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Artigo 1.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os trabalhos sobre o campo simbólico


têm-se multiplicado nas mais diversas áreas do conheci-
1. Introdução; mento, assumindo importância crescente inclusive na ad-
2. O conceito de cultura; ministração. 1
3. A questão da cultura nas organizações;
4. Cultura e relações de trabalho em uma Na perspectiva mais comumente adotada por adminis-
empresa estatal; tradores, a cultura é pensada como um sistema de repre-
5. As estórias de coragem e o nascimento sentações simbólicas que expressam formas comuns de
dos heróis;
6. O mito da grande fam/7ia; apreender o mundo, possibilitando a comunicação entre
7. Comentários finais. os membros de um grupo.
Este conceito, a nosso ver, precisaria ser mais traba-
lhado em termos das múltiplas significações do universo
simbólico e suas relações com outras instâncias da práti-
Estórias, ca social, remetendo ainda às questões das relações de
poder internas e externas às organizações.

mitos, heróis - Ao mediar relações e práticas sociais, o campo do


simbólico se afigura como uma das instâncias fundamen-

cultura organizacional
tais para definição das relações de trabalho. Na perspec-
tiva por nós adotada," as outras instâncias responsáveis
pela determinação dos padrões de relações de trabalho

e relações do trabalho seriam:

• a instância polftica - que confere à relação o seu marco


ssnutural, situando-a no jogo das forças polfticas e eco-
nômicas da sociedade;
Maria Tereza Leme Fleury
Professora livre-docente na Faculdade de Economia
e Administração da Universidade de São Paulo • a instância da organização do processo de trabalho -
na qual a tecnologia e as formas de gestão do processo
produtivo definem as relações de trabalho;

• a instância das polfticas de recursos humanos - que


mediatizam os termos da relação entre capital e trabalho.

A incorporação desta dimensão simbólica prende-se


à idéia de procurar desvendar o significado de certas es-
tórias, mitos, rituais, de certos comportamentos e artefa-
tos que perpassam a vida da organização.
A proposta deste artigo é discutir como elementos
simbólicos do universo cultural de uma organização ex-
pressam e definem padrões de relações de trabalho. Uma
breve revisão e sistematização da literatura antropológica
e organizacional sobre a temática de cultura foi realizada,
visando a elaborar uma proposta conceitual e metodológi-
ca que fundamentasse a análise empfrica.

2. O CONCEITO DE CUL TURA

Na perspectiva da antropologia, a dimensão simbólica é


concebida como capaz de integrar todos os aspectos da
prática social. A preocupação fundamental da pesquisa
etnográfica era desvendar os significados dos costumes
de sociedades diferentes da ocidental; partia-se do pres-
suposto da unidade entre a ação humana e sua significa-
ção, descartando-se qualquer relação determinfstica de
uma sobre a outra."
Como o coloca Durhan, os antropólogos tenderam a
conceber os padrões culturais não como um molde que

Rev. Adm, Empr. Rio de Janeiro, 27(4)7-18 out./dez. 1987


produziria condutas estritamente idênticas, mas antes tanto; elementos cognitivos e normativos e dá origem ao
como as regras de um jogo, isto é, uma estrutura que universo simbólico. Isto porque no processo de legitima-
permite atribuir significado à certas ações e em função da ção se produzem novos significados atribuídos aos pro-
qual se jogam infinitas partidas. Neste sentido," estiveram
I cessos institucionais.
sempre mais interessados nas mediações possíveis do A nível das" organizações é possível observar como
que nas determinações da infra-estrutura econômica so- certos símbolos são criados e os procedimentos impllcitos
bre a superestrutura ideológica. e explícitos para legitimA-los. O mito da empresa como
Não existe também a preocupação em se estabeiece- uma grande famHia, que analisaremos em seguida, exem-
rem relações entre as representações e o poder. Segun- plifica esta criação de um mito, integrando vários signifi-
do ainda Ourhan , os padrões culturais não são concebi- cados e os proc~ssos de sua legitimação.
dos como instrumentos de dominação, a não ser no senti-
do genérico de que a cultura é instrumento de domínio das Berger e í..uckmann dedicam-se também a discutir os
forças naturais. processos de socialização vivenciados pelo indivk:luo,
nA opacidade da sociedade, a inconsciência dos ho- distinguindo entre a socialização primária, em que o indiví-
mens em relação aos mecanismos de produção da vida duo se torna membro de uma sociedade, e o processo de
social nunca puderam ser vistas pelos antropólogos, nas socialização secundária, a qual introduz um indivíduo já
sociedades essencialmente igualitArias com I:!s quais se socializado a novos setores do mundo objetivo. No primei-
preocuparam, como resultado do ocultamento da domina- ro caso, o indivíduo nasce numa estrutura social objetiva,
ção de uma classe sobre a outra. Obviamente, é possível na qual ele encontra os seus "outros significativos" (na
analisar relações de poder nas sociedades primitivas, maioria das vezes, os pais e parentes próximos) que se
mas isto não é nem o fulcro nem o centro da concepção encarregam de sua socialização. Estes "outros significati-
de cultura" (Ourhan, 1984, p. 77). vos": que mediatizam o mundo para o indivíduo, apresen-
Entre os sociólogos, uma corrente importante para tando-o como uma realidade objetiva, modificam-no no
análíse da cultura é a do interacionismo simbólico, cujos curso da mediação. Ou seja, selecionam aspectos que
autores mais conhecidos são Erving Goffrnan e Peter Ber- consideram importantes de acordo com sua posição na
gero O trabalho de Berger e Luckmann The $()(J;ialcons- estrutura social e em função de suas idiossincrasias pes-
truction of reality, como o próprio trtulo indica. procura ex- soais (Berger e Luckmann, 1967).
plorar o processo de elaboração do universo simbólico. A socialização primária envolve mais do que simples
Consideramos importante recuperar certos rnqmentos de aprendizagem cognitiva - ela ocorre em circunstâncias
sua trajetória, pois ele toca (explícita OU implicitamente) muito emocionais. A linguagem constitui o mais importante
em algumas questões centrais para a discuss~ da cultu- instrumento de socialização.
ra. Um outro ponto que justifica uma análise mais detida Se a socialização primária acontece com a grande
do pensamento deste autor decorre da influência por ele identificação emocional do indivk:luo com os valores
exercida sobre os estudiosos da cultura nas organiza- transmitidos pelos pais, na socialização secundária a
ções. identificação acontece somente na medida necessáría pa-
Para Berger e Luckmann (1967), a vida cotidiana se ra a comunicação entre seres humanos (exemplificando: é
apresenta para os homens como uma realidade ordenada. preciso amar a mãe, não a professora). Na socialização
Os fenômenos estão pré-arranjados em padrões que pa- primária, o cunho da realidade do conhecimento é interna-
recem ser independentes da apreensão que cada pessoa lizado quase que automaticamente pelo indivíduo; na so-
faz deles, individualmente. Em outras palavras, a realida- cialização secundárta, os conhecimentos podem ser ad-
de se impõe como objetivada, isto é, constituída por urna quiridos numa seqüência de aprendizagem e reforçados
série de objetivos que foram designados como objetos por técnicas pedagógicas específicas.
antes da "minha" aparição (enquanto indivíduo) em cena. A extensão e o caráter da socialização secundária são
O indivíduo percebe que existe correspondência entre ,determinados pela complexidade da divisão do trabalho e,
os significados por ele atribuídos ao objeto e os significa- concomitantemente, pela distribuição social do conheci-
dos atribuídos pelos outros, isto é, existe o' compartilhar mento de uma dada sociedade. As idéias sobre a sociali-
de um senso comum sobre a realidade. zação secundária são fundamentais para a análíse do
processo de integração dos indivíduos à organização.
Um elemento importante neste processo de objetiva- Para Berger e Luckmann, o universo simbólico integra
ção é a produção de signos, ou seja, sinais que têm signi- um conjunto de significados, atribuindo-lhes consistência,
ficações. A linguagem é um conjunto de signos com a ca- justificativa, legitimidade; em" outras palavras, o universo
pacidade de comunicar significados; ela constrói campos simbólico possibilita aos membros integrantes de um gru-
semânticos, ou zonas de significados. po uma forma consensual de apreender a realidade, inte-
Quando um grupo social,. segundo os autores Berger grando os significados, viabilizando a comunicação. Exis-
e Luckmann (1967), tem que transmitir a uma nova gera- tiria um processo dialético entre as idéias e os processos
ção a sua visão do mundo, surge a necessidade de legiti- sociais de sustentação e legitimação.
mação. A legitimação consiste em um processo de expli- A questão do poder e das relações de dominação em
car e justificar a ordem institucional, prescrevendo valida- uma dada configuração social constitui uma preocupação
de cognitiva aos seus significados objetivados; tem, por- secundária no pensamento destes autores. Ao discutirem,

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por exemplo, como uma determinada definição da realida- tes e cristalizados de idéias que fornecem uma explicação
de se torna dominante, os autores elaboram o seguinte e uma justificativa da natureza da sociedade e das rela-
raciocfnio: em uma sociedade, na medida em que aumenta ções de poder, em termos de sua legitimidade e ilegitimi-
a divisão do trabalho, o conhecimento vai-se tornando dade. De uma perspectivagramsciana, a ideologia diz
mais especializado: grupos restritos pretendem deter o respeito à formulação de projetoshegemônicos, isto é,
conhecimento global e teorizam sobre ele. Estes grupos propostas polfticas de transformação ou manutenção da
ocupam posições de poder e estão sempre prontos a utili- ordem social, no sentido de assegurar a dominação de
zá-lo para impor as suas definições da realidade àqueles uma classe sobre as outras. A utilização do conceito de
sob sua autoridade.· As conceitualizações alternativas ideologia parte necessariamente de uma perspectiva ma-
sobre o universo são se possfvel incorporadas, se não cropolrtica, referente à reprodução do modo de produção e
destrufdas. Quando uma definição particular de realidade das formas de dominação que lhe são próprias.
se vincula a interesses de poder concretos, é chamada de Na abordagem antropológica dos fenômenos culturais,
icJeologia(Berger e Luckmann, 1967, p. 123). segundo Durhan (1967, p. 88) o procedimento é diverso:
Em suma, na proposta de sociologia do conhecimento parte-se das práticas sociais concretas e das representa-
de Berger e Luckmann, a questão do poder é enfocada ções formuladas por grupos ou categorias sociais, e sua
como pano de fundo sobre o qual se tecem as relações relevância polrtica só pode ser determinada a posteriori.
sociais, e não como eixo central da análise. Em suma, parece-nos se possfvel distinguir duas postu-
Suas idéias sobre a construção do universo simbólico, ras teóricas básicas ao se trabalhar o conceito de cultura:
seus processos de legitimação e socialização primária e
secundária são fundamentais a uma proposta de estudos a) de um lado, aqueles que consideram a cultura, os sis-
sobre a instância simbólica nas relações de trabalho. __ temas simbólicos como a arte, o mito, a linguagem, em
Recolocando a questão de ideologia, brevemente men- sua qualidade de instrumentos de comunicação entre as
cionada por Berger e Luckmann, observamos que a dis- pessoas e os grupos sociais e elaboração de um conhe-
tinção entre cultura e ideologia abre um veio importante a cimento consensual sobre significado do mundo;
ser explorado nesta discussão.
b) de outro lado, aqueles que consideram a cultura como
Analisando estes dois conceitos, Eunice Durhan um instrumento de poder e legitimação da ordem vigente.~
(1984) procura mostrar a relação de complementaridade
existente entre eles, apontando, entretanto, a inconve- . A nosso ver, estas duas posturas não são mutuamente
niência da eliminação do conceito de cultura e da investi- excludentes - é preciso perceber o universo simbólico na
gação dos fenômenos culturais em favor da análise da sua capacidade de ordenar e atribuir significações ao
ideologia ou ainda a absorção do conceito de ideologia e mundo natural e social, como elemento de comunicação, e
da problemática que lhe é própria pelo estudo da cultura. ao mesmo tempo perceber a sua função ideológica de
ocultar as relações de dominação existentes, relações
Recuperando a anãlise feita por Gramsci, ela mostra co-
mo para esse autor todo sistema simbólico é ideologia e estas que passam a ser percebidas como naturais, o que,
por sua vez, contribui para a conservação simbólica. É
sendo ideologia é dominação. A autora propõe que se in-
nesta linha mais abrangente que pretendemos desenvol-
corpore a dimensão polrtica ao estudo dos processos
ver nossa proposta de anãlise do universo simbólico das
culturais, investigando como sistemas simbólicos são ela-
borados e transformados de modo a organizar uma práfíca organizações.
pÓlftica, legitimando uma situação de dominação existente
ou contestada: "É importante investigar de que modo gru- 3. A QUESTÃO DA CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES
pos, categorias ou segmentos sociais constroem e utili-
zam um referencial simbólico, que lhes permite definir Como já mencionamos, nos últimos cinco anos, o número
seus interesses especfficos, construir uma identidade co- de pesquisas sobre o tema cultura organizacional au-
letiva, identificar inimigos e aliados, marcando as diferen- mentou consideravelmente, pesquisas estas conduzidas
ças em relação a uns e dissimulando-as em relação a ou- sob os mais diversos enfoques teórico-metodológicos."
tros. Qualquer elemento cultural pode ser assim politizado Uma tentativa de categorização destas pesquisas foi
sem, entretanto, esgotar seu significado no fato de serem feita por Linda Smircich (1983). A tipologia proposta por
instrumentos numa luta pelo poder" (Durhan, 1984, p. 87). esta autora permite sistematizar o conhecimento produzi-
do na área.
A autora faz, entretanto, a ressalva que uma aborda- Smircich distingue duas grandes linhas de pesquisa: a
gem desse tipo, que parte de uma análise "de dentro" dos primeira enfoca a cultura como uma variável, como algu-
grupos ou movimentos sociais, não pressupõe, necessa- ma coisa que a organização tem; já a segunda linha con-
riamente, a questão do enfrentamento das classes funda- cebe a cultura como raiz da própria organização, algo que
mentais nem julga a relevância ou legitimidade dos fenô- a organização é.
menos em termos de suas implicações para a repródução . Na primeira linha de estudos é possfvel distinguirem-se
do sistema capitalista. ainda aqueles que definem a cultura como uma variável
Por outro lado, segundo ainda esta autora, o conceito independente, externa à organização (a cultura da socie-
de ideologia se refere àqueles sistemas amplos, coeren- dade em que se insere a organização e que é trazida para

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dentro por seus membros) e aqueles que definem a cultu- forma. expressiva de manifestação da consciência huma-
ra como uma variável interna (as organizações produzem na. Esta linha deriva o seu conceito de cultura da antro-
bens, serviços e produtos culturais como lendas, ritos, pologia, adotando a idéia de cultura como um recurso
srmbolos). epistemológico que permite enfocar o estudo das organi-
O sucesso das empresas japonesas levou muitos zações como fenômeno social, como a metáfora do orga-
pesquisadores americanos a estudarem as diferenças nismo, segundo a qual a autora embasa a visão sistêmica
culturais entre os dois pefses e sua influência sobre o das organizações.
contexto organizacional. Exemplos desta linha de pesqui-
sa são os trabalhos de Inzerelli e Rosen (1983) e Jaeger A autora procura diferenciar as "árias correntes antro-
(1983) que estudam como o controle organizacional varia pológicas - cognitivista, simbólica e estruturalista - que
em função de fatores culturais, comparando organizações embasariam as pesquisas sobre cultura organizacional.
japonesas, americanas e inglesas. Segundo a vertente cognitivista, cultura é definida co-
Por outro lado, as pesquisas realizadas partindo da mo um sistema de conhecimento e crenças compartilha-
premissa da cultura como variável interna procuram enfa- dos. A t,arefa do antropólogo nesta perspectiva, é determi-
tizar a importância dos fatores culturais para definição de nar quais as regras existentes em uma determinada cultu-
estratégias organizacionais. A cultura, concebida como ra e como os seus membros vêem o mundo. A autora in-
um conjunto de valores e crenças compartilhados pelos clui nessa vertente autores como Argyris e Schon, Schri-
membros de uma organização, deve ser consistente com vastava e Mitrof, com a ressalva de que eles não usam
outras variáveis organizacionais como estrutura, tecnolo- o termo cultura em seus estudos; o enfoque cognitivista
gia, estilo de liderança. Da consistência destes vários fa- os leva a perceber as organizações com redes de signifi-
tores depende o sucesso da organização. cados subjetivos e quadros de referência compartilhados
Um exemplo desta linha de investigação é uma pes- que, para o observador externo, aparecem como regras.
quisa recente conduzida por Robert Ernst, (1985) em 100 Com relação à corrente estruturalista, Smircich reco-
empresas americanas. O autor define cultura como "um nhece que as tentativas de desenvolver o enfoque teórico-
sistema de valores e crenças compartilhados que mode- metodológico de Lévi-Strauss para o estudo da cultura or-
lam o estilo de administração de uma empresa e o com- ganizacional são ainda bastante incipientes.
portamento cotidiano de seus empregados" (p. 50). Par- A corrente mais promissora, do ponto de vista de
tindo da hipótese de que a maneira mais clara de se com- Smircich (corrente.à qual se filia a autora), é a simbólica;
preender a cultura é examinar as práticas administrativas esta define cultura como um sistema de srmbolos e signi-
da organização, o autor pesquisa 60 itens que definem ficados compartilhados.
práticas administrativas. A partir dos resultados da pes- Quando a perspectiva simbólica é aplicada à análise
qi;lisa, ele constrói uma grade, com duas dimensões, que organizacional, a cultura é concebida como um padrão de
lhe possibilita identificar quatro tipos de cultura. A grade discursos simbólicos que necessita ser decifrado e inter-
cultural, segundo o autor, pode auxiliar os administradores pretado. A obra de Berger é fundamental para o embasa-
no planejamento estratégico da empresa, o qual tradicio- mento te6rico desta linha de pesquisas.
nalmente é feito levando em consideração somente o am- Um trabalho, a nosso ver bastante interessante, reali-
biente externo; a identificação de novas oportunidades zado sob este enfoque é o de Van Maanen (1982) sobre o
deve levar em consideração fatores culturais. Da mesma corpo de polícia de uma cidade americana. Um dos pontos
forma, o planejamento de recursos humanos (seleção, enfocados pelo autor refere-se ao processo pelo qual as
orientação, avaliação e compensação) deve ser consis- pessoas procuram decifrar a organização em termos de
tente com a cultura organizacional. pautar e adequar o seu próprio comportamento. No caso
das academias de polícia, é estudado o processo pelo
A cultura enfocada como variável parte do modelo sís- qual os ne6fitos, recém-graduados, aprendem o sistema
têmico de organizações; no primeiro caso, a cultura é de significados mantidos pelo grupo.7
parte do ambiente em que se insere a organização; no se- Em outro artigo, Van Maanen (1978) elabora uma tipo-
gundo, é' resultado do desempenho e de representações logia sobre estratégias de socialização desenvolvidas
dos indivíduos nas organizações. pelas organizações, muito na linha de idéia de socializa-
ção secundária desenvolvida por Berger e Luckmann;
É importante ressaltar que essas linhas de pesquisa procura mostrar como estas estratégias (em conjugação
têm um objetivo claramente normativo; ou seja, elas pro- com outras atividades de administração de recursos hu-
curam realizar diagnósticos, com análises comparativas manos) substituem em organizações modernas o controle
que subsidiem a elaboração de estratégias de ação das realizado através dos meios tradicionais como aplicação
empresas. de punições, recompensas, supervisão. O autor identifica
vários tipos de estratégias de socialização, que podem
A segunda linha de estudos sobre a cultura organiza .. ser combinados em função de se adequar o mais eficien-
cional, identificada por Smircich (1983, p. 342), procura ir temente possível o indivfduo aos objetivos e natureza da-
além da visão instrumental da organização derivada da quela organização. a Os tipos propostos fornecem pistas
metáfora da máquina, da visão adaptativa derivada da interessantes par? análise da situação empírica pesquisa-
metáfora do organismo, para pensar a organização como da.

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A nosso ver, um dos autores que vão mais adiante na IEle atribui, .no entanto, a maior importância ao papél
proposta de trabalhar a questão da cultura, conceitual e dos fundadores da organização no processo de moldar
metodologicamente, é Edgar Schein (1985). Para ele, seus padrões culturais; os primeiros líderes, ao desenvol-
cultura organizacional é o conjunto de pressupostos básí- verem formas próprias de equacionar os problemas da or-
cos (basic assumptions) que um grupo inventou, desco- ganização, acabam por imprimir a sua visão de mundo
briu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os pro- aos demais e também a sua visão do papel que a organi-
blemas de adaptação externa e integração interna e que zação deve desempenhar no mundo. e
funcionaram bem o suficiente para serem considerados Ao discutir técnicas possfvels de investigação dos fe-
válidos e ensinados a novos membros como a forma cor- nõmenos culturais de uma organização, Schein confere
reta de perceber, pensar e sentir, em relação a esses grande relevância às entrevistas com estes membros
problemas (Schein, 1984, p. 9). fundadores, elementos-chave da organização. Propõe
também outras técnicas que devem ser usadas de forma
A cultura de uma organização pode ser apreendida em combinada: análise do processo de socialização de novos
vários níveis, segundo este autor: membros; análise das respostas a incidentes crrticos na
história da organização; análise, junto com uma pessoa de
• nrvel dos artefatos visívels: o ambiente construído da dentro, das caracterfstlcas da organização observadas ou
organização, arquitetura, teyou; a maneira de as pessoas descobertas nas entrevistas.
se vestirem, padrões de comportamento vlsfveis, docu- O grande mérito desse artigo é propor um instrumental
mentos públicos: cartas, mapas. Este nrvel de análise, conceitual e metodológico para se trabalhar com cultura
segundo Schein, é muito enganador porque os dados são organizacional (segundo a perspectiva te6rica do autor)
fáceis de obter, mas difíceis de interpretar. É possível que procura ir além do nrvel mais aparente do universo
descrever como um grupo constrói o seu ambiente e simbólico das organizações, tentando penetrar no domínio
quais são os padrões de comportamento discernrveis en- dos pressupostos inconscientes. Suas idéias e técnicas
tre os seus membros, mas, freqüentemente, não se con- para investigação nos sugerem pistas interessantes de
segue compreender a lógica subjacente ao comporta- pesquisa.
mento do grupo;
Em termos de técnicas de investigação sobre cultura
• nrvel dos valores que governam o comportamento das organizacional, outros trabalhos realizados nesta pers-
pessoas. Como esses são difrceis de se observar direta- pectiva simbólica trazem contribuições interessantes. O
mente, para identificá-los é preciso entrevistar os mem- estudo, por exemplo, realizado por Joanne Martin e cola-
bros-chave de uma organização ou realizar a análise de boradores (1983) utiliza como material empírico estórias
conteúdo de documentos formais da organização. Entre- das organizações, construindo uma tipologia de estórias
tanto, diz o autor, ao identificar esses valores, observa-se bastante curiosas. 10
que eles geralmente representam apenas os valores ma- Com isto, os autores pretendem discutir o mito da sin-
nifestos da cultura. Isto é, eles expressam o que as pes- gularidade da cultura de cada organização, mostrando
soas reportam ser a razão do seu comportamento, o que como a recorrência de certos tipos de histórias, define al-
na maioria das vezes são idealizações ou racionaliza- guns padrões culturais comuns às organizações.
ções. As razões subjacentes ao seu comportamento per- Retomando a categorização proposta por Smircich pa-
manecem, entretanto, escondidas ou inconscientes; ra os estudos sobre cultura organizacional, observamos
que esta permite situar a maioria das pesquisas desen-
• nrvel dos pressupostos inconscientes: são aqueles volvidas na última década sobre esta temática. Entretanto,
pressupostos que determinam como os membros de um apesar das fortes raízes antropológicas dos estudos
grupo percebem, pensam e sentem. Na medida em que mencionados, verificamos que, em suas várias vertentes
certos valores compartilhados pelo grupo conduzem a conceituais, eles assumem os sistemas culturais en-
determinados comportamentos e esses comportamentos quanto instrumento de comunicação e visão consensual
se mostram adequados para solucionar problemas, o va- sobre a própria organização. A dimensão do poder, intrrn-
lor é gradualmente transformado em um pressuposto in- seca aos sistemas simbólicos (pelo menos nas socieda-
consciente, sobre como as coisas realmente são. Na me- des capitalistas), e o seu papel de legitimação da ordem
dida em que um pressuposto vai-se tornando cada vez vigente e ocultamento das contradições das relações de
mais taken for granted, vai passando para o nrvel do in- dominação estão ausentes nestes estudos. Parafrasean-
consciente. do Eunice Durhan no artigo citado, seria necessãrio "poli-
Do ponto de vistadeSchein, se a organização como tizar" o conceito de cultura, a fim de apreendê-lo como
um todo vivenciou experiências comuns, pode existir uma instância definidora das relações de trabalho.
forte cultura organizacional que prevaleça sobre as várias Procurando aprofundar essa discussão sobre cultura e
subculturas das unidades. O que se observa freqüente- poder, consideramos importante introduzir conceitos de-
mente é que os grupos com background ocupacional se- senvolvidos por Max Pagãs e seus colaboradores (1979).
melhante tendem a desenvolver culturas próprias no inte- Não pretendemos tentar recuperar a trajetória desen-
rior das organizações: a cultura dos gerentes, dos enge- volvida por esses autores para a construção de sua obra,
nheiros, do sindicato. por razões te6ricas e metodológicas. O objetivo do traba-

Est6rias, mitos, 1ro6is 11


lho é estudar o poder nas organizações a partir de um' a crescente divisão técnica do trabalho e a interdepen-
quadro teórico que procura aliar o referencial marxista a dência das tarefas, a mudança e a renovação constante.
psicanálise freudiana. Os nossos reduzidos conhecimen- O aparelho produtivo exige trabalhadores instrufelos, ca-
tos sobre psicanálise nos dificultam muito trabalhar com ' pazes de compreender os princfplos de sua ação (e não
certos conceitos e esquemas de análise desenvolvidos simplesmente de realizar tarefas rotineiras), capazes de
pelos autores. Por outro lado, a proposta metodológica de iniciativa, comprometidos com seu trabalho, adaptados à
conduzir o. estudo segundo uma postura "sistêmica dialé- , mudança. Isto pode torná-los mais Uvres para organiza-
tica", se bem que fascinante, é muito diffcil de ser repro- rem a produção, para interrogarem-se sobre os objetivos
duzida e pode-se fácilmente cair 'no erro de emprestar à da organização. Por sua vez, a orgànização hipermodema
obra' uma linearidade ernpoorecedora, que ela não pos- deve assegurar seu controle sobre as transformações do
.suí." sistema produtivo, mantendo também o controle sobre as
Assim sendo, optamos por incorporar simplesmente transformações por que passam seus empregados. Isto
algumas idéias desenvolvidas por Pagàs, que abrem cer- 'requer um alto desenvolvimento do sistema de media-
tos caminhos promissores ao nosso t~abalho. ções.
Os autores identificam ainda quatro grandes categorias
Segundo os autores, o fenOmeno do poder tem sido de mediações nas empresas hipermodernas:
estudado sob diferentes perspectivas: '
1. Mediações de ordem econOmica: altos salários, carreira
• do ponto de vista marxista, como fenômeno de aliena- aberta, contribuindo para destruir os vestfgios da socieda-
ção econômica (a não-propriedade dos meios de produ- de feudal: castas, diplomas, ligações familiares que sub-
ção) que separa os trabalhadores dos meios de produção sistem na sociedade capitalista clássica.
e dos frutos de seu trabalho;
2. Mediações de ordem polftica: desenvolvimento de um
• como um fenômeno sobretudo polftico de imposição e sistema decisório, que assegure o governO a distância de
controle sobre as decisões e organização do trabalho segmentos vastos e complexos da empresa matriz; subs-
(são inclufdos nesta perspectiva autores bem diferentes tituem-se para -tanto as ordens e interdições por regras e
como Wright Mills e Foucault); princfpios interiorizados conforme a lógica da organização.
Desaparece a figura do chefe tradicional, "pequeno sobe-
.• ao n(vel ideológico, corno um fenômeno de apropriação rano local das empresas capitalistas clássicas", substituf-
de significados e valores; do pelo chefe intérprete das regras da organização.

• ao nfvel psicológico, corno um fenômeno de alienação 3. Mediações de ordem ideológica: desenvolvimento da


psicológica, de dependência, de projeção e introjeção, organização corno lugar autônomo de produção ideológi-
como sistemas de defesa coletiva inconsciente (Pagas et ca, articulada a todas as práticas da empresa: polftica de :
, alii, 1979, p. 8). pessoal, financeira, comercial. A empresa capitalista clás-
sica é o local privilegiado das relações econOmicas - "tra-
Os autores pretendem analisar o fenômeno do poder e balha-se para ganhar a vida". Ela se apóia sobre certos
suas articulações na vida de uma organização, a partir de aparelhos ideológicos da sociedade global como a famnia,
um enfoque pluridimensional, levando em consideração as a escola, a religião, os quais ela reforça e é por eles refor-
dimensões de ordem econômica, polftica, ideológica e psi- çada; não produz, porém, por si mesma uma ideologia
cológica. Para atingir este _pbjetivo, segundo uma pers- própria. A empresa hipermoderna investe também nos
pectiva dialética, os autores introduzem o conceito de me- aparelhos ideológicos da sociedade global (notadamente
diação, o qual "é indissoluvelmente ligado ao conceito de .através da intermediação do Estado) procurando influen-
contradição, no sentido marxista 00 ierrno" (Pagas et alii, ciar suas orientações e torna-se ela mesma um dos locais
1979, p.. 27). O processo de mediação, como já mencio- por excelência da produção ideológiea conservadora. Isto'
namos, transforma a contradição básica entre capital e porque ela necessita justificar suas práticas junto,a seus
trabalho em uma contradição intema às pollticas da orga- , empregados, clientes e o público de um modo geral. Ela
nização. ambiCiona; e em larga medida o consegue, tornar-se um
Os autores desenvolvem sua pesquisa na filial euro- lugar dàprÓdução de significado e valor.
péia de uma empresa multinacional americana, por eles
qualificada de empresa hipermoderna, a qual conjuga alta 4. Mediações de ordem psicológica: desenvolvimento da
tecnologia de fabricação com técnicas de administração influência psicológica da organização sobre os trabalhado-
as mais sofisticadas. 12 res. Ao nfvel psicológico, o par: vantagens/restrições se
. transforma no par prazer/agonia. A organização funciona
A organização hipermodema caracíenza-se pelo desen- corno 'uma imensa máquina de prazer e angústia - a an-
volvimento "fantástico" dos processos de mediação, em gústia, provocada pela onipresença dos controles, pelo
consonância com as transformações do aparelho produti- caráter ilimitado e inatingfvel das exigências, é compensa-
vo: a intelectualização das tarefas, o papel alcançado pela da pelos múltiplos prazeres oferecidos pela organização,
ciência e pela técnica em todos os escalões da produção, principalmente os prazeres de tipo agressivo: o prazer de

12 Revista de Administração de Empruas


conquistar, de dominar clientes~ colegas, de vencer. O in- administrativas de pessoal como elementos essenciais
divrduo introjeta a n(val do inconsciente as restrições im- mediatizando as contradições da empresa, abre interes-
postas e os tipos de satisfação oferecidos. Cria-se um santes pistas de investigação. Esta proposta vai além da-
mecanismo de reforço circular, entre agonia e prazer, que quela feita por muitos autores americanos 13 que observam
assegura a manutenção do sistema psicológico em con- nas práticas administrativas elementos da cultura.
sonância com a estrutura da organização e os reproduz. Estas práticas constituem-se tanto como elementos
Evidentemente, as categorias propostas não são es- definidores, como mediadores de relações de poder. no '
tanques, mas se configuram antes de tudo, como cortes .interior das organizações.
epistemológicos, que permitem interpretar a realidade
pesquisada pelos autores. Interessa aos objetivos do Em suma, ao recuperar o trabalho de cientistas so-
nosso trabalho explorar mais detidamente as mediações ciais, de psicólogos e administradores sobreesta temá-
de ordem ideológica e suas articulações com as demais. tica, procuramos ir além da proposta clássica, que define
O conceito de ideologia desenvolvido pelos autores cultura <:orno representações simbólicas que expressam
aproxima-se do conceito de cultura organizacional, tal formas comuns de apreender o mundo, possibilitando a
corno este foi trabalhado até aqui. Os autores descartam a comunicação entre os membros de um grupo. A nosso
definição marxista tradicional (ou vulgar, como querem ver, é preciso "politizar" o conceito de cultura (na linha
outros) de ideologia corno um sistema coerente e monolfti- proposta por Durhan), investigando éomo o universo sim-
co de idéias, atendendo aos interesses da classe domi- bólico expressa relações de poder, oculta-as e instru-
nante. A ideologia deve oferecer uma interpretação do real mentaliza o pólo dominante da relação.
relativamente coerente com as práticas sociais dos mem- . O estudo de caso sobre relações de trabalho realizado
bros da organização, fornecendo-Ihes uma concepção de em uma empresa estatal propiciou o material empírico pa-
mundo conforme suas aspirações. ra refletirmos sobre as questões propostas. Nesse estudo
de caso, a temática das relações de trabalho foi pesqui-
Segundo Pagãs e colaboradores (1979. p. 80), na em- sada em suas várias instâncias definidoras, sob uma
presa pesquisada, os empregados partilham fortemente perspectiva histórica. Não nos é possfvel recuperar, nos
da ideologia, na medida em que participam de sua elabo- limites deste texto, toda a análise realizada; procuraremos
ração, num processo de autopersuasão, que lhes permite assim pinçar alguns elementos que nos parecem interes-
contribuir para sua própria subjugação. Isto significa que santes à discussão proposta.
ela não reside apenas no discurso dos dirigentes, mas é Focaremos o perfodo inicial da história da empresa, pe-
elaborada pelo conjunto dos empregados. rooo este fundamental para a construção de sua identida-
Os autores ressaltam ainda que a contribuição dos in- dee para a definição dos padrões de relações de trabalho.
dvfduos à produção depende muito de sua integração A análise, ainda que rápida, de suas relações com o Es-
ideológica. A função essencial da ideologia não é apenas tado, com o mercado, de suas práticas administrativas e
mascarar as relações sociais de produção, mas reforçar a das relações entre as categorias de trabalhadores possi-
dominação e conseguir a exploração dos trabalhadores. bilita o encaminhamento da discussão sobre o universo
Existiria, assim, na empresa hiperrnoderna a elabora- simbólico, destacando-se certas estórias, mitos, heróis,
ção de uma nova "religião", que é colocada em prática que expressam este duplo significado da cultura organi-
nos dispositivos da poIftica de pessoal. zacional.
Utilizando a metáfora da religião, os autores analisam
os dogmas, os mandamentos da empresa (consubstan-
ciados nos seus princrpios e poIfticas de pessoal), os ritos 4. GUL TURA E RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA
(a confissão: as entrevistas para avaliação de pessoal, a EMPRESA ESTATAL
missa: as reuniões, o batismo: os programas de integra-
ção dos novos funcionários, a catequese: os programas A empresa pesquisada foi criada na década de 40, sendo-
de treinamento, a liturgia: as regras). contemporânea à primeira geração das empresas estatais
A obra de Pagãs traz, a nosso ver, algumas contribui- brasileiras.
ções bastante significativas à discussão proposta neste Os seus primeiros anos de vida foram bastante ditrceis,
texto. marcados pela insegurança financeira e fragilidade técnica
A primeira delas se refere ao enfoque teórico metodo- e administrativa; foram também anos de luta para consoli-
lógico adotado pelos autores, que procuram trabalhar a dar sua posição no mercado nacional e intemacional.
questão do poder na empresa capitalista, em suas várias Superados os obstáculos de financiamento, operação,
instâncias e múltiplas mediações. A introdução do con- e assegurado o seu posicionamento no mercado, a em-
ceito de mediação, que transforma a contradição básica presa começou a adquirir formato empresarial próprio. Em
entre capital e trabalho em uma contradição interna às po- função de caracterrsticas de suas atividades produtivas
Ifticas .da organização, parece-nos fundamental para a (produtora, transportadora e exportadora de insumos bá-
apreensão "das relações de trabalho no interior da organi- sicos) e de sua inserção no mercado internacional, con-
zação. seguiu definir suas estratégias de crescimento com um
Em segundo lugar, a análise emp(rica realizada pelos certo grau de autonomia em relação às polfticas govema-
autores, enfocando o sistema de normas e as práticas mentais.10

Est6rias, mitos, hodis 13


o crescer, vencendo sempre desafios e obstáculos, vam semelhanças com os engenheiros, no sentido de que
que surgiu como meta prioritária na primeira década, foi-se ambos tinham a possibilidade de imprimir à empresa a vi-
tornando um objetivo permanente, incorporado à sua prá- são própria do seu vir-a-ser, do seu espaço, da sua mis-
tica cotidiana. A eficiência em todas as etapas do proces- são. Mas, por outro lado, o seu distanciamento do cotidia-
so de produção e transporte foi sempre processada atra- no da empresa, da relação direta com os outros emprega-
vés das mudanças no processo de trabalho, através da dos diferenciava-os dos engenheiros. Estes últimos as-
inovação tecnológica e qualificação de seus quadros téc- sumiam integralmente a ambigüidade do seu papel: eram
nicos. empregados exercendo as funções de patrões, corporifi-
Paralelamente, as práticas para administração de pes- cando a seus olhos e aos dos demais a própria empresa.
soal eram simples, pouco formalizadas, atendendo às ne-
cessidades mais imediatas do processo produtivo. O pro- A segunda instância era representada pelas chefias
cesso de recrutamento e seleção era feito de maneira in- intermediárias: os feitores, administradores que passaram
formai pelas chefias intermediárias, acionando sempre a ser chamados encarregados, supervisores. Estes deti-
que possfvel as redes de parentesco e amizade entre os nham a autoridade necessária para disciplinar, em certos
empregados. A indicação constitufa em primeiro critério casos organizar e exigir produção, e até mesmo para re-
para seleção do novo empregado; o outro requisito fun- compensar, na medida em que a não-formalização dos
damentai era a força ffsica do trabalhador, necessária pa- procedimentos de administração de pessoal lhe conferia
ra agüentar o ritmo e as condições de trabalho. O proces- poder sobre as possibilidades de carreira de seus subor-
so de qualificação era feito de forma pontual, segundo as dinados. As relações entre os dois grupos eram revesti-
necessidades mais imediatas de preenchimento dos pos- das de forte dose de ambigüidade: ora eles constitulam
tos de trabalho e segundo critérios bastante personaliza- um "nós coletivo", ora se colocavam como pólos opostos
dos (os supervisores transferiam seus empregados de um da relação de trabalho.
posto para outro, facilitando ou, em certos casos, impe-
dindo o processo de qualificação). Ao se diversificarem as A nossa proposta para a análise do universo simbólico·
tarefas, surgiam as funções, os cargos especiaHzados e desta empresa estatal pesquisada leva em consideração,
esboçavam-se os projetos de carreira. 15 portanto, esses três pontos: o processo de definição de
As práticas administrativas de pessoal se resumiam sua identidade empresarial; as condições de trabalho e
aos processos formais de admissão e demissão dos tra- elaboração de suas práticas administrativas; e as rela-
balhadores: o fichar o empregado. É importante ressaltar ções de poder entre as categorias de empregados. Essas
que, do ponto de vista do trabalhador, ser fichado e ter os dimensões são, ao mesmo tempo, elementos estruturan-
seus direitos constitura um dos principais atrativos para se tes e estruturados pelos padrões culturais vigentes.
empregar na empresa. O relato de um empregado apo- Na perspectiva adotada, as várias categorias de em-
sentado é a esse respeito significativo: "Naquele tempo, pregados participam do processo de construção do uni-
não tinha escolha. Era a empresa ou o Banco do Brasil. A verso simbólico. As categorias dominantes, diretores, ge-
maioria entrava para a empresa, o filho do ferroviário ia rentes, imprimem,. mais do que outras, a sua visão de
trabalhar na estação, pegava um treinamento trabalhando mundo sobre a empresa, porém sem o peso, sem a ex-
de graça e depois era admitido. O ambiente era muito fa- clusividade que lhes é atribufda por autores corno Schein
miliar: pai e filho trabalhavam juntos." (1983). Segundo este autor, os fundadores (notadamente
A estrutura hierárquica da empresa nos seus primeiros os fundadores de empresas privadas) desempenham um
anos era muito simples, composta basicamente de três papel fundamental na criação da cultura da organização;
categorias: engenheiros, supervisores (os chamados fei- na medida em que eles têm uma visão total do que deve
tores) e os trabalhadores (os peões). As relações de po- ser a organização, procuram estruturá-Ia, desenvolvê-Ia,
der entre as categorias emanavam não só das posições e elaborando elementos simbólicos consistentes (pelo me-
papéis assumidos no processo de trabalho, mas também nos no seu próprio ponto de vista) com esta visão. Se a
de caracterfsücas pessoais e eram exercidas das mais di- organização é bem-sucedida, o seu fundador sente-se
versas formas, desde as mais coercitivas, às remunerati- reforçado em seus valores e princlpios, imprimindo, com
vas e simbólicas. cada vez mais segurança, a sua "verdade" sobre os des-
tinos da organização. Na empresa estatal, em função de
A primeira instância do poder era representada pelos sua especificidade, este processo ocorre de forma mais
engenheiros, que acumulavam funções técnicas e direti- dispersa, e alguns dirigentes desempenham este papel,
vas. Representavam a autoridade suprema e legitima por porém sem a continuidade temporal que acontece na em-
seu conhecimento diferenciado, adquirido nas escolas su- presa privada.
periores. Na estratégia da empresa de formação de um Procuraremos, portanto, tentar penetrar no universo
quadro técnico-gerencial altamente. capacitado, investia- simbólico da organização pesquisada. O primeiro passo
se na formação dos engenheiros, visando-se a obter não nesta direção será o de recuperar estórias sobre certos
só um grupo qualificado, mas, também coeso e compro- incidentes crlticos na vida da organização; a análise deste
metido com a própria empresa. A alta cúpula administrati- material permite explicitar certos valores caros aos mem-
va, diretores e presidentes, era designada pela Presidên- bros da empresa, valores estes fundamentais ao proces-
cia da República, por um períooo delimitado.- Eles guarda- so de construção dos heróis.

14 Revista de Administração de Empresas


o passo seguinte será no sentido de tentar desvendar trução do herói. A empresa havia negociado um contrato
o significado dos mitos. Partimos do conceito de Lévi~ internacional vultoso com um novo comprador e necessi-
Strauss (1970, p. 140) de que "o mito é, ao mesmo tempo, tava transportar e embarcar com urgência o produto. A li-
uma estória contada e um esquema l6gico que o homem nha férrea estava interrompida e se fosse desobstrulda
cria para resolver problemas que se apresentam sob pIa- pelos métodos normais perder-se-iam dias preciosos para
nos diferentes, integrando-os. numa construção sistemáti- cumprir o contrato; o gerente toma, então, algumas deci-
ca". Procuramos recuperar um mito que é bastante ca- sões drásticas para desimpedi-Ia. Ele pede autorização á
racterístico do período estudado: o mito da "grande famí- diretoria no Rio de Janeiro para efetuar o desimpedimento,
lia." A tentativa de interpretar este mito é crucial para a mas não espera a resposta e realiza o que acha necessá-
compreensão do papel assumido pelo sistema simbólico, rio ser feito. A operação toda é bem-sucedida, a empresa
tanto como elemento integrador, definidor da identidade da cumpre o seu contrato e, quando a resposta negativa do
empresa, como revelador dos mecanismos de poder nela Rio chega, o produto já estava embarcado, a caminho do
engendrados. comprador.
Esta estória, a nosso ver, exemplificà bem os valores
subjacentes à construção do sistema simbólico e ao nas-
5. AS ESTÓRIAS DE CORAGEM E O NASCIMENTO cimento do herói. Um parêntese explicativo inicial sobre o
DOS HERÓiS seu personagem principal é, em nossa opinião, necessá-
rio: o engenheiro em questão entrou para a empresa re-
o período inicial da história da empresa pode ser caracte- cém-formado e teve um rápido crescimento profissional,
rizado como um período de sobrevivência; tanto a nível da chegando a ocupar altos postos executivos. São inúme-
organização, como em termos individuais, era preciso en- ras as biografias a seu respeito em documentos e jornais
frentar uma luta cotidiana para vencer em condições ad- da empresa e da grande imprensa, ou seja, existe um
versas. processo de criação "oficial" do mito. Entretanto, esta es-
Neste contexto, um valor que apareceu subjacente à tória, assim como outras, envolvendo a sua pessoa, foi
maioria dos depoimentos, de forma mais explícita ou impli- coletada em depoimentos verbais, o que nos parece signi-
citamente, é o da coragem. ficativo em termos metodológicos; ou seja, a tradição oral
Esta coragem era percebida e trabalhada como um é um caminho fundamental para se penetrar, no universo
valor a ser desenvolvido em todos os níveis hierárquicos cultural, em valores e símbolos que, por razões éticas ou
da empresa. Eram os diretores que negociavam com os de coerência com as práticas organizacionais, não podem
credores e compradores internacionais com coragem, as- estar explicitados na história oficial.
sumindo atitudes consideradas arriscadas, para colocar a No episódio descrito, o engenheiro revela uma certa
empresa no mapa; eram os engenheiros que realizavam dose de coragem ao enfrentar os riscos de tomar uma de-
feitos considerados heróicos e arriscados para cumprir ou cisão difrcil que poderia ter repercussões extremamente
superar suas metas de produção; eram os trabalhadores negativas para a sua própria carreira. Esse risco ele as-
que assumiam riscos até de vida para conseguir realizar sume para conseguir cumprir as metas propostas, solidifi-
as tarefas que lhes eram propostas." cando a posição da empresa no mercado internacional;
Das estórias sobre os atos de coragem, nascem os em outras palavras, ao assumir o risco, ele revela o seu
heróis, que personificam os valores e provêem modelos grau de comprometimento com a organização. corno um
de comportamento para os demais. herói, ele não só é repositório das qualidades desejáveis
Na estatal, como não existem claramente os pais fun- nos empregados, como também é considerado um líder
dadores da empresa, os heróis não têm existência a priori, legrtimo para imprimir o seu modelo, a sua visão do que
mas vão sendo consnuídos em momentos de conjugação deve ser a empresa.
de forças significativas.
Eles são, geralmente, empregados da própria empresa Um outro episódio: uma greve ocorrida no final dos
(os presidentes raramente são apresentados como heróis, anos 40, que uniu feitores e peões contra a administração,
em função da sua transitoriedade no cargo - as exceções parece-nos significativa para exemplificar o nascimento
são dadas por aqueles que realmente se destacaram por dos anti-heróis. A greve, detonada por questões salariais
alguma situação muito especial ou aqueles presidentes e de condições de trabalho, assumiu um caráter extre-
oriundos do quadro de empregados). Ao praticar o ato mamente violento, tanto em termos de ação dos trabalha-
"heróico", que evidencia não só a sua coragem pessoal, dores (depredações, intimações para que todos aderis-
mas também seu comprometimento com a organização, sem) como em termos da reação da empresa (demissões
eles vão-se tornando legítimos portadores de uma verda- e prisões). Os responsáveis pela eclosão do movimento
de sobre o destino da empresa, sobre o perfil adequado permaneceram na memória coletiva como figuras muito
de seus empregados, sobre os padrões de. relações de- controvertidas: s~ avaliados por uns como heróis que
sejados. lutaram por melhores condições para todos os emprega-
dos ("Este pessoal que está ar tem que lembrar que eles
Há um episódio da história da empresa pesquisada têm (00') a mais no salário à custa do sacrifício dos ho-
(relatado em depoimentos, e não em documentos oficiais) mens que foram demitidos.") e por outros, como falsos Ir-
que, a nosso ver, exemplifica bem este processo de cons- deres, sem organização, sem nada, que exigiam da em-

Estôrias, mitos, her6is


15
presa algo que ela não podia conceder (NA empresa' não humana.18 NA ajuda mútua é um elemento caracterizador
tinha condição de atender - ela era pobre, igual a n6s"). da famnia, desde as suas origens. Essa reciprocidade é
Da mesma forma que no outro episódio, os Ifderes condição da própria sobrevivência dos indivfduos (Cane-
desse movimento revelaram uma forte dose de coragem vacci, 1984, p. 31).
pessoal, enfrentando os riscos da repressão,. da demis- A idéia de uma célula de cooperação, solidariedade,
são em nome do interesse coletivo. Entretanto, corno o afetividade, numa visão a-histórica do fenômeno da famf-
seu comprometimento é com a causa dos trabalhadores, lia, constitui a sua face mais evidente, mais exaltada em
e não com a empresa, eles são punidos e transformados todas a instâncias da vida social, das manifestações ar-
em anti-heróis; "A greve é uma coisa perigosa - todo tfsticas ao discurso polrtico.
mundo saiu perdendo, tanto a empresa, como n6s." Rebatendo para o plano da empresa, é esta a imagem
Os episódios analisados explicitem os valores da cul- evocada quando se coloca: "A empresa é uma grande
tura da empresa e mostram o nascimento dos heróis que famnia." E, realmente, recuperando o seu processo de
corporificam estes valores. Os heróis tornam-se her6is e constituição, de formação de sua identidade organizacio-
passam a ser valorizados como tal, simboficamente, nal, observados como a cooperação e a solidariedade, pa-
quando seus atos revelam o comprometimento com a em- ra vencer condições adversas, para alcançar metas pro-
presa. Senão, eles tornam-se anti-her6is, ou heróis de um postas, para crescer, foram importantes. Ou seja, a ima-
grupo dominado que procura encontrar as brechas para gem da famOia tem razão histórica de ser, por partlciparern
definir sua identidade. de sua elaboração mútua todos os empregados, e não
apenas os profissionais de recursos humanos, tentando
6. O MITO DA GRANDE FAMíLIA vender uma imagem positiva da empresa.
O outro eixo para compreensão da idéia de família fun-
"A·empresa antigamente era como uma grande famOia." damenta-se no binômio dominação-submissão. Lévi-
Strauss, ao construir o "modelo ideal" de famOia, já aten-
Esta colocação apareceu freqüentemente nas entre- tava para os vínculos e sentimentos que ligam os seus
vistas e discussões realizadas com os empregados da membros. 1. A percepção e elaboração teórica sobre rela-
empresa. ções de dominação/submissão existentes na famOia foram
Desvendar o mito da grande famOia - como ele foi sen- desenvolvidas fundamentalmente pela Escola de Frank-
do construido, que significado assumiu para cada catego- furt, com a proposta de aliar o conhecimento psicanalrtico
ria de empregado - parece-nos um passo importante para à interpretação marxista de sociedade. 20
a análise do universo simb6lico.
Uma ressalva inicial faz-se, entretanto, necessária. Analisando a famnia por uma perspectiva histórica, ob-
A imagem da grande famOia é freqüentemente utilizada servaram como esta desenvolve em seu interior as rela-
pelas organizações para reforçar o clima de camarada- ções autoritárias que se articulam dialeticamente com o
gem e confiança que se pretende e o comprometimento autoritarismo social, além de ser reprodutora do consenso
das pessoas com os objetivos organizacionais. Na "gran- acrftico. As relações de autoridade assumem a função
de famOia" da empresa, o conflito entre capital e trabalho é essencial de fixar, desde a infância, a necessidade objeti-
substitufdo pela cooperação (cooperação esta pontuada va do domfnio do homem sobre o homem (Canevacci,
por algumas situações de conflito interpessoal). 1984, p. 211; Horkheimer & Adorno, 1973, p.132). 21
A imagem da grande famOia não é absolutamente uma A famnia torna-se assim a terrível matriz dos mecanis-
1magem original e exclusiva da empresa em questão." O mos de dominação e submissão.
que nos levou a crer que ela é uma imagem significativa A imagem de grande famnia para os empregados da
para os nossos pesquisados foi a sua recorrência nos empresa assume sob esta perspectiva contornos dife-
depoimentos individuais e de grupo e o fato de ela reme- rentes. A análise do mito propicia assim o desvendar das
ter-se sempre ao passado: "A empresa era como uma relações de dominação, presentes no cotidiano da empre-
grande famOia." sa permeando as interações entre categorias de empre-
Na tentativa de apreender o mito da grande famnia além gados.
das explicações mais ou menos óbvias de que era uma O mito da famOia revela, assim, as duas faces presen-
empresa menor, em que todo mundo se conhecia (embora tes nas relações de trabalho: a face visfvel de solidarieda-
isto nunca fosse verdade, pois desde os seus prim6rdios de, de cooperação, e a face oculta da dominação e sub-
a empresa contava com cerca de 6 mil empregados geo- missão.
graficamente dispersos), procuramos investigar os pres-
supostos básicos que formariam o tecido simbólico da or- 7. COMENTÁRIOS FINAIS
ganização.
A nosso ver, a proposta de trabalhar o mito da grande As tentativas de apreensão dos elementos simbólicos de
famOia parte de dois eixos que fundamentam concepções uma organização implicam assumir a postura do antropó-
antagônicas, porém complementares, da idéia de famnia. logo, de "imersão na vida organizacional visando a des-
O primeiro refere-se à concepção mais clássica, vi- vendar o seu universo de significações". Segundo Schein,
sual, de famnia como célula elementar da sociedade, fun- (1985, p.47) "nós precisamos ser cuidadosos em não as-
damentai para reprodução e sobrevivência da espécie sumir que a cultura se revela facilmente; em parte, porque

16 Revista de Administração de Empresas


raramente sabemos pelo que estamos procurando, em um estudo sobre relações de trabalho na empresa estatal. fese de li-
vre-docência, São Paulo, FEAlUSP; 1986. Mimeogr.
parte, porque os pressupostos básicos são difíceis de
discernir e são tão taken for granteéJ que aparecem como 3 Para uma discussão mais cuidadosa da posição da antropologia em

face das antigas polêmicas entre os cientistas sociais, a respeito do


invisíveis para estranhos". determinismo do econômico sobre a instância do simbólico, das re-
A adoção de uma abordagem multidisciplinar, procu- presentações, ver o artigo de Durhan, Eunice, Cultura e ideologia.
Revista de Giéncias Sociais. Rio de Janeiro. 27(1), 1984.
rando articular categorias e técnicas de investigação de
diferentes áreas de conhecimento, das ciências sociais à 4Berger e Luckmann citam o exemplo dos brâmanes. na índia, que
conseguem impor a sua definição da realidade social, o s~a de
psicologia, à administração, possibilita ao pesquisador castas, sobre todo o território hindu, durante séculos.
identificar e interpretar os elementos simbólicos à luz de
5Sergio Micelli, na introdução a uma coletânea de textos de Pierre
um referencial mais abrangente. Bourdiex, A economia das trocas simbólicas. ao recuperar a trajetó-
Neste sentido, a proposta desenvolvida neste artigo, ria intelectual deste autor. coloca que ele é um dos que procuram su-
perar estas duas posturas em seus estudos sobre a reUgião, educa-
de recuperar conceitos elaborados inicialmente pela an- ção.
tropologia e retomados pela teoria organizacional, procu- 6Em 1984. foi realizada uma conferência sobre Organizational cultu-
re and the meaning of life in the work place, en Vancouver. Canadá.
rou avançar em termos de apreender a instância do sim- Os papers apresentados e discussões realizadas foram condensados
bólico de uma organização, não apenas em sua capaci- em um volume Organizational culture. publicado em 1985, que. de
certa forma. sintetiza as principais tendências do estudo nesta área,
dade de ordenar, atribuir significações, construir a identi- na América do Norte.
dade organizacional, e agir como elemento de comunica-
7Assumindo integralmente a postura do antropólogo. Van Maanen
ção e consenso, como em sua capacidade de ocultar e empregou-se durante alguns anos no corpo policial de uma cidade
instrumentalizar relações de dominação. americana.
A análise de elementos simbólicos pesquisados em eAs análises de Van Maanen sobre esse processo tomam corno pon-
uma empresa estatal procurou rebater esta proposta para to de partida a discussão do processo de socialização secundária fei-
ta por Berger.
o plano empírico. No processo de desvendar os significa-
dos das estórias, dos mitos e heróis, este duplo caráter do 9Em outro artigo,lSchein (1983) desenvolve mais este tema.
universo simbólico foi-se desvelando. E para isto foi es- IDA maioria das histórias pode ser enquadrada nos seguintes tópi-
sencial recuperar a história da empresa, a sua inserção cos: "Quebrando as regras - o chefe pode ser humano?" "Um
joão-ninguém pode chegar ao topo?" "Eu posso ser despedido?"
no cenário político e econômico, o seu processo de tra-
"Como a organização lida com obstáculos?" "Como o patrão reage
balho, as relações de poder entre categorias de emprega- aos erros?"
dos, as suas práticas de gestão de pessoal. A discussão "Tivemos a oportunidade de ler alguns trabalhos orientados pela
(ainda que muito rápida neste texto) destes pontos propi- equipe de Pagês. e muitos deles, apesar de se proporem o método
dialético para condução de sua pesquisa e adotarem o quadro con-
ciou o referencial necessário à interpretação do seu uni- ceituai de Pagês desenvolvem o trabalho segundo a métodologia po-
verso simbólico. sitivista.
As possibilidades de trabalhar esta proposta não se 12Segundo Pagês e seus colaboradores (1979, p. 13), "a empresa
restringem apenas ao plano das análises acadêmicas, hiperrnodema e a sociedade neocapitalista em seu estado mais
avançado têm por característica constuír um sistema quase perfeito
mas podem também propiciar o embasamento necessário
de ocultamento das contradições.
à elaboração de projetos de intervenção, notadamente
13Nesteponto, a proposta de Schein diferencia-se das demais. ao
aqueles que envolvem mudanças nas relações de, po- explorar a idéia de cultura como o conjunto de pressupostos básicos
der.22 A potencialização de mudanças esbarra, muitas que um grupo descobriu ou inventou e que vão gradualmente pas-
sando para o inconsciente coletivo da organização.
vezes, em resistências advindas de valores, de padrões
culturais dominantes na organização. É preciso pesquisar 14Éinteressante observar a valorização constante de seu formato
empresarial autónomo. em todos os momentos da vida da empresa.
este universo cultural, desvendar suas origens, seus ele- O discurso de posse de um presidente da empresa, em 1952. é. a
mentos definidores, para conseguir transformá-lo. esse respeito, significativo: "No que concerne à atual diretoria da
empresa. fortemente apoiada por toda equipe de trabalho. cujo peno
No campo das relações de trabalho, mais especifica- samento se afirma e se homogeneiza na rotina diária e nas reuniões
mente, qualquer proposta visando a potencializar novos semanais dos diretores e chefes de serviço, para debate dos proble-
mas da administração. ficou estabelecido que o remédio tlefÓico para
padrões de relaçÕes de trabalho deverá recriar e tecer o êxito das sociedades de economia mista e mesmo para as socie-
uma nova cultura organizacional. dades estatais seria a adoção. sem nenhuma transigência. da ne-
cessidade de administrá· las com mentalidade igual à que se empre-
ga na direção das empresas privadas, não se permitindo que se
transformem em ninho de parentes. nem cabides de emprego e muito
menos não consentindo jamais e intransigentemente que se tornem
fontes de negócios particulares. "
150 depoimento de um trabalhador antigo é. a esse respeito. ilustra-
tivo: "O trabalho era ruim demais. não aguentei e saí. Na segunda
vez que eu voltei, já tinha condição. mas as condições de trabalho
ainda não eram boas; a gente chegava a ficar 72 horas direto. Eu era
amigo do encarregado, uma pessoa que eu respeito e que é o me-
lhor e o mais justo dos homens e ele me ajudou a me transferir para a
1É interessante observar que em obras recentes sobre teoria organi- mecânica."
zacional, como o Livro Modem approaches to understanding and
managing organizations (1985), de Lee Bolman e Terence Daal, o 16M. Cecnia Minayo (1985) comenta como os trabalhadores nas mi-
enfoque simbólico é considerado urna das quatro correntes-funda- nas se autoclassificavam corno "homens" e "mulherzinhas", segun-
mentais para o estudo das organizações. As outras três seriam: a es- do sua capacidade de produção.
truturai, a de relações humanas e a polftica.
17Christopher Lasch, em seu livro A cultura do narcisismo (1983),
2Para uma discussão mais aprofundada de cada uma destas instân- analisa como a Escola de Relações Humanas foi responsável pela
cias, ver Fleury, M. Tereza. O simbólico nas relaç6es de tratialhO- criação do mito de fábrioo como uma famaia.

Estôrias, mitos,her6is 17
"Citando um manual de antropologia cultural funcionalista (1984, p. Ernst, Robert. Corporate cultures and effective planning.
24) Canevacci expOe bem esta definição clássica de famOia: "Assim
como o problema de sobrevivência é resolvido mediante a consti- PerSonnel Administrator, mar. 1985.
tuição do sistema produtivo e dos instrumentos para o trabalho e para
o conforto e a proteção ffsica, do mesmo modo o problema de repro-
dução encontra a sua solução no instituto da famRia, nooleo elemen- Fleury, M. Tereza Leme. O simbólico nas relações de tra-
tar do parentesco e, portanto, da sociedade. De fato, como é conhe- balho - um estudo sobre relações de trabalho na empresa
cido, o recém-nascido humano é quase totalmente privado de dotes
instintivos e exige ser modelado durante um longufssimo perfodo de estatal. Tese de livre-docência. São Paulo, FEA/USP,
tempo, quando comparado com os outros animais, a fim de ser capaz 1987.
de enfrentar os problemas que a natureza e a sociedade em que ele
vive irão colocar-lhe. Para cumprir essa função e para emprestar
uma certa regra às relações sexuais entre os membros do grupo, de Horkheimer, Max & Adomo, Theodor. Temas básicos de
modo que eles não constituam, pelas tens6es e rivalidades que po-
dem criar no interior do grupo, um elemento -desagregador de sua sociologia. São Paulo, Cultrix, 1973.
solidariedade, constitui-se a famRia enquanto instituição."

IOLévi-Strauss descreve a famOia como um grupo social que: 1. tem Inzerelli, Giorgio & Rosen, Michael. Culture and organiza-
sua origem no casamento; 2. consiste no marido, mulher, filhos nas- tional control. Joumal of Business Research, New York,
cidos de sua união, mesmo se podemos admitir que outros parentes
se integrem a esse mlcleo essencial; 3. os membros da famOia são Sept. 1983.
ligados entre si por:
a) vrnculos legais; b) vínculos econOmicos, religiosos e outros tipos
de deveres e direitos; c) uma precisa rede de direitos e produções Jaeger, Alfred. The transfer of organizational culture over-
sexuais e um conjunto variável e diferenciado de sent\mentos psico- seas. Joumal of Intemational Business Studies, 1983.
lógicos como o amor, o temor, o ódio, etc. Apud Canevacci, 1984.

lIDOs estudos sobre a autoridade e famOia realizados na Escola de Lasch, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janei-
Frankfurt, na década de 30, envolveram pesquisadores como Marcu-
ro, Imago, 1983.
se, Fromm, Adorno e Horkheimer.

21Na coletânea organizada porCanevacci~1984, p. 169), o texto de Martih, Joanne et aliL The uniqueness paradox in organi-
Erich Fromm aborda a questão da autoridade e do superego, colo-
cando que o pai, no processo de interiorização da estrutura autoritá- :Zational stories. Administrative Science Quartei'ly, Cornel!,
ria, não encontra em si a base do seu papel de autoridade constitui- v.28,1983.
dora do superego, mas antes reflete o autoritarismo repressivo das
relações sociais e das estratificações objetivas da classe.
Minayo, M. CecRia. Os homens de ferro. Dissertação de
22Neste momento, o velho refrão "organizações fortes devem ter cul- mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 1985.
turas fortes" pode revelar a sua face negativa, pois certos padrões
culturais obstaculizam projetos de mudança.
Pagês, Maxet aliL L 'emprise de /'organization. Paris,
Presses Universitaires de France, 1979.

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