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A pesquisa qualitativa Enfoques epistemolégicos e metodolégicos Jean Poupart Jean-Pierre Deslauriers Lionel-H. Groulx Anne Laperriere Robert Mayer Alvaro Pires Traducao de Ana Cristina Nasser ww EDITORA VOZES _ Petropolis A analise documental* André Cellard ‘As capacidades da memoria sdo limitadas e ninguém conseguiria pretender me ‘morizar tudo. A meméria pode tambem alterar lembrangas, esquecer fatos impor- tantes, ou deformar acontecimentos. Por possibilitar realizar alguns tipos de recon trugio, o documento escrito constitui, portant, uma fonte exiremamente preciosa para todo pesquisador nas ciencias sociais. Fe é, evidentemente, insubstituivel em qualquer reconstituigao referente a um passado relativamente distante, pois nio & raro que ele represente a quase totalidade dos vestigios da atividade humana em de- terminadas €pocas, Alem disso, muito frequentemente, ele permanece como 0 Unico testemunho de atividades particulares ocorridas num passido recente 0 documento permite acrescentara dimensio do tempo a compreensio do so- cial. Como o ressalta Tremblay (1968: 284), gragas a0 documento, pode-se operar _um corte longitudinal que favorece a observacao do processo de maturagio ou de evolugio de individuos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades, praticas, etc, bem como o de sua geniese até 0s nossos dis No plano metodologico, a andlise documental apresenta também algumas vantagens significativas, Como o enfatizou Kelly (apud GAUTHIER, 1984: 296- 297), trata-se de um método de coleta de dados que elimina, a0 menos em parte, a le qualquer influéncia~a ser exercida pela presenga ou intervengao ‘do pesquisador — do conjunto das interagées, acontecimentos ou comportamentos ppesquisados, anulando a possibilidade de reagae do sujeito& operagao de medida Porém, ainda que algumas caracteristicas da andlise documental possiilitem recorrer ao documento vantajoso em certos niveis, deve-se admitir que seu uso suscita tambem algumas questies. Se, efetivamente, a analise documental elimina a dimensio da influéncia, dificiimente mensuravel, do pesquisador sobre ‘0 sujeito, ndo € menos verdade que o documento constitut um instrumento que 0 nao domina. A informnacdo, aqui, circula em sentido tinico, pots, em- * Queremas agradecer a Alvaeo Pres do departamento de Criminologia da Universidade de Ouawa, Michel Filion, das Arquivos Nacionais do Canada, bem como a André LaRose ea Gerald Pelletier, pesqusadoresindependentes, pels comentarios juiciosos emitidos em telga0 a ese eA, 298 ® bora tagarela, o documento perinanece surdo,¢ 0 pesquisador nao pode dele exigit precisoes suplementares © pesquisador que trabalha com documentos deve superar varios obstaculos ¢ descontiar de intimeras armadilhas, antes de estar em condigao de fazer uma anali- se em profundidade de seu material. Em primeito lugar, ele deve localizaros textos pertinentes e avaliar a sua credibilidade, assim como a sua representatividade, O autor do documento conseguiu reportar fielmente os fatos? Ou ele exprime mais as percepsdes de uma fragao particular da populacio? Por outro lado, o pesquisa- dor deve compreender adequadamente o sentido da mensagem e contentar-se com © que tiver a mao; fragmentos eventualmente, passagens dificeis de interpretar e repletas de termos. conceitos que Ihe so estranos e foram redigidos por um des- conhecido, etc. E, portanio, em razao desses limites importantes, que 0 pesquiisa- dor tera de tomar um certo ntimero de precaugdes prévias que the facilitarao a tare- fae serao, parcialmente, garantias da validade e da solidez de suas explicagoes Este artigo apresenta, num primeiro momento, uma breve descri¢ao do doct- mento escrito, das principais categorias de documentos e dos procedimentos que visam facilitar 0 acesso a cles. Em seguida, examinaremos os diferentes aspectos da analise preliminar, ou seja, 0 estudo do contexto no qual Tex ei questio foi produzido, o autor eos atores sociais em cena, a conflabilidade do documento, sua natureza, sua logica interna, etc, Depois, apos algumas consideragoes gerais rele rentes a analise, completaremos este breve exame com tum exemplo de anise apli- cado a dois curtos textos datando da época do Regime franets. © documento escrito Definir o documento representa em si um desafio, Pelo fato de © documento ‘constituir uma de suas principais ferramentas, a historia, de todas as ciencias so- cia, foi a que atribuiu maior importancia a essa definigao. Desde o fim do século XIX, C-V. Langlois eC. Seignabos, em sua doravante célebre Introduction aux étu- des historiques (1898), fizeram dele, alias, o pivo de uma obra de metodologia que influenciow inumeras geragdes de historiadores, Para Langlots e Seignobos, contu- do, a nogao de documento se aphieava quase exclusivamente a0 texto, e, particular- mente, aos arquivos oficiais, Esta definicao decorria principalmente da aboragem historica praticada pela maioria dos autores da época; uma abordagem conjunt- ral, focada, sabretudo, nos fatose gestos dos politicos ¢ dos “maiorais” desse mun: do, Esta nogdo de documento seria profundamente reconsiderada devido a evolu- ‘620 da propria disciplina historica, mais particularmente pela Escola dos Anais (LEDUC, MARCOS-ALVAREZ; LE PELLEC, 1994: 43), Privilegiando wma abor- slagem mais globalizante historia social ampliow consi .focumento, De lato, wid 0 que € vestigio do passado, tudo o que serve de teste- MTnunho, ¢ considerado como documento ou “fonte”, como € mals comuim dizer, \ atualmente. Pode tratar-se de textos escritos, mas também de documento’ 298 reza iconografica e cinematogratica, ou de qualquer outro po de testemuno re- ado, objetos do cotidiano, elementos foleloricos, etc. No limite, poder-se-ta até qualficar de “documento” um relatorio de entrevista, ou anotacbes feitas du. rante uma observagao, ete. Contudo, especifiquemos ~ também para tranquilizar © leitor ~ que a finalidade do presente capitulo nao & nem a de retragar a evolugao historica da metodologia, nem de fazer um levantamento de tuclo.0 que pode con: tivuie uma “Fonte”, Tambem nao temas a intencio de explicar como fazer a anise de tudo 0 que pode tomar a forma escrita, pois isto seria 0 mesmo que explicar toda forma de pesquisa social, ¢ esta mio €a nossa pretensio, bem long disto, © “docs aqui, consiste em todo texto escrito, m: , registrado em papel. Mais precisamente, consideraremos as fontes, primarias ou secundarias', que, por definigio, sto exploradas — e nao criadas— no contexto de proce [PRMAE ¢ iecuinda ue Dito isso, salientemos que a diviso que realizamos, aqui, esta longe de ser res tritiva, pois existe uma abundancia de tipos de documentos eseritos e intimeras rmaneiras de agrupa-los em ordens ¢ subordens. Grosso modo, podem-se repartir os documentos em dois grandes grupos: os documentos arquivados’e os que nao 0 so, Por outro lado, pouco importa a natureza da documentacao, quer de dominio ublico, quer de dominio privado. Eis alguns exemplos: + Os documentos publicos — Os arquivos publics. Trata-se de uma documentagao geralmente volumosa «©, por vezes, organizada segundo planos de classificacao, complexos € varid- vveisno tempo. Ainda que ela eja dita publica, ela nem sempre € acessivel. Esse tipo de arquivos compreende comumente: os arquivos governamentais (fe derais, regionais, escolares, ou municipais), os arquivos do estado civil, assim como alguns arquivos de natureza notarial ou juridica = Os documentos pitblicos nao-arquivades. Eles incluem, entre outros, 08 jor nals, revisias, periodicos e qualquer outro tipo de documentos distributdos publicidade, anuncios, ratados, circulates, boletins paroquiais, anuarios tele- fonicos, ete + Os documentos privados ~ Os arquivos privados. Ainda que ela nao pertenca a0 dominio priblico, ocor- re que uma documentacao de natureza privada seja arquivada. Ela pode, con- 1 Tradiclonalmente, os historiadores chainam de “Fonte os depoimentos de contemporincos do acontecimento qu cles desejam reconstituir Distinguem-se, geralmente, 8s fonts primarss” pro- | ‘duzidas por tstemunhas dicta do fat, das fontes“secundaias™. que prowtm de pessons endo) partciparam dele, mas que o reprodusram posteriormente 2. Por “documentos arquivados” entenderios ama docimentagio soa guard de um depesito dea ‘quivos qualquer e que pode ser objeto de uma descrigdo, uma casificage, ou um teatamento com ‘cernente 4 conservacio, tudo, ser de acesso bastante dificil. Trata-se aqui, prineipalmente, de docu 'mentos de organizagdes politicas, sindicatos, igrejas, comunidades religiosas, instituigdes, empresas, ete = Os documentos pessoais. Esta categoria retine autobiografias, didrios inti- mos, correspondéncias, historias de vida, documentos de familia, et. Existe, de fato, uma multiplicidade de fontes documentais, cuja variedade nao se compara a informagio que elas contém. [sso porque a pesquisa documental exi- ge, desde o inicio, um esforco fieme ¢ inventivo, quanto ao reconhecimento dos depositos de arquivos ou das fontes putcnc ais de informagao, c isto nao apenas em fancio do objeto de pesquisa, mas também em fungdo do questionamento. Uma preparacdo adequada ¢ tambem necessiria, antes do exame minucioso de fontes documents previamente identificadas. Nesse estagio, o principal erro consiste «em se precipitar sobre o primeiro bloco de documentos obtido, antes de realizar Uf inventario exaustivo c uma selecao rigorosa da informacao disponivel. E im- portante aprender a decodificar ¢ utilizar os instrumentos de pesquisa preparados pelos arquivistas, a fim de assimilar a logica que presidiu a classificagao da docu- rmentagio, Devem-se tomar as mesmas precaulgdes com 0s arquivos privados ou a documentacao pessoal Uma pessoa que deseje empreender uma pesquisa documental deve, com 0 ob- Jetivo de constituir um corpus satislaorio, esgotar todas as pistas capazes de The fornecer informacoes interessantes. Se nossos predecessores deixaram vestigios documentais, eles raramente o fizeram com vista a possibilitar uma reconstrugao posterior: tais vestigios podem se encontrar, portanto, em todaa sorte de locais, os imais hetcrogencos. A experigneia pessoal, a consulta exaustiva a trabalhos de ou- tros pesquisadores que se debrucaram sobre objetos de estudo analogos, bem como a iniciativae a maginagao, tambem integram adequadamente a constituigao esse corpus: os pesquisadorés mais aguertides sabem que os documentos mals re- veladores se escondet, a8 Vezes, em locais insuspeitos. De resto, a flexibilidade € tambem rigor: o exame minucioso de alguns documentos ou bases de arquivos abre, as vezes, smimeros caminhos de pesquisa e leva a formulacao de interpreta- «Ges novas, ou mesmo a modificacao de alguns dos pressupostos iniciais. Esse foo caso, por exemplo, quando realizamos nossas pesquisas sobre a historia da loueu- ra, no Quebec, de 1600 a 1850. A documentagao, sobretudo para o periodo do Antigo Regime, parecia razoavelmente rara, Assim o haviam constatado outros pesquisadores antes de nos, seja na Europa, ou nos Estados Unidos. Eles deviam se contentar com uma documentagao quase exclusivamente institucional, ou ainda, proveniente da elite instrutda, ocultando, assim, 0 ponto de vista das pessoas co- ‘muns sobre a loucura, assim como o cotidiano vivido pelas pessoas acometidas de desordem mental, Familiarizados com o meio psiquiatrico, por termos nele traba- Thado, nos nos perguntamos se a sociedade canadense do Antigo Regime havia co- hecido 0 processo judiciario da tutela, uma vez que nosso diteito civil decorre, «em boa parte, do antigo direito consuetudinario frances. Essa pista nos levoua des cobrie que a Franca do Antigo Regime, e, consequentemente, a Nova Franca, pos- sulam um sistema de tutela privado, interdigao e tutela, para as pessoas sofrendo de distarbio mental. Esses dossiés, de uma imensa riqueza,estdo conservados nos Arquivos Nacionais do Québec. Eles contém, sobretudo, os depoimentos de pes soas proximas a0s pretensos loucos, reportando seu comportamento, as reacbes provocadas por sua “anormalidade”, ¢ assim por diante. Esses depoimentos de pessoas “comuns”, que haviam sido fielmente registrados por um escrivao, permi- tem fazer uma analise muito acurada da situacao vivida pelas familias € pelos co- nnhecidos dos “loucos', seja qual fosse seu nivel de cultura (a maioria era iletrada), ¢ durante um longo periodo. Assim, tivemos a surpresa de constatar, prineipal- mente, que os conhecidos dos alienados nao haviam desempenhado um papel tio passivo no advento do manicOmio quanto nossos conhecimentos te6ricos nos ha- Viam até entio levado a supor. Voltaremos, mais adiante, a esse aspecto da andli- se docurmental A analise preliminar: exame e critiea do documento Como nds 0 mencionamos anteriormente, ¢ impossivel transformar umn docu- ‘mento: € preciso aceiti-lo tal como ele se apresenta, io incompleto, parcial ou im- preciso que seja. Torna-se, assim, essencial saber compor com algumas fontes do- cumeniais, mesmo as mais pobres, pols elas sio geralmente as unicas que podem nos esclarecer, por pouco que sea, sobre wma situacao determinada. Entretanto continua sendo capital usar de prudencia e avaliar adequadamente, com um olhat critica, a documentagao que se pretende analisar. Essa avaliagao critica constitu, alias, a primeira etapa de toda analise documnental. Ela se aplica em cinco dimen- O contexto © exame do contexio social global, no qual foi produzide o documento.e no qual mergulhava seu autor eaqueles a quem ele foi destinado, é primordial, em to- das as etapas de uma analise documental, seja qual tenha sido a epoca em. que © texto em questao foi escrito, Indispensavel quando se trata de um passado distan- Te, es exercicio o ¢ de igual modo, quando a analise se refere a um passado re- cente. No ultimo caso, contudo, cabe admitir que a falta de distancia pode complt- car a tarefa do pesquisador. Seja.como for, o analista nao podertaprescindir de conecer sauisfatorlamen- tea conjuntura poltica,econdintca, social cultural, que propiciow a produgao de itm docunenio deterinitado. Tal conkecimento possbilta apreendet os esquemas Conceituas de seu ou de seus autores, compreeniler sta reagao, dentficar as pes Sods, grupos sociis, locals, fatos aos quai se faz alusio, et. Pela analise 20 con- texto, 0 pesquisador se coloca em excelentes condigdes até para compreender as particularidades da forma, da organizacao, e, sobretudo, para evitar imterpretar 0 conteudedo documento em fungio de valores modernos. Fssa etapa € io mais im- portante, que nao se poderia prescindir dela, durante a analise que seguira. Nos ‘hos permitimos insistir na sua importancia, pois existe uma forte tendéncia entre os pesquisadores ¢m sé deixar de lado alguns elementos do contexto bem escolhi- dos em algumas passagens de sua documentagio, resultando dat interpretagdes € analises muito pobres. Uma hoa compreensio do contexto €, pois, crucial, em to- das as etapas de uma pesquisa documental, tanto no momento da elaboragad.de tiin problema, da escotha das pistas a seguir para descobiir as prin arquivos, quanto no momento da analise propriamente dita. Esse conhecimento ‘eve tambem ser global, pois nunca se pode saber de antemao quais sio 0s elemen- tos da vida social que sera util conhecer, quando chegar 0 momento de formulat interpretagoes e explicagoes. Parece-nos evidente que, para produzir uma analise por menos que seja rica e crivel, o pesquisadar deve possuir um conhecimento in timo da sociedade, cujos depoimentos ele interpreta autor ou 0s autores Nao se pode pensar cm interpretar um texto, sem ter previamente uma boa idléia da identidade da pessoa que se expressa, de seus interesses ¢ dos motivos que Alevaram a escrever. Esse individuo fala em nome proprio, ow em nome de um ‘grupo social, de uma instituicdo? Parece, efetivamente, bem dificil compreender 6s interesses (confessos, ou nao) de tim texto, quando se ignora tudo sobre aquele ‘owaqueles’ que se manifestam, suas raz0es eas daqueles a quem eles se dirigem. E muito mais facil dar a entender que é a "sociedade” ou o “Estado” que se exprime por meio de uma documentagao qualquer. Elucidar a dentidade do autor possibt lita, portanto, avaliar melhor a credibilidade de um texto, a interpretagao que € dadade alguns fatos,a tomad de posigdo que transparece de uma descrigao, as de- formacoes que puderam sobrevir na reconstituigao de um acontectmento, [Na mesma ordem de idéias, ¢ bom nos perguntarmos por que esse documento, preferenclalmente a outros, chegou até nos, foi conservado ott publicado, Muito fre= quentemente, sobretudo num passado relativamente distante, uma unica categoria 3. Aperspectvaprivilegiadn aqui ¢ ada histria social dita glohalizante”.Cabe observa, entretanto, {que importineia do context tambon pode as vezes, vanarem fungdo do aleance de uma pesquisa, Esse € 0 eso de alguns tipos de reconsirugdo, historias ou nao, que prsilegiam a abordagem narra tivaou circunstancial Tambemseriao caso, porexemplo de pesguistdores que pretenderiam seguir | aevolugae de um peasamento ou de win saber qualquer, sem necessaramente buscar inlerpretar as ‘comdigbes socials do surghmento ¢ do desenvolvimento do saber em queso. 4. Evidemtemente, alguns textes. como atigos de jornats, so, a8 vezes,andinmnos. Conve, asc, hrusearconhecer o mais profundamente pomsivel« midis, por meio da qual o autor oy os autores se exprimen, Muito amide, os jorats apresentam sin politica editorial ou uma orientagao politica ‘com a qual o pesquisador deve se falarzr, antes de realizar sa analie POI: ye de individuos, ou seja, os que pertenciam a classe instruida, podiam expressar seus pontos de vista por meio da escrita. E preciso, entao, poder ler nas entrelinhas, para poder compreender o que os outros viviain, Sendo nossas interpretagdes correm 0 Fisco de ser, grosseiramente, falscacas. Um bom exemplo de deformacio € 0 da ima. gem da Nova Franca, longamente veiculada pela historiografia tradicional. Uma vez ue uma enorme parcela das fontes aeessiveis provinha de religiosas, como 0s jest tas, e de membros de comunidades religiosas ~ nuumerosos na colonia, a epoca reconstituigao do passado, efetuada pelos historiadores, baseava-se essencialmente nas interpretacoes, pervepgoes e conviccdes transmitidas por essas pessoas de Igreja desejosas de valorizar os progressos realizados, Tambem Se teve por muito tempo a impressao de que os primeiros habitantes da colonia eram bastante devotos, prati- antes e respeitosos da Igreja e da ordem estabelecida. Falava-se tambem dos imuime- ros decretos de intendentes e mandamentos de bispos tocando diverses aspectos da vida cotidiana, como prova de que o Estado e o clero exerciam uma forte influencia sobre os habitantes, em materia de pratica religiosa e de moralidade. No entanto, ‘uma leitura mais critica desses tiltimos documentos possiblita construir uma ima gem bem diferente dos habitantes de Nova Franca. Assim, por exemplo, parece mais | prudente concluir que se um bispo pede a seu elero para proibir os “ies” de bebe- rem ou de brigarem durante a missa, € porque, efetivamente, alguns se comportam | dessa maneira na igteja. Se 0 bispo ¢ obrigado, ano apds ano, a repetir os mesmos rmandamentos, € porque os habitantes nao mudaram de comportamento, apesar das adverténcias, o que fornece uma outa imagem do grau da autoridade exercida pela Igreja sobre seus “figis’ JAENEN, 1976). Sistematizando a referida leitura, € com- pletando-a com outras fontes documentais de apoio, o pesquisador pode, portanto, chegar a uma imagem ca relacao dos primeiros canadenses com a religiao, diferente daquela & qual nos haviamos habituado no passado, A autenticidade ¢ a confiabilidade do texto 1 basta, entretanto, informar-se sobre a origem social, a ideologia ou os in- teresses particulates do autor de um documento. & tambem importante assegu- rar-se da qualidade da informagao transmitida, Por exemplo, ainda qué a questio a autenticidade raramente se coloque, nao se deve esquecer de verilicar a proce- dencia do documento, Em alguns casos, € também necessario considera o fato de que alguns documentos nos chegam por intermédio de copistas que tinham, as ve- es, de decifrar eseritas quase ilegiveis. Principalmente os historiadores ha muito aprenderam a desconfiar le possiveis e1r0s de transmissao. Por outro lado, ¢ importante estar sempre atento a relagao existente entre o au- tor ow osautorese o que eles descrevem. Eles foram testemunhas diretas ou indie- tas do que eles relatam? Quanto tempo decorreu entre o acontecimento € a sua descticdo? Fles reportaram as falas de alguma outra pessoa? Eles poderiam estar enganados? Eles estavam em posigao de fazer esta ou aquela observacao, de estabe- lecer tal julgamento? ete. Em alguns casos, nao ¢ supérfluo familiarizar-se com os, {nstrumentos de coleta tilizados pelos autores, Este aspecto se revelara importan- ten caso de documentos como os recenseamentos, pois os questionatios destina- dos aos recenseadores experimentaram grandes modificacoes com o tempo. ‘A natureza do texto abe especificar que nao ¢ possivel exprimir-se com a mesma liberdade em um relat6rio destinado aos seus superiores, ¢ em seu didrio intimo. Consequentemen- te, deve-se levar em consideracao a natureza de um texto, ou seu suporte, antes de tirar conclusdes. Efetivamente, a abertura do autor, os subentendidos, a estrutura :xio podem variar enormemente, conforme o contexto no qual ele ¢ redigi- do, Eo caso, entre outros, de documentos de naturcza teologiea, media, ou juni “Gi, que sio estruturados de forma diferente e so adquirem um sentido para o leitor ‘em fuincdo de seu grau de iniciacdo no contexto particular de sua producao. © que foi dito anteriormente nos leva a abordar a questao da critica dos docu- imenios para os historiadores. Quando escreveram seu manual de metodologia, Langlois e Seignobos (1898) buscavam principalmente fazer da historia uma disc- plina cientifica, uma disciplina exata baseada numa documentagao, cuja credibili- dacle devia ter sido estabelecida sem sombra de duivida, Era dando continuidade & sintese dos “fatos" historicos desse modo acumulados, que se reconstituta a histo- nia, Essa abordagem, dita da escola metodista, levou bem longe a arte da critica in- tema e externa do documento, einfluenciou fortemente todas as geragoes de his- toriadores que vieram depois. Alls, as precaugoes que acabamos de relatar decor- rem dela, em boa parte. Dito iso, estamos de acordo com Platt (1981: 43-44) para afirmar que a lista, as vezes, exageradamente exaustiva das precaucdes € dos ele- rmentos de divida, estabelecida por Langlois e Seignobos, pode nao $6 ter um efei- to paralisante, sobretudo quando as fontes sao raras, como também pode levat 0 pesquisador a descartar da anailise os elementos totalmente validos, Assim, uma pessoa pode narrar a verdade, mesmo sem ser diretamente testemunha de um fato, ou estar em condigio de fazer uma observagao de qualidade; uma outra pessoa pode nutrirsimpatias canfessas por um grupo determinado, ou por uma causa par- ticular, e, todavia, ser capaz de objetividade. Se, nesse sentido, importa confiar na intuigdo, na habilidade e no senso de discernimento do pesquisador, nds acredita- mos, contado, que ésa confianga se conquista: O pesquisador mostrou pruden: | cia? Ele avisou o leitor das difculdades e dos problemas colocados pelo emprego | de depoimentos mais duvidosos? Ele dew as razées pelas quais os mesmos lhe pa- recem confiaveis (ou nao)? Ftc Os conceitos-chave e a logica interna do texto Certamente, o trabalho de anilise preliminar nao poderia estar tao completo ¢ por tanto tempo, que 0 pesquisador nao tivesse o sentimento de ter compreendido Pry satisfatoriamente o sentido dos termos empregados pelo autor ou os autores de wm texto, Para os textos antigos, isso € evidente, j4 que a significagéo de intimeros ter mos evoluiu muito a0 longo dos anos, Tomemos o exemplo do “tratannento moral” definido pelos médicos alienistas no seculo XIX. Um observader pouco advertido poderia “instintivamente” crer que o termo “moral” utilizado aqui concerne aos cos umes ou aos comportamentos imorais de um alienado, que dito ratamento visaan- tes de tudo corrigit. Ora, ¢ mesmo que em pleno periodo vitoriano, essa dimensao nao esteja ausente da abordagem global dos alien entio, toda uma outta conotagao, Foi o alienista francés Louis-Philippe Pinel quem util zou primeiramente a expresso “tratamento moral”, a fim de demarear sua aborda~ ‘gem da dos outros médicos, cujas “terapias” eram, sobretudo, de ordem fisioligica (medicamentos, sangrias, etc). Pinel, por sua vez, buscava restaurar 0 “moral” de seus pacientes. Como o termo “psicoldgico” ainda nao existia, ele qualificou sua abordagem de “tratamento moral”. Esta claro, desde entao, que a interpretacao dos textos alienistas do século XIX poder variar sensivelmente, conforme o sentido dado ao epiteto “moral”, Delimitar adequadamente 0 sentido das palavras e dos con- ceitos ¢, als, uma precausao totalmente pertinente no caso de documentos mais re {#5 nos quais, por exemplo,utilisa-se um “jargao" profissional especifico, ou nos {que contém regionalismos, giria propria a meios particulates, lmguagem popular, etc. Dever tengo, a0s conceitos-chave presentes em vin texto € avaliar sua importancia ¢ seu sentido, segundo o contexte preciso em que ch empregados, Finaliiente, ¢ util examinar a Logica interna o esquems ow o plano de texto: Como um argumento se desenyolveu? Quais sio as partes principais da ar ‘gumentagao? etc. E5sa contextualizagito pode ser, eetivamente, um precios» apoio ‘quando, por exemplo, comparam-se virios documentos da mesma natureza tas, 0 termo “moral” tink: Aanilise Com o trabatho de anise preliminar devidamente completado, € 0 moments de reunir todas as partes ~ elementos da problematic ou do quadro tedrico, con- texto, autores, interesses, confiabilidade, nacureza do texto, conceitos-chave. O pesquisador poderd, assim, fornecer uma inverpretacao coerente, tendo em conta tematica ou o questionamento inicial. Como em todo procedimento que levou © pesquisador até analise, aabordagem permanece tanto indutiva quanto dedutiva De fato, as duas se conjugam. Assim, a escolha de pistas documentais apresentadas no leque que € olerecido ao pesquisador, deve ser feita a luz do questionamento inicial. Porem, as descobertas ¢ as surpresas que o aguardam as vezes obrigam-no a imiodificar ou a enriquecer o referido questionamento, Come 6 enfatizam Leduc Marcos-Alvarez e Le Pellec Em fungio das quest6es que 0 historiador se coloca, ele seleciona e analisa os vestigios do passado, uteis para a sua pesquisa, Ele nao se fecha em um esquema indutive ~ do documento tirs-seo fato ~, mas no we «questions suas fontes para confirmar,invaidar,coriquecer suas hipo- teses. A inducio uansmitida pelas cgncias da natureza no é nem a nena deteminante. Ela, doravante,inserida em um pro- nio que prvilegiaa problematic, o questionamento (LEDUC, MARCOS-ALVAREZ: LE PELLEC, 1904: 42) Esse ipo de abordagem analitica deve muito a Escola dos Anais ese distingue da abordagem positivista da escola metodista. Esta ultima, como o vimos, contava com a acumulacao de fatos historicos incontestaveis:o trabalho de analise consis- tia, principalmente, em fazer uma sintese dos elementos assim acumulados. A his- toria social modificou essa abordagem, e, doravante, procede-se preferencialmente pela desconstrucao ¢ reconstrucao dos dados. Michel Foucault mostrou muito bem essa nova posigio em sua obra Archéologie du savoir: ‘historia mudou de posigao em relagao ao documento: ela se atribui ‘como tarela primeira, nto mats nterpretar, nem determinar se ele diz a serdade « qual ¢ o seu valor expressivo, mas sim rabalhalo interna: mente e clabora-lo, lao organiza, recor, disttibu-o, ordena-o, re parteo em nwveis, estabelece series, distinguc o que ¢ pertinente do que nao 0 ¢, identifica elementos, define unidades, descreve relagoes, Pr- tanto, 0 documento mo é mais para a historia essa materia sere, por meio da qual ela tenta reconsttuir 0 que os homens fzeram ou disse a ram, o que ¢ passado, e do qual somenteo astro permanece: ela busea A defini, no proprio tecide documenta, unidades, otalades, series, re- lagoes (FOUCAULT, 1969 14) Definitivamente, como bem o argumenta Foucault, 0 pesquisador desconstroi, tritura seu Maier vontade. depois, procede a wna reconsteucio, com vista a res” ponder ao seu questionamento, Para chegar a isso, ele deve se empenhar em desco- 5 brirasligagoes ene os fatosacumados, ere os lementes de normacio que pe recem, imediatamente, estranhos uns aos outros, como oassinala Deslauriers (1991: 79). E esse encadeamento de ligagoes entre a problematica do pesquisador € as di- versas observacoes extraidas de sua documentacio, o que the possbilta formular explicagées plausives, produzir uma interpretacao coerente, e realizar uma recons- ‘Tugio de um aspecto qualquer de uma dada sociedade, neste ou naguele momento. A fimn de estabelecer essas ligacoes ¢ dle constituir configuragoes significativas importante extrair os elementos pertinentes do texto, compari-los com outros elementos contidos no corpus documental. & maioria dos metodo! daemdizer que éa leitura repetida que permite, Tinalmen simlitudes, relagdes e diferencas capazes de levar a uma reconstrugao admissive confiavel. As combinacoes possiveis entre os diferentes elementos contidos nas fontes estabelecem-se em relacao ao contexto, & problematica, ou ao quadto teéri- co, mas também, deve-se admiti-lo, em fungio da propria personalidade do pes- quisador, de sua posicao teorica ou ideologica. A essa altura, a reconstrucdo se opera, geralmente, a partir do que Deslauriers, baseando-se em Carl Jung, chama WMP“ chaue’e “matey?” de sincronicidade; ou seja, o momento em que uma soma de idéias ou de pensa- ‘mentos se une para formar uma explicagao, em que um certo raciocinio se constréi repentinamente, e em que uma ligacao se estabelece entre varios fatos e faz-se a que a imaginagao ¢ a intuigao do pesquisador sA0 mats utii2a- das (DESLAURIERS, 1991: 87-91, LETOURNEAU, 1989). Contudo, atengi do ensamento magico, pois esse momento crucial da anise, ese “clique” nao se ene //~ ina de Tato: trata-se de wma aptidto que se cultiva ¢ se desenvolve; ela é, em geral, @ fruto de reflexes, leituras, discussdes com outros pesquisadores, etc Saliente- ‘os também, por outro lado, que o tempo passado na colcta dos dados frequente- ‘mente possibilita uma reflexao continua ¢ a maturagao de algumas idéias ou hipo- teses que nulagao de explicagoes plaustveis. ‘A qualidade ea validade de uma pesquisa resultam, por sua vez, em boa parte, das precaugdes de ordem critica tomadas pelo pesquisador. De modo mais geral, a qualidade da informacio, a diversidade das fontes utilizadas, das corroborac0es, das imterseccdes, que dio sua profundidade, sua riqueza ¢ seu refinamento a uma analise™. Deve-se descontiar de uma andlise que se baseia numa pesquisa pobre, na | qual o pesquisador 56 considera alguns elementos de contexto ¢ uma documen- | Lagao Timitada, visando formular explicagoes sociats, Lima anilise confavel tena | ) cercar a questao, recorrendo a elementos provenientes, tanto quanto possiv pessoas ou grupos representando muitos interesses diferentes, de modo a tum ponto de vista tao global c diversificado quanto pode ser. ATémi dessa tie Cessaria abertura de espirito diante dos dados potenciais tambem é preciso contar com a capacidade do pesquisador em explorar diferentes pistas teoricas, em se ques tionar, em apresentar explicagses originais, etc. Entre os historiadores quebequenses, Fernand Ouellet inovou muito, no inicio dos anos 1960, pela diversidade ¢ originalidade das fontes utilizadas para realizar suas reconstrugdes. Ansiando demonstrar, por exemplo, que o fervor nacionalista nao era a tinica razio que havia levado os habitantes a se sublevar, quando das rebe- tides de 1837-1838, ele consultou, entre outros, arquivos paroquiais, tais como os registros do dizimo ¢as coletas do Menino Jesus, para determinar que as regioes que patticiparam mais ativamente nas Rebelides enfrentavam, ha muitos anos, pro- blemas agricolas graves, os quais atingiram seu apice ao longo desse pertodo (QUELLET, 1966, 1976). Um dos primeitos praticantes, com Jean Hamelin, da Escola dos Anais no Québec, Ouellet se fez também notar, entretanto, por sua posi ‘ao te6rica que o Jevou a dar uma interpretacio totalmente diferente para algumas ‘questdes cruciais da historia do Quebec, tals como a Conquista, a presenga de uma >. Prvilegamos, gut, no ambito de wna pesquisa qualitativa, a qualidade ea dversdade, mas no necessariamente « quantidade, Para né redibiliade- cantabldade: proxiidade; _profundldade) de um nico docurnento importa muito ais do que nureros depeimeatos, mas po dies. Se possivel, o pesqinador deve tender a saturacio das categories ot sj, coletar deponmention Corraoraies, que peritam product una imagen coerente do fenomeno pesgussdo mar anoeds fa 7 wret burguesiafinanceira em Nova Franga, ou as causas das rebelides de 1837-1838. Aft liado a escola de pensamento neoliberal de Cité libre, que desconfiava do naciona- lismo quebequense, Ouellet atraiu logo a ira dos nacionalistas tradicionais e dos neonacionalistas, cujas teses, entdo, dominavam amplamente na historiografia que- bequense. Ainda que o tenham chamado de “traidor”, “colaboracionista”, ou “fe deralista", nunca Ihe atacaram o método de andlise documental, dito da Escola dos ‘Anais, que ele io bem colocou em pratica, na sua obra Histoire économique et socia- le du Bas-Canada (1966), ¢ pela qual ele fo1 respeitado e mesmo admirado, , porem, em razao da importancia da busca da diversidade em termos das Fontes, que se adverte o pesquisador para realizar pesquisas em um estado de espi- rito orientado pela indugao, Evidentemente, ¢ importante formular, desde 0 inicio, algunas ideias diretrizes, propondo um quadro te6rico, mesmo restrito, a fim de orientar as andlises minuciosas. Contudo, tal quadro deve continuar flexivel, pois, diante de novas fontes documentais, bases de arquivos inesperadas, pode-se ser le- Yado a elaborar novas teorias, novas hipoteses, ou a aperfeigoar alguns conceitos iniciais. F preciso, portanto, manter o espinto critico, todavia aberto, pois nunca Se sabe quais surpresas nos reservam os exames minuciosos dos documentos, Como 0 haviamos anteriormente mencionado, aquilo que apreendemos desco- brindo a documentagao de interdigao e tutela € que nos abriu novas perspectivas para a explicacao do advento do manicomio no Québec, petmitindo-nos matizar sensivelmente nossas proprias posigives em relagao a isso. ‘Um exemplo de analise documental Com se 0 vé, a andlise documental constitui, geralmente, uma empreitada de muito falego, Por isso, nao ¢ facil dar um exemplo real dela, afora outras pesquisa «que i foram realizadas satisfatoriamente. No entanto, nas paginas que seguem, ten- tamos dar um exemplo muito breve de andlise documenta, servindo-nos de doi curtos documentos de natureza juridica, Seri preciso aqui lemibrar que 0 exemplo € «dado sob a perspectiva de uma pesquisa documental, ¢ nao do comentario de docu- mento’. E certo que, como um pesquisador poderia encontrar-se diante de centenas ‘de documentos para examinar, ele talvez nao Conseguisse redigir tres ou quatro pa- ginas de comentarios para cada texto, dossi¢ ou documento que passasse por suas ‘mos. O processo de analise preliminar e de andlise que expusemos anteriormente remete, de fat, a uma abordagem global que deveria se tornar automatica para todo pesquisador voltado a pesquisar uma documentagao deteriminada 6.0 comemtio de documento consist, geramente,em um esto bastante exaustivo do texto pes {uisido, Fe ¢, sabretudo, util para a analise de textos unices, que, por exemplo, sd os que exclu ‘amente possibiitam interpretar urna corrente intelectual ou apreender a atmosfera de uma epoca Ein Le cafe d outs chercheur debutant (LETOURNEAU, 1989), Jocelyn Letoueneas eSytie Pel leser apresentam un excelente exemplo de comentirie de documento, quando eles se dediam & contextualizacio e analise de um diseutso de uma das primeirasfeministas conhecidas no Quebec ola Sata Jean, O documento (Os documentos que apresentamos foram, inicialmente, considerados no ambi- to de uma pesquisa realizada numa perspectiva “critica” que visava, entre outras coisas, evidenciar as primeiras medidas de regulagao social em Nova Franca, parti- cularmente aquelas que levaram a0 surgimento dos hospitais gerais, em 1692. [Nessa otica, pretendiamos grosso modo delimitar as principais mudancas socioeco- nomicas provocadas pelo advento progressive do capitalismo, que, por forca de tuacoes desestabilizadoras que 0 acompanhavam, acarretou medidas corretivas no plano da regulacao social, Os primeiros séculos em que se intensificou a impla tagao do capitalismo foram marcadas, no Ocidente, por periodos de vazios ¢ de saltos econdmicos, que deixavam sem recursos 05 camponeses que vinham se amontoar nas cidades, na esperanca de trabalhar nas fabricas— 0 que criava, muito freqiventemente, situacdes potencialmente explosivas, Segundo Michel Foucault (1971), dentre outros, a aparicao dos hospitais gerais, no século XVII ~estas insti- tuigoes destinadas a internacao de pobres, vagabundos, libertinos, prostitutos, loucos ~, constitu: uma medida de controle social, para restabelecer & ordem em epocas de crise, pelo seqitestro dos provocadores sem-trabalho, e pela disponibili dade de uma mao-de-obra.a bom preco, nos tempos de prosperidade. Para compre- ender devidamente a genese do aparecimento dessas instituicdes semicarcerarias, no final do século XVII, no Quebec, buscando medir ate que ponto, tambem aqui, a instalagao de tals instituigdes se insere numa dinamica socioeconomica seme- Thante aquela que levou ao grande isolamento na Franga, pareceu-nos pertinente orientar nossas primeiras analises dos doctimentos, tendo em conta as medidas to- ‘madas pelas autoridades da colonia a fim de gerir 0 problema dos sem-trabalho € dos marginais, antes de optar pelo hospital geral como solugao. Tendo como alvo 0s diversos decretos promulgados pelas autoridades com vista a regulamentar problema colocado pelos sem-trabalho eas desordens por eles cometidas, havia- ‘mos empreendido nossa pesquisa documental a partir de 1692, ¢Femontado no tempo ate o surgimento das primeiras legislacoes pertinentés. Nossas sondagens ‘ios possibilitaram, sobretudo, descobrir dois decretos emanados do Conselho so- Fano € que constiiuem os dois primeiros textos dirigidos aos mendigos e vaga- buindos da colonia O'primelvo data de 1677; Decreto referente a proibigio de mendigar* Sobre o que foi reapresentado a Corte, pelo procurador-geral do Rel, de que ha cercade ts anos a mendicidade foi ntroduzida nesta cia * Opresentedecreto eum outro tambem transcrito mais adiante, neste texto) receberam urna radu «0 direta do francts pratcado no século XVI, nto apresentando, portnto, o mado de pontuagz0.¢ de construgses gramaticas hoje vigentes (N.T) = de por quatro ou cinco mulheres de locais cireunvizinhos, que tive rama audicia, dentre outras eovsas, de virem aqui tambem mendigar, ‘e mesmo dle homens que poderiam muito bem trahalhar, jovens que poderiam servir os habitants, tendo o numero dos ditos mendigos de lal maneira multiplicado, desde a referida epoca, atraidos por essa vida ociosa pela facilidade de baterem as portas, que o comissirio de- signado pela Corte, para tomar disso conhecimento sobre a reapre- sentacio do dito procarador geral, encontrou ai até cerca de irezentos. individues, que, durante todo o verdo, sobrecarregaram extremamen: ‘eo publica, provocando tao grandes desordens, que se teve razao em temer que eles pilhassem as prineipais casas desta cidade, vanglorian- do-se disso. Sendo, portanto, necessrio se munir, tanto para prevenit ‘o que poderia ocorrer se a mendicidade e a indolencia fossem tolera= dlas nesta cidade, como para obrigar esse tipo de gente a seguir as de- terminagdes do Rei, ue foram, a partir de entao, 2s de que sua Majes- tade Ihe ordenava, neste pats, a se habituar a desertat” (desbravar) ea cultivar as terras, bem como a obrigi-laa criar seus filhos na religito cristde num modo de vida civil e honesto para ganhar a sua vida, re- quer a Corte que The convem proibir a todos os mendiges sadios de mendigarem ¢ de esmolarem nesta cidade, prescrevendo as penas que The aprouver ordenar, bem como de mandé-tos de volta suas casas. E que semelhantes proibigdes sejam feitasa todas as pessoas, de qual- ‘quer qualidade e condigao, de dar esmolas as potas, atribuinde- thes a penas que aprouver & Corte Ihes impor; sendo esperadlo que com a clita reapresentacao nao mais seja permitido, na Franga, de mendigar nas cidades, insticuindo-se alo direto de estabelecer expressasinter- digdes e proibigdes a todos os mendigos sadios de mendigarem ¢ es rmolarern, fururamente, nesta cidade, sob pena de punicio,E thes or- dena a saire a desocupar dela, em oito dias, ¢a permanecer em suas casas, que thes foram concedidas para que as valorizassem e cuidas- sem, sob as mesinas penas; e também a todas as pessoas de qualquer qualidade e condicao, por dar-lhes esmolas nas portas de suas casas, sob qualquer pretexto que posse haver, sob pena pecuniaria de 10 tl bras (antiga moeda de conta), ordena a Cone a0 relerido procura- dor gerat de ter a mio a execucto do presente decreto, que sera tide, publicado ¢ aftxado por toda parte, para que ninguém o ignore Duchesneau Analise pretiminar © contexto (de modo breve) Em 1677, a Nova Franca representa, com seus cerca de 7.000 habitantes, um ‘embrido de sociedade do Antigo Regime. Ela ¢ dirigida por um governador, repre- sentance do rei, ¢ um intendente, responsivel pela policia, pela justica e pelas fi- nhangas, apoiando-se, ambos, no Conselho soberano, cujos julgamentos ¢ delibera- ‘cbes tém forga de lei. Esta-se diante de uma sociedade de Antigo Regime, na qual 0 ‘apitalismo comecou a abrir caminho, gracas, principalmente, 20 trfico de peles, Linica “industria” da colonia, Trata-se, efetivamente, da tinica atividade econdmica ‘que permite a alguns comerciantes a acumulacdo de capital, e que emprega um grande numero de pessoas, cerca de oitocentas, & época (HAMELIN, 1960: 107); isto €, uma enorme proporcio de toda a mao-de-obra assalariada da colénia. O in- tendente Jean Talon havia Se empenhado bastante em diversificar a economia, a0 ongo do exercicio de seu cargo, mas, no momento de sua partida, em 1672, houve ‘umareviravolta, A chegada de Frontenac, obeecado pela reconstituicao de sua for- tuna pessoal e apressado em se enriquecer por meio do trafico de peles, provocaria ‘uma concentragao sem precedente da atividade econdmica da col6nia, no setor do ttalico. A area de abastecimento de peles se decuplicou, rapidamente, e o mercado ‘europeu se viu inundado de peles. Essas negociagdes logo desestabilizaram o tini- co mercado de trabalho importante na colonia, jé que, de 1676 a 1679, as autorida- des se véem na obrigacio de proibir aatividade de caca ¢ comércio de peles, e, em 1681, instituir oficialmente o regime dos feriados anus de trafico. Sob esse novo regime, apenas alguns privilegiados titulares de permissio podem, doravante, mo: nopolizar todo 0 trifico de peles, Segundo Hamelin, “o monopolio do trifico de peles por uma categoria social determinada privou uma multidao de individuos marginais de uma renda complementar que Ihes possibilitava sakdar suas compras, ‘no agricultor ou no comerciante. Agora, para sobreviver, particularmente em tem- pos de crise, esses individuos se endividam |...|” (HAMELIN, 1960: 57) Osanos 1670 e 1680 sio também paleo de contfitos penosos para a populagao, com os iroqueses, de um lado, incomodados com o engrandecimento da rede de trafico dos franceses, e depois, com os Aamericanos e os ingleses, quando da guet ada liga de Augsburgo. 4 colonia conhecera inclusive pentira, a partir de 1686, E possivel que os trabathadores que dependiaen totalmente do comercio de pe les fossem fortemente aletados pela crise que abatew esse mercado, a partir da n tade dos anos 1670, Sem duvida, € a esses desempregados que se dirige o decreto. «que acabamos de ler. Os autores Esse texto emana do Conselho soberano da Nova Franga. © Conselho exercia, entao, varias fungdes judiciarias e administrativas. Ele servia de tribunal de apela- m matétia civil ¢ criminal, e também pronunciava sentengas. Ele tinha o ditei- por exemplo, as nomeacies dos jutizes, e podia regulamentar 0 co- rmercio, assim como o preco dos alimentos, Em termos da “policia’, ele se interes- ‘ava pela assisténcia social, pela protecio dos bens, pela prevenedo dos incendios e, como o vimos, pelas desordens. ‘© Conselho soberano reunia os habitantes mais importantes da colonia; isto € os detentores do poder. Tinham nele assento o governador, o intendente, 0 bispo € conselheiros ~ comerciantes, principalmente ~ que verdo seu numero passar, gra- dualmente, de cinco, em 1663, a dezesseis, em 1742, 0 que ilustra bem 0 aumento, do peso politico dos comerciantes, a medida que se desenvolve o capitalismo. Em 1675, ja se contam sete conselheiros no Consetho. Os interesses dos autores desse documento sio multiplos, em razao dos diferentes grupos sociais que eles repre- sentam, embora tambem sejam convergentes. Os interesses do rel sdo claramente apresentados: “Que para obrigar essa espécie de gente a seguir as determinagdes do rei de |] cultivaras terras*. aliados aos do bispo “|...] de obrigs-laa cultivar seus, fillos na religizo crista”, assim como os interesses dos comerciantes (ou principals, habitantes), ja que o documento relata que os “mendigos” teriam ameacado pilhar as “principais casas desta cidade, vangloriando-se disso”. Finalmente, os interesses, do intendente sao também representados, por ser ele o responsavel pela ordem e pela policia. E, aids, principalmente no sentido dessa consideracao, a ordem pli- blica, que convergem os interesses dos diferentes autores desse texto. A autenticidade, a confiabilidade e a natureza do texto Trata-se aqui de um decreto promulgado pelo Conselho soberano, tal como cle €solicitado a produzi-lo, de tempos em tempos. Os decretos do Conselho sobe- ‘ano da Nova Franca esto conservados nos Arquivos Nacionais do Québec, ¢ fo- tam reproduzidos, no presente caso, numa série de seis volumes, entre 1885 € 1891, Ha mais de um século, tais volumes tem constituido para todos os historia dores uma fonte confiavel sobre a Nova Franca. Nao se poderia duvidar da autenti- cidade dos documentos que eles encerram. Trata-se também de um texto pubblico redigido apos um encontro que reuniu os autores acima mencionads. Pode-se, portanto, crer que as falas aqui reportadas pelo secretario sio bastante figis ao que foi enunciado durante a reunido. Quanto & confiabilidade geral dos elementos de prova nela apresentados, também ¢ bastante dificil de questiond-la, devido, uma ‘vez mais, a natureza do documento. Certamente, isso vai da credibitidade do Con: selho junto a populaeao, Nao ¢, contudo, impossivel que tenha havido alguns exa- _ger0s, pois certos dados trazem inquietagao, Nos retornaremos a is80, no momen- to da analise - Os conceitos-chave e a estrutura logica do texto Trata-se de um decreto que protbe mendigar. Na primeira parte do texto, en- contra-se a exposi¢ao do problema que levou o Conselho a estabelecer um decreto (de “Sobre 0 que...”, linha 1,“... para ganhar sua vida", linhas 16 e 17). Seguem, depois, a formulagio da proibicio ou da ilegalidade (de "Requer a Corte..", linha 17, a"... mendigar nas cidades”, linha 23), e, por fim, as penas prescritas para os contraventores (de “instituindo-se ai 0 direito..., linha 23, até o final). O texto € escrito em francés do século XVI. Como a Academia Francesa acabava de ter sido criada, nao se tinha total certeza cla ortografia exata de alguinas palavras; exat a0 lids, a qual nao se confere, na época, a importancia que Ihe sera dada posterior- ‘mente. Assim sendo, essa diferenga das ortogralias ndo constitui verdadeiramente ‘um obstaculo e poucas palavras tem para nés um sentido obscuro, Contudo, € pre ciso estar atento a termos, como “desertar” (linha 15), que, aqui, toma sentido de desbravar, ou, mais exatamente, de desmatar (quando da chegada dos primeiros Colones, o solo esta totalmente coberto de florestas ¢ & necessario “desertar” sua terra, antes de poder fazer com cla.o que quer que seja). Tambem se verificarao al- guns termos ou conceitos-chave que se repetem frequentemente, quando se faz alusio aos mendigos: é o caso de *mendicidade” e de “mendigo”, que nio fazem senao “mendigae”, em razao de sua “indolencia” e de sua “vida o¢iosa Andlise Estamos, portanto, diante de um texto que se dirige, evidentemente, aos de- semipregaclos do trafico de peles. F isso, an menos, o que deixa entrever o contexto Sociveconibmico esses anos. Quando da partida do regimento de Carignan, em 1668, uma boa parte dos 400 soldados que decidizam permanecer na colonia tor naram-se, ao que parece, cacadores e comerciantes de peles. Com as dificuldades conhecidas, pouco depois, pelo mercado, em razao da superproducao e da proibi- cao de praticaro trfico, tornaese perfeitamente plausivel pensar que esses “mendi- 205" aos quais se dirige o conselho— essa gente que nao cultiva a terra para garantir sua subsisténcia —sa0, bem ou mal, esses desempregados oriundos da crise repen- tina nosetor das peles. O problema parece, aliés, bastante recente, j que nunca an- tes se fez mengao as desordens ligadas a qualquer mencdicidade (eles teria surg do havia trés anos. serundo o documento). Essa nao ¢ contudo. a analise aue os, membros do conselho fazem da origem do problema, a qual ¢ bem mais sumaria: “Lol que faz aproximadamente tres anos que a mendicidade foi introduzida nesta cidade por quatro ou cinco mulheres dos locais circunvizinhos, que ainda tiveram, a audacia, dentre outras coisas, de virem aqui tambem mendigar |..]". Sua explica ‘0 € tanto mais limttada, ow pelo menos sumaria, que, ao, que tudo indica, o ‘membros do conselho se interessam totalmente pelo problema, ¢, inclusive, nao sio isentos de responsabilidad em relagao A situagde econdmica.desastrosa que prejusica essa gente (os "menidigos" de sua parte, parecem estar bem eonscientes disso, ja que eles ameagain pilhar as principais casas da cidade). Porém, 0 angu- legado aqui ¢ bem outro ¢ incrimina primordialmente o individu. Isso ¢ Tacilmente perceptive, als, quando se presta atengao ao vocabulirio empregado ~ mendigos, mendicidade, indolencia, vida oclosa ~ para designar 05 miseraveis ‘em quesido. E bastante claro que estamos diante de um fenomeno tipico dos sécu- los XVI e XVI, quando os pobres viam desaparecer o sentimento de simpatia mis- tica que os hayia acompanthado durante toda a idade Media. © pobre ¢, doravante, ‘principal responsavel por sua condigao, devido a preguicaea indoléneta, E, ior, an ele € tomado como perigoso e fonte de desordem e de instabilidade, Para remediar a situagao, ordena-se, pois. a esses “mendigos”, sob pena de punicao, de “volar” para suas teras e viver do fruto de suas coletas, Eis somente que o documento foi produzido no fim do vero, Ainda seria preciso que esses mendigos tenham tempo de “desertat” suas tertas, semea-las, etc , antes de poder tirar delasalgum elemento de subsistencia Por outro lado, segundo o procurador geral, haveria mais de 300 mendigos em torno da cidade de Quebec. Esse dado ¢ surpreendente, poisa cidade contava, qua- rndo muito, com 1.200 habitantes, na época, Aqui, das duas uma: ou isso se deve a tum problema socioecondmico bastante grave; problema este que 0 Conselho se propde a solucionar, ameagando punir aqueles que nao retornam para uma terra, antes de oito dias; ou ento, o problema ¢, voluntariamente ou por reagao de pant- co, exagerado pelas autoridades, a fim de justificar sua intervencio, F dificil posi- cionar-se em relagdo a isso | Seja como for, a soluyao preconizada ni parece ter tido a eficacia esperada, que, em 1683, © Consetho € obrigado a voltar 3 carga com um segundo decreto proibindo mendigar: Proibigoes aos mendigos sadios de mendigar nesta cidade, ¢ tam- bem de thes dar esmolas, com pena pecuniaria de 10 bras Sobre o que foi reapresentado pelo procurador-geral, de que no whi ‘mo dia de agosto de 1677, a Corte teria insticuido decreto referente a proibigées a todos os mendigos sadios de mendigar e de esmolar nesta cidade, sob pena de punicio, |. os mesmos mendigos que partiam. retornaram, ¢ sobrecarregam © publico, ainda que eles estejam em ccondico de ganhar sua vida, e criam seus flhos numa ociosidade que 1s leva a toda espécie de desorcem, colocanclo-0s na condigdo de nao quererem servir nenhuin habitante do pais ainda que se tenha uma tenorme necessidade de domésticos, sem contar que as cabanas que cles constroem em torno da cidade transformam-se em locais de es- ‘andalo e de desordem, nao vendo tais pessoas nenbuma honra; e dat se retire toda espécie de gentalha, sendo para tanto necessétio otgant- zat, agora, que eles tenham tempo de se retirare de se restabelecer em ‘sus €asas, que continuam no abandono, antes da estacao de inverno; requerendo o dito procutador geral que, conforme ao referido decre- to, estabelecam-se interdigoes ¢ protbicoes a todos 05 mendigos sa- dios de mendigar e de esmolar, fusuramente, nesta cidade, sob pena de punigo, sendo a primeira vez, a de ser posto na canga, ¢, em caso de recidiva, no Nagelo, aucorizando-se a dele sar em otto dias, ede ir permanever ci suas casas; como também a todas as pessoas de qual- ‘quer qualidade e condicao, de dar ou de fazer dar esmolas as portas, com a pena pecuniatia de 10 tibras Demeulle 2 Procederemos, brevemente, a andlise preliminar desse segundo texto, ja que (0s autores e os interesses s4o simplesmente os mesmos que examinamos para 0 ext precedente, Como vimos anteriormente, o contexto dificil no que concer ne ao trafico de peles. Aqui, construgao do texto permanece simplesmente a mes ‘ma, salvo que o tom se radicalizou em relagao aos mencligos, na exposi¢do do pro- blema, Eles continuam sendo acusados pela vida ociosa ¢ por serem motivo de de- sordem, Fala-se em "gentalha” e em “gente sem honra’, sobretudo quando eles se FecuiSami- a0 qUe parece, a servir de domésticos de pessoas que bem necessitariam deles. Fisa radicalizacto da linguagem € acompanhada de uma radicalizacdo em. nas prescriias aos “recidivisias”, ax quais slo mais precioas do que no

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