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CLARA-CLARA E PROMENADE:

ARTE CONTEMPORÂNEA DE GRANDE ESCALA E SUA RELAÇÃO COM O


ESPAÇO URBANO

Fernanda Werneck Côrtes*1


* Universidade de Brasília

Resumo: O presente artigo discute a instalação de obras de arte contemporânea de grande escala no
espaço público. Para tanto, parte da análise de duas obras do artista estadunidense Richard Serra
expostas simultaneamente em Paris em 2008, com o intuito de refletir acerca de duas questões
centrais. A primeira delas é referente à dinâmica do lugar do artista, que se modifica a cada exposição
ou reapresentação. A segunda, à fundação de um espaço institucional fora dos limites físicos do
museu, no ambiente urbano, colocando em evidência o posicionamento do artista em relação à
importância do local para a obra e a sua relação com o espectador.

Palavras-chave: Arte pública; instalação de arte; site-specific; Richard Serra; Monumenta.

Abstract: The following paper discusses the installation of large-scale contemporary artworks in
public spaces. To this end, it analyses two artworks by the American artist Richard Serra, exhibited
simultaneously in Paris in 2008, with the intent of reflecting on two central issues. The first one refers
to the dynamics surrounding the artist's place, which changes with each exhibition or re-presentation.
The second is the establishment of an institutional space outside the physical boundaries of the
museum, in the urban environment, which highlights the artist's position towards the importance of the
artwork's location and its relation with the spectator.

Key-words: Public art; instalation art; site-specific; Richard Serra; Monumenta.

1
Museóloga e mestranda no programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de
Brasília (PPGCInf/UnB). E-mail para contato: fwerneck@gmail.com.
A arte pública é a prática caracterizada, de modo geral, pela instalação de obras de arte
contemporânea – normalmente de grande porte – fora do ambiente convencional do museu,
em espaços abertos e de ampla circulação. Nas últimas décadas, tal prática fora marcada pela
variedade de projetos estéticos. Todavia, com frequência, essas obras são instalações site-
specific, que trabalham com a especificidade do local. Desse modo, o processo de criação
envolve o ambiente designado, e o contexto no qual a obra será fruída passa a ser
determinante, envolvendo necessariamente as categorias de espaço e de tempo.

Apesar de estarem no espaço público, essas obras geralmente permanecem, até certo
ponto, sob a influência institucional. Muitas vezes comissionadas por instituições
museológicas e concebidas e apresentadas no âmbito de um discurso curatorial, elas
interagem, ao mesmo tempo, com o urbano e com as tensões sociais que nele ocorrem. Elas
constituem, portanto, um desafio para as instituições museológicas no que concerne não
apenas à sua aquisição e ao seu acervamento, mas também à sua mediação, de modo que o
artista participa de todo o processo.

Logo, a presença dessas obras de arte contemporânea de grande escala no espaço


público remete não somente a questões práticas, referentes à viabilização de sua instalação e à
sua preservação, mas também ao posicionamento do artista perante o seu trabalho, as
instituições, o público e o local, operando em uma lógica museológica fora do ambiente físico
do museu. Nesse sentido, dois trabalhos do artista estadunidense Richard Serra - produzidos
em um intervalo de mais de duas décadas e expostos em Paris simultaneamente em 2008 -
podem nos ajudar a compreender melhor a produção e exibição da arte pública em sua relação
com as instituições museológicas e com o espaço onde são instaladas.

A Monumenta é uma exposição de arte contemporânea que ocorre a cada dois anos no
Grand Palais, em Paris2. Iniciativa do Ministério de Cultura e Comunicação francês, o evento
apresenta somente um artista a cada edição, escolhido para conceber uma obra especialmente

2
Até o ano de 2014 a mostra ocorria anualmente. Entretanto, após este ano passou a ser realizada somente em
anos pares.
para a ocasião e para o espaço da nave do Grand Palais, cuja superfície é de 13500m² e a
altura é de, no máximo, 35m.

Com início em 2007, a exposição já apresentou obras site-specific de Anselm Kiefer,


Richard Serra, Christian Boltanski, Anish Kapoor e Daniel Buren, dentre outros artistas. Na
Monumenta de 2008, Richard Serra ocupou o espaço com a obra Promenade3, que consistia
em cinco placas de aço com 17m de altura e 4m de largura, pesando 75 toneladas cada.
Dispostas ao longo do eixo da nave do Grand Palais, as cinco placas foram instaladas com
inclinação de pouco mais de 1º em relação ao eixo do teto da nave.

Fig. 1
Richard Serra, Promenade, 2008. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html>.
No mesmo período em que ocorria a Monumenta de 2008, um antigo trabalho de
Serra, denominado Clara-Clara, o qual pertence à prefeitura de Paris e permanecia na reserva
técnica desde 1993, foi reinstalado no Jardin des Tuileries, local em que havia estado em

3
Apesar de em dicionários francês/português a palavra promenade ser usualmente traduzida apenas como
“passeio”, dicionários francês/francês apresentam que a palavra é derivada do verbo “promener”, que imprime a
ideia de prazer no ato de se locomover. Tal definição implica, ainda, que esse passeio seja realizado a pé. Com
isso, promenade também não significaria apenas andar, mas andar desfrutando da caminhada.
1983. A obra, apesar de ter sido concebida mais de duas décadas antes, segue as mesmas
características do estilo atual do artista (FOSTER, 2008).

Constituída por duas placas de aço curvadas, cada uma com 36m de comprimento e
3,40m de altura, lembrando dois parênteses colocados não paralelamente, mas em posições
opostas, Clara-Clara foi uma obra concebida em 1983 para ocupar o Forum do Centre
Pompidou, no térreo do edifício, em uma retrospectiva do artista realizada pela instituição no
mesmo ano. Entretanto, devido à incapacidade do chão do local em resistir ao seu peso, foi
sugerido que a obra fosse instalada no Jardin des Tuileries, em frente à Place de la Concorde,
onde permaneceu por alguns meses. Após ser adquirida pela prefeitura de Paris, Clara-Clara
ficou instalada por algum tempo no Parc de Choisy, no 13º arrondissement, mas devido ao
fato de obra estar arranhada, coberta de grafites e servir como abrigo para moradores de rua,
acabou por ser removida do local e colocada na reserva técnica 4.

Fig. 2
Clara-Clara no Parc de Choisy. Disponível em:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392#prettyPhoto>.

4
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de maio de
2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25 ago.
2017.
A instalação da obra no Jardin des Tuileries – próxima ao portão que dá acesso à
Place de la Concorde e entre o Musée de l’Orangerie e o Jeu de Paume – a conferia um novo
discurso, diferente daquele pensado para o Forum do Centre Georges Pompidou, na medida
em que ela passou a integrar o Grande Eixo ou Eixo Histórico da cidade de Paris. O eixo
consiste em uma linha iniciada no Louvre que segue até o Grande Arco de La Défense,
passando por alguns monumentos históricos, como o Obelisco de Luxor e o Arco do Triunfo.
À esquerda desse eixo é possível avistar o Grand Palais, local onde a obra Promenade estava
em exposição. Da maneira como foi disposta no Jardin des Tuileries, Clara-Clara conduzia o
público a esse eixo, por meio de um pequeno espaço deixado entre as duas placas curvadas.

Fig 3
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 1983.
Disponível em: <https://www.artsy.net/artwork/richard-serra-clara-clara-1983-signed>.
Com isso, os dois trabalhos de Serra instalados em Paris em 2008, apesar de
concebidos em momentos distintos, passaram a possibilitar uma interpretação conjunta. Ao
passar entre as duas placas de aço curvadas que constituem Clara-Clara, o público poderia
seguir em uma promenade5 pelo eixo histórico até chegar ao Grand Palais, onde encontrava-
se a obra site-specific concebida para a ocasião (FOSTER, 2008).

Richard Serra e a arte pública


As obras de arte que desde o final da década de 1960 passaram a ser comissionadas
para ocupar espaços públicos localizados fora do ambiente físico dos museus são incluídas na
abrangente denominação de “Arte Pública”. Entretanto, apesar dessa nomenclatura, muitas
dessas obras continuam por operar dentro de um sistema institucional, visto que muitas vezes
são integradas a acervos e respondem a uma determinada lógica expositiva.

As instalações que estão contidas nessa categoria geralmente caracterizam-se por ser
arte site-specific, isto é, arte que adere ao “contexto ambiental, sendo formalmente
determinada ou direcionada por ele” (KWON, 2002, p. 11, tradução nossa). Isto é, as obras de
arte pública site-specific apenas se realizam quando produzem identidade no momento da
recepção no local determinado. A obra é, nesses casos, um “transmissor entre o local e o
sujeito que (re)define a topologia de um ambiente pela motivação do espectador” (FOSTER,
2000, p. 178, tradução nossa).

Apesar de muitas vezes possuírem dimensões monumentais e de atuarem como


símbolos de negociações referentes à memória, as obras de arte site-specific realizadas para o
espaço urbano distanciam-se do sentido tradicional de monumento, segundo o qual a obra
seria produzida com o intuito de perpetuar uma memória, de “presentificar na consciência das
gerações posteriores um evento ou pessoa” (RIEGL, 2014, p. 24). A esse respeito Sylvia
Furegatti aponta:

A disposição convencional, centralizada, maciça e vertical de uma peça


escultórica nesse tipo de terreno já não é mais suficiente para construir o
sentido coerente à comunidade que habita o centro urbano, tal qual realizava
o monumento nas cidades. As manifestações artísticas do século XX,
atreladas à novidade de sua linguagem e a uma construção espacial bastante

5
Cf. Nota 2 desse artigo.
complexa, são levadas, assim, a revisar a validade do sentido público contido
nos termos que as identificam e no repertório de dispositivos que as
apresentam. (FUREGATTI, 2007, p. 22)
Um trabalho de Serra, em particular, é emblemático para a reflexão acerca da presença
de obras site-specific no espaço público e a relação que estabelecem com a cidade, o local, as
instituições e os espectadores. Encomendada no início da década de 1980, a obra Tilted Arc
foi instalada permanentemente na Federal Plaza, em Nova Iorque, no verão de 1981.

Fig. 4
Richard Serra, Tilted Arc, 1981, Federal Plaza, Nova Iorque.
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/context-comment/articles/gallery-lost-art-richard-serra>.
Em 1985, após alegações de que a obra “perturbava a visão normal e as funções
sociais da praça” (CRIMP, 2005, p. 135), foi gerado um grande debate em torno da
permanência da obra no local, que acabou por ser removida em 1989. Na ocasião, Serra
afirmou:

Trabalhos site-specific lidam com componentes ambientais de determinados


lugares. Escala, tamanho, localização dos trabalhos site-specific são
determinados pela topografia do lugar, seja esse urbano ou paisagístico ou
clausura arquitetônica. Os trabalhos tornam-se parte do lugar e reestruturam
sua organização tanto conceitual quanto perceptualmente. (Serra apud
KWON, 2008, p. 168)
A respeito dessas novas possibilidades de ocupação do espaço e sua dimensão criadora
de significados, Douglas Crimp (2005, p. 137) coloca: “Tal reorientação da experiência de
percepção da arte fez, de fato, do observador o tema da obra”. De mesmo modo, Miwon
Kwon aponta para a presença física do espectador como determinante para as obras site-
specific, mas confere à localidade e à temporalidade igual participação na obra: “O objeto de
arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado singularmente no aqui-e-agora, pela
presença corporal de cada espectador em imediatidade sensorial da extensão espacial e
duração temporal” (KWON, 2008, p. 167).

As site-specifics incorporaram, portanto, um contexto à produção artística, contexto


esse que não é constituído apenas pela dimensão espacial, mas também pela dimensão
temporal. Na medida em que esses trabalhos pressupõem a imutabilidade do espaço, eles
necessariamente trabalham também com a categoria do tempo.

Clara-Clara não foi concebida para o Jardin des Tuileries, mas foi concebida para um
espaço aberto ao público, de forma que é possível supor que parte daquilo que Serra pretendia
suscitar com a obra permaneceu mesmo com a mudança da localidade. O contexto no qual
seria fruída, no entanto, tornou-se outro, o que modificou a relação entre obra, local,
observador e experiência tão cara às site-specifics.

Com a mudança de localidade da obra, as suas possibilidades de apreciação e interação


foram ampliadas, conferindo-a uma característica pretendida por Serra em seus trabalhos, a
redefinição do sítio e a participação do espectador nessa descoberta: “O site é redefinido, não
reapresentado... O posicionamento de todos os elementos estruturais no espaço aberto dirige a
atenção do espectador para a topografia do terreno no momento em que se caminha por ele”
(Serra apud BOIS, 2000, p. 60, tradução nossa).

Yve-Alain Bois (2000, p. 90) argumenta que a mudança de local de instalação da obra
ofereceu à Clara-Clara ao menos três diferentes abordagens por parte dos espectadores. A
primeira delas, a de um espectador apressado, que entraria no Jardin des Tuileries no sentido
Place de la Concorde - Louvre, permanecendo no eixo histórico simétrico, na medida em que
o eixo da própria obra estava alinhado a ele e ao eixo principal do jardim. Segundo Bois
(2000, p. 90), essa abordagem possivelmente seria proporcionada caso a obra tivesse sido
instalada no Centre Pompidou.

A segunda possibilidade de apreensão da obra seria, para Bois (2000, p. 90), a do


espectador caminhando no sentido Louvre - Place de la Concorde, que também permaneceria
no eixo, mas observaria a obra de um ponto no qual o comprimento e o curvamento das placas
de aço ficaria em evidência e o Obelisco de Luxor, claramente emoldurado por elas. No
entanto, uma vez que há uma fonte no eixo do Jardin des Tuileries, esse espectador seria
obrigado a desviar dele para um dos lados e, dessa forma, seguiria juntamente a curvatura de
uma das placas que constituem Clara-Clara, dialogando com a obra.

Já a terceira possibilidade, pressupõe que o espectador seguiria em direção ao eixo


pelas laterais do jardim, onde o Musée de l’Orangerie e o Jeu de Paume encontram-se em um
nível elevado. Desse modo, esse espectador teria uma visão mais abrangente do espaço
interior da obra e, logo em seguida, seguiria em sua curvatura (BOIS, 2000, p. 90-91). Essa
possibilidade de apreensão conferiu à Clara-Clara uma mudança de ritmo que seria, segundo
Bois (2000, p. 91), impossível no Centre Pompidou.

Com isso, no caso da reinstalação de Clara-Clara em ocasião da Monumenta de 2008,


foi produzido um quarto sentido à obra – aquele que mais nos interessa nessa reflexão -,
sentido esse determinado não somente pelo distanciamento temporal do período de produção
da obra e de sua primeira exposição, mas pelo observador que realizava a promenade entre o
Jardin de Tuileries e o Grand Palais e seu interior, como sugerido por Hal Foster (2008).

Fig.5
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 2008.
Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/tybo/2581286776/in/photostream/>.

A especificidade do local para Promenade


Enquanto Clara-Clara foi reinstalada, inserindo-se em outro contexto e integrando um
novo discurso, Promenade foi pensada durante dois anos para ocupar o espaço do Grand
Palais, caracterizando-se, dessa forma, como uma site-specific. As enormes placas verticais
de aço bruto, cuja altura, a largura e a inclinação foram definidas em relação ao Grand Palais,
dialogam com a arquitetura do lugar, composta de uma estrutura de aço trabalhado e vidro.
Fig. 6
Richard Serra, Promenade, 2008. Obra concebida para a Monumenta 2008, no Grand Palais, em Paris.
Disponível em: <http://www.grandpalais.fr/en/node/3750>.
Construído para a Feira Mundial de 1900, o Grand Palais possui uma fachada de
estilos variados, típica do ecletismo entre-séculos. Apesar disso, o seu interior é limpo,
composto apenas pela estrutura em aço verde e um teto de vidro, que permite uma iluminação
natural ao espaço interno. Segundo Hal Foster (2008), ao longo das margens do Rio Sena, a
horizontalidade do Grand Palais é complementar à verticalidade da Torre Eiffel. Dessa
forma, com as cinco placas de Promenade, Serra se utiliza desse contraste entre o horizontal e
o vertical, mas dessa vez no interior do edifício. Foster ressalta ainda para inevitabilidade de,
ao observar a obra de Serra no espaço do Grand Palais, fazer-se uma associação com itens
estruturais, tal como colunas, e isso promoveria um encontro entre dois monumentos da
modernidade industrial: a obra de Serra, concebida em aço, e o edifício (FOSTER, 2008).

Para Foster, a maneira como o artista dispôs as cinco placas, algumas no eixo central
da nave do Grand Palais, outras levemente deslocadas para os lados, conferiu ritmo à obra:
“Esses desvios criam, de maneira simples, uma grande tensão; o espectador sente-se levado
pela obra como que por um percurso de slalom” (FOSTER, 2008, tradução nossa). Foster nota
ainda que essa disposição permite tanto que as placas sejam observadas como conjunto – com
o espectador no eixo da nave – quanto separadamente – com o espectador nas laterais do
espaço. Com isso, assim como em Clara-Clara, Serra trabalha com a questão do eixo
(FOSTER, 2008).

É, portanto, no que tange às relações estabelecidas pela obra que Clara-Clara se


distingue de Promenade. Apesar de ambos os trabalhos possuírem grandes dimensões e serem
constituídos do mesmo material, a localidade na qual estão instalados conduz a diferentes
interpretações e coloca em evidência diferentes problemas. Enquanto Clara-Clara, inserida
no ambiente urbano suscita questões relativas ao espaço público, à vivência cotidiana e à
cidade, Promenade dialoga com um espaço expositivo, destinado justamente a produções ou a
eventos de grande porte, uma vez que sua própria arquitetura é monumental.

Ainda que o Grand Palais não remeta necessariamente a um espaço museal, durante a
Monumenta ele assume tal posição e a obra disposta em seu interior passa a participar de uma
dinâmica institucional. Mesmo que Clara-Clara tenha sido reapresentada concomitantemente
à Promenade, de uma maneira que poderia levar a sua compreensão como um conjunto, se
tomados separadamente esses dois trabalhos de Serra respondem a lógicas distintas de
apreciação. Para o artista, ainda que de maneira não-intencional, a obra exibida dentro da
lógica museal se torna imediatamente autorreferente, visto que a autoria não é deixada fora de
questão nesses espaços.

Já a obra disposta em espaço público evidencia outros aspectos que não o artista em si:
“Uma vez que a obra entra no domínio público, o problema da autorreferência não existe. O
que importa é como a obra altera um determinado local, não a persona do autor” (Serra apud
CRIMP, 2005, p. 147). Essa afirmação de Serra evidencia uma distinção crucial entre as duas
obras: a maneira como serão interpretadas em relação ao ambiente onde estão instaladas.
Promenade só será vista caso haja a intenção de se frequentar o Grand Palais em razão da
mostra. Já Clara-Clara, ao estar instalada no espaço urbano, atinge todo o tipo de público,
mesmo aquele que não esperava se deparar com a obra.

Algumas reflexões sobre a reinstalação de Clara-Clara em sua relação com Promenade


Esse aspecto distintivo entre os dois trabalhos de Serra expostos em Paris
simultaneamente não modifica o fato de que, mesmo permitindo a fruição separadamente, as
duas obras se comunicam gerando um novo significado. Clara-Clara talvez não suscitasse tão
fortemente a aceleração constante do ritmo cotidiano se Promenade não estivesse lá para nos
lembrar da necessidade de flanar pela cidade. Ao mesmo tempo, Serra pretende, ao instalar
uma obra de grande dimensão no ambiente urbano com grande fluxo de pedestres, intervir no
espaço, proporcionando um choque no espectador (BOIS, 2000, p. 78).

Segundo Foster (2000, p. 178-179, tradução nossa), um dos aspectos da obra de Serra
é o aspecto fenomenológico, segundo o qual a obra está necessariamente relacionada ao
espectador: “(...) a escultura existe em uma relação primária com o corpo, não como sua
representação, mas sua ativação em todos os seus sentidos, todas as suas apercepções de peso
e medida, tamanho e escala". Outro princípio importante para Serra que Foster destaca é o
situacional, segundo o qual a escultura está relacionada à particularidade de um local
(FOSTER, 2000, p. 179).

Essa colocação nos leva, inevitavelmente, ao problema da relação do artista com as


suas obras e com as instituições que as adquirem e as exibem. Em 1985, quando defendia a
permanência de Titled Arc na Federal Plaza, Serra afirmou que a obra foi “encomendada e
projetada para uma localização específica: a Federal Plaza. É um trabalho site-specific e como
tal não é para ser realocado. Removê-lo é destruí-lo” (Serra apud KWON, 2008, p. 168).
Clara-Clara também foi concebida para uma localização específica, o Forum do Centre
Pompidou6. Apesar disso, Serra concordou com a sua realocação para o Jardin des Tuileires

6
Algumas fontes apontam que a obra foi concebida especialmente para o Jardin des Tuileries. Entretanto, em
texto escrito para o catálogo da mostra realizada no Centre Georges Pompidou e publicado em 1985, Yve-Alain
Bois (2000), afirma que a obra foi realizada para ocupar o Forum do edifício.
e, posteriormente, para o Parc de Choisy. Desde sua remoção dessa última localidade, o
artista rejeitou várias propostas de locais feitas pela prefeitura de Paris para uma nova
instalação permanente da obra7, apenas aceitando que fosse reapresentada no Jardin des
Tuileires e, de certo modo, integrada à Monumenta8.

Conforme aponta Jean-Marc Poinsot (2012), a exposição é um espaço de enunciação


que não se esgota nela mesma, podendo ser considerada como aquilo que Jacques Rancière
(2009) define como “partilha do sensível”9.

A exposição é uma situação de discurso complexa que possui suas próprias


regras em permanente evolução, mas não tem história própria independente
das prestações estéticas que ela atualiza. Por isso, cada obra produzida é
concebida com conhecimento de suas regras, sejam elas admitidas de
maneira implícita, sejam elas explicitadas e até mesmo transgredidas. É pelo
conhecimento dessas regras que os artistas podem conceber obras que se
adaptam de maneiras variadas às situações de discursos enquanto continuam
a transformá-las. (POINSOT, 2012, p. 163)
Tal fato nos leva a refletir sobre a dinâmica do lugar do artista, que adapta seu
discurso ao longo de sua trajetória, operando em um jogo de interesses e força com as
instituições. Miwon Kwon (2008, p. 174) explica que, em seu próprio curso histórico, os
artistas que produzem site-specifics se desapegaram da ideia de que a obra só existiria em
determinado lugar e em determinado tempo. Atualmente, remover o trabalho não significa
mais destruí-lo, como Serra havia afirmado em 1985. Pelo contrário, remover o trabalho e
realocá-lo permite que ele seja recontextualizado, não necessariamente se desassociando por
completo dos significados anteriormente adquiridos. Reapresentar Clara-Clara no contexto
da Monumenta, uma mostra consolidada e de alcance internacional, era, sem dúvida,
interessante para Serra, especialmente se consideramos que a obra permanecia longe do olhar

7
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de maio de
2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25 ago.
2017.
8
Ver o site do Museu do Louvre, que detém a administração do Jardin de Tuileries. Disponível em:
<http://www.louvre.fr/expositions/richard-serra-clara-clara-1983>. Acesso em: 27 de ago. 2017.
9
Rancière (2009, p. 15) denomina como partilha do sensível “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”.
do público desde 1993 e que enfrenta dificuldades de aceitação quanto à sua instalação em
sítios históricos da cidade de Paris, como é o caso do Jardin des Tuileries.

Com relação à instalação de obras de arte contemporâneas em localidades históricas


e/ou turísticas, Nathalie Heinich (1997, p. 120-121) demonstra que a rejeição dessas obras por
parte do público está relacionada a dois aspectos. O primeiro deles refere-se às circunstâncias
de financiamento da obra, e o segundo, à alteração permanente de um local ou monumento
histórico. No caso de Clara-Clara, apenas o segundo nos interessa aqui. Apresentada no
contexto da Monumenta, fica claro para o público o caráter temporário da instalação,
facilitando a sua aceitação, assim como Heinich (1997) demonstra ao contrapor o
empacotamento da Pont-Neuf por Christo e Jeanne-Claude, em 1985, às colunas de Daniel
Buren no pátio do Palais Royal, ambos também na cidade de Paris10.

Logo, apresentar Clara-Clara nesse contexto propõe a apreciação conjunta com


Promenade, mas também permite que a obra seja fruída e interpretada separadamente, em
suas particularidades formais ou discurso individual, sem que enfrente a priori uma rejeição
por parte do público devido ao seu local de instalação. Nesse sentido, poderíamos pensar que
um espaço institucional é criado para aqueles que observam a obra mediada pelo discurso
proposto pela Monumenta, espaço esse validado pelo seu caráter museológico?

Heinich (2013), ao refletir acerca do processo de desartificação 11 do patrimônio,


trabalha com “categorizações operadas em situação pelos atores” (HEINICH, 2013), não
buscando, dessa forma, uma definição do termo alcançada a priori, e sim uma compreensão
que parte de seus usos pelos atores em momentos específicos. Para Heinich (2013), “o

10
Heinich (1997, p. 120) argumenta que uma das repostas possíveis ao fato de o empacotamento da Pont-Neuf,
obra de Christo e Jeanne-Claude realizada no outono de 1985, ter gerado menos comoção pública que a obra
site-specific de Daniel Buren instalada em 1986, Les Deux Plateaux, é o seu caráter não-permanente, tendo
permanecido instalada por apenas duas semanas. “Desse modo, o público poderia ficar tranquilo quanto à
proteção da Pont-Neuf, um grande marco do patrimônio histórico parisiense: o empacotamento não causaria
nenhum dano, nenhum desrespeito” (HEINICH, 1997, p. 120-122, tradução nossa), ao contrário da obra de
Buren, cujo foco das críticas recaiu sobre a alteração permanente de sítio histórico público.
11
Heinich utiliza-se do termo “artificação”, definido por Roberta Shapiro (2007, p. 137) como o “processo pelo
qual os atores sociais passam a considerar como arte um objeto ou uma atividade que eles, anteriormente, não
consideravam como tal”; ou, simplesmente “a transformação da não-arte em arte” (SHAPIRO, 2007, p. 135).
patrimônio torna-se, assim, o estado no qual são mergulhados os objetos na medida em que
são submetidos a certos tipos de operação (semântica, jurídica, cognitiva, gestual etc.)”.
Trazendo a perspectiva de Heinich com relação ao patrimônio para o âmbito do urbano como
espaço expositivo, talvez pudéssemos falar sobre um processo de “artificação” de um espaço,
tal qual proposto por Roberta Shapiro (2007); isto é, a obra, inserida no contexto de uma
exposição, fundando um espaço institucional extramuros.

Esse questionamento nos leva novamente ao ponto crucial dessa pesquisa: a forma
como a localidade da obra e as suas possibilidades de fruição no espaço urbano estão
intrinsecamente ligadas aos discursos autorizados pelo artista. As obras de arte
contemporânea quase sempre suscitam novas formas de pensar não somente o fazer artístico,
mas também a lógica institucional e a prática museológica, de forma que, ainda que tenha sido
comissionada há três décadas, Clara-Clara continua a nos apresentar novos direcionamentos
para reflexão acerca da arte pública e suas implicações, incongruências e formas de
realização.

Referências Bibliográficas

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Foster with Gordon Hughes. Cambridge: The MIT Press, 2000.

CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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FOSTER, Hal. The Um/making of sculpture. In: Richard Serra. Edited by Hal Foster with
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FUREGATTI, Sylvia Helena. Arte e Meio Urbano: Elementos de formação da Estética


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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-12052010-
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HEINICH, Nathalie. O inventário: um patrimônio em vias de desartificação? In: PROA:


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