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O Catarina

especial

f u n d a ç ã o c ata r i n e n s e d e c u lt u r a | n ú m e r o 6 8 | 2 0 0 8

Franklin Cascaes A autoria centenária de

Pesquisador do folclore ilhéu e artista de múltiplos suportes, catarinense


construiu uma voz capaz de continuar ecoando na sociedade contemporânea
Especial
editor ial

Andarilho, escritor, viajante, prosador, folclorista, observador, seqüência, a


escultor, desenhista, Franklin Cascaes foi vários, e todos ao mesmo professora Kellyn
tempo. Autor de trajetória sincrética, com atuação em múltiplas Batistela discor-
fronteiras da cultura catarinense, abraçando cada desdobramento re sobre Franklin
com convicção, construiu-se como sujeito com o mesmo ímpeto Cascaes — o escri-
com que revelou e consolidou a identidade do Estado, enfatizan- tor, aquele que,
do os pormenores da cultura açoriana. Sua colaboração, valiosa, sentado à frente
precisa, firme, permitiu o desvelamento e o resgate de causos, de uma resma
gentes e lendas engolidos pelo asfalto selvagem da modernidade. de papel, de-
Abastecido do bloquinho de folhas gastas, e com o ouvido sempre batia-se para
atento aos contos alheios, Francolino, apelido nas vilas onde cos- conseguir
tumava se perder entre dados já quase gastos pelo tempo, deixou transformar
à Ilha de Santa Catarina um legado da importância do seu amor em literatu-
e respeito: sua literatura, faminta em denunciar a forma da fala ra os causos
local, em todas as escolhas e modulações; suas pesquisas exaus- ouvidos em
tivas, coletadas em diálogos de frente para o mar ou em noites andanças sem fim
de lua cheia; suas esculturas minuciosas, recriando formas e en- pelas comunidades. Para finali-
cantos típicos da cultura açoriana, já quase perdidos na névoa do zar a primeira metade da edição, O Catari-
contemporâneo. Mais do que relatar, recriar, repassar, Franklin na apresenta uma entrevista com o antropólo-
Cascaes ajudou a nos construir. go Eugênio Lacerda, vislumbrada a partir de uma
É com muita felicidade que apresentamos a primeira edição dúvida que explica nosso empenho na elaboração
especial do jornal O Catarina, a estréia de uma série que preten- deste especial: o mundo contemporâneo ainda
demos lançar ao longo do próximo ano. O suplemento homenageia consegue abarcar a multiplicidade do folclore e
o centenário de nascimento do nosso plural e rico homem, nascido da tradição?
em Itaguaçu, logo após o bairro de Coqueiros, quando a região Dando continuidade à priorização do caráter
ainda pertencia ao município de São José, e não a Florianópolis. plural da trajetória do folclorista, o texto de Pé-
Para homenagear a pluralidade da personagem com a consistência ricles Prade, presidente do Conselho Estadual de Cul-
merecida, convidamos um grupo de especialistas para discorrer tura, discorre sobre os contornos exclusivos das gravuras de
sobre algumas das mais ousadas facetas do pesquisador. A separa- Franklin Cascaes. Em seguida, a conservadora-restauradora Va-
ção por atuação, então, objetivou justamente acentuar tal diver- nilde Rohling Ghizoni comenta sua produção artística, agora nas
sidade: demarcar o posicionamento oceânico de Franklin Cascaes artes plásticas. O Catarina Especial Franklin Cascaes ainda traz à
para a solidificação da nossa identidade cultural. O objetivo aqui tona uma resenha literária elaborada pela professora Tânia Re-
é revelar os arredores das andanças do catarinense, expandindo gina de Oliveira Ramos, doutora em Teoria Literária, sobre o li-
seus limites, geográficos e temáticos, assinalando suas escolhas, vro 13 Cascaes, compilação de contos com base na obra do autor,
difíceis e corajosas. organizada pelos escritores Salim Miguel e Flávio José Cardozo,
Na primeira matéria, de Emerson Gasperin, um perfil com a tra- além de um texto do próprio Franklin Cascaes, pequena amostra
jetória biográfica e as curiosidades da vida do escritor, que mor- do talento multifacetado do catarinense.
reu lutando pela preservação da nossa cultura. O texto seguinte, Esperamos agradá-los com este primeiro especial: relembrar o
da historiadora Aline Carmes Krüger, narra o detalhista ofício de centenário de Franklin Cascaes é apenas o nosso primeiro passo no
pesquisador, envolvido com a coleta e narrativa das lendas e tradi- resgate de personagens e cenas que marcaram e continuam mar-
ções que ajudaram a nos transformar naquilo que somos hoje. Na cando a história de Santa Catarina. Boa leitura! n

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O Catarina | número 68 | 2008


“Eu ouvi muitas

especial
histórias, também, de
mentirosos, e aprendi
a ser mentiroso.”
Fra nklin Ca sca es

SimplesMENTE cascaes
Tânia Regina Oliveira Ramos bra a cultura moderna. Daí a cum- nas um livro, mas treze lugares da
plicidade dos autores às genealogias linguagem”. Complemento e suple-
Os artistas que permanecem são (Talvez a primeira e última carta); mento obtidos pela organização e
aqueles autores de obras acompa- aos lugares próximos e distantes (O apresentação destes dois escritores,
nhadas por grandes sistemas estéti- presépio; Uma noite de profunda leitores sempre, Flávio José Cardozo
cos. A cultura produzida na Ilha de insônia solitária); aos espaços míti- e Salim Miguel.
Santa Catarina possui algumas mar- cos e místicos (O “Minha Querida”; Denise de Castro, em sua boni-
cas e alguns marcos. Hoje eu não O Abençoado; Mistério no Miramar); ta canção-homenagem, diz que “a
temo dizer que há uma literatura ao tempo transgressor (Dois bando- festa hoje é pra Cascaes”.4 No re-
antes e depois de 13 Cascaes1, uma lins; O diário da virgem desapareci- frão ela alegremente canta que na
antologia que reúne treze leitores da); ao humanismo (Branco assim da freguesia do Ribeirão “é vento, é
de Franklin Cascaes, em treze nar- cor da lua; O folheto); às referências fogo, é caldeirão; eu vi passean-
rativas que, evitando o naturalismo, reais ou simbólicas em histórias mes- do na clareira, uma misteriosa
o puro simulacro da realidade que cladas de verdade e de poesia (His- reunião”. Poderíamos dizer que
não se repete, criam uma seqüência tória praiana; Ao entardecer; Noites era essa misteriosa reunião de
de histórias fantasmais, aventuras de encantamento), que conseguem cascaes. Na festa do livro que
da mente, no que estas cinco letras elaborar um universo rico em con- agora li entraram cabalistica-
— MENTE — têm de carga semânti- tradições, especialmente porque mente “treze cascaes”. Mas
ca. Cérebro, sufixo de advérbios de todos os enredos passam pelo poder se “passam no ar vassouras
modo e terceira pessoa do singular da linguagem, da palavra contada, voadoras, que dão gargalha-
do verbo mentir. Assim cada MENTE, da história inventada, e não apenas das pelo ar”; aproveitando
dos treze convidados para este revi- pela preocupação teórica da veros- a “lua cheia; em coro”
val de Cascaes, MENTE verdadeira e similhança. começando “a cantar”5,
poeticaMENTE .2
O fascínio da alteridade — des- não haverá mistérios se
A epígrafe do ensaio faz uma ho- te outro inexplicável — é uma das daqui a pouco encon-
menagem a estes falsos mentirosos3, marcas das narrativas fantásticas. trarmos mais cascaes
arrolados alfabeticamente: Adolfo Outras dimensões, outros mundos continuando a contar.
Boos Junior, Amilcar Neves, Eglê Ma- narrados, as ilustrações de Tércio da Porque, como sabe- 1
13 CASCAES. Flávio José Cardozo e Salim Miguel (org.).
lheiros, Fábio Brüggemann, Flávio Gama, o prefácio, as notas do editor, mos, temos muitos fal- Ilustrações de Tércio da Gama e Franklin Cascaes.
Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2008.
José Cardozo, Jair Francisco Hamms, os créditos estatais, que remetem sos mentirosos. Logo,
Júlio de Queiroz, Maria de Lourdes e dialogam com os traços e com os verdadeiros. Simples-
2
 ffonso Romano de Sant’Anna em 1980 faz um jogo
A
poético com este sufixo em um instigante poema
Krieger, Olsen Junior, Péricles Pra- desenhos bruxólicos de Franklin Cas- MENTE cascaes. n político, chamado “Implosão da Mentira”.
de, Raul Caldas Filho, Salim Miguel caes, não desglamourizam a fantasia 3
Silviano Santiago, em 2004, lançou um romance
e Silveira de Souza. Numa mistura das letras e das palavras. Pelo con- intitulado “Falso Mentiroso”, que coloca em xeque
exatamente os limites entre real e ficção num jogo de
de memórias de leituras e memó- trário. Servem como complemento e máscaras e de referências.
rias ficcionais, onde o fantástico é suplemento. Complemento que Gel- 4
 ara ouvir a canção recomendo o blog www.
P
sempre evocado, somos encantados ci José Coelho, o Peninha, é no li- carosouvintes.org.br/blog/?p=370. Acesso em 02 de
novembro de 2008.
pelas histórias contadas por autoras vro com seu depoimento factual, de
e autores, especialmente porque em
5
 esta pra Cascaes é interpretado também pela cantora
F
quem conviveu e viveu com Franklin
Ive Luna no CD a ser lançado em breve: Narrativas de
cada narrativa há uma presença ou Cascaes. Suplemento na Invocação Catarina.
uma essência de Franklin Cascaes feita por Dennis Radünz, numa lei-
texto | tânia regina oliveira ramos
como um fantasma que, sem cair tura auricular, profunda, pontual, professora da UFSC, atualmente coordena o
no fetichismo da tradição, assom- do significado deste que “não é ape- Programa de Pós-Graduação em Literatura. 3
O Catarina | número 68 | 2008
fotomontagem ayrton cruz
especial

Causos e lendas do universo


do feiticeiro de Itaguaçu
emerson gasperin (“um monumento de beleza que o homem errante, habitan-
te do globo terráqueo, guarda carinhosamente nos baús do
Florianópolis, Ilha da Magia. O apelo aparece em reporta- seu pensamento e, na maioria das vezes, oralmente, ofe-
gens, folhetos promocionais e campanhas publicitárias para recendo aos descendentes, imortalizando-a”). Sobraram a
exaltar as belezas naturais e a qualidade de vida de “um lugar “beleza incomparável” da Ilha de Santa Catarina, enalte-
aonde quem vem uma vez apaixona-se e logo quer voltar”, cida em toda a sua obra, e uma trajetória pessoal que a
inclusive para morar. Mais do que apenas marketing para en- Madame História, “na sua sutil e nobre sabedoria secular”,
cantar turistas, porém, sua origem está na cultura popular da certamente abençoaria.
cidade, repleta de causos sobre bruxas, crendices e simpatias Cascaes nasceu em 1908 no bairro Itaguaçu (parte conti-
— relatos passados de geração a geração que ninguém soube nental de Florianópolis), à época pertencente ao município
valorizar, ouvir e registrar como Franklin Cascaes. de São José. Desde cedo, ajudava os pais em tarefas liga-
No ano que marca o centenário do professor, pesquisa- das ao cotidiano da comunidade, como fazer balaios, armar
dor, folclorista, gravurista e escritor, deve-se ao seu traba- cercas de bambu, tecer tarrafas e cordas de cipó, moldar
lho o que restou dessas “crenças espirituais fantásticas que peças de argila e trabalhar no engenho de farinha. Entre
dão vidas simbólicas fictícias a seres invisíveis”. A fúria do uma tarefa e outra, era exposto às lendas contadas pelos
progresso, cujas conseqüências como poluição, descarac- pescadores e agricultores a respeito de seres mitológicos,
terização e especulação imobiliária ele denunciou até sua seus estranhos poderes e suas ocorrências no interior da
morte, fez com que a Política (“uma madame manhosa”) Ilha, despertando seu interesse pelo assunto que exploraria
invariavelmente levasse a melhor sobre a Madame Tradição nas décadas seguintes.

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O talento para retratar o que escutava — no papel, no observa que, mais tarde, essas criaturas aparecem relacio-
barro ou na pedra — o levou a lecionar na Escola de Apren- nadas ao “asfalto, à eletrificação, à construção de prédios
dizes e Artífices de Santa Catarina (atual Centro Federal de no lugar dos antigos casarios coloniais, aos avanços tecno-
Educação Tecnológica — Cefet), a convite do diretor da ins- lógicos como a ida do homem à Lua, a popularização da
tituição, o professor Cid Rocha Amaral. Durante cerca de 40 televisão, a construção da segunda ponte e a intensificação
anos, Cascaes ensinaria desenho, escultura, modelagem e do turismo” — situações que assustavam Cascaes mais do
trabalhos manuais, construindo uma carreira que vem sendo que qualquer praga rogada por uma mulher “enganadeira
estudada pela aluna Denise Araújo Meira em sua dissertação dos marido com os próprios cumpadres”.
de mestrado em educação pela Universidade do Estado de Antes de a preocupação com o meio ambiente trans-
Santa Catarina (Udesc). formar-se em retórica onipresente em qualquer segmento
Foi nas dependências da escola que, em 1946, o pro- “inteligente” da sociedade, ele já atacava o descaso com
fessor começou a aprofundar seu mergulho pelos costumes, a natureza. “Que fazem os homens responsáveis pela fau-
práticas e conhecimentos dos descendentes dos açorianos na e pela flora? Nada, é tudo conversa fiada”, indignava-se
que colonizaram Florianópolis. Na época, a provinciana ca- contra aqueles “que têm a distinta obrigação social, técni-
pital aderia incondicionalmente ao desenvolvimento urbano, ca-ambiental de protegê-las contra a ganância desenfreada
abrindo mão do passado em prol de um estilo de vida trazido de ricos depredadores”. E lamentava: “Que pena, ó minha
dos grandes centros. Aos 38 anos, talvez prevendo que, se mui querida Ilha de Nossa Senhora do Desterro! O homem
as mudanças continuassem naquele ritmo, pouco da cidade que vive este século está obcecado pelo deus inferior que o
que ele aprendeu a amar chegaria intacta aos netos e bisne- está conduzindo por caminhos tão tortuosos que me fogem
tos dos pioneiros, Cascaes trilhava a direção contrária. à imaginação, para poder comentar a direção certa da sua
Às suas próprias custas, passou a coletar antigas histó- desaconselhável caminhada.”
rias, que tratava de eternizar em alguma das muitas artes Cascaes não viveu para ver alguns de seus piores temo-
que dominava. Havia virado artista, então? Sim, mas não res confirmados, como o aterramento de mangues para sedi-
com essa intenção. Mesmo se quisesse, não poderia aban- mentar empreendimentos comerciais, as “favelas de ricos”
donar o magistério: “Não dá para viver de arte, o artista é (como se referia aos prédios de apartamentos) alterando
sempre pobre, visto como um malandro”, dizia. Em vez de radicalmente a paisagem da cidade e ruas sendo duplicadas
lamentar a falta de apoio, embrenhava-se pelo interior da para dar vazão ao trânsito crescente. Sua morte, em 1983, o
Ilha, onde se sentia mais à vontade com as manias e o lingua- impediu também de presenciar histórias que desafiam a ló-
jar peculiar dos manezinhos — traduzidos com fidelidade em gica muito mais do que aquelas recolhidas em suas andanças
seus escritos — do que com a última novidade tecnológica pelos recônditos da Ilha. Só que, desta vez, protagonizadas
incensada pelos “almofadinhas” da cidade. por gente letrada, urbana e vivíssima. Até demais. n
Graças ao que o clichê acadêmico convencionou cha-
mar de “resgate” perpetrado por Cascaes, veio à tona todo
um universo imaginário condenado ao desaparecimento em
nome da modernidade. Como, por exemplo, as diferenças

Fra nkl in Ca sca e s


entre bruxas e feiticeiras. Conforme a explicação de Nico-
lau, a Sulpício do Quintino, as primeiras são “muhié malina “Que pena, ó minha mui querida
que nascero cá sina, somente, pra podê fazê o máli (Con-
gresso Bruxólico). Em outra passagem (Balanço Bruxólico), Ilha de Nossa Senhora do Desterro!
Cumpadre Zeferino as descreve ao Cumpadre Manuéli como
“canahias desavergonhadas (...), não é a toa que no céu da O homem que vive este século
boca delas nasce um dente canino.”
Os manezinhos tinham suas razões para temer e odiar está obcecado pelo deus inferior
as tais bruxas: elas roubavam embarcações, davam nós nas
crinas e nos rabos dos cavalos (isso quando não os faziam ga- que o está conduzindo por
lopar pelos ares!), “inticavam” com as pessoas mais velhas,
chupavam sangue das criancinhas e aprontavam mil e umas caminhos tão tortuosos que me
“malas-arte”. Já as feiticeiras eram “as muhié que só pri-
curo fazê o bem prôs sôs próximo”, continua Nicolau. Nessa fogem à imaginação, para poder
categoria entram as curandeiras e benzedeiras como Sinhá
Marculina do Joronço. Ao examinar Zeferino, que “não tugia comentar a direção certa da sua
nem mugia”, “desmaiado e sem fala, que nem um boneco de
cera virgem”, ela diagnosticou o caso como “empresamento desaconselhável caminhada”.
por vingança bruxólica cipoadamente balanceira”.
As ilustrações acentuam o caráter sobrenatural dessas
narrativas. Inspirado por ossos de peixes, garras, escamas
e demais elementos do mar, o artista forjava bruxas cada-
véricas e pontudas. No livro Franklin Cascaes: Uma Cultura texto | emerson gasperin
em Transe (Editora Insular), o autor Evandro André de Sousa é jornalista.

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O Catarina | número 68 | 2008
especial

Entre rendas
e bruxas,
as malhas
do folclore
catarinense
aline carmes krüger teve interessado em registrar e preser-
var a cultura das comunidades, princi-
A Coleção Professora Elizabeth Pa- palmente as do interior da Ilha de Santa
van Cascaes, nome dado ao conjunto Catarina. Em seu Caderno 74, expõe:
de obras do artista Franklin Joaquim “possuo um grande acervo de obras em
Cascaes, é composta de esculturas em letras, esculturas, desenhos e trabalhos
argila crua e gesso, desenhos a bico de manuais, documentando vários assuntos
pena e grafite, e manuscritos. A prin- ou motivos folclóricos, material sempre
cipal característica da obra de Cascaes recolhido na fonte original [...] O meu
é sua ligação profunda com as fontes interesse é ajudar a recolher, divulgar e
populares; seu trabalho registrou o jei- guardar as tradições desta Ilha de Santa
to de ser, agir e pensar dos moradores Catarina e seus arredores. Faço desinte-
da Ilha de Santa Catarina e arredores. ressadamente, e a apresento também,
Em suas pesquisas folclóricas nas co- imortalizando-o na força espiritual que
munidades no interior da Ilha, coletou as artes plásticas exercem sobre as na-
dados da tradição local, construindo e ções para documentarem a raiz histórica
organizando o tempo e o espaço da sua das suas culturas tradicionais dentro dos
memória oral e visual. tempos e que hoje avançam acelerada
As manifestações folclóricas são para o futuro tecnológico moderno”.
dinâmicas e se renovam pela incorpo- O folclore é o retrato vivo dos sen-
ração de novos elementos dos grupos: timentos populares. O registro etno-
transformam-se, ampliam-se, adaptam- gráfico feito por Franklin Cascaes até o
se. Entende-se por folclorista a pessoa ano de 1983 reflete a formação de uma
que exerce como atividade de trabalho identidade através da oralidade, dos co-
a investigação das tradições populares. nhecimentos tradicionais, dos saberes e
6 Cascaes, como pesquisador, sempre es- dos sistemas de valores. Como sugere

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a Carta do Folclore Brasileiro, elabora- conjuntos escultóricos o lambe-lambe, o três vezes. O paciente deve conservar o de homens velhos, e que procuravam re-
da no I Congresso Brasileiro do Folclore engraxate, os vendedores ambulantes, dedo polegar dentro da boca que é para cordar o tempo da escravidão.”
Brasileiro: “Constitui o fato folclórico a a tecelagem manual, a pescaria, a ren- ajudar a levantar a campainha durante a Franklin Joaquim Cascaes tentou ex-
maneira de pensar, sentir e agir de um deira e os diferentes tipos de engenho. benzedura. Recolhida no Pântano do Sul. pressar da melhor forma possível o que
povo, preservada pela tradição popular A língua indígena está presente em seus Narrada pelo senhor Rosalino. 1956”. viu, viveu e sentiu enquanto trabalhava.
e pela imitação, e que não seja direta- cadernos sob forma de dicionários e a li- Em argila, modelou o homem do li- Percebeu as transformações que coloca-
mente influenciada pelos círculos eru- teratura popular, através dos provérbios, toral catarinense, porém não se limitou vam em ameaça o cotidiano e o conheci-
ditos e instituições que se dedicam, ou adivinhações, contos, frases feitas, ora- aos descendentes de açorianos, como mento popular dos habitantes da Ilha, já
à renovação e conservação do patrimô- ções, danças, trovas. Há ainda as crendi- pode ser observado nas coleções Negros em risco de esquecimento pelas futuras
nio científico humano, ou à fixação de ces populares, representadas nos mitos Velhos do Caxangá e Cacumbi, que afir- gerações. As representações das imagens
uma orientação religiosa e filosófica”. O das bruxas, boitatás e lobisomens: “Todo mam a presença do negro. Nas pesqui- folclóricas construídas por Cascaes são
folclore ocupa-se de todas as manifes- homem anêmico, pálido, que come bar- sas, também registrou as atividades fol- hoje, na sua maioria, cotidianos ausentes
tações e aplicações da cultura e o fato ro, areia, rói as unhas, come roupa é clóricas da população afro-descendente: na nossa história local: as festas popula-
folclórico pertence ao coletivo. dado como lobisomem entre seus fami- “Estes dados sobre a dança de Cacubi res e religiosas, as atividades produtivas,
Para compreender a obra de Cascaes liares, vizinhos.” foram fornecidos por dois senhores de os jogos e brincadeiras infantis, a litera-
é preciso entender e contextualizar suas A religiosidade, o imaginário popu- cor. Senhor Estanislau Jacinto de Aguiar, tura oral. Conhecer estes conjuntos de
fontes populares. Sob o enfoque do fol- lar e o conhecimento do uso das ervas com 85 anos de idade, residente no ca- fatos folclóricos é valorizar o ser humano,
clore, podemos observar em sua obra a medicinais fundiram-se para formar as minho da Caeira, Saco dos Limões. Se- ou seja, a sua diversidade cultural, tão
tradição religiosa nas procissões, as brin- benzeduras, prática ainda comum. Para nhor João Joaquim Vieira, com 79 anos bem registrada por Cascaes. O estudo in-
cadeiras infantis como a ciranda, o jogo cada moléstia há um tipo de benzedu- de idade, residente nos Barreiros. Eles terpretativo de sua obra nos leva à diver-
de bolinha de gude e a pandorga. Há os ra que Cascaes registrou junto das co- foram bastante camaradas para comigo sidade da população local, da maneira de
folguedos, como o boi-de-mamão, o ca- munidades: “Campainha Caída. Abra-te nestas narrativas de coisas do tempo construir suas vidas e de vivê-las. n
cumbi e os negros velhos do caxangá. As porta e fecha-te. Abra-te pela banda do passado [...] Diz o senhor Estanislau que
atividades produtivas das comunidades mar. Si é campainha caída que vorte ao esta dança de cachangá era uma dança
texto | aline carmes krüger
pesquisadas também foram contempla- seu lugá. Em nome de Deus e da Virgem de homens de cor que se vestiam com é historiadora.
das pelo artista, que registrou nos seus Maria Amém. Esta oração deve ser dita trajes característicos da representação fotos | gill konell 7
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Da palavra ao texto:
a experiência do narrador Cascaes
kellyn batistela e suas idéias tiveram origem no tecido plástico, sustentando que viveu tudo o que se inicia a queda da oralidade ou do
da coletividade. que narrou. enfraquecimento dos laços comunitários.
Muitos são os escritores, artistas ou Cascaes percorria a Ilha de carroça, O procedimento de salvaguardar a A memória de Cascaes pode ser en-
críticos que se debruçaram no estudo canoa, Kombi ou a pé, anotando, em tradição, bem como a operosidade da tendida como conservação ou elabora-
da memória, buscando, ao se voltar cadernos ou folhas avulsas, histórias, criação do artista/escritor, apresenta-se ção do passado, pois o medo de esque-
para o passado, compreender o homem rezas, hábitos e costumes das fregue- através de textos em processo, os quais cer motiva o pesquisador a registrar a
em sua individualidade e em seu conví- sias pesqueiras e rendeiras do interior deram origem a publicação de dois livros experiência dos interioranos, além de
vio social. Muitos destes não se furta- da Ilha. Não é à toa que diz ter iniciado de contos. Todavia, existem outros que, haver a necessidade de reinvenção deste
ram em basear sua busca em elementos seu trabalho pela saudade do passado, entre folhas manuscritas, hibernam a ori- mesmo passado pela impossibilidade de
de vivência pessoal. Talvez a principal pois ao ouvir os causos contados pelos ginalidade de seus conteúdos. Cascaes recuperá-lo como experiência autêntica
motivação de Franklin Cascaes, no de- colonos-pescadores, evoca simultanea- inventariou, a seu modo, a experiência de vida. Compreender a memória de
senvolvimento de seu trabalho, tenha mente a sua experiência individual, de sua comunidade afetiva. Este procedi- Cascaes como algo socialmente vivo é
sido pessoal, pois, ao testemunhar construída entre as rodas de trabalha- mento arquivista construiu um rico acer- opor-se ao uso que as instituições públi-
melancolicamente o desenvolvimento dores de engenho. Desta relação de per- vo nas letras, escultura e desenho. Como cas, inclusive a academia, faz da tradi-
urbano de Florianópolis, Cascaes fazia tencimento com a comunidade, ou seja, supérstites da memória, os textos de ção. Por isso, Cascaes filia-se a figura do
parte da comunidade representada em apoiando a sua memória na memória Cascaes, resultados de anos de pesquisa narrador épico, aquele cuja obra é res-
sua obra. Não há como separar sua vida dos outros, advém a autoridade a partir com os narradores populares, guardam o taurar as tramas desfeitas pelo esqueci-
8 de seu trabalho, pois seus sentimentos da qual legitima seu trabalho escrito e registro da experiência no momento em mento ou ameaçadas pelos novos hábitos

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F
(imagem e narração)
enunciam a experiência pres-
tes ao desvanecimento.
Como a memória
ocupa-se do ato de lembrar
e contar, é através dela que se expli-
Independentemente do seu códi- cam e lamentam as mudanças, quando
não na- go de linguagem, texto ou desenho permanecem apenas vestígios de uma d e -
turais no são marcados pelo contexto político, realidade anterior. Todas as comunida- senvolve
convívio do histórico e social que presidiu a sua des e sociedades têm, no campo das nos afazeres
homem com seu elaboração. Há intertextualidade e tradições, seus diferentes narradores, domésticos, no
espaço coletivo. pluralidade de vozes narradoras que alguns mais épicos que outros, porém preparo e cultivo da
Quando Franklin emergem das fabulosas narrações de todos dotados da faculdade de trans- terra, no içar das velas,
Cascaes decide iniciar seu Cascaes. Talvez o maior elemento de mitir conhecimento. O narrador oral no alçar das redes, no an-
trabalho, o objetivo explíci- diferenciação, no que concerne aos seria então o responsável por articular corar dos barcos. Então, ao
to fora o de manter viva uma cadernos do artista/escritor, está no as diversas memórias. A este narrador sedimentar suas recordações
tradição que inevitavelmente fato de que os manuscritos, além de também estaria reservado o papel de individuais na experiência co-
ruía ao compasso do progresso. apresentarem o processo de pesquisa encontrar herdeiros e sucessores de munitária, Francolino cantou a
Sua iniciativa foi a de registrar da que transita pela etnografia, enunciam sua narração, garantindo e preservan- rapsódia de poetas desconhecidos,
forma mais ampla possível todas as tradições antigas da Ilha, recolhidas do assim a vida diante da inevitabilida- sem os quais seria impossível hoje
as manifestações culturais da Ilha por Franklin em suas constantes prosas. de da morte. descobrir a fantástica história da Ilha
de Santa Catarina. Para isso, viaja- Este aspecto faz com que o texto de De ouvinte a prosador, o narrador de Santa Catarina. Eis o trabalho ela-
va constantemente pelas freguesias Cascaes, por mais escritural que seja, nunca está só. Ele agrega ao seu conhe- borativo do Cascaes prosador. n
pesqueiras, conversando com pesso- evoque mais a memória coletiva que a cimento de mundo as experiências dos
as, escutando suas histórias, escre- memória individual. Diferentemente outros — por isso, além de narrar, sabe
vendo provisoriamente, para depois de outros escritores e artistas, desti- dar conselhos. Entretanto, os conselhos
apresentá-las de modo, segundo ele, nou em seus cadernos de pesquisa, que apenas são concedidos por preservarem “Quando Franklin
mais elaborado, através de narrativas, totalizam 110 volumes, pouco campo à formas de conhecimento; e, na mesma
desenhos ou esculturas. Apesar de se experimentação. Muito raramente há proporção, porque seus ouvintes ainda Cascaes decide
manifestarem nos mais variados supor- esquemas, idéias desconexas ou frases necessitam deles. Este tipo de expe-
tes (peças tridimensionais, trabalhos soltas. O artista/escritor demarca bem riência é épica, pois encontramos nos iniciar seu trabalho,
bidimensionais, cadernos e folhas suas preocupações em legar ao futuro textos clássicos menção a esta forma do
avulsas), técnicas (argila, grafite o registro de suas viagens, e para tanto saber: o exercício do trabalho associa- o objetivo explícito
e nanquim), linguagens (imagem referencia o nome dos contadores dos do à arte do contar histórias.
e texto) e categorias artísticas causos e os locais nos quais foram re- Como forma de constituição de sua fora o de manter
(escultura ou desenho), os colhidas as narrações. Percebe-se que própria memória, Franklin Cascaes lem-
textos, qualquer que seja esta é a principal preocupação arquivis- bra com os outros. A constituição de viva uma tradição
seu tratamento (obra, ta de Cascaes. Como cada texto apre- tais imagens encontra-se apenas na so-
estudo ou manuscrito), senta as marcas do ambiente cultural ciedade, onde estão todas as indicações que inevitavelmente
compõem sem dú- e suas relações históricas, é relevante necessárias para reconstruir as partes
vida uma unida- salientar que na sua escrita preserva- desejadas de nosso passado, cuja lem- ruía ao compasso do
de. Os textos se a oralidade dos causos colhidos. Sem brança atribuímos normalmente à nossa
progresso.”

Fra nkl in Ca sca e s


a u t ó g r a- perder a vitalidade lingüística do relato própria memória. Ao localizar o narrador
f o s falado, Cascaes empreende a faculda- em um contexto prático, precisamente
de mais épica de todas as práticas do nas fontes do trabalho comunitário,
recordar, a memória do contador de Walter Benjamin destaca a dimensão texto | kellyn batistela
é mestre em Teoria Literária pela UFSC, autora
histórias. utilitária da narração. Ela se
da dissertação As Alegorias da Modernidade em
Franklin Cascaes.
foto | divulgação agecom 9
O Catarina | número 68 | 2008
especial
jade martins lenhart

Compreender as lendas do folclore é como aceitar o convite para uma festa povoada de personagens pi-
torescos e tipos carregados de esquisitices: bruxas voltadas para o mal, curandeiros dotados de segredos
capazes de modificar o corpo e a alma, luas cheias de poder, lobisomens bravos atormentando noites sem
luzes, animais disformes e cheios de mistérios, tortuosos embates entre a fé e a descrença. Conhecê-los
é saber um pouco mais da história, do passado, da tradição, da vida, e até de nós mesmos. Para guiar esta
viagem, convidamos o antropólogo Eugênio Pascele Lacerda, gestor de projetos culturais da Fundação
Catarinense de Cultura, professor do curso de museologia do Centro Universitário Barriga Verde (Uni-
bave), em Orleans, e associado do Instituto Cultura em Rede e do Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC.

Entre a impossibilidade e a permanência,


o folclore na sociedade contemporânea
O Catarina | Segundo a ótica antropo- popular(es). Este também perdeu ex- ção cultural. Isto não aconteceu, e o que
lógica, o que significa folclore? pressão, sendo incorporado, contempo- se viu foi um processo generalizado de
Eugênio Lacerda | A palavra folk-lore raneamente e, em nível mundial, pelo afirmação étnica em todos os cantos do
é, tipicamente, um termo importado da conceito de patrimônio intangível, ou planeta: bens culturais, línguas, estilos
língua inglesa, muito usado no século 20, imaterial, dos povos. genuínos ganharam espaço em um mun-
significando, originalmente, estudo, co- do de incrível mobilidade e conectivi-
nhecimento (lore) dos costumes e tradi- OC | E tradição? dade, onde o diferente tornou-se fonte
ções de um povo (folk). O termo foi cria- Lacerda | Tradição pode ser entendida de crescimento e melhoria da qualidade
do pelo arqueólogo inglês William John como aquele costume, prática social ou de vida das populações autóctones. Es-
Thoms (1803-1885), pesquisador da cultu- saber que se consolidou no processo de tamos vivendo, neste momento, a exa-
ra popular européia. Em 22 de agosto de transmissão de geração a geração e, por cerbação destas tensões, um cenário
1846, ele publicou um artigo com o título isso, alcança aceitação popular ou públi- em que um índio do Xingu, com acesso
“Folk-lore”, na revista The Athenaeum, ca. O importante, na questão das tradi- à Internet, percebe que as fronteiras da
propondo a criação do termo. Este dia ções, é percebermos suas dinâmicas de cultura são ilimitadas e semoventes e, ao
acabou se tornando data de referência transformação e invenção, superando contrário dos preservacionistas puros,
do surgimento do termo folclore, grada- certa visão romântica da história como poderá sim usar essa tecnologia a favor
tivamente incorporado a todas as línguas algo feito de fenômenos originais, essen- da continuidade do seu rico repertório
dos povos considerados civilizados. No ciais e, portanto, imaculados no tempo. de vida, sua identidade e sua visão de
Brasil, o folclore sempre esteve asso- Cada geração lê e relê a seu modo as mundo ancestral.
ciado ao trabalho de coleta e descrição tradições herdadas, a partir de novos
de lendas, festas, provérbios, folguedos, valores, novas influências e novas aquisi- OC | É importante preservar os ensi-
simpatias etc., pelos chamados folcloris- ções culturais. Se há algo que não muda, namentos e as construções populares?
tas. O mais conhecido deles foi Luis da justamente, é o espírito do tempo, o De que maneira isto pode ser levado
Câmara Cascudo, que escreveu, entre zeitgeist, que envolve, contextualiza e até as crianças? A universidade e a
outras obras, o Dicionário Brasileiro do significa nossas práticas e representa- escola têm cumprido papel relevante
Folclore. Muitos antropólogos valeram-se ções, assim como a todos nós, atores neste resgate?
das coletas e narrativas dos folcloristas e portadores de cultura. As tradições Lacerda | É importante preservar não
para produzirem suas etnografias, nota- só têm sentido se forem observadas do por causa do passado, mas por causa
damente sobre a cultura brasileira. Para presente em direção ao passado, e não do futuro. A memória social, tal como
a antropologia, o material descritivo dos ao contrário. a pessoal, é seletiva. Dizendo de outra
folcloristas constitui um acervo etnográ- maneira: há uma dialética formidável
fico valioso para a produção de estudos OC | A modernidade liquidou nossas entre a lembrança e o esquecimento no
e desenvolvimento de teorias sobre cul- alternativas de folclore? Esta situação processo de interação social. Daí, dessa
tura, identidade, representação, mitos e tem se agravado ou parece estável nos luta entre o que se quer preservar e o
ritos. Portanto, a antropologia considera últimos tempos? que se quer mudar, resultam referen-
o folclore não propriamente uma ciên- Lacerda | A tensão essencial da mo- ciais culturais permanentes que o povo
cia, mas uma área de pesquisa factual dernidade é a tensão entre o particular consagra e elege como seus, pelo menos
extremamente útil como fonte de da- e o universal, entre o local e o global. durante certo tempo de sua história. O
dos etnográficos para a elaboração de No início dos anos 90, com o boom da desafio de qualquer comunidade humana
análises e tematização de problemas globalização, muitos analistas diziam é a sua reprodução. Se você vai ver uma
acerca do comportamento humano em que as identidades primordiais, aquelas festa tradicional, como a festa do Divi-
sociedade. Hoje em dia, o termo fol- feitas de laços e lealdades comunitários no, por exemplo, e nota que ali há um
clore caiu em desuso. Foi substituído, e locais, iriam desaparecer diante do espaço democrático em que convivem
10 nos anos 70 e 80, pelo termo cultura(s) processo avassalador de homogeneiza- várias gerações ao mesmo tempo, pode

O Catarina | número 68 | 2008


especial
ter certeza que aquela comunidade está à alegre expansividade das famílias, ao Lacerda | A herança cultural dos po-
preservando seu futuro. Aqui uma ob- lado de construções em pedra que re- voadores açorianos, quer dizer, dos
servação crítica: qual tem sido o papel cordam a conhecida habilidade dos mes- descendentes lusitanos marcados pela
da escola no processo de valorização da tres italianos. No planalto, a herança do cultura insular do arquipélago dos Aço-
cultura? Vejo uma cisão desestruturante tropeirismo nas taipas e fazendas, com res, caracteriza-se, no presente, por um
entre o que se ensina na escola e o mun- proeminente cultura campeira tipifica- conjunto de tradições e certo tipo de so-
do da cultura. Todas as lições deixadas da na roda de chimarrão, no churrasco ciabilidade. Em minhas pesquisas como
por Paulo Freire não foram suficientes e nas danças e músicas tradicionalistas. antropólogo concluí que três eventos são
para provocar nos nossos gestores edu- Ao norte, em direção ao Paraná, polone- emblemáticos na sociabilidade e na cul-
cacionais uma quebra dos paradigmas ses e ucranianos, austeros, cuidadosos e tura do açoriano-descendente em Santa
oficiais do ato de educar, tão desconec- sofisticados nas artes domésticas, como Catarina: a polêmica farra-do-boi, liga-
tado da cidadania, das artes, do corpo nas pêssankas, afora os lambrequins da ao mundo da diversão, da terra, do
e da autonomia do indivíduo. O melhor adornando os beirais das casas e danças mato, do ócio e da ferocidade animal;
exemplo que vi nestes últimos tempos graciosas como a mazurka. Há ainda a o culto-festa do Divino, relacionado ao
vem de Portugal, da Escola da Ponte, do presença austríaca em uma pequena universo mágico-religioso, sendo tam-
educador José Pacheco. cidade que parece ter sido transfor- bém o espaço privilegiado de execução
mada em jardim. Lá, temos habilidosos das promessas e dívidas de fé; e a pes-
OC | De que maneira o folclore cata- artesãos no entalhe de madeiras no- ca artesanal da tainha, ligada ao mundo
rinense, bem como suas tradições, bres. Há ainda o Oriente com os agri- marítimo e ao trabalho como coopera-
relacionam-se às características da co- cultores descendentes de japoneses e ção e seguridade comunitárias. O “boi”,
lonização do Estado? suas belas tradições ornamentais. Não o “divino” e a “tainha” podem ser toma-
Lacerda | Santa Catarina é um esta- se pode deixar de marcar a presença dos como ícones da visão de mundo do
do multiétnico e multilingüístico. Aqui, da cultura afro-brasileira, sua plastici- açoriano-descendente, mundo informado
a história, a cultura, a demografia e a dade, terreiros, ritmos e danças como por crenças em seres fantásticos que se
geografia combinaram-se para formar, a do cacumbi. Acrescem os gregos, sí- metamorfoseiam, onde pontuam bruxas,
ao longo de 300 anos, um arquipélago rios, libaneses, russos e, finalmente, lobisomens, borboletas, maus-olhados e
de etnias. Temos uma notável diversida- ou primordialmente, os remanescentes bem-querências. Quanto à sociabilidade
de de modos de vida e expressões cultu- dos primeiros habitantes do território, nativa, está explícita nas paróquias, vi-
rais. Não vemos a predominância de um tupis-guarani, xokleng e kaingang, hoje zinhanças e festas rituais; na jocosidade
só tipo, mas a coexistência de várias et- assentados em reservas e sujeitos ao verbal e nas trocas de favores e ajudas.
nias, o que confirma a diversidade como seu próprio devir histórico. Tais são, em geral, os núcleos constitu-
característica da identidade catarinen-   tivos da sociabilidade e da cultura entre
se. A paisagem litorânea é marcada pelo OC | De acordo com as movimentações os açoriano-descendentes do litoral de
povoamento português dos séculos 17 e da sociedade contemporânea, é possí- Santa Catarina.
18. Uma cultura pesqueira desenvolvida vel afirmar que seremos condenados
em moldes artesanais e industriais, alia- à tecnologia, sujeitos de um universo
da à pequena lavoura familiar e, mais cada vez mais distinto das cantigas po-
“Cada geração lê e relê a seu modo
recentemente, à maricultura e à econo- pulares e das histórias passadas de pai
mia do turismo. Temos uma arquitetura para filho?
as tradições herdadas, a partir de
representada nas casas térreas, fortale- Lacerda | Não vejo uma contradição
zas e pequenas capelas à beira-mar com entre desenvolvimento tecnológico e
novos valores, novas influências e
cruzeiro à frente. É possível brincar de transmissão de valores e práticas cultu-
boi-de-mamão ou correr do boi bravo rais. Não há razão em demonizar a tec- novas aquisições culturais.”
enquanto esperamos um camarão ao nologia. Ela não é um fim em si mesmo,
bafo. É possível acompanhar as Festas mas um meio que deve ser utilizado para OC | Franklin Cascaes foi peça chave
do Divino ou de Nossa Senhora de Nave- o nosso bem-estar. Entretanto, quando no resgate do folclore catarinense?
gantes, em favor de graças e promessas. o indivíduo não dispõe de uma pauta de De acordo com a sua análise, qual é
À noite podem aparecer bruxas e lobi- valores cidadãos, uma ética solidária, se o principal destaque do trabalho do
somens, mas não sem rezas e simpatias não tiver uma consciência capaz de sele- pesquisador?
de cura. São as lendas cultivadas pelos cionar, dentre todos os estímulos impos- Lacerda | Franklin Cascaes foi um fol-
descendentes de açorianos e madeiren- tos diariamente pela sociedade de consu- clorista no sentido tradicional do termo.
ses. Já nos vales temos outra arquite- mo, aquilo que deteriora a sua qualidade Mas isso é pouco para o homem versá-
tura, com exemplares típicos da técnica de vida e a qualidade sócio-ambiental do til que foi: escultor, desenhista, conta-
construtiva do enxaimel. Nos vales onde espaço urbano, estará condenado à per- dor de histórias, narrador, compilador,
aportaram os imigrantes alemães e seus da de identidade e à desterritorialização pesquisador da cultura popular que foi
descendentes, impressiona a qualidade do seu universo cultural. Acredito que a campo sem ir à academia. Ele foi um
da indústria em contraste com o imenso somente o investimento educacional em homem pioneiro, um artista iconográfico
fluxo de bicicletas em direção às fábri- longo prazo poderá salvar os povos das que deixou a todos um vasto repertório
cas. Há museus e jardins bem cuidados, mazelas materiais e imateriais do mundo de registros e obras de arte originais,
além de um ciclo de festas de grande contemporâneo. criadas a partir de sua própria leitura
apelo étnico. Ainda nos vales, mais ao estética do mundo ilhéu, da Ilha de San-
sul, e mesmo na região central e oes- OC | A colonização açoriana guarda ta Catarina. Sua fertilidade está provada
te, não raro ouvem-se sonoras cantatas algumas características peculiares na na quantidade de trabalhos que artistas
entrevista | jade martins lenhart
e corais em língua ou dialetos italianos. conformação desta tradição? Quais se- novos e pesquisadores têm elaborado, é jornalista e doutora em Teoria Literária.
Nas festas, o fervor religioso mistura-se riam elas? bebendo de suas fontes. n fotos | pedro alípio 11
O Catarina | número 68 | 2008
O fantástico nos desenhos
especial

de Franklin Cascaes

1.
Péricles Prade Trata-se, portanto, da primeira interior da Ilha de Santa Catarina (co- costumes, crenças e superstições, cor-
preocupação dos estudiosos no tocante munidades rurais), de origem indígena respondem a estórias recontadas. Daí o
a suas produções bidimensionais e tridi- (Carijós) e portuguesa, mormente de caráter/conteúdo narrativo neles, nos
Vida e obra

2.
mensionais. influência açoriana. contos e versos, divulgando a tradição
Pondero, de início, que, se “o ar- Os desenhos, plenos de detalhes, oral sob duplo enfoque: o visual e o da
tista é origem da obra, assim como a com texturas nem sempre harmônicas, escritura. Aliás, para melhor compreen-
obra é origem do artista” , não se pode
1 Suporte/técnica às centenas, alguns inacabados, repre- dê-los, necessária é a justaposição ana-
analisar o vasto acervo dos desenhos de Como suporte da produção bidimen- sentam, na transposição do código da lítica desses dois discursos complemen-
Franklin Cascaes sem o prévio conheci- sional, usava esboços (ou rascunhos) so- oralidade para o da visualidade, perso- tares de sua poética.
mento de sua vida. bre papeizinhos velhos e amarelados, os nagens e cenas (a) de bruxaria, em que a Assim, sem colocar à margem sua es-
Quer-se dizer, por quais, segundo o museólogo Gelcy Coe- sexualidade é reprimida pelo “atavismo pecificidade, no plano do conjunto das
óbvio, que a obra e lho, constituem o elemento mais valioso cristão”2, (b) de monstros de variegadas características formais, os desenhos,
o autor são indis- para a tentativa de compreensão de seu espécies (boi-tatá, lobisomem, caipo- sob pena de reducionismo estético, não
sociáveis, pois, processo criativo. ra, vampiro, seres terrestres, marinhos devem ser examinados de modo autôno-
como alertou São, a rigor, verdadeiros ensaios grá- e aéreos), além de registrar (c) festas mo, isto é, sem remetê-los à linguagem
o filósofo ale- ficos, obsessivos, visando à composição profanas ou sob o signo da religiosidade, da prosa e da poesia, conquanto aquela
mão, nenhum dos desenhos definitivos, trasladados (d) jogos infantis e tipos populares, sem seja permeada de erros gramaticais, e

4.
dos dois se com grafite ou nanquim preta (bico de esquecer, o obcecado pesquisador, (e) a esta de versos de extração ingênua.
sustenta isola- pena) para uma folha maior e de melhor típica arquitetura colonial, as atividades
damente. qualidade, adstritos a um atípico ponti- relativas ao (f) exercício da pesca (com
Enfim, sem conhecer a lhismo, e, às vezes, ao redor (nos can- as redes, bóias, cordas, catutos), (g) o Reinos mesclados
biografia de Cascaes, com ênfa- tos), ou no rodapé, explicados mediante cultivo da mandioca (agricultura artesa- Consta3 que Cascaes não acreditava
se no passado, desde a época textos compactos decorrentes de idéias nal), (h) o ambiente físico (pondo relevo nas descrições dos moradores da região,
em que brincava na Praia de surgidas no momento, quando, então, nas pedras de insinuação orgânica), e, “pessoas analfabetas ou semi-alfabe-
Itaguaçu, onde nasceu, ou provocavam o advento de novas obras, inclusive, entre outras, (i) preocupa- tizadas de meados do século XIX”4, se,

3.
seja, in illo tempore, qual- algumas retomadas anos após. ções de ordem política (bomba atômica, para ele, fantásticas são as coisas e as
quer exegese pecará pela guerra fria, lutas feministas, campanhas criaturas, resultantes do medo das famí-
base. eleitorais etc.), para demonstrar o vín- lias isoladas, à época, mas não o homem
Repertório temático culo ao Real, não obstante as fantasias enquanto tal, integrante da realidade fí-
O repertório é composto por temas também emergidas ao tratá-las. sica circundante.
inerentes ao imaginário popular, fru- Temas que, diga-se de passagem, Acredito nisso. O artista não se li-
12 to da tradição oral dos habitantes do realçando o Bestiário, fundados em mitava a transcrever, ou visualizar,

O Catarina | número 68 | 2008


especial
as histórias verbalizadas. Recriava-as, fantástico tem um caráter alusivo, é di-
quase sempre, embutindo, em espe- zer, refere-se a algo alheio à sua própria
cial nos desenhos, novos dados, tam- natureza”14.
bém fantásticos, a partir dos modelos Gênero fantástico, ressalte-se, de
tradicionais, mesmo porque, como ele cunho ostensivamente mitológico, numa
mesmo dizia, as pessoas contavam de obra aberta, reveladora de apropria-
forma diferente as assombrações (fe- ção de mitos universais, “adaptados
nômenos naturais), que imaginavam ao contexto histórico em que o artista
ver no lusco-fusco ou à noite. viveu”15, até porque “existiu uma rica
Os seres que infestam o seu arquetí- tradição mítica entre o povo ilhéu”16,
pico imaginário, mais voadores e menos cuja recriação, por meio de desenhos
terrestres e marinhos, sem desprezar o exemplares, propiciou o renascimen-
artista os elementos primordiais da na- to de uma mitologia de estranhamento
tureza, unem, em sua concepção, em local, e também pessoal, desvinculada
regime de mágica unção, o tempo e o de seu criador, depois, por força das
espaço, instaurando atemporalidade, metamorfoses imantadas pela memória
porque se está diante de algo não ex- coletiva. n
plicado pelo senso comum. O visível e o
invisível, desse modo, entremostram-se
na representação conjugada do natural
e do sobrenatural.
Eis que de repente, não mais que de
repente, surgem “reinos mesclados”5,
onde as formas são compostas pela mis-
tura deles, sem haver barreira radical,
separando-os. Este hibridismo, em Cas-
caes, ao considerar os reinos da natureza
como mera convenção, fundindo entes
animados e inanimados, lembra imagens
1
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte.
do universo de monstros e maravilhas Lisboa: Edições 70, 2007, p. 11.
sediados nos fins da Idade Média. Sim, 2
NEVES FILHO, João Otávio. Mitos Açorianos na Arte
porque “o monstro é um objeto essen- Catarinense. Florianópolis: Jornal “Ô Catarina”, 1996,

5.
p. 25.
cialmente visual”6.
3
ESPADA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. Florianópolis:
Publicações Fundação Franklin Cascaes, 1996, p. 25.

Estilos: confluência CARUSO, Raimundo. Franklin Cascaes (Vida e Arte)


4

e a Colonização Açoriana. Florianópolis: Ed. UFSC,


Feitas estas considerações, cabe as- 1981, p. 51.
sinalar que o estilo de Franklin Cascaes, 5
 URLAN, Oswaldo Antônio. “O texto: seu
F
estabelecimento, traços dialetais e glossário”. In
nos desenhos, revela confluência de vá- CASCAES, Franklin. O Fantástico na Ilha de Santa
rias vertentes. Compreende: Catarina. Florianópolis: Ed. UFSC, 5a ed., 2005, p. 7.
a) o Grotesco, como “estrutura de 6
 APPLER, Claude. Monstruos, Demonios y Maravilhas
K
um mundo alheado” , de linhagem mais
7 a fines de la Edad Media. Madrid: Akal, 1986, p. 154
e 162.
bruegheliana e menos boschiana, sem d) o Alegorismo, dado que o artista h) o Surrealismo pictórico, ao “ex- 7
 APPLER, Claude. Monstruos, Demonios y Maravilhas
K
ser bizarro, no caso, mas de expressão pretende, talvez até de forma incons- plorar o outro lado da razão, isto é, o a fines de la Edad Media. Madrid: Akal, 1986, p. 13.
romântica, privilegiando temas medie- ciente, encartar “um significado oculto sonho, o maravilhoso, a loucura, os es- 8
K AYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo:
vais, com atitude criadora no sentido nos temas eleitos”10, a par do fato de a tados alucinatórios”11 daqueles que des- Perspectiva, 1957, p. 15.
do onírico; mitologia de lastro cristão e seus símbo- creviam o estupor diante das visões no 9
HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o Mundo como

6.
Labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 49.
b) o Maneirismo, caracterizado pela los estarem presentes; interior da nossa ilha.
contorção, distorção, deformação e e) o Medievalismo, ancorado na in-
10
LITTLE, Stephen. ...Ismos Entender a Arte. Londres
(Ed. Portuguesa): Lisma, 2007, p. 46.
ambigüidade, embalado pela “relativi- tegridade, espiritualidade, pureza ima-
Presença do fantástico  ABRIS, Annateresa. “O Surrealismo Pictórico: a
F
11

dade das coisas e do espaço” , em que


8
ginativa e sinceridade artística na reve- Alquimia da Imagem”. In GUINSBURG, J.; LEINER,
as formas e figuras alongadas, sinuosas, lação do mundo imaginário, contando Entretanto, toda essa confluência Sheila (Org.). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva,
2008, p. 477.
convulsivas, sofisticadas, revelando vir- estórias; estilística, no fundo, presta obséquio ao
12
 ALTRUSÄITIS, Jurgis. La Edad Media Fantastica.
B
tuosidade e procura de efeito, lembram f) o Simbolismo, de perfil esotérico, universo do fantástico, cujo espectro, Madrid: Catedra, 1994, p. 278.
a serpentinata, quando se manifesta “o explorando, pela intuição, os lados do maior do que se supõe, reside, origina- 13
SCHURIAN, Walter. Arte Fantastica. Madrid: Taschen,
desejo ainda infantil de relativizar os mistério, do desconhecido e do indizível, riamente, na Idade Média gótica, proje- 2005, p. 7.
objetos”9, como ocorria no auto-retrato através do uso de formas simplificadas na tando, até hoje, suas forças pelos “en- 14
VAX, Louis. Arte y Literatura Fantasticas. Buenos
de Parmigianino; disposição espacial, e contornadas pela cantamentos” de seus “prodígios” . 12 Aires: Eudeba, 1965, p. 36.

c) o Barroco, por estarem à deriva cor preta (no contraponto luz e sombra); A afirmação é verdadeira, já que 15
ESPADA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá.
Florianópolis: Publicações Fundação Franklin
das proporções clássicas, valorizando g) o Naïf, em virtude da falta de do- se pode “apreciar a presença fantás- Cascaes, 1996, p. 30.
mais a unidade do desenho e seu efeito, mínio técnico, constatável na ausência tica em todas as épocas e disciplinas 16
 RAÚJO, Adalice Maria de. Mito e Magia na Arte
A
arte dominada pelo movimento, e pelo da perspectiva, prevalecendo a emoção artísticas”13, sem ter características tí- Catarinense. Florianópolis: Ioesc; 1979, p. 83.
excesso, enfatizando o preciosismo na intuitiva, a força expressiva, e que não picas de Escola ou Corrente.
texto | péricles prade
elaboração, com a finalidade de, pela se confunde com o primitivismo de Gau- Assim é, se não se pode desmerecer
é advogado e presidente do Conselho Estadual
ilusão, transformar a realidade; gin, Nolde ou Picasso; o pensamento segundo o qual “o gênero de Cultura. 13
O Catarina | número 68 | 2008
Sob o domínio atento
especial

das mãos e dos dedos


Vanilde Rohling Ghizoni A relação entre as figuras é enfatizada,
ainda, pelo modo como o artista ela-
A coleção escultórica de Franklin borou suas peças, dando unidade na
Joaquim Cascaes diferencia-se, entre forma e na homogeneidade da cor, em
outros aspectos, pela fragilidade do ma- sua apresentação estética. No caderno
terial utilizado como suporte da maioria de número 60, que compõe o acervo
das peças: argila não cozida e gesso. A do Museu Universitário, o artista
maneira como o artista utilizou a argila, resume esta interdependência:
porém, afasta-se daquela comumente “Cada Conjunto representa um
trabalhada pelos ceramistas: em sua co- livro e cada figura uma página.
leção, o material jamais foi submetido à Portanto, se vender uma figura
queima, condição obrigatória para clas- arrancarei uma página do livro, e
sificação de uma cerâmica. um livro com falta de uma pági-
De acordo com o teórico Claude na, apresentar-se-á trincado.”
Vittel, a cerâmica é um “conjunto de Se determos o olhar sobre
produtos à base de argila e de caulin, sua coleção de peças, cons-
transformados pela ação do fogo”. Já tatamos que a unidade es-
por escultura entendemos “a arte e a tabelecida pelo conjunto se
técnica de plasmar a matéria esculpindo desfaz, já que cada figura apresen-
a madeira, modelando o barro, cinze- ta uma riqueza exclusiva de detalhes,
lando a pedra ou o mármore, fundindo revelados na expressão do rosto e dos
e metal [...] a fim de representar em movimentos, tornando-a única. Median-
relevo, ou em três dimensões estátuas, te a modelagem, a escultura nasce das
figuras e formas abstratas”. mãos do artista, e vai aos poucos dando-
Cascaes empregou o gesso e a argila lhe corpo. Pouco a pouco surge uma for-
como matéria final na produção de suas ma indefinida, para depois aparecerem
peças. Grandes mestres, como o escul- os detalhes, os lábios, o traço dos olhos,
tor francês Auguste Rodin (1840-1917), os sulcos dos cabelos e finalmente o ros-
empregavam a argila como meio tran- to adquire vida. A obra está criada.
sitório para elaboração dos modelos, Ao pensarmos nas esculturas de
confeccionando-os depois em fôrmas- Franklin Cascaes, logo recordamos suas
moldes em gesso. Nesses moldes de ges- exposições, apreciadas ao longo dos
so, a peça era fundida em metal, como anos nas Salas de Exposição do Museu
o bronze. A argila também proporciona- Universitário Professor Oswaldo Rodri-
va a realização de estudos escultóricos, gues Cabral, no campus da Universidade
antecessores da produção da peça em Federal de Santa Catarina. A totalidade
outro material, como o mármore. do acervo encontra-se em reserva téc-
Nas esculturas de Cascaes, cada con- nica. Atualmente o museu está em fase
junto representa um episódio cenográ- final da construção do pavilhão de ex-
fico, projetando relação de interdepen- posição, o que explica as apresentações
dência entre as diferentes figuras. Na fora das instalações do Museu. n
Procissão do Senhor Jesus dos Passos,
texto | vanilde rohling ghizoni
por exemplo, cada figura é uma per-
é conservadora-restauradora de obras
sonagem da procissão, dona de função de arte.
específica e interligada à mesma ação. fotos | divulgação agecom

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“É, neste mundo de Deus, há muitos mistérios

especial
e esta gente simples aqui da Ilha vive estas coisas
quase como uma realidade. Meus lobisomens,
bruxas, demônios e boitatás existem.”

Fra nklin Ca sca es

Vassoura bruxólica
Sempre foi crença do povo hospi- mem, encaminhando-o, espiritualmente, extraordinário. Apostaram um par de ta- chorando copiosamente. A Carriça
taleiro desta Ilha dos famosos bois de para viver com bons modos junto com o mancos contra uma botina. E firmaram a abraçou-se com ela e ambas choraram
mamão que, na Sexta-Feira Santa, não seu Deus, com a cultura, na sociedade e promessa da aposta, casando-a. e sentiram o amargo do néctar da de-
se deve tomar instrumentos de trabalho conseqüentemente com o seu próximo. Na Sexta-Feira Santa daquele ano, sobediência humana.
para usá-los, seja qual finalidade for. Entrementes, sempre aparecem nos de manhã cedo, ela chamou a Carriça, Nenhuma das duas era bruxa, por-
É também costume tradicional deste meandros desses cenários fantásticos, apanhou uma vassoura e foi varrer o que a vassoura, que é um instrumento
povo, descendente de colonos açoria- e outros moderados, pessoas que se quinta “prá-mode” mostrar a sua cora- de montaria de bruxas, foi embora, via-
nos, que, na Sexta-Feira Santa, a par- arrojam contra os poderes divinos, mal- gem contra o poder da fé guardada por jar pelo espaço sideral, sozinha.
tir de zero hora, devem banhar-se nas tratando esses conjuntos de sociedades seus ancestrais e também para cumprir Oh! Minha querida Ilha de Santa Ca-
ondas do mar, levando consigo animais freadoras, veículos insubstituíveis de a promessa da aposta. tarina de Alexandria, és a graciosa se-
domésticos, para purificarem-se e pro- abrandamento dos sofrimentos que mar- Quando a Vivina deu a primeira reia que repousa sobre brancas areias de
tegerem-se de todos os males do copo tirizam e açoitam a criatura humana. varredela, a vassoura soltou-se de cômoros errantes, sambaquis seculares,
físico e espiritual. Um caso de desrespeito espiritual suas mãos quiném um relâmpago, banhada pelas ondas acasteladas do
As águas colhidas nesta hora servem aconteceu há muitos anos passados, lá metamorfoseou-se em bruxa, ganhou oceano, perfumada pela brisa acarician-
para todo o tipo de cura. pras bandas do Sul da Ilha de Santa altura sobre o morro do Ribeirão da te dos ventos e enxuta com as toalhas
É a fé, longínqua dos tempos, aliada Catarina. Ilha e desapareceu, num repente, no felpudas dos raios solares que beijam ca-
à superstição, ao medo e ao amor pela A Maria Vivina, moradora da Praia dos espaço sideral das alturas incomensu- lorosamente seu corpo mitológico.
conservação do corpo físico, na cura dos Naufragados, fez uma aposta com a Carri- ráveis da quiméria.
males que atacam o homem em franca vi- ça, de que, na Sexta-Feira Santa daquele A Maria Vivina caiu de joelhos no franklin Cascaes, 1946.
vência espiritual e física com o seu Deus. ano, ela tomaria uma vassoura e com a terreiro, rezou e pediu perdão aos Livro: O Fantástico na Ilha
As forças atuantes de práticas religio- mesma, varreria o quintal de sua casa e, céus pelo ato impensado que havia de Santa Catarina, Franklin
sas freiam os instintos animalescos do ho- certeza tinha, nada lhe aconteceria de cometido contra as ordens divinas, Cascaes, editora da UFSC. 15
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especial

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