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TIJOLOS VERMELHOS

Vera Saad

“Senhora perfeitinha.” Pegadas de chuva sobre os tijolos vermelhos. A


casa não havia mudado. A jabuticabeira abarcava boa parte do quintal. Gatos se
enroscavam na terra úmida, um tempo que se devora, como frutas apodrecidas
junto à sebe. Dedos entrelaçados da avó e da neta. Nada havia mudado. Nem
mesmo sua voz rouca quando me chamava “Senhora perfeitinha. Minha senhora
perfeitinha”. Calcei os chinelos pequenos, com os dedos para fora.
Entramos. O teto estava com algumas infiltrações. Cheiro de mofo, cheiro
de casa de vó. “Fiz seu bolo.” Nada no forno ou na mesa. Nada de doce nos
olhos de dona Maria. Fingi fome com os dedos ainda entre os seus. Rimos
juntas. Uma forma de nos entendermos. A cozinha parecia menor, as portas dos
armários estavam caídas. Nas prateleiras, potes coloridos com a palavra
COOKIES e o desenho de biscoito mordido. O último biscoito do pote fora
mordido havia mais de vinte anos, quando o vi pela última vez. Nada havia
mudado.
Nossas mãos permaneciam entrelaçadas, se a soltasse, dona Maria
balançaria o corpo, penderia para um dos lados. Levei a avó à sala. Ainda a
renda castanha cobria o sofá e a poltrona. Um pouco puída, mas da cor de antes.
“É o mesmo?”, não sabia exatamente a que me referia, apontei para um pedaço
de chão entre a poltrona e o sofá. Ela confirmou. “É tudo a mesma coisa, tudo a
mesma merda.”
Desfez-se das minhas mãos, penteou o cabelo para trás. Não tinha um fio de
cabelo branco, depois de tanto tempo ainda o pintava. Cabelo ralo, pintado de
marrom, exibia partes da nuca; olhei para a renda e o rosa do sofá. Tudo da cor
de antes. “Tudo a mesma merda.” Arrisquei dizer-lhe que não tinha mudado
nada, mas não me lembrava de como era vinte anos antes. Sua figura era de
hoje e de antes, a pele fina, tombada sob braços e queixo. Não havia dona Maria
nova. Ela era a avó de sempre. Quem me chamava de senhora perfeitinha com

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a voz rouca. Falei enfim da mancha. Estava menor. Único detalhe do qual me
lembrava. A mancha de nascença na altura da boca. Cobria os vincos e o sorriso,
o que a mantinha séria. Único detalhe de minha avó que guardei por tanto tempo,
seu riso escondido pela mancha azulada. Guardava o sorriso em segredo.
Decerto sua qualidade mais bonita. O que nos escondia.
Mesmo quando falava por horas, sem que pudéssemos interrompê-la, não
nos mostrava tudo. Eu catava algum sorriso sob a mancha. Ela enfraquecia a
voz ainda séria. Talvez sorrisse, nunca o saberíamos. Talvez também estivesse
sorrindo naquele exato momento em que fitava a renda puída do sofá.
“Sabe que fiz essa renda quando estava noiva de Juvir Luiz?”. Ela nunca
nos havia dito sobre o passado. Quando quase se casara com Juvir Luiz. Uma
vez descobri uma foto do ex-noivo presa a um disco de Francisco Alves no quarto
dos fundos. Perguntei-lhe se o retrato pertencia “àquele homem”, eu era criança,
mas não me esquecia de um rosto tão facilmente, a avó desconversou. No outro
dia, nem o disco ou a foto estavam ali. “Por que então guardou a renda?”,
arrisquei. Ambas sabíamos o que aquilo representava, apesar do silêncio
perpetrado havia décadas.
Ainda que nunca tivéssemos tocado no assunto, a figura de Juvir Luiz nos
assombrava. Alguns anos após o rompimento do noivado com vovó, ele entrara
para as Forças Armadas. Dona Maria nunca mais o vira ou tivera notícias suas.
Ela viria revê-lo, contudo, em três de fevereiro de mil novecentos e setenta e
nove, e todas desejamos que nunca o tivesse reencontrado. Nesse dia, a
tempestade nos cobria a vista. Juvir estava na parte coberta do quintal. Vovó
quis lhe preparar algo, mas ele negou com as mãos, apenas precisava lhe
informar sobre seu filho. Sem que nos preparássemos, ele revelou sobre seu
desaparecimento três dias antes.
Lembro-me de que olhava para aquele sujeito de farda sem entender o
que nos dizia, sem a real noção de que, a partir daquele instante, nunca mais
seríamos as mesmas. Desde então passei a associar o nome Juvir Luiz à mau
agouro. A acreditar que a cor do corvo era verde.
A casa de minha avó ganhou tijolos vermelhos, uma forma de esquecer
que sob aqueles tijolos jaziam as pegadas daquele homem alto que anunciara o
desaparecimento do filho de dona Maria. Os tijolos cimentaram também palavras

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sobre um tempo em que se costurava para um noivo, sem que se pensasse em
prisões, torturas e desaparecimentos.
Busquei explicações à incoerência de se guardar por mais de quarenta
anos aquela renda. Algo de luto, de reza à sua parte ausente se deitava junto ao
sofá. Como o que se enterrava com os tijolos vermelhos. Tijolos sobre os quais
havia me despedido da avó mais de vinte anos antes, quando minha mãe
decidira se mudar para o Uruguai com três filhas pequenas por não compactuar
com a eleição de um presidente sem a participação do povo. A avó me olhava
sem dizer nada. Imaginei que sorrisse. Sua mancha sobre o meu sorriso, ao
menos aquele que eu imaginava que fosse meu, sempre quando ela me fitava.
Disse, por fim, “minha senhora perfeitinha”, e levantou meu corpo pequeno. Eu
baguncei o cabelo de birra, nunca almejei a perfeição. Tinha nove anos.
Aos trinta ainda ouvia aquela voz e despenteava o cabelo. No fundo
éramos iguais. Ela já com mais de oitenta, eu com mais de trinta anos, ambas
sabíamos que perfeição não existia, no final tudo era decrepitude.
Final que me levava de volta àquele lugar para cuidar de um passado que
não me pertencia. Uma casa, uma avó, uma mancha, abandonadas à memória
de dona Maria. “Alguém precisa cuidar dela”, minha mãe havia me dito, certa de
que eu era a única capaz. Todas me acusavam de neta preferida. Ser neta
preferida em certas circunstâncias era também acusação. Sina que juntava avó
e neta vinte anos depois, com os olhos fixos na renda castanha.
O teto gotejava novamente. A chuva voltara com força, ainda assim insisti
retornar para junto da jabuticabeira. Gostava de colher jabuticabas na chuva.
Gosto doce e molhado de infância. Fomos juntas à varanda. Sobre os tijolos, nos
preparamos para pegar mais chuva. Eu e ela novamente. Tirei os chinelos,
precisava afundar os pés no chão. Corremos sem pensar. Na chuva, vovó se
lembrou. Já fora feliz alguma vez. Quando esperávamos que o temporal
apertasse para cantarmos ao redor da árvore. Quando não precisávamos pensar
em nada, exceto na letra da música. “Senhora perfeitinha, que tá fazendo?
Lavando roupa pro casamento. Vou me lavar, vou me trocar. Vou na janela pra
namorar [...].”

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