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III.

11 – REGIME SOCIETÁRIO (DIREITO ADMINISTRATIVO SOCIETÁRIO)

Fatores como a sua base legal específica, a necessidade de manutenção do controle


societário pelo Estado para a não transmutação da sua própria natureza jurídica de estatal
e peculiaridades do “melhor interesse da companhia” a cargo do acionista controlador,
que, por força do art. 238 da Lei das S.A. c/c art. 4.º, § 1.º, do Estatuto das Estatais, inclui
também preocupações de interesse público, faz com que o regime dessas empresas seja,
na esteira do que viemos expondo ao longo de todo este capítulo, híbrido e atípico.

O que possui de direito societário não é, em sua maior parte, exatamente idêntico ao que
é aplicável às empresas da iniciativa privada, e o que possui de Direito Administrativo
por ser uma entidade da Administração Indireta, também sofre sérias alterações,
sobretudo, se a estatal for independente do orçamento público e atuar em concorrência no
mercado (cf. Capítulo IV).

Possui na verdade todo um Capítulo – o Capítulo II do seu Título I – intitulado “Do


Regime Societário da Empresa Pública e da Sociedade de Economia Mista”. A Lei das
S.A. continua plenamente aplicável às sociedades de economia mista, salvo no que
contrariar o Estatuto das Estatais; e agora é em parte também aplicável às empresas
públicas, mas apenas no que o Estatuto das Estatais determinar a sua aplicação.

A Lei das S.A. é de certa forma ambígua em relação às sociedades de economia mista.
Ela as inclui em seu regime jurídico, mas, em seu art. 238, objeto dos tópicos anteriores,
atenua a obrigação de busca da lucratividade que seria inerente a qualquer empresa, ainda
mais uma sociedade anônima, ambiguidade esta que, como exposto, foi incrementada
pelo Estatuto das Estatais, que, ao mesmo tempo em que institui um regime societário
parcialmente diverso para todas as estatais, remete à Lei das S.A. e à legislação da CVM
em vários pontos, sobretudo de governança.

O art. 15 do Estatuto das Estatais, por exemplo, expressamente determina a aplicação das
normas de abuso de poder de controle da Lei das S.A. aos acionistas controladores, não
apenas das sociedades de economia mista, mas até mesmo das empresas públicas.1

1
O art. 15 do Estatuto das Estatais, inclusive dobra para seis anos o prazo prescricional
previsto originariamente pelo art. 287, II, “b”, 2, da Lei das S.A. para as respectivas
ações indenizatórias.
Assim, da mesma forma que essa fusão complexa de regimes faz com que em matéria de
pessoal das estatais se possa falar de um Direito dos empregados públicos, em matéria
societária a elas relacionada também poderíamos lançar mão de um Direito
Administrativo Societário.

No entanto, a Lei das S.A. também admite o tratamento diferenciado das sociedades de
economia mista. O seu art. 236, por exemplo, faz referência à necessidade de que a criação
da companhia seja previamente autorizada por lei, previsão consentânea com o disposto
no art. 37, XIX, da Constituição Federal, e replicada no Estatuto das Estatais (art. 2.º, §
1.º). O art. 237 complementa, não sem certo truísmo, que “a companhia de economia
mista somente poderá explorar os empreendimentos ou exercer as atividades previstas na
lei que autorizou a sua constituição”.

No que tange à administração das sociedades de economia mista, o art. 239 da Lei das
S.A., no que foi seguido pelo § 2.º do art. 19 do Estatuto das Estatais, determina que,
obrigatoriamente, deverá existir nessas companhias um Conselho de Administração,
sendo assegurado à minoria o direito de eleger um dos conselheiros, se maior número não
lhes couber pelo processo de voto múltiplo. Já o art. 240 estabelece que o funcionamento
do conselho fiscal nessas estatais será permanente, devendo um dos seus membros, e o
respectivo suplente, ser eleito pelas ações ordinárias minoritárias e outro pelas ações
preferenciais, se houver.

Consistem ambas as normas supramencionadas, segundo Filipe Guedes,325 em um


tratamento preferencial concedido aos acionistas minoritários que, não obstante mais
benéfico, quando comparado àquele dispensado nas sociedades anônimas comuns, não
viola a isonomia com os acionistas minoritários de outras companhias, já que os acionistas
privados das sociedades de economia mista têm a peculiaridade de poderem ter a
maximização da sua lucratividade ponderada com os interesses públicos que justificaram
a sua criação (art. 238 da Lei das S.A. c/c art. 4.º, § 1.º, do Estatuto das Estatais, objeto
de diversos tópicos do capítulo IV, cuja remissão se faz essencial).
É bem por isso que, nos termos do parágrafo único do art. 236 da Lei das S.A., é garantido
o direito de recesso aos demais acionistas da companhia nas hipóteses em que o Estado
assume o seu controle. Trata-se de uma “solução compensatória ao sócio privado em
razão da mudança na causa típica da sociedade anônima. A introdução de outros
propósitos no interesse social constitui alteração relevante nas bases essenciais do
negócio societário”. (MARIO ENGLER PINTO JUNIOR).

Pelas mesmas razões, não é aplicável, às empresas estatais, a hipótese de dissolução


forçada em razão da não distribuição sistemática de lucros, por sentença judicial, prevista
no art. 206, II, “b” c/c art. 109, I, da Lei das S.A.,327 conforme exposto na parte final do
tópico anterior.328

No mesmo contexto, são igualmente aplicáveis às estatais as normas da Lei das S.A. que
versam sobre os deveres dos administradores das companhias, conforme dispõe o art. 239
dessa lei, que prevê que “os deveres e responsabilidades dos administradores das
companhias de economia mista são os mesmos dos administradores das companhias
abertas”, mas, na linha do que se vem defendendo, com algumas peculiaridades.
O administrador da empresa estatal, assim como o administrador de uma companhia
privada “deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins
e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social
da empresa” (art. 154)2, hoje reforçada pelo art. 27 do Estatuto das Estatais, que, no
entanto, em seu caput, praticamente equipara a sua “função social” ao interesse público
que justificou a sua instituição.

Ponto também relevante no Direito Administrativo Societário das sociedades de


economia mista brasileiras é o da aplicabilidade a elas dos dispositivos da Lei das S.A.
que excluem o voto do acionista controlador em determinadas situações, como, por
exemplo, a de conflito de interesses.

Nas sociedades de economia mista o controle do Estado – a maioria dos ações com direito
a voto – é o elemento definidor da sua própria natureza jurídica. E assim o é tanto em
razão da definição legal e doutrinária de sociedade de economia mista, como da sua lei
autorizativa, que preveem o controle estatal sobre aquela sociedade. Tanto é assim que
em relação às sociedades de economia mista é um poder/dever do Estado o exercício das
prerrogativas de acionista controlador, não possuindo a discricionariedade de exercê-las
ou não.330

Se a criação de uma empresa estatal só se justifica para atender a algum relevante interesse
da sociedade, e sendo as prerrogativas de acionista controlador o principal instrumento
de introjeção na empresa dessas preocupações, não pode o Estado se omitir no seu
exercício ou deles abrir mão sem lei autorizativa, ainda que genérica, como as leis que
permitiram a alienação do controle dessas empresas no curso de programas de
desestatização.332

A nosso ver, duas situações devem ser diferenciadas: uma quando o voto do acionista
controlador for afastado em situações específicas pontuais, o que seria admissível por não
significar afastamento do controle estatal; outra se o controle do Estado tiver que ser
afastado por tempo e por votações indefinidas, o que, em função do caráter de
continuidade e indefinição, comprometeria a própria natureza de sociedade de economia
mista da empresa.333

Na primeira situação temos o art. 115 da Lei das S.A. que disciplina a hipótese de
exercício abusivo do direito de voto pelo acionista, assim caracterizado, por exemplo, o
exercício do direito de voto em questões que possam beneficiá-lo de forma particular em
detrimento dos interesses dos demais acionistas, isto é, em questões que envolvam
possíveis conflitos de interesses, caso em que o acionista controlador estatal, como
qualquer outro acionista, também poderá estar impedido de votar.

Nesse julgado, foram discutidas duas vertentes doutrinárias sobre a interpretação a ser
atribuída ao art. 115, § 1.º, da Lei 6.404/1976: uma que defende que a mera possibilidade
de o acionista se beneficiar do seu voto produz o impedimento de participar da votação

2
De acordo com Mario Engler, “a lei do acionariato brasileira adotou a teoria
organicista, segundo a qual os administradores (conselheiros de administração e
diretores) são considerados órgãos da companhia, enquanto entidade autônoma dotada
de interesse próprio, e não mandatários que agem por delegação dos acionistas”
(vertente formalista, que defende o impedimento ex ante) e outra que defende que o
acionista pode exercer o seu voto, mas que esse pode vir a ser desconsiderado caso o seu
conteúdo concreto venha a violar o interesse da companhia (vertente materialista, que
defende o controle ex post), tendo prevalecido a primeira tese.

Em relação às sociedades de economia mista o § 1.º do art. 115 da Lei das S.A. deve,
contudo, ser aplicado de forma compatível com a permissão que o art. 238 dá ao acionista
controlador estatal para que direcione a empresa no sentido dos interesses públicos que
justificaram a sua criação, interesses públicos estes que naturalmente, estão a cargo do
ente federativo/acionista controlador que a institui, pois, do contrário, nem teria havido
competência constitucional para criá-la.

E mais, se levado o § 1.º do art. 115 ao seu extremo em relação às estatais, como muitas
delas atuam quase que exclusivamente como concessionárias ou autorizatárias do ente
federativo que as controla, o acionista controlador ficaria impedido de exercer seu voto
em muitas das questões relativas à atividade-fim da empresa,

A CVM reconheceu não poder discutir o mérito das políticas públicas perseguidas pelo
acionista controlador de uma sociedade de economia mista, incluindo-se aí a promoção
de políticas tarifárias, monetárias, inflacionárias, “desde que inseridas nas razões que
justificaram sua criação”. De outra, porém, ressalvou que, se, “paralelamente ao interesse
público declarado, a pessoa jurídica de direito público que atua como controlador está
confrontada também com a possibilidade de auferir benefícios particulares, como, por
exemplo, uma contrapartida financeira não extensível aos demais acionistas, a mera
alegação de persecução ao interesse público não basta para legitimar a atuação do
acionista controlador”.337

Para tecer essa diferenciação, o Colegiado adotou a dicotomia entre interesse público
primário e secundário, já mencionada (e criticada) no tópico III.1.3. A instrumentalização
da Eletrobras como forma de promover política tarifária do setor seria um interesse
público primário. Já a instrumentalização da Eletrobras como forma de produzir
economias no que tange às indenizações devidas pela União às concessionárias ao fim
dos contratos seria um interesse público meramente secundário. Seria apenas “uma
questão financeira entre a companhia e seu acionista controlador” e “abrir mão de parte
da indenização pelos bens reversíveis beneficia apenas a União e prejudica os demais
acionistas”.

Em casos em que a sociedade de economia mista seja utilizada, ainda que acessoriamente,
em algum interesse que seja imediatamente público, mas que não esteja entre os que
justificaram a sua criação, deve prevalecer o impedimento, ainda que não haja qualquer
valor pecuniário em questão, pois nesses casos também o art. 238 da Lei das S.A. c/c art.
4.º, § 1.º, do Estatuto das Estatais também não entrará em ponderação com o art. 115 para
afastar a sua incidência.340 Suponhamos, por exemplo, que esteja sendo votado o
engajamento da estatal no programa governamental de combate ao analfabetismo, que
nada tenha a ver com sua atividade principal e que nenhuma de suas concorrentes privadas
sequer cogita de encampar. Para além da própria provável injuridicidade do engajamento
da estatal em programas governamentais, de qualquer forma o Estado estaria impedido
de votar, por mais que inquestionavelmente o combate ao analfabetismo não seja um
interesse público secundário.
Outra previsão da Lei das S.A. que poderia gerar discussão quanto à sua aplicabilidade
às sociedades de economia mista por poder mitigar o controle estatal sobre elas é o art.
120.341 Entendemos ser ele aplicável por incorporar medida casuística e necessariamente
temporária (a depender apenas da atitude do próprio controlador), pois a suspensão do
direito de voto nele prevista vige somente enquanto estiver agindo ilicitamente com a
empresa.

O mesmo raciocínio pode de certa forma ser aplicado ao art. 111, § 1.º, da Lei das S.A.,
que assegura a aquisição de direito de voto por acionistas preferencialistas no caso de não
distribuição de dividendos por período prolongado.342 A sua aplicação às empresas
estatais não pode ser estrutural e por prazo indeterminado, limitando-se ao tempo
necessário para se efetuar a distribuição dos dividendos ilegitimamente retidos. Se a causa
do não pagamento de dividendos for fático-conjuntural, não dependendo da vontade dos
acionistas, em especial do acionista controlador, não será aplicável o art. 111, pois seria
uma situação que poderia levar à perda por tempo indeterminado do controle do Estado.

Dispositivo que tende a gerar polêmica no sentido de mitigar ainda mais a aplicação das
normas sancionatórias da Lei das S.A. à não distribuição de dividendos é o inciso V do
art. 8.º do Estatuto das Estatais, que prevê como requisito de sua transparência a
“elaboração de política de distribuição de dividendos, à luz do interesse público que
justificou a criação da empresa pública ou da sociedade de economia mista”.

Por um lado se pode defender que a consideração do interesse público que justificou a
criação da estatal pode ser invocada para a adaptação da incidência das regras da Lei das
S.A. que obrigam a distribuição de dividendos. Em outras palavras, que, ao se referir
concomitantemente ao interesse público e à distribuição de dividendos, o Estatuto estaria
admitindo a possibilidade de a obrigação dessa distribuição ser mitigada em prol do
interesse público que levou à criação da estatal. Poderia ser imaginada, por exemplo,
segundo essa posição, a situação de uma estatal de saneamento básico que, para ter
recursos para universalizar o serviço, investisse todo seu faturamento nessa
universalização, ficando sem distribuir lucros por período superior ao admitido pela Lei
das S.A.

Por outra visão, ligando-se o inciso V ao caput do seu artigo 8.º, vê-se que ele é
instrumental a uma política de transparência, pressupondo a mera divulgação (até mesmo
na internet – art. 8.º, § 4.º) de políticas de distribuição de dividendos que de certa forma
sempre puderam ser atenuadas pelo interesse público que levou à criação da estatal. Em
outras palavras, e essa é a nossa opinião, o inciso V do art. 8.º do Estatuto das Estatais
não veio a mitigar ainda mais a necessidade de distribuição de dividendos estabelecida na
Lei das S.A., mas sim que a mitigação, que sempre existiu, inclusive em virtude do art.
238 da Lei das S.A., seja doravante transparente e divulgada, obedecidos os limites e
consequências da retenção prolongada da distribuição de dividendos da Lei das S.A. tal
como acima referidos neste tópico.
V.1 – NOVOS CONTEXTOS, NOVAS ESTRATÉGIAS

as empresas estatais, têm adotado novas estratégias tanto diante de um novo contexto
político-econômico, em que foram adotadas políticas desestatizantes e pró-mercado,
como diante da crise financeira de 2008,1 em que houve algum recrudescimento da
atuação direta do Estado na economia, mas um recrudescimento em novos termos.2

No primeiro momento acima referido, muitas estatais foram privatizadas, mas muitas
permaneceram sob o controle do Estado.

outras, sob os ventos do liberalismo econômico, passaram a ter concorrentes privados.

As empresas estatais que atuavam com base no art. 173 da CF, como os bancos públicos,
sempre tiveram concorrentes particulares. Mas para as estatais que passaram a lidar com
a concorrência privada, muitas vezes continuando a exercer serviços ou monopólios
públicos, mas agora delegados também a empresas da iniciativa privada, isso representou
uma grande desafio.3 Representou também uma alteração em todo o arcabouço
institucional do seu entorno, passando a partir desse momento, por exemplo, juntamente
com suas congêneres privadas, a se submeter ao direito concorrencial e à regulação que
incidir sobre o mercado em que atuam.4

Esse momento teve dois aspectos: de um lado, a necessidade de paridade de regimes


jurídicos, foram submetidas aos mesmos controles e ordenamentos setoriais que as
empresas privadas do segmento; de outro, passaram a ter que ser dotadas dos instrumentos
necessários para poderem competir no mercado sem desvantagens além daquelas
inevitáveis em razão de serem controladas pelo Poder Público (ex.: controles pelos
tribunais de contas, concurso público…), fortalecendo-se, por exemplo, a sua
internacionalização, parcerias com outras empresas e a possibilidade de acederem à
arbitragem.

V.2 – SUJEIÇÃO AO ANTITRUSTE

legislação e os controles antitruste.

Com isso, tornam-se possíveis conflitos entre essa disciplina de proteção da concorrência
e pautas da estatal oriundas do seu controlador para a realização de certas políticas
públicas.

Suponhamos, por exemplo, que a política pública desejada para o setor pelo Poder
Executivo fosse o fortalecimento da estatal para torná-la uma “campeã nacional”, para o
que deveria adquirir o controle do maior número possível de empresas, concentrando
excessivamente aquele mercado. Valerá a vedação do direito da concorrência a essas
aquisições ou a política pública expansionista para a atuação da estatal naquele mercado?

Como as empresas estatais passaram, após o processo de desestatização da década de


1990, a atuar crescentemente em um mercado com outros agentes econômicos rivais,
passaram a ter que tornar mais ágil a sua gestão, desburocratizando-se e buscando
parcerias com outras empresas, nacionais e internacionais, para poder competir
adequadamente.

Uma consequência desse movimento de maior liberdade negocial, decorrente da


expansão da atuação concorrencial das estatais, é justamente a sujeição

O SBDC atua por meio de duas espécies de controle, o controle de conduta e o controle
de estrutura. O controle de conduta busca coibir os atos praticados com a intenção de
dominar mercado, aumentar arbitrariamente os lucros, limitar, falsear ou prejudicar a livre
concorrência, ou exercer de forma abusiva posição dominante (art. 36 da Lei
12.529/2011). O controle de estrutura é espécie preventiva de controle que objetiva
impedir a concentração econômica exigindo-se que determinadas operações entre agentes
econômicos (tais como fusões e aquisições) sejam submetidas ao crivo da Administração
para aprovação prévia – são os chamados atos de concentração. (art. 31 da Lei
12.529/2011).

Além de haver previsão expressa nesse sentido na Lei 12.529/2011, a afirmação também
encontra fundamento no inciso II do § 1.º do art. 173 da CF/1988, que determina que as
estatais que atuem em concorrência com agentes privados10

hipóteses em que a aplicação do antitruste é impedida ou atenuada em relação às empresas


estatais.

Essa flexibilização seria cabível tanto nos controles de estrutura como nos de conduta.
Nesse sentido, como veremos, alguns atos de concentração ou condutas que, sob a ótica
antitruste poderiam ser, em tese, considerados ilícitos, dentro de um contexto em que a
estatal atua na promoção de políticas públicas, podem ser permitidos do ponto de vista
concorrencial.

Em primeiro lugar, a própria exclusividade, se decorrente de lei ou da própria


Constituição, ou de uma decisão tomada pela Administração Pública (por exemplo, em
um edital de licitação), não pode ser revertida por uma decisão administrativa das
autoridades concorrenciais.3

Pode acontecer que, em atividades econômicas sujeitas à publicatio, o ordenamento


jurídico já de antemão exclua total ou parcialmente a concorrência naquele setor. Neste
caso, seja a beneficiária de tal decisão uma empresa estatal ou uma empresa privada
concessionária, não poderá o CADE reverter a opção política do ente federativo pela
exclusividade.12

Nesses casos, a constituição de uma empresa para atuar em regime de exclusividade não
viola os preceitos do direito antitruste mesmo que a constituição de um monopólio

3
A decisão do CADE não pode contrariar a decisão do ente federativo de como gerir uma
atividade econômica que é de sua titularidade exclusiva, não podendo, por exemplo,
interferir na modelagem de uma concessão para que um município, ao invés de abrir
licitação para apenas um concessionário, outorgue concessão a vários deles.24
implique a supressão da concorrência naquele mercado específico. Isto porque a opção
pela exclusividade teria sido permitida pelo próprio constituinte ao colocar aquela
atividade na esfera pública da economia (cf. tópico II.2).

Isso não quer dizer, todavia, que as estatais não tenham que notificar ao CADE dos atos
de concentração subsequentes que se subsumam aos critérios legais para tanto. Um ato
de concentração envolvendo empresa que exerce atividades em regime de exclusividade
– seja este um monopólio natural, de fato ou legal – necessariamente irá ter reflexos em
um mercado distinto daquele no qual ela tem exclusividade.

o CADE entendeu que o ato de concentração era de notificação obrigatória, pois se


enquadrava na hipótese dos arts. 88 e 89 da Lei 12.529/2011, mas também afirmou de
forma genérica que os objetivos públicos regulatórios para o setor deviam ser levados em
conta quando da apreciação do mérito da concentração

No que se refere ao controle das condutas, mesmo nos casos em que a estatal exerce sua
atividade com exclusividade, ela pode incidir nas hipóteses de infração à ordem
econômica elencadas no art. 36 da Lei 12.529/2011. Nesse sentido, uma empresa pública
ou sociedade de economia mista pode, por exemplo, ser condenada por exercer de forma
abusiva sua posição dominante ou por adotar medidas visando o aumento arbitrário do
seu lucro.

Tal como as concentrações, apesar de as condutas das estatais estarem sujeitas à


fiscalização antitruste, esta deve levar em consideração o papel da empresa estatal na
ordem econômica, o fato de ser ela controlada pelo Poder Público e estar agindo, em
muitos dos casos, como seu instrumento na economia. “Diferentemente da empresa
privada, a empresa estatal não visa teleologicamente à acumulação de riqueza, nem é
movida apenas pela finalidade lucrativa” (MARIO ENGLER PINTO JUNIOR).

o Conselheiro Luiz Carlos Delorme Prado votou pelo arquivamento do processo por
entender que não havia indícios de que “a estratégia de preço da Petrobras tenha por
objetivo excluir concorrentes do mercado”. O argumento é que a prática de preço
predatório4 possui um elemento subjetivo – que seria a intenção de excluir os
concorrentes do mercado e maximizar o lucro no longo prazo – e teria como resultado
final esperado uma redução do bem-estar do consumidor.21 Sendo assim, mesmo que se
provasse que os preços praticados pela Petrobras eram valorados abaixo do custo de
mercado, ainda assim não se poderia afirmar que se tratava de preço predatório, pois seria
necessário mostrar o elemento subjetivo e ilustrar como isto acarretaria em prejuízo ao
consumidor, e, no caso, para o bem ou para o mal, a Petrobras estava agindo como

4
O Conselheiro Luiz Carlos Delorme Prado afirmou, no caso, que preço predatório é a
“prática concorrencial realizada por uma empresa, como poder de mercado, que sacrifica
lucros de curto prazo, com objetivo de reduzir a concorrência, e que possa produzir
simultaneamente os seguintes efeitos: reduzir o bem-estar do consumidor e maximizar os
lucros do infrator no longo prazo”.
instrumento de seu acionista controlador com objetivos macroeconômicos de controle da
inflação.22

Como haveria a persecução pela Petrobras de um interesse público, não de mera


eliminação de concorrentes, a conduta da estatal não foi considerada preço predatório,
apesar de se assemelhar, em abstrato, com esta modalidade de infração
anticoncorrencial.23

Note-se que a decisão pela não incidência da infração concorrencial nesse caso não adveio
propriamente do fato de a empresa ser uma estatal, mas, sim, do elemento subjetivo de
estar adotando preços abaixo do mercado, não para eliminar a concorrência, mas razões
outras. No caso das estatais, esses episódios podem ocorrer devido a algum interesse
público introjetado por seu controlador
V.3 – SUJEIÇÃO À REGULAÇÃO INDEPENDENTE

Como se vê, o âmbito de atuação das agências reguladoras se volta na sua maior parte a
atividades econômicas que foram objeto de processos de desestatização, exatamente
como forma de atração e segurança dos investimentos realizados pelos entrantes naqueles
mercados. Isso se deve ao fato de essa espécie de entidade reguladora ser potencialmente
menos sujeita às variações de curto prazo da arena político-eleitoral em razão da vedação
da livre exoneração dos seus dirigentes.

Ora, como muitas das estatais brasileiras atuam em setores apenas parcialmente
desestatizados, nos quais foram feitas concessões a agentes privados, mas mantendo uma
ou mais estatais atuantes no setor, é natural que estas também sejam reguladas pela
respectiva agência reguladora

Nos casos em que a estatal atua em concorrência e há uma agência reguladora, a


submissão à sua disciplina e fiscalização é necessária em face da paridade de regimes
imposta pelo art. 173 da CF.

Mas há estatais que, malgrado não terem concorrentes, também estão sujeitas à regulação
independente, a exemplo da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo
(SABESP), sociedade de economia mista responsável pelo fornecimento de água, coleta
e tratamento de esgotos,27 regulada pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia
do Estado de São Paulo (ARSESP). Ou seja, na prática trata-se de uma agência reguladora
estadual cujo setor regulado tem, nas áreas em que atua – até por via de regra ser um
monopólio natural –, como único agente a SABESP.5

Devemos ter em mente que uma das “vantagens da regulação é justamente assegurar o
insulamento político da empresa regulada, servindo de barreira contra a intervenção
governamental arbitrária. Essa preocupação tem sido invocada para justiçar a separação,
no âmbito do Estado, entre as funções do regulador e titular da propriedade acionária.
Isso porque a segunda possui um componente político capaz de distorcer o livre
funcionamento dos mercados e gerar incertezas que desestimulem o investimento
acionário privado na companhia sob controle estatal. Já a atuação do regulador é baseada
em critérios técnicos e está parametrizada por contratos firmados com agentes
econômicos, não havendo distinção de tratamento entre empresas públicas e privadas.
Consequentemente, fica preservada a isonomia concorrencial e a maior previsibilidade
das medidas regulatórias”.29 (MARIO ENGLER PINTO JUNIOR).

5
A instituição de agências reguladoras é, naturalmente, sempre uma opção política,
ainda mais em setores em que não há concorrência e a empresa estatal é o único agente
atuante. A ECT, por exemplo, dotada de exclusividade em sua atividade principal, não é
sujeita a regulação independente, mas, sim, aos mecanismos tradicionais de supervisão
ministerial. Casos como o da Sabesp – de estatal com exclusividade sujeita à regulação
independente – não são, assim, muito comuns, apesar de bem recomendáveis.
A regulação independente, quando houver, sobre as estatais em concorrência é uma
imposição da paridade com a regulação das empresas privadas do mesmo setor (art. 173,
CF).30 Já para as estatais que atuam com exclusividade ela é apenas uma opção de política
legislativa, porém de todo recomendável, na medida em que contribui para evitar gestões
temerárias da estatal por interesses político-eleitorais de curto prazo, passando as decisões
mais relevantes sobre a atividade da estatal para o regulador independente (por exemplo,
assegurando aumento de tarifa, ao invés de retê-lo para evitar decisões impopulares em
período eleitoral).

Com efeito, se no mercado a própria concorrência serve como um fator de incentivo a


uma atuação mais eficiente e com padrões de governança, o exercício de atividade
econômica lato sensu em regime de exclusividade tende ao contrário, podendo a presença
de um regulador independente servir como contrapeso a tal tendência.

Some-se a isso o fato de que o exercício do controle sobre a estatal pode também ser mais
bem exercido pela agência reguladora, via de regra mais vocacionada a ter subsídios
técnicos e operacionais para tanto, do que pelo ministério ou secretaria supervisora à qual
a estatal estiver vinculada.

Corroborando esse entendimento, Mário Engler Pinto Júnior defende que “a regulação
externa pode ser muito útil para moldar a conduta empresarial pública no sentido desejado
pela ordem jurídica, sobretudo na hipótese de prestação de serviço público em caráter
exclusivo. Quando se trata de atividade econômica concorrencial, o próprio ambiente de
mercado tem o condão de influenciar diretamente o funcionamento da companhia pública,
cabendo à legislação antitruste atuar negativamente para coibir eventuais práticas
abusivas. Em outras palavras, não existe incompatibilidade ontológica entre regulação
externa e propriedade estatal, embora com alguns temperamentos em matéria
concorrencial e, portanto, deve ser rigorosamente observada pelo Estado quando se vale
do poder de controle acionário para orientar os negócios da companhia controlada, em
prol do interesse público nela incorporado. A política de preços da empresa estatal em
situação de monopólio legal ou natural suscita preocupações adicionais, sendo arriscado
deixar o assunto à livre discricionariedade dos administradores, uma vez que possuem
incentivos para ocultar ineficiências operacionais e transferir o custo daí decorrente a
tarifas cobradas dos usuários”.31

A submissão à regulação independente não ilide, pela própria natureza das estatais, que
possuam algumas peculiaridades nessa sujeição, que merecem ser pormenorizadas:

(i) A pluralidade de controles administrativos e necessária harmonização entre eles:


Ao contrário das empresas privadas, que se sujeitam apenas às regulações das atividades
que exercem, as empresas estatais possuem, além dessa sujeição, outros canais de
comunicação e controle com o Estado.

Além de Estado-regulador da atividade empresarial exercida pela estatal, exerce também


o controle acionário da sociedade, na condição de Estado-controlador, bem como a tutela
administrativa através de seus ministérios ou secretarias, como consequência da
descentralização administrativa (Estado supervisor).
(ii) Entraves para a maximização da eficiência: Outra peculiaridade das empresas
estatais que os reguladores devem ter em mente é não terem tendência à eficiência
econômica33 com a intensidade que as empresas privadas possuem, já que os resultados
dessas beneficiam diretamente seus proprietários, que querem basicamente a mesma
coisa: a maximização do retorno dos seus investimentos.

A atuação dos seus dirigentes também tende a ser diferente da presente nas empresas
privadas. “O dirigente da empresa estatal, por sua vez, não corre os mesmos riscos e não
está sujeito ao mesmo nível de competição que os administradores de empresas privadas.
No ambiente privado, a competição (interna e externa à empresa) impulsiona melhorias
de performance, aperfeiçoamento e inovação individual e coletiva. Os dirigentes das
estatais, por outro lado, sabem: (i) que a empresa que gerem sequer se submete ao regime
de falência, (ii) que maiores lucros ou uma política de redução de custos, inovação de
processos ou de produtos, não serão necessariamente revertidos em remunerações mais
elevadas com a mesma proporção do que ocorre com empresas privadas; e (iii) que seu
reconhecimento advirá do atendimento a interesses diretos da Administração central,
naturalmente politizada e com tendências a uma menor preocupação direta com
resultados”.38-39

Além das ingerências políticas, normais ou patológicas, acima referidas, incide


inevitavelmente sobre as empresas estatais um conjunto de normas distintas das empresas
privadas, em função da existência da chamada responsabilidade fiduciária, 6um conceito
trazido pelos economistas que exprime um dever de cuidado delas com toda a sociedade,
o que em nosso ordenamento jurídico se traduz em estarem sujeitas aos tribunais de
contas, a realizar concursos, licitações públicas etc.

Essas sujeições políticas e jurídicas das empresas estatais vistas nos itens (i) e (ii) fazem
com que as agências reguladoras devam ter em relação a elas duas espécies de posturas
especiais:

1) Cientes dos riscos de direcionamentos políticos que podem comprometer a função


típica da estatal, função que também constitui o objeto principal do seu zelo regulatório,
a agência deve regular a empresa não apenas a disciplinando para atender às pautas
regulatórias (como faz em relação a qualquer empresa), mas igualmente no sentido de
também protegê-las daquelas influências deletérias externas.

Por exemplo, não deve permitir que atue estruturalmente em déficit por imposição do
acionista controlador, colocando em risco a sua capacidade de realizar os investimentos
de longo prazo exigidos pela regulação.

6
Da responsabilidade fiduciária “advém a obrigatoriedade de que se desenvolva um
sistema de controles e limites de gestão que, por inevitável, impõe uma velocidade
reduzida. Esses limites e controles, ainda que passíveis de modernização, são
imprescindíveis. Está-se tratando de entes da Administração Pública que lidam com
patrimônios pertencentes à coletividade. A externalidade negativa disso é que a gestão
dessas empresas torna-se lenta e mais cara”
2) A agência reguladora deverá ter em conta as naturais limitações e estorvos que a estatal,
como entidade integrante da Administração Indireta, possui para realizar as suas funções.
Não pode, exemplificativamente, exigir delas a realização de obras de universalização em
prazo dentro qual inexoravelmente não será possível realizar o prévio procedimento de
licitação a que está obrigada.

3) Não comunicação dos papéis de regulação independente com os demais controles


estatais: a agência reguladora deve estar sempre atenta a fim de que, não trate a empresa
estatal como uma empresa especialmente ligada a ela, seja para beneficiá-la ou para
prejudicá-la.

Não pode a agência reguladora se valer dessa circunstância para reduzir a assimetria
informacional. Não pode se valer de informações desse jaez para ter acesso a informações
estratégicas da empresa estatal que, apenas pela via regulatória, não teria acesso
4) As decisões regulatórias não podem impedir o exercício das competências legais das
estatais: A partir do momento em que o objeto social da empresa estatal é estabelecido
legalmente, inclusive para exercer funções de “relevante interesse coletivo” (art. 173 da
C F), também a agência reguladora está impedida de aplicar sanções que possam impedir
o funcionamento da empresa estatal.

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