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INTRODUÇÃO
A
SÃO JOÃO DA CRUZ
O escritor, os escritos, o sistema

por

Federico Ruiz Salvador, O.C.D.

traduzido por Frei Antônio João Perim, o.c.d.

Solenidade de Nossa Senhora do Carmo


São Paulo 2007

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Centenário
Aqui Duruelo 1568

Nesta humilde casa de campo, João da Cruz inicia uma grande


aventura espiritual, que tem por meta embarcar também a seguidores
incondicionais: quem tiver ânimo venha comigo ao deserto de Castela.
Pensei que tinha ouvido sua voz afável e desafiadora, e venho com a
intenção de reviver a sua experiência e refazer de maneira definitiva a
primeira etapa de uma vida nova.
Deserto de folha parda e terra cinza: carvalhos, pardos carvalhos.
Os mesmos de outrora, o mesmo silêncio, o mesmo pó. O ábrego, e sua
fúria, te-lo-ia levado, rodando e voando, até Gimialcón ou Peñaranda;
e o aqui-lão invernal empurrou-o novamente até os campos de
Duruelo. É hoje o mesmo pisado por seus pés descalços.
Há quatrocentos anos. Poderiam ser trezentos e vinte. Porém o
espírito capta melhor quando o número é redondo, cíclico; então
alcança a reali-dade antiga sem mediação nem distância. Hoje tornou-
se sensível e disposto a reconsiderar o tema de sua adesão total a uma
velha causa. Sente que no empreendimento calado e solitário de São
João da Cruz se alicerça o rumo que como seus seguidores quisemos
dar a nossa vida.
Um frade jovem que inaugura sem cronista ou fotógrafo,
movimenta-se por estas terras por anos, oculto e benfeitor. Entrega-se a
Deus, total-mente em cada ato. Realiza uma história vertical,
atualíssima, onde cada instante e vivido em sua relação eterna. Nós que
olhamos tanto para o futuro vamos compreendê-lo? Já não sabemos
viver o gesto religioso em atitude humilde e transcendente. A
inauguração e também a vida toda são poses diante do fotógrafo e dos
que virão.
Peregrino de Castela, João, homem de fé, teu centenário chega num
momento urgente. Mais de um amigo fazer-te-á suas confidências neste
ano de fé: não venho em busco de solidão, afastamento do mundo,
devo-ção sensível, programa ascético; busco a Deus ansiosamente, pois
não o sinto, ou sinto-me sem ideal; entre atividades santas, boas obras,
usos e abusos, rezas corridas, Deus esta escapando de mim. O mundo

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que trago dentro arranca-O de mim. Sempre trabalhando por ele e por
sua causa, movendo-me no sagrado, e terminarei ateu com o evangelho
nas mãos.
Dizes, João, que a fé é obscura; porém não tanto como nos cabe
hoje vivê-la. A noite do mundo lançou sobre a Igreja um vendaval
endiabrado, que apaga todas as luzes. Somos sombras errantes, que se
chocam entre si ou se distanciam, mastigando trevas, buscando luz.
- Homens de pouca fé, porque tendes medo?
- Porque há motivos para isso, responde o coração...
«Apoiado em tua voz, como num cajado
que sem raiz floresce e com sua rosa
me fita a esperança, vou ansioso
de minha noite a tua aurora...»
Depois de tudo é a fé escura nossa única luz; e a grave escuridão
que padecemos não é fruto da pouca fé que ainda nos resta, mas da
muita que nos falta. Em fé e amor esperava João, e Deus dignou-se
chegar com a fa-ce descoberta até a soleira de sua consciência.
Busca-o e espera-o em fé e amor, no caminho por onde ele vem ao
teu encontro. « Que te aproveita dares a Deus uma coisa, se Ele espera
de ti outra? Considera o que Deus vai querer e faze-o, que com isso vai
satis-fazer-se melhor o teu coração do que com o que mais te agrada
(Aviso 72). Fazemos muitas coisas e mesmo assim caminhamos
insatisfeitos, e, talvez, Ele descontente. Será que não nos pede outra
coisa? Duruelo, quase abandonado, é sinal fatídico de que uma parte
do velho ideal hoje não encontra eco.
O porvir do Carmelo, como o da Igreja, está por fazer-se, e não só
por vir.

Duruelo 1968.

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INTRODUÇÃO
Pode sair-se hoje pelas ruas com uma mensagem mística no coração
e na mão? São João da Cruz enfrenta um público desconhecido e difícil.
O estilo novo prefere falar em termos de mudança radical e de
contras-te: antes do evangelho, a lei; depois do evangelho, o amor; antes
do Concí-lio Vaticano II o amor de Deus; depois do concílio, o amor do
homem e do mundo.
A mensagem de salvação, sempre válida e atual, acha-se num
período de dilatação: que todos os homens caibam, com muita ou pouca
ou nenhu-ma fé, dentro do âmbito da redenção. Imbuído nesse afã, passa
para o segundo plano a vivência do mistério divino em profundidade e
logra pa-recer um luxo supérfluo a santidade cristã.
Até o menos informado sabe dizer corretamente «sinais dos tempos».
E pensa na indústria onipotente, na publicidade, no divismo, na
consciência coletiva. O homem vive envolto neles, e Deus fala-lhe
através desses sinais, no meio desse barulho, da luta entre ateísmo e
antiteísmo, dos nobres esforços para transformar a superfície da terra. O
olhar do homem moderno procura sinais horizontais na superfície.
Parece inútil, nessas condições, programar lavores de profundidade
cristã, trabalhos de ourivesaria espiritual.
Mesmo assim, São João da Cruz entra pela porta principal no mundo
atual. É pessoalmente convidado, requerido pela sede inapagável do
cora-ção humano. Não será também um sinal dos tempos a brisa suave,
esse anseio por interioridade e profundidade que invade as almas
generosas e também os menos esforçados? Sentimos que Deus nos fala
não só por vozes altas e gritos, mas também com o silêncio da fé
obscura, que alguns não entendem e até chegam a pensar que Deus
«morreu».
É sinal eloqüente dos tempos a ânsia de que estamos imbuídos. Can-
sam-se os bons e os maus, não de ser maus ou bons, mas de serem ho-
mens. Descobriram espaços, regiões desconhecidas, e se movem por
eles com liberdade e domínio. Porém é sempre mundo, este pobre
mundo, com seu clima de humanidade e seu ar confinado. Estamos
cansados de ser homens, somente homens.
As idéias também não tiram o coração humano de apuros. «Após

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diver-sos anos de contínua e ubertosa criação intelectual, e tendo-se
esperado tu-do dela, o começa a não saber o que fazer com as idéias»
(Ortega y Gas-set). Falta ainda transformar a vida.
A espiritualidade, tão necessitada, por outro lado, de tocar terra e
imbuir-se do mundo, aspira constantemente a uma experiência imediata
de Deus. Esta geração sensitiva é renitente às noções e às figuras, mas
não ao mundo divino.
Viramo-nos para todos os lados, com o olhar angustiado dos
náufragos, em busca de homens e obras onde palpite a vida, onde o
espírito possa respirar ar puro. Dentro de uma salvação ampla onde
todos possam caber, anelamos o aproveitamento intenso e matizado da
vida divina, levada à máxima potencialidade de si mesma. Como
realizam-na as almas que converteram o mistério do amor de Cristo no
centro único da própria existência.
São João da Cruz é chamado por essa humanidade, amigo do
concreto e do vital, por outros motivos que a simples «curiosidade»
mística. Senti-mos a terrível afinidade do seu viver com o nosso.
Oferece à nossa situação conteúdo interessante: diagnostica, interpreta,
soluciona desde o interior os afãs em que estamos mergulhados. Teve
João da Cruz uma vida feita de luz e de sombras, de contrastes,
clarividência, e dura labuta. Procurou a Deus com todos os sentidos, a
este Deus incômodo, pelo caminho longo e escuro da noite da fé. É o
mais breve e seguro, para não dizer o único.
Com visão enérgica do mistério divino e humano e um programa de
vida austero, São João da Cruz não tem nada que temer diante do mundo
contemporâneo.. Os melhores vão recebê-lo com simpatia. Experiência
repetidas demonstram que os espíritos espertos não pretendem coisas
fáceis, mas aderentes e substanciosas, isto é, que se apeguem à vida con-
creta e que valham a pena.
É místico e contemplativo (ele não tem culpa se a ignorância tenha
sujado posteriormente esses títulos eminentemente cristãos). Escolhe
sua vocação, melhor, dizendo, acolhe-a. Um homem genial, que
humildemente ocupa o seu lugar na história da humanidade com esta
simples justificação: aqui estou, porque Deus me colocou a seu serviço
numa vida de esforço constante e de retiro; Deus pode fazê-lo, pois o
mundo todo lhe pertence; dirão os ativistas que sou inútil, porém não

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está ao meu alcance fazer algo diferente.
Arrisca a vida e os valores humanos pelo Deus de sua fé e do seu
mis-ticismo. Numa só cartada. Recorda a figura bíblica do Patriarca
temeroso que, ao ter de sacrificar o filho, pensa nos interesses divinos.
Se mato o meu filho, quem vai povoar a terra de crentes, de servidores
vossos? João teve de atravessar uma provação longa e dolorosa,
disposto a dar tudo.
Mas logo constata que Deus não quer a morte. Escreve a uma
confidente atribulada: «Convém que não nos falte a cruz, como ao nosso
Amado, até a morte de amor... Mas tudo é breve; que é até levantar a
faca, e logo Isaac fica vivo, com promessa do filho multiplicado» (Carta
10). Ele mes-mo pode comprovar isso, pois recebe mil vantagens como
fruto de suas renúncias. Deixou tudo, preferindo ser santo; e o resultado
foi também o de um grande homem, pensador e artista.
Nós queremos um São João da Cruz assim. Possui, como doutor e
como santo, uma figura bem caracterizada, com seu próprio lugar na
história da Igreja e da humanidade. A tal ponte, que, se não houvesse
existido, ou não se tivesse realizado, sua ausência seria sentida como um
vazio perfeita-mente identificável: aqui está faltando algo (diríamos),
frustrou-se um carisma não sabemos nem quando nem porque; tinha
uma missão para realizar, e falhou... Porém não; isso é uma hipótese.
Frei João da Cruz não falhou; está aí, no seu preciso lugar,
insubstituível.
Após quatro séculos, já não teria envelhecido, e perdido a cátedra,
cedendo a espíritos novos o seu lugar? Alguém quis profetizar neste
senti-do há alguns anos. está acontecendo o contrário. Os anos do
concílio e do pós concílio vêem crescer descomedidamente, em
extensão e profundidade, a atualidade do Doutor Místico (veja-se o
capítulo 5 deste livro). O ho-mem dos tempos idos e o atual sentem a
mesma insipidez radical frente a existência, idêntica necessidade de
Deus. Apesar dos quatro séculos que nos separam e uma forma de vida
muito distinta, tomamos por mestre de vida humana e cristã um
carmelita contemplativo e asceta. Veremos em se-guida que as grandes
inquietudes do sistema e de sua vida são as mesmas que hoje agitam a
humanidade em vias de transformação.
Há quem pense que seguir a João da Cruz simplifica enormemente a

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vida, reduzindo-a à fácil tarefa de ser conservador, sem ter de enfrentar
pessoalmente as realidades. Ninguém conserva o que não tem, e
ninguém possui o que não ganhou com o próprio esforço no laborioso
contato com a realidade que o cerca. O Doutor Místico presta-nos uma
ajuda inestimável, mas não poupa o esforço e o risco. Para entendê-lo e
viver na sua men-sagem, requer-se tanto empenho como para inventá-lo
novamente. Enten-der é reviver, reviver é recriar.
Sua leitura requer esforço moderado. São João da Cruz é um autor
não abstrato, mas profundo. Foi suficiente que a evolução histórica
apertasse o ser humano contra as raízes do próprio ser, para que o santo
passasse ao primeiro plano da atualidade, como espírito afim e
clarividente.
Amiúde é a vida, mais do que os estudos de alta espiritualidade, é
que prepara para entender e saborear os escritos de São João da Cruz.
Quando alguém já tomou três ou quatro rasgões na existência, pode
iniciar com seguro proveito a leitura. Vai compreendê-la por cima e por
baixo de todas as classificações, como alma gêmea, como amigo.
Chegam a saboreá-la melhor os que tiveram uma vida forte e
sensível. O que tem menos disposição para lê-la é o superficial, incapaz
de marcar as linhas da existência, de tomar a vida seriamente; quem
nunca teve um empurrão, nem lançou a vida num ideal. Em troca, o que
se empenha e senta a vida como profunda contingência, sente afinidade
com as inquie-tações do místico.
Exigente, mas benfeitor. Dilata-nos o ânimo com um programa que-
brantador, ordenado à renovação de todo o ser. Instintivamente
preferimos que nos falem de vida normal, do que já somos ou temos, e
não causem rupturas no nosso organismo interior mecanizado. A
espiritualidade respei-ta esse oculto desejo, louva-nos, e canoniza como
somos. Porém também nos paralisa, amor-tecendo todo o anseio de
superamento. Vem, pois, o místico e quebra-me os moldes. Eu preciso.
«Leio para aumentar o meu coração».
Nas leituras privadas, São João da cruz me deixou contrariado. Mas,
à medida que circulo com os olhos abertos pela vida e medito o
evangelho, devo dar-lhe razão. para as grandes causas, faz-se mister
certo extremismo.

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«Os modernos estudiosos ao redor de São João da Cruz são tão
nume-rosos, que quase resulta pretensão excessiva querer contatá-los na
sua tota-lidade. E, todavia, o Doutor místico continua sendo autor
difícil. Difícil de ler-se e refratário a toda a análise e sistematização.
Quiçá isso se deve em grande parte à excessiva parcialidade com que é
estudado. Apesar da imensa bibliografia são-joanista, faltam-nos
trabalhos de conjunto que nos dêem uma visão integral, plena, dos
escritos do Santo Doutor» (F. Garcia Llamera, em 1965).
A situação aqui formulada justifica o ensaio de síntese que agora
apresento. Os estudos parciais são muitos e excelentes. Na França foi
mais metódica e penetrante a investigação doutrinal. Nascem na
Espanha os melhores estudos de caráter histórico, textual, literário.
Não terei dificuldade em citá-los com freqüência. Quando algum
autor tiver formulado de modo feliz uma idéia ou um problema,
transcreverei suas palavras, mesmo que pudesse dizer o mesmo por
minha conta. Deste modo familiariza-se o leitor com os autores e as
obras de maior interesse na investigação são-joanista e sabe onde pode
encontrar ulteriores explica-ções.
Pretende ser este um livro de introdução, sólido e denso, mas
também leve e transparente, remetendo à leitura direta dos escritos
originais. Aspira ser uma síntese que o leitor ache útil nos inícios, e
também depois de ter-se familiarizado com o Santo.
Pode parecer algo extenso, mas o nível de especialização a que se
che-gou no campo dos estudos são-joanistas e até a plurivalência de sua
obra obrigam a isso. Com o objetivo de superar esse inconveniente,
procurei introduzir divisões orientadoras que facilitem a compreensão e
permitam a utilização parcial do livro. Pode alguém, por exemplo, ler a
introdução ao Cântico espiritual e depois a obra do santo sem que tenha
de ler os capítulos dedicados as outras obras do Santo.
A primeira parte estuda o autor em sua vida, ideais, formação e modo
de expressar-se; embora pareçam externos, são fatores essenciais para a
obra. A segunda faz uma apresentação superficial dos escritos: origem,
his-tória, estrutura e conteúdo. Na terceira parte analisa-se o sistema
doutrinal nos seus pilares mais sólidos; todos eles são de uma
atualidade transbordante, mas ao mesmo tempo suscitam dificuldades e
até críticas. A quarta parte segue o processo espiritual nos seus graduais

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desenvolvimento e aplicação dos princípios.
Há nestas páginas muita novidade, que somente raras vezes colocarei
em realce. A seu modo, é um estudo positivo. Procura falar desde a
reali-dade que São João da Cruz contempla e desde a alma de João, que
contempla a realidade.
São João da Cruz efetivamente diz ou pensa tudo o que lhe vamos
atri-buir? Aqui se encontra o cerne de toda a aproximação posterior a
uma obra com séculos nos ombros. Por muito objetiva que se pretenda a
atitude, nós a fitamos hoje com outros olhos, modificados pelo tempo
que passou e pela acumulação de incontáveis experiências individuais.
Assim compreen-demo-la melhor do que por mera repetição material. A
pura objetividade, ou é cegueira ou miragem. Espero revitalizá-las com
o menor número pos-sível de elementos estranhos.
Devemos colocar como primeiro objetivo a mensagem religiosa,
como ele também fez. Escreveu para pessoas que desejavam conhecer e
amar o mistério divino e elaborar-se um conseqüente programa de vida.
Outros valores entram em função desse fim primordial.
Em fim, ninguém vai estranhar que o autor deste livro não consiga
revestir de claridade meridiana os mistérios que o Doutor Místico
somente conseguiu dizer por figuras. Semelhante clareza Deus reserva-a
para o crente humilde e generoso que empenha a sua vida nos serviço do
Amor.

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FONTES E ESTUDOS

Os escritos de São João da Cruz são citados, como regra geral, con-
forme a 5ª edição da Obras Completas, BAC, Madrid, curada pelo Frei
Lu-cínio do Santíssimo Sacramento do ano 1964. Além de ser completa,
traz no fim uma rica série de apêndices de grande utilidade: fundo
manuscrito da obra são-joanista, abundante bibliografia moderna de
caráter literário e doutrinal, índice bíblico e de matérias.
Contribui de maneira eficaz para o valor desta edição ter incorporado
a Biografia do Santo escrita por Frei Crisógono e enriquecida pelo
editor, Frei Matias do Menino Jesus.
Querendo evitar o excesso de notas ao pé da página, adotaremos uma
forma breve de referência, que permite incluí-la ao longo da redação.
S = Subida do Monte Carmelo (número do livro anteposto,
capítulo e número marginal posposto).
N = Noite escura (numeração como em S)
CA = Cântico espiritual (primeira redação)
C = Cântico espiritual (segunda e definitiva redação)
ChA = Chama viva de amor (primeira edição)
Ch = Chama viva de amor (segunda redação)
Cr = Epistolário ou Cartas (na ordem seguida pelo Frei Lucínio,
com acréscimo de data quando conhecida.
Ct = Cautelas
AA = Avisos do autógrafo de Andújar, ou Ditos de amor e luz

* * *

Assinalo aqui algumas obras importantes que, por aparecerem conti-


nuamente no livro, vão ser citadas às vezes de maneira incompleta.
Baruzi, J., Saint Jean de la Croix et le problème de l´expérience
mystique 2ª ed., Paris 1931, 740 pág.s (1ª ed. 1924).
Capánaga, V., San Juan de la Cruz. Valor psicológico de su doctrina.
Ma-drid 1950, 429 pág.s.

10
Crisógono de Jesus, San Juan de la Cruz, su obra científica e su obra
lite-rária, em 2 volumes. Madrid 1929, 494 e 472 pág.s.
Id., Vida de São João da Cruz, Oeiras
Ducken, E. W. Trueman, El crisol del amor. La mística de Santa Teresa
de Jesús e de San Juan de la Cruz. Barcelona 1967, 603 pág.s.
Efrén de la M. D., San Juan de la Cruz y el mistério de la Santíssima
Trinidad. Zaragoza 1947, 526 pág.s.
Lucien-Marie de Saint-Joseph, Introduction... Antepõe uma interessante
introdução geral e particular às obras do Santo na tradução francesa,
publicada pela Desclée.
Morel, G., Le sens de l´existence selon Saint Jean de la Croix. 3
volumes. Paris 1960-1961, de 225,349, 193 pág.s, respectivamente. I.
Problématique. II. Logique. III. Symbolique.
Sanson, H., El espíritu humano según san Juan de la Cruz. Madrid
1962, 593 pág.s.
Urbina, F., La persona humana en San Juan de la Cruz. Madrid 1956,
366 pág.s.

Duas obras podem ser citadas como de grande utilidade:


Silvério de Santa Teresa, Obras de San Juan de la Cruz, em 5 volumes
Burgos 1929-1930. Constituem os volumes 10-14 da Biblioteca
Mística Carmelitana. São interessantes pelas introduções históricas e
a docu-mentação subsidiária que traz nos apêndices.
Luís de San José, Concordancias de las obras y escritos de San Juan de
La Cruz. Burgos 1948. 1212 pág.s.

Não é possível enumerar todas as dívidas de gratidão que tem o livro.


Reconhece explicitamente duas mais importantes, de caráter pessoal e
ime-diato: o Frei Lucínio do Santíssimo Sacramento, boa fonte de
estímulos e sugestões; Frei Ramón Pérez Simarro, que cuidou com
empenho da prepa-ração do manuscrito.

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I
O ESCRITOR

CAPÍTULO 1

O MARCO DE UMA VIDA

Obrigado à brevidade no campo introdutivo, traço apenas um


esquema que o leitor possa utilizar para enclave e interpretação da obra
são-joanis-ta. A aproximação da pessoa é sempre instrutiva e luminosa.
Não podendo oferecer em tão breve síntese muitos dados, ressaltamos
os mais apropriados. De sua vida figura as etapas indeléveis, que
permanecem transformadas na consciência posterior 1.
A peculiaridade do Santo exige que se trate primeiramente de sua
própria vida, e em seguido do ambiente. Com efeito, o ambiente não
serve de molde para explicá-la de fora, pois é seiva assimilada por seu
espírito uma vez formado.
A divisão por etapas se faz tendo por base alguns marcos válidos que
justificam o corte. tarefa difícil num contemplativo, alheio aos grandes
acontecimentos «históricos» da época. As deslocações não são
suficientemente significativas, como para dividir períodos vitais;
tampouco são graves as varações de atividade. Combinando diversos
elementos, logra-remos um esquema.
O núcleo central de sua vida está firmado por três períodos de dez
anos cada um. Precedem dezessete anos de infância e adolescência;

1 As biografias de São João da Cruz mais lidas hoje são as do Frei Bruno e do Frei Crisógono.
Como introdução à escrita por ele, Crisógono faz uma breve descrição das principais fontes
históricas, que se conservam manuscritas (Vida, pág.s 11-18). O Frei Matias do Menino Jesus, que
vem curando as edições da obra do frei Crisógono, acrescenta algumas páginas enumerando as
principais biografias antigas e modernas do Santo existentes nas diversas línguas (ib., pág.s 5-8).
Em geral, remito à obra do frei Crisógono, onde se encontram os documentos correspondentes a
cada caso particular. Em algu-ma ocasião cito diretamente os Procesos de beatificación y
canonización, editados pelo frei Silvério de Santa Teresa, vol. 14 da Biblioteca Mística
Carmelitana (El Monte Carmelo, Burgos 1931). Estes últimos foram completados por ocasião do
IX centenário da morte.

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seguem três de maturidade.
1. Infância (1542-1558): em busca do sustento, de lugar, de
profissão; pobreza e caridade.
2. Vocação (1559-1568): estudos de humanidades em Medina del
Cam-po; no Carmelo, em Medina; estudos teológicos em
Salamanca.
3. Reformador (1568-1578): inaugura a nova vida em Duruelo;
pri-meiro formador; grandes experiências de graça.
4. Escritor (1578-1588): escritor e organizador na Andaluzia;
frutos de sua riqueza acumulada.
5. Maturidade (1588-1591): três anos de governo em Segóvia;
cam-panha denigratória; morte em Úbeda: 14 de dezembro 1591.

1. Infância e adolescência
Nasce em Fontiveros, povoado de Ávila, em 1542. Desconhecemos o
dia exato. Como cenário, uma planície ondulada de searas, poeira e sol;
de rigores invernais. O casamento de seus pais, Gonçalo de Yepes e
Catarina Alvarez, é gesto de plena humanidade. Uniram-se por amor,
preferindo às riquezas qualidades íntimas, que garantam uma vida
intensa. Ele, de aba-stada família toledana, é deserdado por casar-se com
uma jovem de valores pessoais, mas sem recursos.
Gonçalo aprende a profissão de Catarina Alvarez, e os dois tecem. É
uma profissão cansativa e pouco remunerada2. Lutam assim por algum
tempo para vencer a miséria.
Neste lugar e ambiente nascem-lhes os três filhos: Francisco em
1530, Luís (em ?); João em 1542. Logo após o nascimento de João uma
doença, que durou dois anos, consome a poupança do lar. Sua morte
acaba por precipitá-lo na miséria.
Catarina Alvarez peregrina com seus filhos por terras de Toledo,
mendigando proteção dos ricos familiares de Gonçalo. Leva consigo
tam-bém ao pequenino João, que provavelmente foi carregado no colo

2 O pai de Julião de Ávila era tecedor e afirma que dispunha de 14 horas diárias para trabalhar e
ganhar a vida (cf. Geraldo de São João da Cruz, Vida de Julião de Ávila. Toledo 1915). É um eufe-
mismo; quer dizer: tinha de trabalhar 14 horas diárias para ganhar-se a vida.

13
durante a viagem. Esperava a mãe que o seu sofrer inocente provocaria
compaixão. Nada ou quase nada consegue. Volta a Fontiveros. Ali morre
Luís, cujos restos descansam, hoje ao lado do de seu pai na Igreja
paroquial. O lar ficou reduzido á metade.
Ao não encontrar ajuda entre os familiares, Catarina busca-a no
mundo de Deus. Emigra para Arévalo (1548) com os mesmos
resultados, e três anos mais tarde em Medina del Campo, vila de
comerciantes e com dinhei-ro. Porém, como de costume, com a
prosperidade das cidades coexiste a miséria que angustia muitas
famílias. Quanto sofrer!.
Em Medina entra no Colégio da Doutrina, uma espécie de orfanato
para crianças pobres, em regime de internato. Recebem gratuitamente as
primeiras letras, comida e vestido. Mostra-se particularmente apto e mo-
delo no serviço litúrgico, ao qual dedica diariamente quatro horas pela
manhã, na igreja da Madalena. Ao mesmo tempo procuram ensinar-lhe
uma profissão. João experimenta o de carpinteiro, de alfaiate, entalhador
e pintor. Terá ficado em cada uma apenas alguns meses. «Em nenhum
deles se firmou, embora tenha muito gosto pelo trabalho», diz o seu
irmão Francisco3. Por falta de afeição ou de aptidões, João não
persevera, isto é, não quer vincular-se a esse tipo de ocupação o futuro
de sua vida. Alguns desenhos, os escritos e o que sabemos pelas
testemunhas falam de algumas habilidades do Santo nesses ofícios, que
provavelmente são res-quícios do que aprendeu em Medina.
Do colégio passa ao Hospital da Conceição. Sua conduta edificante
cativara as pessoas, e por isso chamam-no ao serviço dos enfermos. Um
ofício que muito lhe agrada, e que não abandonará mesmo depois de
em-penhar-se nos estudos. Atende aos doentes e é o encarregado de
recolher pelas casas as esmolas que cobrem os gastos da instituição
beneficente. Conquista a confiança do diretor do hospital, Alonso
Alvares de Toledo.
É necessário ponderar em toda a sua profundidade a primeira

3 Cf. Crisógono de Jesus, Vida y obras completas de São Juan de la Cruz, 5ª ed., Madrid, Bac,
1964, pág.s 31-32. Para o período da infância ofere maior número de detalhes o Fri José Velasco,
Vida y virtudes dem Venerable varón Francisco de Yepes, que murió em Medina de Campo, año de
1607. Contiene muchas cosas notables de la vida y milagros de su santo hermano el P. F. Juan de
la Cruz... 2ª ed., Valladolid 1617. Fala mais acertadamente do irmão do santo, mas nessa idade
seguem os dois a mesma sorte familiar.

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experiência de João de Yepes. Saboreou privações a granel. Uma
providência espe-cial e seu caráter aplicado e bondoso impedem que a
falta de meios malo-gre as possibilidades imensas da vocação pessoal.
Podia o gênio ter su-cumbido nos primeiros passos, forçado a procurar
com ganância para tirar dos apuros a família. Algumas modernas
biografias recalcam com especial gozo a extrema pobreza em que se
passa a infância de João da Cruz. É parte dos gostos de nossa época. A
pobreza familiar torna-se chave uni-versal para entender os segredos da
noite, da negação, do nada do sistema.
Deixou sinal, mas não tolera semelhante exclusivismo. A penúria em
que vive João teve matiz ascendente. No meio da escassez, a família
Yepes, com seu otimismo cristão, encontra recursos para aliviar e ajudar
a outros mais pobres que eles. Em Arévalo e Medina del Campo tem o
costume de recolher as crianças expostas, gente pobre. Trazem-nos para
casa, cuidam deles e proporcionam-lhes acomodação 4. É um gesto
perma-nente de corações que não fizeram uma tragédia de sua pobreza
cristã.
Num olhar rápido sobre esses dezessete primeiros anos de sua vida,
podemos qualificá-los: com inquietudes e sem rumo. Mudou quatro
vezes de residência, e outras tantas de profissão. Procura algo que não
encontra. Há indícios de satisfação em alguma tarefa realizada: caridade
em casa, religiosidade, serviço dos doentes.
Entretanto, vão formando-se os traços definitivos do caráter. Da
pobre-za e seu cariz positivo já falamos. Essa privação não é uma
experiência fugaz. Com as privações imposta-lhe pela vida, adquiriu
naturalidade nas tarefas humildes. A humildade é nele uma virtude (mais
do que de enten-dimento ou vontade) de todo o ser. Ele a traz no sangue.
Ao não esquecer as ricas experiências de família, obtidas nos anos da
infância e da adolescência, vai ajudá-lo posteriormente a presença da
sua mãe e do seu irmão Francisco, ambos pobres sem escondê-lo.
Catarina ajuda no convento das descalças de Medina . Elas

4 O próprio João de Yepes torna-se algumas vezes padrinho de batismo: «Antolina, filha de
Gregório de Matilla e sua mãe Juliana, foi batizada no ano de 1564; pelo sacerdote João de Flores,
beneficiado da Igreja do senhor São Martinho. Foram padrinho João de Yepes e madrinha Maria
Lopez». Conserva-se o texto no Registro de batismos da paróquia de São Martinho de Medina del
Campo. Citado por Cr-sógono, Vida c. 2, pág. 39, nt 65.

15
sustentam-na por encargo expresso da Madre fundadora. No primeiro
livro de entradas e saídas lemos uma nota a esse respeito. entre as contas
do mês de agosto de 1572, assinadas pela própria Santa Teresa: «Hoje,
sábado, compramos mel, aceite, arroz e ovos, e um par de sapatos para
Catarina, gastando ao todo 15 reais e doze maravedis»5. Morre em 1580,
quando santo era prior de Baeza.
Francisco de Yepes viveu também pobre, dolorosamente
endividado nos últimos anos. «Tinha o venerado Padre um irmãos,
chamado Francisco de Yepes, muito rico de virtudes, porém muito pobre
de bens temporais, que se sustentava com esmola. Ele foi chamado a
Granada, não para acrescentar peso ao convento com o irmão e
acomodá-lo às suas custas, mas antes para que, trabalhando na
construção da casa e servindo como criado ou peão, moderasse com isso
a honra da sua prelazia, e o que por ela faziam as pessoas importante
daquela cidade. Chegou a Granada, e ao vê-lo entrar no convento, com a
sua capa surrada e as vestes sem brilho, como de quem não tinha nem
juros nem rendas, e que procurava ser mais virtuoso do que alinhado,
alegrou-se muito ao vê-lo tão pobre e desprezado, como outro se
alegraria em ver o um irmão ostentando galas, criados e grandezas...»6.
Essa pobreza de mãe e irmão foi tão construtiva para João como a
sua própria. Mesmo que haja maior mérito em renunciar as riquezas que
se possuem de fato, a impressão vital e o prazer no espírito são maiores
quan-do à renúncia afetiva acompanha uma carência real, a de quem não
as possui, nem as possuiu, nem tem perspectiva de vir a possui-las
jamais.

2. Vocação: 1559-1568
A etapa que podemos chamar de vocacional em sua vida preenche
estes dez anos. Começa com uma maior dedicação ao estudos, a estudos
de nível, que encontram eco nos seu espírito ávido e sensível; a
religiosidade profunda consolida-se em vocação ao Carmelo; como
carmelita, empenha-se em novos estudos, desta vez teológicos e
espirituais. O processo voca-cional culmina num ideal, que será a
vocação definitiva e madura, porém que já pertence ao período seguinte,
5 Crisógono, Vida cap. 11, pág. 174.
6 Jesônimo de S. José, História de Venerable P. Fr. Juan de la Cruz. Madrid 1641, 1.5 cap. 3
pág. 485.

16
pela mudança de rumo que impõe.
Vimos que o jovem Yepes não se encontra em nenhum das profissões
que tinha exercido. Em troca, os estudos deixam-no entusiasmado. Sem
desprezar a sua tarefa cotidiana de serviços no hospital, aproveita os
momentos livres e boa parte das noites. O diretor do hospital favorece
os estudos do garoto. Fá-lo por bondade e por nobre interesse,
convencido de que prepara um futuro capelão para os seus doentes.
João descobre a si mesmo nos estudos. São os anos da adolescência,
dos dezessete aos vinte e um (1559-1563), quando freqüenta um curso
regular de humanidades no colégio fundado de recente pelos jesuítas na
cidade. Encontra alimento abundante para satisfazer seus anseios. «A
esses anos, devemos relacionar o primeiro contato - o primeiro e quem
sabe o mais intenso - do futuro autor do Cântico espiritual com os
clássicos lati-nos e espanhóis e a iniciação em suas referências
renascentistas; contato e iniciação em nada superficiais, visto que
constituídos de abundantes exercícios, leituras e composições» 7. João de
Yepes, que possui dotes e curiosidade intelectual, receberá: formação,
técnica literária, contato com os clássicos e seu mundo de imagens,
estímulo à composição pessoal, sensibilidade.
A ressonância que encontramos nos seus escritos faz pensar que os
anos de Medina foram marcados pelo contato com a literatura e
precisamente com a poesia da época. A expressa declaração do santo
assinala uma de suas fontes: leu Boscán y Garcilaso «vueltos a lo
divino» (por Sebastião de Córdoba, publicado em 1575. Porém leu
provavelmente , sem a conversão para o divino, a esses e outros autores.
O método do colégio comportava leitura e análise dos autores clássicos
e contemporâneos. Tinha para isso todas as facilidades 8.
Bebera o jovem estudante em Garcilaso ou, se quisermos, em outros
autores profanos. Não entendo por leitura um olhar rápido, que mede os
versos, ou recolhe palavras e frases poéticas do autor, tiradas do seu
con-texto e do seu mundo, como se fosse um dicionário. Assim o poeta
não encontra pábulo o poeta. João captou o mundo humano de

7 Crisógono, Vida cap. 2, pág. 38.


8 Recentemente, em 1544 e em 1553, tinham aparecido em Medina del Campo duas edições de
Boscán y Garcilaso (cf. Dàmaso Alonso, La poesía de San Juan de la Cruz, 4ª ed., Madrid 1962,
pág. 75. Sem contar os vários livros que chegam ao centro comercial.

17
Garcilaso, seu lirismo terreno, seus idílios. Não se mancha por isso a
alma do leitor poeta9.
Dâmaso Alonso10 sugere respeitosamente: «...uns bonitos olhos de
me-nina...». Não me assusta o interrogante, mas sem documentos temo
con-cretizações neste campo. Prefiro ficar na linha segura: é um jovem
extre-madamente puro e com alma muito sensível à beleza.
Os estudos de humanidades superiores representa um elemento voca-
cional. Prova disso temos na perseverança de João durante quatro ou
cinco anos. Sua alma, todavia, mostra ulteriores exigências e continua
chamando. Não possuímos muitos elementos sobre a caminhada deste
período, mas são suficientes para nos guiar.
Decide entrar no Carmelo de Medina. Fora uma escolha plenamente
li-vre e pessoal, uma opção não retratada. Poderia ter entrado nos
Jesuítas, que bem conhecia; ou ficar como capelão no hospital, como
deseja o seu protetor e aconselhavam as necessidades da família. Algo
concreto procura quando vai ao Carmelo contra as circunstâncias. Os
motivos mais discer-níveis são doi: ânsias de solidão e vida
contemplativa, devoção à Santís-sima Virgem11. Trá-los na alma desde
pequenino.
Não implica renúncia a sua anterior afeição pelos estudos. É uma
passo adiante que os incorpora sob uma unidade mais alta. Pode, no
máximo, trazer consigo uma suspensão momentânea, durante o ano de
noviciado. Reaparecerá em seguida em outro nível. Por isso colocamos
esses três fatos em linha de continuidade, como etapas de uma vocação
integral, ou como progressivo descobrimento dela.
Do ano de noviciado desconhecemos quase tudo. Basta-nos supô-lo
fiel ás normas para conhecer a riqueza espiritual que práticas e leituras
deposi-taram em seu espírito ávido de interioridade. São conhecidos os
livros que então serviam de base para a formação. O Carmelo possuía
uma tradição ascética e histórica bem definida e «interessante» 12.

9 Mostram-se menos favoráveis à influência profana: Efrén de Madre de Dios, San Juan de la
Cruz y el mistério de Santíssima Trinidad em la vida espiritual, Zaragoza 1947, pág.s 201-202;
Emetério de Jesus Maria, Las raíces de la poesía sanjuanista y Dámaso Alonso, Burgos 1950.
10 A poesía de San Juan de la Cruz, pág. 74.
11 Efrén, São Juan de la Cruz, pág.s 159-163.
12 Ibid., pág.s 164-171.

18
Proporciona alimento às suas duas aspirações: contemplação e vida
mariana. Recebe na ordem o nome de João de São Matias.
Salamanca constitui o a nova etapa de sua vida (1564-1568). Já
dentro da vida religiosa, retoma a tarefa estudantil. Muda o tema, que
desta vez não é literário, mas constituído por matérias filosóficas e
teológicas. A Ordem tem em Salamanca o colégio interprovincial de
Santo André. Che-gam de toda a Espanha. Harmonizando vida
conventual, estudos universitários, ambiente agitado, transcorre João
quatro anos decisivos de sua exis-tência. Não possuímos muitos detalhes
desse período. Mas existem quatro dados importantes que nos
proporcionam uma idéia suficiente13.
Encontra um mundo fervente de possibilidades e dinamismo.
Salamanca toda é cidade universitária. Ensinam-se e aprendem-se todo o
tipo de ciências. Para tudo há pessoal escolhido, e que se destacam. Para
as cáte-dras que a João mais interessam acabam de passar Vitória, Soto,
Melquior Cano; ainda as ocupam personalidades como Frei Luis de
León, Mâncio de Corpus Christi. Os estudantes enchem a universidade,
colégios, conven-tos, pensionatos, casas meio destruídas. Os exercício
acadêmicos de Santo André completam a formação recebida nas aulas.
João de S. Matias deixa Salamanca com uma sólida formação
científica. Demonstra-o sua atuação posterior como reitor de Alcalá e
Baeza. Reco-nhecem-lhe todos conhecimento profundo da Sagrada
Escritura, familiaridade com os Padres, princípios e explicações
teológicas, bom critério e perspicácia. Esse equilíbrio descansa nas
bases fundamentalmente tomis-tas, ou escolásticas.
No colégio da Ordem foi nomeado prefeito dos estudantes. O
encargo era conferido aos mais aproveitado nos estudos. Bastaria o fato
como pro-va de que estuda muito e com bons resultados. Ao prefeito
cabe explicar algumas aulas, defender teses, responder a objeções.
Implica muito domí-nio da matéria. Seu espírito de recolhimento
proporciona-lhe tempo e con-dições psicológicas especialmente aptas
para o estudo e a meditação da teologia.
Os condiscípulos reconhecem sua virtude. Leva uma vida austera e

13 Ampla informação sobre o período salmantino oferecem: J. Baruzi, Sain Jean de la Croix...;
Crisógono, Vida cap. 4, pág.s 46-61; Efrén, San Juan de la Cruz, pág.s 172-192; Bruno de Jesus
Maria, Saint Jean de la Croix, Bruxelas 1961, pág.s 64-78.

19
de plena dedicação ao estudo e à piedade. Sem estridências, como quem
não lhe dá importância, João freqüenta o jejum e o cilício, prefere a cela
pobre e escura, porém... se é possível, com uma janelinha que dê para o
Sacrário. Alí passa horas mortas aprendendo a ciência divina.
À confirmação da solidez da formação salmantina temos um
testemunho fidedigno. Durante o verão de 1567 frei João é transferido
com o seu companheiro Pedro de Orozco para cantar a sua primeira
missa em Medi-na, onde ainda vive a sua família. Ali se encontra por
essa data Santa Teresa, ocupada na fundação do mosteiro de carmelitas
descalças. Infor-mada pelo companheiro, manda chamá-lo. Com toda a
sua experiência, Teresa fica encantada depois de apenas uma conversa:
«ao conversar com ele, fiquei muito feliz»14.
Após esse encontro, volta por mais um ano a Salamanca, para
terminar os estudos. Tinha-os seguido com afeição, tinha gostado,
porém não o plenificavam.

3. Reformador: 1568-1578
O estudante carmelita acredita não ter encontrado ainda o seu lugar.
Está maquinando dar um novo rumo à vida: vai ser cartuxo... Estava
nesse momento de dúvida, quando se encontrou com Santa Teresa, que
agitava pela Espanha um ideal já cristalizado. Parecia feito à medida das
aspirações de João: vida de intensa contemplação, sem deixar a Ordem
da Virgem. Associa-se ao plano de Teresa, colocando como condição
«que não demorasse muito»15. No verão seguinte (1568), terminados os
estudos, frei João está disponível. Durante a fundação das monjas de
Valladolid, a Madre fundadora tem ocasião de informar o jovem recruta
sobre os seus planos para os frades.
Dá o passo transcendental sem aparências de brusquidão. Continua a
ascensão interior, com escassas variações na paisagem. Para iniciar a
refor-ma carmelitana entre os frades, é escolhido um lugar com poucos
vizinhos a meio caminho entre Ávila e Salamanca. Chama-se Duruelo, e
não o conhecem sequer os moradores dos povoados limítrofes. Está a
pouca distân-cia de Fontiveros, embora o panorama mude levemente:

14 Livros das Fundações, cap. 3, 7.


15 Livro das Fundações 3,17.

20
ondulações, car-valhos espalhados por campo arados, terreno mais
agreste.
A inauguração oficial, com profissão de três religiosos, acontece no
dia 28 de novembro de 1568.
João muda o sobrenome. A escolha foi longamente ponderada.
Chamar-se-á agora João da Cruz. Deixa o nome de família, «Yepes», e
o do Carmelo, «de São Matias»; não adota o do lugar onde nasceu, coisa
que era freqüente na sua época. Escolhe a cruz, como lugar de origem,
título de nobreza, herança familiar. E tem razão, pois é para ele a pátria
e o clima: nasceu na cruz, viveu e morreu nela. Busca-a e carrega-a com
orgulho, como título de glória, não de abatimento para mendigar
compaixão. A história respeita esta preferência, o que não aconteceu
sempre com Santa Teresa: Teresa de Jesus ou de Ávila.
João da Cruz escolhe este nome em Duruelo. É uma escolha
ponderada. Alguns meses mais tarde, Santa Teresa visita o lugar e fica
assustada ao ver a capela. «Havia tantas cruzes!... Nunca me esqueci de
uma cruz pe-quena de madeira para a água benta, em que estava
grudada uma imagem de papel com um Cristo que incutia muito mais
devoção do que se fosse mais requintada»16
A experiência pessoal de João em Duruelo passa desapercebida, sem
detalhes reveladores, convivem animados e contentes no meio de uma
situa-ção penitencial incrível; cuida do bem espiritual da população do
povoado e dos arredores. Do processo interior nada. O mesmo se diga
dos anos a seguir.
Sobre Duruelo temos um detalhe que completa e retoca a visão um
pouco dura e unilateral deixada por Santa Teresa no livro As Fundações.
«Depois foram a Duruelo um irmão com a esposa e a mãe para se colo-
carem a serviço dos frades e fazer o que fosse preciso: sua mulher
lavava a roupa, a mãe cozinhava. O irmão de frei João ocupava-se em
fazer a cama dos frades e em varrer. Depois de permanecer ali alguns
dias voltaram a todos a Medina»17.
Em troca, a história é generosa em notícias sobre a sua função como
formador, como Reformador, pois está criando a regra, abrindo caminho
através da sua experiência. É o primeiro nos cargos formativos:
16 Ibid., 14,6-7).
17 BNM ms 8568 f. 379r.º e v.º; cf. J. Baruzi, Jean de la croix, pág. 69

21
- primeiro mestre de noviços em Duruelo e Mancera (1569-1570), em
Pastrana (1570-1571);
- primeiro reitor de colégios na Reforma: Alcalá de Henares (1571-
1571, centro cultural;
- diretor espiritual de religiosas: Ávila 81571-1577); onde intervém
com maturidade apesar de sua juventude, e acolhem-no como homem
plenamente formado. Dirige religiosas de muita experiência, a
própria Santa Teresa.
Porém isto é o exterior, o que interessa aos cronistas. A vida íntima
encerra outro aspecto tão importante ou mais do que esse: João forma-se
pessoalmente, desenvolvendo valores, acumulando experiência,
adestran-do-se. Processo paralelo ao anterior 18.
Por falta de dados, o historiador se afasta desinteressado. Não temos
da-tas do que acontece nesses anos, nos cinco de diretor espiritual em
Ávila, por exemplo. Se tivéssemos escritos anteriores de sua pena,
poderíamos compará-los com os sucessivos, apreciando diferenças e
progresso. Nada disso existe. Qualquer que seja o ano, temos certeza de
que segue com os mesmos interesses. Um exemplo: ao compor seus
poemas, conhece o livro de Sebastião de Córdoba: Garcilaso y Boscán a
lo divino, publicado em 1575. É provável que o tivesse lido repetidas
vezes em Ávila; ou dois anos mais tarde. Nessa época, nada muda o
significado real.
Ao comprovar a fecundidade espiritual e humana da época andaluza,
busca-se explicação imediata e proporcionada no período anterior. E
fala-se do cárcere toledano. Aí escreve poemas e os vive. Podemos
pensar com fundamento que grande parte dos frutos poéticos e
doutrinais vêm do período anterior. Cinco anos de retiro, de experiências
pessoais, de direção de espíritos privilegiados, debem contar-se entre os
fatores decisivos do seu enriquecimento literário e doutrinal.
E termina esse período no cárcere de Toledo, que é também o início
do período de escritor. É a maior experiência vivida por São João da

18 É acertado o título dado pelo Fr. Efrén, pág. 209, a este período da vida do santo:
«Reformado y reformador». Desde que o título cubra toda a vida e não só o primeiro passo de
Duruelo, para tornar-se logo reformador. Reformado e reformador, formação pessoal e tarefa
educativa seguem a mesma linha e envolvem e abrangem os dois todo o campo, apoiando-se
mutuamente.

22
Cruz. Transformou-o religiosa e psicologicamente. Foi analisado
demoradamente, proporcionou vida a suas convicções evangélicas,
saboreou o divino na sua pureza, sem mistura de consolo terreno,
encontrou a Deus na sua vida. Mistério de nove meses num canto
sombrio, sem mudar ares ou roupa, sem luz nem diálogo, minado física
e moralmente pela angústia. Teve lu-zes e graças, as quais se referirá
nos anos seguintes, mas que não especifica nos detalhes: por uma só
delas suportaria anos de cárcere.
Foi o homem mais pacífico e menos belicoso na peleja entre os calça-
dos e descalços. Todavia é quem mais duramente pagou as
conseqüências. Outros lutam abertamente. João sofre e constrói
esquecido.
Mesmo assim não tem intenção de terminar ali a própria vida. Em
mea-dos de agosto de 1578 aventura-se numa fuga perigosa. Tudo corre
bem e foge para a Andaluzia, onde a peleja é menos violenta e pode
viver longe dos seus perseguidores.

4. Escritor: 1578-1588
Seu trabalho de escritor não substitui o de formador, mas se
acrescenta a esse. Jamais foi tão formador como nesse período em que
redige os seus livros. Por outro lado, as datas indicadas permite certa
margem. Começa verdadeiramente em 1578, mas a obra escrita termina
em 1585-86. Colo-camos como termo o ano de 1588, porque até então
permanece na Andalu-zia, mantendo o mesmo plano de vida.
O cárcere de Toledo é o começo de sua produção literária.
Prescindindo de suas páginas anteriores perdidas. Aí compõe diversos
poemas, em particular as primeiras 31 estrofes do Cântico espiritual.
João está então com 35 anos. Idade avançada para começar a compor
poesias, e mais ainda num cárcere com o o seu, onde não têm as
disposições perceptivas lite-rárias, livros de poesia de onde possa haurir
imagens e vocabulário. Todos esses recursos tinha-os dentro de si. É
capaz de aproveitá-los meses e talvez anos após tê-los estudado. Para
maior surpresa, o gênio poético brota no seu ser a contato com uma
realidade adversa, esmagadora, a me-nos indicada para efusões de
serena beleza.
A Andaluzia proporciona-lhe um clima luminoso e tranqüilo para o

23
seu lavor. Apesar do seu amor pelo retiro, terá oportunidade de conhecer
esta região. Percorre-a diversas vezes; Jaén, Granada, Córdoba, Sevilha,
Mála-ga; inclusive Caravaca e até Lisboa. Jaén é a província que melhor
conhe-ce. Por motivo das demoradas permanências, freqüentes visitas,
viagens de transferência é-lhe familiare grande parte de suas vilas e
povoados: Beas, El Calvário, Baeza, Ubeda, Manchuela, carolina, etc..
Suas oliveiras têm a cor do carvalho castelhano. Granada é onde mais
tempo viveu. Porém limita-se à cidade, sem contato com outros
povoados da província. Vai com prazer também a Córdoba.
Três encargos mantêm-se constantemente paralelos ao longo desses
anos: superior, diretor espiritual, escritor.
Entra em Andaluzia nomeado superior do convento retirado de El
Calvário (1578-79); passa logo a Baeza, como reitor do novo colégio
por ele fundado (1579-82); o resto do tempo viverá em Granada,
primeiramente como prior (1582-85), em seguida como vicário
provincial para a Andaluzia (1585-87), novamente como prior (1587-
88). Revela solicitude nos encargos de governo, principalmente com os
doentes e necessitados. Não é amigo de cumprimentos sociais, e tem
uma esperança realista na Providência que desconcerta os procuradores
de seus conventos. Em geral, muito querido pelos súditos.
Diretor espiritual. O próprio governo das casas estava então mais
para direção espiritual do que hoje em dia. Presta também, relatam as
testemunhas boa assistência à Igreja do convento onde é superior.
Recebe todo tipo de pessoas: catedráticos, estudantes universitários,
pessoas nobres e simples; numerosas pessoas do mundo aproximam-se
dele atraídas por sua fama. Atende com especial carinho e solicitude às
suas irmãs carmelitas descalças. Fora um pedido expresso de Santa
Teresa. Sente predileção pelo primeiro mosteiro que visita ao chegar a
Andaluzia: Beas de Segura (Jaén), que fica perto de El Calvário. A
amizade será mantida apesar das mudan-ças de residência.
Apesar dos cargos e das viagens, são esses os anos mais tranqüilo da
sua vida. está livre da luta com os calçados, e ainda não o alcançou a
dis-córdia interna da Reforma. Durante esse tempo redige as suas
grandes obras, primeiramente em forma de poemas ou de avisos, que em
seguida organiza em comentário sistemático. Granada é o seu escritório.
Ao lado da Alhambra, dominando o panorama a famosa Vega y Sierra

24
Nevada, escreve rapidamente. O comentário da Chama viva, em apenas
15 dias e entre muitas tarefas!

5. Maturidade e morte
A partir de 1586 São João da Cruz não escreve nem poemas nem
prosa. Talvez veja agora melhor a inefabilidade do divino ou procura
maior soli-dão. Desse tempo conservamos somente algumas cartas. Por
serem dos últimos anos, são representativas da maturidade, e mostram
que sua alma apresenta matizes mais brandos, se torna mais suave.
Em 1588 deixa a Andaluzia e se transfere com novos cargos a
Segóvia: prior e definidor. Embora não esteja livre de cargos, deve ter
sido um alí-vio, pois o lugar é retirado, áspero, tranqüilo e está
finalmente na Castela, como tanto almejara. Por uma vez os superiores
parecem concordar com ele.
Aparências enganosas. Sua proximidade do governo central, seu
cargo fazem com que interfira e se pronuncie sobre negócios candentes.
Homem silencioso e alheio a tramas, encontra-se agora metido num
assunto trans-cendente: a Consulta, governo central criado e acalentado
pelo Frei Nico-lau Dória, vigário geral, que quer trazer a si todos as
questões relativas às monjas e fazê-los passas por muitas mãos. É um
governante de Estado Maior, que vê conventos e não almas, carece de
sensibilidade para avaliar as necessidades espirituais das filhas de santa
Teresa. São João da Cruz vê almas e conhece os ambientes. Chega-se ao
contraste: o profeta Dória jul-ga imprescindível o seu plano para o
governo da Ordem; o Santo conside-ra-o desastroso. Opõe-se, único
entre os consultores.
No primeiro Capítulo geral de 1591 João fica sem cargos (ao passo
que Dória continua como vigário). É o que o Santo pedia. Mas não o
atenderam por complacência, mas porque eles o desejavam. E estes
últimos meses sem cargo, que poderiam ter sido de tranqüilidade,
converteram-se em seis meses de borrasca, em pouco inferiores ao
cárcere de Toledo.
João fica sem autoridade (pela primeira vez depois de 22 anos na Re-
forma), inerme nas mãos de inimigos encarniçados e com poderes. O
gesto é humilhante na opinião de todos. Para agravar as coisas, recebe a
autori-dade que o Santo deixa, um religioso vingativo, que há muito

25
espera a oca-sião para humilhá-lo. Começa a campanha de calúnias, de
investigações que envergonham os frades e as monjas. Diversos amigos
do Santo, caídos no embuste afastam-se dele e o abandonam. Entretanto,
João foi transferido ao deserto de La Peñuela (hoje La Carolina), onde
recebe notícias alar-mantes: difamam-no descaradamente, procuram
expulsá-lo da ordem... Por certo tempo pensaram em enviá-lo ao
México. Conserva somente o afeto de pessoas que não lhe podem valer.
Acreditaríamos que o seu cálice de amargura já transborda.
Surpreende-nos esta alma de proporções gigantescas, envolta num clima
de suavidade e amor que tranqüiliza os seus amigos, assustados e
exasperados: filho, onde não há amor, põe amor e encontrarás amor.
Suas cartas desses meses constituem um verdadeiro mistério de
psicologia humana.
Sobrevém a enfermidade, e com pena deve deixar o deserto para
tratar-se. Pode escolher o convento: Úbeda, Baeza, e também Granada,
embora esteja mais distante. Escolhe Úbeda, onde o prior o enxerga de
maus olhos, recorda-lhe fatos desagradáveis, conta a comida e os
remédios. João da Cruz: nasce nela e nela morre porque quer.
Apesar das testemunhas, o requinte de sua alma continua oculto. Há
nele um plano bem pensado.
Poucos dias antes de falecer, João da Cruz está de cama, oprimido
por dores físicas e morais. Chamado com urgência vem visitá-lo Frei
Antônio de Jesus, seu companheiro de Duruelo, que agora é provincial
de Andalu-zia. Chega no dia 27 de novembro, véspera do aniversário da
fundação de Duruelo. Os religiosos acham-se reunidos na cela do
enfermo. Frei Antô-nio, para consolá-lo, recorda-lhe: amanhã são vinte e
três anos que come-çamos a primeira fundação. Os religiosos pedem
que conte detalhes da-queles dias. Frei Antônio evoca...
João da Cruz interrompe imediatamente: Frei, é esse o juramento que
fizemos de que em nossa vida não se havia de tratar nem falar nada
disso?19

6. Ambiente histórico

19 Cf. Crisógono, Vida cap. 20, pág. 329.

26
Coube-lhe viver num momento culminante da história da Espanha. É
supérfluo recordá-lo. Todavia, a vivência são-joanista apresenta
modalidades que se devem conhecer, para não deformar a sua figura
recorrendo ao ambiente que a explique.
Pintar grandezas sociais e politicas de Espanha, pretendendo com
isso proporcionar base humana da personalidade de João, é sujeição ao
tópico que explica o homem ou o autor por sua circunstância. João não
tolera esse molde. É certo que vive contemporâneo de grandes fatos, de
grandes figu-ras da sociedade e da cultura. Porém mostra-se alheio a
todo o brilho posti-ço. Não vive o sucesso histórico enquanto notícia.
Ignoramos se o coração do santo se estremecia por conquistas,
descobertas, prestígio coletivo, façanhas cavalheirescas.
Repassamos os anos ricos de Medina, Salamanca, Ávila, Granada.
Ne-nhuma inflexão nos seus escritos, ou nas conversas posteriores; não
temos recursos à autoridade civil; nem comparações militares ou de
conquista. Não possui grande mestre ou amizade; nem relação com
grandes da polí-tica, ou da sociedade, ou religiosos que se tenham
tornado famosos (com exceção de Santa Teresa, por necessidade das
coisas).
Passa como que correndo, sem esbarrar no mundo em que vive,
grandes cidade ou homens famosos. Tudo desintegra, assimilando o
conteúdo. Só ele sobrevive. Não há notícia de algo alheio que sobreviva
fora. Parece que cria a circunstância ao passar, e logo em seguida a
enrola, levando consi-go, como a tenda do pequeno comediante nas
festas dos povoados.
Está em aberto contraste com outras modalidades, por exemplo, a
teresiana. Por gratidão, por temperamento expansivo, por irradiação ou
por menor força assimilativa. Santa Teresa salva a sua circunstância em
quanto tal, pessoas e coisas. Faz constar que estavam ali quando ela
passou, apro-veitou-as e continuam no mesmo lugar depois de terem-se
relacionado com ela. esta notícia concreta pode tomar forma individual:
a aventura, a doença, a experiência mística. Nos escritos serenos e
doutrinais de Frei Luís de León ouvimos lamúrias e penas. Deduzimos
lugares e também poderíamos dar nomes próprios a muitas páginas.
São João da Cruz cala-se.
Este poderoso silêncio interior e exterior que envolve a sua alma

27
enga-nou muitos, fazendo-lhes crer que João transcorre a sua vida no
deserto, sem deixar entrever a vida do mundo. «Esse frade de tão
escasso porte não conquistou Índias, certamente, nem sofreu as
peripécias do caminho sob intempéries, nem sequer saiu do seu rincão
nem de si mesmo»20
É uma interpretação material e muito difusa da solidão interior
cultivada pelo santo. Mas fica à margem dos fatos e dos dados
históricos. Desmente-a a leitura dos Processos, onde nos falam os seus
companheiros de viagem. Enumeram-se caminhos sem conta,
estalagens, povoados, aven-turas de chuvas, mulas, cachorros, rixas,
solicitações. São João da Cruz andou muito por Castela e Andaluzia,
viveu meses e anos fora do conven-to, em pousadas e estalagens 21.
Calculando as viagens, desde o início da Reforma, e somando o tempo
empregado, talvez tenha gasto pelos cami-nhos dois ou três anos de sua
vida. Dá para conhecer o ambiente!
Apesar de sua estraneidade, nós o vemos carregado com as mais ricas
essências do Século de Ouro espanhol. Traz a seiva, o sangue de sua
raça, com toda a vitalidade ascendente do momento histórico. Não
realiza uma manobra intemporal ou impessoal. Numa Espanha
carregada de humanismo divino, João sorve aos goles, com extrema
sensibilidade. Acolhe quan-to lhe ministra o ambiente; procura
assiduamente o que está a seu alcance: ciência, artes, virtude.
Do afortuna século recebe a fé depurada, profundidade religiosa,
senti-do transcendental da vida, arte e espirito da palavra. Embora tenha
tratado menos com o mundo, a sensibilidade cultivada, a amplidão do
espírito su-prem com vantagens à freqüência do contato 22.
«Com Carlos V vivemos uma Espanha voltada para o exterior:
guerras, humanismo, conceito pleno da unidade da Europa... Com Filipe
II, ao con-trário, assistimos a uma Espanha recolhida, ascética, de lutas
universitárias (ao invés do predomínio guerreiro do momento anterior),
20 J. Guillén, Linguaje y poesias, em Revista de Occidente (1962) pág. 112.
21 «Ordinariamente, quando caminhava, nunca aceitava, mesmo que lhe oferecessem os
hospedeiross e arrieiros cama e outras roupas para se acostar; sempre dormia no chão sobre uma
manta, porque era pouco o que dormia» (cf. Crisógono, Vida, pág. 295).
22 L. Pfandel, Cultura e costumbres del pueblo español de los siglos XVI e XVII. Introducción
al estudio del Siglo de Oro. 3ª ed., Barcelona, Araluce, 1959; K. Vossler, Algunos caracteres de la
cultura española, Madrid, Espasa-Calpe, 1944.

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cujo melhor monumento plástico representativo é a escola arquitetônica
do El Escurial, e cuja melhor equivalência musica se encontra no
patetismo sacro de Vitória»23.
João vive no segundo período, no da interioridade. talvez seja este
um fator que explique a diferença de gostos descritivos que o separa de
santa Teresa. Sua juventude pertence a duas gerações distintas. Teres
pertence a idade imperial, João a época posterior e mais reconcentrada.
Qual clima religioso, respira João algumas preocupações da reforma
protestante e outras que distinguem os contra-reformadores católicos. A
afinidade ou o antagonismo não devem ser vistos como mera reação
(dian-te da espontaneidade protestante). É, sim, uma espontaneidade
contrária. Duas reações divergentes diante de uma situação idêntica 24.
Viveu como carmelita, não se relacionando com outras ordens reli-
giosas. Outro traço que o distingue de Santa Teresa. Dentro da Reforma,
embora tenha tido cargos, viveu, isso sim, à margem dos graves
problemas sociais e de governo que então agitavam-se barbaramente.
Viveu sua voca-ção instintivamente, sem afã de imitar os primitivos
nem distinguir-se dos calçados.
Tem consciência de viver num século de grandeza e de miséria. Dá
no mesmo, a providência governa tudo: «sempre o Senhor descobriu os
tesou-ros da sua sabedoria e espírito aos mortais; mas agora que a
malícia vai descobrindo mais ainda sua face, muito mais os descobre»
(AA 1).
Acima das afinidades que o vinculam ao seu ambiente e das
peculiaridades que o distinguem, está o carisma divino que entrega este
homem à igreja e à humanidade; este é João da Cruz, homem
inconfundível e que não se repetirá jamais.

7. A paisagem
«Desde o primeiro dia em que conheci a austera mas luminosa beleza
de Castela, alegrei-me por ter São João da Cruz nascido nela. Hoje, após
um quarto de século em crescente intimidade com o seu pensamento,

23 A. Valbuena Prat, La vida española en la edad de oro, Barcelona 1943, pág. 8.


24 E. Przywara, teologúmeno español y outros ensayaos ignacianos, Madrid, Guadarrama,
1962, pág.s 25-26.

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parece-me impossível que tivesse podido nascer em alguma outra
região»25.
A geografia vai proporcionar-nos um caminho de acesso ao interior
que nos parece negado pela história? A paisagem não pode ser usada
mecanicamente na interpretação da sua figura e da sua obra.
Levados pela correspondência homem-paisagem-escritos, tendemos a
construir um rígido paralelismo de tópico: em Castela recolhe elementos
para a «noite»; na Andaluzia, para o «cântico».
Resulta porém que escreve o poema do Cântico, com as imagens mais
brilhantes de sua obra, no cárcere e sem ter saído da Castela. Em troca,
compõe as estrofes da Noite na paisagem pinturesca e variada de El Cal-
vário, na Andaluzia. Não há história nem geografia que explique este
homem excepcional. A Noite haure as cores carregada do seu interior.
As imagens de serenidade, amor, luz, ar libre, que dão vida ao Cântico,
não vieram da paisagem imediata (calabouço estreito e sem janelas),
mas que o artista as arrancava atiçado de sua própria alma.
Com essas ressalvas, podemos falar da importância da paisagem na
vida e na obra do Doutor místico. É impróprio falar de paisagem como
objeto inerte de contemplação. A noite é mais do queo fenômeno
cósmico; cola-bora, move-se com o protagonista, cúmplice de uma
aventura de amor: em uma noite escura, saí... Os montes. os rios, flores
entram na cena como dialogantes, respondendo á pergunta da alma que
procura o Amado. Com maior razão talvez podemos aplicar a São João
da Cruz o que foi dito de Gabriel Miró: A paisagem de Miró parece uma
experiência pessoal; não é algo que viu, mas algo que se passou, que
aconteceu com ele, assim como uma ventura, como um amor» 26.
João da Cruz é de Castela, permeado apor esta terra escatológica,
feita som sua medida. Tem os gostos austeros do povo que ali vive. Na
Andalu-zia é conhecido pela região, mais do que pelo povoado de
origem. «Ouviu dizer que eram (João e seu irmãos) de Castela, a Velha,
de um lugarejos dela., declara nos Processos um religioso andaluz,

25 A. Peers, Spirit of flame, Nova Iorque, 1944, pág. 4. Outro texto: «Outrora jamais tive sem
dúvida a impressão tão forte de alcançar este austero amigo do que está além do sensível, do que
quando me embebi de todas as paisagens que ele amou» (J. Baruzi, prólogo ao livro de M. Milner,
Poesie et vie mystique chez saint Jean de la Croix [Paris, Seuil, 1951] pág. 11).
26 Pero Salinas, citado por J. Guillén, Lenguaje y poisia, pág. 197.

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súdito do Santo27.
Na primeira carta que do Santo se conservou, ecoa a queixa de quem
perdeu um grande bem: «Console-se comigo, que mais desterrado estou
e sozinho por aqui; pois depois que engoliu aquela baleia e me vomitou
neste estranho porto, nunca mais mereci vê-la (a Madre Fundadora),
nem os santos de lá (Castela)» (Carta 1,6 de 7-81).
Mais explícito e insistente tiveram de ser suas declarações à Santa, ao
saber que ela podia conseguir junto do frei Graciano sua transferência
para a Castela. Assim escreve Teresa ao provincial: «Estava
esquecendo-me de suplicar vossa paternidade um bolo de Páscoa; praza
a Deus que me aten-da! Saiba que, ao consolar frei João da Cruz da
pena que tinha por se encontrar na Andaluzia, pois não agüenta mais
aquela gente, prometi-lhe que, se Deus nos concedesse província,
procuraria fazer que voltasse para cá. Pede-me agora o cumprimento da
palavra, e tem medo de ser eleito em Baeza»28 .
Terra dura e ao natural, o pequeno planalto de Castela, onde
transcorre a maior parte da sua existência, com um céu próximo e
luminoso que fe-cunda e castiga tenazmente. Há muitas pessoas
incapazes de penetrar na bela nua e áspera da região por influência
desapercebida de princípios extra-estéticos. Não é o mesmo saborear a
beleza de uma paisagem e querer viver nela. Não o acham bonito,
porque lhes parece incômodo e improdutivo29.
El Greco, tendo chegado a Toledo no mesmo ano que João da Cruz,
não foi mais capaz de ir-se embora dali. No nosso século outros sentem
o encanto: «Se pudesse, eu me estabeleceria nesta velha Castela, como o
meu compatriota El Greco», escreve Nikos Kazantzaquis, Nobel de
Literatura (1883-1957). São mais do que palavras, pois fez o que pôde e
procurou recomendações para alcançar um lugar como docente que lhe

27 O Frei Baltazar de Jesus. Cf. BMC, tomo 14, pág. 137.


28 Carta 358, 24.0.1581.
29 «Existe um preconceito inaceitável que só considera bonita paisagens onde o verde reina.
Creio que influencie essa opinião certo confuso resto de utilitarismo, alheio e mais ainda inimigo da
estética da contemplação. A paisagem verde promete uma vida cômodo e abundante. O pequeno
burguês indestrutível que se afana sempre em algum rincãozinho de nossa alma, favorece
interesseiramente nosso entusiasmo desinteressado pelos esplendores ada vegetação. Não lhe
interessa o valor estético do verde esmeralda; porém, hipócrita, louva-o enquanto pensa na colheita
que se anuncia...» J. Ortega y gasset, El espectador. III: «De Madrid a Astúrias»).

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permitisse viver aqui.
A paisagem dura, árida ou de vegetação rala, distrai menos e evoca
muito mais.
Na Andaluzia, João vive pertos dos rios: Guadalquivir, Gaudalimar...
Sua inicial repugnância irá desaparecer. De fato, o novo ambiente pro-
porciona-lhe amizades fieis, e também paisagens austeras, parecidas
com as da Castela. Aqui redige suas grande obras.
Viu o mar em Málaga e Lisboa. Passeios freqüentes, contemplação
noturna nas margens do Guadalquivir ou nos estribos da Serra Nevada.
As belezas deste mundo contagiam-no.
Chega até a haurir gosto da exuberância, das cores, dos costumes
mais vivazes do povo andaluz. Devem ter-lhe parecidos exagerados que
a fun-dação de alguns conventos ( como o da Manchuela) fossem
acompanhados por danças, músicas, fogos e outras manifestações
extravagantes. João vê e cala-se. Escrevendo à irmã Ana de Santo
Alberto, dá-lhe notícias rela-tivas à solenidade com que se acabava de
inaugurar a fundação dos reli-giosos em Córdoba. Percebe-se que ainda
está sob os feitiços das cores e da movimentação: «acabou-se de fazer a
fundação dos frades em Córdoba com o maior aplauso e solenidade de
toda a cidade que se fez ali religião alguma...; todas as ruas muito bem
enfeitadas e o povo como dia de Corpus Christi...» (Carta 5, 1586).
A predileção por Castela permaneceu sempre viva. Porém não fez
disso uma tragédia, nem sequer motivo de melancolia. Permanecia no
fundo do seu coração um gemidozinho que dobrava a sensação humana
de dester-rado. João tinha vindo à vida e ao amor de uma vocação em
Castela. Podia pois com maior razão do que A. Machado, cantar desde a
Andaluzia:
«Por que, me dizeis, para os altos planos
foge meu coração desde esta ribeira,
e em terra de lavradores e marinheiros
suspiro pelos irmãos castelhanos?
Ninguém escolhe o seu amor. Levou-me um dia
meu destino a clareiras cinzentas
donde espanta ao cair da neve fria
as sombras dos mortos carvalhos.
Daquele pedaço de Espanha, alto e rochoso,

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hoje trago a ti Guadalquivir florido,
um ramo de áspero alecrim.
Meu coração está onde nasceu,
não à vida, ao amor, perto do Douro...
O muro branco e o cipreste altaneiro!»
(De Sueños dialogados)

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