a lente do olhar de um “estrangeiro” e sua “imagem invertida”


O espelho inverte a imagem. O direito passa a esquerdo. O esquer-
do, a direito. O espelho inverte o olhar. O olhar estrangeiro sobre a Praça
da Bandeira. O olhar do salão de beleza. Da beleza dos novos e dos velhos,
das mulheres negras e esbranquiçadas. Dos bolivianos que chegam do “rio”
para vender cestos plásticos para as roupas sujas. Do velho negro que transita
entre as “damas do meio-dia” no bar da Raimunda. A beleza que reflete a
margem. A margem do rio e a margem do centro. A margem da cidade limpa,
asséptica, branca, cristã e pura. A margem que dá pros becos, pros bares e pras
lojas de panelas, roupas, pregos, bacias, bem como das pequenas oficinas de
conserto de relógios e rádios e de consertos de cabelos encarapinhados, louros,
negros e índios. Das “lojas” de comidas. Das comidas também de homens e
de mulheres, por entre os becos, por entre os bares, por entre as pensões feitas
26
Souza, Fábulas da modernidade no Acre, 2001, p. 63.

210
de tardes, noites e manhãs de desejo.
O espelho inverte a imagem. De dentro pra fora. Não mais a imagem
feita sujeira, vagabundagem, violência e criminalidade: a imagem disciplinadora,
ordeira, planejada e superiora. Mas, a imagem feita de gentes que, “longe” do
centro, tateiam o chão e as paredes das quais também fazem parte.
O espelho inverte a lógica. Exclusão? A busca da inclusão. A inclusão
excluída. Ali, entre a “ponte velha” (“ponte de ferro”) e a “ponte nova” (“ponte
de concreto”). Nas pontes que fazem passar sob e por sobre. Sobre as águas
do rio Acre que teimam em quase esvaziar no “verão” e a quase transbordar no
“inverno”. No rio de alguns peixes grandes e pequenos. Do lixo que vem do
Taquari e do Cidade Nova. Da garrafa de coca-cola que vira casa de sapo,
arrotando os restos da bebida feita erupção gasosa nas barrigas das crianças
pobres do bairro Aeroporto Velho.
Águas rasas do verão que viram piscina para a meninada do Seis de
Agosto, que nada, pesca e pula; que leva a piabinha para o almoço da pouca
comida. Do peixe pequeno engolido feito espinho raspando a goela e extasiando
as barrigas famintas. Das meninas e meninos que pulam como malabaristas,
semelhantemente às mulheres e homens da praça acima, acrobatas dos becos
da vida pobre, mas vivida.
O espelho da imagem invertida, pendurado para embelezar quem
nele se vê, quem nele se espelha. Espelha a orelha pequena encoberta pelo
cabelo lavado pelo shampoo de R$ 1,99. Espelha o rosto alegre do cabelo feito
cachos de ouro, em consonância com o colar bijuteria de R$ 3,00. Espelha as
cenas de jogos e os jogos de cena na conquista do próximo cliente de R$ 15,00.
Espelha pedaços de vida. Espelha cantos de uma praça feito labirinto, feita de
lugares e de identidades.

211
Imagens invertidas no “coração rural da cidade na floresta” (Fotografia de Jones Goettert, 2004.
Acervo pessoal)

Espelhar. Interpretar.
Interpretação dada pela imagem refletida pelo espelho e refletida
para o interior da máquina fotográfica. A imagem da imagem.
A interpretação da interpretação?
A fotografia feito pedaço de papel e pedaço de ponte, de boteco, de
gentes e de praça. Assim, toda fotografia é instituída de cultura – de cortes e
recortes –, de interesses e interpretações. Representações de poder e de ideologia:
o documento fotográfico é uma representação a partir do
real, uma representação onde se tem registrado um aspec-
to selecionado daquele real, organizado cultural, técnica
e esteticamente, portanto ideologicamente. O chamado
testemunho fotográfico, embora registre em seu conteúdo
uma dada situação do real – o referente – sempre se cons-
titui numa elaboração, no resultado final de um processo
criativo, de um modo de ver e compreender especial, de
uma visão de mundo particular do fotógrafo; é ele que, na
sua mediação, cria/recria a representação.27

Além de representação – uma re-apresentação da apresentação – do real


pela fotografia, a produção possibilitada pela câmara escura é também, sempre,
uma interpretação do real, mesmo que sempre parcial, relativa e inconclusa.28
27
Kossoy, Realidades e ficções na trama fotográfica, 2002, p. 59.
28
Ibidem, p. 44.

212
Representação e interpretação. E também, fundamentalmente, uma
criação:
Toda fotografia é um testemunho segundo um filtro cultu-
ral, ao mesmo tempo que é uma criação a partir de um vi-
sível fotográfico. Toda fotografia representa o testemunho
de uma criação. Por outro lado, ela representará sempre a
criação de um testemunho.29

Uma criação e um testemunho que reflete uma paisagem que, para


Milton Santos, é “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é
a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a
vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, mo-
vimentos, odores, sons...”30
A paisagem, contudo, se externaliza e se internaliza. A paisagem que
vira território. Que vira múltiplos territórios. Territorialidades. Vistas de fora e
de dentro. De dentro dos becos feito espaço geográfico. Construído. Produzido.
Metamorfoseado a cada tempo e a cada gente que dele faz parte.
Para Ana Fani Alessandri Carlos:
A organização do espaço aparece através da paisagem,
urbana ou rural. Esta por sua vez, apresenta-se também
de um modo distinto de acordo com o momento históri-
co. A paisagem é a aparência necessária sem a qual não se
pode entender a organização do espaço, e sua conceitua-
ção exclui a de ‘paisagem natural’ uma vez que o espaço
geográfico não é um espaço natural e sim um produto de
determinada sociedade.31

Como produto de determinada sociedade, também a fotografia é parte


possível de leituras do espaço.
Imagens de becos.
Urbanos ou rurais?
Trans-urbanos e trans­-rurais. Partes da cidade que se fazem na indife-
rença de categorias ou conceitos definidos de fora. Ali, na praça, as “categorias”
são os Josés, as Marias, os Joãos, as Raimundas e tantos outros e outras com rostos
próprios, identidades próprias, jeitos próprios...
29
Kossoy, Fotografia & História, 2001, p. 50.
30
Santos, Metamorfoses do espaço habitado, 1996, p. 61.
31
Carlos, Reflexões sobre o espaço geográfico, 1979.

213
De nomes múltiplos que também se mesclam a múltiplas escalas.
Escalas do espaço e escalas do tempo.
A escala do espaço passa pelo corpo e pelo globo, pelo local e pelo
global. Segundo Neil Smith:
É possível conceber a escala como uma resolução geo-
gráfica de processos sociais contraditórios de competição
e cooperação. A produção e a reprodução contínuas da
escala expressa tanto a disputa social quanto a geográfica
para estabelecer fronteiras entre diferentes lugares, locali-
zações e sítios de experiência. A construção do lugar im-
plica a produção da escala, na medida em que os lugares
são diferenciados uns dos outros; a escala é o critério de
diferença, não tanto entre lugares como entre tipos dife-
rentes de lugares.32

Produzir espaço é produzir escala. Cada escala é critério de diferença


na medida que a sua produção requer o outro da projeção definida. Ou seja, a
produção da escala do corpo se manifesta na relação com o não-corpo e com
outros corpos. Da casa, com a não-casa e com outras casas. Da comunidade,
com a não-comunidade e com outras comunidades...
Também segundo Neil Smith:
O estilo corporal e as roupas medeiam as construções pes-
soais de identidade com culturas regionais, nacionais e
globais, além de proporcionar acesso ao corpo pela indús-
tria internacional da moda: a Benetton lidera o mundo na
conquista cultural dos corpos em ação. Embora marcado
pelo gênero, o estilo corporal é também uma questão de
classe.33

Escalas do espaço que se promiscuem a escalas do tempo. Articuladas,


“a multiplicação de escalas de observação é suscetível de produzir um ganho
de conhecimento do momento em que se postula a complexidade do real e
sua inacessibilidade”.34
Escalas de corpos que se cruzam. Escalas de uma “globalização”
que vira prostituição no “centro” de Rio Branco. Na praça abandonada pelo
poder público, mas não pelo público. Se os “Pão de Queijo” fecham suas portas
32
Smith, Contornos de uma política espacializada, 2000, pp. 132-159.
33
Ibidem, pp. 132-159.
34
Lepetit, Sobre a escala na história, 1998, pp. 77-102.

214
porque se popularizam e as reabrem em bairro mais “sofisticado”, na Praça
da Bandeira os pratos de comida barata enchem e satisfazem as trabalhadoras
e os trabalhadores do comércio e de serviços dali ou próximos dali. “Restau-
rantes” que criam e recriam – em escalas múltiplas – sorrisos, sociabilidades
e solidariedades. Criam e recriam desejos.
E poucas estrangeiras e poucos estrangeiros, apenas os mais avisados,
se dão conta de um universo capaz de acolher os “tortos” e os “direitos”, aco-
lhendo, assim, a imagem que se inverte pela “naturalidade” de um território
que se faz na visibilidade e invisibilidade de anônimas e de anônimos. Só para
os de fora, porque ali, no território feito de becos e gentes, todas e todos se conhe-
cem, mesmo que através do olhar rápido e passageiro da lente do estrangeiro.

Palavras de encerramento: a subversão do olhar


Convidados a assistir o “Mundo Entre as Pontes”, que “redesenha” os
mundos das trabalhadoras, trabalhadores e dos trabalhos da Praça da Bandeira,
tendo como pano de fundo as experiências de vida de Dona Pelegrina, alunas
e alunos do Curso de História da UFAC manifestaram diferentes pontos de
vista acerca dos depoimentos e das imagens desse vídeo-documentário. No
processo de criação e recriação de seus pontos de vista, os jovens estudantes
seguiram a trilha do diretor e do cinegrafista e embrenharam-se nos corredo-
res escuros e claros, sujos e limpos, “labirintaram” veredas de uma viagem
através de suas próprias impressões acerca da cidade e das imagens que cons-
truíram desde criança, sobre uma parte da cidade que era “paisagem de caos
e desequilíbrio”, porque reproduzia a anti-estética anestesiada de seu reverso
re-criador de “auto-estima”: o Canal/Parque da Maternidade, inaugurado em
setembro de 2002.
Analisando, interpretando a “cena urbana” a partir de perspectivas
urbanas, um grupo de moças e rapazes da “fronteira” amazônica, “mergu-
lharam” na praça e nas “tendas” do mercado com suas ervas, seus cheiros de
comida, suas lojas de miudezas e não-miudezas, seus esgotos a “céu aberto”,
seus universos de seres humanos e não-humanos transeuntes, passageiros/
habitantes ou habitantes/passageiros e produtores do “espaço” e da “opinião
pública” que, para Regina Pontieri, “não é lugar de estadia, mas de passagem,
[transitoriedade], [de ‘estrangeiros’] e de exibição”.35
35
Pontieri, A voragem do olhar, 1988, p. 97.

215
Relendo, ouvindo, revendo as falas de meninas e meninos que “viram
o velho mercado”, surpreendemos a subversão em seus olhares. Para elas e
eles, as mudanças da/na Praça da Bandeira impuseram a lógica do “quem
tem recursos financeiros vai embora, quem não tem fica lá: ‘escondido’ nas
tocas”. Para Caubi Ferro “isso [a Praça da Bandeira] não tem nada de feio. As
pessoas não vão lá porque têm vergonha. Eu vi no documentário um amigo
meu, já idoso, que faleceu e a forma como ele re-aparece na história da praça
o retorna à vida, porque ele vivia ali e vai estar presente sempre ali”. Em outra
fala, ressoa a voz de Rute Batista, confidenciando que, quando entrou na praça
pela primeira vez, “por aquelas ruelas e becos estreitos e escuros, fiquei com
medo e muito assustada (...) Depois fui vendo coisas que eu não sabia sobre
essa cidade de Rio Branco, porque eu não sou daqui”. O não “ser daqui” de
Rute Batista, contrasta com o “ser daqui” de Paulo Maia que nasceu e viveu
quase toda sua vida na “zona rural”: “acho que o mais importante para
aquelas pessoas não é meramente ganhar dinheiro, mas a vida, um tipo de
vida, um jeito de viver e de sentir que, muitas vezes, evidencia paradoxos em
tudo”. Pensativo, olhando distante, talvez, para um lugar invisível da praça,
Raimundo Neves fala de Dona Pelezinha como uma pessoa “que, em sua
narrativa, apresenta constantes paradoxos, pois afirma que não consegue viver
sem o mercado, ao mesmo tempo em que enfatiza que lá tudo fracassou, só
vai lá porque tem que trabalhar mesmo, porque é obrigada”. A partir de outra
perspectiva, Cleuton Freire faz uma análise diferenciada, ressaltando que a
“Praça da Bandeira dessacraliza nossas raízes”. Opinião que, em certo sentido,
não é acompanhada por Euzenir Miranda em suas re-memorações: “quando
eu era pequena que vivia por lá, eu achava tudo maravilhoso e bonito. Agora,
vendo esse documentário e retornando lá fiquei muito emocionada porque
revivi com meu avô e com as pessoas que eu sempre amei. Hoje, esquecemos
de nossas raízes, pois quando entramos num supermercado, a relação é fria e
racional. No mercado era diferente”.36
O que essas agora ex-alunas e esses ex-alunos fizeram foi exercício

36
Diálogos em Sala de Aula, na Turma do 1º Período do Curso de História (diurno) da
Universidade Federal do Acre, 1º Semestre Letivo de 2004, na disciplina Introdução à História
Contemporânea. Ressalte-se que selecionamos apenas trechos de algumas falas de uma turma
de 50 (cinqüenta) aluno(a)s, com os quais foi possível realizar uma extraordinária experiência
de produção coletiva do conhecimento nas idas e vindas ao mercado e na discussões teóricas
e reflexões durante as aulas. Parte substancial da inspiração que nos fez produzir este texto
nasceu dessa experiência.

216
de leituras da cidade em que viveram/vivem. Leituras de suas vivências e in-
cursões pelo roteiro de um filme e pelas idas à Praça da Bandeira na condição
de estudantes, procurando observar as coisas e as pessoas que, no dia-a-dia de
suas vidas, poucas vezes lhes chamavam a atenção. Lendo o vídeo-documen-
tário sobre a praça e, especialmente, lendo as observações de seus encontros
com diferentes pessoas nos becos, lojas, pensões e outros ambientes do velho
Mercado Municipal os então estudantes de história reviveram suas próprias
histórias pessoais, familiares, afetivas. Nesse processo, operaram com aquilo
que Williams classificou como “estrutura de sentimentos”, pois,
vivemos num mundo no qual o modo de produção e as
relações sociais dominantes ensinam, inculcam e se pro-
põem a normalizar, e mesmo a petrificar, modos de per-
cepção e ação distanciados, separados e externos: modos
de usar e consumir, em vez de aceitar e desfrutar, pessoas
e coisas.37

Vivemos em uma cidade que vem se transformando e sendo transfor-


mada muito rapidamente, mais ainda nas conjunturas em que certos governantes
tratam de deixar suas marcas “civilizatórias” ou “modernizatórias”, projetando
seu “amor à cidade” em maquetes e configurações gráficas computadoriza-
das e em anúncios publicitários pelos quais projetam “cidades do povo” ou
cidades “racionais”, “operacionais” e “limpas”: marca de “progresso” e “de-
senvolvimento” que privatiza o espaço público, medicaliza as relações sociais
e suprime o direito à cidade a milhares de mulheres e homens condenados ao
desaparecimento e substituídos por estranhas estátuas de metal que idealizam
e “homenageiam” a população da capital acreana, reduzida a um lugar feito
de retóricas de ocasião e sombras digitais.
Na Rio Branco idealizada pelo governo do Acre, em tempos de “flo-
restania”, “novo Acre” e mercantilização da natureza as praças, mercados e
outros espaços de sociabilidade e de luta pela sobrevivência e pelo direito à
cidade foram e são “revitalizados” e interditados aos homens e mulheres que
trazem as marcas do tempo em seus corpos, marcas das inúmeras violências
e das duras condições de vida gravadas em seus corpos, no dizer de Beatriz
Sarlo, para quem “o corpo e o tempo estão interligados: uma vida é um corpo
no tempo”. Um corpo marcado por toda sorte de privações e violências não

37
Williams, O campo e a cidade, 1990, pp. 398-399.

217
mente, acrescenta a autora:
quando o corpo não recebe aquilo de que necessita, o
tempo se torna abstrato, inapreensível pela experiência:
um corpo que sofre sai do tempo da história, perde a pos-
sibilidade de projetar-se adiante, apaga os sinais de suas
recordações. Os pobres têm corpos sem tempo. Por isso
as mulheres que têm trinta anos, oito filhos e um marido
desempregado ou preso parecem tão velhas. Por isso os
corpos dos velhos pobres parecem aniquilados.38

As reflexões de Sarlo nos inspiraram a problematizar diferentes


experiências e trajetórias individuais e coletivas do “Mundo entre as pontes”
como dimensões do viver e fazer a cidade. Nessa direção, em artigo sobre a
questão da escola no mundo das “meninas de programa” da Praça da Ban-
deira,39 foi possível dialogar com um universo de questões e falas que colocam
em evidência as formas de incorporação do “velho centro histórico” de Rio
Branco por diferentes sujeitos sociais que constituíam, a partir de seus fazeres
e afazeres, significativas formas de territorialidades na produção desse espe-
cífico espaço urbano:
Eu queria ter minha vida livre, por conta. Sabe o que é
ter a vida livre, por conta? Era isso o que eu queria. Não
consegui (...) Tô com 31 anos e não consegui (...) Já tive
minhas coisas, uma casa, até um bar eu já toquei. Co-
mecei o bar assim sabe, fui saindo, saindo, comprei uma
caixa de cachaça, comprei uma de cerveja, comprei uma
friza, comprei uma casa prá mim. Ai depois eu comecei
a gostar dum rapaz, ai a gente acabou com tudo, a gente
acabou com tudo, quando eu fui dar conta já tava tudo
acabado, tava devendo muito, ai pronto, acabou-se, eu
me separei (...) Nessa época eu entrei em muita confusão,
cheguei a pegar dezesseis xadrez.40

O relato de Lôra é lento, cauteloso, percorrendo, como as águas do


rio Acre, vários pontos da cidade, fortalecendo-se em experiências de coletivi-
dades na Seis de Agosto, Bairro Quinze, Base, Preventório, Praça da Bandeira,
Papôco e outros lugares de produção e reprodução socio-cultural. Tais lugares

38
Sarlo, Tempo presente, 2005, p. 15
39
Albuquerque; Souza; Félix, De “putas” e “bêbados” a escola faltou ao encontro, 1996.
40
Lôra, nome fictício ou, como ela prefere, nome de “guerra”. Entrevista realizada na Praça
da Bandeira, em maio de 1996.

218
refletem o processo de constituição da cidade de Rio Branco e, também, as
práticas culturais de seus habitantes, marcadas por expectativas diversificadas,
presentes em seus deslocamentos para um “urbano” propugnado como reali-
zador de bem estar e ascensão humana.
Distante das ficções modernizadoras que transbordavam das milioná-
rias peças de propaganda governamental, mulheres da Praça da Bandeira nos
falaram de seus amores e desamores, suas crenças e descrenças, suas ilusões e
projetos de vida: Joelma nos convidou para vê-la cantar em um bar no Bairro
Palheiral; Sandra nos pediu um casaco jeans e nos levou para conhecer seu
filho, que completava cinco anos; Lôra queria ter a vida livre, por conta; Francy
se guardava para um único “bichão”, como se referia ao promotor público
que, na intimidade, lhe prometia casamento; Joana descartava como absurda
qualquer possibilidade de suas duas filhas saberem qual era seu trabalho e
batalhava todos os dias para que ambas estudassem e fossem doutoras; Gilda
pretendia entrar na faculdade de comunicação social e ia à escola todas as
noites. Suas trajetórias são distintas, como distintos são seus desejos, sonhos
e receios ecoando pelos desaparecidos becos do mercado.
Marias, Gringas, Francys, Rays, Carmencitas, Suzanas, Joanas e
tantas outras mulheres territorializaram o mercado e re-ordenaram o espaço
público. Para elas e, em especial, para as que atuavam no “Bar da Loura”,
ter a vida “por conta” ou ser “independente” implicava em uma constante
re-territorialização daquele e de outros locais da cidade, recriando formas de
sociabilidades e códigos de comportamentos, valores e regras pautadas pelas
possibilidades materiais/simbólicas dos mundos em que viviam. Nos processos
de re-territorialização, colocaram e continuam a colocar em xeque a condição
de “vítimas”, “coitadas”, “ingênuas”, “inocentes”, “anjos da selva” ou “ra-
parigas do Papôco”, presentes nos estereótipos difundidos por certa produção
historiográfica e literária regionais, interlocutoras de uma abordagem ama-
zonialista que adjetiva e reduz mulheres e homens à condição de espantalhos
ou seres despossuídos de vontade própria e de história.
Nessa direção, é interessante dialogarmos com a fala de Thais Rios
da Mata, trinta anos, mãe de duas filhas, que fomos encontrar depois de atra-
vessar a metade da cidade de Rio Branco, na ida e na volta, sentados em um
banco de praça da Vila Betel, em uma noite estrelada:
Sou daqui mesmo, acreana, meu pai, minha mãe. A mi-
nha convivência antes eu trabalhava, cuidava da minha

219
família, sustentava minhas filhas quase só, porque meu
marido todo dinheiro que ele pegava era na droga, saía
com as mulher por aí, gastava todo. Eu agüentei acho
que uns dois anos isso. Então, me revoltei porque, tudo
que eu colocava dentro de casa ele acabava, dava fim.
O sacrifício que eu tinha pra colocar as coisas dentro de
casa, sustentar as meninas, ele dando fim em tudo que eu
tinha. Até quando eu conheci uma menina que é de lá,
veio morar perto da minha casa, e, ela começava a sair
chegava com dinheiro e eu tinha dinheiro em casa e ela
usava umas porcarias e me pedia dinheiro emprestado,
acabava o dela e me pedia emprestado, aí saía voltava me
pagava de novo, pagava com juro, aí eu falei que ia lá um
dia e fui. A primeira vez que eu fui ganhei bastante di-
nheiro, nesse tempo eu guardava o dinheiro, eu não mexia
com droga, guardava não comprava as coisas pra dentro
de casa. Aí comecei a me envolver com esse tipo de coisa
e com num rapaz que usava e vendia. Aí sai do meu tra-
balho e o dinheiro que eu pegava gastava todinho com ele
e com droga também, aí perdi o trabalho, minha patroa
insistiu muitas vezes pra mim sair de lá, pra mim ir para
um centro de recuperação, mas eu não quis. E continuei
andando nas esquinas.41

Após a entrevista, quando retornávamos à residência dos pais de


Thaís, onde a mesma vive com as duas filhas, no Bairro Cadeia Velha, distante
do gravador, ela falou de suas (ir)realizações amorosas, indagando se conhecí-
amos uma velha canção de rádio cujos versos dizem: “De que é feito afinal /
Este teu coração / E que espécie de amor / Você deseja dar? / Se me humilho
demais / Me abaixo até o chão / E ainda fico a dever / Sem lhe contentar /
O que mais quer você? / se tudo já lhe dei...”.42 Ao recitar esses versos, a so-
noridade e o timbre de sua voz sincronizava a indiferença em seu olhar. Uma
indiferença que transbordava no relato de sua trajetória, reconstruindo o que
sua memória articulava entre as longas tragadas de cigarro e o olhar por sobre
as casas de madeira no entorno dos bairros Esperança, Calafate, Vila Betel,
Floresta, Preventório.
As narrativas de Thaís, Sandra, Lôra, Joelma, Gilda e outras mulheres
nos permitem problematizar muitos dos preconceitos da sociedade em relação
Thaís Rios da Mata (nome fictício), em entrevista realizada no mês de junho do ano de 2004.
41

O nome dessa canção, que foi popularizada nas décadas de 1960-80 na voz de Altemar
42

Dutra, é “Tudo de mim”, uma composição de Jair Amorim e Evaldo Gouveia.

220
não às “prostitutas”, como nos lembra Margareth Rago, mas às mulheres que
“profanam” a suposta sacralidade de espaços projetados para regular condições
sociais assimétricas e patriarcais. São narrativas complexas e portadoras não
de simples contradições, mas de possibilidades de interlocução com a condição
humana dessas mulheres que, geralmente, são tratadas de forma a-histórica
ou alvejadas pelas intervenções “humanizadoras/revitalizadoras” do espaço
público. Intervenções que tentam “impor uma lógica única para a cidade,
uma territorialidade homogênea, controlável, fiscalizável, higienizável”,43 um
mundo de racionalidade e vazio de vida.
O mercado da Praça da Bandeira e a própria praça desapareceram.
Sucumbiram frente à intervenção neo-modernizadora do poder público acreano
entre os anos 2004 e 2006. Tudo desapareceu: os becos, os salões de beleza, as
sapatarias, as lojas, os bares e botecos, as pensões, os quartos de rotatividade,
os “puteiros”, as relojoarias e ouriversarias, as casas de ervas, todas as tocas,
as estivas, os roedores, as baratas e traças, as pulgas, cupins e, principalmente,
as centenas de mulheres, crianças e homens que os territorializavam, re-terri-
torializavam e reordenavam todos os dias.
Ao término do verão do ano de 2005, o tecido vivo do mercado da
Praça da Bandeira desmoronou sob os efeitos sedativos da “desodorização”
capitaneada pelo “Governo da Floresta”. Nas últimas semanas daquele verão,
as velhas e resistentes paredes de madeira das “bibocas” e do dormitório a céu
aberto do último estivador de carteirinha – o Cupuaçu –, o “Barriga Cheia”,
o Bar do Chico, o Bar da Loura as gomas, tabacarias, pensões, relojoárias e
botecos, os becos e bancas de chás, ervas e utensílios de “macumba” rangiam
seus esqueletos inundados de vida ante os martelos e força das máquinas
empilhadeiras e dos operários com seus capacetes e roupões amarelados.
Lembramos que, naquele ambiente “ensandecido” pelos “infernais” sons
“modernizantes”, em um melancólico fim de tarde no qual os longos raios
vermelhos do sol amazônico desafiavam o anoitecer, um grupo de entediados
funcionários públicos, boêmios do mercado, reunidos na antiga Pensão da
Nazira, umedeciam seus olhos em lágrimas de dupla consciência,44 tão inca-
pazes de pronunciar-se sobre qualquer coisa, quanto de fazer parar as roldanas
metálicas do velho “novo tempo”.
O governo das pontes e estradas, das fachadas de néon, do “toque de

Albuquerque, Nas margens do Aquiry, 2015, p. 269.


43
44
Interessantes reflexões sobre dupla consciência podem ser encontradas em Gilroy, O
Atlântico negro, 2001.

221
recolher”, da paz e do progresso, impôs seu ritmo: carnaval como antigamente,
fechamento de bares, cercamento de praças e sua concomitante remodelação,
câmeras digitais vigiando o centro da cidade, desaparecimento das putas da
Floriano Peixoto e outras esquinas, investimento em forte poder repressivo e o
controle de tudo. A devassa do mercado, gameleira, bebódromo, botecos e do
“mundo entre as pontes” consolidou violento processo de uma “re-urbanização”
e “desenvolvimento” que elegeu os pobres da cidade como seu alvo preferen-
cial. Pobres amarelos, brancos, pretos, indígenas, mestiços, “inclassificáveis”
sendo desaparecidos das praças centrais, cedendo lugar a uma Rio Branco
“limpa” e “iluminada” com artefatos, luzes, técnicas, palavras transitórias e
circunstanciais e, por isso mesmo, altamente nefastas e intolerantes com outras
formas de sentir, viver e produzir a cidade.

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História – 10. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC
– São Paulo. n. 10, História e Cultura. São Paulo: Educ, 1993.
PONTIERI, Regina Lúcia. A voragem do olhar. São Paulo: Perspectiva, 1988.
PORTELLI, Alessandro, Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas reflexões
Sobre Ética na História Oral. In: Projeto História – 15. Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados e do Departamento de História da PUC – São Paulo, n. 15
– Ética e História Oral, abril de 1997.
RICARDO, Ney; FREIRE, Assis. vídeo-documentário Mundo entre as pontes. Rio
Branco (AC): Lei Municipal de Incentivo à Cultura, 2003.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 4. ed. São Paulo: Hucitec,
1996.
SARLO, Beatriz. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura. Tradução
de Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2005.

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SEGRE, Roberto, Havana: o resgate social da memória. In: O Direito à Memória:
patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH/SMC, 1992.
SMITH, Neil, Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e pro-
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SOUZA, Pedro de. Depoimento oral. Entrevista realizada em Rio Branco, Acre, em
7 de abril de 2004.
SOUZA, Sérgio Roberto Gomes de. Fábulas da modernidade no Acre: a utopia
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2001 (Dissertação de Mestrado).
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução de
Paulo Henrique Britto. 1ª reimpressão, São Paulo: Cia das Letras, 1990.

224
Sobre as autoras e os autores
Ana Pizarro, Doutora em Letras (Universidade de Paris, França 1968) e Professora
da Universidade de Santiago do Chile.

Luis Alberto López Herrera, Poeta, professor de literatura e filosofia, pesquisador e


diretor de atividades culturais na cidade de Saint Lambert, Quebec, Canadá.

Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano), Doutor em Antropologia (UNB,
2011) e Professor da Universidade Federal do Amazonas.

Edson Kayapó (Edson Machado de Brito), Doutor em Educação (PUC-SP, 2012) e


Professor do Instituto Federal da Bahia (Porto Seguro).

Amilton Pelegrino de Mattos, Mestre em Antropologia Educacional (USP, 2005) e


Professor da Universidade Federal do Acre.

Rocío Casas Bulnes, Doutora em Estudos Americanos (USACH, 2016) e Pesqui-


sadora do Instituto de Estudos Avançados (IDEA) da Universidade de Santiago do
Chile.

Francemilda Lopes do Nascimento, Mestre em Letras: Linguagem e Identidade


(UFAC, 2010) e Professora da Universidade Federal do Acre.

Francisco Bento da Silva, Doutor em História (UFPR, 2010) e Professor da Univer-


sidade Federal do Acre.

Enilce do Carmo Albergaria Rocha, Doutora em Letras - Teoria Literária e Litera-


tura Comparada (USP, 2001) e Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Raquel Alves Ishii, Mestre em Letras: Linguagem e Identidade (UFAC, 2011) e Pro-
fessora da Universidade Federal do Acre.

Jamila Nascimento Pontes, Mestre em Letras: Linguagem e Identidade (UFAC,


2015) e Professora do Instituto Federal do Acre (Sena Madureira).

Carlos André Alexandre de Melo, Mestre em Letras: Linguagem e Identidade


(UFAC, 2008) e Professor da Universidade Federal do Acre.

Gerson Rodrigues de Albuquerque, Doutor em História Social (PUC-SP, 2001) e


Professor da Universidade Federal do Acre.

Jones Dari Goettert, Doutor em Geografia (UNESP, 2004) e Professor da Universi-


dade Federal da Grande Dourados.

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Formato: 16x23cm
Tipografia: Calisto MT / 11x16
Impressão e acabamento: F&F Gráfica Editora
Tiragem: 500 exemplares

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