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— Se você for como o velho, suma. Ninguém gostava dele por aqui.

Os poucos que
choraram seu sumiço foram embora. Tome a chave.

Pedro observou aquela senhora que com tanto desprezo falara do seu tio-avô. Ficou
sem resposta diante da hostilidade repentina. A corcunda, as linhas castigadas de sua face e o
sorriso sarcástico no canto da boca formavam os desenhos peculiares de uma vida
embrutecida. Ouviu a voz de sua esposa conversando com a irmã pelo celular. Resolveu voltar
após dizer um tímido “obrigado.” Pelo menos sabia que agora estava no rumo certo. Esta
velha era o contato que o advogado dissera, e era a primeira pessoa — talvez a única — a
conhecer a localização da chácara perdida no meio da Serra da Canastra. Era o segundo dia de
idas e vindas por ramais obscuros naquelas montanhas, e Pedro esperava chegar antes do
anoitecer.

Seguiu pela estrada enquanto a mulher conversava. Sua mente não se prendia mais ao
assunto. Era apenas testemunha visual daquele grande e alto vazio. As povoações da serra
surgiam no fundo dos vales, ao pé das montanhas de onde saíam os rios e o ouro perdido no
passado. Depois as povoações continuavam seguindo o caminho do ouro, até escavarem o
seio dos montes. Tinha a impressão de que todas estavam no fundo de um poço.
Frequentemente do fundo deste poço emergia um crucifixo no topo de uma igreja.

— É aqui!

Despertando do transe, dobrou no ramal por onde deveria seguir até a propriedade. O
caminho era sem pavimento, com o sol poente perdido entre as copas. Desacelerou o carro e
guiava cautelosamente pela via cheia de pedras. Depois de tanto subir, o ramal permanecia
em uma declividade suave e descendente, quase imperceptível.

— Sara, espero que sua irmã consiga achar isso aqui. Mande uma mensagem para ela
antes que o sinal suma.

Tentavam aproveitar qualquer resquício de sinal telefônico que os encontrasse no meio


daquela imensidão. “Escrevi uma mensagem, mas ainda não foi enviada.” A sensação de
distanciamento da sociedade, o isolamento e a fascinação pela beleza do lugar já começara a
enfeitiçar os dois. A sensação de liberdade aliada à insegurança do novo. Riam para esconder
o nervosismo e riam para passar o tempo naquela estrada iluminada pelos faróis do veículo e
pelo pouco sol que restava. Galhos batiam nas janelas e na carroceria, e o frio da montanha se
entranhava por dentro de suas roupas. Pedro percebia o incômodo; a mulher se agasalhava
com o casaco tirado de sua bolsa.

Eram acostumados a viajar em casais. Sempre faziam trilhas em ambientes como este
com amigos. Durante as férias se aventuravam na natureza, como um escape à sufocante São
Paulo. Mas este lugar era diferente; Pedro observava a expressividade da paisagem. Fora de
seu apartamento confortável, sem seus rituais diários que dão impressão de segurança e vida
eterna, sentia a potência da natureza e sua própria insignificância pessoal diante daquela
vastidão escura. Não perceberia o aumento da declividade e das curvas se não fosse o cheiro
de queimado emanado do freio. Pedro curvou-se para frente e arregalou os olhos, tentando
melhorar a visão da rota. Os faróis mostravam apenas árvores, terra e pedra; sua luz era a
única coisa que relembrava a civilização no meio daquele labirinto rochoso, onde reinava a
sensação de que há horas seguiam pela via.

— Se soubesse que seria assim, nem teria vindo. Venderia direto. — Pedro disse
ensaiando um sorriso para quebrar a tensão.

— Um barranco!

Freou bruscamente após o aviso da esposa. Relaxou as costas no banco por alguns
instantes; desceu do carro e caminhou ao longo de um deslizamento de terra. A via parecia ter
desabado. Os faróis mostravam uma clareira, um vale e provavelmente o que seria a
propriedade. “Alguns minutos caminhando e estaremos lá”. Voltou e abriu o porta-malas.

— O que seu tio-avô fazia escondido por aqui? Lembra-se dele de quando era criança?

— Acho que o vi apenas uma ou duas vezes. Foi seminarista e depois diplomata. Meu
pai tinha o maior orgulho do tio. Sempre falava que estava viajando ou morando na África ou
Oriente-Médio. Depois que se aposentou, sumiu dentro desta montanha. Infelizmente meu
avô e meu pai já haviam falecido, e eu nunca tive a chance de falar novamente com ele.
Trocamos correspondência de vez em quando, mas as cartas dele ficaram cada vez mais
escassas, até que não enviou mais. Recebi apenas o aviso de morte presumida...

Conversavam e prosseguiam em direção ao velho sobrado, Pedro e Sara. Ligaram as


lanternas dos celulares para iluminar o caminho. Não havia grandes bagagens em suas mãos a
não ser itens essenciais nas bolsas e mochilas. Um saco com mantimentos comprados na
última cidade estava nas mãos de Pedro. Sua esposa lhe falava, mas novamente sua mente
perdia-se com aqueles sons, com aquela via ancestral. Ante a beleza natural e selvagem,
crescia uma inquietação constante a cada passo em frente, uma vaga sensação de alarme.
Abraçou sua esposa que reclamava do frio, tensa. “Queria que eles viessem logo. Vai demorar
até encontrarem este lugar. Amanhã faremos café e seguiremos a trilha até a cachoeira...”.

O vento cantava em sinfonia com o som das folhas e os rumores de animais noturnos.
Sua canção continha uma essência primitiva, essência que cercava os estranhos adentrando
aquele território. O vento frio exauria-os soprando em mais de uma direção, com sons que se
aproximavam e distanciavam.

Quanta saudade dos problemas diários que traziam todo o sentido de sua vida. Quanta
saudade daquela sufocante rotina de trabalho, trânsito e contas. Aqui não havia nada a não ser
a sensação de fazer parte de uma vitalidade indomável. “Meu celular está quase
descarregando.” Sara estava angustiada. Avançavam cautelosos, avaliando cada pegada para
não tropeçarem em pedras ou desníveis. Um córrego contornava a casa, desaguando em um
pequeno lago adiante; troncos de árvores mortas e retorcidas oscilavam com o vento ao redor
da velha construção. Ao longe, um uivo calou toda a sinfonia dos seres noturnos. Um bater de
asas foi o suficiente para a noite retornar com seus cânticos e seus ritmos.

A arquitetura era de construções coloniais, mais envelhecida e arruinada a cada passo


restante até o destino. O aspecto melancólico da construção trazia toda a história da serra e do
velho tio para a mente de Pedro. Um passado que ele não conhecera, mas ouvira falar; um
parente que faz mais parte da sua imaginação do que de sua memória. Não havia alívio para
aquela opressão. Não havia nada do poético que normalmente acompanha a idealização diante
de imagens de um passado longínquo e do presente decrépito.

A chave abriu a porta com um rangido agudo, penetrante, atingindo suas almas como
uma agulha. As luzes dos celulares mostravam a mobília antiga, a cozinha à lenha, estantes de
livros e uma mesa cheia de papéis. Vários utensílios estavam jogados pelo chão. Pedro
circulou a mesa e iluminou os papéis e viu diversos desenhos e textos escritos à mão. Muitos
dos desenhos pareciam mapas da região.

“Encontrei uma lamparina.” Sara retirou fósforos de sua mochila e iluminou o


ambiente. Uma fina chuva começou a acompanhar os sons e os ventos noturnos; sombras
bruxuleantes dançavam nas paredes. Pedro reparou nos objetos religiosos que decoravam as
estantes; uma pequena caixa octogonal com inscrições árabes, uma cruz pendurada, cordas de
oração e máscaras africanas. Em outra estante uma edição rasgada da Bíblia e um candelabro.
Uma antepara possuía diversos ícones de santos, e no chão estavam espalhados livros em
inúmeros idiomas. Em um pequeno criado-mudo, o Alcorão.

“Que tipo de homem era ele. Vivia sozinho aqui, em meio a este caos.” Pedro se perdia
em pensamentos diante da quantidade de informações. Lembrou-se do português impecável e
requintado que lia nas cartas. Não um português que buscava alcançar o pedantismo afetado,
mas um português que naturalmente refletia a verdade das coisas ditas e perfeitamente ditas.
Havia um livro em couro com páginas amarradas jogado no chão. Abriu e leu uma página
aleatória, tentando compreender a caligrafia e a tinta borrada:

“Há um poder funesto que me traz... de volta de maneira tão... viva... montanhas.
Pela alma dos antigos dias, ninguém pode ouvi-lo e permanecer o mesmo... a alma tem o
direito de escolher suas fronteiras e seus ambientes... Flutuaria para sempre no vale dos
ossos secos, quando um passado vivo está pronto com força e glória?”

Nunca esquecerei a desolação do deserto, aquela... vitalidade... sempre presente nos


observava, enquanto... de volta aos vales de areia dourada.

Pedro sentiu uma melancolia profunda. Pensou na solidão que parecia ter levado um
homem de inteligência impar vagarosamente à loucura. O que seu tio-avô teria feito para
arregimentar o ódio e o medo daquela velha e aparentemente de todas as pessoas que moram
próximas deste local tão ermo? E os poucos que lamentaram sua partida? O que aconteceu
com ele de fato? Virou para outra página:

Com terror e clamores me cercavam. De meu intestino se alimentavam. És meu pai,


meu autor. Quem obedeceria a não ser tu? Logo me levarás ao mundo de luz e alegria, onde
comtemplarei sua filha e sua querida sem fim...

“Pedro, tem pessoas lá fora!” Sara veio desesperada em sua direção. Apontou para
uma luz que atravessava a janela e pairava imóvel na chuva, delineando um grupo atrás do
portador da lamparina. Pedro ficou em silêncio. O grupo parado, como estátuas de carne. A
chuva continuava seu ritmo incessante e sua esposa nervosa clamava a Deus. Pedro foi até a
porta, olhou alguns instantes. O grupo permanecia imóvel, observando do breu, onde apenas
aquela ponta de luz revelava sua presença. O olhar de sua esposa esperava dele alguma
atitude. Pegou a lamparina e abriu a porta; resolveu encará-los de frente. O líder acenou com a
cabeça e deu meia volta.
Pedro estava sozinho na chuva, perdido em um mundo de circunstâncias
desconhecidas. Da casa, sua esposa o chamava de volta. Da mesma forma, aquele homem que
segurava a lamparina parecia chamá-lo da escuridão. A luz caminhava para longe, sumindo
entre as árvores por aonde veio. A voz de Sara desvanecia com o vento do vale, dando lugar
ao assovio da natureza. Em passos longos, Pedro caminhou em direção à mata para onde
foram.

Correu por entre as árvores e os galhos cortavam-no como se quisessem beber gotas de
seu sangue. Ouviu novamente um grito engasgado de sua esposa, e o feitiço do local adensou-
se ainda mais em seu espírito. Nada mais importava, só não queria perder o alcance daquela
luz que o atraiu até este local. Caiu em uma poça de água e bateu a cabeça. Ouviu uivos
enquanto recompunha suas forças, e novamente um bater de asas. Estava ajoelhado diante um
rochedo, e percebeu que a luz o aguardava na entrada de uma caverna.

— Quem são vocês?

— Venha, venha como antigamente. Mude como costumava fazer. — Uma voz
respondeu através dos ecos saídos da gruta.

Estava zonzo. Levantou-se e caminhou até os salões escuros que adentravam o monte.
Caminhou pelos corredores e viu negros arduamente minerando o metal incrustado nos veios
profundos da rocha. Estremeceu pálido, perplexo em sua marcha. Viu o grupo atormentado,
que mesmo durante seus descansos encontravam apenas horror. Passou por regiões dolorosas,
viu desmoronamentos de rochas e viu as sombras que saíam das fendas caminhando por entre
as pessoas que ali habitavam. O homem que segurava a lamparina sorria sarcasticamente,
sempre o convocando a aprofundar-se mais e mais na escuridão.

Passou por um riacho, onde viu homens brancos peneirando a água que corria do
subsolo; uma enchente de todos a vida ceifou e seus espíritos adentraram o monte. Uma
multidão de serpentes contornava-os, e Pedro caminhava hipnotizado pelas visões sinistras
que seu guia revelava.

Chegaram até um grande salão iluminado. Um trono no centro, onde um ancião


contemplava lírios à beira de um lago, jazia imponente diante de tudo. Apoiava o queixo em
suas mãos, e vagarosamente levantou os olhos com a chegada de ambos. Pedro observou o
velho erguer-se, e não sabia se suas rugas escondiam um sorriso ou a maldade no rosto
decaído pelas eras. O velho aproximou-se corcunda, apoiado em um cajado.
— A terra me prende no seio desta montanha desde que me acordaram em busca do vil
metal em que se consumiram homens virtuosos de todas as épocas. Mas... Nem os céus nem a
terra serão capazes de me conter, se um grupo de fiéis me acolher em seus pensamentos.
Louve-me como o povo destas terras desoladas, leve meu culto ao coração de concreto de sua
civilização!

O velho precipitou-se com as mãos decrépitas até o pescoço de Pedro, que escapou e
cambaleou para trás, caindo. O velho avançava, transformando-se em uma criatura medonha.
Seu cajado se tornou uma serpente, e a voz do ser e a visão de riquezas encantava o homem
que jazia no chão. Ricas vestes ornamentavam uma criatura grotesca, com apenas um olho no
meio da testa. Sua vista ficou turva, e não mais sabia distinguir as formas naquela negridão
avermelhada. A criatura ofereceu suas mãos para erguer aquele que escolhera como seu futuro
apóstolo.

— Pedro, Pedro, acorde, por favor.

Aquela voz doce e ofegante era conhecida. Sara estava sobre ele, na escuridão da
floresta. Resignada, com os olhos cheios de lágrimas. Ele enxergou o céu limpo, iluminado
pelas estrelas refletidas na poça d’água. A chuva passara. Levantou-se e voltou com Sara até o
sobrado. “Vamos partir agora”.

Pedro imaginara encontrar um paraíso nos vales perdidos entre estas montanhas; agora
apenas apressava-se em abandonar aquelas paragens remotas. Cruzou a porta em busca de
seus pertences, e percebeu o bilhete sobre o qual repousavam suas chaves:

Por que gostaria Deus, que se conhece em si mesmo, de se conhecer através do


homem? Era um tesouro escondido e queria tornar-se conhecido. Então criou o mundo. Seus
anjos rebeldes foram aprisionados na terra desde tempos imemoriais, e aqui permanecem
escondidos da civilização. Em meu fim, vejo. Sou efêmero, vítima dos espíritos ancestrais que
insistem em sair desta montanha. Abatido, recurvado e cheio de tristeza, minha dor é
permanente e minhas forças se esvaem. Espíritos errantes por toda a parte, exaltando os
mais vis dos homens em seu culto à destruição.

Pedro e Sara voltaram em seu carro por aquela estrada sem pavimento, fria e
silenciosa. Pedro dirigia com os olhos esbugalhados, fugindo dos tormentos que deixou para
trás. Subiram até o amanhecer e encontraram a casa da velha que lhes dera a chave do
sobrado. Estava sentada na varanda, tragando um fumo. O homem da lamparina estava em pé
ao seu lado, imóvel como uma sombra. “Existem coisas que é melhor o homem não saber que
existem.” Bradou. Sara rezava um terço que tinha nas mãos, sussurrando quase em silêncio.

Seja lá o que estivesse escondido nas montanhas, ficou para trás junto com seu culto
perdido. Pedro apenas pensava apenas na segurança de seus pequenos rituais diários; pensava
apenas em conquistar riquezas e sucesso em meio à selva de concreto onde moravam.

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