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Vera Saad
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a voz rouca. Falei enfim da mancha. Estava menor. Único detalhe do qual me
lembrava. A mancha de nascença na altura da boca. Cobria os vincos e o sorriso,
o que a mantinha séria. Único detalhe de minha avó que guardei por tanto tempo,
seu riso escondido pela mancha azulada. Guardava o sorriso em segredo.
Decerto sua qualidade mais bonita. O que nos escondia.
Mesmo quando falava por horas, sem que pudéssemos interrompê-la, não
nos mostrava tudo. Eu catava algum sorriso sob a mancha. Ela enfraquecia a
voz ainda séria. Talvez sorrisse, nunca o saberíamos. Talvez também estivesse
sorrindo naquele exato momento em que fitava a renda puída do sofá.
“Sabe que fiz essa renda quando estava noiva de Juvir Luiz?”. Ela nunca
nos havia dito sobre o passado. Quando quase se casara com Juvir Luiz. Uma
vez descobri uma foto do ex-noivo presa a um disco de Francisco Alves no quarto
dos fundos. Perguntei-lhe se o retrato pertencia “àquele homem”, eu era criança,
mas não me esquecia de um rosto tão facilmente, a avó desconversou. No outro
dia, nem o disco ou a foto estavam ali. “Por que então guardou a renda?”,
arrisquei. Ambas sabíamos o que aquilo representava, apesar do silêncio
perpetrado havia décadas.
Ainda que nunca tivéssemos tocado no assunto, a figura de Juvir Luiz nos
assombrava. Alguns anos após o rompimento do noivado com vovó, ele entrara
para as Forças Armadas. Dona Maria nunca mais o vira ou tivera notícias suas.
Ela viria revê-lo, contudo, em três de fevereiro de mil novecentos e setenta e
nove, e todas desejamos que nunca o tivesse reencontrado. Nesse dia, a
tempestade nos cobria a vista. Juvir estava na parte coberta do quintal. Vovó
quis lhe preparar algo, mas ele negou com as mãos, apenas precisava lhe
informar sobre seu filho. Sem que nos preparássemos, ele revelou sobre seu
desaparecimento três dias antes.
Lembro-me de que olhava para aquele sujeito de farda sem entender o
que nos dizia, sem a real noção de que, a partir daquele instante, nunca mais
seríamos as mesmas. Desde então passei a associar o nome Juvir Luiz à mau
agouro. A acreditar que a cor do corvo era verde.
A casa de minha avó ganhou tijolos vermelhos, uma forma de esquecer
que sob aqueles tijolos jaziam as pegadas daquele homem alto que anunciara o
desaparecimento do filho de dona Maria. Os tijolos cimentaram também palavras
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sobre um tempo em que se costurava para um noivo, sem que se pensasse em
prisões, torturas e desaparecimentos.
Busquei explicações à incoerência de se guardar por mais de quarenta
anos aquela renda. Algo de luto, de reza à sua parte ausente se deitava junto ao
sofá. Como o que se enterrava com os tijolos vermelhos. Tijolos sobre os quais
havia me despedido da avó mais de vinte anos antes, quando minha mãe
decidira se mudar para o Uruguai com três filhas pequenas por não compactuar
com a eleição de um presidente sem a participação do povo. A avó me olhava
sem dizer nada. Imaginei que sorrisse. Sua mancha sobre o meu sorriso, ao
menos aquele que eu imaginava que fosse meu, sempre quando ela me fitava.
Disse, por fim, “minha senhora perfeitinha”, e levantou meu corpo pequeno. Eu
baguncei o cabelo de birra, nunca almejei a perfeição. Tinha nove anos.
Aos trinta ainda ouvia aquela voz e despenteava o cabelo. No fundo
éramos iguais. Ela já com mais de oitenta, eu com mais de trinta anos, ambas
sabíamos que perfeição não existia, no final tudo era decrepitude.
Final que me levava de volta àquele lugar para cuidar de um passado que
não me pertencia. Uma casa, uma avó, uma mancha, abandonadas à memória
de dona Maria. “Alguém precisa cuidar dela”, minha mãe havia me dito, certa de
que eu era a única capaz. Todas me acusavam de neta preferida. Ser neta
preferida em certas circunstâncias era também acusação. Sina que juntava avó
e neta vinte anos depois, com os olhos fixos na renda castanha.
O teto gotejava novamente. A chuva voltara com força, ainda assim insisti
retornar para junto da jabuticabeira. Gostava de colher jabuticabas na chuva.
Gosto doce e molhado de infância. Fomos juntas à varanda. Sobre os tijolos, nos
preparamos para pegar mais chuva. Eu e ela novamente. Tirei os chinelos,
precisava afundar os pés no chão. Corremos sem pensar. Na chuva, vovó se
lembrou. Já fora feliz alguma vez. Quando esperávamos que o temporal
apertasse para cantarmos ao redor da árvore. Quando não precisávamos pensar
em nada, exceto na letra da música. “Senhora perfeitinha, que tá fazendo?
Lavando roupa pro casamento. Vou me lavar, vou me trocar. Vou na janela pra
namorar [...].”