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f u n d a ç ã o c ata r i n e n s e d e c u lt u r a | n ú m e r o 6 8 | 2 0 0 8
expediente
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especial
histórias, também, de
mentirosos, e aprendi
a ser mentiroso.”
Fra nklin Ca sca es
SimplesMENTE cascaes
Tânia Regina Oliveira Ramos bra a cultura moderna. Daí a cum- nas um livro, mas treze lugares da
plicidade dos autores às genealogias linguagem”. Complemento e suple-
Os artistas que permanecem são (Talvez a primeira e última carta); mento obtidos pela organização e
aqueles autores de obras acompa- aos lugares próximos e distantes (O apresentação destes dois escritores,
nhadas por grandes sistemas estéti- presépio; Uma noite de profunda leitores sempre, Flávio José Cardozo
cos. A cultura produzida na Ilha de insônia solitária); aos espaços míti- e Salim Miguel.
Santa Catarina possui algumas mar- cos e místicos (O “Minha Querida”; Denise de Castro, em sua boni-
cas e alguns marcos. Hoje eu não O Abençoado; Mistério no Miramar); ta canção-homenagem, diz que “a
temo dizer que há uma literatura ao tempo transgressor (Dois bando- festa hoje é pra Cascaes”.4 No re-
antes e depois de 13 Cascaes1, uma lins; O diário da virgem desapareci- frão ela alegremente canta que na
antologia que reúne treze leitores da); ao humanismo (Branco assim da freguesia do Ribeirão “é vento, é
de Franklin Cascaes, em treze nar- cor da lua; O folheto); às referências fogo, é caldeirão; eu vi passean-
rativas que, evitando o naturalismo, reais ou simbólicas em histórias mes- do na clareira, uma misteriosa
o puro simulacro da realidade que cladas de verdade e de poesia (His- reunião”. Poderíamos dizer que
não se repete, criam uma seqüência tória praiana; Ao entardecer; Noites era essa misteriosa reunião de
de histórias fantasmais, aventuras de encantamento), que conseguem cascaes. Na festa do livro que
da mente, no que estas cinco letras elaborar um universo rico em con- agora li entraram cabalistica-
— MENTE — têm de carga semânti- tradições, especialmente porque mente “treze cascaes”. Mas
ca. Cérebro, sufixo de advérbios de todos os enredos passam pelo poder se “passam no ar vassouras
modo e terceira pessoa do singular da linguagem, da palavra contada, voadoras, que dão gargalha-
do verbo mentir. Assim cada MENTE, da história inventada, e não apenas das pelo ar”; aproveitando
dos treze convidados para este revi- pela preocupação teórica da veros- a “lua cheia; em coro”
val de Cascaes, MENTE verdadeira e similhança. começando “a cantar”5,
poeticaMENTE .2
O fascínio da alteridade — des- não haverá mistérios se
A epígrafe do ensaio faz uma ho- te outro inexplicável — é uma das daqui a pouco encon-
menagem a estes falsos mentirosos3, marcas das narrativas fantásticas. trarmos mais cascaes
arrolados alfabeticamente: Adolfo Outras dimensões, outros mundos continuando a contar.
Boos Junior, Amilcar Neves, Eglê Ma- narrados, as ilustrações de Tércio da Porque, como sabe- 1
13 CASCAES. Flávio José Cardozo e Salim Miguel (org.).
lheiros, Fábio Brüggemann, Flávio Gama, o prefácio, as notas do editor, mos, temos muitos fal- Ilustrações de Tércio da Gama e Franklin Cascaes.
Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2008.
José Cardozo, Jair Francisco Hamms, os créditos estatais, que remetem sos mentirosos. Logo,
Júlio de Queiroz, Maria de Lourdes e dialogam com os traços e com os verdadeiros. Simples-
2
ffonso Romano de Sant’Anna em 1980 faz um jogo
A
poético com este sufixo em um instigante poema
Krieger, Olsen Junior, Péricles Pra- desenhos bruxólicos de Franklin Cas- MENTE cascaes. n político, chamado “Implosão da Mentira”.
de, Raul Caldas Filho, Salim Miguel caes, não desglamourizam a fantasia 3
Silviano Santiago, em 2004, lançou um romance
e Silveira de Souza. Numa mistura das letras e das palavras. Pelo con- intitulado “Falso Mentiroso”, que coloca em xeque
exatamente os limites entre real e ficção num jogo de
de memórias de leituras e memó- trário. Servem como complemento e máscaras e de referências.
rias ficcionais, onde o fantástico é suplemento. Complemento que Gel- 4
ara ouvir a canção recomendo o blog www.
P
sempre evocado, somos encantados ci José Coelho, o Peninha, é no li- carosouvintes.org.br/blog/?p=370. Acesso em 02 de
novembro de 2008.
pelas histórias contadas por autoras vro com seu depoimento factual, de
e autores, especialmente porque em
5
esta pra Cascaes é interpretado também pela cantora
F
quem conviveu e viveu com Franklin
Ive Luna no CD a ser lançado em breve: Narrativas de
cada narrativa há uma presença ou Cascaes. Suplemento na Invocação Catarina.
uma essência de Franklin Cascaes feita por Dennis Radünz, numa lei-
texto | tânia regina oliveira ramos
como um fantasma que, sem cair tura auricular, profunda, pontual, professora da UFSC, atualmente coordena o
no fetichismo da tradição, assom- do significado deste que “não é ape- Programa de Pós-Graduação em Literatura. 3
O Catarina | número 68 | 2008
fotomontagem ayrton cruz
especial
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O Catarina | número 68 | 2008
especial
O talento para retratar o que escutava — no papel, no observa que, mais tarde, essas criaturas aparecem relacio-
barro ou na pedra — o levou a lecionar na Escola de Apren- nadas ao “asfalto, à eletrificação, à construção de prédios
dizes e Artífices de Santa Catarina (atual Centro Federal de no lugar dos antigos casarios coloniais, aos avanços tecno-
Educação Tecnológica — Cefet), a convite do diretor da ins- lógicos como a ida do homem à Lua, a popularização da
tituição, o professor Cid Rocha Amaral. Durante cerca de 40 televisão, a construção da segunda ponte e a intensificação
anos, Cascaes ensinaria desenho, escultura, modelagem e do turismo” — situações que assustavam Cascaes mais do
trabalhos manuais, construindo uma carreira que vem sendo que qualquer praga rogada por uma mulher “enganadeira
estudada pela aluna Denise Araújo Meira em sua dissertação dos marido com os próprios cumpadres”.
de mestrado em educação pela Universidade do Estado de Antes de a preocupação com o meio ambiente trans-
Santa Catarina (Udesc). formar-se em retórica onipresente em qualquer segmento
Foi nas dependências da escola que, em 1946, o pro- “inteligente” da sociedade, ele já atacava o descaso com
fessor começou a aprofundar seu mergulho pelos costumes, a natureza. “Que fazem os homens responsáveis pela fau-
práticas e conhecimentos dos descendentes dos açorianos na e pela flora? Nada, é tudo conversa fiada”, indignava-se
que colonizaram Florianópolis. Na época, a provinciana ca- contra aqueles “que têm a distinta obrigação social, técni-
pital aderia incondicionalmente ao desenvolvimento urbano, ca-ambiental de protegê-las contra a ganância desenfreada
abrindo mão do passado em prol de um estilo de vida trazido de ricos depredadores”. E lamentava: “Que pena, ó minha
dos grandes centros. Aos 38 anos, talvez prevendo que, se mui querida Ilha de Nossa Senhora do Desterro! O homem
as mudanças continuassem naquele ritmo, pouco da cidade que vive este século está obcecado pelo deus inferior que o
que ele aprendeu a amar chegaria intacta aos netos e bisne- está conduzindo por caminhos tão tortuosos que me fogem
tos dos pioneiros, Cascaes trilhava a direção contrária. à imaginação, para poder comentar a direção certa da sua
Às suas próprias custas, passou a coletar antigas histó- desaconselhável caminhada.”
rias, que tratava de eternizar em alguma das muitas artes Cascaes não viveu para ver alguns de seus piores temo-
que dominava. Havia virado artista, então? Sim, mas não res confirmados, como o aterramento de mangues para sedi-
com essa intenção. Mesmo se quisesse, não poderia aban- mentar empreendimentos comerciais, as “favelas de ricos”
donar o magistério: “Não dá para viver de arte, o artista é (como se referia aos prédios de apartamentos) alterando
sempre pobre, visto como um malandro”, dizia. Em vez de radicalmente a paisagem da cidade e ruas sendo duplicadas
lamentar a falta de apoio, embrenhava-se pelo interior da para dar vazão ao trânsito crescente. Sua morte, em 1983, o
Ilha, onde se sentia mais à vontade com as manias e o lingua- impediu também de presenciar histórias que desafiam a ló-
jar peculiar dos manezinhos — traduzidos com fidelidade em gica muito mais do que aquelas recolhidas em suas andanças
seus escritos — do que com a última novidade tecnológica pelos recônditos da Ilha. Só que, desta vez, protagonizadas
incensada pelos “almofadinhas” da cidade. por gente letrada, urbana e vivíssima. Até demais. n
Graças ao que o clichê acadêmico convencionou cha-
mar de “resgate” perpetrado por Cascaes, veio à tona todo
um universo imaginário condenado ao desaparecimento em
nome da modernidade. Como, por exemplo, as diferenças
5
O Catarina | número 68 | 2008
especial
Entre rendas
e bruxas,
as malhas
do folclore
catarinense
aline carmes krüger teve interessado em registrar e preser-
var a cultura das comunidades, princi-
A Coleção Professora Elizabeth Pa- palmente as do interior da Ilha de Santa
van Cascaes, nome dado ao conjunto Catarina. Em seu Caderno 74, expõe:
de obras do artista Franklin Joaquim “possuo um grande acervo de obras em
Cascaes, é composta de esculturas em letras, esculturas, desenhos e trabalhos
argila crua e gesso, desenhos a bico de manuais, documentando vários assuntos
pena e grafite, e manuscritos. A prin- ou motivos folclóricos, material sempre
cipal característica da obra de Cascaes recolhido na fonte original [...] O meu
é sua ligação profunda com as fontes interesse é ajudar a recolher, divulgar e
populares; seu trabalho registrou o jei- guardar as tradições desta Ilha de Santa
to de ser, agir e pensar dos moradores Catarina e seus arredores. Faço desinte-
da Ilha de Santa Catarina e arredores. ressadamente, e a apresento também,
Em suas pesquisas folclóricas nas co- imortalizando-o na força espiritual que
munidades no interior da Ilha, coletou as artes plásticas exercem sobre as na-
dados da tradição local, construindo e ções para documentarem a raiz histórica
organizando o tempo e o espaço da sua das suas culturas tradicionais dentro dos
memória oral e visual. tempos e que hoje avançam acelerada
As manifestações folclóricas são para o futuro tecnológico moderno”.
dinâmicas e se renovam pela incorpo- O folclore é o retrato vivo dos sen-
ração de novos elementos dos grupos: timentos populares. O registro etno-
transformam-se, ampliam-se, adaptam- gráfico feito por Franklin Cascaes até o
se. Entende-se por folclorista a pessoa ano de 1983 reflete a formação de uma
que exerce como atividade de trabalho identidade através da oralidade, dos co-
a investigação das tradições populares. nhecimentos tradicionais, dos saberes e
6 Cascaes, como pesquisador, sempre es- dos sistemas de valores. Como sugere
Da palavra ao texto:
a experiência do narrador Cascaes
kellyn batistela e suas idéias tiveram origem no tecido plástico, sustentando que viveu tudo o que se inicia a queda da oralidade ou do
da coletividade. que narrou. enfraquecimento dos laços comunitários.
Muitos são os escritores, artistas ou Cascaes percorria a Ilha de carroça, O procedimento de salvaguardar a A memória de Cascaes pode ser en-
críticos que se debruçaram no estudo canoa, Kombi ou a pé, anotando, em tradição, bem como a operosidade da tendida como conservação ou elabora-
da memória, buscando, ao se voltar cadernos ou folhas avulsas, histórias, criação do artista/escritor, apresenta-se ção do passado, pois o medo de esque-
para o passado, compreender o homem rezas, hábitos e costumes das fregue- através de textos em processo, os quais cer motiva o pesquisador a registrar a
em sua individualidade e em seu conví- sias pesqueiras e rendeiras do interior deram origem a publicação de dois livros experiência dos interioranos, além de
vio social. Muitos destes não se furta- da Ilha. Não é à toa que diz ter iniciado de contos. Todavia, existem outros que, haver a necessidade de reinvenção deste
ram em basear sua busca em elementos seu trabalho pela saudade do passado, entre folhas manuscritas, hibernam a ori- mesmo passado pela impossibilidade de
de vivência pessoal. Talvez a principal pois ao ouvir os causos contados pelos ginalidade de seus conteúdos. Cascaes recuperá-lo como experiência autêntica
motivação de Franklin Cascaes, no de- colonos-pescadores, evoca simultanea- inventariou, a seu modo, a experiência de vida. Compreender a memória de
senvolvimento de seu trabalho, tenha mente a sua experiência individual, de sua comunidade afetiva. Este procedi- Cascaes como algo socialmente vivo é
sido pessoal, pois, ao testemunhar construída entre as rodas de trabalha- mento arquivista construiu um rico acer- opor-se ao uso que as instituições públi-
melancolicamente o desenvolvimento dores de engenho. Desta relação de per- vo nas letras, escultura e desenho. Como cas, inclusive a academia, faz da tradi-
urbano de Florianópolis, Cascaes fazia tencimento com a comunidade, ou seja, supérstites da memória, os textos de ção. Por isso, Cascaes filia-se a figura do
parte da comunidade representada em apoiando a sua memória na memória Cascaes, resultados de anos de pesquisa narrador épico, aquele cuja obra é res-
sua obra. Não há como separar sua vida dos outros, advém a autoridade a partir com os narradores populares, guardam o taurar as tramas desfeitas pelo esqueci-
8 de seu trabalho, pois seus sentimentos da qual legitima seu trabalho escrito e registro da experiência no momento em mento ou ameaçadas pelos novos hábitos
Compreender as lendas do folclore é como aceitar o convite para uma festa povoada de personagens pi-
torescos e tipos carregados de esquisitices: bruxas voltadas para o mal, curandeiros dotados de segredos
capazes de modificar o corpo e a alma, luas cheias de poder, lobisomens bravos atormentando noites sem
luzes, animais disformes e cheios de mistérios, tortuosos embates entre a fé e a descrença. Conhecê-los
é saber um pouco mais da história, do passado, da tradição, da vida, e até de nós mesmos. Para guiar esta
viagem, convidamos o antropólogo Eugênio Pascele Lacerda, gestor de projetos culturais da Fundação
Catarinense de Cultura, professor do curso de museologia do Centro Universitário Barriga Verde (Uni-
bave), em Orleans, e associado do Instituto Cultura em Rede e do Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC.
de Franklin Cascaes
1.
Péricles Prade Trata-se, portanto, da primeira interior da Ilha de Santa Catarina (co- costumes, crenças e superstições, cor-
preocupação dos estudiosos no tocante munidades rurais), de origem indígena respondem a estórias recontadas. Daí o
a suas produções bidimensionais e tridi- (Carijós) e portuguesa, mormente de caráter/conteúdo narrativo neles, nos
Vida e obra
2.
mensionais. influência açoriana. contos e versos, divulgando a tradição
Pondero, de início, que, se “o ar- Os desenhos, plenos de detalhes, oral sob duplo enfoque: o visual e o da
tista é origem da obra, assim como a com texturas nem sempre harmônicas, escritura. Aliás, para melhor compreen-
obra é origem do artista” , não se pode
1 Suporte/técnica às centenas, alguns inacabados, repre- dê-los, necessária é a justaposição ana-
analisar o vasto acervo dos desenhos de Como suporte da produção bidimen- sentam, na transposição do código da lítica desses dois discursos complemen-
Franklin Cascaes sem o prévio conheci- sional, usava esboços (ou rascunhos) so- oralidade para o da visualidade, perso- tares de sua poética.
mento de sua vida. bre papeizinhos velhos e amarelados, os nagens e cenas (a) de bruxaria, em que a Assim, sem colocar à margem sua es-
Quer-se dizer, por quais, segundo o museólogo Gelcy Coe- sexualidade é reprimida pelo “atavismo pecificidade, no plano do conjunto das
óbvio, que a obra e lho, constituem o elemento mais valioso cristão”2, (b) de monstros de variegadas características formais, os desenhos,
o autor são indis- para a tentativa de compreensão de seu espécies (boi-tatá, lobisomem, caipo- sob pena de reducionismo estético, não
sociáveis, pois, processo criativo. ra, vampiro, seres terrestres, marinhos devem ser examinados de modo autôno-
como alertou São, a rigor, verdadeiros ensaios grá- e aéreos), além de registrar (c) festas mo, isto é, sem remetê-los à linguagem
o filósofo ale- ficos, obsessivos, visando à composição profanas ou sob o signo da religiosidade, da prosa e da poesia, conquanto aquela
mão, nenhum dos desenhos definitivos, trasladados (d) jogos infantis e tipos populares, sem seja permeada de erros gramaticais, e
4.
dos dois se com grafite ou nanquim preta (bico de esquecer, o obcecado pesquisador, (e) a esta de versos de extração ingênua.
sustenta isola- pena) para uma folha maior e de melhor típica arquitetura colonial, as atividades
damente. qualidade, adstritos a um atípico ponti- relativas ao (f) exercício da pesca (com
Enfim, sem conhecer a lhismo, e, às vezes, ao redor (nos can- as redes, bóias, cordas, catutos), (g) o Reinos mesclados
biografia de Cascaes, com ênfa- tos), ou no rodapé, explicados mediante cultivo da mandioca (agricultura artesa- Consta3 que Cascaes não acreditava
se no passado, desde a época textos compactos decorrentes de idéias nal), (h) o ambiente físico (pondo relevo nas descrições dos moradores da região,
em que brincava na Praia de surgidas no momento, quando, então, nas pedras de insinuação orgânica), e, “pessoas analfabetas ou semi-alfabe-
Itaguaçu, onde nasceu, ou provocavam o advento de novas obras, inclusive, entre outras, (i) preocupa- tizadas de meados do século XIX”4, se,
3.
seja, in illo tempore, qual- algumas retomadas anos após. ções de ordem política (bomba atômica, para ele, fantásticas são as coisas e as
quer exegese pecará pela guerra fria, lutas feministas, campanhas criaturas, resultantes do medo das famí-
base. eleitorais etc.), para demonstrar o vín- lias isoladas, à época, mas não o homem
Repertório temático culo ao Real, não obstante as fantasias enquanto tal, integrante da realidade fí-
O repertório é composto por temas também emergidas ao tratá-las. sica circundante.
inerentes ao imaginário popular, fru- Temas que, diga-se de passagem, Acredito nisso. O artista não se li-
12 to da tradição oral dos habitantes do realçando o Bestiário, fundados em mitava a transcrever, ou visualizar,
5.
p. 25.
cialmente visual”6.
3
ESPADA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. Florianópolis:
Publicações Fundação Franklin Cascaes, 1996, p. 25.
6.
Labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 49.
b) o Maneirismo, caracterizado pela los estarem presentes; interior da nossa ilha.
contorção, distorção, deformação e e) o Medievalismo, ancorado na in-
10
LITTLE, Stephen. ...Ismos Entender a Arte. Londres
(Ed. Portuguesa): Lisma, 2007, p. 46.
ambigüidade, embalado pela “relativi- tegridade, espiritualidade, pureza ima-
Presença do fantástico ABRIS, Annateresa. “O Surrealismo Pictórico: a
F
11
c) o Barroco, por estarem à deriva cor preta (no contraponto luz e sombra); A afirmação é verdadeira, já que 15
ESPADA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá.
Florianópolis: Publicações Fundação Franklin
das proporções clássicas, valorizando g) o Naïf, em virtude da falta de do- se pode “apreciar a presença fantás- Cascaes, 1996, p. 30.
mais a unidade do desenho e seu efeito, mínio técnico, constatável na ausência tica em todas as épocas e disciplinas 16
RAÚJO, Adalice Maria de. Mito e Magia na Arte
A
arte dominada pelo movimento, e pelo da perspectiva, prevalecendo a emoção artísticas”13, sem ter características tí- Catarinense. Florianópolis: Ioesc; 1979, p. 83.
excesso, enfatizando o preciosismo na intuitiva, a força expressiva, e que não picas de Escola ou Corrente.
texto | péricles prade
elaboração, com a finalidade de, pela se confunde com o primitivismo de Gau- Assim é, se não se pode desmerecer
é advogado e presidente do Conselho Estadual
ilusão, transformar a realidade; gin, Nolde ou Picasso; o pensamento segundo o qual “o gênero de Cultura. 13
O Catarina | número 68 | 2008
Sob o domínio atento
especial
14
O Catarina | número 68 | 2008
“É, neste mundo de Deus, há muitos mistérios
especial
e esta gente simples aqui da Ilha vive estas coisas
quase como uma realidade. Meus lobisomens,
bruxas, demônios e boitatás existem.”
Vassoura bruxólica
Sempre foi crença do povo hospi- mem, encaminhando-o, espiritualmente, extraordinário. Apostaram um par de ta- chorando copiosamente. A Carriça
taleiro desta Ilha dos famosos bois de para viver com bons modos junto com o mancos contra uma botina. E firmaram a abraçou-se com ela e ambas choraram
mamão que, na Sexta-Feira Santa, não seu Deus, com a cultura, na sociedade e promessa da aposta, casando-a. e sentiram o amargo do néctar da de-
se deve tomar instrumentos de trabalho conseqüentemente com o seu próximo. Na Sexta-Feira Santa daquele ano, sobediência humana.
para usá-los, seja qual finalidade for. Entrementes, sempre aparecem nos de manhã cedo, ela chamou a Carriça, Nenhuma das duas era bruxa, por-
É também costume tradicional deste meandros desses cenários fantásticos, apanhou uma vassoura e foi varrer o que a vassoura, que é um instrumento
povo, descendente de colonos açoria- e outros moderados, pessoas que se quinta “prá-mode” mostrar a sua cora- de montaria de bruxas, foi embora, via-
nos, que, na Sexta-Feira Santa, a par- arrojam contra os poderes divinos, mal- gem contra o poder da fé guardada por jar pelo espaço sideral, sozinha.
tir de zero hora, devem banhar-se nas tratando esses conjuntos de sociedades seus ancestrais e também para cumprir Oh! Minha querida Ilha de Santa Ca-
ondas do mar, levando consigo animais freadoras, veículos insubstituíveis de a promessa da aposta. tarina de Alexandria, és a graciosa se-
domésticos, para purificarem-se e pro- abrandamento dos sofrimentos que mar- Quando a Vivina deu a primeira reia que repousa sobre brancas areias de
tegerem-se de todos os males do copo tirizam e açoitam a criatura humana. varredela, a vassoura soltou-se de cômoros errantes, sambaquis seculares,
físico e espiritual. Um caso de desrespeito espiritual suas mãos quiném um relâmpago, banhada pelas ondas acasteladas do
As águas colhidas nesta hora servem aconteceu há muitos anos passados, lá metamorfoseou-se em bruxa, ganhou oceano, perfumada pela brisa acarician-
para todo o tipo de cura. pras bandas do Sul da Ilha de Santa altura sobre o morro do Ribeirão da te dos ventos e enxuta com as toalhas
É a fé, longínqua dos tempos, aliada Catarina. Ilha e desapareceu, num repente, no felpudas dos raios solares que beijam ca-
à superstição, ao medo e ao amor pela A Maria Vivina, moradora da Praia dos espaço sideral das alturas incomensu- lorosamente seu corpo mitológico.
conservação do corpo físico, na cura dos Naufragados, fez uma aposta com a Carri- ráveis da quiméria.
males que atacam o homem em franca vi- ça, de que, na Sexta-Feira Santa daquele A Maria Vivina caiu de joelhos no franklin Cascaes, 1946.
vência espiritual e física com o seu Deus. ano, ela tomaria uma vassoura e com a terreiro, rezou e pediu perdão aos Livro: O Fantástico na Ilha
As forças atuantes de práticas religio- mesma, varreria o quintal de sua casa e, céus pelo ato impensado que havia de Santa Catarina, Franklin
sas freiam os instintos animalescos do ho- certeza tinha, nada lhe aconteceria de cometido contra as ordens divinas, Cascaes, editora da UFSC. 15
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