Você está na página 1de 30
Estudos Histéricos Istvan Jancsd ORGANIZADOR INDEPENDENCIA: HISTORIA E HISTORIOGRAFIA SFAPESP EDITORA HUCITEC © Direitos autorais, 2005, da organizagio € do preficio. de Ise Direitos de publicacia, 2005, de Aderaldo & Rothschild Editores Leda Jodo Moura, 133 = 0544240011 Sio Paro, Br ‘eleione: 85 11 BOS87419 Atendimento ao Lestors $5 TL 36049273 E-mail: lerercler@erra.com.br Llome-pages www hues com br n Janes Ru Depdsico Legal eferuado, Asst Soria editorial Matiasa Nana Assessorist de produ Arte-final de eapa Mines Rowena, AG 33 ow. \ : CIP-Brasil. Caralogagio-na Fonce Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 134 Independéncia = hisedria ¢ fistoriografia / Istvan Jeness, orgunizador. ~ Sio Paulo : Hucites : Eapesp, 2008, Bap. il | ~ (Estudas histericns + 60) Consolidagio dos tabalhos do Seminitio Internacional “Iadependén: cia do Brasil: bist6sia © historingrata", realizado em secembro de 2003, na Universidide de S30 Paulo Inclui bibliogratia ISBN 85.271-0677-9 1, Brasil — Hiscéria ~ Independéneia, 1822 - Congressas. 2. Brasil — Historiografia ~ Congressos 1. Jsaess, fstvin, I. Fundagio de Amparo i Pesquisa da Pstada de $30 Paulo. UH, Série. 05-2666. EDD 981.04 DU 94(81)"1822" os PRIMORDIOS DO PROCESSO DE INDEPENDENCIA HISPANO-AMERICANO Juan GarLos GARAVAGLIA Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales AMERIGA ESPANHOLA E BRASIL PORTUGUES Ha alguns anos, nosso saudoso Frangois-Xavier Guerra dizia em Moder nidade ¢ Independéncias: “Na sea \axina, @ Amética espanhola ocupa lugar tinico, ¢ cm certa medida paradoxal, Com efeito, quando toda a Europa ji havia retornado a regimes mondrquicos ¢ até absolutistas, apenas os paises hispano-americanos continuavam reptiblicas € com instituigdes ¢ liberda- des de tipo moderno, £ preciso buscar a explicagdo no proprio fato da Inde- pendéncia. Ao romper 0 vinculo com a Peninsula Ibérica, também se rompia 0 utnculo com o Rei, ou seja, com a legitimidade historica, Nio restava enio ourse. caminho para legitimar 0 poder que no a modema soberania do povo. Por isso, toda instauiragio de uma monarquia fracassard na América, ainda quan- do cm certas €pocas boa parte das elites estiver tentada por esta solugio. E justamente porque: que legitimidade podia ter um rei que nao fosse 0 «senhor natural» do reine? O problema nito tinka solugdo, fasse qual fosse 0 tradicionalismo da sociedade e 0 caso do Brasil, com Império que perdura até 1889, oferece perfeita exemaplo contrério do que ocorre na América espankola” \ \ Modernided eindependencias — ensayos sobre las revoluciones hispénicas. México: FCE-Mapfre, 1993, p. 51, Outros livros que nos apresentam um panorama geral, de modo comparativo, sobre 0 tema da Independéncia: J. E. Rodriguez O. The Independence of Spanish America, Londres: Cambridge Latin American Studies, Cambridge University Press, 1998; 0 cléssi- code'T. Halperin Donghi. Reforina edisotucién dele imperios ibéricas, 1750-1850, volume 3 da Historia de America Latina. Madris Akanza América, 1985, eonsinwa senda importante 208 JUAN CARLOS GARAYAGLIA Os trechos acima em itilico sio meus ¢ dio conta do problema central que rapidamente salta aos olhos quando se pretende comparar os processos hispano-americanos com o luso-brasileiro: no primeiro caso, a ruptura da legitimidade a partir dos acontecimentos de Bayonne da golpe mortal no vinculo frégil que unia a seu rei os stiditos de ambos os lados do Atlantico (c dessa primeira premissa surge de imediato a seguinte: sem um rei legi- timo como cabeca da soberania, esta s6 pode residir de agora em diante no povo; assim, nao haveria mais stiditos mas cidadaos, embora a construgao de tal figura do cidadao leve mais de um século (mas este nao € por ora 0 problema). No caso luso-brasileiro, 1D, Pedro € 0 filho do rei (e, ainda por cima, primogénito) e, portanto, 0 Grito do Ipiranga, embora separe efeti- vamente o Brasil de sua Mae Patria, 0 faz respeitando esse delicado fio que sustenta a legitimidade. A tal ponto que D. Pedro, havendo jé abdica- do como imperador do Brasil, se vera obrigado pouco depois a socorrer Portugal na consolidagao dos direitos de sua filha ao trono, atuando no caso em scu papel de D. Pedro IV de Braganga. Aqui, nao ha diividas de que — apesar dos conflitos € revoltas em ambos os tados do Atlantico portugués — a legitimidade permaneceu a salvo pois, com 0 correr dos anos, 0 Brasil imperial ¢ 0 Reino de Portugal seriam regidos por seus fi- Ihos, Pedro II (em que pese o interregno liberal quase republicano) ¢ Maria II, apesar das revoltas miguelistas. Tais fatos so justamente os que, na América, distinguem a experiéneia hispano-americana da luso-brasileira, abrindo para a primeira os caminhos, complexos ¢ tortuosos, de sua modernidade peculiar 1808-1810: MOMENTO-CHAVE NA RUPTURA DA LEGITIMIDADE El Diario de Valencia de 28 de maio de 1808 publica uma proclamagio gue se inieia com essas palavras: “Sim, valorosos compatriotas, chegou 0 momento em que & forgoso cumprir a ratificago do juramento prestado a0 Monarca, quando com- prometemos nossa fidelidade ¢ nossa leadade, reconhecendo-o como Soberano. Esta € a mais escrupulosa obrigago de vassalo. . .” Essa “escrupulosa obrigagio de vassalo” provinha do reconhecimento ¢ juramento de fidelidade a Fernando VII, que os habitantes dos territ rios de toda a monarquia espanhola vinham cumprindo desde que o princi pe, gragas ao “motim de Aranjuez”,? havia assumido 0 trono, forgando seu Verdadeiro goipe de estado em matgo de 1808, promovio pelo priprio principe para destro- nar o valide Godoy e assumir 2 Goroa em lugar de seu pai, Carlos IV. Cf. M. Artola. La Fspaiia de Fernando VI. Madri: Espasa, 1999. PRIMORDIOS DO PROGESSO DE INDEPENDENGIA HISPANO-AMERICAND 209 pai a abandonar a Coroa ainda em vida, Como se sabe, tais fatos de margo de 1808 iniciam longo periodo de funda comogao e de auténtica revolu- gio que sacudiria os espanh6is em ambos os lados do Atlantico. Nao pode- mos entrar aqui nos complexos meandros desta hist6ria-na qual 0 Principe de Asttirias seria protagonista, iniciando assim um longo caminho de felo- nias e dubiedades, contrapartida patética do amor auténtico que seus stidi- tos Ihe dedicavam, Remetemos o leitor 4s paginas lapidares que Miguel Artola hé pouco dedicou ao assunto.” Em Buenos Aires, longinquo retalho da monarquia espanhola perdido nas planuras da América de Sul, um panfleto publicado em agosto de 1808, incitulado “Proclamagao patridtica composta por um filho de Bucnos Ai- res” registra também o instante do juramento a Fernando VII, comegan- do assi “Valorosos espanhdis europeus. Vossa cara patria geme sob 0 jugo infame de um poderoso opressor. O Corso josef prevende ser Rei de Espanha, enquanto vosso legitime Soberano Fernando VII, sua Real Familia, muitos Grandes do Reino, Prelados ¢ Conselheiros levados capciosamente a Bayonne...” Mais adiante, 0 documento entra num dos tpicos preferides dos pan- fletos do momento em ambos os lados do Atlantico: “Abjurareis a Religiio do Evangelho para adotar um segundo Alco- rho ditado pelo poder e organizado por Arcebispos € Bispos apdstatas?. . . Viva vossa Religido: viva vosso Fernando VIL...” Depois, 0 desconhecido autor do folheto passa a falar aos compatriotas: “Invenciveis espanhéis americanos: vossa causa € a mesma; devem ser os mesmos vossos sentimentos, .. Sede sempre espanhéis. . . conti- nuai vossa estreita ¢ admirdvel unio com os espanhéis europeus.” Vemos assim os espanhdis europeus © 0s espankdis americanos unidos num mesmo vinculo de vassalagem com seu amado Fernando. No entanto, os acontecimentos que se sucederiam até o virtual fim dos tiltimos restos de governo legitimo na ilha de Le6n em janeiro de 1810, acabariam rapida- mente com essa unido em terras americanas: “farsa” de Bayonne organi- zada por Napoledo, levantamento popular em Madri, processo de forma- 2 Tbidem, pp. 41-54. + Panfleto que integra a Colegio * iatranza” da Biblioteca Nacional, Buenos Aires. 210 JUAN CARLOS GARAVAGLIA cio de Juntas em toda a Espanha, resultado militar desigual que acaba por favorecer os franceses. Como disse Frangois-Xavier Guerra, os aconteci- mentos revolucionarios de 1810 na América ocorrem ao ritmo da chegada dos correios europeus — geralmente ingleses ou diplomaticamente neu- tros —- que anunciam a sucesstio interminavel (e que parecia entao “ter- minal”) de desastres na Peninsula. Instaura-se assim a idéia da eacatio regis € da retomada da soberania pelos “povos”. Etam essas mesmas idéias que haviam impulsionado a constituigio de jumias na Mae Patria; novamente — € nfo nos cansaremos de Jembrar — num ¢ noutro lade do Adantico, os mesmos homens tém quase idénticas reagdes insticucionais. As antigas teorias “pactistas” de raizes ibéricas, mescladas as novas concepgdes acerca da soberania popular recebidas da Tlustragio francesa, vio constituir a ar- madura institucional com a qual os habitantes da América espanhola vio apresentar suas reivindicagées. © primeiro aspecto a considerar, portanto, na eclosio do processo de independéncia 2 partir de 1809 na América espanhola (com as primeiras tentativas de formagdo de Juntas no Alto Peru e em Quito) € 0 problema da vacatio regis, ou seja, da “vacancia real”. O lugar do Rei, elemento fun- damental na legitimidade da monarquia hispanica, encontrava-se vacante desde os acontecimentos de Bayonne. Em que pesem todas as tentativas para fazer passar como legitimamente constitufdas as diversas Juntas pe- ninsulares, era evidente para os hispano-americanos que havia ali um pro- blema de legitimidade irresolvido ou, pelo menos, resolvido insatisfatori mente. Pois, se os diferentes “povos” da Peninsula se haviam arrogado 0 direito de constituir Junfas ante os acontecimentos desencadeados pelos conflitos internos da familia real, somados ao fato da invasio francesa, por que no poderiam fazé-lo os “povos” — sempre no sentido antigo de “ci- dades” — americanos dependentes da Coroa? O Ato de Independéncia (1811) de Cartagena, que fazia parte de Nova Granada, 0 diz com toda clareza: “Em nome de Deus Todo-Poderoso, Criador da Natureza, nés os Representantes do Bom Povo da Provincia de Cartagena das [ndias, congregados em Java plena, com assisténcia de todos os Tribunais desta cidade, 20 entrar com efeito em pleno goxo de nossos justos ¢ imprescritiveis direitos que se nos kao devokvidos pela ordem dos acontecimentos com que a Divina Providéncia quis marcar a dissolugao da Monarquia espanhola, © a subida de outra nova dinastia sobre 0 crono dos Bourbons. . .”* © M.A, Pombo & J. J. Guerra (comps.). Constituciones de Colombia, 1. Bogoté: Imprenta de ka Luz, 1911, pp. 47-51 PRIMORDIOS DO PROC! 80 DE DENCIA HISPANG-AMERICANO 211. O trecho italicizado por nés mostra de forma Kimpida o que dizfamos acima: “io entrar com efeito em pleno gozo de nossos justos ¢ imprescin- diveis direitos que se nos hio devolvido pela ordem dos acontecimentos com que a Divina Providéncia quis marcar 2 dissolugdo da Monarquia es- panhola”, a dissolugao da Monarquia (causada pelos acontecimentos de Bayonne e suas conseqiiéncias), deixa sem efeito o antigo pacto entre os stiditos € 0 rei, € desse modo os primeiros reasstumem desde entio a sobe- rania que haviam depositado no monarca, Exatamente o mesmo diria em Buenos Aires, em maio de 1810, 0 advogado pré-independéncia Juan José Castelli, quando falava da “reintegragio dos direitos de Soberania ao povo de Buenos Aires” e 0 que parecia mais notével — num primeiro ¢ ingénuo olhar — os préprios realistas usariam um ano antes a mesma argumentacio (quando haviam tentado um golpe de estado preventivo contra 0 vice-rei Liniers, acusado de pré-francés); assim um comerciante catalZo, Comet y Prat, afirmava em 1809 que “desde as abdicagdes de Carlos IV e Fernan- do VII em favor de Napoledo, todas as autoridades constituidas por aque- les necessitavam ser ratificadas pelo povo, em quem recafa a soberania”? Naturalmente, este argumento também havia sido utilizado na formagio das Juntas peninsulares, tal como se pode ver no caso da Miircis em 1808: “levando em consideragio que pela chamada a Bayonne de toda a famf lia reinante em Espanha e as rentincias que se supde dadas, 0 reino viu- se em situagio de orfandade e, por conseguinte, a soberania recaiuu no povo. .."* Comentando essas fontes documentais, Artola afirma que “o resultado mais transcendental de tais acontecimentos € o sentimento de reapropria~ «a0 da soberania pelo povo, posto em relevo em todos os escritos do mo- mento”.” Dado que essas proclamagées peninsulares eram copindas © re- impressas de maneira incessante para serem distribufdas como panfletos nas principais capitais americanas, restam poucas diividas de que essa ar- gumentagio tem uma origem ibérica claramente “pactista”;!” sua enorme Nio possuo o texto do diseueso 86 conkego algumas de suas partes por outros testemu- mnhos; v. R. Marfany. “El eabildo de mayo”, in: Genealogia. Hombres de Mayo, Revista del Instituto Argentino de Ciencias Genealégias. Buenos Aires, 1961, p. LXIV, Em Myo Decamental, t, VII. Buenos Aires: Universidad de Bucnos Aires, Facultad de Filosofia y Letras, 1963, p, 244 (doravante Mayo Doc) Gitado por Artola, que mostra ser este o argumento mais repetido na origem da formagio das juntas provinciais na peninsula. La Espaia de Fernando VIL, cit, pp. 93-4 ° Tbidem, p. 95, "© Apesar de, no caso platino, muitos histasiadores, presos a um marco estritamente local © sem enxergar além dos préprios narizes, terem discutido exaustivamente sobre as fontes ideolégicas do discurso de Castelli, 212 JUAN CARLOS GARAVAGLIA difusio aceitagio mostra justamente que ela se apoiava numa série de imagens conceitos comuns 3 tradigo juridica espanhola, Tradigio cultu- ral que as elites brancas americanas, como as peninsulares, conheciam € compartilhavam amplamente. Obviamente, nada impedia que, sobrepos- tas a essa heranga ibérica, novas concepgdes de cariz mais moderno, in- fluenciadas pela cultura da ilustragdo francesa (¢ também freqlientemente pelos founding fathers da Constituig20 norte-americana) assim mesmo tam- bém tivessem influéncia e, particularmente, um efcito catalisador. Ou seja, € indubitével que o fenémeno anteriormente descrito como de ruptura da legitimidade € a questio central — a fagidha inicial — que inauguratia, em ambos 08 lados do Atlintico, 0 grande ciclo de revolugdes do mundo his- panico em scu caminho até a Modernidade. Gontudo, tanto a revolugio liberal na Espanha quanto as revolugdes de independéncia hispano-ameri- canas sio processos muito complexos que se enraizam fundo na historia precedente © nas condigdes socioecondmicas peculiares de cada situagio local, dando lugar a itineririos radicalmente diferentes. Se nao poucos dos componentes desses processos sio semelhantes (e até, em algumas oca~ sides, quase iWénticos), em outros casos as diferengas resultam abissais. Passemos a expor alguns desses problemas, fazendo-o entrecanto quase exclusivamente no Ambito americano. ELITES & CLASSES POPULARES. DIANTE DO PROCESSO DE INDEPENDENCIA Esse processo de ruptura nao somente tem importincia para se com- preender o fenémeno de independéncia hispano-americano na chave das relagdes América-Espanha, mas também é capital para entender 0 modo pelo qual, no interior do espago americano, essa mesma ruptura da inicio a um processo centrifugo de explosio da soberania que se estende como rastro de pélvora. Se em Buenos Aires ou Santa Fe de Bogoté ieivindica- va-se 4 Junta sevilhana — ou & posterior Regencia de CAdis — o direito de exereer em seu préprio nome a soberania sobre um territério (neste caso, 0s correspondentes aos vice-reinados do Rio da Prata ¢ de Nova Grana- da), Assungao do Paraguai e Cartagena das {ndias queriam fazer valet 0 mesmo dircito perante suas antigas capitais, ¢ nao havia argumento juridi- co vélido (tentou-se, € claro, 0 da autoridade histérica da “ciudad princi- pal”) para convencer as elites cartageneiras ou assuncenas de que esse processo de reverso da soberania devia ser detido obrigatoriamente nas portas das “ciudades principales”, ou seja, neste caso, Bogot’ ¢ Buenos Aires. A ruptura de no poucas das antigas jurisdigdes herdadas do perfodo precedente ¢ a formagio de entidides politicas auténomas — ¢ até inde- pendentes — baseou-se neste simples principio. Obviamente, com fre- PRIMORDIOS DO PROCESSO DE INDEPENDENGIA HISPANO-AMERIGANO 213 giiéncia (€ os casos de Assungio e Cartagena nao foram citados aleatoria- mente) essa ruptura apoiava-se em velhas reivindicagdes ¢ antigos ranco- res entre as “ciudades principales” € as que lhes cram subalternas, Como. também, em fortes € contrarios interesses econdmices entre umas € outras. Contudo, ¢ aqui tocamos um dos temas mais interessantes do proceso de independéncia hispano-americano, também os setores da populagio urbana e tural que desde entio haviam participado em contextos politicos muito particulates da coisa ptiblica’' — e em momentos espectficos, geral- mente no marco de revolras tipicas do Antigo Regime"? — agora se senti- ram com muito mais direito de opinar em assuntos de governo, quer dizer, acelera-se nesses anos cruciais 0 fendmeno da progressiva consolidagio ¢ extensio social de uma opinido publica de tipo moderno. Assim, 0 proces- so de reversiio da soberania nao € sé de tipo forizontal (ou seja, entre entidades urbanas que encabegam diversas jurisdigdes territoriais ¢ dispu- tam sua preeminéncia) mas também, a0 mesmo tempo, de tipo vertical, ou seja, entre setores sociais no interior desses espagos territoriais. Porque todos compreenderam muito rapidamente que a reintegragio da soberania “ao povo” (fosse qual fosse, ainda nessas etapas inicials, a definigo que se desse 4 essa entidade ideal que se escondia sob esse nome) 9s colocava num lugar central nas disputas entre os diversos setores das elites brancas em busca da representagao legitima. Ademais, recordemos — ¢ este é tam- bém um fato de particular relevancia — que as disputas entre os diversos. serores das elites regionais, bem como a guerra de independéncia contra a antiga Mie Patria, exigem ambos 0 concurso de homens en armas, ele obriga a contar, de um modo ou de outro, com a opinido daqueles a quem se envia- va a0 campo de batalha para morter. Seja como votantes — quer dizer, pro- tocidadéos — ou como soldados milicianos, doravante © poder se basearia no ndmero, O fato obrigou as elites a levat em consideragio opinides, de- sejos (¢ até exigéncias) dos setores populares anveriormente impensiveis. E do mesmo modo que 0 processo centrifugo horizontal de reversio da soberania parece nao ter fim (Bogoté disputa com Cartagena, que por sua " Sobre as peculiares formas de expressio politica no periodo neogranadino, ver M. Garrido. La politica local en la Nueva Granada, 1750-1810. Anuario Galombiano de Historia Social e de a Gulrara, vol. 15, Bogoté, 1987. Quanto as do tipo “Viva o Rei © morta o mau governo” como as rebeliges comuneras neogranadinas dos anos 80 do século XVIH, ver A. McFarlane, Colombia antes de ta Independencia. Econornta,socedad y politica bajo el dominio borbén. Bogota: Banco de la Reptibli- ca-El Ancott, 1997. No caso paragusio, as tebelides comuneras de 1720-1735, operaram em prinespio de forma iléntia (depois, omovimencoceve acentuado carter de revolta campone- sa); ver nosso trabalho “Soldados y campesinos: dos siglos en la historia rural del Paraguai”, Suplenento Antropolégico, Revista del Centro de Estudios Antropalégicos, XX1 (1). Assungao do Paraguai: Universidad Catélica de Asuncién, jun. de 1986, pp. 7-71. agora incluido no livre Economia, sociedad y regiones, Buenos Aites: Ediciones de la Flor, 1987, pp. 195-260. 214 JUAN GARLOS GARAVAGLIA vez enfrenta Mompox e assim sucessivamente)” e abre a caixa de Pando~ ra de uma guerra chamade de “civil” pela historiogratia tradicional — o pro- cesso de expansio vertical dé lugar ao tio temido espectto da guerre soaial. Ambos 05 cendrios esto, na realidade, inextricavelmente mesclados. Nas Rio da Praia e Nova Granada Passemos a analisar, em dois exemplos regionais (mas, sempre que pos- sivel, procuraremos estender a comparagdo a outras regides), a forma como as elites — ou, talvez melhor dizendo, os notdoeis — viveram 0 proceso de ruptura com a Mae Patria Os vice-reinados de Nova Granada ¢ Rio da Prata erum os dois mais re~ centes do sistema colonial espanhol na América. Nova Granada existia como vice-reinado desde 1737 (com uma tentativa malograda algumas décadas antes) € Rio da Prata desde 1776. Ambas as estrutnras administrativas fazem parte de dois momentos diferentes do processo que habitualmente chamamos “reformas bourbénicas”, a de 1739-1740 ¢ a de 1776-1783." No que diz respeito ao Vice-Reinado de Nova Granada, este cra muito extenso e abarcava os territérios das atuais repiiblicas da Venezuela, Pana ma, Colémbia ¢ Equador, mas na verdade a Venezueli era uma capitania- geral — que dependia dirctamentc de Madri (mais tarde, em 1776, tam- bém teve sua prépria Audiencia) — e Quito possufa uma muito antiga Aw dhencia com muitissima independéncka jurisdicional ¢ militar, Qu seja, existia grande autonomia nestas trés partes do vice-rcinado neogranadino. A pre- senga do vice-rei realgou o papel de Santa Fe de Bogoté perante as de- mais cidades dependentes da Audiencia santaferenha (Cartagena, Cali, Tan- ja, Medellin, Pasto, etc.). Ou seja, desde o inicio existem duas Audiencias (Bogota ¢ Quito}, mas o sul neogranadino, Popayan, dependia da Audien- dia de Quito — e, como dissemos, a Capitania-Geral da Venezuela tinha 1 Hermes Tovar Pinzin, em seu artigo “Guerras de opinién y represién en Cotombia durante {a independencia (1810-1820)", in: Annario Colombiana de Historia Social y dee Cultura, Vol 11, Bogota, 1983, assinala que “por sua vez, as provincies eram um conjunto de partes que, por diversas razdes, haviam criado aatbém destobramentos solidos € intemamente desi- guais, chegando @ se converter em focos de oposicao 3 eapical da provincia. Isso foi o que ‘correu com Mompox ante Cartagena, Véle? ¢ San Gil no que diz respeito # Socorro, ot Sogamoso cm relagio & Tunja” — pp. 188-9. Seguindo MeFarlane, podemas dizer que as teformas bourbénicas em Nova Granada tém trés ondas: 1717-1725; 1739-1740 ¢ 1778-1783. A segunda delas comega quando se estabe- {ece em 1739— pela segtinda vez (a primeira havia acontecido em 1719) cagora de mancira definitiva — 0 Viee-Reinado de Nova Granada, Ver McFarlane. Colombia antes de ta Independencia cit. passim. Para Rio da Prata, momento realmente importante se inicia com a expedigio 2 Colénia do Sacramento em 1776, a posterior criago do vice-reinado © a instauragio do livre comércio em 1778. PRIMGRDIOS DO PRO $0 DE INDE DENCIA ISPANO-AMBRIGANO 215, governo auténomo e, portanto, a propria Audiencia, No caso rioplatense, a criagdo do vice-reinado em 1776 pds sob jurisdiga0 do vice-rei instalado em Buenos Aires a muito antiga Audiencia de Charcas (que corresponde hoje quase exatamente Repiiblica da Bolivia) e 0 governo do Paraguai — que na verdade dependia ja em alguns aspectos, € « caso por exemplo do Tii- bunal de Contas, do antigo governo de Buenos Aires. A Andiencia porte- nha, que se instalaré novamente em 1786 (a experiéneia precedente no século XVII havia fracassado) tinha agora jurisdigio sobre os governos de Buenos Aires, Tucumén, Paraguai e Montevidéu. A regido de Cuyo, des- de entio sob a jurisdigao da Capitania-Geral do Chile, passaria a depender também de Buenos Aires. Como se pode ver, essas duas divisées admini: trativas vice-reais por fim dardo lugar a oite septiblicas independentes.'® Entretanto, as razdes sio, em cada caso, complexas; mas sobretudo de- pendem de varidveis muito diversas ¢ esto bastante espagadas a0 longo do tempo: a Bolivia nasce em 1825, mas o Panama somente em 1903. . Os acontecimentos de 1810 em Nova Granada: confronto entre Santa Fe ¢ Cartagena Para 0 caso neogranadino, examinaremos o conflito que opunha as tes brancas da capital do vice-reino, Santa Fe de Bogoté, as do principal porto do Caribe (ademais, nticleo da guamicgo militar mais importante de Nova Granada), Cartagena de Indias." Na verdade, este conflito que eclo- dira abertamente em 1810, nao era senao uma heranga do periodo prece- dente, jd que os interesses das elites. santaferenhas © cartageneiras nao cram em absoluto coincidentes. A cidade portuéria vivia voltada para 0 Caribe (como Buenos Aires o fazia para o Atlintico), pois seu coméreio — legal e, sobretudo, ilegal — dependia estreitamente das relagdes que pu- desse estabelecer além do espago colonial, Cartagena queria ser mais um porto daquele Caribe aberto as poténcias européias € aos Estados Unidos — muito presentes nele desde o final de sua guerra com a Inglaterra — como de fato o eram Havana, San Juan de Puerto Rico ¢ Caracas, As elites % Quais sejam, em Nova Granada (Venezuela, rata (Bolivia, Paraguiai, Argentinae Uruguai) ® Guiamo-nos sobretude por A. Miinera. Bl racaso de la Navién, Regién, clase y rasa en el Caribe colombiano (1717-1821), Bogoté: Banco de la Reptblica-E! Ancora, 1998, bem como pelos trabalhos de A. McFarlane. Colombia antes dela Indepeadencia cit., ¢ La consttuccién del orden politico: fa Primera Repuiblica em la Nueva Granada, 1810-1815, Historia y Sociedad, 8, Universidad Nacional de Colombia, Medellin, 2002. Também R. L. Gillore. The Imperial Crisis, Rebellion and the Viceroy: Nueva Granada in 1809, Hispanic American Historical Review, 40(1), 1960.Para um panorama econdmieo do periodo, ver “La economfa del vsreinato (1740-1810)", de Jaime Jaramillo Uribe, in: J. A. Ocampo (ed). Historia econ mica de Colombia. Bogoté: Biblioteca Familiar Presidencia de la Republica, 1997, Zolémbia, Equador e Panams), na do Rio da 216 JUAN CARLOS GARAVAGI 1A mercantis da cidade (quer falemos de espanhéis peninsulares quer de crio- Ilos) & aiguns pouces Fazendeias que se achavam integrados com elas, tinham forte interesse que a cidade continuasse aberta para o Caribe. Po- 16m, 0s conflitos bélicos de finais do século XVIII (sobretudo de 1797 em diante) com a progressiva interrupgiio do comércio com a Espanha por causa dos ciclos das guerras napolednicas, levaram esse grupo mercantil & necessidade de exigir que se permitisse 0 comércio com as nagdes em posigio de neutralidade — e, sobretudo, com os norte-americanos, que os provia de farinhas a pregos mais accssiveis que @ produgdo interna, na regidio controlada por santaferenhos.” Além disso, esse trafico comercial permitiu que a exportagio — freqiientemente ilegal — de alguns produ- tos tropicais, controlados em grande parte por cartageneiros (algodao, pau- brasil, cacau), tivesse crescimento notivel durante esses anos."* O Real Conswlado de Cartagena, estabelecido em 1795, participou ativamente nesta discussio € seu ponto de vista representa claramente os interesses do grupo mercantil que dominava a cidade. Por outro lado, aos santafere- hos, em cuja elite os fazendeiros ocupavam fugat relevante, nfo somen- te nao os atrafa em nada esta abertura comercial, sendo que ia justamente contra seus inreresves mais profundos, jé que cram eles préprios que pro- duziam as farinhas que se enviavam a Cartagena (c, além disso, pouco Ihes preocupava a exportagio de produtos tropicais). As formas de produ- do e comercializacio de farinhas nos Andes ¢ as durissimas condigoes de transporte entre as frias esras andinas ¢ 0 porto caribenho, faziam que esse produto tivesse na cidade portuicia pregos muito menos vantajosos que os trazidos pelos mercadores norte-americanos por via maritima.!” "7 Sobre a questo do comércio de farinhas, ver M. Gonziles. La politica econémica virreinal en cl Nuevo Reino de Granada: \7S0-1810. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, vol. 11, Bogoté, 1983, especialmente pp. 145-9, Tal presenca de farinhas “esttan- geiras” em Cartagena comega na verdade ji desde o asiento negreito negociado com a Inglatesra apés a Guerra de Sucessio Espanhola no infcio do século XVII, ef. J. Jaramillo Uribe, La economia del viercinace. ..”, cit, p-69. E notavel a semethanga de posicio entre esses comerciantes ¢ um grupo de negociantes ¢ fazendeiros de Buenos Aires que. na mesma época, também exigiam a abertura do comér- io 20s pases neutros para exportar livremente sets produtos pecuitios. Novamente, isso também nos taz feminiseéncias de discusses portenhas causadas por idéntieas razées na primeira década de independéneia, quando a farinha norte-americana competia eficazmente com a produzida na hintenlandia da cidade das pampas, Se a farinha produzida a dez.léguas de Buenos Aites, com caminhos de planura relativamente transité- ‘eis, na realidad quase no podia competir com a norte-americans, podemos imaginar como eram as condigées em Nova Granada, onde 0 problema das comunicacdes entre 0s Andes © a Costa caribenha eram muito mais graves (ver nesse sentido as reflexdes de Minera em seu E/ fracaso de la Nevin... cit, pp. 32-45); na verdade, pensamos que um dos aspectos mais sérios neste assunto tein que ves com formas de produgio completamen- te divetsas que faziam do produto local neogranadino ou tioplatense presa relativarnente {Geil da competi¢go norte-americana encamada na produgio agricola dos farmers. PRINORDIOS DO PRO 880 DE [NDEPENDENCIA HISPANO-AMERICANO 217 Este é um breve resumo do conflito de interesses mais relevante entre as duas principais cidades neogranadinas no fim do periodo colonial, € justamente em 1809 uma decisto vice-real proibindo o comércio de Car cagena com os norte-americanos sera confrontada pelo cabilido cartagenei- ro (€, a0 final, como veremos, 0 governador se viu obrigado # desobede- cer ao vice-rei). Entretanto, agora, os fatos ocorridos na peninsula nos anos 1808-1810 precipitarao os acontecimentos,”" bem como uma de suas conseqiiéncias mais imediatas, a rebel de Quito em agosto de 1809 (af, a fina-flor da elite local forma uma Junéa, 4 semelhanga das peninsula res, que entretanto acabaré duramente reprimida por forgas militares en viadas por Lima),:! cuja noticia percorreré no sé Nova Granada mas toda a América do Sul como um rastilho de pélvora (pois além disso tinha sido precedida por outros fatos similares em Chareas ¢ La Paz). Na junta quitenha, alguns paianeses [da cidade colombiana de Popaysn (NT)] ha- viam tido papel destacado, como nos lembra R. Gilmore. As noticias che- gadas de Quito ao longo do més de setembro desse ano impelem o vice- rei Amar y Borbén a convocar uma reuniao em Santa Fe com a Aadiencia, © Tribunal de Contas, 0 Gabildo, a hicrarquia eclesidstica ¢ uns poucos vecinos principais. Entretanto, essa reuniio teve efeitos complecamente opostos aos desejados pelo vice-rei, uma vez que a maioria dos seus participantes optou por uma solugio moderada perante os quitenhos ¢ por levar a uma politica de negociagio com os membros da Junta. O vice-rei dissolve a reunigo sem submeter a voto as diferentes propostas & embora depois tenha tentado conciliar as diversas posigdes (particularmen- te entre os ouvidores € os cabildantes), na realidade, a repressio foi a tni- ca resposta aos acontecimentos verificados em Quito. Essa assembléia fracassada — em que pese estar estritamente limitada aos membros do alto clero, ao sctor mais graduado do Estado colonial, aos cabitdantes © uns poucos veeines escolhidos a dedo -— mostrou nitidamente os limites 2 Para. a Nova Granada nesses anos cruciais, 0 trabalho de Imperial Crisis, Rebellion and the Viceroy. .., it Ver Nucon Historia del Ecuador, editada sob a diregio de Enrique Ayala Mora, vol. VI, Independencia y Periodo Colombiana, coordenadores Carles Landau & Jorge Niiiez. Quito Corporacién Editoria Nacional-Grijalbo, 1983 A.25 de maio de 1809, um tumulto popular em Charcas tinha levado a demissio do presi- dente da Audiencia. Pouco depois, foi a vez da revolta de La Paz, muito mais dura e que termina na constituigio de uma junta com proclamagio de fortes acentos independentis- tas. As noticias sobre as revoltas de Chuiquisaca ¢ La Paz petcorrem, neste caso, todo 0 continente, de sul a norte, No que diz respeito a Quito, 0 bispo de Cuenca, nitidamente horcorizaclo, num panfleto reeditada em Buenos Aires em 1809 relata tais acontecimentos (Carta del Illmo, Sr don Andses Quintian Ponte. ..”.in:La Revotucién de Mayo a trawis de Jos impreses de fa epoca, doravante RMALE, compilados por Augusto E. Mallié. Buenos Ai- 1€8: Comision Nacional Ejecutiva del 150° Aniversario de la Revolueién de Mayo, tL, pp. 167-72). limore € muito teil v. The 218 JUAN CARLOS GARAVAGLIA do que as autoridades coloniais esravam dispostas a discutir com as elites locais.> Isto pareceu aos olhos dos membros da elite ainda mais injusto pois todos tinham em mente a proclamacio da Junta Central® de janeiro de 1809 na qual se havia declarado pomposamente que “os vastos e precio- sos dominios que a Espanha possui nas Indias nao sdo propriamente Cold- nias ou Feitorias como as de outras nagées, senfo uma parte essencial © integranse da monarquia espanhola” ¢ que, em conseqiiéncia, seus repre- sentantes deviam integrar a prépria Junra Ceniral, E. com efeito, em maio/ junho de 1809, os notiveis neogranadinos participaram — por intermédio dos Cabildos — da cleigio de um deputado, sendo finalmente eleito para representar Nova Granada 0 candidato das elites cosiefias, D. Antonio de Narvaez. Esses primeiros ensaios em busca de uma representacio das eli- tes tiveram relevante fungao na tomada de consciéncia de seus membros como componentes desta experiéncia preliminar protocidadi no imbito da monarquia hispanica, Entretanto, a proclamagio da Junta Central, 0 pro- cesso de eleigio de um representante neogranadino para integré-la © 0 resultado da reunido de Bogotd em agosto de 1809, nio podia ser mais evidente © demonstrava as elites, necessariamente, que aquela declara- do da Junta Central era exclusivamente pour la galérie © destinada in extre- mis a tentar ganhar a confianga das elites americanas. Efetivamente, as Indias eram Colénias ¢ nfio Reinos — com siiditos que desfrutam dircitos iguais aos dos metropolitanos.** Ainda assim, a desastrosa situago militar na Peninsula Ibérica dava lu- gar, por meio dos periédicos espanhdis que chegavam pelo correio mariti- mo ¢, mais tarde, nos navios neutros, a uma cascata de més noticias que eram imediatamente reproduzidas pelas prensas americanas como folhas 2 Preferimos falar em “elite local” & no s6 em “eriollos”, pois nao poucos peninsulares participavam deste grupo e, freqlientemente, como veremos, existem espanhis america- ros que se manterio figis ao governo real Desde 25 de setembro de 1808, sob forte influéncia do enviado britinico Stuart, eria-se a Junta Censral que: 20 se attitbuic uma soberania nacional criava um novo Estado espanhol”, segundo afirma Miguel Artola. La Espaita de Feruando VI, cit, p. 296. Um conhecido fivro de Ricardo Levene, Las Indias no eran colonias, publicado em Buenos Aires em 1951 pela Editorial Espasa Calpe (mas que havia sido precedido de um artigo que levava idéntico titulo em 1947), tentou malogradamente demonstrar essa tese. Os aconte- cimentos posteriores nas Cortes de Cais mostraram claramente 0s limites a que os penin- sulares, mesmo liberais, estavam dispostos a chegar em suas relagdes com os americanos. Nesse sentido, ver os artigos de José A. Piqueras. "Leales en &poca de insurreceién. La lite criolla cubana entre 1810 y 1814”, ¢ de Juan Marchena Feraindez, “El dia que los negros cantaron li marsellesa. EL fracaso del liberalismo espaiol en América, 1790-1823", ambos in: I. Alvarez Cuarteto & J. Sinchez Gémez (eds.) Visionesy revisiones de la Independencia americana, Universidad de Salamanca, 2003; ¢ também o trabalho de Josep Maria Fradera “Por qué no se promulgaron las «Leyes especiales» de ultramar?”, in: Gobernar cofontas. Barcelona: Peninsula, 199 PRIMORDIOS DO PROC! 0 DE INDEPENDENCIA HISPANO-AMERICANO 219 soltas € panfletos, ou por periédicos locais. No caso neogranadino, por alguns diirios como E/ Redactor Americano, que cra publicado desde 1806 om Santa Fe. Esta difusio de folhas soltas, panfletos ¢ periddicos — ge- neralizada em todas as grandes capitais americanas durante esses anos cruciais — apesar de ter como objetivo fundamental a difusao do patrio- tismo espanhol, terminou sendo uma faca de dois gumes (como entendeu mais de um peninsular regalista e 0 proprio vice-rei Amar, na Nova Grana- da),”” pois deixava na nascente opiniao prdpria das elites americanas a sensagio de que “tudo escava perdido na Espanha”. Isto ocorria ademais num momento em que uma opiaide publica de tipo nove — que ira apro- ximando-se muito lentamente da definida posteriormente por Jiirgen Ha- bermas — estava tornando-se um fato mais patente a cada dia nos espagos de sociabilidade em que se movimentava a elite.” Uma opinitio que se estava formando nao sé pela difusio maciga de folhetos ¢ da imprensa escrita, mas também gragas a ambitos de sociabilidade especificos como as fertulias, 08 cafés, 0s circulos de encuentro y discusién (nesse sentido, tam- bém os Consulados de Comercio cumpriram papel importante nos portos ¢ cidades mereantis mais destacados, especialmente nos criados na tiltima década do século XVIII.” Vice-reis e outras autoridades foram conscien- tes do perigo, mas este jd cra entio um fendmeno irreversivel (c 0 mesmo acontecia, € claro, do outro lado do Atlintico),” e pouco se podia fazer para deté-lo, salvo as habituais — e geralmente intiveis — pois tinham como resultado atigar mais ainda a curiosidade dos potenciais leitores — proibigdes de circulagio de impressos, limitagio de reunides publicas ou Veja-se nesse sentido os capitulos VII € VIII (este tltimo especialmente centrado na situagdo da Nova Espanha) do livro de F-X. Guerra, Madérnidad y independencias. it. ® Ver R. L. Gillmore. “The Imperial Crisis Rebellion and the Viceroy. ..", loc. cit, p. 20. 2 Paraeeste tema, no Rio da Prata, veja-se nosso estudo “Los primeros senderos de la revolucién: la opinisn en los balbuceos de la independencia (1810-1813)", in: L. Alvarez Cuartero & J. Sinchez Gémez (eds.}. Visiones y revisiones de la Independencia americana, cit., pp. 113-45 ¢ P. Gonzélez Bernaldo. La revolucién francesa y la emergencia de nuevas pricticas de la poli~ tica: la ierupcién de la sociabilidad politica en ei Rio de la Plata revolucionario (1810-1815), Bolen del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr: Emilio Revignani", 3, 1991. Para os Consuledas, dese ponto de vista, ver A. Minera, Edfracaso de la Nacién. . cit. pp. 105-18; F Langue. “Hombres y ideas de la Tlustracién en dos ciudades eonsuiares: Caracas y Veracruz”, in: Aristécratas, honor y subversion en la Venestela del siglo XVII. Caracas: Biblie teca de Ia Academia Nacional de la Historia, 252, 2000, Para 0 caso tieplacense, ef. G. O. E ‘Tjarks. EI Gonsulado de Buenos Aires ysus proyecciones en la historia del Rio de fa Plata, Buenos Altes: Universidad de Buenos Aires, dois tomos, 1962 3° M. Arcola, La Expaita de Fernando VII, cit R, Hocquellet. “La publicidad de la Junta Central espaviola (1808-1810)”, in: F-X. Guerra; A. Lampérire et allii Los espacios priblicos en Iberoaniérica. Ambigiadades y problemas, Sigles XVHE-XIX. México: FCE, 1998; C. Morange. “Opinién piiblica: cara y cruz del concepto en el primer liberalismo espaol”, in: J. F. Fuentes & L. Roura (eds.). Sociabilidad y liberalism en la Espaita del Siglo XIN. Homenaje a Alberto Gil Novales, Lleida: Milenio, 2001. 220 JUAN GARLOS GARAVAGLIA privadas, ete. O que os franceses costumam chamar / tephone arabe fun- cionava a perfeigdo durante aqueles anos, fazendo que as noticias corres- sem a uma velocidade assombrosa, sobretudo para os que esquecem de que estamos diante de uma sociedade habituada desde sempre a formas de comunicagio nas quais a oralidade desempenha papel determinaate. Mas voltemos ao fio dos acontecimentos neogranadinos. Em julho de 1809, 0 vice-rei Amar enfrenta os cartagenciros a respeito das relagdes comerciais com os navios de nagdes em posigio de neutralidade (e sobre- tudo com os comerciantes norte-americanos que eraficavam suas farinhas em troca de merais preciosos € produtos tropicais); como ja vimos, esta era uma das reivindicagdes mais sérias das elites mercantis cartageneiras — as quais, na verdade, s6 queriam seguir 0 caminho que a maior parte dos portos caribenhos havia romado a fim de evitar as piores conseqiién- cias da guerra européia sobre 0 comércio local." A parvoice do vice-rei e sua insisténcia em aceitar as pressdes dos grupos dominantes santafere- nhos, no momento em que — por causa dos acontecimentos de Quito — mais necessitava de mopas estacionadas em Cartagena, o fez perder com- pletamente a confianga dos mercadores cartageneitos (e de parte substan- cial da pequena opiniao piiblica da cidade). Como jA dissemos, 0 Cabildo de Cartagena — integrado por 7ollar e peninsulares quase em igualdade numérica — opds-se & medida do vice-rei, ¢ 0 governador, apesar de reti- cente, nio teve mais remédio sendo suspender a proibigao. Ele queria dizer algo muito claro; a autoridade do vice-rei havia sido ignorada. Um novo govemador chegaria nesses meses finais de 1809, 0 general-de-bri- gada Francisco Montes, Diante de tudo isso, a 14 de fevereiro de 1810, 0 Consejo de Regencia (ctiado em janeiro deste mesmo ano, reativando funcionalmente a Junta Gentral © petcebendo que 0 avango das tropas francesas se fazia quase insuperavel, apela a solidariedade dos espanhdis americanos, afirmando, entre outras coisas: “vossos destinos ji nao dependem nem dos Ministros, nem dos Vice-reis, nem dos Governadores; estio cm vossas mios”.? E Sbvio que esta nova declaragao, destinada a ganhar o favor das elites ame- ricanas, no conseguiu 0 efeito desejado e até, muito provavelmente, teve conseqiléncias ainda mais desastrosas que 2 de janeiro de 1809, emanada da Jemta Central, Junto de tudo isso, chegam & América as noticias das derrotas dos exércitos aliados anglo-espanhéis © a queda de toda a Anda- luzia, com excegio de uma diminuta ilha em Leén, onde se enconera E nio s6 no Caribe, pois nesse mesmo ano de 1809, pelas mesmas razdes, 0 viee-rei Cisneros se vé obtigado a accitar 2 presenga dos comerciantes ingleses no Rio da Prata %¢ Constltamos a versao publicada duas vezes na Gaceta de Buenos Aires ert junho de 1810 (o ‘que indica a relevincia que os conspiradores de Buenos Aires outorgavam a esse documen- to como instrumento de legitimidade), PRIMORDIOS bo PROG! S80 DE INDEPENT ENCAA HISPANO-AMERICANO, cidade de Cadis. Af se refugia a Regencia, protegida pelos bastides de Puer- ta de Tierra € pela marinha inglesa estacionada na bafa, tiltimo reduto da poder espanhol na peninsula, Era muito dificil dissimular 0 estado eatastré- fico da situagdo da Mae Patria os americanos nio demoram para reagic. E assim, ao ritmo mesmo em que essas noticias iam chegando 20s por- tos ¢ cidades ncogranadinos, tem intcio a formagio de juntas, Caracas a 18 de abril de 1810 (nio € casual este infcio precoce, pois era o porto de melhores comunicagdes na Tierra Firme), Cartagena a 22 de maio, Cali a 3 de julho, Pamplona a 4 de julho, Senta Fe de Bogoté a 20 de julho desse mesmo ano. . . Todas essas juatas (como ocorreria com a de Buenos Aises do 25 de Maio), insistem em declarar sua fidelidade ao rei Fernando VIT — recorrendo a essa fiegdio que se chamou por quase todo lado “a mascara de Fernando VII" — mas rapidamente os acontecimentos entrario numa dinamica muito particular que levard as elites 4 ruptura com a Mae Patria, Em Cartagena, a 22 de maio, os membros do Cabilds obrigam o gover- nador Montes a partilhar 0 poder com dois representantes nomeados pela prépria instituigio, Anténio de Narvaez ¢ Tomas de la Torse (0 primeira deles era deputado eleica para as Cortes por Nova Granada, conforme vi- mos anteriormente). Montes curva-se diante do fato consumado, mas em scu intimo esti decidido a resistir. Poucos dias mais tarde, a 14 de junho, 0 Cabildo 0 destitui; de fato, a autoridade dos mandatarios do governo me- tropolitano havia desaparccido. Um personagem importante, José Maria Garefa de Toledo — outro que fora eleito para as Gortes, neste caso por Cartagena — tera agora relevante atuagao. Um més apés a destituigio do governador Montes, Toledo escreve ao vice-rei solicitando-Ihe os fundos que Santa Fe habitualmence enviava para a manutengdo da guatnigio militar local ¢ finaliza sua carta glosando a declaragio do Gonsejo de Re- gencia do més de feverciro, adaptando-a 4 situagio de Cartagena: “a sorte desta provincia j4 nio depende nem dos Ministros, nem dos vice-reis, nem dos governadores, porque est4 em méos daqueles" (“aqueles” sio aqui os representantes nas Cortes, como era 0 préprio Toledo). Do mesmo modo que na longinqua Buenos Aires, tais homens utilizam esta declara- ga0 da Regencia para fazer frente aos enviados do Estado mettopolitano, sentindo que exerciam um dircito legitimo ao assumir a representagao americana 5 Ver, para 0 caso neo-hispanico, o livro de Marco Antonio Landavazo, centrado especifica- mente neste aspecto, La miscara de Fernando VIL. Discurso e imaginario mondrguicas en una toca de crisis. Nueva Espaita, 1808-1822. México: El Colegio de México-E] Colegio dle Michoacén, 2001; ver ainda J. Ortiz Escamilla. “Entre la lealtad y el patriotismo. Loscriollos al poder”, in: B. Connaughton etal. La construc de la legitimidad politica en México. Zamora: El Colegio de Michoacén, 1999, * Gitado em A. Minera. El fracaso de fa Nati, cit. p. 160. 222 JUAN CARLOS GARAVAGLIA Quando os santaferenhos se inteiraram dos acontecimentos de Carta- gona (e da impossibilidade de 0 vice-rei ordenar as tropas cartagenciras que subissem a Bogota para reprimir qualquer movimento), a 20 de julho de 1810, 0 Cabildo da capital forma também sua propria Janta, na qual, ¢ por pouco tempo, 0 vice-tei exerceria as fungdes de presidente. As princi- pais cidades neogranadinas, Cali, Pamplona, Socorro fariam o mesmo nos dias que seguem, deixando de Jado Popaydn ¢ Pasto no sul andino, que se manteriam figis & Regencia, como também o faz Santa Marta na costa do Caribe © 0 Panamé, no istmo, omega agora o momento mais complexo desta etapa dos faros que levam a ruptura com a Mae Patria; perfodo que a historiografia sobre Nova Granada conhece pela tradicional denomina- gio de Patria Boba [entendido aqui no sentido de patria “ingenua” — NT]. Por que Peiria Boba? Porque, scgundo essa tradigao historiografica, a “falta de cntendimento” entre as elites das principais cidades foi a causa do fracasso desta primeira experiéncia independente e da sua derrota nas mios dos exércitos regalistas. Uma vez destituido 0 vice-rei Amar (¢ 05 ouvidores da Audiencia, que por quase todo lado constituiram sempre a alma da resisténcia dos regalistas),” os santaferenhos pedem que as prin- cipais cidades de provincia — ou seja, as que até entio eram sedes de governos — enviem seus deputados para a constituigio de um novo go- verno a ser sediado em Santa Fe de Bogoté.* Obviamente, os cartage- neiros respondem a 19 de setembro que estavam dispostos a enviar scus representantes, mas io » Bogoti e, sim, a Santa Fe de Antioquia ou Me- dellin, Propunham ademais que, em vez de enviar um deputado por pro- vincia, cleger-se-ia um para cada cingiienta mil habitantes (Cartagena era na ocasiio uma das provincias mais populosas). Ser4 o prestigioso Anténio Narifio, que se encontrava entio casualmente em Cartagena, o encarrega- do de responder negativamente As exigéncias dos cartageneiros. Resulta~ do: Bogota retine um reduzido Congresso em dezembro desse mesmo ano, onde esto ausentes Cartagena, Antioquia, Tanja ¢ Popayan. Alguns meses mais tarde, novo intento, desta vez com a presenga de quase todas, as provincias (exceto Panama e Santa Marta, que seguiam figis A Regencia). Aqui, a discussio opés os partidérios de uma confederagao aos centrali: 85 O que cem que ver muito provavelmente com a formagao ea carreira burocritica tipica dos homens de lei em todo o Império espanhol % ata de 20 de julho de 1810 aprovada em Santa Fe diz: “contando com as provincias, Aquelas que a seu tempo pedir-se~4 deputados, forrando esse corpo o regulamento para as eleigdes nas referidas provincias, ¢ tanto este como a Constituigio de Governo deverio formar-se sobre as bases da liberdade ¢ independéncia de cada qual, ligadas unicamente por um sistema federativo cuja representacio seré sediada nesta Capital” — ver M. A. Pombo & J. J. Guerra (comps.). Constituciones de Colombia cit, ¢. 1, pp. 47-51. PRIMORDIOS DO PROCKSSO DE INDEPENDE CLA HISPANO-AMERICANO 223 tas; 08 primeiros firmam em novembro de 1811 a ata de constituigio das Provincias Unidas de Nova Granada, sem a participagao dos santafere- nhos. Nesse interim, jé havia comegade a ofensiva dos regalistas € 0 fra~ casso desta primeira experiéncia independentista parecia iminente, como efetivamente ocorreu um pouce mais tarde, mas nfio podemos nos deter mais nesse intricado processo em que interviriam também os interesses contraditérios de outras cidades neogranadinas, dando lugar a confrontos armados entre varias delas. Em realidade, visto sob uma andlise comparativa — ¢ referindo-nos apenas aos casos de Bogota ¢ Cartagena — ha aqui pouco de boberta [in genuidade — NT] © muito mais (como assinalam a partir de posigdes historiogrificas nem sempre coincidentes, Anthony McFarlane y Adolfo Minera) de um momento de explosiio aberta de muito antigas ¢ arraiga~ das contradigdes entre os interesses das clites mercantis de algumas cida- des da costa caribenha (sobretudo Cartagena) ¢ os das elites santafere~ nhas. Essas contradigdes, como vimos, estavam relacionadas a interesses ccondmicos divergentes que, por sua vez, estavam ligados estreitamente com formas de produgao, espacos geograficos ¢ condigdes ecolégicas muito distintas entre o interior andino ¢ a costa. Entretanto, também (¢ seria intitil ndo levar em conta esse fato) &s invejas reciprocas entre os grupos dominantes dos dois nticleos urbanos de maior peso em Nova Granada. Nenhuma das duas cidades estava disposta a que a outra gozasse do pri- meiro lugar numa nova ordem politica. Kis aqui um exemplo tipico desse processo de ruptura dos espagos politicos que acompanhou com freqiién- cia 0 fendmeno da dispersao horizontal da soberania no pés-1810. Contado, interessa-nos agora mostrar a outra face deste processo, ou scja, a ruptura vertical da soberania. Volremos a Cartagena. Como vimos, os problemas relatives 20 comércio de farinhas norte-americano haviam sido um ponto tradicional de friego entre as elites cartagencras € as 8 taferenhas. Entretanto, para as ptimeiras existia neste ponto nao sé um. problema de perda de ganhos mercantis, mas também uma séria ameaga de crise na provisio de géneros de primeira necessidade na cidade. A ci- dade de Cartagena, como primcisa praga forte do Caribe em Tierra Firme, dependia das relagdes com o exterior para o aprovisionamento de sua nu- metosa guamigio militar, pois sua hinterlandia agriria era bastante pobre € de recursos medianos — sobretudo em griios, Além do mais, a interrup- io no envio dos situados” nto s6 afetava diretamente 0 soldo dos contin- n= 5 Quantidades fixas de dinheito metilico que alguns caixts enviavam a outras jurisdigoes para financiaros gastos militares (Cartagena o recebbia na maior parte de Quito, via Santa Fe; como a Buenos Aires chegava por Potosi; La Habana, ¢ as restantes guamigdes vasibenhas orecebiam da Nova Espanta). 224 JUAN CARLOS GARAVAGLIA gentes militares, com miditiplas conseqiiéncias em toda a cidade, mas também comprometia a continuidade das obras de fortificaglo — e por isso causava no Ambito urbano forte desemprego que afetava as camadas populares. Nao foi dificil para os que conspiravam contra 0 govetnador Montes denuncid-fo diante dos artesaos mulatos ¢ mestizos da cidade como 0 responsavel por essa situagio de crise. No coup de main de 14 de junho (quando se destituiu © governador) foi evidente que as elites incitaram certos grupos de camadas populares para formar ameacadoramente na praca diante da residéncja oficial. Entretanto, interessa-nos aqui destacar como uma testemunha anénima viu 0 emaranhado desse acontecimento, quan- do relata como Pedro Romero, artesio mulato que trabalhava nos arse- nais, apalavrou-se com 0 aristocrata Garcia de Toledo (eleito como repre- sentante da cidade nas Cortes, de quem ja falamos) para intervir na asstiada contra 0 governador “O Sr. Pedro Romero se achou nessas circunstancias no mais grave comprometimento. Sua subsisténcia e 2 de umia numerosa familia depen- dia de suz ocupagio numa das oficinas auxiliares do Arsenal, no qual se achavam empregados tanto ele quanto uns filhos seus. Soube que assim que Garcia de Toledo expés-Ihe o plano de apear Montes o governador do cargo, parecew-lhe ume empresa impossivel e a encaroa como a coisa mais estranha que se pudesse tentar contra um magistrado de Sua Majestade. Um hiomem honrado, educado na mais completa iguordncia, como todos nbs, so- bre as relagies politicas que nos ligavam 4 metripole, era necessdrio que se admirasse ao owoir semelhante projeto, Mas Romero era um apoio impor tante na cidade € acabou convencido da justiga do projeto. . "°° E assim vemos Romero eneabegando um grupo de homens do bairro de Getsemani, armados de machetes, reunidos na praga situada em frente ao palicio oficial a 14 de junho de 1810, Contudo, interessa-nos chamar a atengio para as linhas por nés sublinhadas no pardgrafo precedente: a Ro- mero “parece ama empresa impassivel ¢ a encarou coma a coisa mais estranka que se pudesse tentar contra um magistrada de Sua Majestade® °* Em todas as cidades com guamniglo, aglutinava-se geralmente uma relagio econdmica es- treita e muito complexa — sempre nos limites da legalidade — entre 05 mereadores, 0 oficiais dos regimentos ¢ seus soldados, pois os primeiros sempre adiantavam os salirins dos tiltimos (geralmente sob a forma de mercadorias), cobrados mais tarde quando chegava odinheiro dosituado, Ou seja,a retengac dosituado em sua chegada afetava a todos € nd0 56 aos militares na guarnigio, Sobre esses temas, ver os estudos gerais para toda a América espanhola de Juan Marchena Femninde2. Ejércitos y milicias en ef mundo colonial americana. Mauri: Mapfie, 1992: ¢ de Carmen Gomez Pétez. E/ sistema defensico americano, Nadi Mapfre, 1992, especialmente as paginas 156-81. * Citado em A. Miinera, Bl aanso de ia Nacton. cit. p. 177. PRIMORDIDS DO PROCESSO DE INDEPENDENCIA HISPANO-AMERICANO 225, Para esse artesio mulato, homem “honrado, educado na mais completa ignordncia [. . | acerca das relagdes politicas que nos ligavam & metrépo- Ie”, a proposta de Garcia Toledo deve ter parecido a prinefpio um comple- to desatino: como poderia opor-se as decisdes de um “magistrado de Sua Majestade”? Como podia alguém em si consciéncia levantar-se contra um enviado de el-rei? (Mas onde estava 0 verdadeiro tei neste momento?). E assim, vendo como Garcia de Toledo, orgulhoso membro da elite branca € sua prestigiosa referéncia social, desconhecia a legitimidade de um repre= sentante da autoridade delegada por el-rei, a Pedro Romero, mulato de reconhecidos predicados entre seus pares, 0 mundo ficou de ponta-cabe- a. Doravante, na convulsionada Cartagena de entio, estar na ordem do dia a presenga ativa dos setores populares mulatos € mestizos nos sucessi- vos acontecimentos ¢ nos momentos de inevitével ruptura entre os seto- res da elite branca.”” ‘Tovar Pinzén cita, nesse sentido, uma frase da obra clissica de J. M. Restrepo, Historia de la Revolucion en Colombia, referente aos fatos de Cartagena, que resume bem tudo 0 que dissemos. “Como desde o principio a plebe foi chamada a tomar parte nos movimentos [. ..] ela se tornou insolente e a gente de cor que era numerosa no lugar adqui- riu uma preponderancia que, com 0 passar do tempo, veio a ser funesta para a tranqililidade publica”. Contudo, nio devemos pensar que este “chamamento a plebe”, segundo as palavras de Restrepo, implica que cla nao tivesse freqiientemente um certo grau de autonomia, como nos dei- xam ver alguns documentos sobre os fatos de julho de 1810 cm Santa Fe de Bogota.“ Com efeito, os testemunhos variados publicados no “Diario de um criolfo andnimo. ..” ¢ em especial o conhecido como sestemunho anénimo que, referindo-se a plebe santaferenha por ocasitio da prisio de um peninsular, afirma “Nao aguardario ordens de ninguém, porque ja ndo se respeitava autoridade nenhuma”,® jé revelam um grau de autonomia — obviamente relative — nestes movimentos populares. Ou seja, nessas ocasides, a legitimidade ¢ a soberania tinham sofrido uma fracura de outro tipo. Esta j4 no era a que se dava entre algumas cidades encabecudas por suas respectivas elites na busca da preeminéncia dentro dos marcos de uma regio, A ruptura agora ocorria dentro desses Ambitos urbanos, primeiro entre as elites e, em seguida, entre estas e os setores populares. A dinamica mesma dos sucessos bélicos ligados as lutas independentistas levaria muito rapidamente ao paroxismo tais momentos de ruptura, a uma espécie de guerra de “todos contra todos” Miinera, Elfrneaso de la Navin... cit. pp. 175-203. “Guerras de opinién y represién. ...", loc. cit. p. 188, nota 4, Diario de un criofla anénimo sobre el 20 de Julio de 1810, Anuaria Colombiano de Historia Social y de la Cultura, vols. 13/14, Bogots, 1985-1986, pp. 299-317, * Tidem, p. 306, 226 JUAN CARLOS GARAVAGLIA O Rio da Prata: Buenos Mires, as cidades “subalternas” € 0 problema da representagio Na Nova Espanha e no Rio da Praca, as primeiras tentativas de rup- tura da legitimidade foram realizadas pelos pré-peninsulares: 0 complé para substituir ilegalmente o vice-rei Iturrigaray na cidade do México, encabccado pelo fazendeiro peninsular Gabriel de Yermo em setembro de 1808, bem como a tentativa contre a vice-rei Liniers em Buenos Aires, dirigido pelo comerciante Navarro Martin de Alzaga em 1° de janciso de 1809. Essas tentativas golpiscas terminaram na realidade abrindo 0 cami- nho aos “rupturistas”, tendo assim conseqiléncias totalmente opostas aos designios de seus inspiradores. Alguns dos argumentos dos pré-peninsula- res que participaram ativamente desses acontecimentos em Bucnos Aires sio de uma cfareza meridiana, O negociante catalio Corner afirmava em Buenos Aires, como j& vimos, que “desde as abdicagdes de Carlos IV e Fernando VII em favor de Napoleio, todas as autoridades constitudas por aqueles necessitavam ser ratificadas pelo povo — em quem residia a soberania.“ E um mercador biscainho dizia que os objetivos dos cabildan- tes portenhos do golpe de janeiro de 1809 eram “que pelo mesmo motivo que na Espanha e alguns estabclecimentos ultramarings se formasse uma Junta Suprema do Vice-Reinado € sujeita & Central ou a quema representas- se a nagio”.** Obviamente, isto era dar argumentos de bandeja para os “independentistas” (chamé-los de “rupturistas” ou “autonomistas” seria taivez mais adequado), que utilizariam idéntica argumentagao por toda a América espanhola. O “golpe preventive” teria assim efeitos compleca- mente opostos aos desejados por seus instigadores. Desse modo, nos ca- sos do México ¢ do Rio da Prata, foram paritoxaimente os pré-peninsula- res — atendendo a justificagdes diversas e até contraditérias de um e de outro lado — os que deram o primeiro passo em diregio 4 ruptura da ordem imaginéria da monarquia, Contudo, como j4 assinalaram alguns estu- diosos,"” peninsulares © americanos achavam-se em um ¢ em outrvo lado nesses momentos. Alguns futuros revoluciondrios rioplatenses, como Mari- ano Moreno, se encontravam do lado da conspiragio pré-peninsular de Buenos Aires em 1809. Como se sabe, Buenos Aires encabegaria a Gnica experiéneia “rupturis- * Mayo Dot, t. VI, Buenos Aites, 1963, p. 244, “5 Declaragio de Juan Fernéndez Molina, Mayo Dor, t. VIL, p. 230. “No México, eramos pré-peninsulares os que se opunham. formagsio de uma.luate cneaborada pelo vice-rei; consultar a obractéssica de Timothy E. Anna. Lia caida del gobierno espaol en la Giudlad de México. México: ECE, 1981. * Para o case mexicano, ver T. E. Anna. La caida del gobierno espaol. . ., cit. 124, PRIMORDIOS DO PRO: $80 DE INDEPENPENCIA HISPANO-AMERIGANO 227 ta" que sobreviveria as conseqiléneias americanas da restauragao fernan- dina de 1814, Quais as razdes do éxito portenho? Tulio Halperin, acer- tadamente, assinala a importincia que tem o poder militar na capital rio- platense, poder que estava ademais jé “ganho de antemio para a causa tevolucionéria”.* Entretanto, este poder militar — que havia vitoriosa- mente tomado as armas contra as ineursdes britinicas de 1806 ¢ 1807 — estava estreitamente relacionado a um grupo urbano de intclectuais (ecle- sidsticos, advogados, publicistas) ¢ mercadores também favordveis 4 cau- sa, E, sobretudo, os interesses econdmicos dos produtores locais — ¢ dos comerciantes associados a eles — pouco tinham a perder ¢ muito a ganhar com uma abertura ao comércio atlintico (como ja vimos que ocorria em, Cartagena). Neste caso, h4 poucas dtividas de que os “interesses objeti- vos” dos produtores agropecuérios da hinterlandia dominada por Buenos Aires — exportagio de couros, care salgada, sebo ¢ outros subprodutos bovinos — estavam bem longe do que podia tolerar a politica econémica levada a cabo pela Junta Suprema, pela Regencia e pelos liberais: a questio colonial continuava sendo posta nos mesmos termos (c obviamente o fim das Cortes de Cadis no facilitou as coisas, dado 0 peso do /abby mercantil gaditano sobre os deputados af reunidos). J4 um ano antes da ruptura de 1810, o vice-rei Cisneros tinha-se viste obrigado a permitir 0 comércio com os ingleses, abrindo assim o caminho, scm volta, para uma estreita relagio com o Atlantico. E ainda que ninguém entio pudesse saber disso, © fato permitiria que nos anos subseqiientes essa experiéncia revolucion’- ria recebesse pelas entradas aduanciras 0 mand econdmico que possibili- taria financiar a guerra contra a Mae Pétria e construir as bases de um novo Estado. Desde entio, 0 situado de Potosi tinha sustentado a maior parte dos gastos da burocracia ¢ também o exército. Contudo, uma vez cortada a telag3o com 0 Alto Peru minerador (causada pela guerra com os regalis- tas enviados de Lima), a abertura para 0 Atlantico foi a dave mdgica que permitiu a continuagao dessa experiéncia independente. Vamos agora a fio dos acontecimentos no momento da ruptura. Desde a ata do 25 de maio de 1810, a convocagao para uma teuniio dos representantes de cada Cabildo do interior para “estabclecer a forma de governo que se considere mais conveniente” é um objetivo claro da Junsa que havia tomado o poder em Buenos Aires, O parigrafo X da ata de 25 de maio diz “que os referidos $8. [membros da junta] despachem, sem perda de tempo, circulars aos Chefes do interior ¢ correspondentes, encarre- gando-lhes muito estritamente sob responsabilidade, fagam que os res- pectivos Cabildos de cada um convoquem por meio de correspondéncia a parte principal ¢ mais si do vecindario, para que formando um congresso * T, Halperin Donghi, T. Reforma y divolucion de los imperiosibéricos, cit. p. 124 228 JUAN CARLOS GARAVAG: IA com apenas aqueles que daquel forma haviam sido convocados clejam seus representantes € estes hio de reunir-se com a maior brevidade nesta Capital”.” Podemos comparar esta convocagio a representagao dos Ga- bildos rioplatenses com o quase contemporineo santaferenho, expresso na ata do 20 de julho de 1810: “contando com as provincias, as quais a seu tempo se pedirio deputados, formando este corpo o regulamento para as cleigdes nas ditas provincias, e tanto este como a Constituigzo de Gover- no deverdo formar-se sobre as bases da sua liberdade © independéncia respectivas, ligadas unicamente por um sistema federativo cuja representa glo deverd residir nesta Capital”. Num caso, fala-se de representantes ¢ outro de deputados, mas jé sabemos, conforme nos lembra Maria Teresa Garcia Godoy, que “representante do povo/ida nacio” funciona como subs- tituto lexical de dgputado durante 0 periodo das gucrras de independéncia (espanhola € americanas)." E em ambos os casos, sublinha-se a preeminén- cia que deveriam ter as capitais (Santa Fe e Buenos Aires) sobre todas as cidades subalternas nesta nova trama politica que se estava tentando eriar. Contudo, do mesmo modo que ocorreria com Cartagena em Nova Gra- nada, no Rio da Prata algumas das cidades subalteras aproveitaram essa quebra da legitimidade para se negar a seguir subordinadas 8 antiga capital do vice-reino, E assim, Assungio do Paraguai, Cordoba ¢ Montevidéu colocaram opcies distintas diante da solicitagao de enviados feita por Bue- nos Aires. Entretanto, cada caso se explica por cazdes diversas. Em Cor. doba, a presenga do ex-vice-rei Liniers deu ensejo a que o bispo ¢ alguns altos funciondrios peninsulares, apoiando-se em um setor da elite local, se opusessem a Buenos Aires, mas de uma perspectiva contraria a codo ato de insubordinagfo em relagio A Regercia (0 exército enviado de Buenos Aires dew cabo muito rapidamente deste movimento de oposigo em Cér- doba). No porto de Montevidéu, praga-forte bastante invulnerivel, 0 0- vernador-militar (depois nomeado vice-rei, corone] Francisco Javier de Elio, furiosamente legitimistz ~ a ponto de morrer no eadafalso na Espa nha durante o Triénio Liberal) organiza a oposi¢ao a Buenos Aires; esta oposigdo teve apoio dos comerciantes € mercadores montevideanos que sempre haviam competido com seus pares dz Banda Ocidental pelo con- trole do comércia rioplatense © estavam bastante dispostos a se mancer independentes daqueles. Ou seja, nesses dois casos, trata-se de duas cid: des que optaram pot uma posig20 pré-regalisca (como era 0 caso de Po- payn ou Santa Marta em Nova Granada), mas na qual jé despontam lutas © RMAIE, t. 1, Buenos Aires, 1965, p. 353, pardgrafo X da ata de 25 de mato de 1810, SM. A. Pombo & J. J. Guerra (comps.). Coneitauiones de Colombia, cit... 1, pp. 47-51. 5! Em seu livro M. T: Garcia Godoy. Las Cortes de Ciidia y Amértea. Ed primer vocabulario liberal espatil y mejicano (1810-1874), Sevitha: Diputacién de Sevilla, 1998, pp. 242. PRIMORDIOS DO PROCESSO PE INDEPENDENCIA HISPANO-AMFRICANO 229 entre as elites urbanas pela preeminéncia regional, sobretudo, no caso de Montevidéu, perante Buenos Aires. Contudo, a situagio mais interessante é a de Assungio do Paraguai. A cidade tinha sido cabega de uma extensa jurisdigdo (que inclufa também Buenos Aires) até as primeiras décadas do século XVII, mas 0 crescimen- to da cidade portenha — seu crescente dominio sobre os circuitos de comercializagdo com 0 rico mercado minerador do Alto Peru — trocou os papéis ao longo deste século ¢ esta, nao sé se independentiza, mas tam- bém termina controlando completamente 0 comércio de erva-mate (0 pro~ duto por exceléncia do Paraguai) no conjunto do espago econdmico plati- no ¢ do Alto Peru. A erva-mate paraguaia devia descer até Buenos Aires € dali era redistribuida por todo esse espaco e, obviamente, os comerciantes portenhos cobravam bastante caro por este papel de intermediagao. Tal fato, somado ao isolamento regional de Assungo — a tinica saida para a produgio local era a via fluvial que conduzia Parand abaixo até Santa Fe de la Vera Cruz e Buenos Aires, pois todos os caminhos terrestres para outros destinos eram quase impraticveis — fez que os paraguaios tives- sem havia muito tempo um forte sentimento de autonomia ¢ a mesmo tempo de rechago perante os abajeiias (habitantes das “provincias de aba- jo” — NT] e, em especial, aos portenhos. Uma vez recebido em Assung%o 0 comunicado da Junta de Buenos Ai- res, 0 governador peninsular Velazco ¢ os membros do cabildo assuncenho respondem & Junta que “considerando 2 gravidade do assunto € que sua decisao nao deve ser fruto de seu perticular discernimento mas do voto meditado de toda a provincia representada nos deputados de suas vilas, populagdes ¢ principais vecinos, concordou em celebrar um congresso-ge~ ral a 24 do corrente para resolver tao importante e delicada matéria”;* reunido 0 congresso, ficou claro que a maioria estava de acordo em man- terse distante da experiéncia iniciada em Buenos Aires, no que tinha a aparéncia de uma demonstrago de lealdade a Fernando VII (mas, sobre~ tudo, mais para aprofundar sua autonomia ante os portenhos que por lea dade & Coroa). A posterior invasio do territério da provincia por um exér- cito enviado da capital — que € derrotado — aprofundou esta brecha € demonstrou ac mesmo tempo a escassa confiabilidade dos regalistas (que quase fugiram do campo de batalha). Para piorar, estes surgiam em conci- ligbulos secretos com os enviados do Rio de Janeiro pela Princesa Carlota Joaquina — a antipatia contra os portugueses era quase maior que a reser- vada aos portenhos. Em maio de 1811, um coup de main preparou o fim do governador Velazco que, menos de um més mais tarde, seria destituido. Um novo congresso reunido a 17 de junho deste ano (com a presenga de 8 Ver Regisiro Oficial dela Repiblica Argentina. .., La Reptblica, t. 1, BuenosAires, 1879, p.56. 230 JUAN CARLOS GARAVAGLIA quase trezentos representantes, quantidade nfo aleangada por nenhuma das assembléias contemporineas realizadas no tertitério do antigo vice-reina- do platino) decide pér as relagdes de Buenos Aires em pé de igualdade no marco de um sistema confederativo, mas sobretude exige eliminar o im- posto da erva-mate ¢ liberar 0 estanco do tabaco — principal produto co- mercializado pelo campesinato local. Finalmente, institui uma jana guber- natioa de cinco membras.® Essa proposta de confederagio, a primeira dentre varias, foi rechaga- da (ou melhor, olimpicamente ignosada) pelo grupo que controlava 0 go~ verno em Buenos Aires; este no tinha o menor interesse em partilhar 0 poder com as cidades “subalternas”, entretanto, interessa-nos mostrar aqui de que maneira, como no caso da disputa Santa Fe/Cartagena, esse pro- cesso de dispersio da soberania de que temos falado se acentua ¢ se ace- Icra quando os interesses econémicos das regides acabam por ser clara- mente contrastados. Mas citemos as préprias palavras do officio enviado pela Janra de Assungao A de Buenos Aites a 20 de julho de 1811: “E indubitavel que, abolida ou desfeita a representagio do poder supremo, este recai ou sesta refundido em toda a nagio. Cada povo se considera entdo, de certo modo, participante do atributo da soberania, . . € portanto, reassumindo os povos seus direitos primitives, se encontram todos na mesma situagio © que corresponde a todos velar por igual pela prépria conservagio”.* Como vemos, deparamo-nos sempre com 9 mesmo argu- mento e idéncico aparato conceitual dando conta desse fendmeno que temos chamado aqui de processa de dispersdo horizontal da soberania, Os acontecimentos que se passaram em Buenos Aires desde as jornadas de maio de 1810 sdo um testemunho evidente da clara consciéneia que tinham muitos dos propulsores do processo independentista sobre os peri- gos que este processo de dispersio da soberania podia ter sobre o futuro da experiéncia revolucionaria. E assim, pouca a pouco, vemos como fo- ram acabando — gragas a it mais ou menos aberta dos enviados da capital — toda velcidade de autonomia das cidades subalternas em Para mais detalhes, ver “Reconstruccién del congreso del 17 de junio” . Historia Parnguaya. Assungio do Paraguai: Anuario del Instituto Paraguayo de Investigaciones Histésieas, vol 2, 1957, pp. 125-36. E também: R.A. White. La pofitica econémica del Paraguay popular (1810-1840). La primera revolucién radical de América, segunda parte, Estudias Paraguayas, Revista de la Universidad Catdlica “Nuestra Sefiora de Asuncién”, Assuncao do Paragusi vol. III (2), dez. 1975, pp. 45-137. Precede esta a uma outra de mais impacto, ainda que também tenha sido rechacada por Buenos Aires, qual seja, a que foi colocada por representantes da Banda Oriental em 1813, ver Miranda, H. Las Instrucciones de! Ato XU 2%. Montevidéu: Casa A. Barteiro y Ramos, 1938. Gitado em Stefanich, J. El Paraguay en la emancipacién americans, Estudins Paraguayos, Revista de la Universidad Catélica "Nuestra Sefors de Asuncién”, Assuncao, vol. III (2), dezemibro de 1975, pp. 15-6. PRIMORDIOS DO PROG $0 DE INDE! ENDENGIA HISPANO-AMERICANO 231 grande parte do territério do que havia sido o vice-reinado platino.® Pelo menos, até os acontecimentos de 1820 (derrota portenha e surgimento das autonomias provinciais, com as provincias orientando-se decididamente para uma forma de confederacio), tiveram relativo éxito nesta tarefa Mas vejamos agora como se pode observar no curso dos acontecimen- tos na prépria cidade de Buenos Aires 0 desenvolvimento de outro aspec- to do problema, ou seja, o que chamamos de ruptura vertical da soberania. J& nas jornadas anteriores ao 25 de maio de 1810, a presenga de grupos de jovens da elite nas ruas ¢ na Plaza Mayor havia dado um certo calor aos acontecimentos; a historiografia tradicional e de inspiragio patridtica apre- sentou essa ruidosa presenga dos jovens rebentos das familias tradicionais sob 0 titulo empolado de “o povo”. Mas, pelo contrario, parece evidente que 08 sctores populares nao participaram sengo muito secundariamente nesta primeirissima etapa dos acontecimentos que se passaram em Bue- nos Aires.*’ Sera em abril de 1811, por ocasido da resolugio de um dos tantos conflitos entre os grupos da elite que dirigiam 0 processo revolu- ciondrio, alguns dos seguidores do entio presidente da Junéa, 0 militar Cornélio Saavedra, acodem aos subtirbios da cidade em busca do apoio de homens de fora da elite, Essas jornadas, conhecidas como a “revolugio do 5 € do 6 de abril”, presenciaram com efeito um fenémeno novo. Grupos de homens das franjas da cidade chegam ao centro mesmo e — sinal indu- bitavel de suas raizes rurais — fazem-no a cavalo, vestidos com poncho ¢ dhiripd,* segundo um testemunho escandalizado; acodem assim A Plaza Mayor em apoio aos saavedristas, contra os morenistas. Nao podemos en- trar aqui em andlise pormenorizada desses fatos,** lembraremos apenas as palavras de uma testemunha ocular desses acontecimentos: “Sinto chegar 0 momento! Dom Cornélio Saavedra abre a Caixa de Pandora votada pelo destino aziago & transformacao do povo de maio; Nos pampas argentinos, brasileiro, paraguiios c uruguaios, 0 ohiripd era uma vestimenta do gaucho, consistindo num “reténgulo de pano, gerlmente de li vermetha, passado entre as coxas ¢ preso a cintura” (Diciondrio Howaiss da lingua portuguesa) — torando mais, confortavel 0 ato de cavalgar. Na Argentina € no Uruguai, € hoje sinonimo de “fralda” (Diecionario de la lengua espaitola — Real Academia) {NT Sobre esse aspecto no periodo mais precoce da revolugao, ver nosso trabalho “Manifesta- ciones iniciales de la representacién en el Rio de la Plata: la Revolucién en la laboriosa biisqueda de la auronomia del individuo (3810-1812). Revista de Indias, 231, Madi: may.-sep. 2004, pp. 349-82 CER. Marfany. “Bl cabildo de mayo”, in: Genealagia, Hombres de Mayo, Revista del Instituto Argentino de Ciencias Genealégicas, Buenos Aires, 1961, Para anilise mais detalhada, cf. o trabalho jé citado “Manifestaciones iniciales de la representacién enel Riode la Plata. ..”,cit.,e também G. Di Meglio. La participacion politica dela plebe urbana de Buenos Aires en la década de la Revolucion (1810-1820). Tese de Licencia- tura, Buenos Aires: Faculdade de Filosofia y Letras, UBA, Buenos Aires, 2000, pp. 48-58 232 JUAN CARLOS GARAVAGLIA as noites do 5 e do 6 de abril foram o ponto de virada para a sucessio de funestas assuadas que devoraram os préceres de nossa origem politi- nso ca. Caixa de Pandora! Parece que estamos lendo novamente José Maria Restrepo quando se referia 4 mobilizagio da plebe em Cartagena. Em ambos 08 escritos, 0 uso do mesmo adjetivo (funesto) para qualificar esses acontecimentos simboliza bem a proximidade ideoldgica no olhar desses dois autores contemporineos: “ Como desde o principio a plebe foi chamada a tomar parte nesses movimentos [. . ., ela se tornou insolente e a gente de cor que era numerosa no lugar adquiriu uma preponderancia que com o passar do tempo veio a ser funesta 4 tranqjtilidade ptiblica”.” Numa palavra, como dissemos, estamos agora diante de uma erise de tipo diferente, uma crise que implicava ruptura dos sutis (e calvez por isso, muito mais fraigeis) mecanismos de poder nos quais se havia assentado tradicional- mente a sociedade colonial hispano-americana. Ainda que aqui ndo trate- mos deste aspecto da questo, cumpre assinalar que tal fratura dos mecanis- mos de poder ¢ de controle social, se estenderia apidamente rauito além do Ambito privilegiado da cidade onde havia surgido ¢ abarcaria depois os espa gos rurais, dando lugar a esse espectro da guerra social que recorreria a0. campo hispano-americano. Esta guerra social nem sempre foi encabegada. pelos rebeldes contra o rei, pois nao faltaram guerrilheitos “legitimistas” ainda que na maioria dos casos fossem grupos rurais de insurgentes anti- regalistas. Poderfamos citar varios exemplos, como os da Nova Espanha,"? da Banda Oriental do Uruguai ou outros, por tod 0 mundo andino.* Em 8D, Matheu, Autobiografiaescrita por su hijo don Martin Matheu, in: Biblioteca de Mayo, coec-

Você também pode gostar