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Do peixe frito ao pastel: o hibridismo entre o tradicional e o moderno no Bar do Ceará

Autoria: Tadeu Gomes Teixeira, Marcos Aloízio França da Fonseca, Rogério Zanon da Silveira,
Gelson Silva Junquilho, Simone Fernades da Costa Behr

Resumo
Este artigo tem por objetivo abordar as relações de continuidade e descontinuidade entre
cultura, tradição e gestão nas organizações, por meio de um estudo de caso. Definiu-se assim,
o problema de pesquisa: Como cultura, tradição e modernidade se associam e caracterizam
práticas de gestão no “Bar do Ceará”? Para a realização da pesquisa, utilizou-se o método de
estudo de caso. Como técnica de coletas de dados entrevistas não-estruturadas com
funcionários, clientes e o proprietário do bar, além de uma observação direta das atividades do
estabelecimento. A partir da discussão crítica da “corrente predominante” (AKTOUF, 1996)
dos estudos sobre cultura nas organizações, adota-se a perspectiva cultural hermenêutica
como proposta por Geertz (1989), incluindo, no entanto, as críticas que Thompson (2002) fez
a esse autor, o que possibilita estudar cultura a partir das relações que a mesma estabelece
com as “estruturas” sociais (JAIME JR., 2005). Concomitantemente, a análise da tradição e da
modernidade é realizada a partir das categorias weberianas de tradição e modernidade, além
das contribuições de Giddens (2001), o que possibilita compreender o hibridismo entre as
características tradicionais das sociedades com as peculiaridades da modernidade,
principalmente os aspectos formais e burocráticos das organizações. Evidencia-se, desse
modo, um hibridismo nas práticas de gestão. Além disso, os traços culturais que perpassam
essas práticas coadunam-se com a impessoalidade e informalidade, ressignificando os
aspectos burocráticos, definidos por Weber (1991).
Introdução
O artigo trata das continuidades e descontinuidades entre cultura, tradição e modernidade
no campo da gestão por meio de um estudo de caso em um estabelecimento comercial. Diante
disso, definiu-se a seguinte questão como objetivo para a pesquisa: Como cultura, tradição e
modernidade se associam e caracterizam as práticas de gestão no “Bar do Ceará”?
A problemática que originou o objetivo do artigo deriva das transformações ocorridas
na sociedade moderna ocidental, rumo à racionalização das mais variadas práticas sociais,
principalmente no campo da gestão. Observa-se aí, uma dinâmica social pautada pela
racionalidade legal-burocrática, rompendo-se com regras ligadas à tradição que orientavam a
ação dos sujeitos na sociedade pré-moderna (WEBER, 1991). No campo da gestão esse
processo de “modernização” se manifestou como uma procura das “melhores ferramentas e
técnicas” que incorporavam os princípios dessa racionalidade, enfatizando-se, principalmente,
a instrumentalidade dessas práticas (DAVEL & VERGARA, 2001, p. 39).
No entanto, o processo de racionalização e modernização da sociedade ocidental e das
organizações econômicas que tendiam à burocratização (WEBER, 1991), não rompeu com os
aspectos tradicionais das sociedades, mas associou-se aos mesmos gerando um hibridismo nas
práticas sociais entre o moderno e o tradicional, como descrito por Giddens (2001). Esse
processo, aliás, combina um rompimento e continuidade não só nas esferas sociais, mas
também no campo administrativo e político, como mostrado por Junquilho (2002). Este autor
mostra, ao analisar as práticas de gestão de funcionários da administração pública no Brasil,
como denominados traços culturais tradicionais da “cultura nacional” são ressignicados por
esses agentes, que agem de forma híbrida associando o tradicional e o moderno (burocrático).
Nesse contexto, os estudos sobre cultura e sua interface com o campo da gestão, que
freqüentemente manifestam concepções instrumentais em busca do estabelecimento de uma
“cultura” normativa e direcionada a construção de consensos, como analisa Cavedon(1999),
passaram a dividir espaço com interpretações das mais diferentes matizes. A diversidade de
enfoques nas pesquisas sobre cultura e os aspectos simbólicos presentes nas organizações
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possibilitaram um olhar diverso e plural sobre os seus elementos culturais (CARRIERI &
SARAIVA, 2007). A multiplicidade de abordagens, como mostrado por Carrieri e Saraiva
(2007), Leite-da-Silva (2003), Cavedon e Fachin (2000), acompanha o processo de mudanças
pelo qual passou a sociedade ocidental nas últimas décadas, bem como o entendimento sobre
as dinâmicas culturais vivenciadas nas organizações, nesse mesmo contexto histórico-social.
Diante disse, esse artigo, ao estudar de forma relacional a cultura e os aspectos
tradicionais e da modernidade no campo da gestão, por meio de um estudo de caso contribui
com esse debate ao mostrar as continuidades e descontinuidades desses aspectos da vida
social e organizacional em um estabelecimento comercial. Para a realização da pesquisa,
utilizou-se entrevistas em profundidade com funcionários, clientes e com o proprietário do
bar, além de uma observação direta das atividades do estabelecimento. A seguir, realiza-se
uma discussão sobre cultura, tradição e modernidade e suas implicações para o campo da
gestão. Na seqüência, evidenciam-se os aspectos metodológicos do trabalho. Em seguida,
mostra-se como a tradição e a modernidade se imbricam na gestão dos negócios no caso
estudado. Por fim, realiza-se uma análise dos traços culturais presentes no estabelecimento
comercial e suas interfaces com a tradição. Finalmente, são feitas algumas considerações
finais acerca da relação entre esses aspectos da vida social.

Cultura e Tradição: uma aproximação conceitual


O intento, nesta seção, é analisar as principais discussões referentes à temática cultura
e suas interfaces organizacionais. Assim, discute-se a “corrente predominante” que tem
prevalecido nessa área e, em seguida, realiza-se uma análise das principais lacunas dessa
corrente, indicando ao final a escolha por uma abordagem hermenêutica da cultura,
preocupada com os elementos simbólicos num contexto social estruturado.
De acordo com os trabalhos de Aktouf (1996) e Pépin (1998), foi a partir dos escritos
de Elliot Jaques em 1951 que a temática da cultura nos estudos relacionados às organizações
se tornou mais evidente, apesar dele ter uma concepção de cultura como um instrumento a ser
utilizado para a formação de consensos e homogeneização dos comportamentos dos
trabalhadores das organizações, servindo, então, como ferramenta utilizada para embasar o
controle social e a dominação. De acordo com Aktouf (1996), tais inconsistências conceituais
seriam reproduzidas ao longo dos estudos sobre cultura nas organizações, como ocorreu com
o enfoque do movimento da chamada “gestão comparativa”. Os estudos da “gestão
comparativa” se iniciam ainda na década de 1950 e se voltavam para problemas relacionados
ao processo de internacionalização industrial e os possíveis conflitos entre as culturas
nacionais.
O foco dos trabalhos desta corrente, segundo Smircich (1983), é a concepção de
cultura como uma variável independente, caracterizada pelas pesquisas no nível macro que
privilegiam o exame da relação entre as culturas nacionais e as estruturas das organizações. Já
pesquisas com ênfase no nível micro social enfatizam as similaridades e diferenças nas
atitudes dos gestores em diferentes contextos das culturas nacionais. Os trabalhos de Hofstede
(1997) e as pesquisas de Trompenaars (1994) são exemplos de pesquisas que se utilizam
dessa perspectiva. Ao seguirem a corrente da “gestão comparativa”, esses autores objetivam
encontrar os valores culturais que são mais adequados aos negócios internacionais. Embora
assumam a impossibilidade de definir a cultura de uma empresa específica localizada em um
país, esses autores tentavam mapear as principais tendências culturais dos países para, por
meio delas, comparativamente, definirem os traços culturais que poderiam ser encontrados
nas empresas desses respectivos países.
Num segundo momento, de acordo com Aktouf (1996), as propostas que
predominavam nos trabalhos abordavam a cultura como variável dependente. De acordo com
Pépin (1998), em razão do crescimento econômico japonês, houve um deslocamento dos

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estudos voltados para a tecnologia e para os mecanismos econômicos, que deu lugar a estudos
focados na cultura oriental e sua possível relação com os modelos de gestão. Alguns
pesquisadores como Ouchi (1986), Pascale e Athos (1986) identificaram no contexto cultural
do Japão elementos culturais que reforçavam e contribuíam para criar diferenciais
competitivos para a cultura nas empresas japonesas. Diante disso, acreditava-se na
possibilidade de importar para as organizações de outros países os modelos que reforçassem
as culturas organizacionais das empresas ocidentais. De modo que, com o mesmo diferencial
cultural (importado) na organização, estas poderiam se tornar mais competitivas.
Ao abordar a cultura como variável dependente, as organizações retiram o conceito de
cultura do campo acadêmico em que se originou, a antropologia, e passam a utilizá-lo no
campo dos negócios com base na premissa que aponta as organizações como capazes de
produzir a “sua” cultura, sendo essa a origem dos conceitos de “cultura organizacional”,
“cultura de empresa” e “cultura corporativa” (BARBOSA, 2002). Esse procedimento nas
organizações remete a cultura às instâncias microssociais, revelando, as inconsistências
conceituais dessa abordagem (AKTOUF, 1996). Apesar disso, elas encontraram espaço no
campo da gestão porque são instrumentais, o que atende, segundo Cavedon (1999), ao
utilitarismo das ciências administrativas, sendo, portanto, enfatizada uma “cultura” normativa
e direcionada à construção de consensos.
De acordo com Pépin (1998), nos discursos relacionados à “cultura corporativa” as
organizações podem passar de um posicionamento que as avaliem negativamente para
posicionamentos que as avaliem positivamente. Como exemplo, o autor analisa o trabalho de
Schein (1985), que se limita à abordagem das organizações como micro-instâncias sociais às
quais podem ser direcionados instrumentos empresariais para a melhoria da administração e
para a manipulação dos valores sociais, culturais compartilhados. Isto é, para a adaptação da
cultura aos interesses da organização, desconsiderando a existência de culturas hegemônicas e
subalternas, que predominavam neste campo até então. A “cultura organizacional” estaria,
para Schein (1985), posicionada em um universo simbólico que se limita à organização, sendo
construído pela reprodução das soluções consideradas mais eficazes e, em razão disso,
compartilhada por todos os integrantes da organização, desde o presidente ao último
contratado.
Os estudos sobre “cultura corporativa”, conforme nos mostram Pépin (1998) e Leite-
da-Silva (2003), baseiam-se, em sua maioria, em premissas questionáveis que supõem que os
valores e objetivos apresentados pelos dirigentes das organizações devem ser os condutores
das ações de todos os demais integrantes. Considera-se aí que estes integrantes
compartilhariam valores e crenças dos dirigentes, pois os superiores disseminariam a
“cultura” da empresa bem como as contribuições da organização para o seu desempenho.
Para Aktouf (1996, p. 43), apesar da variedade de enfoques e da diversidade de
abordagens que existem mesmo na “corrente predominante”, é possível estabelecer uma
ordem a partir de elementos comuns entre as várias abordagens. Esses elementos comuns
seriam “um conjunto de evidências” e “postulados” compartilhados pelos integrantes da
organização e que supostamente serviriam de base para proporcionar um sentido às ações dos
membros das instituições. Assim, a organização proporcionaria um “sistema de crenças” e
“representações” que fariam com que os agentes que a integram, compartilhassem de modelos
de comportamento, de signos e símbolos que orientam suas ações e visões do mundo dos
negócios. Portanto, a cultura pode ser instrumentalizada pelos dirigentes para a “criação” de
uma homogeneidade adequada aos objetivos coletivos.
Contrapondo-se a essa possibilidade da “corrente predominante”, Aktouf (1996)
apresenta uma alternativa conceitual. Para o autor, não se pode partir do pressuposto de que a
cultura emana de algo além das experiências vivenciadas, compartilhadas no dia-a-dia dos

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membros da organização, pois o intuito de “gerenciar” a cultura, como visto acima, remeteria
à manipulação e alienação, perspectiva que difere da concepção simbólica de cultura.
Para Aktouf (1996), a cultura precisa ser compreendida como parte de um emaranhado
de relações sociais, que se inscreve nas estruturas sociais e que é atravessada pela história,
pela economia, pelo que é socialmente compartilhado e partilhado nas interações com os
sujeitos em coletividade. Assim, o mesmo autor postula, o retorno aos conceitos
antropológicos clássicos como fundamental para o entendimento da cultura, o que implica em
tomar esse conceito antropológico imbricado com outras facetas como a econômica, a
histórica e a social.Isto significa que a cultura implica numa dependência mútua entre a
história, a estrutura social, as condições de vida e as experiências subjetivas das pessoas.
Logo, não se permite, nessa perspectiva, dissociar a estrutura social, ou seja, os
posicionamentos e regulamentos que disciplinam a sociedade, da história vivenciada e
compartilhada pelos atores sociais e pelas perspectivas futuras e experiências cotidianas dos
sujeitos sociais.
Aktouf (1996) afirma que não se deve separar as dimensões da vida social para
análise, isto é, a vida material da vida imaterial, já que as condições de produção de dada
sociedade ou comunidade estabelece uma dialética entre os níveis da produção de bens
materiais, o sistema de produção de bens sociais – leis, regras, regulamentos, costumes, etc. –
e o sistema de produção de bens imateriais – magia, religião, crenças, etc., o que evidencia a
interdependência entre essas esferas.
Portanto, o autor aborda a cultura como parte de uma construção coletiva de
“representações mentais” que estabelecem uma ponte entre o imaterial e o material. Para ele,
a articulação entre a vida “concreta” e a vida “representativa” é certa, pois há uma relação
direta entre as condições sociais e as representações presentes na sociedade.
Nas concepções antropológicas de cultura, o conceito que encontrou inserção e
redefiniu os estudos sobre cultura foi o da corrente interpretativa ou hermenêutica
desenvolvida pelo antropólogo Clifford Geertz. Segundo Jaime Jr (2005), Geertz objetivava
redefinir o conceito de cultura. Para Geertz (1989), o conceito de cultura como o definido por
Tylor, referindo-se a um todo complexo que incluía praticamente todas as capacidades e
habilidades criadas pelo homem, mais confundia que esclarecia as questões relacionadas à
cultura (JAIME JR., 2005).
Diante disso, Geertz (1989) propõe um novo conceito de cultura com base na
semiologia. De acordo com antropólogo, a cultura precisa ser entendida como uma teia de
significados na qual os homens estão emaranhados. O entendimento desse autor acerca de
cultura, derivado das reflexões de Weber sobre a necessidade dos homens viverem em um
mundo dotado de sentidos e significados, relaciona-se as teias de significados tecidas pelos
homens em suas atividades cotidianas ao produzirem sentido para suas ações.
Assim, ao estudar a cultura nas mais diversas esferas dos grupos sociais, deve-se
buscar os significados e os sentidos das ações sociais dos sujeitos. Com isso, compreender o
significado simbólico das ações dos sujeitos dentro do contexto organizacional implica numa
interpretação dos sentidos e significados ali compartilhados. Para a realização dessa
interpretação, segundo Geertz (1989), é preciso realizar uma descrição densa dos textos
sociais, isto é, uma descrição minuciosa dos eventos sociais particulares que são capazes de
representar grandes questões nos contextos sociais em que estão integrados. Geertz (1998)
aponta que muitas vezes a sociedade e sua cultura apresentam-se em seu senso comum, ou
seja, ao invés de se basearem na revelação e na ideologia, como é o caso da religião e da
paixão moral, os argumentos do senso comum se baseiam na vida como um todo. Dessa
forma, o antropólogo propõe elucidar a sociedade através da participação nas relações sociais
que se forjam em seu cotidiano.

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Apesar disso, o trabalho de Geertz encontra interlocutores que muitas vezes lhe são
críticos. Para o sociólogo britânico Thompson (2002), Geertz, em grande parte de suas
análises assume uma posição de homogeneidade dentro dos grupos, ao buscar um único
significado, desconsiderando as múltiplas interpretações que os mais diversos integrantes,
como as mulheres, crianças, homens de classes sociais diferentes, podem atribuir aos
elementos e eventos sociais interpretados.
Apesar de essas críticas precisarem de uma ressalva, de acordo com Jaime Jr. (2005),
já que Geertz em alguns trabalhos aponta para essa questão política, o fato é que essa
dimensão de poder e conflito, não faz parte, de forma central, de sua perspectiva. Nesse
sentido, Thompson (2002) contribui com o debate acerca da cultura ao formular um conceito
que, tributário da formulação de Geertz, orienta-se para uma “concepção estrutural” de
cultura, isto é, o estudo das formas simbólicas de uma sociedade em relação com os processos
históricos específicos e socialmente estruturados.
Com isso, os elementos simbólicos de um grupo social devem ser analisados, segundo
o autor, em contextos sociais estruturados, além de a necessária análise social ser entendida
como o estudo da “constituição significativa e da contextualização social das formas
simbólicas” (THOMPSON, 2002, p.181). Dessa maneira, Thompson concorda com o
pensamento de Geertz ao focar os elementos simbólicos das sociedades, mas inclui em sua
análise sobre os fenômenos culturais as estruturas de poder e de conflito, que podem apontar
para múltiplos significados dentro de uma mesma sociedade (JAIME JR., 2005).
A essa abordagem hermenêutica da cultura, derivada das análises weberianas sobre a
ação dos sujeitos sociais, é preciso acrescentar, para os propósitos deste trabalho, a análise
que se origina também em Weber sobre tradição e modernidade. Ao analisar o que impulsiona
a ação dos indivíduos na sociedade, Weber (1991) identificou que as ações sociais são dotadas
de um significado e um sentido que as orienta em relação aos outros. Ao examinar os usos,
costumes e situações de ação dos sujeitos, Weber classificou as ações dos indivíduos de
acordo com a racionalidade que orienta a ação, ou seja, a motivação que impulsiona as suas
ações. Nesse sentido, ele identificou a ação racional com relação a fins e a valores, bem como
a ação tradicional e a ação afetiva.
Mesmo não sendo nosso objetivo analisar exaustivamente esses conceitos, cabe-nos
indicar que a ação racional com relação a fins é motivada conforme o objetivo previamente
definido pelo indivíduo, que orienta sua ação, portanto, conforme a finalidade que almeja. A
ação racional com relação a valores ocorre quando a conduta do indivíduo é motivada pelas
convicções do sujeito e fidelidade a princípios e valores morais que compartilha com outros
sujeitos sociais.
Quando Weber fala que certas ações são afetivas, ele se refere às motivações oriundas
das “emoções” dos indivíduos, que não são racionais, mas são embasadas nos sentimentos,
como a raiva, a paixão, etc. Por fim, Weber ainda classifica um último tipo de ação,
denominado por ele de tradicional. Esta se manifesta nas situações em que os indivíduos agem
motivados pelos hábitos, costumes, tradições, muitas vezes de forma até mesmo inconsciente.
Identificar a motivação das ações dos sujeitos sociais é importante, pois serão elas que
proporcionarão a base para as relações de poder em uma sociedade, como afirma Weber
(1991). A regularidade social, necessária para a existência de uma sociedade, será garantida
pelas relações de poder estabelecidas na sociedade, isto é, pelas motivações que legitimam as
ações dos sujeitos sociais nas relações sociais.
De acordo com o mesmo autor, as relações de poder em uma sociedade podem ser
identificadas pelo tipo de dominação legitimada socialmente, ou seja, pela dominação
racional, tradicional e afetiva. A dominação afetiva caracteriza-se por legitimar-se com base
no afeto e inclinação pessoal de quem é subordinado. Essa dominação funda-se, portanto, no
carisma do líder, que tem em sua capacidade pessoal, que pode ser a crença em sua

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habilidade, heroísmo, liderança ou revelação como a fonte de legitimidade para os seus
seguidores.
Já a dominação tradicional baseia-se, segundo Weber (1991), nos costumes e tradições
sociais que a ordem social estabelecida em mitos e tradições possui. Nesse sentido, a
autoridade do individuo advém de um conjunto de crenças inerentes e legitimadas pela
tradição do grupo social ao qual pertence. O caso exemplar desse tipo de dominação é o
patriarcado fundado na autoridade inquestionável do pai, que possuiria as características de
um líder cujas tradições sociais legitimam o exercício de seu poder, ou seja, definem a base de
sua autoridade. Sendo assim, a crença é que a sua autoridade e ações são inquestionáveis, já
que encontram-se legitimadas pelas regras instituídas socialmente pelos usos e costumes que
se reproduzem ao longo dos tempos.
De acordo com esse autor, esses tipos de dominação e legitimidade não se coadunam
com a modernidade e com as novas configurações sociais que se apresentaram com a
revolução industrial e com o surgimento do Estado moderno, além das novas regras e
dimensões políticas que os empreendimentos empresariais passaram a demandar. Com isso, o
tipo de autoridade que passou a ser predominantemente legitimado socialmente foi o racional
legal. Ou seja, aquele que se coaduna com as necessidades de uma sociedade mais impessoal,
burocrática, baseada nas prerrogativas legais, governada por um corpo de funcionários
burocratas, agindo conforme as necessidades relacionadas à eficiência e eficácia das
organizações (WEBER, 1991). Dessa maneira, as organizações contemporâneas, que são
majoritariamente gerenciadas com base nos princípios da eficácia, aumento da produtividade
e na razão instrumental, orientam as suas ações no sentido da modernização, numa tentativa
de desvencilhar-se dos traços tradicionais e assumir as características organizacionais
propaladas pela modernidade.
Além disso, cabe destacar a análise de Giddens (2001) sobre essa relação entre o
tradicional e o moderno. Para esse autor, a modernidade não se opõe às características das
sociedades tradicionais, já que existe uma recomposição de especificidades das sociedades
tradicionais, e uma reconstituição das tradições na modernidade. Com isso, o hibridismo de
práticas culturais inerentes à sociedade brasileira, apresentadas por Da Matta (2000) como a
pessoalidade e impessoalidade, espaços públicos e privados – a casa e a rua –; o mandonismo,
a hierarquia social e o “jeitinho” (BARBOSA, 1992), são atualizadas em um contexto de
modernidade em que as características de uma sociedade industrial burocrática são
evidenciadas como a formalidade, a impessoalidade, a objetividade nos negócios e
empreendimentos, etc.
De acordo com Giddens (2001), a tradição está ligada à uma memória coletiva, está
envolvida em rituais e possui guardiães. Para esse autor, a memória coletiva de uma sociedade
é a reconstrução e atualização constante que há dos eventos passados. Não se trata de uma
preservação do passado, mas de uma releitura coletiva do mesmo, que orienta as ações dos
sujeitos no presente. Os rituais cumprem o papel de preservar as tradições, pois possui um
distanciamento das atividades cotidianas que conferem às crenças, práticas e objetos uma
autonomia que as tarefas cotidianas não possuem.
O ritual necessita, para seu correto entendimento, da interpretação de alguém que
tenha legitimidade social, pois os aspectos mais “sacros” dos rituais não são acessíveis, mas
dependem da interpretação de pessoas que estão ligadas ao passado – pelo tempo – e possuem
disponibilidade e sensibilidade para identificar os detalhes da tradição e transmiti-los aos mais
novos. Segundo Giddens (2001), o guardião possui papel bastante semelhante ao do
“especialista” na sociedade moderna.
São essas características e relações entre a cultura, os aspectos simbólicos e a relação
entre a tradição e a tendência “modernizadora”, principalmente a relação entre o tradicional e
o moderno, entre a continuidade e a descontinuidade no campo da gestão que nos guiará na

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análise do caso aqui estudado. Antes disso, no entanto, apresentamos os procedimentos
metodológicos realizados na pesquisa.

Aspectos metodológicos
Para a realização da pesquisa, examinou-se a história do estabelecimento comercial
denominado Ceará Bar, conhecido como Bar do Ceará, localizado na capital do Espírito
Santo, Vitória. Esse exame se deu a partir de visitas ao estabelecimento no período de Abril a
Julho de 2008, complementadas com visitas feitas nos meses de Novembro de 2008 e Março
de 2009. As visitas se deram em dias alternados de médio e alto movimento, principalmente
às quartas e sextas-feiras. Nessas visitas, a equipe de pesquisadores observou e anotou
aspectos relacionados à estrutura, ao funcionamento e fatos cotidianos que configuram traços
culturais do estabelecimento. Com o intuito de se evitar um contágio muito precoce, antes de
se iniciar as visitas, a equipe procurou não ler materiais sobre o empreendimento objeto de
pesquisa, tão pouco entrar em contato direto com seus funcionários, administradores e
clientes. Isso se deu no período aproximado de dois meses. .A história do estabelecimento foi
examinada a partir da consulta em bibliografia disponível sobre o bar e a história oral de
sujeitos envolvidos historicamente com o estabelecimento.
As anotações foram feitas no momento em que os pesquisadores estavam presentes no
Bar, sendo posteriormente analisadas. O foco da observação eram os eventos e atividades de
trabalho que ocorriam no bar.. Apesar do envolvimento dos pesquisadores com o ambiente da
pesquisa, por meio de uma observação direta que tem sido utilizada, mais freqüentemente,
em estudos antropológicos de grupos sociais diversos, mas que também se aplica a
organizações e grupos menores (CAVEDON, 1999). Entretanto, a pesquisa não pode se
enquadrar como um estudo etnográfico pleno, por ter acontecido em seis meses, espaço de
tempo considerado pequeno pelos pesquisadores para tal empreitada. Apesar disso, foi
possível, por meio da observação, apreender elementos fundamentais, sobretudo por vivência
com clientes, funcionários e proprietário do estabelecimento
A pesquisa é de natureza qualitativa e como método foi utilizado o estudo de caso,
destacando-se a possibilidade de observação dos eventos no mundo real na medida em que
acontecem, a sua cobertura contextual e a boa visão das motivações e comportamentos
interpessoais. Como desvantagens desta abordagem, destacam-se a necessidade de tempo
suficiente para imersão do pesquisar no campo, a cobertura limitada, desvios passíveis de
serem provocados pelo pesquisador e a reflexividade relacionada à forma diferente em que o
evento pode ocorrer em vista de estar sendo observado (YIN, 1994). Numa etapa posterior,
realizou-se entrevista com o proprietário do estabelecimento e com cinco funcionários, além
de seis clientes “antigos” do bar. As entrevistas em profundidade foram anotadas ou gravadas
e transcritas posteriormente. Suas análises foram norteadas pela análise de discurso, conforme
propõem Carrieri; Leite-da-Silva; Souza; Pimentel, (2006).

Tradição e Modernidade: a formação histórica de traços culturais do Bar do Ceará


O estabelecimento comercial estudado neste artigo, conhecido como Bar do Ceará, foi
fundado em 1960 por um casal de migrantes nordestinos que se estabeleceram no estado do
Espírito Santo. O nome fantasia do bar foi atribuído em decorrência da alcunha atribuída
pelos freqüentadores aos proprietários, Oswaldina e “seu” Ceará, apelido também de Lourival
Filho, filho do casal e atual proprietário do bar.
A linha de produtos escolhida pelo casal para trabalhar no bar era reduzida,
consistindo de peixe frito, cerveja e batidas de frutas com álcool, além de aperitivos. O
tamanho reduzido de suas dependências, cerca de dez metros quadrados ou “uma porta,”
inviabilizava a criação de um cardápio variado para orientar o pedido dos clientes. No espaço

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expremiam-se duas mesas com poucas cadeiras, o balcão de atendimento e a cozinha. Esta,
constituída por um fogão de duas bocas e uma frigideira.
A idéia do casal era trabalhar com uma linha limitada de produtos e prepará-los na
frente dos clientes, embora de maneira despreocupada quanto ao tempo de preparo, pois estes
poderiam, enquanto os alimentos estivessem em preparo, confraternizar-se com os amigos.
Esse fato influenciou até mesmo o local onde o estabelecimento se localizaria, isto é, próximo
a um estádio de futebol e as tradicionais casas de bailes da época, evento que o atual
proprietário indica como fundamental na caracterização do empreendimento. Desarte?, a
dimensão cultural, conforma aponta Aktouf (1996), emergia da relação dialética entre a
estrutura que o bar possuía, bem como os produtos e as condições de produção, com a forma
de atendimento, a quantidade e as relações sociais que ali se realizavam.
Naquela época, o bar, localizado numa região bastante freqüentada de um bairro
denominado Jucutuquara, tornou-se parte da paisagem do bairro. Não só era reduto dos
torcedores após os jogos no estádio de futebol do Rio Branco Atlético Clube, bem como
promovia o convívio entre as famílias dos freqüentadores por meio de confraternizações em
datas especiais. Passou, então, a fazer parte da tradição daquela comunidade, ao ser
legitimado pelo grupo social ao qual pertence.
O pequeno bar permitia que Ceará tivesse acesso, praticamente instantâneo, a todos os
clientes, mesmo quando, ainda na sua gestão, o bar passou a ter “três portas” (cerca de trinta
metros quadrados) e atender mais de trinta pessoas. Tal acesso promovia pessoalidade no
atendimento e, na maioria das vezes, criação de laços. Esta relação afastava-se das relações
forjadas na modernidade, burocráticas, baseadas nas leis e na racionalidade. Por outro lado,
legitimava os hábitos e costumes informais, característicos do Ceará e presentes na ação
racional dos indivíduos em relação à tradição, conforme postulou Weber (1991).
O Ceará pai – tanto para os clientes antigos quanto para funcionários que conviveram
com o fundador – é saudosamente lembrado. Entretanto, sua caricatura é definida pelos
entrevistados como se assemelhando a uma pessoa rude e ao mesmo tempo comunicativa, que
reclamava de tudo, podendo até não vender cigarro pelo fato de seu consumo ser prejudicial à
saúde, além de, por vezes, exigir que os clientes fossem embora uma vez que passara a hora
de fechar o estabelecimento. Por conta de suas características pessoais, e não apesar delas, era
respeitado pelos freqüentadores antigos do bar, com os quais manteve relações de amizade.
Nesta época, apesar de ser freqüentado majoritariamente por homens, o ambiente do
bar permitia uma proximidade com a família. Na medida em que o pai levava os filhos ou
quando havia comemorações estendidas à família, como aniversários, eventos esportivos
como copa do mundo de futebol, carnaval e feriados prolongados. Estes clientes se
consideravam, e consideram até a presente data, como parte da família do Ceará pai, uma
espécie de sócios do bar, por terem participado do período da fundação e por momentos
marcantes da história do bar. Portanto, são portadores e responsáveis pela memória do Bar do
Ceará..
Essas características mantiveram-se, em linhas gerais, até 1997, quando o filho do
casal, Lourival Filho (também conhecido como Ceará), após a morte do pai, assumiu o bar.
Na condição de dirigente, o herdeiro afirma que percebeu a necessidade de aliar as
características tradicionais do negócio às necessidades de atendimento aos novos clientes.
Havia uma preocupação em não contrariar os fregueses antigos e amigos de seu pai, embora a
busca por maior agilidade em atender aos clientes esbarrava, por exemplo, na impossibilidade
de ampliação da pequena cozinha. A solução escolhida foi servir uma pequena porção de
pastéis fritos enquanto o peixe, principal petisco do bar, não estivesse pronto. Essa solução
acabou se tornando o carro-chefe do bar, que hoje serve mais de dez tipos de recheios nos
pastéis, dentre os quais, camarão, siri, carne seca com catupiry e bacalhau.

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O desafio de Lourival Filho em não contrariar os antigos amigos do pai e a tradição do
bar veio logo com a simples necessidade de se trocar a frigideira por uma maior. Trocar o tipo
de frigideira que o pai fritava o peixe há anos era quase um sacrilégio, e parecia óbvio para os
antigos clientes que o sabor do peixe iria se alterar. Esse simples fato indica o desafio de
conciliar a história do bar, os amigos do pai e a pescadinha frita, com a necessidade de se
trocar uma frigideira por uma mais adequada ao atendimento de uma demanda cada vez
maior.
A frigideira, neste caso, é o símbolo do rompimento de uma tradição arraigada na
memória coletiva (GIDDENS, 2001), dos freqüentadores do bar, inaugurando uma nova
etapa, isto é, a passagem do “bar dos amigos do pai” para um bar mais comercial e voltado às
necessidades mais impessoais do empreendimento, como exigido nas empresas “modernas” e
burocráticas (WEBER, 1991).
Trocar a frigideira significava uma passagem, um rompimento com os símbolos social
e tradicionalmente legitimados até aquele momento. Entretanto, para Lourival a reorientação
dos objetivos da empresa se realizaria por meio da manutenção dos elementos que
compunham a identidade do estabelecimento, ou seja, a nova estrutura, a produção e o
atendimento propostos deveriam permitir a atualização dos símbolos mantenedores dos traços
tradicionais do bar. Com isso, há uma continuidade entre os traços tradicionais no
estabelecimento mesmo que o mesmo estivesse sob mudanças “modernizadoras”, conforme
analisado por Giddens (2001) sobre a continuidade das tradições na modernidade.
Selma, uma das freqüentadoras mais antigas do bar, conta que a solução encontrada
por Lourival Filho para realizar seus objetivos foi se infiltrar entre os amigos de seu pai,
conquistar-lhes o respeito e a simpatia e lhes explicar aquilo que considerava como as novas
necessidades do bar, tarefa que levou não menos que dois anos e meio. Lourival conta que
tudo o que era necessário mudar no bar precisava passar por uma espécie de autorização dos
freqüentadores mais antigos. Estes eram tão fiéis às tradições que às vezes lhe falavam com
aspereza, como ele mesmo narra: - Isso é do seu falecido pai, é herança do seu pai e nós
gostamos assim.
A autoridade do Ceará continuara mesmo quando a organização passou a possuir um
novo gestor, ou seja, os costumes, tradições e as regras instituídas na gestão anterior,
legitimados pelos antigos freqüentadores do bar (amigos do pai), permitiam que estes
questionassem as mudanças que Lourival Filho propunha. Portanto, para os fiéis
freqüentadores a autoridade do Ceará é inquestionável. Essa postura vai ao encontro da
formulação da autoridade tradicional formulada por Weber (1991).Além de dar atenção à
importância da gestão anterior, Lourival Filho procurou nos amigos do pai, conhecimentos de
como Ceará conduzia a administração do negócios. Assim, os amigos tornaram-se referência
como portadores dos valores sociais e dos códigos culturais compartilhados, possuindo a
memória coletiva do grupo (GIDDENS, 2001).
O principal elo entre Lourival Filho e os amigos do pai foi Osmar, que trabalhava no
bar como garçom há quatorze anos. Osmar conta que, no início, havia uma desconfiança dos
clientes tradicionais com a nova administração de Lourival Filho. Osmar foi apresentando
Lourival Filho à clientela mais antiga e tentando quebrar a desconfiança deles em relação a
Lourival Filho por intermédio de conselhos, pedindo aos clientes que acreditassem no
“menino”, pois o “menino era bom, educado” e que todos iriam gostar dele. Osmar, nesse
contexto, era o guardião dos valores tradicionais do grupo ao qual o pai de Lourival, fundador
do bar, integrava, fato que lhe conferia o poder de legitimar, junto aos antigos freqüentadores
do bar, a nova administração. Como guardião Osmar possuía legitimidade para interpretar as
mudanças, bem como legitimá-las junto ao grupo de freqüentadores mais antigos.
A inserção do pastel no cardápio permitiu, além da criação de cardápio à disposição
dos clientes, o aumento do número e da rotatividade nos atendimentos. A participação do

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Osmar na gestão do bar ressignificava os costumes e hábitos presentes no antigo bar, ao passo
que dotava de sentido as alterações em atendimento ao crescimento do negócio. Numa dessas
modificações a sede passou a se localizar a alguns metros donde o bar foi fundado.
Numa espécie de um grande galpão, com um balcão central que o divide ao meio,
atualmente, o bar, com cem mesas, possui capacidade de atender até 400 fregueses
simultaneamente. Apesar de grande, o possui características que remetem ao antigo bar. No
balcão central, em formato de “U”, Lourival Filho consegue visualizar ambos os lados. Selma
conta que a posição de Lourival no balcão, em pé, com os braços esticados para frentes e as
mãos apoiadas sobre o balcão, é idêntica à imagem do pai. Do mesmo modo que seu pai fazia,
o atendimento é baseado na informalidade e, apesar da hierarquia – elemento da formalização
e prescrição, característicos das organizações burocráticas – a ser respeitada, o Ceará filho faz
questão de participar de todos os processos. Além disso, a maioria dos ornamentos, que estão
aleatoriamente dispostos no bar, é da época da do antigo bar.
A atenção às relações pessoais esteve presente na história do bar e se estende também
aos funcionários. Com o crescimento do bar, principalmente sob gestão de Lourival Filho a
partir de 1997, a quantidade de mesas e o número de cozinheiros e garçons também
aumentaram.
Sobre o atendimento aos fregueses, observa-se que os garçons se comportam de uma
forma bastante natural e simples. Conversam entre eles e atendem aos clientes como se
estivessem em casa. Abordam as pessoas nas mesas apenas quando são chamados ou
desconfiam que estejam querendo algo. Deixam todos muito à vontade, e a naturalidade do
tratamento parece agradar bastante. Os pedidos não demoram muito, pois estão praticamente
prontos para serem fritos, e as bebidas também estão sempre “à mão”, nas geladeiras por
perto.
Quem vai ao bar, geralmente nota grupos com dez, doze e quatorze pessoas. A bebida
mais servida é a cerveja, e a comida predominante, diferentemente de outrora, é o pastel. Este
possui recheios variados: camarão, siri, bacalhau, queijo, carne, palmito, carne-seca, frango,
banana com canela e feijão. Geralmente servido numa cesta de plástico de cor verde ou
laranja e com bom aspecto, acompanhados com molhos de pimenta e de limão.
Nesse ambiente social no qual a cultura se ancora na tradição, amizades e relações
familiares, o universo simbólico das relações sociais é marcado pela pessoalidade e
informalidade. É comum ver muitas mesas juntas onde se festejam aniversários e outros
eventos, ou mesas com rodas de amigos de trabalho e com familiares, incluindo também
crianças. Há inclusive clientes que vão ao bar por “receita médica”, como o caso contado por
Lourival Filho numa situação em que um novo freqüentador lhe abordou e disse: “- Meu
médico me mandou aqui. Pedi um antidepressivo e ele me falou para esquecer o
antidepressivo. Vai lá no Ceará, toma uma batidinha e conversa com ele” (ARRUDA &
SANCIO, 2008, p. 65). Nesse aspecto, pode-ser observar como o proprietário representa as
relações sociais que imagina serem estabelecidas no recinto do seu estabelecimento e a
dimensão simbólica que atribui às mesmas, isto é, as “propriedades terapêuticas” presentes no
universo simbólico do bar, onde as relações sociais seriam simétricas e equânimes.
A forma como se estabelece o relacionamento com os funcionários – quase sempre
informal – e a confiança depositada nos mesmos é parte importante do funcionamento do
estabelecimento, pois os empregados são considerados fundamentais na atuação da empresa,
além de não haver uma diferenciação entre eles, devido a função exercida. Esses elementos
remetem às relações de confiança, estabelecidas em um empreendimento ainda não
burocratizado e que não assume as regras impessoais preconizadas pelas empresas que
organizam seus negócios com base nos princípios da modernidade, conforme Weber nos
ensina (1991).

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As contratações são feitas com base principalmente na indicação dos próprios
funcionários, de um amigo ou parente que está disposto a trabalhar no Bar: filha de uma
funcionária antiga e de confiança, sobrinho de outro funcionário, vizinho de alguém que ficou
sem emprego recentemente. Lourival Filho afirma que esse processo de contratação está
sendo profissionalizado, embora tenha preocupações em manter o ambiente de trabalho
familiar entre os funcionários. No processo de contratação, como cada funcionário que é
admitido já conhecia alguém no bar, a integração e adaptação eram facilitadas, e essa
harmonia entre os funcionários influencia, segundo Lourival, na harmonia presente no
ambiente de trabalho.
Este processo de contratação remete, portanto, às relações de pessoalidade
principalmente a tendência de tornar o “mundo da rua”, neste caso o bar, espaço formal do
trabalho, imbricado ao universo “da casa”, da família, um mundo com laços de simpatia,
lealdades, hospitalidade e bondades, um espaço em que as relações sociais estabelecidas são
mantidas pela fidelidade não as regras, mas à tradição, ao líder, ao patriarca (DA MATTA,
2000). Com isso, o proprietário tenta recriar no empreendimento, um universo simbólico não-
distanciado formalmente dos funcionários e freqüentadores do bar, característica essa que
mescla-se ao processo de “modernização” que ele tenta impor ao empreendimento.
Essas características são perceptíveis no espaço do bar ao observar as relações dos
funcionários, principalmente os garçons, com os clientes, que se caracteriza por uma tentativa
de ser cortês e informal, propiciando um ambiente “familiar” aos clientes. Lourival Filho
entende que a harmonia entre os funcionários interfere num “bom atendimento”. Para o
proprietário, o Ceará possuía em suas características elementos que tornavam agradável o seu
ambiente. Entretanto afirma que, como o bar cresceu e os novos clientes são moradores de
outras regiões da Grande Vitória, as mesmas não dão conta das novas demandas. Faz-se
necessária uma sinergia nos processos da organização, pois como ele afirma: “Para o bem-
estar geral do bar, do limpador de chão ao gerente ou ao dono, tem que ter harmonia, é
harmonia. Olha, é muito complicada a parte humana, e é muito importante” (ARRUDA &
SANCIO, 2008, p. 72).
Diante dessas características herdadas do antigo bar, mais afinadas com o
tradicionalismo na forma de gerenciar, com o proprietário ocupando o lugar do patriarca do
grupo, Lourival Filho afirma encontrar algumas dificuldades para lidar com os funcionários:
“Eu tento chegar e dizer, ‘não faça isso’, de uma forma carinhosa, eu diria. Mas, às vezes a
gente não obtém o resultado desejado. Diante de uma situação, Lourival conta que pede que
esqueçam que ele é parente ou amigo, ou que trabalham no bar há muito tempo, e diz que
precisam corrigir o que não está funcionando. Pensando nesses problemas, no ano de 2008,
Lourival Filho contratou uma consultoria administrativa para implantar mudanças nas áreas
de administração, nutrição e comunicação gráfica. A exigência feita, porém, é a de que tudo
seja feito de forma progressiva e com bastante tempo, o suficiente para que o bar atinja um
grau de profissionalismo sem perder suas características originais e o que considera como
sendo suas qualidades, como o sabor da comida, o tempo de preparo, a harmonia entre os
funcionários e proprietários e a forma de atender aos fregueses.
Essas características ultrapassam a relação com fregueses e com funcionários e atinge
também os fornecedores. Segundo Lourival Filho a negociação com os fornecedores se dá
preponderantemente na base da confiança mútua, com respeito à cadeia de fornecimento e
compra de produtos, em vez da busca por produtos com menores preços no mercado. Ele
afirma que os considera uma extensão de seu negócio, sendo poucos e alguns muito antigos,
ainda da época de seu pai.
Com isso, os traços de uma gestão direcionada pela instrumentalidade e pelo “melhor
caminho” administrativo, como são as técnicas de gestão das empresas no capitalismo, em
parte, estão ausentes desse empreendimento, pois a sua “estratégia de mercado” é direcionada

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para valores que motivam as ações que são tradicionais, no sentido weberiano do conceito, e
não consoantes a lógica da eficiência que a instrumentalidade racional preconiza.
Mesmo sendo o proprietário e com muitos funcionários, Lourival Filho não deixa de
acompanhar todos os processos existentes no bar, inclusive ajudando algumas vezes no
atendimento aos clientes, servindo-lhes as bebidas e comidas nas mesas, fechando as contas
ou mesmo limpando as mesas. A busca pela identificação de problemas se dá de forma direta
com os clientes, procurando detalhes que possam estar interferindo no padrão e na qualidade
do atendimento e dos produtos oferecidos.
Os planos para enfrentamento de maior crescimento estão na pauta da consultoria
contratada pelo do bar. Prova disso foi que em 2008 a filha de Lourival Filho ingressou na
graduação em Administração de Empresas com a clara intenção de dar continuidade aos
negócios do pai. Tais tentativas de modernização do empreendimento visam romper com
certas características do mesmo, ao mesmo tempo em que buscam dar continuidade aos traços
tradicionais que o singularizam. Mesmo assim, as características do bar passam a se alinhar
menos com o tradicional, na medida em que a gestão se torna mais formalizada, impessoal,
burocrática. Portanto, a memória coletiva do Bar do Ceará está sendo (re)construída e
atualizada. Diante das realizações passadas, as ações dos sujeitos que participam das relações
sociais forjadas no bar são orientadas para (e com o desejo do) futuro (GIDDENS, 2001).
Essas características remetem, assim, a formação de um hibridismo entre o tradicional
e o burocrático, em um elo entre traços culturais tradicionais mantidos e uma gestão mais
afinada com os objetivos propalados pelo mercado e pelas empresas capitalistas, dimensão
essa que não é exclusiva desse empreendimento, pois se manifesta até mesmo na
administração pública (JUNQUILHO, 2002).

Traços Culturais Tradicionais do Bar do Ceará


Atualmente, quem vai ao Bar do Ceará nota um ambiente “diferente” e por vezes não
consegue explicar esta diferença. De fato, o bar, depende de quem – conforme postula Jaime
Jr. (2005), na medida em que um texto pode ter várias interpretações – faz sua “leitura”. No
sentido proposto por Geertz (1989), ora assume características da tradição, ora características
da modernidade. Dessa forma, identificá-lo como tradicional ou moderno torna-se confuso.
As informações levantadas possibilitaram trazer à luz características culturais oriundas
de organizações tradicionais e de organizações imersas na modernidade, e mesmo
características que fazem parte de ambas as abordagens. Entretanto, a leitura proposta por esse
artigo baseia-se na elucidação dos símbolos e das relações sociais constituídas na memória
coletiva dos freqüentadores do Bar do Ceará, ou seja, seus funcionários, clientes e
proprietário.
As características tradicionais do empreendimento estão alinhadas à fundação e gestão
do Ceará. Naquele momento, a estrutura do bar e o cardápio enxuto simbolizavam as
condições do negócio. Entretanto a produção em frente ao cliente e a “espera despreocupada”
permitiram a incorporação do bar ao ambiente do bairro, na medida em que aumentava suas
relações sociais. Neste momento é tradição ir ao bar depois dos jogos, levar os filhos e
participar no Bar do Ceará de confraternizações com a família (WEBER, 1991).
O Ceará, apesar de ser considerado rude, era respeitado e admirado pelos seus antigos
freqüentadores, pois mantinha a pessoalidade e criava vínculos afetivos por meio de seus
atendimentos. Dessa forma, o Bar do Ceará permitia uma proximidade com as famílias de
Jucutuquara. Alguns freqüentadores se consideram como parte da família do Ceará, dão
palpite na gestão atual e interferem na sua gestão.
No tocante a lendas e mitos, o bar possui claramente um “herói-fundador”, preservado
ainda nos dias atuais na figura do filho Lourival. Há uma lenda relativa à criação da empresa e
ao herói-criador, propagada e profundamente enraizada, além de um conjunto de lendas sobre

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“heróis ocasionais”. Numerosas histórias e anedotas confirmam a mitologia do herói
fundador. Os valores vão sendo instalados e amadurecidos com o passar do tempo, e
amplamente difundidos e ligados aos já existentes.
A menção a esses valores relacionados aos fundadores do bar é recorrente nas
conversas com Lourival, com funcionários e fregueses do antigo estabelecimento. A figura do
pai Ceará e Dona Oswaldina, a forma com que criaram e administraram o primeiro botequim,
as dificuldades e todas as histórias relacionadas aos clientes, ao peixe, futebol, roda de samba
e o tradicional “jogo de purrinha”.
O cheiro da gordura da frigideira, impregnada nas roupas de seus antigos
freqüentadores no antigo espaço do bar, era a prova para as mulheres de que os maridos
estiveram realmente no Bar do Ceará. O pastel frito como solução para o peixe demorado, as
mesas na rua, o bar como receita médica para a depressão, entre muitas outras histórias,
formam um conjunto de lendas e símbolos apontados pela memória coletiva que permeiam
seus aspectos culturais.
O clima de nostalgia de um passado é recorrente na constante busca pela preservação
de valores e costumes do Ceará. Em momentos cruciais, ou seja, quando os desafios
apareceram e cabia a Lourival Filho tomar uma decisão importante, o proprietário procura
encarar esses desafios sem comprometer características culturais históricas.
A preservação de elementos culturais históricos tem sido buscada obstinadamente por
Lourival Filho desde que assumiu o comando do bar. Suas declarações demonstram que em
momentos cruciais no início de sua gestão esse risco era bem concreto. A preservação desses
traços históricos, ligados especialmente à forma de administração de seu pai, deveu-se a sua
obstinação e à ajuda decisiva do antigo funcionário, Osmar. Ademais, outros funcionários
compartilham os valores herdados pelo Lourival Filho.
A manutenção dos traços tradicionais é constante no Bar do Ceará, e a situação de
crescimento pela qual passa o negócio atualmente emite claros sinais de que esse desafio
emerge com muita força. A contratação de consultoria especializada para tratar da estrutura
administrativa e funcional do bar é vista por Lourival Filho como essencial para a
continuidade do crescimento e do “sucesso”. Porém, constitui exigência sua, que esse salto de
qualidade se dê sem a perda de traços culturais históricos que formam uma espécie de magma
que une dirigentes, dirigidos, clientes e fornecedores.
Tanto na época do pai Ceará quanto após a passagem do bar ao filho Lourival, a
preocupação foi sempre a preservação de aspectos culturais originais históricos que foram se
construindo naturalmente ao longo da existência do negócio. Ainda nos dias atuais, essa
preocupação é tônica. Entretanto, as novas condições do negócio direcionam a empresa à
burocratização, desde a contratação de novos funcionários, até ao estabelecimento de normas
e regras relacionadas aos processos do bar. Pode-se notar que o estilo de gestão do Bar do
Ceará sempre foi caracterizado por um grau de descentralização muito grande. Não se via
normas escritas, cardápio estruturado, os empregados possuíam certa liberdade e autonomia e
a estrutura funcional possui rigidez mínima. Apesar da confiança mútua e generalizada entre
os funcionários e o proprietário, onde aqueles também participam de decisões, nota-se que o
bar possui uma hierarquia com os papéis definidos, processos de produção já foram
padronizados e o atendimento exige um mínimo de cordialidade. Ou seja, atualmente
elementos da burocracia foram adotados para dar coesão ao negócio.
Contudo, existe uma proximidade e cumplicidade constante entre o proprietário e os
empregados. Esta cumplicidade propicia um diálogo real e sólido e promove a confiança entre
os membros da organização. Tal relação reflete o ambiente harmônico entre os freqüentadores
do Bar do Ceará. Os empregados são considerados responsáveis e associados às decisões.
Existe confiança, hábito de escutar e diálogo, e o dirigente da organização está sempre

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presente e disponível aos funcionários. Parte da receita de vendas é distribuída entre os
empregados e os lucros obtidos, são investidos na melhoria do negócio.
O tempo de espera para servir o peixe, valorizado tanto pelo Ceará quanto pelos
freqüentadores antigos do bar, proporcionava um momento de confraternização na “espera
despreocupada”. Com o crescimento do bar, numa fase moderna, esse tempo passou a ser
caracterizado como demora. A inserção de pastéis no cardápio foi a solução para essa nova
necessidade. Aos poucos, tanto quanto o peixe, o pastel se tornou marca do Bar do Ceará e
atualmente é o “carro-chefe” do cardápio.
A tradição é ainda simbolizada no bar, nos hábitos de Lourival Filho, no atendimento
dos garçons, na preocupação em manter o mesmo sabor do peixe que era feito pelo Ceará e
pela Dona Oswaldina. Procedimentos burocráticos, em atendimento às demandas do mercado,
alteram algumas características tradicionais na nova gestão. O Bar do Ceará, ao possuir
características tradicionais e modernas, forma um hibridismo entre esses dois momentos, na
manutenção dos traços culturais do passado e com o alinhamento da organização à lógica
capitalista contemporânea.

Considerações finais
O objetivo desse artigo é abordar as relações de continuidade e descontinuidade entre
cultura, tradição e gestão nas organizações, por meio de um estudo de caso. O problema de
pesquisa foi assim definido: Como cultura, tradição e modernidade se associam e
caracterizam práticas de gestão no “Bar do Ceará”? Trata-se de uma pesquisa de natureza
qualitativa na qual utiliza-se o método de estudo de caso, e como técnica de coletas de dados
entrevista com funcionários, clientes e o proprietário do bar, análise de documentos, além de
uma observação direta das atividades do estabelecimento.A análise da trajetória histórica e de
aspectos culturais marcantes no cotidiano do Bar do Ceará permitiu compreender traços
culturais compartilhados. Os estudos mostraram que predomina no estabelecimento um
ambiente fortemente caracterizado pelo hibridismo entre a tradição e a modernidade,
compartilhados entre o proprietário, funcionários e clientes.
O patrão não é visto como apenas como “o chefe”, mas sim como um companheiro no
trabalho, alguém que é lembrado com carinho, da mesma forma como o Ceará, antigo
proprietário, é lembrado. É também recorrente a noção de recriação, perpetuada na pessoa do
Ceará, fundador do botequim nos anos 60, cujo modo de administrar e de lidar com o negócio
se transformou numa espécie de combustível para o crescimento do Bar do Ceará.
Consciente ou inconscientemente, há uma sensação de receio, em maior ou menor
intensidade, por parte de clientes, funcionários e proprietários, do desaparecimento da
memória coletiva do “herói-fundador” (AKTOUF, 1996). Tal receio é muito latente no
proprietário do bar, Lourival Filho, que busca sua preservação, dando indícios claros que
pretende investir muito nesse patrimônio cultural do empreendimento. Em 2008, uma filha
sua inicia o curso de Administração de Empresas com pretensões de dar continuidade aos
valores criados pelo avô e cultivados pelo pai.
O hibridismo entre o tradicional e o burocrático, formado na gestão de Lourival Filho,
é recorrente nas novas necessidades do empreendimento, na medida em que o share da
clientela que atualmente freqüenta o bar ultrapassa o consumo dos antigos freqüentadores.
Esses valores e costumes diferentes dos antigos freqüentadores, a manutenção da tradição do
bar, a sua participação na comunidade, a perpetuação da história do Ceará e das histórias do
antigo bar – ainda presentes na memória coletiva dos freqüentadores, que é constantemente
atualizada nas relações sociais que hoje se forjam – são os ingredientes que compõem o que
em Vitória é conhecido como Bar do Ceará. A passagem do bar do pai para o filho, do
tradicional para o moderno, coincide com uma grande fase de crescimento experimentada
pelo Estado do Espírito Santo notadamente a partir dos anos 1990 mais fortemente a partir do

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ano 2000. De certa forma também significa uma passagem do tradicional para o moderno, que
vem da economia ligada ao café, passa pelo comércio exterior, até chegar ao petróleo. O
crescimento e as mudanças ocorridas no Bar do Ceará também são reflexos disso. Alguns
anos depois de ter herdado o bar, em 1997, quando Lourival resolve se mudar para um
ambiente bem maior, essa passagem do tradicional para o moderno se consolida. O
estabelecimento, antes freqüentado preponderantemente por habitantes do bairro Jucutuquara,
passa a ser referência para a Grande Vitória. O bar do bairro passa a ser o bar da metrópole. A
tradicional pescadinha precisou abrir espaço para o pastel, mais versátil e popular. Esse
contexto traz à tona a “concepção estrutural” de cultura desenvolvida por Thompson (2002),
isto é, o estudo das formas simbólicas de uma sociedade em relação com os processos
históricos específicos e socialmente estruturados.
São análises que trazem mais desafios à gesto do Bar do Ceará. Mas as informações
concedidas aos pesquisadores por Lourival Filho, o Ceará (filho), demonstram que ele está
atento a esse contexto. Tem interesse em deixar o empreendimento crescer e gerir esse
crescimento, condição necessária à própria perpetuação do negócio. Por outro lado, parece ter
mais consciência ainda de que não pode colocar em risco aspectos culturais peculiares que
dão vida e sustentação ao bar. Eles constituem o patrimônio dos freqüentadores e
funcionários, gerados pelo pai, preservados por ele, e que possivelmente serão cultivados e
desenvolvidos pelos sucessores, possivelmente por sua filha. Essa característica funciona
como verdadeira mola-mestre para o crescimento do negócio é também o maior desafio
enfrentado pelo dirigente, para a continuidade do sucesso e do crescimento do
empreendimento. Como em outros momentos, no momento atual o bar enfrenta um desafio ao
seu crescimento, que é a necessidade de se promover avanços em sua estrutura administrativa
e funcional, condição essencial para uma gestão com maior número de funcionários e clientes.
Enfim, o Ceará Bar, ou Bar do Ceará, como é mais conhecido, apresenta
características tradicionais e modernas. Estas últimas alinhadas à burocracia, ou seja, baseadas
em regras, impessoalidade e descrição detalhada das atividades e processos da organização.
As primeiras vinculam-se aos hábitos e costumes legitimados ao longo do tempo, desde sua
fundação. Esse hibridismo entre a tradição e a burocracia, é o pano de fundo das relações
sociais que perpassam seus traços culturais e suas práticas de gestão. Dito de outro modo,
como ensina Giddens (2001), uma forma híbrida e dialética de gestão na qual a modernidade,
ao mesmo tempo em que reconstrói, dissolve a tradição, não se colocando como pólos
opostos.

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