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Resumo: O presente artigo discute a instalação de obras de arte contemporânea de grande escala no
espaço público. Para tanto, parte da análise de duas obras do artista estadunidense Richard Serra
expostas simultaneamente em Paris em 2008, com o intuito de refletir acerca de duas questões
centrais. A primeira delas é referente à dinâmica do lugar do artista, que se modifica a cada exposição
ou reapresentação. A segunda, à fundação de um espaço institucional fora dos limites físicos do
museu, no ambiente urbano, colocando em evidência o posicionamento do artista em relação à
importância do local para a obra e a sua relação com o espectador.
Abstract: The following paper discusses the installation of large-scale contemporary artworks in
public spaces. To this end, it analyses two artworks by the American artist Richard Serra, exhibited
simultaneously in Paris in 2008, with the intent of reflecting on two central issues. The first one refers
to the dynamics surrounding the artist's place, which changes with each exhibition or re-presentation.
The second is the establishment of an institutional space outside the physical boundaries of the
museum, in the urban environment, which highlights the artist's position towards the importance of the
artwork's location and its relation with the spectator.
1
Museóloga e mestranda no programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de
Brasília (PPGCInf/UnB). E-mail para contato: fwerneck@gmail.com.
A arte pública é a prática caracterizada, de modo geral, pela instalação de obras de arte
contemporânea – normalmente de grande porte – fora do ambiente convencional do museu,
em espaços abertos e de ampla circulação. Nas últimas décadas, tal prática fora marcada pela
variedade de projetos estéticos. Todavia, com frequência, essas obras são instalações site-
specific, que trabalham com a especificidade do local. Desse modo, o processo de criação
envolve o ambiente designado, e o contexto no qual a obra será fruída passa a ser
determinante, envolvendo necessariamente as categorias de espaço e de tempo.
Apesar de estarem no espaço público, essas obras geralmente permanecem, até certo
ponto, sob a influência institucional. Muitas vezes comissionadas por instituições
museológicas e concebidas e apresentadas no âmbito de um discurso curatorial, elas
interagem, ao mesmo tempo, com o urbano e com as tensões sociais que nele ocorrem. Elas
constituem, portanto, um desafio para as instituições museológicas no que concerne não
apenas à sua aquisição e ao seu acervamento, mas também à sua mediação, de modo que o
artista participa de todo o processo.
A Monumenta é uma exposição de arte contemporânea que ocorre a cada dois anos no
Grand Palais, em Paris2. Iniciativa do Ministério de Cultura e Comunicação francês, o evento
apresenta somente um artista a cada edição, escolhido para conceber uma obra especialmente
2
Até o ano de 2014 a mostra ocorria anualmente. Entretanto, após este ano passou a ser realizada somente em
anos pares.
para a ocasião e para o espaço da nave do Grand Palais, cuja superfície é de 13500m² e a
altura é de, no máximo, 35m.
Fig. 1
Richard Serra, Promenade, 2008. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html>.
No mesmo período em que ocorria a Monumenta de 2008, um antigo trabalho de
Serra, denominado Clara-Clara, o qual pertence à prefeitura de Paris e permanecia na reserva
técnica desde 1993, foi reinstalado no Jardin des Tuileries, local em que havia estado em
3
Apesar de em dicionários francês/português a palavra promenade ser usualmente traduzida apenas como
“passeio”, dicionários francês/francês apresentam que a palavra é derivada do verbo “promener”, que imprime a
ideia de prazer no ato de se locomover. Tal definição implica, ainda, que esse passeio seja realizado a pé. Com
isso, promenade também não significaria apenas andar, mas andar desfrutando da caminhada.
1983. A obra, apesar de ter sido concebida mais de duas décadas antes, segue as mesmas
características do estilo atual do artista (FOSTER, 2008).
Constituída por duas placas de aço curvadas, cada uma com 36m de comprimento e
3,40m de altura, lembrando dois parênteses colocados não paralelamente, mas em posições
opostas, Clara-Clara foi uma obra concebida em 1983 para ocupar o Forum do Centre
Pompidou, no térreo do edifício, em uma retrospectiva do artista realizada pela instituição no
mesmo ano. Entretanto, devido à incapacidade do chão do local em resistir ao seu peso, foi
sugerido que a obra fosse instalada no Jardin des Tuileries, em frente à Place de la Concorde,
onde permaneceu por alguns meses. Após ser adquirida pela prefeitura de Paris, Clara-Clara
ficou instalada por algum tempo no Parc de Choisy, no 13º arrondissement, mas devido ao
fato de obra estar arranhada, coberta de grafites e servir como abrigo para moradores de rua,
acabou por ser removida do local e colocada na reserva técnica 4.
Fig. 2
Clara-Clara no Parc de Choisy. Disponível em:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392#prettyPhoto>.
4
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de maio de
2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25 ago.
2017.
A instalação da obra no Jardin des Tuileries – próxima ao portão que dá acesso à
Place de la Concorde e entre o Musée de l’Orangerie e o Jeu de Paume – a conferia um novo
discurso, diferente daquele pensado para o Forum do Centre Georges Pompidou, na medida
em que ela passou a integrar o Grande Eixo ou Eixo Histórico da cidade de Paris. O eixo
consiste em uma linha iniciada no Louvre que segue até o Grande Arco de La Défense,
passando por alguns monumentos históricos, como o Obelisco de Luxor e o Arco do Triunfo.
À esquerda desse eixo é possível avistar o Grand Palais, local onde a obra Promenade estava
em exposição. Da maneira como foi disposta no Jardin des Tuileries, Clara-Clara conduzia o
público a esse eixo, por meio de um pequeno espaço deixado entre as duas placas curvadas.
Fig 3
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 1983.
Disponível em: <https://www.artsy.net/artwork/richard-serra-clara-clara-1983-signed>.
Com isso, os dois trabalhos de Serra instalados em Paris em 2008, apesar de
concebidos em momentos distintos, passaram a possibilitar uma interpretação conjunta. Ao
passar entre as duas placas de aço curvadas que constituem Clara-Clara, o público poderia
seguir em uma promenade5 pelo eixo histórico até chegar ao Grand Palais, onde encontrava-
se a obra site-specific concebida para a ocasião (FOSTER, 2008).
As instalações que estão contidas nessa categoria geralmente caracterizam-se por ser
arte site-specific, isto é, arte que adere ao “contexto ambiental, sendo formalmente
determinada ou direcionada por ele” (KWON, 2002, p. 11, tradução nossa). Isto é, as obras de
arte pública site-specific apenas se realizam quando produzem identidade no momento da
recepção no local determinado. A obra é, nesses casos, um “transmissor entre o local e o
sujeito que (re)define a topologia de um ambiente pela motivação do espectador” (FOSTER,
2000, p. 178, tradução nossa).
5
Cf. Nota 2 desse artigo.
complexa, são levadas, assim, a revisar a validade do sentido público contido
nos termos que as identificam e no repertório de dispositivos que as
apresentam. (FUREGATTI, 2007, p. 22)
Um trabalho de Serra, em particular, é emblemático para a reflexão acerca da presença
de obras site-specific no espaço público e a relação que estabelecem com a cidade, o local, as
instituições e os espectadores. Encomendada no início da década de 1980, a obra Tilted Arc
foi instalada permanentemente na Federal Plaza, em Nova Iorque, no verão de 1981.
Fig. 4
Richard Serra, Tilted Arc, 1981, Federal Plaza, Nova Iorque.
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/context-comment/articles/gallery-lost-art-richard-serra>.
Em 1985, após alegações de que a obra “perturbava a visão normal e as funções
sociais da praça” (CRIMP, 2005, p. 135), foi gerado um grande debate em torno da
permanência da obra no local, que acabou por ser removida em 1989. Na ocasião, Serra
afirmou:
Clara-Clara não foi concebida para o Jardin des Tuileries, mas foi concebida para um
espaço aberto ao público, de forma que é possível supor que parte daquilo que Serra pretendia
suscitar com a obra permaneceu mesmo com a mudança da localidade. O contexto no qual
seria fruída, no entanto, tornou-se outro, o que modificou a relação entre obra, local,
observador e experiência tão cara às site-specifics.
Yve-Alain Bois (2000, p. 90) argumenta que a mudança de local de instalação da obra
ofereceu à Clara-Clara ao menos três diferentes abordagens por parte dos espectadores. A
primeira delas, a de um espectador apressado, que entraria no Jardin des Tuileries no sentido
Place de la Concorde - Louvre, permanecendo no eixo histórico simétrico, na medida em que
o eixo da própria obra estava alinhado a ele e ao eixo principal do jardim. Segundo Bois
(2000, p. 90), essa abordagem possivelmente seria proporcionada caso a obra tivesse sido
instalada no Centre Pompidou.
Fig.5
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 2008.
Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/tybo/2581286776/in/photostream/>.
Para Foster, a maneira como o artista dispôs as cinco placas, algumas no eixo central
da nave do Grand Palais, outras levemente deslocadas para os lados, conferiu ritmo à obra:
“Esses desvios criam, de maneira simples, uma grande tensão; o espectador sente-se levado
pela obra como que por um percurso de slalom” (FOSTER, 2008, tradução nossa). Foster nota
ainda que essa disposição permite tanto que as placas sejam observadas como conjunto – com
o espectador no eixo da nave – quanto separadamente – com o espectador nas laterais do
espaço. Com isso, assim como em Clara-Clara, Serra trabalha com a questão do eixo
(FOSTER, 2008).
Ainda que o Grand Palais não remeta necessariamente a um espaço museal, durante a
Monumenta ele assume tal posição e a obra disposta em seu interior passa a participar de uma
dinâmica institucional. Mesmo que Clara-Clara tenha sido reapresentada concomitantemente
à Promenade, de uma maneira que poderia levar a sua compreensão como um conjunto, se
tomados separadamente esses dois trabalhos de Serra respondem a lógicas distintas de
apreciação. Para o artista, ainda que de maneira não-intencional, a obra exibida dentro da
lógica museal se torna imediatamente autorreferente, visto que a autoria não é deixada fora de
questão nesses espaços.
Já a obra disposta em espaço público evidencia outros aspectos que não o artista em si:
“Uma vez que a obra entra no domínio público, o problema da autorreferência não existe. O
que importa é como a obra altera um determinado local, não a persona do autor” (Serra apud
CRIMP, 2005, p. 147). Essa afirmação de Serra evidencia uma distinção crucial entre as duas
obras: a maneira como serão interpretadas em relação ao ambiente onde estão instaladas.
Promenade só será vista caso haja a intenção de se frequentar o Grand Palais em razão da
mostra. Já Clara-Clara, ao estar instalada no espaço urbano, atinge todo o tipo de público,
mesmo aquele que não esperava se deparar com a obra.
Segundo Foster (2000, p. 178-179, tradução nossa), um dos aspectos da obra de Serra
é o aspecto fenomenológico, segundo o qual a obra está necessariamente relacionada ao
espectador: “(...) a escultura existe em uma relação primária com o corpo, não como sua
representação, mas sua ativação em todos os seus sentidos, todas as suas apercepções de peso
e medida, tamanho e escala". Outro princípio importante para Serra que Foster destaca é o
situacional, segundo o qual a escultura está relacionada à particularidade de um local
(FOSTER, 2000, p. 179).
6
Algumas fontes apontam que a obra foi concebida especialmente para o Jardin des Tuileries. Entretanto, em
texto escrito para o catálogo da mostra realizada no Centre Georges Pompidou e publicado em 1985, Yve-Alain
Bois (2000), afirma que a obra foi realizada para ocupar o Forum do edifício.
e, posteriormente, para o Parc de Choisy. Desde sua remoção dessa última localidade, o
artista rejeitou várias propostas de locais feitas pela prefeitura de Paris para uma nova
instalação permanente da obra7, apenas aceitando que fosse reapresentada no Jardin des
Tuileires e, de certo modo, integrada à Monumenta8.
7
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de maio de
2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25 ago.
2017.
8
Ver o site do Museu do Louvre, que detém a administração do Jardin de Tuileries. Disponível em:
<http://www.louvre.fr/expositions/richard-serra-clara-clara-1983>. Acesso em: 27 de ago. 2017.
9
Rancière (2009, p. 15) denomina como partilha do sensível “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”.
do público desde 1993 e que enfrenta dificuldades de aceitação quanto à sua instalação em
sítios históricos da cidade de Paris, como é o caso do Jardin des Tuileries.
10
Heinich (1997, p. 120) argumenta que uma das repostas possíveis ao fato de o empacotamento da Pont-Neuf,
obra de Christo e Jeanne-Claude realizada no outono de 1985, ter gerado menos comoção pública que a obra
site-specific de Daniel Buren instalada em 1986, Les Deux Plateaux, é o seu caráter não-permanente, tendo
permanecido instalada por apenas duas semanas. “Desse modo, o público poderia ficar tranquilo quanto à
proteção da Pont-Neuf, um grande marco do patrimônio histórico parisiense: o empacotamento não causaria
nenhum dano, nenhum desrespeito” (HEINICH, 1997, p. 120-122, tradução nossa), ao contrário da obra de
Buren, cujo foco das críticas recaiu sobre a alteração permanente de sítio histórico público.
11
Heinich utiliza-se do termo “artificação”, definido por Roberta Shapiro (2007, p. 137) como o “processo pelo
qual os atores sociais passam a considerar como arte um objeto ou uma atividade que eles, anteriormente, não
consideravam como tal”; ou, simplesmente “a transformação da não-arte em arte” (SHAPIRO, 2007, p. 135).
patrimônio torna-se, assim, o estado no qual são mergulhados os objetos na medida em que
são submetidos a certos tipos de operação (semântica, jurídica, cognitiva, gestual etc.)”.
Trazendo a perspectiva de Heinich com relação ao patrimônio para o âmbito do urbano como
espaço expositivo, talvez pudéssemos falar sobre um processo de “artificação” de um espaço,
tal qual proposto por Roberta Shapiro (2007); isto é, a obra, inserida no contexto de uma
exposição, fundando um espaço institucional extramuros.
Esse questionamento nos leva novamente ao ponto crucial dessa pesquisa: a forma
como a localidade da obra e as suas possibilidades de fruição no espaço urbano estão
intrinsecamente ligadas aos discursos autorizados pelo artista. As obras de arte
contemporânea quase sempre suscitam novas formas de pensar não somente o fazer artístico,
mas também a lógica institucional e a prática museológica, de forma que, ainda que tenha sido
comissionada há três décadas, Clara-Clara continua a nos apresentar novos direcionamentos
para reflexão acerca da arte pública e suas implicações, incongruências e formas de
realização.
Referências Bibliográficas
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