Você está na página 1de 7

2.1.

Ética e Biotecnologia

Os avanços da Biotecnologia permitiram que a sociedade ganhasse um conhecimento


sem precedente e que vários cenários de avanços tecnológicos fossem desenvolvidos
ao longo dos tempos. Hoje é possível saber qual a terapia mais adequada no contexto
de um determinado cancro, criar veículos que transportam fármacos até ao tipo de
célula desejado, produzir plantas mais resistentes às pragas e com maior produtividade,
proporcionar autonomia aos diabetes através do controlo individual da glucose,
produzir energia a partir do sol, da agua, do vento ou de materiais orgânicos, enfim, um
sem-número de mudanças que consubstanciam a extraordinária evolução da
Biotecnologia nas últimas décadas.

Biotecnologia.

A Federação Europeia de Biotecnologia propõe a seguinte definição: “ Biotecnologia é


a integração das Ciências Naturais e das Ciências de Engenharia com vista à aplicação
industrial de organismos, células, partes destas e análogos moleculares para a
obtenção de produtos e serviços”. De acordo com a ONU, biotecnologia enquadra
qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou
seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização
específica. Alguns exemplos de processos biotecnológicos que incluem a utilização de
microrganismos (fermentos, bactérias); enzimas, na síntese de compostos químicos
intracelulares (proteínas) ou extracelulares (antibióticos), álcool; na produção de
biomassa (fermento de padeiro ou pasteleiro); de alimentos ( bebidas); de energia
(biogás, etanol ou álcool etílico, ou ainda na despoluição de efluentes (degradação da
matéria poluente pelos microrganismos.

Breve enquadramento histórico

A Biotecnologia é apresentada como uma área da ciência cujo desenvolvimento tem


contribuído extraordinariamente para a evolução da economia do presente século (séc.
XXI). É conduto, paradoxalmente, uma das áreas do saber mais antigas da actividade
económica. A Biotecnologia enquadra um conjunto de actividades que o homem vem
desenvolvendo há milhares de anos, como a produção de alimentos fermentados (pão,
vinho, iogurte, cerveja e outros). Mas a evolução tecnológica e científica permitiu,
entretanto, uma compreensão ampla de funcionamento da célula, o que levou a uma
expansão, sem precedente, das técnicas utilizadas em biotecnologias e que permite
manipular células, proteínas ou genes.

As levaduras constituem o grupo de microrganismos mais importantes a ser explorados


comercialmente e a ser consumido pela Humanidade. São diversas as suas aplicações
industriais (cervejas, destilarias, sumos, alimentos fermentados, queijo, etanol, etc.)
como, por exemplo, o fermento de padeiro, utilizado nas indústrias de panificação para
fazer levedar a massa que é composto, essencialmente, por células vivas da levadura.

O caminho da biotecnologia teve início com a invenção do microscópio, no final do


século XVI, que permitiu a observação da célula e das bactérias por Anton van

1
Leewnhoek (1675). No século seguinte, XVIII Eward Jenner inocula o seu filho para o
proteger da varíola; Louis Paster propõe em 1857 a teaoria microbiana do processo de
fermentação; em 1859 Charles Darwin publica a teoria da evolução através da selecção
natural; em 1890 Walther Flemming descobre os cromossas, em 1922 Se produz o
primeiro tratamento de uma pessoa com insulina de origem animal; em 1928 Alexander
Fleming descobre a penicilina; o primeiro milho híbrido (obtido por cruzamento forçado
entre duas plantas é comercializado em 1933.

Aplicação da Biotecnologia e suas implicações éticas

Diante da evolução tecnológica patente na sociedade contemporânea e em


convergência com a evolução significativa no domínio da nanotecnologia (o
conhecimento e a manipulação da matéria em nanoescala), a biotecnologia tem impacto
hoje em diversas áreas, como a saúde, a agricultura, a alimentação, o ambiente ou a
indústria.

1. Aplicações em saúde

As ferramentas e as técnicas em biotecnologia permitem hoje descobrir de como


funciona um organismo saudável, e como funciona mal quando a doença se
instala. O conhecimento da base molecular da saúde e da doença conduz a um
melhor diagnóstico, a um acompanhamento do tratamento mais eficiente e,
eventualmente, á prevenção. São inúmeros os produtos gerados pela
biotecnologia dirigidos à saúde, incluindo-se aqui os meios de diagnósticos mais
eficazes e rápidos, a terapêutica, com menos efeitos colaterais, as vacinas, masi
eficazes e seguras, e a medicina personalizada.

a). O Diagnóstico

A evolução tecnológica permite o desenvolvimento de vários métodos analíticos,


também conhecidos como biossensores* capazes de auxiliar o diagnóstico, detectando
doenças ou condições médicas de forma rápida e eficaz. Os biossensores permitem
obter resultados analíticos fora dos laboratórios de análises clínicas. Em contexto clínico,
é frequente a utilização de tiras sensoriais para a urina ou para a garganta, ou testeis
portáteis dirigidos a biomarcadores de doenças cardiovasculares; O acesso individual,
em casa, a testes de gravidez e a dispositivos de monotorização de glucose é hoje uma
realidade. Além destes, existem ainda testes genéticos, que podem assumir um
caracter preventivo ou de diagnóstico, abordados posteriormente no contexto de
medicina personalizada

*Biossensores são pequenos dispositivos que utilizam componentes biológicos como elementos
de reconhecimento, ligados a um sistema de detecção, transdução e amplificação do sinal
gerado na reação com o analito-alvo. Podem ser utilizados diversos elementos, sendo os
principais, atualmente, aqueles baseados em aptâmeros e nanomateriais, por sua alta
especificidade e sensibilidade. Seu potencial de utilização varia desde a detecção e tratamento
de doenças ou a medição de componentes nos fluidos biológicos, até o monitoramento ambiental
e prevenção de contaminação e bioterrorismo.

2
Implicações éticas

• A comercialização de um instrumento de diagnóstico requer sempre a sua


avaliação, recorrendo para isso a testes em condições reais. Para este efeito,
torna-se necessário o envolvimento de seres humanos no processo e o
cumprimento de vários requisitos expressos na Declaração de Helsinquia de
1964, revista em 2013 (World Medical Association Declaration of Helsinki: Ehtical
Principles for Medical Research Involving Human Subjects). Incluem-se aqui o
consentimento informado, a informação do paciente, a confidencialidade, a
privacidade, a comunicação privilegiada, o respeito e a responsabilidade, cuja
estratégia deve ser avaliada por uma comissão de ética reconhecida. Os
investigadores estão também obrigados a estabelecer protocolos que garantam
a integridade científica do estudo, salvaguardando todos os aspectos éticos e
legislativos resultantes do envolvimento de seres humanos.

• A utilização de biossensores uma vez validados como instrumentos de


diagnóstico em contexto clínico envolve vários aspectos de natureza ética,
começando pelo consentimento informado, como já dissemos. Mas este
consentimento deve prestar especial atenção quando envolve grupos
vulneráveis, em relação aos quais esse consentimento é fornecido por
representantes legais. O direito a conhecer a informação produzida e o direito a
não conhecer essa mesma informação são também requisitos éticos relevantes
e que devem ser considerados pelos profissionais de saúde.

• Outras exigências éticas a considerar neste contexto de diagnóstico reportam-se


à acção clínica a tomar perante a informação obtida, como gerir a informação
associada a criança e a garantia da igualdade de oportunidade. Imaginemos uma
informação sobre doenças sobre as quais a população não está devidamente
informada (exe. Doenças raras), ou estando informada, mas não há
medicamento eficazes para tal doença; ou quando o custo do medicamento é
excessivamente elevado em relação ao poder económico da pessoa.

b). A terapêutica
Existem vários artefactos oriundos da biotecnologia usados no tratamento de várias
doenças, como leucemia e outras doenças cancerígenas, anemia, fibrose cística (é uma
doença genética que afeta principalmente os pulmões, mas também o pâncreas, fígado, rins e intestino),
deficiências de crescimento, artrite reumática, hemofilia (é uma doença que impede a
coagulação do sangue, favorecendo hemorragias), Hepatite (é a inflamação do fígado), etc. As
estratégias são diversas, recorrendo, entre outros, de forma mais ou menos frequente,
a proteínas recombinantes.

3
As proteínas recombinantes são amplamente utilizadas em doenças causadas por
deficiências genéticas que reduzem ou anulam a presença de uma dada proteína.
Tipicamente, a proteína em falta numa dada doença é produzida por tecnologia de ADN
(ácido desoxirribonucleico) recombinante, associada à cultura de células, podendo ser
administrada posteriormente em pacientes. Exemplos destas proteínas são o factor VIII
(em falta em alguns homofílicos), a insulina (para os diabéticos) ou a hormona de
crescimento (para crianças com distúrbios de crescimento.

As terapias genéticas representam hoje uma oportunidade de usar o ADN, ou moléculas


relacionadas como o ARN (ácido ribonucleico) no tratamento de doenças. Face aos vários
progressos tecnológicos e estudos clínicos, pressupõe-se que a terapia genética permita a
correcção de doenças, a reparação de tecidos ou a regeneração celular, através de uma entrega
dirigida de informação genética que facilita a estabilidade, a sustentabilidade e a regulação da
expressão nos sistemas biológicos.

Implicações éticas

Não obstante, a aplicação da terapia genética continua a criar zonas de sombra e dúvidas de
natureza moral.

• Quem identifica as características normais e as anormais/ de incapacidade? Sob que


critérios se definem genes bons ou maus? Que usufrui desta terapia, garantido que o
nível de pobreza não é um critério de exclusão.

• Como promover a aceitação pela diferença, na sequ~encia do uso desta terapia que
tendencialmente diminui a diferença? Como gerir as necessidades/vontades de
aplicação da terapia para melhorar traços gerais, como altura, inteligência ou
capacidade atlética.

• Como controlar o excessivo entusiasmo e a apresentação de resultados de forma


tendenciosa-optimista no âmbito dos ensaios clínicos (Honestidade intelectual na
investigação).

• Como salvaguardar os interesses dos grupos vulneráveis, incapazes de fornecer o


consentimento informado?

Efectivamente, os impactos decorrentes da terapia genética, tal como se perspectiva no futuro,


podem alterar a nossa percepção individual e social, enquanto indivíduos: podemos reconhecer-
nos como um produto de ADN evolucionário que pode ser moldado, como e quando se desejar,
em cada pessoa, pelos seus ascendentes ou para os seus descententes.

d). Melhoraria da qualidade humana


Existem hoje ferramentas capazes de editar ou regular os nossos genes. Uma destas ferramentas
é conhecida por CRISPER-Cas9 que pode ser aplicada tanto em células somáticas como em
células germinativas. A sua aplicação em células somáticas levanta dúvidas do ponto de vista

4
ético, embora pode ser aceitável num contexto terapêutico. A sua aplicação a fins não
terapêuticos, (por exemplo, melhorar o desempenho de atletas, prevenir o
comportamento violento ou diminuir os vícios) são questões cuja resposta envolve
controvérsia e requer um debate social profundo. Por outro lado, a aplicação do sistema
CRISPR-Cas9 em células de linhas germinativas é ainda mais controversa. Esta aplicação
vem permitir o nascimento de indivíduos com qualidades desejadas, por substituição
das qualidades indesejadas expressas geneticamente, mas também permite que estas
alterações se propaguem às gerações futuras. Actualmente o risco de mutações
genéticas imprevistas é maior do que os benefícios da terapia, algo que tem contribuído
para atrasar a aplicação da técnica em células germinativas.
De forma geral, é relevante assinalar que o conhecimento sobre o funcionamento das
células de linhas germinativas, a regeneração de tecidos ou os mecanismos de controlo
de resposta imunitária é bastante limitado, levantando algumas preocupações sobre os
efeitos indesejados da terapia genética a longo prazo.

2. Aplicação em produtos agrícolas e alimentares


As aplicações da biotecnologia nos sectores agrícolas e alimentar ocorrem há milhares
de anos, através de ténicas, nomeadamente a utilização de levaduras na produção de
pão e fabrico de vinho e cerveja (cerca de 4000 a 2000 anos a. C.) O primeiro insecticida
surge no século I sob a forma de crisântemos (é uma planta de tradição de cultivo
milenar nos países asiáticos) em pó.
Contemporaneamente, o milho híbrido (Alimentos híbridos, sao aqueles que não crescem na
natureza sem a intervencao do homem. Alimentos híbridos estão são aqueles que não tem elétricidade,
pois eles são antinaturais e contem uma alta consentracao de açúcar e amido. Ou seja, qualquer planta,
vegetal ou fruta que tenha amido, saiba que é hibrida...pois a natureza nao produz por si mesma nenhuma
planta que tenha amido) écomercializado desde 1933; em 1985 foram efectuados ensaios
em campo com as primeiras plantas transgénicas (plantas transgênicas são aquelas que
receberam um ou mais genes de outros seres vivos com o objetivo de apresentarem novas características)
resistentes a insectos, bactérias e vírus; Em 1990 a biotecnologia é usada para a
obtenção de milho resistente a insectos; Em 1994 a agência amaercana FDA aprova a
primeira comida recombinante para consumo humano, tomates modificados por
engenharia genética (DNA Recombinante são moléculas de DNA que possuem fragmentos de
DNA derivados de duas ou mais fontes, geralmente de espécies diferentes. O DNA (Ácido
Desoxirribonucleico) é uma molécula presente no núcleo das células de todos os seres vivos e que carrega
Nesse mesmo ano, 1994, é introduzida nos
toda a informação genética de um organismo).
Estados Unidos de América (EUA) uma hormona artificial geneticamente manipulada
para injectar em vacas leiteiras e aumentar a produção do leite – apesar da oposição de
cientistas, agricultores e consumidores, os EUA permitem que as vacas leiteras sejam
injectadas com hormona de crescimento bovino recombinante (rBST); em 1997 são
comercializadas as sementes de soja resistentes a ervas daninhas e algodão resistente a
insectos.

5
O mercado oferece actualmente diversos alimentos geneticamente modificados por
biotecnologia, incluindo batatas, beringelas, morangos, cenouras e peixe, como salmão.
O principal argumento para o desenvolvimento de alimentos geneticamente por
biotecnologia surge do desafio em 1) lidar com o aumento da população mundial e a
respectiva necessidade alimentar, 2) a par do decréscimo de terrenos aráveis e 3) do
reconhecimento das limitações das técnicas tradicionais de produção animal e vegetal.
No contexto actual, podem apontar-se vários benefícios dos alimentos geneticamente
modificados: 1) agronómicos, ao permitir poupar/evitar terreno arável, fertilizantes,
irrigação ou desflorestação; 2) económicos, pelo aumento do rendimento devido aos
avanços genéticos e á resistência a pestes e ervas daninhas e ao concomitante
decréscimo dos custos de produção (menor utilização de pesticidas e herbicidas); 3) para
a saúde, pela alteração da composição química dos alimentos de forma a enriquecê-los
em determinantes nutrientes ou substâncias com valor terapêutico ou saudável; 4) No
processamento alimentar, em que a alteração genética permite abrandar o
amadurecimento, possibilitando aumentar o tempo em prateleira de frutas ou melhorar
a estabilidade e factores de brilho, tornando a aparência mais atrente; 5) Para produtos
para fins terapêuticos, em que alimentos transgénicos são preparados como alternativa
a vacinas ou tratamentos.

Implicações éticas
Porém, existe um debate ético, político, económico, científico, filosófico e até religioso,
principalmente centrado nas incertezas dos potenciais efeitos adversos decorrentes da
utilização de alimentos geneticamente modificados por biotecnologia na saúde humana
e na segurança ambiental.
Além disso, a comunidade científica tem dificuldade em: 1) explicar ao público, de
forma concisa, as técnicas biológicas envolvidas; 2) Responder às preocupações sobre
a disseminação inadequada desses alimentos; 3) enunciar os princípios éticos
inerentes ao processamento tradicional de alimentos; 4) esclarecer as dúvidas relativas
à avaliação adequada desses alimentos; 5) De entre os riscos de saúde associados aos
alimentos geneticamente modificados destacam-se as questões de toxicidade,
alergenicidade e perigos genéticos, caso do milho starlink, (um tipo de milho transgénico,
teoricamente de uso animal e industrial), melhorado para resistir a insectos, que provoca uma
alergia nas pessoas, e da soja transgénica enriquecida com aminoácido metionina
obtido de um gene de noz brasileira (A metionina é um aminoácido necessário para o crescimento
e o desenvolvimento normal do corpo e para a síntese de creatina, um composto necessário na produção
de energia celular. A maioria das pessoas pode obter as quantidades adequadas do aminoácido com
alimentos ricos em metionina, como frutos do mar, carne e produtos lácteos)

Acrescem aqui diversos riscos ecológicos como a selecção natural de espécies


resistentes e ervas daninhas preparados para responder à pressão humana nos seus
habitat ; a interrupção da cadeia alimentar a partir da qual os insectos possam a
privilegiar outras espécies, o mesmo verificando com os seus predadores e assim

6
sucessivamente até ao topo da cadeia; ou , em outro sentido, com os resíduos das
plantas modificadas a gerarem efeitos negativos nos microrganismos do solo.
O desenvolvimento de resistências a antibióticos +e outro risco apontado. Os
antibióticos são comumente usados como marcadores de selecção nas etapas de
transfecçaõ genética em bactérias podendo transferir genes da resistência a antibióticos
para as bactérias da microflora intestinal humana ou animal.
São muitas as dúvidas e as questões por responder na utilização de alimentos e
organismos geneticamente modificados.

Você também pode gostar