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1

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

KAMILA PAES DO PRADO1

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar a função social da propriedade;


analisar a função social que todo o direito tem e refletir a função social específica da
propriedade: como ela deve ser exercida para cumprir a sua função social. Sendo
atualmente garantido em nosso Direito pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso
XXIII, onde evidencia-se que o exercício da posse deve estar voltado à sua função
social. Será apresentada uma breve análise, ainda que superficial do instituto da
propriedade, levando em consideração o contexto histórico, a forma como ela se
apresentou nas várias épocas até os nossos dias. Serão apresentados alguns
elementos históricos, sociais e econômicos, para se extrair como se deu a
configuração da propriedade nesses vários períodos, e o que ela representou para a
humanidade em cada época. O método de abordagem utilizado para a elaboração
deste artigo foi o método dedutivo aliado à técnica de pesquisa bibliográfica, através
de consultas a dados doutrinários, jurisprudenciais e legais, oriundos de revistas
jurídicas, livros, periódicos, artigos, jurisprudências e leis, permitindo assim, verificar
a amplitude da função social da propriedade.

Palavras-Chave: Função Social da Propriedade. Posse. Propriedade e Constituição


Federal.

ABSTRACT
1
Graduada em Direito pelo Centro Universitário De Várzea Grande Univag (2009). Advogada inscrita
na OAB/MT. E-mail: milinha_prado@hotmail.com
2

The purpose of this article is to present the social function of property; analyze the
social function that every right has and reflect the specific social function of property:
how it should be exercised to fulfill its social function. Being currently guaranteed in
our Law by the Federal Constitution in article 5, item XXIII, where it is evident that the
exercise of the possession must be directed to its social function. A brief, if
superficial, analysis of the property institute will be presented, taking into account the
historical context, the way it has presented itself in the various epochs to the present
day. Some historical, social and economic elements will be presented in order to
extract the configuration of property in these various periods, and what it represented
for humanity in each age. The method of approach used for the elaboration of this
article was the deductive method combined with the technique of bibliographical
research, through consultations with doctrinal, jurisprudential and legal data, from
legal journals, books, periodicals, articles, jurisprudence and laws, to verify the
breadth of the social function of property.

KEYWORDS: Social Function of Property. Possession. Property and Federal


Constitution.

1. INTRODUÇÃO
3

A propriedade é direito subjetivo, que deve cumprir uma função social.


A Constituição Federal consagrou a função social como um dever de cumprimento
do direito fundamental de propriedade.
Atualmente no direito brasileiro, a função social da propriedade é
admitida como um princípio que norteia o direito de propriedade, sendo assim a
função social traz para o proprietário, algumas condições como: os direitos de
propriedade, as obrigações de fazer ou não fazer e o uso consciente da propriedade,
com isso conclui-se que para se ter o direito de propriedade é necessário que se
cumpra a função social.
Na Constituição Federal de 1988 a propriedade está vinculada a um
direito-dever, através do desempenho da função social. E acrescenta-se no artigo 5º,
inciso XXIII, que a propriedade deverá atender sua função social, sendo assim
conclui-se que a propriedade não deve mais girar só em torno dos interesses
individuais, deve-se criar condições para que ela seja econômica, útil, produtiva e
que atenda ao desenvolver econômico e os reclamos da justiça social.
O cumprimento da função social da propriedade é fator fundamental
para o pleno atendimento das funções sociais da cidade. A preocupação que
motivou o presente estudo se prende ao fato de estar se disseminando entre os
interpretes do Direito uma hermenêutica meramente gramatical do texto
constitucional, no que se refere à obrigatoriedade de edição de plano diretor.
Ao conceber a existência de uma função social imputada ao indivíduo
enquanto membro da sociedade, todo indivíduo tem uma certa função à
desempenhar, uma certa tarefa à executar. Não pode deixar de cumprir esta função,
de executar esta tarefa, porque de sua abstenção resultaria uma desordem ou
quando menos um prejuízo social. Porém, ao contrário, todos os atos que realize
para cumprir a missão que lhe corresponde em razão do lugar que ocupa na
sociedade, serão socialmente protegidos e garantidos.
Cumpre anotar que, com a introdução do conceito de função social
transforma-se o conteúdo do direito de propriedade, à medida que passa a ser
exercido não apenas em benefício de seu titular, mas também em prol do interesse
coletivo.

2.DO DIREITO DE PROPRIEDADE


4

2.1 Conceito sob uma perspectiva filosófica

A Declaração dos Direitos Humanos “considera em seu artigo 17, o


Direito de Propriedade como sendo sagrado e inviolável”. 2 Diversos estudiosos,
filósofos e doutrinadores, trouxeram e ainda trazem o conceito do direito de
Propriedade. A noção de propriedade mostra-se, destarte, mais ampla e mais
compreensiva do que a de domínio, aquela representa o gênero de que vem a ser a
espécie.
Na concepção de Bobbio:

A origem da propriedade é dividida em dois grupos, que trazem teorias


distintas, os que afirmam que a propriedade é um direito natural,
independente do surgimento do Estado, e aqueles que negam a primeira e
sustentam que o Direito de Propriedade nasce somente como conseqüência
da constituição do Estado Civil.3

A propriedade é um direito concedido pelo Estado soberano aos homens,


regulado por meio de leis civis que possibilitam ao Estado limitar esse direito para a
proteção dos fins deste. Compartilha desse mesmo entendimento Rosseau,
afirmando que “a origem da propriedade se dá com a instituição do Estado, o Estado
tem como finalidade o bem comum”.4
Segundo o Tratado de Direito Civil, V.XI, t.I, pg. 1646:

O direito de propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva


efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de
modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras
pessoas são obrigadas a respeitar.5

No entanto Rosseau de forma primária já se referia a Função Social da


Propriedade:

2
BORGES Thiago Couto. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão 1789. Art. 17.º- Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o.
Acesso em 10 de Dez.de 2018.
3
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 05.
4
ROUSSEIN, Jean-Jacques. Do Contrato Social; Ensaio sobre a Origem das Línguas; Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos das Desigualdades entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo:
Abril Cultura, 2003.
5
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,direito-de-propriedade-das-civilizações-antigas-a-atualidade.html
5

O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural de um


direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele
ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A fim de não
fazer um julgamento errado dessas compensações, impõe-se distinguir
entre as liberdades naturais, que só conhece limites nas forças do indivíduo,
e a liberdade que se limita pela vontade geral, e mais, distinguir a posse que
não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante da
propriedade, que só pode fundar-se num título positivo. 6

O direito de propriedade está associado à exploração da terra, visão


estritamente voltada ao trabalho realizado pelo homem na propriedade. A extensão
de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, e de cujos produtos desfruta,
constitui a propriedade.
Fernanda de Salles Cavedon faz um paralelo sobre a visão de Locke e
de Hobbes a respeito do assunto:

Entende-se que LOCKE era defensor de um Estado Democrático e que o


contrato social, do qual este resultava, tinha como objetivo a garantia dos
direitos individuais inerentes ao estado de natureza, dentre estes a
Propriedade, enquanto HOBBIES visava ao Estado absoluto, com o objetivo
de restringir os direitos individuais, que seriam transferidos ao poder
soberano, como meio de garantir a conservação e a paz social, entendendo
a Propriedade como uma criação do Estado.7

De forma inovadora, procurou romper com uma visão individualista do


direito de propriedade, colocando como princípio fundamental dessa relação o
respeito à coletividade, afirmava que não há como regular as situações sociais com
a predominância do interesse individual.
Afirmava ainda, que o proprietário poderia se observar os interesses e
necessidades sociais, fazer uso de seus bens, desde que, adeque esse uso aos
interesses e necessidades da coletividade. “A propriedade é marcada por dupla
função: satisfazer às necessidades particulares de seu possuidor e às necessidades
sociais da coletividade”.8
Procurou-se estabelecer um meio termo do direito de propriedade,
conciliando os interesses do particular com os da coletividade, daí se deu a sua
grande contribuição para a sociedade, afirmando que a propriedade é uma função
social, o proprietário não tem direito, mas um poder – dever.
2.2 Evolução histórica do conceito de propriedade

6
ROUSSEIN, Jean-Jacques. Op. Cit., p. 42.
7
CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Momento: Atual,
2003, p. 39.
8
TELLES JUNIOR, Goffredo. A Criação do Direito. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2004, p. 101.
6

O termo propriedade advém do latim “proprietate” e tem como


significado domínio exclusivo, mas não ilimitado, sobre uma coisa, com direito de
usá-la ou consumi-la, mas não de abusar dela. “O direito pelo qual uma coisa
pertence a alguém; posse legal de alguma coisa. Para chegar ao conceito de função
social da empresa, devemos passar necessariamente pela evolução histórica do
conceito de propriedade”.9
A propriedade, em seu aspecto histórico, adveio de um longo processo
evolutivo, começando por um vínculo ligado a conteúdo religioso (propriedade da
terra como resultado da permissão divina), passando para um vínculo claramente
dominial que entre os romanos se caracterizava pelo domínio (jus utendi, fruendi e
abutendi re sua).
Com a queda do Império Romano:
A propriedade passou por uma modificação, deixando de possuir apenas o
vínculo dominial puro e simples, passando para um vínculo político (critério
da vassalagem ao Senhor Feudal), o que gerou, um rompimento com a
individualidade.10

Existente até então já que no feudalismo o conceito de Propriedade


estava mais ligado à organização da economia e à estrutura social. O passo
evolutivo seguinte decorreu das idéias liberais do Século XVI, notadamente aquelas
divulgadas por John Locke, o qual agregou o trabalho humano como fator
legitimador da propriedade.
Ainda sob a influência dos ideais liberais:

A Revolução Francesa acrescentou ao conceito de propriedade um


conteúdo econômico de uso exclusivo de seu possuidor, apresentando, os
traços característicos da economia capitalista que à época começava a
demonstrar a sua força11.

Este critério individualista da Propriedade encontrou seu porto seguro


no Código Civil Francês de 1803. A influência do Código Civil Francês se mantém
até os nossos dias em nosso ordenamento pátrio, como podemos constatar da
redação do artigo 1.228 do Novo Código Civil.
O texto original do artigo 544 do Código Francês era o seguinte: A
propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira a mais absoluta,

9
VIANA, Rui Geraldo Camargo. O direito à moradia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.92.
10
LACERDA, Galeno. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 154.
11
Op cit, 154
7

sem poder fazer o que a lei ou os regulamentos proíbem. (Tradução nossa) 12. Já o
texto do artigo 1.228 do Novo Código Civil dispõe que “o proprietário tem a
faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem
quer que injustamente a possua ou detenha”. 13 Ocorre que esta mudança da visão
da propriedade não foi acompanhada pelos doutrinadores do Direito Civil, com a
mesma rapidez da lei mantendo a defasagem temporal já apontada neste trabalho
entre as mudanças sociais e o Direito.
TULLO CAVALLAZZI FILHO, ao estudar o tema afirma:

Nessa evolução, no entanto, identifica-se uma aparente contradição no


próprio conceito atualmente atribuído pelas legislações à Propriedade. É
que, na maioria das nações, incluindo o Brasil como restará demonstrado
adiante, podemos constatar que o Direito Civil ainda mantém a marca
francesa do individualismo em vários de seus institutos, dentre eles o direito
do Propriedade. Todavia, se comparados às normas de direito administrativo
e, principalmente, constitucional, os dispositivos relativos à Propriedade
destoam de uma nova concepção, que pelos estatutos constitucionais
demonstra-se muito mais voltada à sua função social.14

Este descompasso entre o conceito de propriedade do Direito civil e do


Direito Público também decorre dos resquícios da herança do Estado Liberal onde a
propriedade era vista como absoluta. Quando observado o contexto da função social
atribuído à propriedade no Direito Civil atualmente, podemos concluir que o conflito
existe no âmbito interno do ser, onde deve deixar as ideias individualistas de uso e
gozo da propriedade para acolher a ideia de solidariedade no exercício de tais
direitos.
O conceito atual de propriedade vive uma transformação contínua,
justamente para legitimar uma forma solidária de gozo dos bens, cabendo um justo
equilíbrio entre o social e o individual, sem a predominância de um sobre o outro.
Somente o Estado poderia privar o cidadão de sua propriedade
mediante justa indenização. Com a existência de uma lei é que se poderia extinguir
o direito do proprietário. Tal situação se manteve até o surgimento dos primeiros
movimentos de limitação ao poder absoluto sobre a propriedade, o que acabou
gerando a formação do princípio da função social da propriedade.

12
PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade Privada no Direito Romano. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Editor, 1998, p.99. La propriété est lê droi de jouir et disposer de choses de la maniére la plus absolue, pourvu
quón n´em fasse pás um usage prohibé par les lois ou par lês réglements.
13
FRANÇA, Vladimir da Rocha. A instituição da propriedade e sua função social. Rio de Janeiro: Revista
Trimestral de Jurisprudência dos Estados, 2009, p. 82.
14
TULLO, Cavallazzi Filho. A função social da terra. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 92.
8

2.3 Conceito no ordenamento jurídico brasileiro

No nosso ordenamento jurídico a primeira limitação ao direito de


propriedade se deu com a Constituição Federal de 1934, restringindo o direito de
propriedade para resguardar o interesse social da coletividade.
“As constituições posteriores consolidaram a função social da
propriedade, sendo que a inserção desse termo se deu com a Constituição Federal
de 1967, contemplando como princípio da Ordem Econômica. Indubitavelmente”, 15 a
configuração do instituto da propriedade recebe direta e profundamente influencia
dos regimes políticos em cujos sistemas jurídicos é concebida. Em conseqüência,
não existe, na história do direito, um conceito único do aludido instituto.
Nessa consonância, o conceito de propriedade, embora não aberto, há
de ser necessariamente dinâmico. Deve-se reconhecer, nesse passo, “que a
garantia constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de
relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros
fixados pela legislação ordinária”.16
Atualmente, o Direito de propriedade é um dos princípios gerais da
atividade econômica, conforme o artigo 170, inciso II, da CF / 88, além de ser um
direito e garantia fundamental previsto no artigo 5º da nossa Carta Magna, assim
como o direito à vida, à liberdade, à igualdade e a segurança:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade; [....].17

15
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 4ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 80.
16
TEIZEN JUNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: Revistas dos Tribunais,
2007, p. 63.
17
BRASIL, República Federativa do. Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos – Art. 5º e Dos
Princípios Gerais da Atividade Econômica – Art. 170, incisos I, II e II da Constituição Federal de 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 20 de Dez.
de 2018.
9

O direito de propriedade é especificamente assegurado no inciso XXII,


do citado artigo, mas apesar de ser uma garantia constitucional, o proprietário
deverá atender a sua função social, que se não observada dentre outras
penalidades poderá, sua propriedade, vir a ser desapropriada. Poderá ainda, ser
desapropriada por interesse ou utilidade pública ou pelo interesse social, observada
a legislação pertinente.
Tanto a função social quanto à possibilidade de desapropriação tratam-
se de dispositivos constitucionais, incisos XXIII E XXIV do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988, dispõe respectivamente:

Art. 5º [...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e
prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta
Constituição; [...].18

O direito de propriedade constitui o mais importante e o mais sólido de


todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência, o eixo em torno do qual
gravita o direito das coisas, trata-se do mais completo dos direitos subjetivos, a
matriz dos direitos reais e o núcleo do direito das coisas.
O Código Civil Brasileiro dispõe acerca da propriedade em seu artigo
1.228, esse artigo “faculta ao proprietário a utilização dos quatro poderes inerentes à
propriedade, que é usar, gozar, dispor, além do direito do poder de reavê-la do poder
de quem a detenha ou possua injustamente”.19
O parágrafo 1º, do dispositivo em referência dispõe sobre a utilização
do direito de propriedade, que deve observar a sua finalidade econômica e social:

Art. 1.228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,


e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as
suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas.20

18
BRASIL, República Federativa do Brasil de 1988. Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos – Art. 5º,
incisos XXII, XXIII e XXIV da Constituição Federal de 1998. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 20 de Dez. de 2018.
19
TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 225.
20
BRASIL, República Federativa do Brasil de 1988. Art. 1228 do Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível
em: http: //www.jusbrasil.com.br/topicos/10653373/artigo1.228-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002. Acesso
10

Considerando-se apenas os seus elementos essenciais, enunciados


nos artigos transcrito acima, pode-se definir o direito de propriedade como o poder
jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou
incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de
reivindicá-los de quem injustamente o detenha. Assim, nota-se especificamente, que
o parágrafo primeiro traz uma visão um tanto quanto ambientalista do direito de
propriedade.

2.4 Caracteres da propriedade

Preceitua o artigo 1.231 do Código Civil: “a propriedade presume-se


plena e exclusiva, até a prova em contrário”. 21 O artigo 525 do Código Civil de 1916
dizia que é plena a propriedade, quando todos os seus direitos elementares se
acham reunidos no do proprietário. Em caso de desmembramento de um ou de
algum desses direitos (usar, gozar, dispor), nasce o direito real sobre coisa alheia,
passando a propriedade à condição de limitada.
A propriedade é um direito primário ou fundamental, ao passo que os
demais direitos reais nele encontram a sua essência, encontrando-se em mãos do
proprietário todas as faculdades inerentes ao domínio, o seu direito se diz absoluto
ou pleno no sentido de poder usar, gozar, dispor da coisa da maneira que lhe
aprouver, podendo dela exigir todas as utilidades que estejam aptas a oferecer,
sujeito apenas a determinadas limitações impostas no interesse público.
É de ressaltar que o caráter absoluto e ilimitado da propriedade tem, ao
longo dos anos, sofrido limitações e restrições importando uma incessante redução
dos direitos do proprietário. O segundo atributo ao direito de propriedade é de ser
exclusivo, a mesma coisa não pode pertencer com exclusividade e simultaneamente
a duas ou mais pessoas.
Também se diz que a propriedade é irrevogável ou perpétua, porque
não se extingue pelo não uso. Não estará pedida enquanto o proprietário não a

em 21 de Dez. de 2018.
21
BRASIL, República Federativa do Brasil de 1988. Art. 1.231 do Código Civil Brasileiro de 2002.
Disponível em: http: //www.jusbrasil.com.br/topicos/10653028/artigo-1231-da-lei-n-10406-de-10-de-
janeiro-de-2002. Acesso em 28 de Dez. de 2018.
11

alienar ou enquanto não ocorrer nenhum dos modos de perda prevista em lei, como
a desapropriação, o perecimento, a usucapião, etc.
Em suma, a propriedade é irrevogável ou perpétua no sentido de que
subsiste independentemente de exercício, enquanto não sobrevier causa legal
extintiva. “A propriedade não existiria se não fosse perpétua, compreendendo essa
perpetuidade a possibilidade de sua transmissão post mortem”. 22

2.5 Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade

A propriedade privada foi concebida, desde a fundação do


constitucionalismo moderno, como um direito humano, cuja função consiste em
garantir a subsistência e a liberdade individual contra as intrusões do Poder Público.
Sob esse aspecto, reconheceu-se que ao lado do direito de propriedade havia
também um direito à propriedade.
Por outro lado, o direito contemporâneo passou a reconhecer que todo
proprietário tem o dever fundamental de atender à destinação social dos bens que
lhe pertencem. Deixando de cumprir esse dever, o Poder Público pode expropriá-lo
sem as garantias constitucionais que protegem a propriedade como direito humano.
Ademais, perdem o proprietário, em tal hipótese, as garantias possessórias que
cercam, normalmente, o domínio.
Embora tendo sido declarada, no início do constitucionalismo moderno,
direito fundamental da pessoa humana e garantia inviolável e sagrada da liberdade
individual, sem a qual não há constituição, “a propriedade passou a ser analisada e
discutida na teoria jurídica, a partir do movimento de codificação civil do século
passado, exclusivamente como um instituto de direito privado, estranho, portanto, à
organização política do Estado”.23
A explicação para esse aparente paradoxo só se revela quando a
propriedade privada, tal como a família e o contrato, é recolocada no complexo de
instituições sociais que compõem a civilização moderna. E a especificidade desta
última só cobra sentido quando a comparamos com as que a precederam,
notadamente com as civilizações greco-romanas, cuja importância decisiva para a
formação de nossa consciência jurídica é bem conhecida.
22
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.
172.
23
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 77.
12

2.6 Teorias da posse

Para esta teoria a posse se compõe de dois elementos, “o corpus, que


é o fato material de a coisa estar subordinada a uma pessoa, sendo o outro
elemento a intenção que é chamada de animus”,24 ou seja, mister se faz o ânimo de
possuir a coisa. De acordo com esta teoria o locatário, o comodatário e o depositário
não seriam possuidores, pois não possuem o elemento “animus”, não têm a intenção
de tornarem-se proprietários. Esta não é a teoria adotada pelo Código Civil de 1916,
nem pelo Código Civil vigente.
Uma outra teoria, esta objetiva ou objetivista, “com principal defensor
Ihering, afirma que para constituir a posse basta a pessoa dispor da coisa
fisicamente ou ter a possibilidade de exercer um contato com a coisa”, 25 sendo que o
elemento “animus” se exterioriza pela maneira com que é exercido o “corpus”.
Esta é a teoria adotada pelo Novo Código Civil em seu artigo 1.196. O
Código Civil vigente estabelece que é possuidor todo aquele que tem de fato o
exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade, plenamente ou não.
Conforme salienta Ronnie Herbert Barros Soares, que Maria Helena
Diniz, diz:

Volvendo à teoria adotada e sendo a posse o poder físico sobre a coisa,


dividiu-a Ihering em posse natural e posse jurídica: a primeira é o simples
poder físico sobre a coisa, que não leva a qualquer efeito jurídico (a lei civil
a denomina detenção), enquanto a posse jurídica constitui aquele poder
físico exercido sobre a coisa e que pode produzir efeitos jurídicos (essa é a
posse propriamente dita do Código Civil). 26

Neste caso, seriam possuidores o comodatário e o locatário, pois


possuem o elemento “corpus”, dispondo da propriedade não plenamente, mas com
os poderes que lhe cabem, não é necessário para se configurar a posse natural o
elemento “animus”, ou seja, à vontade de possuir a coisa como se sua fosse (posse
jurídica), estas pessoas exercem a posse direta do bem e o proprietário estaria
exercendo a posse indireta. Resta demonstrado que o Código Civil vigente adotou “a

24
WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 54.
25
HERING, Rudolf Von. Teoria Simplificada da Posse. Tradução de Vicente Sabino Junior. São Paulo:
Bushatsky, 2007, p. 106.
26
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 17 ed. São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 56.
13

teoria de Ihering, demonstrando a posse somente pela presença do elemento


corpus, estando o animus contido no corpus, dependendo da maneira de como é
exercitado o direito”.27
Os direitos à posse são protegidos por lei, advindo conseqüências. Há
o direito de posse que é o direito ligado ao fato da posse e há o direito de possuir
que é o direito de exercer a posse. Sendo o proprietário titular do jus possidendi e
não tendo o jus possessionis não lhe será dado usar os interditos, não poderá,
portanto, evitar que aquele através da reivindicatória restitua a coisa.
Há dois efeitos peculiares à posse, independentemente da idéia de
propriedade que são os interditos e a usucapião, a primeira serve para a defesa da
posse e a segunda ao reconhecimento do domínio. O Código Civil de 2002
estabelece no artigo 1.225 quais são os direitos reais.
Não é, portanto a posse um direito real, uma vez que a relação jurídica
existente é de estado, ou seja, caracteriza uma situação de fato, podendo
transformar-se em direito de propriedade caso cumpra os requisitos da prescrição
aquisitiva.
A posse é “requisito fundamental para se caracterizar a usucapião,
devendo revestir-se de animus domini, ou seja, a intenção ou vontade de possuir a
propriedade como se sua fosse”,28 afastando a posse dos locatários, usufrutuários
que embora possuam diretamente não gera qualquer direito. A posse deve ser
igualmente, mansa e pacífica e contínua, afastada de violência, clandestinidade ou
precariedade. “A contagem do prazo é feita por dias, é possível o encurtamento do
prazo mediante a existência de requisitos suplementares como o justo título e a boa
– fé”.29
Segundo Arnold:

Afastando discussões doutrinárias, o possuidor é aquele que tem de fato o


exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio ou
propriedade. O Novo Código Civil repetiu o artigo 485 do Código Civil de
1916 apenas eliminando as palavras domínio e ou. Em relação aos
detentores, estes não são possuidores, apenas têm a posse em razão de
alguma obrigação ou direito e durante certo tempo, ou seja, mantêm a coisa
e a posse em nome alheio, são os fâmulos da posse, o caseiro de uma
chácara seria um exemplo.30

27
ROUSSEAU, Jeans Jacques. O contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009, p. 72.
28
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 49.
29
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 144.
30
WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 125.
14

Já o locatário, o comodatário, o usufrutuário têm direitos equiparados


ao dos possuidores na hipótese de turbação, podendo-se valer do desforço
imediato, tendo em vista que exercem a posse direta da propriedade. A posse
natural ou detenção estabelecida “no artigo 1.198 do novo Código Civil opõe-se a
civil, que é a determinada pela lei, como a posse do herdeiro, que é transmitida
assim que ocorra a morte do de cujus e também no caso do possessório”. 31

2.6.1 A função social da posse

O Código Civil vigente estabelece que o direito de propriedade deva


ser exercido de acordo com as suas finalidades econômicas e sociais, caso contrário
não há respeito à função social da propriedade, podendo o proprietário ser privado
de sua “propriedade se nesta área houver um considerável número de pessoas e
estes houverem realizado obras e serviços de interesse social e econômico
relevante de acordo com os requisitos estabelecidos no artigo 1.228, § 4º”. 32 Este
artigo aborda a função social da posse, que atende as exigências do bem estarem
social, é a posse - trabalho.
Mais uma vez surge a preocupação do legislador em atender os
anseios da sociedade que sofre pelo problema da desigualdade social e da má
distribuição de terras. Vislumbra-se neste caso, que essas pessoas que ocuparam o
imóvel atribuíram uma função social à propriedade, já que realizaram obras e
serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
Alguns denominam essa privação de propriedade como se fosse uma
nova modalidade de desapropriação judicial indireta pela posse - trabalho e não uma
modalidade de usucapião, pois neste caso o proprietário receberá uma justa
indenização por ter perdido sua propriedade.
Porém essa indenização “será paga com títulos da dívida pública, para
não gerar um desestímulo social à produtividade devido à espera de muitos
proprietários a futuras indenizações”, 33 por isso sendo a indenização em títulos da
dívida pública seria uma verdadeira sanção ao proprietário que não exercitou a
função social que lhe incumbia.

31
LEVENHAGEN, Antonio José de Souza. Posse, Possessória & Usucapião. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.
192.
32
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Campinas: Romana, 2008, p. 65.
33
GASPARINI, Diógenes. O Estatuto da Cidade. São Paulo: Editora NDJ, 2009, p. 101.
15

A indenização em títulos da dívida pública está prevista no artigo 8º da


Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Muito se discute sobre a quem é cabível o
pagamento da indenização prevista no artigo 1.228, § 5º do Novo Código Civil, se
seria pago pelos possuidores ou pelo Poder Público.
As propriedades que não desenvolvem sua destinação social sofrem a
incidência de um tributo urbanístico com alíquota majorada pelo prazo de cinco anos
consecutivos para os locais abrangidos pelo Plano Diretor, trata-se da
progressividade extra fiscal, que a cada ano de inércia do proprietário é majorado o
valor do tributo, caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não seja atendida
em cinco anos, o Município manterá a alíquota máxima até que se cumpra essa
obrigação.
A progressividade não tem como objetivo a arrecadação e sim a
imposição de interesse público, fazendo com que os proprietários construam em
seus terrenos ou ceda-os aos construtores conforme “dispõe o artigo 156, inciso I, §
1º da Constituição Federal e ainda conforme Emenda Constitucional nº 29/2000 que
estabelece que o não uso do imóvel seja reconhecimento de fator de
progressividade”.34
Sem dúvida, a propriedade não é sagrada, “como afirmava a
Declaração de 1789. É um direito fundamental que não está nem acima nem abaixo
dos demais. Deve como os demais, sujeitar-se às limitações exigidas pelo bem
comum”.35
Pode ser pedida em favor do Estado quando o interesse público o
reclamar, como a vida tem de ser sacrificada quando a salvação da pátria o impõe.
Pode ser recusada quanto a certos bens cujo uso deva ser deixado a todos, quando
a exploração deles não convém que se faça conforme a vontade de um ou de alguns
cidadãos.

3.MEIOS DE DEFESA DA PROPRIEDADE

34
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 13ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 137.
35
FRANÇA, Vladmir da Rocha. Perfil Constitucional da Função Social da Propriedade. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 184.
16

3.1 Elementos constitutivos da propriedade

Quando todos os aludidos elementos constitutivos estiverem reunidos,


em uma só pessoa, será ela a titular da propriedade plena. Se, entretanto, ocorrer o
fenômeno do desmembramento, passando a um ou alguns deles a serem exercidos
por outra pessoa, diz-se que a propriedade é limitada. É o que sucede, “verbi gratia,
no caso do direito real de usufruto, em que os direitos de usar e gozar da coisa
passam para o usufrutuário, permanecendo o nu-proprietário somente com os
direitos de dispor e reaver”.36
O primeiro elemento constitutivo da propriedade:

é o direito de usar (jus utendi), que consiste na faculdade de o dono servir-


se da coisa e de utilizá-la da maneira que entender mais conveniente, sem,
no entanto alterar-lhe a substancia, podendo excluir terceiros de igual uso. 37

A utilização deve ser feita, porém, dentro dos limites legais de acordo
com a função social da propriedade. A faculdade em apreço permite também que o
dominus deixe de usar a coisa, mantendo-a simplesmente inerte em seu poder, em
condições de servi-lo quando lhe convier.
O direito de gozar ou usufruir “(jus fruendi), compreende o poder de
perceber os frutos naturais e civis da coisa de aproveitar economicamente os seus
produtos. O direito de dispor da coisa (jus abutendi) consiste no poder de transferir a
coisa”,38 de gravá-la de ônus e de aliená-la a outrem a qualquer título.
Não significa, todavia, prerrogativa de abusar da coisa, destruindo-a,
pois a própria Constituição Federal prescreve que o uso da propriedade deve ser
condicionado com o bem-estar social. Nem sempre, portanto é lícito “ao dominus
destruir a coisa que lhe pertence, mas somente quando não caracterizar um ato anti-
social”.39 Tal direito é considerado o mais importante dos três já enunciados, porque
mais se revela dono quem dispõe da coisa do que aquele que a usa ou usufrui.
O quarto elemento constitutivo é o “direito de reaver a coisa (rei
vindicatio), de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a possua ou detenha,
como corolário de seu direito de seqüela, que é uma das características do direito
36
PEZZELLA, Cereser. Propriedade privada. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008, p. 47.
37
AZEVEDO, Renan Falcão de. Posse, Efeitos e Proteção. Porto Alegre: EDUCS, 2009, p. 294.
38
BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 92.
39
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Agrário. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 293.
17

real”.40 Envolve a proteção especifica da propriedade, que se perfaz pela ação


reivindicatória.

3.2 Ação reivindicatória

Prescreve a segunda parte do citado artigo 1.228 do Código Civil que o


proprietário tem a faculdade de reaver a coisa do poder de quem injustamente a
possua ou detenha. Para tanto dispõe da ação reivindicatória. O direito de
propriedade é dotado, assim, de uma tutela especifica, fundada no direito de
seqüela, esse poder de perseguir a coisa onde quer que ela se encontre.
Compete a tal ação, consoante antiga e conhecida regra, ao
proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário. Pode utilizá-la quem
está privado da coisa que lhe pertence e quer retomá-la de quem a possui ou detém
injustamente.
De nada valeria ao dono da coisa, “ao dominus, em verdade, ser
sujeito da relação jurídica dominial e reunir na sua titularidade o ius utendi, fruendi,
abutendi, se não lhe fosse dado reavê-la de alguém que a possuísse injustamente”, 41
ou a detivesse sem título. Pela vindicatio o proprietário vai buscar a coisa nas mãos
alheias, vai retomá-la do possuidor, vai recuperá-la do detentor. Não de qualquer
possuidor ou detentor, porém daquele que a conserva sem causa jurídica, ou a
possui injustamente.

3.2.1 Pressupostos e natureza jurídica da reivindicatória

A ação reivindicatória tem caráter essencialmente dominial e por isso


só pode ser utilizada pelo proprietário, por quem tenha jus in re. Nessa ação o autor
deve provar seu domínio, oferecendo prova inconcussa da propriedade, com o
respectivo registro, e descrevendo o imóvel com suas confrontações, bem como,
demonstrar que a coisa reivindicada se encontra na posse do réu.
Três, portanto, são os pressupostos de admissibilidade de tal ação, são
eles: a titularidade do domínio, pelo autor da área reivindicada; a individuação da
coisa e a posse injusta do réu.
40
RODRIGUES, Silvio. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 144.
41
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2009, p. 73.
18

A prova da propriedade atual é dificultosa, uma vez que o autor pode


ter adquirido a non domino, ou seja, de quem não era o verdadeiro dono, ou a coisa
pode ser outra que não a reivindicada. Por isso, entende-se, outrora, necessária a
apresentação, com a inicial, de certidão de filiação dos títulos de domínio anteriores,
estendendo-se a pesquisa até alcançar o tempo necessário à usucapião.
Neste linear, leciona Paulo:

Não se faz mister, atualmente, essa comprovação, denominada probatio


diabolica. Tem a jurisprudência proclamando que, em se tratando de bem
imóvel, o registro imobiliário é suficiente para demonstrar a titularidade do
domínio, sem necessidade de ser complementada essa prova com filiação
dos títulos de domínio anteriores. Somente quando há títulos de domínio em
favor de ambas as partes é que se aprecia a filiação anterior para se saber
qual a transcrição que deve prevalecer. 42

Pressuposto essencial à propositura da ação é a descrição atualizada


do bem, com os corretos limites e confrontações, de modo a possibilitar a sua exata
localização. Deve o autor, assim, mencionar todos os elementos que tornem o
imóvel conhecido, que o individualizem, que lhe permitam exata localização, como
extensão superficial, acidentes geográficos, limites e confrontações, a fim de
estremá-lo de outras propriedades. Sem observância dessa formalidade não pode
ser julgada procedente uma reivindicação pela impossibilidade de executar-se
ulteriormente a sentença.
Na reivindicatória, como já mencionado, o proprietário vai
retomar a coisa de qualquer possuidor ou detentor, porém daquele que a
conserva sem causa jurídica, ou a possui injustamente. É ação do proprietário
que sem titulo, mas não tem posse, contra que tem posse, mas não tem título.
Ressalte-se que o “artigo 524 do Código Civil de 1916 referia-se
apenas ao possuidor não fazendo mensalão ao mero detentor, mas nunca pairou
dúvida quanto à possibilidade de se dirigir à ação contra este”. 43 O artigo 1.228 do
novo diploma inclui expressamente o detentor, afastando qualquer controvérsia que
pudesse eventualmente existir a esse respeito.
Constitui efeito especifico da “vindicatio obrigar o possuidor a restituir
ao proprietário a coisa vindicada, com todos os seus acessórios, tais como frutos e

42
HAENDCHEN, Paulo Tadeu. Ação reivindicatória. São Paulo: Saraiva, 2007, p.24.
43
LACERDA, Galeno. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 163.
19

rendimentos”.44 Quando a restituição é impossível por ter perecido a coisa, o


proprietário tem direito a receber o seu valor se o possuidor estava de má-fé.
O possuidor de boa-fé pode, todavia, recusar-se a entregar a coisa, se
faz jus ao recebimento de indenização por benfeitorias necessárias, pois lhe
assegura a lei o direito de retenção.
A ação reivindicatória encontra fundamento, pois, na segunda parte do
artigo 1.228 do Código Civil, que assegura ao proprietário o direito de seqüela,
atributo dos direitos reais que possibilita a este perseguir a coisa onde quer que
esteja.
O referido dispositivo legal fala de posse injusta, tal expressão, é
referida em termos genéricos, significando sem título, isto é, sem causa jurídica. Não
se tem, pois, “a acepção restrita de posse injusta do artigo 1.200 do mesmo diploma,
na reivindicatória, detém injustamente a posse quem não tem título que a
justifique”,45 mesmo que não seja violenta, clandestina ou precária, e ainda que seja
de boa-fé. Não fosse assim, o domínio estaria praticamente extinto ante o fato da
posse.

3.2.2 Objeto da ação reivindicatória

Em linhas gerais podem ser reivindicados todos os bens que são objeto
de propriedade, ou seja, todas as coisas corpóreas que se acham no comércio,
sejam móveis ou imóveis, singulares ou coletivas, simples ou compostas, mesmo as
universalidades de fato, como um rebanho, por exemplo.
Na reivindicação do rebanho esclarece Santos que:

Basta que o autor prove que o rebanho considerado no seu conjunto, ou


seja, a maior parte das cabeças que o compõe é da sua propriedade. E uma
vez feita essa prova, o réu é obrigado a restituir o rebanho, excetuadas as
cabeças que provar, de modo direto, serem suas. As universalidades de
direito, como o patrimônio, a herança, não são reivindicáveis, são, porém,
as coisas corpóreas que entram na sua composição.46

Há, todavia, coisas que, pela sua própria natureza, são insuscetíveis de
reivindicações. Então nesse caso, “as coisas incorpóreas, o direito considerado em
44
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 141.
45
CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade: a função social e outros aspectos. Rio de Janeiro: Renovar,
2009, p. 145.
46
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, o direito e a questão urbana. In: FALCÃO, Joaquim (org.).
Invasões urbanas: conflitos de direito de propriedade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 62.
20

si mesmos, como um direito de usufruto, pois são relações jurídicas dotadas de


ações protetoras de outra espécie”.47 Também não são reivindicáveis as coisas
futuras, como aquelas coisas que ainda vão se separar do imóvel, os frutos
pendentes, dentre outros.

3.2.3 Legitimidade ativa e passiva

A legitimidade ativa é o proprietário, seja a propriedade plena ou


limitada, irrevogável ou dependente de resolução. Não se exige, efetivamente, que a
propriedade seja plena. Mesmo a limitada, como ocorre nos direitos reais sobre
coisas alheias e na resolúvel, autoriza a sua propositura.
Da mesma forma, cada condômino pode, individualmente, como foi
dito, “reivindicar de terceiro a totalidade do imóvel, não podendo, este opor-lhe, em
exceção, o caráter parcial do seu direito”.48
Como o direito hereditário é modo de aquisição da propriedade imóvel
(artigo 1.784 CC), e o “domínio e a posse da herança transmitem-se aos herdeiros
desde a abertura da sucessão, podem estes reivindicar os bens que a integram
mesmo sem a existência de formal partilha, esteja este registrado ou não”. 49
Indispensável, no entanto, que o imóvel esteja registrado em nome do de cujus,
igual direito cabe ao cessionário dos direitos hereditários.
Quanto à legitimidade passiva, a ação deve ser endereçada contra
quem está na posse ou detém a coisa, sem título ou suporte jurídico. A boa-fé não
impede a caracterização da injustiça da posse, para fins de reivindicatória. A
pretensão pode ser oposta a quem possui a coisa em nome de terceiro. Ao
possuidor direto, citado para a ação, incumbe a denunciação da lide ao possuidor
indireto (artigo 70, II, CPC).
A reivindicatória pode, assim, “ser movida contra o possuidor sem titulo
e o detentor, qualquer que seja a causa pela qual possuam ou detenham a coisa”. 50
Pode ser endereçada também contra aquele que deixou de possuí-la com dolo, isto

47
SOARES, Ronnie Herbert Barros. Usucapião Especial Urbana Individual. 1ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004, p. 77.
48
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre o
direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 88.
49
FALCÃO, Joaquim. Invasões urbanas: conflitos de direito de propriedade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008,
p. 102.
50
ROLNIK, Raquel & Nelson Saule Júnior. Estatuto da cidade: guia para implementação pelos municípios e
cidadãos. Brasília: Instituto Pólis, 2001, p. 44.
21

é, transferindo-a para outro com a intenção de dificultar ao autor sua vindicação. É


facultado ao autor, destarte, demandar o possuidor ficto ou verdadeiro.
Também pode figurar no pólo passivo aquele que se apresenta como
possuidor sem ter a posse, sem que o autor saiba. Admite-se “ação contra o fictus
possesor, ou seja, contra quem é reputado possuidor, embora não tenha em
verdade a posse do bem”.51
A finalidade da lei, “sujeitando à condenação o possuidor quis se lit
abtulit, é impedir que se empregue uma tal fraude para dar tempo ao verdadeiro
possuidor de prescrever a coisa”.52 O possuidor ficto, pois que não pode restituir a
coisa, é condenado a pagar a estimação.

3.3 Ação negatória

A ação negatória é cabível, em regra, quando o domínio do autor, por


um ato injusto, esteja sofrendo alguma restrição por alguém que se julgue com
direito de servidão sobre o imóvel. Embora seja mais comumente ajuizada nessa
hipótese, é certo, porém, que pode ela ser invocada contra quaisquer atos
atentatórios da liberdade do domínio, embora esses atos não constituam exercício
material de servidões.
Por conseguinte, a ação negatória é utilizada pelo dono da coisa todas
as vezes que o seu domínio, por um ato injusto, esteja sendo molestado em sua
plenitude ou nos seus limites por outrem que se julgue com um direito sobre o
imóvel atacado.
O principio que norteia tal ação é do “artigo 1.231 do Código Civil,
declarando presumir-se a propriedade plena e exclusiva, até prova em contrário. A
reivindicatória defende a substancia do domínio, a negatória defende-lhe a
plenitude”.53 Efetivamente, embora ambas, a reivindicatória e a negatória, destinem-
se a proteger o domínio, cada uma o faz de modo diverso, segundo a natureza da
ofensa que buscam reprimir.
A ação negatória é “provocada por atos de terceiro que, sem
importarem a tirada da coisa do poder do proprietário, restringem ou limitam o

51
CLAM, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo e só-efetuação.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 122.
52
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 89.
53
Idem, p. 172.
22

exercício do domínio”.54 Esta ação, não pressupõe um desapossamento, mas um


embaraço criado ao livre exercício do domínio pelo senhor da coisa, como na
hipótese de o réu fazer passar pelo terreno do vizinho, águas que este não está
obrigado a receber.
A negatória integra o grupo das ações defensivas da integridade do
domínio, a propriedade é atacada em algum de seus elementos, ou melhor, na sua
liberdade e extensão, e o proprietário defende-se contra a usurpação efetiva de
alguma das utilidades de domínio. Trata-se de pretensão de caráter real, que tem
por base a propriedade. Ao intentá-la, deve o principio provar que a coisa lhe
pertence, que o réu o está molestando com a prática de atos que o inibem de
exercer livremente e em toda a extensão o seu domínio.
Não basta a prova de um ato ofensivo esporádico, exige-se que “a
lesão contra a qual se insurge o domínio seja real e permanente à liberdade de
exercício do domínio”.55 Objetiva a aludida ação o reconhecimento da mencionada
liberdade, trazendo como conseqüências a proibição ao réu, sob certa pena, de
continuar as mesmas usurpações, e a condenação, se no caso couber, de repor a
coisa no antigo estado e satisfazer as perdas e danos causados.

3.4 Ação de dano infecto

A ação de dano infecto, isto é, de dano iminente, tem caráter preventivo


e cominatório, como o interdito proibitório, e pode ser oposta quando haja fundado
receio de dano iminente, em razão de ruína do prédio vizinho ou vicio na sua
construção. Encontra fundamento no artigo 1.280 do Código Civil, que assim dispõe:
“o proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a
demolição ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que lhe preste
caução pelo dano iminente”.56
A legitimidade ativa é do proprietário ou possuidor. Sujeito passivo é
dono do prédio vizinho que provoca a interferência prejudicial. O pedido consistirá

54
FALCÃO, Joaquim (org.). Invasões urbanas: conflitos de direito de propriedade. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2008, p. 78.
55
PARIZ, Hélio Gonçalves. A Função Social da Posse. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 46.
56
BRASIL, República Federativa do Brasil de 1988. Do Uso Anormal da Propriedade Art. 1.280 do Código
Civil Brasileiro de 2002. Disponível em http: //www.jusbrasil.com.br/topicos/10649663/artigo-1280-da lei-n-
10406-de-10-janeiro-de-2002. Acesso em 02 de Jan. de 2019.
23

em proibi-la, podendo a pena consistir na demolição, na interdição ou mesmo na


indenização.
Assevera Miranda que:

A caução de dano infecto se lhe afigura possível até mesmo em ação


indenizatória comum, quando, além dos danos já consumados, outros
estejam na iminência de consumar-se ante o estado ruinoso da obra
vizinha, ou dos trabalhos lesivos da construção confinante. Embora a lei civil
só se refira a danos decorrentes do estado ruinoso da obra, admite-se que a
caução se estenda a outras situações capazes de produzir danos, como
trabalhos perigosos executados na construção vizinha, deficiência de
tapume da obra, perigo de queda de andaime e outras mais. 57

Precavendo-se, o autor obtém que a sentença comine ao réu a


prestação de caução que o assegure contra o dano futuro, não sendo possível a
demolição ou a reparação, pela natureza dos fatos, nada obsta que a pena seja a
suspensão das obras, alternada com a caução. Se a demolição a ser iniciada
representar risco para o prédio do autor e o proprietário não prestar a caução, o juiz
determinará a suspensão dos trabalhos.
Também na hipótese de “escavações para as fundações de um
edifício, por exemplo, se o proprietário não prestar caução o juiz decretará a
suspensão das obras até que ela seja prestada”. 58 A ação em espaço tem sido
admitida também nos casos de mau uso da propriedade vizinha, que prejudique o
sossego, a segurança e a saúde do proprietário ou inquilino de um prédio.

57
MIRANDA, A. Gursen de. Direito agrário e ambiental: a conservação dos recursos naturais no âmbito
agrário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 161.
58
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 123.
24

4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

De Plácido, em sua obra Vocabulário Jurídico, conceitua propriedade


da seguinte maneira:

Do latin proprietas, de proprius (particular, peculiar, próprio) genericamente


designa a qualidade que é inseparável de uma coisa, ou que a ela pertence
em caráter permanente. Na linguagem jurídica, e sentido comum,
propriedade, sem fugir ao sentido originário, é a condição em que se
encontra a coisa, que pertence, em caráter próprio e exclusivo a
determinada pessoa. É, assim, a pertinência exclusiva da coisa, atribuída à
pessoa.59

Portanto, a propriedade, em regra, pertence em caráter à determinada


pessoa. Porém, com o surgimento da função social da propriedade, esta perde o
caráter exclusivo, devendo atender outras funções perante a sociedade, não
somente aquelas que o seu proprietário determina.
A função social da propriedade agrega um importante elemento
impositivo ao detentor da propriedade, “o atendimento de interesses de outrem.
Portanto, além de atender interesses individuais do proprietário, aquela propriedade
deverá se conformar às necessidades da coletividade”. 60
Conceitua-se o princípio da função social da propriedade como
norma de elevado grau de normatividade:

Que implica em poderes e deveres relacionados ao direito de propriedade


em nome de um interesse maior que é o interesse coletivo, bem como
vincula todo o entendimento e interpretação do instituto do direito de
propriedade no ordenamento jurídico. Pág. 172.61

A função social é uma imposição ao proprietário do dever de destinar o


objeto do seu direito aos fins sociais determinados pelo ordenamento jurídico. O
princípio da função social da propriedade, portanto, é a verdadeira base para a
interpretação de todo o instituto jurídico da propriedade, ou melhor, no conceito do
direito de propriedade deve-se inserir sempre o princípio da função social.
Este princípio surgiu da necessidade de se impor a deveres sociais,
assim, podemos dizer que a função social da propriedade ocorre no equilíbrio entre
59
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forence, 1987, p. 34.
60
WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 65.
61
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 172.
25

“o interesse público e o privado, no qual este se submete àquele, pois o uso que se
faz de cada propriedade possibilitará a realização plena do urbanismo e do equilíbrio
das relações da cidade”.62
O princípio da função social da propriedade é uma das ferramentas de
interpretação do direito de propriedade estudado à luz do texto Magno de 1988, e
principalmente, uma ferramenta a fim de se estabelecer, concretamente, um Estado
de Justiça Social.
Nossa Carta Magna tratou em dois capítulos, nos artigos 182 a 191, da
política urbana e da política agrícola, fundiária e da reforma agrária, trazendo os
conceitos da função social da propriedade urbana e da função social da propriedade
rural.
Observa-se:

Art. 182 – A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder


Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para
cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política
de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor.
Art. 186 – A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.63

A função social da propriedade refere-se à norma reservada a


categoria dos princípios. Os princípios angariaram a posição de elevado grau
normativo nos sistemas jurídicos constitucionais, principalmente a partir da
Constituição de cunho social do pós-guerra. A discussão doutrinária sobre a
natureza normativa dos princípios, bem como de sua função de instrumento básico
de interpretação para todo o sistema jurídico, hoje superada e vencida, trouxe
grande avanço para a efetividade dos direitos de natureza constitucional.

62
DI SARDINO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Editora Manoele. São Paulo:
Barueri, 2004, p. 48.
63
BRASIL, República Federativa. Artigo 182 186 da Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 05 de Jan de 2019.
26

Nos dizeres de Rocha:

...ao estabelecer expressamente a regra da função social da propriedade,


como um princípio da ordem econômica, vele dizer da constituição
econômica brasileira, com o fim de realizar o desenvolvimento nacional e a
justiça social, a Constituição Federal não estava simplesmente
preordenando fundamentos a limitações, obrigações e ônus da propriedade
privada. Estes são externos ao direito de propriedade pelo que interferem
tão só com o exercício desse direito e que, em grande parte, senão sempre,
se explicam pela simples atuação do poder de polícia (...). O princípio da
função social da propriedade é muito mais do que isso. Transforma a
propriedade.64

A função social da propriedade nasce do principio da prevalência do


interesse público sobre o particular.

4.1 Constituição Federal e a função social da propriedade

Para iniciar o tema, é pertinente alguma reflexão sobre o sentido da


expressão “propriedade”. Na doutrina jurídica brasileira, a expressão propriedade
guarda uma ambigüidade. “Ora é empregada para se designar uma relação, ora é
empregada para determinar o objeto da relação, no sentido de apresentar a
vinculação daquele objeto a um determinado sujeito de direito”. 65
A legislação, inclusive a Constituição, utiliza a palavra propriedade com
duas acepções distintas. Além da acepção designando a relação de poder
legalmente protegida entre sujeito e objeto, que é adotada neste ensaio, o
ordenamento jurídico trata propriedade como sinônimo de bem – aquele objeto que
integra ou é capaz de integrar uma relação de propriedade.
Na constituição, por exemplo, é o que ocorre com a expressão
propriedade agrária e propriedade urbana, na verdade objetos com características
específicas que integram relações de propriedade. Emprego, aqui, a noção de
propriedade como uma instituição jurídica. Afirmando que “o conteúdo da
propriedade é demarcado pelo Direito. Esta instituição jurídica a propriedade pode
ser sinteticamente traduzida como poder garantido pelo direito de um sujeito sobre
determinado objeto”.66
64
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 284.
65
VIANA, Rui Geraldo Camargo. O direito à moradia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 223.

66
LEVENHAGEN, Antonio José de Souza. Posse, Possessória & Usucapião. 2ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.
52.
27

O direito de propriedade é o direito à proteção da relação de um sujeito


sobre um objeto. Somente aquela relação que preenche requisitos determinados
pelo direito é passível de ser protegida. Esta proteção pelo direito de uma relação
individual entre sujeito e objeto justifica-se pelo seu efeito na sociedade. Se a ligação
de uma coisa à utilidade individual é protegida, é antes de tudo por causa da utilidade social
que resulta desta relação. Por “se estar tratando de propriedade como uma relação
sobre a qual recai uma proteção jurídica, o direito se refere à garantia e proteção da
relação, não do objeto bem integrante da relação de propriedade”. 67
Portanto, função social da propriedade, não é função de um direito nem
de um bem inanimado, mas é a vinculação dos efeitos da relação material sujeito-
objeto com a sociedade. Falar em função social da propriedade é dispor sobre a
instrumentalidade da relação de propriedade em relação à construção da sociedade.
Função social da propriedade pressupõe a consagração da
propriedade privada pelo Direito. Sem a propriedade como poder juridicamente
garantido, não há que se falar na prescrição da função social da propriedade. É uma
disposição dirigida a sujeitos proprietários privados, que exercem seu domínio
garantido sobre a coisa, responsabilizando-se, para que esta relação privada
construa a vida social melhorada. Ademais, “o princípio da função social nos recorda
que toda propriedade privada é oriunda de um pacto social, que deve honrar,
desenvolvendo-se na satisfação da coletividade”. 68
A norma que dispõe sobre a função social da propriedade é uma norma
que cria o ônus do proprietário privado perante a sociedade. “Esta norma institui um
ônus que recai sobre o desenvolvimento da relação de poder entre sujeito e objeto
que configura a propriedade privada”. 69 O ônus imposto sobre o sujeito proprietário
significa que sua atuação deve trazer um resultado vantajoso para a sociedade, a
fim de que este poder individualizado seja reconhecido legalmente.
O que o direito impõe (e não apenas garante) “é o preenchimento da
relação de propriedade, de forma que a disposição individualizada da vontade para
vantagem própria traga também vantagens sociais, por conseguinte”, 70 uma melhoria

67
ROSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; Ensaio sobre a Origem das Línguas; Discurso sobre a Origem
e os Fundamentos das Desigualdades entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril
Cultura, 2003, p. 198.
68
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.
66.
69
CARDOSO, A. L. Reforma Urbana e Planos Diretores: avaliação da experiência recente. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 129.
70
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 61.
28

da vida social. Este tratamento da relação de propriedade marca a diferença entre


Estado liberal e Estado social. Enquanto o primeiro garante a propriedade privada
contra terceiros, o segundo preocupa-se com a melhoria da vida social a partir desta
apropriação privada de bens.
Ao se tratar de uma função da propriedade, não se está tratando da
função de um direito. Pretende-se, ao impor função à relação denominada
propriedade vincular seu desenvolvimento à realização de determinados fins. A idéia
de função social da propriedade significa, “na dogmática, um mandamento dirigido
ao detentor do direito de propriedade para consecução de determinados fins”. 71
Significaria, neste caso, que o sujeito, ao extrair do objeto os resultados de seu
interesse próprio, também deve ter como objetivo concretizar fins de interesse
social.
A palavra função, dentro do princípio jurídico da “função social da
propriedade”, deve ser compreendida como conteúdo. Ela determina o conteúdo
social da relação de propriedade. Ao se dizer que “a propriedade deve responder a
uma função social, está-se impondo uma nova configuração desde o modo como o
sujeito irá se apropriar do objeto e transformá-lo”. 72 É o desenvolvimento da relação
entre sujeito e objeto apropriado que faz a propriedade existir em conformidade com
o direito.
Não cabe nesta relação de propriedade, a que se impõe o “princípio
jurídico de função social da propriedade, o emprego pelo sujeito de meios de
apropriação que possam vir a prejudicar a sociedade”, 73 nem a realização de
atividades cujo procedimento contrarie valores sociais. Isto ainda não significa,
porém, que se está equiparando função à finalidade.
A efetividade da norma que prescreve que a propriedade deverá
atender a sua função social não se revela somente pela verificação do fim correto. O
resultado conforme fins sociais é a coroação do desenvolvimento da relação de
propriedade. É, contudo, na conformação dos meios empregados, na forma da
apropriação, que se modela a relação de propriedade ao atendimento do fim
desejado. Os fins não se desligam dos meios. E é na dinâmica da escolha dos

71
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 65.
72
CUNHA, Sérgio Sérvulo da. A nova proteção possessória. São Paulo: Editora Acadêmica, 2007, p. 65.
73
COSTALDELLO, Angela Cassia. As transformações do regime jurídico da propriedade privada: a
influência do direito urbanístico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 71.
29

meios, da sua disposição e do resultado obtido que é preenchido o princípio da


função social da propriedade.
Daí equiparar-se o princípio da função social da propriedade a um ônus
do proprietário, consistente em um conjunto de deveres e responsabilidades que
permeia toda a relação de propriedade, e não apenas limita seu exercício. A escolha
do que realizar, dos meios empregados, da intensidade da atividade e da destinação
das vantagens obtidas não pode mais ser tomada do ponto de vista exclusivamente
individual do proprietário.
O preenchimento da função social da propriedade:

É causa da existência do direito de propriedade. O caráter social desta


relação individualizada é explicitado no modo de se exercer a propriedade, o
que inclui os fins alcançados, sem a eles se limitar. 74

A realização da satisfação do sujeito titular da relação de propriedade é


a mais imediata e assegurada pelo direito. Além de se destinar à satisfação
individual, a Constituição de 1988 impõe que o desenvolvimento de tal relação
possua um conteúdo de satisfação social. É o que impõe o preceito que determina
que a propriedade atenda a função social. Esta determinação vincula aqueles
sujeitos que são proprietários e que desenvolvem seu poder sobre um objeto
visando a sua satisfação individual.
A conformação do exercício do poder privado ao atendimento de
finalidades sociais dá novos contornos à propriedade, configurando uma nova
relação jurídica. Ao direito não basta garantir a relação legalmente constituída. Ele
passa a interferir no conteúdo desta relação, dispondo sobre meios empregados e
finalidades a serem atingidas.
A proteção da propriedade pelo direito está diretamente ligada ao
trabalho que nela é desempenhado e o modo como este trabalho é realizado.
“Função social da propriedade é um preceito que atinge o conteúdo da propriedade,
pela conformação do trabalho que é exercido ou deve ser”. 75 Concluindo, é pela
identificação e valoração do processo de utilização da coisa que se avaliará o
preenchimento do preceito legal da função social da propriedade.

74
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1988, p. 74,

75
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.
77.
30

O direito como proteção social desta relação impõe uma configuração


específica do exercício deste poder. Em síntese, “ao preceito jurídico que garante o
exercício da relação de propriedade (art. 5 º XXII CF) é acrescida à determinação
jurídica de obrigação de fazer”.76 O modo como o proprietário se apropria do objeto e
os resultados de sua apropriação devem ser condizentes com as diretrizes
normativas ligadas ao bem-estar da sociedade.
Em conseqüência, da mesma forma que “é conferido um direito
subjetivo individual para o proprietário reclamar a garantia da relação de
propriedade, é atribuído ao Estado e à coletividade o direito subjetivo público”77 para
exigir do sujeito proprietário a realização de determinadas ações, a fim de que a
relação de propriedade mantenha sua validade no mundo jurídico. O direito de
propriedade deixa de ser, então, exclusivamente um direito garantia do proprietário e
se torna um direito garantia da sociedade.
O caráter impositivo do direito de propriedade justifica-se plenamente,
quando se compreende que a propriedade representa o fundamento sobre o qual se
edifica toda dependência social. “É a propriedade que faz o cidadão, mas a
cidadania não é a simples fruição privada de bens pessoais, ela funda também um
conjunto de deveres sociais”.78 Segundo o Código Civil, a lei assegura ao
proprietário o direito de usar, gozar e a dispor sobre a coisa e de reavê-la de quem
quer que injustamente a possua: é o direito garantia.
O artigo 524 é modificado pela Constituição Federal. A ele é acrescida
a obrigação de fazer, que passa a compor o conteúdo da propriedade protegida pelo
direito. Portanto, as características do domínio que são as características essenciais
do instituto, não são bastante para conformar o conteúdo do exercício da ação do
sujeito sobre o objeto apropriado.
Nem tampouco as limitações ao exercício do domínio “oriundas da lei,
exigidas para que os direitos de propriedade possam existir sem conflito conformam
em sua plenitude a propriedade juridicamente protegida”. 79 Desde o Código de
Napoleão, confrontamo-nos com a idéia individualista de propriedade, limitada por

76
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 25ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
82.
77
ANTUNES ROCHA, Carmem Lucia. Op Cit., p. 73.
78
NUNES DE SOUZA, Sergio Iglesias. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 234.
79
LEAL, Cézar Barros. A função social da propriedade. Edições Imprensa Oficial do Ceará: IOCE, Fortaleza,
2008, p. 163.
31

disposições legais. Propriedade individualista e limitação legal do domínio surgem


juntas.
“O Estado social rompe com o individualismo liberal do Código de
Napoleão e acrescenta, ao direito ao domínio individual limitado pelas leis ou
regulamentos, o ônus da atividade que resulte para além da satisfação individual”. 80
A existência da propriedade individual é justificada pela realização de
atividades individuais que construam a vida social fundada em valores de bem-estar.
Não se desenvolvendo a relação entre sujeito e objeto na dinâmica de satisfação
social, não há proteção jurídica, porque a função social é um dado determinante da
existência jurídica da propriedade.
O direito de propriedade, isto é, “o direito de um sujeito para a
detenção de determinado bem, só é protegido pelo ordenamento jurídico se este
sujeito detentor do “jus utendi, fruendi et abutendi”, limitado pelas disposições
jurídicas”81, desenvolver seu domínio mantendo o bem-estar conquistado da
sociedade e acrescendo vantagens para a vida social.
Deve-se concluir que o princípio da função social da propriedade é
distinto das disposições sobre limitação do uso da propriedade privada. Não se trata
de limitar o desfrute na relação de propriedade, mas conformar seus elementos e
seus fins dirigindo-a ao atendimento de determinações de políticas públicas de bem-
estar coletivo. Este comportamento decore do entendimento de que propriedade é
uma relação com resultados individuais e sociais simultaneamente. Os meios
empregados e os resultados alcançados devem estar condizentes com os objetivos
jurídicos.

4.2 Considerações específicas sobre a função social da propriedade

A evolução do Direito produziu uma grande transformação no direito de


propriedade retirando-lhe aquele caráter absoluto de que se revestia em matérias
aprovadas para publicação futuras épocas passadas não mais se concebendo hoje
a possibilidade de alguém, como naquele exemplo clássico, erguer altíssimas hastes
metálicas em seu imóvel, localizado nas proximidades de um aeroporto, apenas

80
LACERDA, Galeno. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 64.
81
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 88.
32

para impedir que o avião sobrevoasse o seu espaço aéreo. Era a época em que os
poderes do proprietário se estendiam, além da superfície, desde o céu até o inferno.
Marcos Alcino de Azevedo Torres registra bem esta profunda
transformação:

O proprietário não é mais o homem tendo direitos absolutos sobre seu bem,
com poderes de destruí-lo e de deixá-lo inativo. Há hoje, na maior parte dos
países, e notadamente na França, uma série de leis que obrigam o
proprietário a consagrar sua propriedade ao interesse geral; que lhe
impedem de destruí-la em certos casos; ou mesmo de modificá-la; que o
proíbem, muitas vezes, de vendê-la e dispor dela livremente; que o obrigam
a torná-la útil; que o tornam, enfim, responsável pelos danos causados por
seus bens. O proprietário aparece, assim, mesmo tanto quanto o indivíduo
no interior do direito civil, como encarregado de um serviço público. 82

Realmente, tal como a concebe atualmente as legislações dos povos


mais adiantados, o direito de propriedade, passando por completa metamorfose,
vem sofrendo numerosas restrições impostas não só em função do próprio interesse
privado como também, e principalmente, do interesse público a tal ponto de já se
não saber com precisão se ela continua pertencendo ao direito privado ou se passou
a integrar o direito público. Ou a um direito misto, como sugerem alguns. Das várias
restrições sofridas, as mais importantes entre nós são, sem dúvida, as de natureza
constitucional.
Assim é que o já transcrito inc. XXIII do art. 5º da Constituição Federal
determina que “a propriedade atenderá a sua função social”.
No art. 170 da CF, depois de ressaltar que:

A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre


iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os
ditames da justiça social.83

Reafirma no seu inciso III, a função social da propriedade. Há de se


considerar ainda que, em consonância com os arts. 5º, XIII, e 170, III, a Constituição
Federal também determina em seu art. 3º que:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (I)


construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o
desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e

82
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 137.
83
BRASIL, República Federativa. Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica - Artigo 170 da
Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui
%C3%A7ao.htm. Acesso em 10 de Jan. de 2019.
33

reduzir as desigualdades sociais e regionais; (III) promover o bem de


todos.84

Nem será preciso dizer que a consecução destes propósitos se torna


incompatível com aquele conceito antiquado de propriedade definida no art. 524 do
CC. A leitura de todos os textos do CC só pode se fizer à luz dos preceitos
constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida
em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a
ela.
As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao
mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio
da função social (arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186 etc). Esse
princípio “não constituir apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade,
como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externas
àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração”. 85 O princípio
da função social atua no conteúdo do direito.
Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC
(usar, gozar, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro
interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário.
Surge assim a moderna concepção de propriedade, com a sua função
social bem determinada, geradora de trabalho e de empregos, apta a produzir novas
riquezas e a contribuir para o bem geral da nação. É a propriedade dos novos
tempos, a eliminar a propriedade estéril e improdutiva.
“A compreensão da função social da propriedade está em reconhecer
que o proprietário deve dar uma destinação econômica à coisa e não deixá-la ao
relento para, muito tempo depois, decidir o que fazer com ela”. 86 Se isso ocorrer, o
Estado pode impor veto ao estado de imobilidade do proprietário, desapropriando o
imóvel, para fins sociais, mediante justa indenização, situação esta condizente com
a ordem positiva vigente.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

84
BRASIL, República Federativa. Dos Princípios Fundamentais - Artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 10 de Jan.
de 2019.
85
MARCIAL, Alberto Ballarin. Evolução do princípio jurídico do direito de propriedade. Rio de Janeiro:
Revista de Direito Agrário, 2010, p. 268.
86
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 13ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 223.
34

A função social da propriedade constitui um dos princípios que


orientam a ordem econômica do país, e está positivada na Constituição Federal na
forma de inúmeros dispositivos. Constatou-se pelo presente estudo que, a
propriedade é garantida, constitucionalmente, como direito fundamental do indivíduo,
uma vez que o caput do artigo 5º da Constituição Federal garante o direito à
propriedade como algo inviolável, portanto, como garantia fundamental.
Contudo, para tanto, a propriedade deve cumprir sua função social
(aproveitamento racional da propriedade, utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis, preservação do meio ambiente, relações de trabalho e exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores) para que não seja
desapropriada para fins de reforma agrária.
No ordenamento jurídico pátrio a função social da propriedade
está presente em vários instrumentos normativos, dentre eles a Constituição Federal
da República (norma fundamental), o Estatuto da Terra, Código Civil etc. O seu
conteúdo pode ser divido em três dimensões que se cumulam: econômica, humana
e ambiental, sendo que cada uma delas é de extrema importância para tutelar uma
série de outros direitos fundamentais decorrentes.
Além disso, a partir dessa análise é possível fazer uma distinção
(necessária) entre os conceitos de produtividade e o cumprimento da dimensão
econômica da funcionalidade social da terra, que ainda persiste no imaginário de
muitos sob falácias infundadas.
A função social da propriedade é fruto da necessidade de superação
dos problemas gerados pelo liberalismo econômico, buscou-se introduzir um
elemento social no perfil do direito de propriedade, até então caracterizado por
intenso individualismo. A função social da propriedade só tem sentido se relacionada
à propriedade privada, pois, a propriedade pública, por ser instrumento da realização
de finalidades coletivas, não pode estar sujeita aos influxos obrigacionais derivados
da função social da propriedade.
A adoção do principio da função social da propriedade não fundamenta
apenas as intervenções tradicionais sobre a propriedade privada, baseadas na
concepção tradicional do poder de policia. Concluir assim seria tirar do principio
grande parte de sua força, e contrariar a razão de sua própria concepção,
justamente a necessidade de superar os entraves criados pelo Estado Liberal.
35

Conclui-se que não importa como, mas se a propriedade é produtiva,


não será suscetível de desapropriação, finalizando, há de se dizer que o presente
trabalho buscou discorrer sobre a função social da propriedade, entretanto sem o
propósito de esgotar o assunto, por tratar-se de tema bastante abrangente e com
certo grau de complexidade.

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