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Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka

Marcos Cipriano da Silva


Paulo Bento da Silva .
Cristina Akemi Kamikoga
Luciano Wilian da Silva
Solange Marli Oshima
Revisão de Língua Portuguesa Maria Regina Pante
Antônio Augusto de Assis

Ilustração da capa Tânia Machado

Capa – arte final Luciano Willian da Silva


Marcos Kazuyoshi Sassaka

Projeto gráfico e Diagramação Marcos Cipriano da Silva

Normalização Biblioteca Central – UEM

Fonte Aldine401 BT

Tiragem 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central- UEM, Maringá

T314 Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas /


organização Thomas Bonnici, Lúcia Osana Zolin. -- Maringá:
Eduem, 2003.

314p.:il. ; color. ; tabs.


Livro indexado em GeoDados. http://www.geodados.uem.br
ISBN 85-85545-85-2
1. Teoria literária. 2. Poesia – Narrativa. 3. Estudos culturais. 4.
Pós-Modernismo (Literatura). 5. Texto literário. 6. Crítica literária.
7. Artes. I. Bonnici, Thomas, org. II. Zolin, Lúcia Osana, org. III.
Título.
CDD 21. ed. 801
Copyright@2003 para os autores
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
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Todos os direitos reservados desta edição 2003 para Eduem.

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Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
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OPERADORES DE
LEITURA DA NARRATIVA

Arnaldo Franco Junior

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos um conjunto de conceitos que podem ser caracterizados como
operadores de leitura do texto narrativo, ou seja, são conceitos-chave para o desenvolvimento de uma
análise e interpretação do texto narrativo pautada pela tradição dos estudos acadêmicos. Alguns desses
operadores são, muitas vezes, utilizados por diferentes linhas de teoria da literatura quando do
desenvolvimento do estudo de um texto literário a partir dos princípios e da metodologia que lhes são
pertinentes.
Reunimos, portanto, um conjunto do que consideramos ser os operadores de leitura mais comuns
no que tange ao estudo, análise e interpretação do texto narrativo. Quando necessário, apresentamos as
variantes no que se refere a uma definição ou delimitação conceitual dos mesmos, de modo a oferecer
informações que permitam ao leitor optar pela que lhe parecer mais adequada ou, ainda, mais ajustada às
eventuais exigências práticas quanto à condução do desenvolvimento de estudos sobre o texto narrativo.

O GÊNERO NARRATIVO

É já um lugar-comum a divisão da narrativa em três grandes blocos articulados em torno do conceito


de conflito dramático, ou intriga, nos termos de Tomachevski (1976), cada um correspondente ao que
poderíamos classificar como movimentos próprios ao gênero, a saber: Introdução, Desenvolvimento e
Conclusão.
Uso o termo movimentos porque me parece melhor do que outro qualquer que sugira ou
pressuponha uma ordem fixa a partir da qual a Introdução, o Desenvolvimento e a Conclusão devam aparecer.
A própria experiência de leitura demonstra que tais movimentos apresentam uma grande variabilidade
no que se refere à ordem de sua posição nos textos. A conclusão, por exemplo, pode ser antecipada à
introdução e ao desenvolvimento – fato comum a muitas das narrativas policiais, de mistério, de terror e
de suspense que se marcam, desse modo, por um início in ultima res, isto é, que corresponde ao desfecho.
O desenvolvimento pode prescindir de introdução e de conclusão, como ocorre, por exemplo, em certos
contos e romances modernos cuja leitura nos exige uma mudança em nossos hábitos de leitura e
recepção do texto literário. E, por fim, vale lembrar que era uma convenção da poesia épica greco-latina
iniciar a narrativa in media res, ou seja, apresentando ao leitor um acontecimento adiantado da história
que, depois, era esclarecido com a apresentação do que ocorrera antes.
Embora pareça ponto pacífico, há divergências quanto a essa divisão da narrativa em três blocos.
Introdução, Desenvolvimento e Conclusão do quê? Da história, dirão alguns. Da narrativa, rebaterão
outros. Do texto, dirão outros ainda, já acrescentando que qualquer texto pode ser assim dividido e que,
portanto, tal divisão não é traço característico da narrativa. Qual seria a especificidade da narrativa, então?
Eis a questão que é preciso tentar responder, mesmo sabendo que a resposta é sempre precária.
A especificidade da narrativa parece ser o tratamento conferido ao conflito dramático que lhe é
intrínseco. Sem conflito dramático, não há narrativa, mas ele não é um dado exclusivo da narrativa.
Está aí, há séculos, a poesia lírica para comprovar isso. E, além disso, a presença de conflito
dramático também em relatos – aliás, muito comum – confirma o que afirmamos.
A identificação do conflito dramático é, no entanto, fundamental para que se possa estabelecer
um estudo detalhado da narrativa na qual ele se manifesta – o que já se apresenta como uma pista
metodológica: identificá-lo, voltar a ele quantas vezes for necessário para pensar a história narrada
pelo texto que se está analisando, notar que a partir e/ou em torno dele circula uma série de
elementos que são passíveis de decomposição pela análise descritiva e passíveis de re-união – operada
sempre com algum distanciamento crítico – pela análise interpretativa.
Note-se que a distinção entre análise descritiva e análise interpretativa é, para o que aqui nos
interessa, um recurso didático. A análise descritiva é aquela voltada para a decomposição do texto em
elementos menores que o constituem e o fazem pertencer a um determinado gênero literário. Tal
decomposição do texto em elementos menores é, por assim dizer, algo como uma dissecação do texto
de modo a facultar a compreensão e a classificação das partes que o constituem. A análise interpretativa,
por sua vez, volta-se para a compreensão das possíveis relações de sentido que se estabelecem entre tais
elementos que constituem o todo textual e, também, para a compreensão das possíveis relações de
sentido que se estabelecem entre a ordem que preside a organização de tais elementos sob a forma de
texto e a história ali narrada. Além disso, a análise interpretativa também diz respeito às relações entre o
texto e o seu leitor, o texto e o seu autor, o texto e a escola literária à qual se vincula e com a qual
dialoga, o texto e a sociedade, o texto e a História etc.
A distinção entre a história narrada e o texto no qual ela se manifesta é fundamental. É preciso
levá-la sempre em consideração, pois não basta “extrair’’, após a leitura, a história narrada do texto
que a veicula. No caso da narrativa literária, os dois aspectos estão sempre intimamente vinculados e
exigem igual atenção do leitor. É necessário observar, analisar, interpretar e avaliar criticamente tanto
a história que o texto narra como o modo pelo qual a narra. Isso exige uma atenção para a própria
composição do texto, para o modo como os recursos lingüísticos e os demais elementos
constitutivos da narrativa estão, ali, organizados de modo particular.
O tratamento conferido ao conflito dramático pode ser o fator de distinção entre o que é, num
determinado momento histórico, considerado literatura e o que não é considerado literatura, entre o
que é reconhecido como um tratamento literário dado a uma história e o que não chega a sê-lo.
Compare os dois textos abaixo:

Assassinato na Rua da Tragédia brasileira


Constituição Manuel Bandeira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.


O funcionário do Conheceu Maria Elvira na Lapa - prostituída, com sífilis, dermite nos
Ministério da Fazenda, Misael, 63, dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
matou a tiros a ex-prostituta Maria Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio,
E l vir a , co m q u e m v i vi a h á t r ês pagou médico, dentista, manicura...
ano s. O crime o co rreu n a rua da Dava tudo quanto ela queria.

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Constituição, Rio de Janeiro, Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um
motivado, ao que parece, por uma namorado.
série de traições da mulher. Ao que Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma
tudo indica, os amantes mudavam- facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
se de bairro toda vez que Misael,
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava
avesso a escândalos, descobria uma de casa.
traição de Maria Elvira. A polícia Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General
encontrou a vítima em decúbito Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de
dorsal, com marcas de seis tiros no Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos
corpo os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim, na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos
Quadro 1. O texto jornalístico e o texto literário.
e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída
em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
Quadro 1. O texto jornalístico e o texto literário.

Note que os dois textos narram a mesma história: uma mulher foi assassinada a tiros por um
homem que era traído por ela. No entanto, os efeitos que cada um dos textos suscita no leitor são
diferentes, e isso afeta a própria história narrada em cada um deles.
O primeiro texto se caracteriza como uma notícia de jornal, marcando-se pela minimização do
conflito dramático estabelecido entre os amantes e, também, pelo esforço de redução do grau de
ambigüidade em favor da objetividade jornalística no registro dos fatos. O segundo caracteriza-se
como uma narrativa literária, marcando-se pela exploração do conflito dramático de modo a suscitar
e manter o interesse do leitor e, também, pelo maior grau de ambigüidade que atribui a
determinados fatos e/ou elementos da história.
No texto de Manuel Bandeira, a história de amor, ciúme, traição e morte que une Misael e
Maria Elvira recebe um tratamento que torna dramático o conflito que os une (Amor x Traição).
Note que uma série de informações, consideradas de menor importância para o relato jornalístico do
fato, são muito importantes para a criação da expectativa e para a manutenção do interesse do leitor
no texto de Manuel Bandeira: a descrição do estado físico de Maria Elvira quando Misael a
conheceu; os cuidados que ele dispensou à saúde e à beleza da amante; a relação dos lugares em que
o casal morou, o nome da rua em que o crime ocorreu, a posição do corpo da mulher ao ser
encontrada pela polícia, a cor e o tecido do vestido que ela usava quando foi assassinada, o número
de tiros com que o assassino a matou.
Na narrativa literária, tais detalhes ganham relevância exatamente porque intensificam tanto a
dramaticidade do conflito como o grau de ambigüidade que caracteriza a história narrada – o que faz com
que o texto tenha maior abertura no que se refere às suas possibilidades de interpretação pelo leitor.

OS OPERADORES DE LEITURA DA NARRATIVA

O conjunto de operadores de leitura da narrativa que aqui vamos apresentar foi organizado
principalmente a partir das contribuições de textos de teoria e crítica vinculados basicamente ao
Formalismo Russo e ao New Criticism – não por acaso, linhas teóricas que privilegiam o estudo da
materialidade verbal do texto no desenvolvimento dos estudos literários. De certa forma o Formalismo
Russo e o New Criticism forneceram, dado o seu pioneirismo no que se refere à construção da teoria
literária como uma disciplina pautada por princípios e métodos embasados cientificamente, os
operadores de leitura básicos às demais linhas de teoria literária que se manifestaram no século XX.
Partindo-se das contribuições dos formalistas russos, e complementando-as com as contribuições
de outros teóricos, a narrativa pode ser analisada descritivamente utilizando-se os seguintes conceitos:

FABULA, TRAMA, INTRIGA, ESTÓRIA, ENREDO

A fábula é um conceito que compreende os acontecimentos ou fatos comunicados pela narrativa,


ordenados, lógica e cronologicamente, numa seqüência nem sempre correspondente àquela por

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meio da qual eles são apresentados, no texto, ao leitor. Ela exige do leitor a capacidade de realizar
uma síntese da história narrada. Tal síntese deve ser capaz de abstrair, do texto narrativo, os
elementos fundamentais que compõem a história ali narrada. Isso significa que a fábula deve conter
os dados fundamentais que, de maneira sumária, condensem a introdução, o desenvolvimento e a
conclusão da história narrada, articulados a partir das relações de causalidade (causa-e-
conseqüência):

Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da
obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem
cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual estão dispostos
e introduzidos na obra (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173).

Ao reconstituirmos a fábula de uma história presente em um texto narrativo, organizamos


naturalmente a síntese da história a partir das relações de causa-e-conseqüência que facilitam a sua
compreensão por outras pessoas, sejam as que nos ouvem contar, por exemplo, a história de um
romance, de um filme, de um conto, de uma novela de televisão em poucas palavras, sejam as que
venham a ler os textos nos quais analisamos e interpretamos um texto narrativo.
A trama é um conceito que corresponde ao modo como a história narrada é organizada sob a
forma de texto, ou seja, ela é a própria construção do texto narrativo, sua “arquitetura”. Tomachevski
define a diferença entre fábula e trama nos seguintes termos:

A fábula opõe-se à trama que é constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita sua ordem de
aparição na obra e a seqüência das informações que se nos destinam. [...] Na realidade, a fábula é o que se
passou; a trama é como o leitor toma conhecimento [do que se passou] (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173).

A trama de uma narrativa revela, ao ser identificada, o trabalho de criação do escritor, as escolhas
textuais que ele fez para contar a história desta ou daquela maneira, criando este ou aquele efeito,
afirmando um determinado conjunto de sentidos possíveis para a interpretação da história por meio
da organização das palavras sob a forma de texto. Isso significa que o(s) sentido(s) e os efeitos
presentes em um texto foram construídos pelo escritor por meio da estruturação, da composição, da
construção daquele mesmo texto de um modo determinado (aquele ali objetivamente registrado pela
escrita sob a forma de texto, e não outro), cuja especificidade deve ser levada em consideração. O
leitor deve, portanto, aprender a construir a sua leitura (análise descritiva + análise interpretativa) a
partir do conjunto de possibilidades que o texto, organizado de modo singular, oferece.
A trama, diferentemente da fábula, não é passível de síntese. Ela é identificada quando o leitor
investiga e define as relações que unem os diversos elementos que, articulados pela escrita,
compõem o texto narrativo.
O conceito de intriga difere dos de fábula e trama, embora seja intrinsecamente vinculado a eles.
A intriga diz respeito ao conflito de interesses que caracteriza a luta dos personagens numa
determinada narrativa. Tomachevski nos dá a seguinte definição de intriga:

O desenvolvimento da ação, o conjunto de motivos que a caracterizam chama-se intriga [...] O


desenvolvimento da intriga (ou, no caso de um reagrupamento complexo de personagens, o
desenvolvimento das intrigas paralelas), conduz ao desaparecimento do conflito ou à criação de novos
conflitos (TOMACHEVSKI, 1976, p. 177).

A in t rig a e stá r el ac io n ad a, p o r ta nto , co m a no ç ão d e co n f li to d r a mát ico a


partir das ações das personagens – elementos esses (ação; personagem), que se vinculam à noção de
motivo, definido por Tomachevski (1976) como “unidade temática mínima” e obtido quando, num
processo analítico, a obra é decomposta em partes caracterizadas por uma unidade temática
específica: TEMA E UNIDADE TEMÁTICA (MOTIVO)
A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da obra. A obra inteira pode ser seu tema,
ao mesmo tempo que cada parte da obra. A decomposição da obra consiste em isolar suas partes
caracterizadas por uma unidade temática específica. [...] Através desta decomposição da obra em unidades
temáticas, chegamos enfim às partes indecompostas, até às pequenas partículas do material temático: “A

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noite caiu”; “Raskolnikov matou a velha”, “o herói morreu”, “uma carta chegou”, etc. O tema desta parte
indecomposta da obra chama-se [...] motivo. No fundo, cada proposição possui seu próprio motivo. [...]

Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático da obra. Nesta perspectiva, a fábula aparece
como o conjunto dos motivos em sua sucessão cronológica de causa e efeito; a trama aparece como o
conjunto destes mesmos motivos, mas na sucessão em que surge dentro da obra (TOMACHEVSKI, 1976,
p. 174).

Os conceitos de fábula e trama encontram, de certa forma, correspondentes nos conceitos de


estória (story) e enredo (plot), disseminados a partir dos estudos de Forster (1974) e do New Criticism
norte-americano. Tal correspondência é, a rigor, imperfeita e, no limite, inadequada. No entanto, é
comum encontrarmos textos em que os termos estória e enredo estabelecem um contraste semelhante
àquele estabelecido entre a fábula e a trama. O conceito de estória é utilizado tanto para identificar a
história narrada pelo texto narrativo como, muitas vezes, para identificar a síntese de tal história. O
conceito de enredo foi originalmente criado para identificar o modo como uma história é construída
por meio de palavras e, portanto, organizada sob a forma de texto. Nesse sentido, ele corresponde,
de fato, ao conceito de trama utilizado pelos formalistas russos. No entanto, devido à sua larga e nem
sempre rigorosa utilização, vamos, por vezes, encontrá-lo em textos que contradizem esse sentido
original, a saber: a) como termo que identifica a história narrada pelo texto narrativo; b) como termo
que identifica a síntese da história narrada pelo texto narrativo; c) como termo que identifica a
temática e/ou o gênero que caracteriza a história narrada pelo texto narrativo. É preciso tomar
cuidado com tais empregos, pois eles deixam escapar um dos traços essenciais da obra literária: a sua
construção.
No quadro abaixo, construído a partir das contribuições de Lodge (1996, p. 4) e Aguiar e Silva
(1988, p. 711-712), apresentamos alguns dos termos utilizados por diversos autores e/ou linhas
teóricas para diferenciar esses dois planos da narrativa. Embora redutor, este quadro visa a
estabelecer correspondências entre a terminologia teórica utilizada para distinguir a história narrada
do modo como ela é construída sob a forma de texto.

Teoria/autor História narrada História construída


Formalistas russos fábula trama
New Criticism (Forster) story plot
T. Todorov história discurso
G. Genette história (ou diegese) narração
Jean Ricardou ficção narração
Roland Barthes récit narração
Grupo µ narrativa propriamente dita discurso narrativo
Claude Bremond récit raconté récit racontant
Seymour Chatman história discurso
Quadro 2. Terminologia teórica.

Destaque-se o fato de que Genette (1979) estabelece, na verdade, uma distinção tríplice, e não
binária, entre história narrada e história construída. Segundo Lodge,

ele dividiu o discurso narrativo em texto mesmo (récit/narrativa) e no ato de narrar, o qual produz o texto
(narração). Isso ajuda a definir subcategorias de narrativa técnica mais delicadas, mas não afeta a oposição
fundamental entre História e Discurso. Ele também, às vezes, usa o termo “diegese” ao invés de histoire e
isso pode ser fonte de confusão. (Em Genette, Narrative Discourse, 1980, onde histoire é traduzida como
história, récit como narrativa e narration como narrração) (1996, p. 4-5).

Para o que aqui nos interessa, o termo diegese, muito disseminado, corresponderá à noção de
fábula, de história narrada; o termo discurso, à noção de trama, de história construída. Veja-se o
quadro abaixo:
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Narrativa Formalismo Russo New Criticism Narratologia
história narrada fábula estória (story) diegese
história construída trama enredo (plot) discurso narrativo ou narração
Quadro 3. Os termos diegese e discurso.

A PERSONAGEM E SUAS CLASSIFICAÇÕES

A personagem é um dos principais elementos constitutivos da narrativa. É sobre ela que recai,
normalmente, a maior atenção dispensada pelo leitor, dada a ilusão de semelhança que tal
elemento cria com a noção de pessoa. O que é uma personagem? Um ser construído por meio
de signos verbais, no caso do texto narrativo escrito, e de signos verbi-voco-visuais, no caso de
textos de natureza híbrida como as peças de teatro, os filmes, as novelas de televisão etc. As
personagens são, portanto, representações dos seres que movimentam a narrativa por meio de
suas ações e/ou estados.
As personagens podem ser classificadas a partir de dois critérios: a) segundo o seu grau de
importância para o desenvolvimento do conflito dramático presente na história narrada pelo texto
narrativo; b) segundo o seu grau de densidade psicológica. As tabelas abaixo apresentam a
classificação das personagens segundo esses dois critérios.

A personagem é classificada como principal quando suas ações são fundamentais


para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático. Geralmente,
Principal desempenha a função de herói na narrativa, reivindicando para si a atenção e o
interesse do leitor. Não é incomum que um mesmo texto apresente mais de uma
personagem principal.
A personagem é classificada como secundária quando suas ações não são fundamentais
para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático. Geralmente,
desempenha uma função subalterna, atraindo menos a atenção e o interesse do leitor.
Secundária Pode acontecer, no entanto, de a personagem secundária revelar-se, por um artifício do
enredo ou por uma reviravolta nos acontecimentos da história, fundamental para o
desenvolvimento do conflito dramático presente na narrativa.
Quadro 4: Classificação da personagem por sua importância no conflito dramático.

Personagem Tipo é aquela cuja identificação se dá, normalmente, por


meio de determinada categoria social. A enfermeira, o pirata, o
criminoso, o açougueiro, a adolescente, o estudante... são alguns dos
possíveis exemplos. Se a personagem é caracterizada a partir de uma
Plana é aquela que apresenta categoria social e se suas ações correspondem previsivelmente a tal
baixo grau de densidade categoria, confirmando os valores que socialmente lhe são atribuídos,
psicológica. Em geral, tal estamos diante de uma personagem tipo.
personagem marca-se por uma
Personagem Estereótipo é aquela cuja identificação se dá por meio da
linearidade no que se refere à acumulação excessiva de signos que caracterizam determinada categoria
relação entre os atributos que social. Exemplos: o pirata com perna de pau, olho de vidro, cara de mau,
caracterizam o seu ser (a sua barba por fazer, brinco de argola, lenço na cabeça, gancho na mão,
psicologia) e o seu fazer (as chapéu preto com caveira, papagaio no ombro, bebedor de rum etc; a
suas ações) (FORSTER, 1974). enfermeira de roupa, sapatos e touca brancos, cabelo preso, unhas
Tal classificação inclui dois curtas, bijuterias, relógio e maquilagem discretos, prancheta na mão,
c a ne t a e t er mô me t ro no bo ls o d a c a mis a ou do a v en t al et c. A
subtipos: a personagem tipo e a personagem estereótipo é, pois, uma cristalização máxima dos lugares-
personagem estereótipo. comuns e dos valores socialmente atribuídos às diversas categorias
sociais. Pode-se dizer que, no texto literário, sua psicologia e suas ações
são como que determinadas pela categoria social à qual pertence – fato
normalmente construído por meio da descrição dos seus atributos
físicos e de seu figurino.

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Plana com tendência a redonda é aquela que apresenta um grau mediano de densidade psicológica, ou
seja, embora se marque por uma linearidade predominante no que se refere à relação entre os atributos que
caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações), tal personagem não se reduz totalmente à
previsibilidade. Isso significa que suas ações podem, ainda que de maneira limitada, contrastar com a sua
caracterização psicológica – o que pode vir a surpreender o leitor (CANDIDO, 1976).
Redonda é aquela que apresenta um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela alinearidade
no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas
ações). Noutros termos: apresenta maior complexidade no que se refere às tensões e contradições que
caracterizam a sua psicologia e as suas ações. Tal personagem é imprevisível, surpreendendo o leitor ao longo
da narrativa, pois representa de modo denso a complexidade, os conflitos e as contradições que caracterizam
a condição humana e, nesse sentido, não é redutível aos limites de uma categoria social (FORSTER, 1974).

Quadro 5. Classificação da personagem segundo o grau de densidade psicológica e suas ações (ser + fazer).

AUTOR, NARRADOR, NARRATÁRIO E FOCALIZAÇÃO

A distinção entre autor e narrador é fundamental para o desenvolvimento do estudo do texto


narrativo a partir de princípios e metodologia científicos. A primeira coisa que se deve saber sobre o
narrador é que ele é uma categoria específica de personagem, e não deve, portanto, ser confundido
com o autor do texto, por mais próximo que pareça estar deste. Autor, para ficarmos com uma
simplificação extrema, é aquele que cria o texto e narrador é uma personagem que se caracteriza pela
função de, num plano interno à própria narrativa, contar a história presente num texto narrativo.
Aguiar e Silva atenta, ainda, para a distinção entre autor empírico, aquele que “possui existência como
ser biológico e jurídico-social”, e autor textual, aquele que

existe no âmbito de um determinado texto literário, como uma entidade ficcional que tem a função de
enunciador do texto e que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores deste mesmo texto. [...] é o
emissor que assume imediata e especificamente a responsabilidade da enunciação de um dado texto
literário e que se manifesta sob a forma e a função de um eu oculta ou explicitamente presente e actuante
no enunciado, isto é, no próprio texto literário (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 227-228).

É comum que o narrador seja classificado a partir da pessoa do discurso que utiliza para narrar e,
também, segundo o seu grau de participação na história narrada. Embora relevantes, tais critérios são
insuficientes para o estudo da complexidade e da importância (estética, ideológica etc.) que o
narrador assume na narrativa.
Uma possível classificação do narrador segundo os critérios anteriormente citados estabelece
uma relação entre a pessoa do discurso utilizada para narrar e o grau de participação do narrador na
história que narra. Assim, o narrador que utiliza a 1ª pessoa do discurso (Eu/Nós) seria classificado
como narrador participante, já que a 1ª pessoa evidenciaria a sua participação na história narrada. Por
sua vez, o narrador que utiliza a 3ª pessoa do discurso (Ele/Eles) seria classificado como narrador
observador, pois a 3ª pessoa evidenciaria o seu distanciamento em relação à história narrada. Além
disso, a dicotomia narrador participante/ narrador observador, muito disseminada nos Ensinos
Fundamental e Médio, parece ter origem nos conceitos de narrador-personagem e narrador-observador
propostos, a partir da leitura de Greimas, por Siqueira (1992).
Tal classificação requer, no entanto, uma boa dose de rigor no que se refere à sua utilização. Não se
Pode estabelecer uma relação direta entre o uso da 1ª ou da 3ª pessoas do discurso e o grau de participação
do narrador na história que narra. É possível imaginar, por exemplo, que a testemunha que conta em um
tribunal um crime que presenciou deva elaborar a sua história valendo-se da 1ª pessoa do discurso. Tal
testemunha terá de contar aos presentes algo que viveu (presenciar um crime), mas não na condição de
protagonista (posição necessariamente ocupada pelo réu e pela vítima). Desse modo, tal testemunha será
um narrador que narra em 1ª pessoa, mas não participa da história narrada, senão numa posição
secundária, periférica ou, mesmo, neutra no que se refere à constituição e ao desenvolvimento do
conflito dramático da história narrada. Do mesmo modo, pode-se imaginar que um cientista narre o
conjunto de estudos e experiências que realizou durante o desenvolvimento de uma pesquisa, valendo-se

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da 3ª pessoa do discurso. Nesse caso, ele será um narrador que participa fundamentalmente da história
narrada, embora minimize o seu grau de envolvimento com os fatos que constituem tal história,
privilegiando a apresentação dos fatos que caracterizam a pesquisa, em detrimento de seu alto grau de
envolvimento na realização da mesma. Tais exemplos, embora extremos, servem para nos alertar do
perigo de estabelecer uma relação direta entre a pessoa do discurso utilizada pelo narrador e o seu grau de
participação na história que narra.
Aguiar e Silva lembra-nos de que o narrador cumpre a função de uma voz fundamental no texto
narrativo e que, além disso, é o agente de um processo de focalização que afeta a história narrada:

o texto narrativo implica a mediação de um narrador: a voz do narrador fala sempre no texto narrativo,
apresentando características diferenciadas em conformidade com o estatuto da persona responsável pela
enunciação narrativa, e é ela quem produz, no texto literário narrativo, as outras vozes existentes no texto
[...]. A voz do narrador tem como funções primárias e inderrogáveis uma função de representação, isto é, a
função de produzir intratextualmente o universo diegético – personagens, eventos, etc. –, e uma função de
organização e controle das estruturas do texto narrativo, quer a nível tópico (microestruturas), quer a nível
transtópico (macroestruturas). Como funções secundárias e não necessariamente actualizadas, a voz do
narrador pode desempenhar uma função de interpretação do mundo narrado e pode assumir uma função
de acção neste mesmo mundo (a assunção destas últimas funções repercute-se nas duas primeiras e suscita
problemas de focalização [...] (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 759).

Baseando-se em Genette, Aguiar e Silva apresenta as seguintes classificações do narrador,


que organizamos nos quadros abaixo:

É aquele que “não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese


[história, nota nossa], [...] não participa, por conseguinte, da história narrada.
Heterodiegético [...] Pode manifestar-se como um ‘eu’ explícito ou como um narrador
apagado, de ‘grau zero’” (1988, p. 761).

É aquele que “é co-referencial com uma das personagens da diegese,


participando da história narrada” (1988, p. 761).

Homodiegético Subtipo do narrador homodiegético, o narrador


autodiegético é aquele que “é co-referencial com o
Autodiegético protagonista” (1988, p. 762) da narrativa, narrando
a sua própria história.

Quadro 6. Classificação do narrador a partir de Genette (1979).

Além disso, Aguiar e Silva considera que o narrador “caracteriza-se, ainda, pela sua relação, como
instância produtora do discurso, com o nível da diegese construída pelo seu discurso” (1988, p. 762).
Nesse sentido, o narrador classificar-se-á como:

É aquele que ocupa a posição de narrador de primeiro grau em uma narrativa


Extradiegético primária. Seu “acto narrativo é externo em relação aos eventos narrados naquela
narrativa” (1988, p. 762).

É aquele que ocupa a posição de narrador em uma narrativa secundária


produzida no decurso de uma narrativa primária. Seu ato narrativo é interno em
relação aos eventos narrados naquela narrativa.
Subtipo do narrador intradiegético, o narrador
Intradiegético hipodiegético (ou, na classificação de Genette,
metadiegético) é aquele que “produz uma narrativa que
Hipodiegético se insere na narrativa primária, interrompendo-a,
representando formal e funcionalmente uma narrativa
dentro da narrativa” (1988, p. 763).
Quadro 7. Classificação do narrador segundo o nível da diegese construída pelo seu discurso.

40
Ressalte-se que, para Genette, os níveis da narrativa não são relativos apenas ao narrador, mas à
estrutura arquitetônica, chamemos assim, da narrativa e à posição que todos os personagens, e não
apenas o narrador, ocupam em relação ao evento narrado.
O narratário, segundo Aguiar e Silva, se define como o “destinatário intratextual do discurso narrativo e,
portanto, da história narrada” (1988, p. 698). Ele não é universal, ou seja, não existe necessariamente em
todos os textos narrativos. Manifesta-se preferencialmente naqueles textos em que o narrador é
personalizado, autonomizado, ou seja, nos textos em que a condição de personagem do narrador é posta em
destaque pela diegese, e não naqueles textos em que o narrador apresenta um “grau zero” no que se refere à
diegese e ao discurso narrativo. Aguiar e Silva destaca o fato de que o narratário é “um ‘tu’ intratextualmente
construído e particularizado como entidade ficcional” cuja existência e função “articulam-se com os
diversos níveis da narração que podem ocorrer num texto” (1988, p. 699).
A focalização corresponde, como o próprio nome sugere, à posição adotada pelo narrador para
narrar a história, ao seu ponto de vista. O foco narrativo é um recurso utilizado pelo narrador para
enquadrar a história de um determinado ângulo ou ponto de vista. A referência à visão, aqui, não é
casual. O foco narrativo evidencia o propósito do narrador (e, por extensão, do autor) de mobilizar
intelectual e emocionalmente o leitor, manipulando-o para aderir às idéias e valores que veicula ao
contar a história. Segundo Leite (1985), Friedman estabeleceu oito tipos de foco narrativo, a partir
das seguintes questões:

1) Quem conta a HISTÓRIA? Trata-se de um NARRADOR em primeira pessoa ou em terceira pessoa? de uma
personagem em primeira pessoa? não há ninguém narrando?; 2) de que POSIÇÃO ou ÃNGULO em relação à
HISTÓRIA o NARRADOR conta? (por cima? na periferia? no centro? de frente? Mudando?); 3) que canais de
informação o NARRADOR usa para comunicar a história ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções?
sentimentos? do autor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou uma combinação disso
tudo?); 4) A que DISTÂNCIA ele coloca o leitor da história (próximo? distante? mudando?)? (FRIEDMAN,
1955 apud LEITE, 1985, p. 25).

Antes, porém, de passarmos à apresentação dos oito tipos de foco narrativo identificados por
Friedman, convém estabelecer uma distinção entre cena e sumário – conceitos mobilizados para a
classificação que o autor faz da focalização. Por cena entenda-se a representação do diálogo das
personagens, efetuada por meio do uso do discurso direto; por sumário entenda-se o relato
generalizado ou a simples exposição dos eventos que caracterizam a narrativa, efetuados por meio do
uso do discurso indireto, logo, resumidos, sumarizados. A cena é um recurso que cria um efeito de
proximidade entre o leitor e a história narrada; o sumário, por sua vez, cria um efeito oposto,
demarcando a distância entre o leitor e a história narrada.
Segundo Friedman, o foco narrativo pode ser assim classificado:
1) Autor onisciente intruso – Esse foco narrativo caracteriza o narrador que adota um ponto de vista
divino, para além dos limites de tempo e espaço. Tal narrador cria a impressão de que sabe tudo
da história, das personagens, do encadeamento e do desdobramento das ações e do
desenvolvimento do conflito dramático. Ele usa preferencialmente o sumário, suprimindo ou
minimizando ao máximo a voz das personagens. “Como canais de informação predominam suas
próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus
comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados
com a história narrada” (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 26-27). O narrador que utiliza
esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os fatos narrados, elaborando pausas freqüentes
para a apresentação de sua opinião e de seu posicionamento, seja em relação à história e aos
elementos que a constituem, seja em relação aos comportamentos e/ou valores sociais aos quais a
história narrada faz referência e com os quais dialoga;
2) Narrador onisciente neutro – Esse foco narrativo caracteriza-se pelo uso da 3ª pessoa do discurso.
Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que use a cena para a inserção de diálogos e
para a dinamização da ação e, conseqüentemente, do conflito dramático. Reserva-se,
normalmente, o direito à caracterização das personagens, descrevendo-as e explicando-as para o
leitor. Distingue-se do foco narrativo anterior “pela ausência de instruções e comentários gerais

41
ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora sua presença, interpondo-se entre o
leitor e a HISTÓRIA, seja sempre muito clara” (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 32);
3) “Eu” como testemunha – Esse foco caracteriza um narrador que narra de uma
perspectiva menos exterior em relação ao fato narrado do que os anteriores. Faz uso da 1ª
pessoa do discurso, mas ocupando uma posição secundária e/ou periférica em relação à história
que narra. Isso, no entanto, não impede que possa “observar, desde dentro, os acontecimentos,
e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil” (FRIEDMAN, 1955
apud LEITE, 1985, p. 37). Seu ângulo de visão, entretanto, é
necessariamente limitado. Por situar-se na periferia dos acontecimentos, esse narrador tem
de restringir-se à sua condição de testemunha, ou seja, não sabe de fato senão aquilo que
presenciou, limitando-se a fazer suposições, inferências, deduções etc. daquilo que lhe escapa.
Pode utilizar tanto a cena como o sumário para narrar;
4) Narrador protagonista – Esse foco narrativo caracteriza um narrador que narra necessariamente em
1ª pessoa, limitando-se ao registro de seus pensamentos, percepções e sentimentos. Narra
portanto, de um centro fixo, vinculado necessariamente à sua própria experiência, já que, com o
próprio nome diz, é o protagonista da história narrada. Pode valer-se tanto da cena como do
sumário, aproximando ou distanciando o leitor da história narrada;
5) Onisciência seletiva múltipla – Esse foco narrativo marca-se pela utilização predominante do discurso
indireto-livre. Tal recurso cria um efeito de eliminação da figura do narrador, que é substituída pelo
registro de impressões, percepções, pensamentos, sentimentos, sensações que remetem à mente das
personagens. Como tais percepções, pensamentos, sensações, sentimentos etc. ganham o primeiro plano
da voz narrativa e estão ligados a várias personagens, não há mais um centro fixo como responsável pela
articulação da história narrada, mas uma multiplicidade de ângulos de visão e, conseqüentemente,
múltiplos canais de informação. Há, aqui, um predomínio quase absoluto da cena. Esse foco não deve
ser confundido com o foco narrador onisciente neutro, pois “o autor traduz os pensamentos, percepções
e sentimentos, filtrados pela mente dos personagens, detalhadamente, enquanto o narrador onisciente os
resume depois de terem ocorrido” (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 47);
6) Onisciência seletiva – Esse foco narrativo é semelhante ao anterior, mas com a diferença de que se
restringe a uma só personagem. Narra de um centro fixo, seu ângulo é central, e os canais de
informação limitam-se aos pensamentos, sentimentos, percepções, sensações, memória
fantasias, desejos etc., do personagem central, que são apresentados diretamente e sem mediação
ao leitor. Marca-se, como o foco anterior, pelo predomínio do uso do discurso indireto-livre e
não raro, pelo recurso ao fluxo de consciência;
7) Modo dramático – Esse foco caracteriza-se pelo uso exclusivo da cena, logo, pelo predomínio quase
absoluto do discurso direto. A história é narrada a partir do encadeamento de cenas nas quais
somos informados, pelo discurso direto, sobre o que pensam, fazem, sentem e objetivam as
personagens. A história é narrada de um ângulo frontal e fixo – o que cria o efeito de estarmos
presenciando os fatos no momento em que eles acontecem. É o foco que caracteriza o gênero
dramático, o texto de teatro e, de certo modo, o roteiro de cinema e das telenovelas;
8) Câmera – Esse foco é, talvez, a tentativa mais radical de eliminação da presença do autor e,
também, do narrador na narrativa. “Essa categoria serve àquelas narrativas que tentam
transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera arbitrária e
mecanicamente” (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 62). Tal propósito de atingir a
máxima neutralidade no narrar faz, muitas vezes, com que a narrativa seja construída a partir
de fragmentos “soltos” que rompem com a ilusão de continuidade, ‘que é uma das
características mais tradicionais da narrativa. É uma ilusão, no entanto, acreditar que esse foco
narrativo seja de fato neutro. Basta fazer uma comparação com a fotografia ou com o cinema
para percebermos que há, sempre, alguém por trás da câmera, decidindo o ângulo e
selecionando o que deve ou não ser representado. Pense-se, por exemplo, no fotojornalismo,
que nunca é neutro no tratamento que confere à imagens que veicula vinculadas ao texto e aos
interesses do jornal. Vale o mesmo para o telejornalismo.

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OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: não é um fato incomum a utilização de mais de um foco narrativo por um
mesmo narrador. Tal variabilidade caracteriza, por exemplo, muitos romances. No caso da identificação de
mais de um foco narrativo em um texto narrativo, procure observar qual deles é o que predomina sobre os
demais e, também, observar que efeitos de sentido são criados a partir de tal variação de focos.

TEMA, MOTIVOS E MOTIVAÇÃO


Tema – É o assunto central abordado dramaticamente pela narrativa, ou seja, é o assunto que abarca
o conflito dramático nuclear da história narrada pelo texto narrativo. Embora o tema se imponha
pela força que adquire com o desenvolvimento da narrativa, ele pode variar conforme a posição
interpretativa adotada pelo leitor em relação ao conflito dramático. Tal variabilidade depende,
normalmente, do grau de ambigüidade da narrativa. Quanto maior o grau de ambigüidade no tratamento
do conflito dramático da história narrada, maiores serão as possibilidades de definição do tema pelo
leitor;
Motivos – Como já vimos, motivos são subtemas ligados ao tema e vinculados ao desenvolvimento
da história e ao conflito dramático. Definem-se, normalmente, a partir das ações das personagens e,
também, das situações dramáticas apresentadas no desenvolvimento da narrativa. Podem ser essenciais
ao desenvolvimento da história e do conflito dramático e/ou ser acessórios, secundários, não-essenciais
a tal desenvolvimento. No primeiro caso, não podem ser desconsiderados quando do estudo da
motivação que caracteriza uma narrativa;
Motivação – A motivação compreende o conjunto de motivos que, articulados ao tema,
caracterizam o modo como este é trabalhado ao longo da narrativa. Sua identificação e seu estudo
são importantes para que o leitor possa avaliar o posicionamento estético e ideológico do autor em
relação aos assuntos que aborda em seu texto.

NÓ, CLÍMAX, DESFECHO


Nó – É o fato que interrompe o fluxo da situação inicial da narrativa, criando um problema ou
obstáculo que deverá ser resolvido. O nó é o que dá origem ao conflito dramático de uma narrativa. Ele
evidencia que só há uma história a ser contada porque uma crise se instalou em determinada situação,
exigindo que se tente resolvê-la de modo a re-equilibrar o que ela desestabilizou. Isso, no entanto, não
significa necessariamente o retorno à mesma situação inicial, pois, quase sempre, o desenvolvimento do
conflito dramático faz com que a situação de equilíbrio final da história seja diferente da sua situação de
origem;
Clímax – É o elemento que marca o auge do conflito dramático, momento do tudo-ou-nada
entre as forças contrárias que agem e se defrontam na narrativa (geralmente representadas pelas
personagens e pelos valores a elas ligados), engendrando e desenvolvendo a história.
Diferentemente do desfecho, o clímax caracteriza um momento em que a expectativa em relação
à resolução do conflito central da narrativa ignora qual das forças contrárias vencerá. O clímax,
portanto, suspende, mantendo por instantes em tensão máxima, a história contada na narrativa;
Desfecho – É a resolução do conflito central da narrativa, momento em que uma das forças
contrárias vence e se afirma sobre a sua oponente. Normalmente, liga-se à situação final da narrativa.

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:
a) os conceitos de nó, clímax e desfecho não se ligam necessariamente às noções de introdução,
43desenvolvimento e conclusão de uma narrativa. É preciso ter sempre em mente que uma narrativa se compõe
tanto de uma história como de um texto no qual tal história é veiculada. A distinção entre os planos da história
narrada e do texto narrativo que a veicula é importante para evitar confusões perigosas. Não há nada que
obrigue que a introdução, o desenvolvimento e a conclusão da história correspondam à introdução, ao
desenvolvimento e à conclusão do texto narrativo que a veicula. É preciso estar atento a isso para que o
desenvolvimento da leitura (análise + interpretação) do texto narrativo não apresente equívocos ou distorções
no que se refere à identificação de tais elementos e à leitura de sua função e de seu sentido no texto;

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b) assim como uma história não tem necessariamente a obrigação de apresentar uma introdução ou uma
conclusão fechada, podendo prescindir de uma delas ou, mesmo, de ambas, também não tem a obrigação de
apresentar necessariamente os conceitos de nó, clímax e desfecho, podendo prescindir de algum deles;
c) o clímax e o desfecho podem, em certas narrativas, se manifestar simultaneamente, marcando ao
mesmo tempo o auge do conflito e sua resolução.

ESPAÇO, AMBIENTE, AMBIENTAÇÃO

Espaço – O espaço compreende o conjunto de referências de caráter geográfico e/ ou


arquitetônico que identificam o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. Ele se caracteriza,
portanto, como uma referência material marcada pela tridimensionalidade que situa o lugar onde
personagens, situações e ações são realizadas;

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: não é incomum que se encontre, em determinados estudos, o espaço


vinculado aos estados psicológicos da personagem por meio da expressão espaço psicológico. Tal expressão é, a
nosso ver, infeliz, podendo causar problemas e equívocos na leitura do texto narrativo. A psicologia da
personagem, que é normalmente uma representação da psicologia humana, marca-se, como esta, pela noção de
tempo – o que inclui tanto a consciência do presente como os conteúdos da memória e, também, as projeções do
desejo e da fantasia.

Ambiente – O ambiente é o que caracteriza determinada situação dramática em determinado


espaço, ou seja, ele é o resultado de determinado quadro de relações e “jogos de força” estabelecidos,
normalmente, entre as personagens que ocupam determinado espaço na história. O ambiente é, portanto,
o “clima”, a “atmosfera” que se estabelece entre as personagens em determinada situação
dramática. Conforme o conflito dramático se desenvolve a partir das ações das personagens, o
quadro relacional estabelecido entre elas muda, alterando a situação dramática e, portanto, o
ambiente. Um mesmo espaço pode, portanto, apresentar diversos ambientes;
Ambientação – a ambientação compreende a identificação do modo como o ambiente é
construído pelo narrador e, portanto, ela identifica também o trabalho de escrita do autor do texto, as
escolhas que ele faz para construir deste ou daquele modo os ambientes. Lins (1976) define três
tipos de ambientação, a saber:

Franca – é a ambientação produzida por meio do discurso de um narrador heterodiegético ou um narrador


que não participa dos eventos fabulares que narra. Esse narrado r explicita, compõe o ambiente que
caracteriza um espaço e determinada situação dramática. Esse tipo de ambientação é bastante típico nos
romance realistas, onde predominam várias pausas descritivas.

Reflexa – nesse caso, a ambientação é produzida ou composta por meio da focalização de personagem(ns)
que, a partir de sua percepção ou ponto de vista, constrói(em) o ambiente onde se desenvolve a ação. O
termo “ambientação reflexa” já denota essa idéia de que a ambientação é um reflexo do universo de uma ou
mais personagens

Dissimulada ou oblíqua – Nesse caso, o ambiente é construído, por um efeito de sugestão, a partir das
ações da personagem.

Quadro 7. Classificação da ambientação segundo Lins (1976).

TEMPO E RECURSOS DE SUBJETIVAÇÃO DA PERSONAGEM

Com relação ao tempo, parece-nos que uma das mais completas contribuições vem dos estudos
feitos por Genette, que propõe uma distinção básica entre o “tempo da coisa contada e o tempo da
narrativa” (1979, p. 31).
Tanto a diegese (história narrada, fábula) como o discurso narrativo (a narração, história
construída, trama) estão inseridos num fluxo temporal. No entanto, a construção da narrativa

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torna possível a existência de certas distorções temporais que se tornam importantes para o estudo
do texto narrativo. As tabelas abaixo sintetizam as contribuições de Genette (1979) para o estudo
do tempo na narrativa. Por uma questão didática, dividimos os conceitos entre aqueles
pertinentes ao tempo da diegese – que implica os acontecimentos pertinentes à história narrada
e, também, o impacto desses acontecimentos na subjetividade de determinadas personagens,
posta, por vezes, em relevo na narrativa –, e aqueles pertinentes ao tempo da narração ou do
discurso narrativo, que compreende o tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações
apresentadas no discurso narrativo.

Referente à sucessão temporal dos acontecimentos. Pode ser mensurado


Tempo objetivo (cronológico) pela passagem dos dias, das estações do ano, de datas, enfim, por todo
tipo de marcação temporal objetiva.
Vincula-se ao tempo cronológico, mas difere deste porque se trata do tempo
da experiência subjetiva das personagens. Caracteriza, pois, o tempo vívencial
Tempo subjetivo (psicológico) destas, o modo como elas experimentam sensações e emoções no contato
com os fatos objetivos e, também, com suas memórias, fantasias,
expectativas.
Quadro 8. Tempo da diegese (história narrada).

Ordem Narrativa in media res: o discurso narrativo se inicia com a apresentação


Compreende a relação entre a ordem de um acontecimento que pertence ao desenvolvimento da diegese.
A
(disposição) dos acontecimentos da Narrativa in ultima res: o discurso narrativo se inicia com a apresentação
N
diegese (história) e a ordem de de um acontecimento que pertence ao desfecho da diegese.
A
apresentação desses mesmos
C Analepses: recuos no tempo, que permitem a recuperação de fatos
acontecimentos no discurso (história
R passados. Corresponde ao que em linguagem cinematográfica é chamado de
c o n s t r u í d a ) . C o mo a o r d e m d o s
O flashback, mas é anterior, como técnica narrativa, a esse recurso.
acontecimentos na diegese e no
N
discurso raramente coincide, criam-se
I Prolepses: antecipações no tempo, que permitem a anteposição, no plano
anacronias – desencontros entre a ordem
A do discurso, de um fato ou situação que só aparecerá mais tarde no plano da
dos acontecimentos na diegese e a
S diegese. Corresponde ao que, em linguagem cinematográfica, é chamado de
ordem de sua apresentação no discurso
narrativo. flashfoward.

Quadro 9. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações no
discurso narrativo.

Cena: coincidência entre os acontecimentos da diegese e o relato dos mesmos


acontecimentos na narração. Sua marca mais evidente são os diálogos, marcados
Duração pela presença do discurso direto.
Sumário: incongruência entre os acontecimentos da diegese e o relato dos
Trata-se de um mesmos acontecimentos na narração. O narrador resume, em nível de discurso,
desencontro entre a duração os acontecimentos que, na diegese, marcam-se por um tempo longo. Sua marca
dos acontecimentos no mais evidente é a utilização de discurso indireto pelo narrador na apresentação
plano da diegese e a duração resumida dos acontecimentos da diegese.
do relato desses mesmos
acontecimentos no plano Elipse: o narrador exclui determinados acontecimentos da diegese no plano do
do discurso narrativo. As discurso narrativo.
relações de duração
implicam a construção dos Pausa descritiva: o narrador aumenta a temporal idade narrativa por meio da
seguintes e distintos inserção de descrições que “alongam o tempo”, criando, desse modo,
recursos: anisocronias.
Digressão: o narrador introduz comentários no discurso narrativo, fazendo com
que o tempo da diegese pare e o tempo do discurso narrativo (narração) se alongue.
Quadro 10. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações no
discurso narrativo.

45
Narrativa singulativa: é aquela que apresenta igualdade entre o
Freqüência número de acontecimentos da diegese e o número de
apresentações de tais acontecimentos no discurso.
Refere-se à relação quantitativa entre os
Narrativa repetitiva: é aquela que reitera, no plano do discurso
acontecimentos da diegese e o número de vezes
narrativo (narração), um mesmo acontecimento pertinente ao
em que esses acontecimentos são mencionados no
plano da diegese, apresentando-o várias vezes.
discurso narrativo. Dependendo do modo como se
estrutura essa relação, produzem-se os seguinte tipos Narrativa iterativa: é aquela que apresenta uma única vez, no
de narrativa: plano narrativo (narração), um acontecimento que aconteceu
várias vezes no plano da diegese.

Quadro 11. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações no discurso narrativo.

Os recursos de subjetivação da personagem, vinculados ao tempo, dizem respeito a determinados


recursos que se vinculam à construção do tempo psicológico na narrativa. O tempo psicológico corresponde
à organização do tempo interno das personagens, construindo-se a partir do conjunto de referências que
responde pela subjetividade das mesmas (o que inclui o narrador). Não é delimitado nem determinado
pelo tempo físico, embora estabeleça relações com este. Também não é controlado socialmente, ou seja,
corresponde aos afetos, ao imaginário, ao desejo, à fantasia e à memória das personagens. Sua lógica,
nesse sentido, pode prescindir das relações de causa-e-efeito e da necessidade de tudo explicar ao leitor.
Os três recursos de subjetivação intimamente ligados ao tempo psicológico são o monólogo interior, a
análise mental e o fluxo de consciência. Vejamos cada um deles:
a) Monólogo interior – em primeiro lugar, é preciso distinguir monólogo interior de monólogo. Este último é
um recurso característico do gênero dramático (teatro), que pode caracterizar tanto uma cena como
uma peça teatral na qual uma personagem dialoga consigo mesma. O monólogo interior também implica
o diálogo de uma personagem consigo mesma, mas tal processo não se realiza sob a forma de um
solilóquio, e sim sob a forma de um processo mental no qual a personagem questiona a si própria
numa determinada situação dramática. O monólogo interior evidencia, desse modo, que a
personagem está mentalmente dialogando consigo mesma. Isso, sem perder o controle de sua
consciência ou as relações de causalidade que regem a noção usual de lógica presente no cotidiano.
b) Análise mental – trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá vazão
aos seus pensamentos sem perder de vista a sua posição numa dada situação dramática. A
diferença entre a análise mental e o monólogo interior reside no fato de que naquela a
personagem articula algo como uma dupla perspectiva, por meio da qual tanto vivencia como
analisa a sua inserção numa dada situação dramática. Isso, sem perder o controle de sua
consciência ou as relações de causalidade que regem a lógica cotidiana;
c) Fluxo de consciência – trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá
livre curso a tudo o que anima a sua subjetividade, a sua vida psíquica interior: pensamentos,
emoções, idéias, memórias, fantasias, desejos, sensações. Nesse sentido, o fluxo de consciência
cria um efeito de forte perturbação, perda ou, mesmo, abolição das relações de causalidade que
regem a lógica cotidiana e, também, um efeito de perda do controle da consciência pela
personagem. O fluxo de consciência é um recurso utilizado para aproximar maximamente o
leitor da vida interior da personagem, composta por elementos do consciente, do subconsciente e
do inconsciente. Um de seus traços característicos é a fragmentariedade e a dificuldade de avaliar
se as referências e as informações apresentadas pertencem à memória, à imaginação ou à fantasia
da personagem, bem como a imprecisão em relação à natureza real ou fictícia dos fatos narrados;

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:
a) O monólogo interior, a análise mental e o fluxo de consciência são recursos que podem ser utilizados
em um mesmo texto;
b) Os limites entre monólogo interior e fluxo de consciência não são precisos. Um fator de distinção, no
b entanto, reside no fato de que o primeiro não cria o efeito de perda do controle da consciência pela
personagem – traço característico do segundo. É preciso notar, entretanto, que tais recursos podem ser
articulados num mesmo texto. Não é incomum que a partir de uma radicalização do monólogo interior
a personagem passe ao fluxo de consciência.

46
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO NARRATIVO COM BASE NOS OPERADORES DE
LEITURA DA NARRATIVA

Exemplo 1: Leitura, análise e interpretação de “Tragédia brasileira”, de Manuel


Bandeira (1985)
“Tragédia brasileira” é um poema em prosa que integra o livro Estrela da manhã, publicado por
Manuel Bandeira em 1936. O poema em prosa, criado e desenvolvido por poetas simbolistas
franceses como Rimbaud e Mallarmé, funde, como o próprio nome sugere, características da poesia
com características da prosa, e foi particularmente cultivado pelos poetas modernistas brasileiros,
entre as décadas de 20 e 30 do século XX.
O texto narra, com certo humor, uma história de crime passional. Para sermos mais precisos, a
fábula de “Tragédia brasileira” é a seguinte: Um homem de 63 anos conhece uma prostituta em
precárias condições econômicas e de saúde e a leva para viver junto dele. Após bancar a recuperação
da saúde e da beleza da amante, ele passa a ser traído por esta. Avesso a escândalos, decide mudar-se de
bairro cada vez que descobre uma traição da mulher. Após três anos e inúmeras mudanças de
endereço, ele a mata com seis tiros.
As personagens fundamentais do texto são: Misael, Maria Elvira, os namorados de Maria Elvira.
No que se refere ao grau de importância para o desenvolvimento do conflito dramático, as duas
primeiras são principais e as últimas, assim como o médico, o dentista, a manicura e a polícia são
secundárias. Embora o texto não ponha em relevo os namorados, eles, mesmo secundários, são
essenciais para o desenvolvimento do conflito dramático.
No que se refere ao grau de densidade psicológica, as personagens classificam-se da seguinte
maneira:
a) Misael – dependendo da posição interpretativa do leitor, pode ser classificada como plana ou
como plana com tendência a redonda, já que sua reação final (o assassinato) pode ou não ser avaliada
como previsível. De qualquer modo, essa personagem não tem densidade suficiente para ser
considerada redonda;
b) Maria Elvira – no início da narrativa, sua descrição permite que a caracterizemos como plana-
estereótipo, pois caricaturiza a prostituta decadente, doente e miserável. Após a mancebia com
Misael, ela se classifica como plana-tipo, pois deixa de ser uma caricatura da prostituta decadente
para encarnar a promiscuidade e a traição da mulher infiel;
c) Namorados de Maria Elvira, médico, dentista, manicura, polícia – são todas planas-tipo, pois são
definidas por mera identificação de função social.
O narrador de “Tragédia brasileira” usa da 3ª pessoa do discurso para narrar. Ele demonstra ter
conhecimento de toda a história, embora não participe do conflito dramático nem da história
narrada, marcando-se pelo distanciamento em relação a esta. Por apresentar tais características, ele se
classifica como narrador observador.
O foco narrativo adotado pelo narrador é o narrador onisciente neutro. A história é narrada em 3ª
pessoa; o narrador adota uma posição distanciada, de observação dos fatos, o ângulo de visão é global
(onisciência), mas não emite opiniões nem comentários sobre as personagens, a história ou, mesmo,
o temário (conceito que engloba tema e motivos presentes num texto narrativo) que aborda. E, além
disso, não invade a subjetividade das personagens para dizer o que elas pensam, sentem ou
pretendem. Note-se, por fim, que ele dá preferência ao uso de sumário para narrar – o que concentra
o controle da narração na sua voz, privilegiando, pois, a sua perspectiva na abordagem dos fatos.
Tais características do narrador e do foco narrativo, empregados por Manuel Bandeira nesse
texto, reforçam a aproximação de “Tragédia brasileira” com o gênero jornalístico e com o discurso
jurídico, marcando o poema em prosa do poeta modernista pela mistura de gêneros – traço
importante da literatura moderna/modernista. Note-se que o título do texto assemelha-se a uma
manchete de jornal sensacionalista e, também, que, no último parágrafo, a descrição da posição do
corpo faz uso do jargão de policiais e médicos legistas.

47
O conflito dramático (ou intriga) se estabelece entre as duas personagens principais: Misael e Maria
Elvira. Para melhor compreensão do conflito dramático, pode-se fazer um quadro de características
que opõem uma personagem à outra. Vejamos:

Características Misael Maria Elvira


Profissão , Funcionário do Ministério da Prostituta
Fazenda
Idade 63 anos Não definida. O texto sugere que é mais
jovem do que Misael
Estado civil O texto não define, mas sugere O texto não define, mas sugere, por meio da
que é solitário “aliança empenhada”, a existência de um
casamento

Bairro em que mora Estácio (bairro de classe média) Lapa (tradicional bairro de boêmia e
(no início) prostituição quando o texto foi escrito)

Moradia Sobrado Não definida


Características físicas Não definidas No início: doente (sífilis), dermite nos
dedos, dentes arruinados. Depois: bonita

Indumentária Não definida Definida no final: vestido de organdi azul


Ações Tira Maria Elvira da prostituição; Torna-se amante de Misael; recupera a saúde
paga tratamento de saúde, banca e a beleza; satisfaz seus caprichos; trai Misael
todas as vontades dela; muda-se de com outros homens em cada bairro em que
casa a cada traição; mata Maria vão morar; morre assassinada com seis tiros
Elvira com seis tiros
Quadro 12. Personagens que constroem o conflito dramático.

Note-se, a partir de tal quadro, que Misael e Maria Elvira encarnam motivos (unidades temáticas
mínimas) fundamentais para o estabelecimento e o desenvolvimento do conflito dramático, a saber:
Amor (Ciúme) x Infidelidade (Traição). Se o tema deve ser definido de modo a abarcar os pólos
opostos que constituem o conflito dramático, pode-se dizer que o tema de “Tragédia brasileira” é o
crime passional ou a infidelidade. Não se pode afirmar que Maria Elvira seja uma adúltera, pois o
texto deixa claro que ela não era casada com Misael. No entanto, isso não nos impede de reconhecê-
la como traidora, infiel.
Como em toda narrativa há uma íntima relação entre as personagens e os motivos, vejamos quais
são os motivos que as personagens encarnam:

Personagens Motivos (unidades temáticas mínimas)


Misael Velhice, solidão, amor, devoção, paciência, discrição, violência
Maria Elvira Jovialidade, prostituição, miséria, infidelidade, traição, ingratidão
Namorados de Maria Elvira Desejo, sexo
Quadro 13. Personagens e motivos.

Note-se que os motivos da velhice (Misael) e da jovialidade (Maria Elvira) se opõem num
aspecto muito específico, articulando-se com os motivos do desejo e do sexo (namorados), para, nas
entrelinhas, sugerir que Misael não dava conta do desejo de Maria Elvira, não a satisfazia
sexualmente.
Há várias referências espaciais no texto. Isso nos permite classificar os espaços em principal e
secundário, conforme o seu grau de importância para o conflito dramático. Vejamos:
● Espaço principal: Rua da Constituição, pois é nesse local, última moradia dos amantes, que ocorre
o assassinato.

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● Espaços secundários: Lapa, sobrado no Estácio, bairros e ruas do Rio de Janeiro (Rocha, Catete, Rua
General Pedra etc.).
Não há ambiente fixo nessa história. Pode-se deduzir, a partir das ações das personagens
principais, que, na situação inicial, Misael e Maria Elvira vivem em harmonia, mas, a partir do nó,
passam a viver em conflito. Esse conflito marca os diversos espaços, representados no texto pelos
nomes dos bairros e ruas do Rio de Janeiro, com uma tensão crescente, que explode em violência
quando do assassinato. Como o ambiente é definido exclusivamente a partir das ações de Misael e
Maria Elvira, a ambientação classifIca-se como dissimulada.
O nó, elemento que introduz o conflito dramático, ocorre quando Maria Elvira arruma o
primeiro namorado, pois é a partir daí que as sucessivas traições e mudanças de endereço se
realizarão, produzindo um efeito tenso e cômico, este último criado pelo modo como as mudanças
são representadas no texto: por meio de uma enumeração, no penúltimo parágrafo, dos bairros em
que o casal morou. Nesse parágrafo, as reticências finais sugerem que as traições e as mudanças
foram inúmeras, incontáveis – o que também serve para a construção de uma gradação que marca,
progressivamente, o sofrimento amoroso e o esgotamento da paciência de Misael.
Em “Tragédia brasileira”, o clímax e o desfecho manifestam-se quase que simultaneamente, pois o
assassinato de Maria Elvira é, ao mesmo tempo, o auge do conflito entre ela e Misael (Amor-Ciúme
x Traição) e a resolução do mesmo. O ato de matar realizado por Misael marca a sua explosão
emocional; a morte de Maria Elvira acaba com o conflito dramático, resolvendo-o de maneira
trágica. Integra o desfecho a seqüência final descrita pelo narrador, que nos informa que a polícia
encontrou a morta caída de costas, vestida de organdi azul.
Esses últimos detalhes reforçam o traço poético do texto de Manuel Bandeira, já que a partir
deles cria-se uma imagem plástica de forte apelo poético: a imagem da mulher morta, cujo vestido
azul semitransparente de tecido caro, que sedutoramente revelava e ocultava ao mesmo tempo o
corpo, está coberto de sangue. De certa forma, esse detalhe sintetiza, como numa alegoria, toda a
história de crime passional narrada em “Tragédia brasileira”. Acrescente-se a isso o fato de que o
assassinato ocorreu, ironicamente, na Rua da Constituição, que remete às leis e à Justiça que
regulam as relações sociais, proibindo e penalizando o assassinato na nossa sociedade.
Por fim, note-se que o narrador, embora lance mão do foco narrador onisciente neutro, não deixa
de posicionar-se em relação à história que narra. Sutilmente, o modo como a história é construída
revela que ele privilegia Misael em detrimento de Maria Elvira, construindo o texto com
elementos que tendem a influenciar o posicionamento do leitor em relação aos fatos narrados. Isso
é particularmente perceptível no fato de que a ingratidão e a promiscuidade de Maria Elvira são
ressaltadas quando o narrador afirma que, apesar de Misael dar “tudo quanto ela queria” e relevar
as traições, mudando-se de bairro com ela em vez de lhe dar “uma surra, um tiro, uma facada”, a
mulher continuava a arrumar namorados – o que reforça, na personagem, o traço interesseiro. No
entanto, o texto, embora indique, não destaca o fato de que entre os amantes pesa uma diferença
de idade que afeta de modos diferentes o sexo e o desejo. Se a essa diferença associarmos a
diferença de classe social, torna-se menos fácil responder à pergunta: quem, afinal, explora quem
nessa história?

Exemplo 2: Leitura, análise e interpretação de “Um apólogo”, de Machado de Assis


(1975)

Um apólogo
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste
mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que
sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

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– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o
meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida, e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás,
obedecendo ao que eu faço e mando.
– Também os batedores vão atrás do imperador.
– Você, imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o
caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em
casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do
pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando
orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos
de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se
importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e
ativa, como quem sabe o que faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava
resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais do que o
plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou
ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha
espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e
puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da
agulha, perguntou-lhe:
– Ora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância?
Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de
ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete de cabeça grande e não menor experiência,
murmurou à pobre agulha:
– Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí
ficas na caixinha da costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia que me disse, abanando a cabeça: – Também eu
tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

“Um apólogo”, conto de Machado de Assis, apresenta-nos a seguinte fábula: Um narrador conta
a seu professor a história de uma disputa entre uma agulha e uma linha para definir quem era a mais
importante. A agulha provoca a briga, ofendendo a linha. Esta reage, mas, em certo momento, cala-
se e concentra-se no trabalho que ambas, manipuladas por uma costureira, faziam: o vestido de baile
de uma baronesa. A discussão cessa até o dia do baile. Quando a costureira termina os arremates
finais no vestido, a linha humilha a agulha demonstrando-lhe que é ela quem vai ao baile enquanto a
outra voltará para a caixinha de costura. A agulha cala-se e, depois, recebe um conselho de um
alfinete. O professor, ao ouvir tal história, faz um comentário no qual compara-se à agulha. Há,
como se pode ver, duas histórias entrelaçadas no conto de Machado, mas a mais importante é a da
disputa entre a agulha e a linha. Como elas estão animizadas, isto é, apresentando atributos
humanos, estamos diante de um tipo específico de conto: o apólogo (conto maravilhoso
protagonizado por objetos).
O conflito dramático (intriga) do texto pode ser definido de dois modos, complementares:
Insegurança x Autoconfiança ou Trabalho x Parasitismo Social. Podemos definir como tema o
Oportunismo, já que ele é capaz de englobar a totalidade do conflito dramático. Poderíamos,
também, afirmar que o tema é: o Parasitismo Social, que também engloba a totalidade da intriga. Os

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principais motivos ligados ao tema são: a ambição, a inveja, a vingança, a arrogância, a astúcia, a
sobriedade, a esperteza, a tolice, as diferenças sociais, a vaidade.
As personagens que protagonizam o conflito central são a agulha e a linha, por isso classificam-se como
personagens principais. As demais são personagens secundárias, a saber: o alfinete, a costureira, a baronesa, o
narrador e o professor de melancolia. No entanto, note-se que há um paralelismo entre as personagens
protagonistas (agulha e linha) e as personagens secundárias (costureira e baronesa; alunos ordinários e
professor). Esse paralelismo é responsável pela crítica social presente no conto, é o que o faz um texto
que cumpre o compromisso com o Realismo ao qual se vincula Machado de Assis.
O conflito dramático desenvolve-se na casa da baronesa, que é o espaço principal da narrativa. Os
demais espaços, todos secundários, são: a sala de costura, o salão de baile (mera referência) e a
caixinha da costureira. O ambiente dominante no espaço principal é de tensão, conflito, agressividade.
Como só podemos perceber o ambiente por meio das ações das personagens, a ambientação presente
no texto é dissimulada.
O nó ocorre logo no início da narrativa, nas primeiras falas da agulha e da linha, quando a
primeira provoca a segunda, e continua a procurar briga, mesmo com a resposta reservada da outra.
O desenvolvimento do conflito chega ao auge no dia do baile, quando a linha vinga-se da agulha ao
perguntar-lhe quem é que, afinal, vai ao baile. Nesse momento, ocorre o clímax da narrativa, pois o
conflito atinge o seu grau máximo. Note-se, no entanto, que esse clímax liga-se imediatamente ao
desfecho da narrativa: a linha vai ao baile e a agulha, humilhada, ganha um conselho em tom de
repreensão do alfinete de cabeça grande.
O narrador do conto vale-se da 3ª e 1ª pessoas do discurso. Predomina, no entanto, a 3ª pessoa,
no modo como ele organiza a história da agulha e da linha e, por isso, ele classifica-se, nesse caso,
como observador. Quando, no final, o narrador utiliza a 1ª pessoa, incluindo-se na narrativa que nos
conta, ele classifica-se como participante.
O tempo cronológico presente na narrativa é linear, ou seja, organiza-se segundo a concepção
dominante de tempo (passado-presente-futuro), e marca-se por relações de causa-e-conseqüência.
Não se pode dizer que o tempo psicológico tenha destaque nesse texto, já que as personagens principais
são planas e as secundárias são planas-tipo. No entanto, pode-se depreender uma psicologia e um tempo
das ações da linha e da agulha. A linha tem como traço psicológico dominante a paciência – o que faz
com que o tempo psicológico de suas ações marque-se por tal elemento. A agulha, por sua vez, tem
como traço psicológico dominante a agressividade – o que faz com que o tempo psicológico de suas
ações marque-se por tal elemento. Paciência sugere segurança, calma, ritmo comedido; agressividade
sugere, nesse caso, arrogância, irritação, ritmo veloz, insegurança.
As principais figuras de linguagem desse conto são: a personificação (evidente na animização da I

agulha e da linha), a comparação (dedos da costureira – galgos de Diana), a onomatopéia (plic-plic-


plic) e, sobretudo, a ironia (que domina o texto do início ao fim, estabelecendo-se nas falas da agulha
da linha, e, também, na associação entre a posição e o comportamento de ambas e seus
correspondentes na costureira e na baronesa). A sutileza crítica de Machado de Assis fica evidente
quando percebemos que tal associação visa, na verdade, criticar a estrutura socioeconômica e política
da época, baseada numa brutal diferença de classes sociais. O grande parasita social do conto tem
uma presença discretíssima: é a baronesa, que usufrui do trabalho de todas as demais. Desse modo,
pode-se notar que Machado usa de elementos pertinentes ao conto maravilhoso como estratégia
para na verdade, fazer um texto realista.

Exemplo 3: Leitura, análise e interpretação de “domingo no parque”, de Gilberto Gil (in


GÓES, 1982)
domingo no parque

Gilberto Gil

o rei da brincadeira – ê josé


o rei da confusão – ê joão

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um trabalhava na feira – ê josé
outro na construção – ê joão

a semana passada no fim da semana


joão resolveu não brigar
no domingo de tarde saiu apressado
e não foi pra ribeira jogar
capoeira
não foi pra lá
pra ribeira
foi namorar

o josé como sempre no fim da semana


guardou a barraca e sumiu
foi fazer no domingo um passeio no parque
lá perto da boca do rio
foi no parque que ele avistou
juliana
foi que ele viu
juliana na roda com joão
uma rosa e um sorvete na mão
juliana, seu sonho, uma ilusão
juliana e o amigo joão
o espinho da rosa feriu zé
e o sorvete gelou seu coração

o sorvete e a rosa – ê josé


a rosa e o sorvete – ê josé
oi dançando no peito – ê josé
do josé brincalhão – ê josé
o sorvete e a rosa – ê josé
a rosa e o sorvete – ê josé
oi dançando na mente – ê josé
do josé brincalhão – ê josé
juliana girando – oi girando
oi na roda gigante – oi girando
oi na roda gigante – oi girando
o amigo joão – joão

o sorvete é morango – é vermelho


oi girando e a rosa – é vermelha
oi girando girando – olha a faca
olha o sangue na mão – ê josé
juliana no chão – ê josé
outro corpo caído – ê josé
seu amigo joão – ê josé

amanhã não tem feira – ê josé


não tem mais construção – ê joão
não tem mais brincadeira – ê josé
não tem mais confusão – ê joão

domingo no parque é a letra de uma famosa canção tropicalista da música popular brasileira.
Vamos, neste breve estudo, nos ater apenas à narrativa de crime passional que ela encerra.
Um feirante brincalhão mata, por ciúme, um casal de namorados num parque de diversões em
pleno domingo – eis, sinteticamente, a fábula de domingo no parque. Para sermos mais precisos, no

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entanto, organizemos a fábula da seguinte maneira: José, feirante brincalhão, mata a facadas o
capoeirista João e sua namorada Juliana num domingo, em frente à roda gigante de um parque de
diversões.
As personagens do texto são João, José e Juliana. Em relação ao grau de participação no
desenvolvimento do conflito dramático, João e José classificam-se como principais e Juliana como
secundária, já que ela, embora seja essencial para que o triângulo amoroso se configure, não faz mais
do que ocupar a posição de objeto da disputa entre José e João.
Quanto ao grau de densidade psicológica, João e Juliana são planas e José é plana com tendência a
redonda, pois, além de nos surpreender com uma reação violenta motivada pelo ciúme, é a única
personagem cuja psicologia é enfatizada pelo texto, como se pode notar na terceira e na quarta estrofes, em
que uma breve utilização do foco narrativo onisciência seletiva pelo narrador põe em relevo as percepções,
pensamentos e sentimentos dessa personagem diante do casal de namorados que ele vê na roda gigante.
O narrador, em “domingo no parque”, é predominantemente observador, narra em 3ª pessoa, não
participa diretamente do conflito dramático nem da história narrada e não emite opiniões e/ou juízos
sobre a história ou as personagens. Isso confere ao texto um quê de objetividade que o aproxima
levemente do relato jornalístico. O narrador, entretanto, usa de dois focos narrativos para organizar a
sua narrativa: narrador onisciente neutro e onisciência seletiva. O primeiro foco é o que predomina no
texto, enfatizando a neutralidade do narrador e sua distância em relação aos fatos narrados. O
segundo foco manifesta-se na terceira estrofe e nos versos de 1 a 3 da quarta estrofe, aproximando o
leitor da perturbação mental e emocional de José, tomado pelo ciúme diante da visão de João e
Juliana namorando na roda gigante. Note-se:

o sorvete e a rosa – ê josé


a rosa e o sorvete – ê josé
oi dançando no peito – ê josé
do josé brincalhão – ê josé
o sorvete e a rosa – ê josé
a rosa e o sorvete – ê josé
oi dançando na mente – ê josé
do josé brincalhão – ê josé
juliana girando – oi girando
oi na roda gigante – oi girando
oi na roda gigante – oi girando
o amigo joão – joão

o sorvete é morango – é vermelho


oi girando e a rosa – é vermelha
oi girando girando – olha a faca

Nesse trecho, os signos remetem simultaneamente a dados externos e internos, ou seja, aos
detalhes que José vê (os namorados, a roda gigante, a rosa, o sorvete de morango) e ao ciúme que
progressivamente cresce dentro dele. A repetição cria um efeito de circularidade, que tanto marca o
girar dos namorados na roda gigante como a perturbação emocional que mistura amor e ódio ao
ciúme. A ênfase conferida à cor vermelha intensifica o conflito dramático, pois se presta tanto à
simbolização do amor como à simbolização do ódio.
O conflito dramático (intriga) é polarizado por José e João, que protagonizam a rivalidade masculina
no triângulo amoroso que tem Juliana como vértice e objeto de desejo. Essas personagens encarnam
os principais motivos (unidades temáticas mínimas) do texto: Ciúme x Amor.
Há, em princípio, três possibilidades de tema:
a) o ciúme – uma vez que é o motivo que rege as ações de José, o anti-herói da narrativa;
b) a morte – uma vez que é o motivo que se liga tanto às ações de José como ao destino de João e
Juliana;
c) o amor – uma vez que é o motivo que se liga às principais ações das personagens.

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Como o tema se define pela capacidade de abarcar a polaridade que caracteriza o conflito
dramático, também podemos dizer que seja o crime passional. Uma vez definido um tema, as
demais unidades temáticas passam imediatamente à condição de motivos vinculados direta ou
indiretamente a este. Se, por exemplo, o tema definido for o ciúme, o amor, a morte e o ódio
tornam-se os motivos associados a ele.
Os motivos (unidades temáticas mínimas) de domingo no parque são: amor, ódio, rivalidade,
competitividade, agressividade, violência, desejo, delicadeza, carinho, alegria, despreocupação,
fragilidade, descontrole, morte, tristeza. Alguns, como o amor, a violência, a morte, são essenciais
para o desenvolvimento do conflito dramático. Já outros, como a delicadeza e o carinho, que se
vinculam a Juliana e João quando estão namorando, embora importantes, ocupam uma posição
secundária em relação ao desenvolvimento do conflito dramático.
O nó da narrativa ocorre quando José se depara, no parque de diversões, com João e Juliana na
roda gigante e percebe que eles estavam namorando:

foi no parque que ele avistou


juliana
foi que ele viu
juliana na roda com joão
uma rosa e um sorvete na mão
juliana, seu sonho, uma ilusão
juliana e o amigo joão
o espinho da rosa feriu zé
e o sorvete gelou seu coração

Tal visão dá início à reação passional de José, que se desenvolve nas estrofes 4 e 5, explodindo
quando ele puxa a faca e mata João e Juliana – trecho que caracteriza o clímax e o desfecho da narrativa:
olha a faca/ olha o sangue na mão – ê José/ Juliana no chão – ê José / outro corpo caído – ê José/ seu amigo João – ê
José. Note-se que o clímax, momento que caracteriza o auge irresolvido da tensão e das expectativas
geradas pelo conflito dramático, ocorre em olha a faca/ olha o sangue na mão – ê José, ao passo que o
desfecho, que caracteriza a resolução do conflito e seus desdobramentos finais, ocorre nos versos
finais dessa estrofe e na estrofe seguinte:

juliana no chão – ê josé


outro corpo caído – ê josé
seu amigo joão – ê josé
amanhã não tem feira – ê josé
não tem mais construção – ê joão
não tem mais brincadeira – ê josé
não tem mais confusão – ê joão

O tempo cronológico linear é dominante na narrativa. A história é construída com começo, meio e fim,
organizados linearmente, ou seja, mantendo as relações de causa-e-conseqüência naturais entre um
episódio ou ação e seus desdobramentos. Além disso, nota-se uma distância entre o tempo da narração e
o tempo da história narrada, situada num passado em relação àquele que narra (o narrador). Um dado
importante é a referência ao domingo, dia da semana dedicado ao descanso e ao divertimento.
O tempo psicológico, vinculado ao foco onisciência seletiva, faz-se presente com veemência na terceira
e quarta estrofes, que destacam o estado passional de José, criando o efeito de uma máxima
aproximação entre o leitor e a subjetividade da personagem.
O espaço principal é o parque de diversões perto da boca do rio e, nele, a roda gigante é o elemento
mais importante. Há uma referência a outros dois espaços – a feira e a construção –, que são
secundários. A roda gigante passa, no texto, da denotação (referência física) à conotação (referência
simbólica e psicológica). Como isto acontece? Vejamos: ela remete, por associação direta, à capoeira
que João sabe e gosta de lutar, à circulação dos afetos positivos e negativos (amor e ódio) existentes

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no triângulo amoroso, à confusão dos corpos no momento do ataque de José e à própria vertigem de
José em sua crise de ciúme diante da visão do casal de namorados. O texto, por sua vez, reforça isso
ao marcar-se pela circularidade construída por meio de elementos que se repetem nos versos.
O ambiente sofre uma alteração progressiva ao longo da narrativa. Na situação inicial, de
apresentação das personagens (estrofes 1 e 2), é tranqüilo, rotineiro. No parque, antes de José ver o
casal de namorados na roda gigante, é harmônico, alegre. A partir do nó, torna-se tenso, conturbado,
agressivo. Na situação final é melancólico, triste. A ambientação é dissimulada porque os ambientes vão
sendo definidos a partir das ações das personagens, ou seja, são essas ações que definem o “clima”
que se estabelece entre as personagens nas várias situações do texto.
Note-se que o crime passional cometido por José ocorre num espaço cujo ambiente,
normalmente, se marca pela alegria e pela descontração. O ataque com a faca e o assassinato do casal
de namorados destoa do espaço e do ambiente usuais de um parque de diversões.
A dramaticidade do conflito se dá pelo fato de que o crime passional ocorre em pleno domingo, dia
de descanso e de relaxamento das tensões cotidianas, e em frente à roda gigante de um parque de
diversões, que estão usualmente ligados aos motivos de prazer, divertimento, alegria, despreocupação.
Certos detalhes ganharão, no texto, uma dimensão simbólica importante. Os epítetos das
personagens masculinas que denotam características psicológicas habituais contrastam com as ações
que eles desenvolvem no conflito dramático criado pelo triângulo amoroso: José, o rei da brincadeira,
revela-se violento e assassino; João, o rei da confusão, revela-se amoroso e delicado com Juliana, além
de frágil ante a violência de seu rival.
Temos, também, a rosa e o sorvete que Juliana carrega na mão. Além de representarem a relação
amorosa estabelecida entre ela e João, esses elementos já prenunciam, pela cor vermelha que
apresentam ou sugerem, o sangue na mão de José. O sorvete de morango, a rosa e o sangue nos
remetem diretamente ao vermelho, cor que sintetiza o tema e alguns dos motivos importantes da
narrativa: o amor, a paixão, o ciúme, o ódio, a violência, a morte, o crime.
Por fim, destaque-se o fato de que os nomes das personagens começam com (J) e são grafados
em letras minúsculas – o que cria uma identidade entre João, José e Juliana, reforçando os laços de
amor e ódio presentes no triângulo amoroso e, também, demarcando a sua posição social subalterna.
Domingo no parque marcou, juntamente com Alegria, alegria, de Caetano Veloso, o início do
movimento tropicalista na música popular brasileira em 1966-67. A canção de Gilberto Gil caracteriza-se

por sua construção cinematográfica em que, após situar as personagens e descrever o cenário onde a ação se
desenrolará, o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos flashes.
Além de letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas,
evocando realisticamente um parque de diversões (GÓES, 1982, p. 26).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos, neste capítulo, uma síntese dos principais conceitos operatórios para o
desenvolvimento da leitura e da análise do texto narrativo. Demos ênfase a uma abordagem de base
formalista-estruturalista em relação a tal instrumental de leitura em razão da função que, no todo
deste livro, este capítulo pretende cumprir. Destacamos, no entanto, o fato de que tal viés de
abordagem do texto narrativo é apenas um dos muitos possíveis, já que toda teoria pressupõe um
método a partir do qual sua utilização e seus resultados se tornam possíveis. Logo, o leitor
encontrará outros caminhos para o desenvolvimento da análise descritiva e da análise interpretativa
do texto narrativo se buscar informações em outras vertentes de teoria literária.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, V. M. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1988.


BANDEIRA, M. Tragédia brasileira. In: BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar,
1985
FORSTER. E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1974.

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GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1979.
GÓES, F. Literatura comentada: Gilberto Gil. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.
LINS, O. O espaço romanesco em Lima Barreto. São Paulo: Ática, 1976.
LODGE, D. A forma na ficção: guia de métodos analíticos e terminologia. Tradução Maria Ângela Aguiar.
Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUC-RS – Série Traduções, Porto Alegre, v. 2, n. 1, 1996.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Um apólogo. In MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos. Rio de Janeiro: Agir,
1975, p. 100-103.
CANDIDO, A. A personagem do romance. In: ROSENFELD, A. et al. A personagem de ficção. 5 ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976, p. 53-80.
SIQUEIRA, J. H. S. Organização textual da narrativa. São Paulo: Selinunte, 1992.
TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura: os formalistas russos. Porto
Alegre: Globo, 1976, p. 169-204.

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