Você está na página 1de 21

Direitos religiosos

Autor: Francisco Carlos Távora de Albuquerque Caixeta

RESUMO: Abordar-se-á neste artigo aspectos históricos e jurídicos da origem,


desenvolvimento e estágio atual dos chamados "Direitos Religiosos",
analisando o modo como esses sistemas jurídicos se relacionam com as
sociedades nas quais eles estão em vigência.

ABSTRACT: One will approach in this article historical and legal aspects of the
origin, development and current period of the "Religious Rights",
analyzing the way as these legal systems relates with the societies in which are in
validity.

1. INTRÓITO:

   O direito religioso se refere à noção de que a palavra de Deus é lei. Assim, a
lei no sentido religioso pode ser entendida como princípio ordenado da realidade;
conhecimento revelado por Deus que define e governa todo comportamento
humano. Isso igualmente inclui os códigos de ética e moralidade de origem
divina, tais como os Sastras (lei hindu), o Sharia (lei islâmica), o Halakha e o
Torah (lei judaica), os Dez Mandamentos, etc.

   A implicação da religião para a lei é inalterável, pois a palavra de Deus não
pode ser emendada ou legislada por juízes ou governos. Entretanto, a religião
nunca fornece um sistema legal completo e detalhado.

   Nesse complexo contexto, iremos nos limitar a analisar o conceito tradicional


de direito religioso (direito parsi, direito canônico, direito muçulmano, direito
hindu), mesmo sabendo que ainda existem outras leis ligada à outras religiões
(v.g. leis do judaísmo, leis do Bahá'í Faith, etc.).

   É imperioso mencionar que o presente estudo não almeja ser laudatório nem
peça de acusação religiosa. Visa apenas mostrar uma realidade e deixar para o
ilustrado Leitor as conclusões.

2. DIREITO PARSI:

   Parsi é um membro da comunidade Zoroastra, baseada primeiramente em


Índia. Essa comunidade é conhecida por ser extremamente fechada e unida. A
maioria dos Parsis fora de Índia identifica a Índia como seu país natal. Os Parsis

1 / 21
Direitos religiosos

são descendentes dos zoroastras persas que imigraram para a Índia


subcontinental há mais de mil anos.

   Apesar dos Parsis da Índia terem emigrado originalmente de Pérsia, eles não
têm laços sociais, familiares nem lingüísticos com os persas. Desde que os
primeiros Zoroastras chegaram a Índia, os Parsis se integraram na sociedade
indiana, mas simultaneamente mantiveram seus próprios costumes e tradições,
conservando sua identidade étnica. Isto por sua vez deu à comunidade Parsi uma
posição peculiar - são indianos nos termos da afiliação nacional, língua e história,
mas não são típicos indianos (constituindo somente 0.006% da população total)
nos termos do consangüinidade ou práticas culturais, comportamento e religião.

   A definição de quem é ou não um Parsi constitui objeto de contenda dentro da


comunidade Zoroastra na Índia. Geralmente é considerado um Parsi a pessoa
que seja descendente direta dos refugiados persas originais ou foi admitida
formalmente na religião do zoroastrismo. Neste sentido, Parsi é um termo
étnico-religioso(1).

   O zoroastrismo é uma religião monoteísta fundada na antiga Pérsia pelo


profeta Zaratustra, a quem os Gregos chamavam de Zoroastro. É tida como a
primeira manifestação de um monoteísmo ético e de acordo com os historiadores
da religião algumas das suas concepções religiosas viriam a influenciar o
judaísmo, o cristianismo e o islã.

   O principal texto religioso do zoroastrismo é o Avesta. Acredita-se que a atual


forma do Avesta corresponde a apenas uma parte de Avesta original, que teria
sido destruído em resultado da invasão de Alexandre o Grande.

   O Avesta se divide em diversas secções, das quais a principal é o Yasna


(Sacríficios). O Yasna inclui os Gathas, hinos que se julga terem sido compostos
pelo próprio Zaratustra. O Vispered é essencialmente um complemento do
Yasna. O Vendidad é a secção que contém as regras de pureza da religião,
podendo ser comparado ao Levítico da Bíblia. Os Yashts são hinos dedicados às
divindades. Para além do Avesta existem os textos escritos na sua maior parte no
século IX.(2)

   A título de ilustração é salutar mencionar alguns aspectos do direito de família


atualmente em vigor nessa sociedade tão singular.

2 / 21
Direitos religiosos

   Nesse sentido, ao contrário das leis que norteiam outras religiões, o direito
parsi não prescreve nenhuma forma rigorosamente minuciosa para a cerimônia
de casamento, podendo haver variações ditadas pelo costume local. Contudo, a
Seção 3(b) do Ato de União e Divórcio de Parsi, datado de 1936, reza que
nenhuma união será válida, a menos se for realizada a cerimônia 'Ashirvad',
executada por um padre Parsi na presença de duas testemunhas Parsi.

   A seção 34 do Ato de União e Divórcio de Parsi permite que os cônjugues se


separem judicialmente sem se divorciarem, vivendo apartados sem terminar o
casamento. Contudo, se um dos cônjuges se casar novamente sem se dissolver
a união anterior, será considerado bígamo. E a bigamia é uma ofensa em quase
todas as comunidades, à exceção dos muçulmanos. A bigamia não é permitida
sob a lei de Parsi, sendo considerada uma ofensa criminal, cuja pena máxima é
de sete anos. Também, sob a lei de Parsi, um matrimônio bígamo é nulo,
podendo a primeira esposa pedir o divórcio alegando adultério.

3. DIREITO CANÔNICO:

   Direito canônico é o termo empregado para designar a lei eclesiástica interna


que governa várias igrejas, precipuamente a Igreja Católica Romana, as Igrejas
Ortodoxas Orientais e a Igreja Anglicana. A maneira pela qual a lei é legislada,
interpretada e por vezes adjudicada varia largamente entre essas três Igrejas. Em
todas as três tradições, um cânone era inicialmente uma regra adotada por um
conselho (do grego kanon / ?a???, significando regra, padrão ou medida); estes
cânones deram origem ao direito canônico.

   As Igrejas Católica Romana, Ortodoxas Orientais e Anglicana organizaram


sistemas de leis próprias conhecidos como direito canônico unicamente para o
regular seus casos internos (suas estruturas organizacionais e funcionais), não se
referindo ao como a salvação espiritual é pregada por elas.

   Dentro da estrutura do cristianismo, existem pelo menos três possíveis


definições para lei: a visão cristã do Torah, Leis de Cristo e direito canônico.

   Basicamente o Direito Canônico atual é composto por três documentos, a


saber: Codex Iuris Canonici (Código de Direito Canônico); o Codex Canonum
Ecclesiarum Orientalium (Código dos cânones das Igrejas Orientais) que diz
respeito às Igrejas em comunhão com o Papa que adotam outro rito (v.g. a Igreja
Católica Maronita), e a Constituição Apostólica Pastor Bonus. (3)

3 / 21
Direitos religiosos

3.1. IGREJA CATÓLICA:

   A Igreja Católica, também denominada de Igreja Católica Romana ou Igreja


Católica Apostólica Romana se constitui na maior organização religiosa do
Cristianismo, sendo formada por 23 Igrejas autónomas (sui juris), em ligação
umas com as outras e subordinadas ao Papa, igualmente chamado de Bispo de
Roma, na qualidade de Sumo Pontífice da Igreja Universal. Essas igrejas
autônomas professam a mesma doutrina e fé, resguardada sua integridade e
totalidade pelo Papa. Todavia, elas têm diferentes peculiaridades
histórico-culturais, tradição teológico-litúrgica diferenciadas e uma estrutura e
organização territorial apartadas.(4)

   A Igreja Católica Romana possui o mais antigo sistema legal em


funcionamento contínuo no mundo ocidental. O que começou como regras
(cânones) adotadas pelos apóstolos no Conselho de Jerusalém, no primeiro
século, tornou-se um sistema legal original e altamente complexo que contem
não apenas normas do Novo Testamento, mas também elementos chave das
tradições legais dos Hebreus (Velho Testamento), Romanos, Visigotos, de
Saxões, e Celtas.

   Na Igreja Católica Romana, as leis eclesiásticas positivas, baseadas na leis


divina e natural imutáveis, ou circunstâncias modificáveis e meramente leis
positivas, derivam autoridade formal e promulgação da figura do Papa, cuja
pessoa concentra a totalidade dos poderes legislativo, executivo e judiciário na
qualidade de Sumo Pontífice. Nesse sentido, a máxima "Roma locuta est,
causa finita est".

   No decorrer dos séculos, o direito em tela tem sido objeto de várias
codificações, notadamente o Corpus Juris Canonici, promulgado em 1917,
constituído de todas as leis reguladoras da ação religiosa católica, e do Codex
Juris Canonici promulgado em 1918, onde se inscreve todo direito aplicável às
Igrejas Latinas.

   Para finalizar esse tópico, é salutar mencionar que mesmo nos Estados da
Igreja, antes do seu desaparecimento em 1870, houve sempre um direito civil
distinto do direito canônico e hoje o mesmo ocorre no Estado do Vaticano.

3.2. IGREJA ORTODOXA:

4 / 21
Direitos religiosos

   Denomina-se Igreja Ortodoxa o grupo de igrejas orientais católicas que


aceitam somente os primeiros sete concílios ecumênicos. Sua hierarquia se
subdivide respectivamente em: Patriarca, Bispo, Padre e Diácono

   O Cisma de 1054 marca a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja
Ortodoxa, as quais por mil anos permaneceram unidas. São múltiplas e
complexas as razões psicológicas, políticas, culturais, disciplinares, litúrgicas e,
inclusive dogmáticas, que resultaram na separação do mundo mediterrânico em
entidades políticas distintas.

   A diferença fundamental entre a Igreja Ortodoxa e a Romana é a questão da


infalibilidade papal (em hipótese alguma a Igreja Ortodoxa admite a infalibilidade
do Bispo de Roma, pois considera a infalibilidade uma prerrogativa de toda a
Igreja e não de uma só pessoa) e a pretensa supremacia universal da jurisdição
de Roma (a Igreja Ortodoxa não concorda com a supremacia universal do Direito
do Bispo de Roma sobre toda a Igreja Cristã, porque professa que todos os
bispos são iguais, apenas reconhecendo uma primazia de honra ou uma
supremacia de facto - primus inter pares).

   Há outras diferenças dogmáticas, litúrgicas e disciplinares, por exemplo, nos


templos da Igreja Ortodoxa só se permitem ícones (desde o Cisma de 1054 as
imagens de santos foram substituídas por ícones, considerados janelas para
Deus). Além disso, a liturgia da missa é mais demorada do que a católica
recorrendo a mais cultos, conforme o rito bizantino, e os fiéis participam da missa
em pé. São igualmente distintas as concepções teológicas acerca de religião,
Igreja, encarnação, Graça, imagens, escatologia, sacramentos, culto dos santos,
infalibilidade, Estado religioso, etc.(5)

   Existe uma polêmica muito grande criada por certos historiadores e teólogos
que sustentam a tese de que a Igreja Católica Ortodoxa teria conservado os Dez
Mandamentos da Lei de Deus na sua forma original, sem a menor alteração, o
mesmo não tendo ocorrido com o texto adotado pela Igreja Católica Apostólica
Romana, no qual os Dez Mandamentos teriam sido arbitrariamente alterados,
eliminando completamente o segundo mandamento e o último dividido em duas
partes, formando dois mandamentos distintos (tal modificação teria sido
introduzida pelos papas romanos motivada pelo Renascimento das artes). Essa
suposta alteração constituiria num dos maiores erros teológicos desde que a
Igreja Romana cindiu a união com a Igreja Ortodoxa no século XI.

5 / 21
Direitos religiosos

   Ademais, a tradição ortodoxa cristã geralmente trata seus cânones mais como
linhas de orientação do que como leis, ajustando-os a cultura e outras
peculiaridades locais. Algumas escolas ortodoxas defendem que se os Conselhos
Ecumênicos quisessem usar os cânones como leis, eles teriam empregado a
palavra nomoi/??µ?? (lei) ao invés de kanones/?a???e? (padrão) para
denominá-los. Assim, os ortodoxos coletaram cânones e comentários num
trabalho conhecido como Pedalion/?eda????. Mas, eles não passam de medidas
padrão ou as opiniões efêmeras baseadas em circunstâncias e condições
particulares de tempo e espaço, não sendo eternas ou infalíveis, nem possuindo
o status de gospel.

   A Igreja Ortodoxa se desdobra em: a) Igreja Ortodoxa Sérvia, b) Igreja


Ortodoxa Grega, c) Igreja Ortodoxa Russa (a mais conhecida), abrangendo
Rússia, Grécia, Romência, Ucrância, Síria. Mesmo tais Igrejas diferem entre si
quanto à língua litúrgica, ritos e calendário de comemorações.

3.3. IGREJA ANGLICANA:

   A Igreja Anglicana, também chamada Igreja de Inglaterra (Church of England)


é a Igreja cristã estabelecida oficialmente na Inglaterra sendo o tronco principal
da Comunhão Anglicana Mundial.

   Seu background remonta a querela do rei Henrique VIII, da dinastia dos Tudor,
com o Papa Clemente VII. O desejo do rei em ter um herdeiro para a Coroa (só
tinha uma filha, a futura Maria I da Inglaterra) e seu affair com Ana Bolena,
levaram-no a procurar a dissolução do casamento com Catarina de Aragão junto
ao Vaticano, mas suas tentativas não lograram êxito porque o Papa Clemente VII
estava sofrendo pressão do sobrinho de Catarina, o imperador Carlos V.

   Diante dessa circinstância, Henrique VIII ignorou a lei canônica que o impedia
de se unir a outra mulher e contraiu matrimônio com Ana Bolena. Tal atitude de
afronta à Igreja Católica Romana motivou o Papa Clemente VII a declarar a
excomunhão do rei. Então, o monarca em tela decidiu pelo rompimento com a
Igreja Católica Romana, declarando a dissolução dos mosteiros, tomando assim
muitos haveres da Igreja, e formando a Igreja Anglicana (Church of England), da
qual se declarou líder. Essa decisão se tornou oficial com o decreto da
supremacia (Act of Supremacy) de 1534.

   Esta separação, embora tenha se sucedido motivada por interesses pessoais e

6 / 21
Direitos religiosos

políticos, era um antigo sonho da Igreja de Inglaterra, que nunca havia aceitado
como ponto pacífico a dominação Romana. Logo, não se pode atribuir a Henrique
VIII o titulo de fundador da Igreja Anglicana. Este processo de separação, em
meio à Reforma Protestante, não simbolizava o surgimento de uma nova Igreja,
mas sim a alforria definitiva de uma Igreja Cristã que se desenvolvia desde o
século III d.C.

   Contemporâneamente, a Igreja de Inglaterra é liderada espiritualmente pelo


Arcebispo da Cantuária. O monarca britânico detem o título de "Defensor da
Fé" e "Governador da Igreja de Inglaterra", possuindo
autoridade formal sobre a Igreja de Inglaterra, mas não sobre outras igrejas no
exterior da Comunhão Anglicana.

   O Sínodo Geral é seu braço legislativo, cujas resoluções devem ser aprovadas
pelo Parlamento, porém esse não pode fazer emendas.

   Na Igreja Anglicana de Inglaterra, as Cortes Eclesiásticas que anteriormente


decidiam inúmeras matérias relacionadas à união matrimonial, divórcio,
testamentos, e difamação, têm ainda o jurisdição de determinadas matérias
concernentes a Igreja (por exemplo, disciplina do clero, alteração da propriedade
da igreja, etc.). Em contraste com outras Cortes da Inglaterra, a lei usada em
matérias eclesiásticas é ao menos parcialmente um sistema de lei civil, não da
common law, embora governado severamente por estatutos do Parlamento.
Desde o Reforma, as Cortes Eclesiásticas na Inglaterra são Cortes Reais. O
ensino do direito canônico nas universidades de Oxford e de Cambridge foi
revogado pelo rei Henrique VIII.

   Apesar de ser a primeira Igreja da Comunhão Anglicana, a Igreja de Inglaterra


não é a única, existindo outras no derredor do mundo, tais como a Igreja
Episcopal nos Estados Unidos da América e a Igreja Anglicana do Canadá que
funcionam sob seus próprios sistemas confidenciais de leis canônicas. Vale
ressaltar que atualmente a África é o continente onde o anglicanismo mais
cresce.

4. DIREITO MUÇULMANO:

   O Direito Muçulmano é basicamente baseado num modelo de direito canônico


que teve como fonte principal de existência o costume e tradições do povo
islâmico. Assim, o direito muçulmano está intrinsecamente ligado à religião e é

7 / 21
Direitos religiosos

um aspecto desta, sem existência independente. Destarte, o direito muçulmano


não é um ramo autônomo da ciência, mas sim uma das faces da religião islâmica.
Esta compreende a teologia e o char' ou châr'ia. A primeira fixa os dogmas e
determina aquilo em que o muçulmano deve acreditar. O segundo, por sua vez,
prescreve aos crentes aquilo que devem ou não fazer (preceitos emanados do
Islã). Assim, o char'ia (o caminho a seguir) constitui o direito muçulmano.

   Nesse sentido, o direito muçulmano é o direito da comunidade religiosa


islâmica, isto é, o direito que rege todos os adeptos da religião islâmica, onde
quer que se encontrem. Trata-se, portanto, do direito de um grupo religioso, e
não do direito de um país.

   O direito muçulmano pouco se preocupa com a sanção das regras que
prescreve, pois a verdadeira sanção das obrigações que se impõe ao crente é o
estado de pecado do que as contraria. Logo, é um direito que se aplica apenas
às relações entre muçulmanos.

   A ciência do direito muçulmano (fiqh) comporta uma grande divisão, estudando
as "raízes" (ouçoul) para explicar a origem do char' (Lei divina) e os
"ramos" (fouroû), que constituem as regras e categorias do direito
muçulmano.

   As fontes do direito muçulmano são quatro. Primeiramente, o Corão, livro


sagrado do Islã; em segundo lugar, a Suna, ou tradição relativa ao Enviado de
Deus; e terceiro lugar o Idjmâ, ou acordo unânime da comunidade muçulmana; e
em último, o Qiyâs, ou raciocínio por analogia.

   O Corão (Qorân) é o livro sagrado do Islã, constituído pelo conjunto de


revelações de Alá ao último dos seus profetas e mensageiros, Maomé.
Compreende cerca de cinco mil versículos agrupados em cento e catorze
capítulos. Nele encontramos o fundamento do direito muçulmano e de toda a
civilização muçulmana.

   Não é um livro de direito, e sim uma mistura de história sagrada e profana, de


aforismos filosóficos, de regras referentes a rituais. Apenas cerca de um décimo
dos versículos pode ser usado para elaborar o fiqh . Os parcos princípios
jurídicos que se podem deduzir do Alcorão relativo às finalidades políticas
prosseguidas por Maomé; as regras impostas tendem a uma maior moralidade;
os juízes devem procurar o que é justo; as sanções previstas são na maior parte

8 / 21
Direitos religiosos

penas sobrenaturais, sobretudo o inferno.

   Portanto, as disposições de natureza jurídica que contém são muito


insuficientes para regular as relações entre os muçulmanos, não mencionando
instituições fundamentais do islã.

   A Suna ou tradição é a segunda fonte do direito muçulmano. É constituída pelo


conjunto de atos, comportamentos e palavras de Maomé, tal como foram
relatados por seus discípulos (h'adith). Pode-se comparar a Suna aos
Evangelhos dos Cristãos, que narram a vida de Jesus, visto que aquela relata a
maneira de ser e de se comportar do Profeta, devendo servir para orientar os
crentes.

   A terceira fonte do char'ia é o "Idjmâ", isto é, o acordo unânime da


comunidade dos muçulmanos. Para suprir a insuficiência do Corão e da Suna,
que não poderiam, evidentemente, solucionar todas as questões, se desenvolveu
o dogma da infalibilidade da comunidade muçulmana quando esta exprime um
sentimento unânime. O Idjmâ tem como fundamento duas máximas de Maomé:

   "A minha comunidade nunca chegará a acordo sobre um erro".

   "O que os muçulmanos considerarem justo é justo para deus".

   Na realidade, o Idjmâ não requer o acordo da multidão dos muçulmanos,


sendo suficiente o acordo unânime dos doutores da lei. Nessa direção, é o
escólio de René David:

   "Para que uma regra do direito seja admitida pelo Idjmâ não é necessário
que a multidão de crentes lhe dê a sua adesão ou que corresponda ao
sentimento geral de todos os membros da comunidade. O Idjmâ nada tem a ver
com o costume do nosso direito. A unanimidade exigida é a das pessoas
competentes, daquelas cuja função própria é destacar e revelar o direito: os
jurisconsultos do islã. Os sábios são os herdeiros dos profetas; o acordo dos
doutores e jurisconsultos do islã, amalgamando a tradição, o costume e a prática
para reconhecer uma regra de direito, um princípio ou uma instituição, confere à
solução jurídica que eles admitem unanimemente uma incontestável força de
verdade jurídica." (6)

   É imperioso acrescentar que, embora o Idjmâ seja a interpretação infalível e

9 / 21
Direitos religiosos

definitiva do Alcorão e da Suna, não se exige uma unanimidade completa de


interpretação, podendo haver divergências relacionadas a aspectos secundários,
o que se adequa perfeitamente a uma máxima atribuída a Maomé, segundo a
qual "as divergências de opinião que reinam na minha comunidade são
uma manifestação da graça de Deus". As divergências de interpretação,
portanto, são possíveis porque existem vias, ritos ou escolas diferentes para se
atingir a verdade. Os ritos do direito muçulmano, como, por exemplo, os ritos
ortodoxos ou Sunitas e o rito chiita, compartilham os mesmos princípios, diferindo
apenas em questões detalhistas.

   O mestre René David ressalta a importância prática do Idjmâ, quando afirma
que o Corão e a Suna, apesar de serem fontes fundamentais do direito
muçulmano, desempenham hoje tão-somente o papel de fontes históricas. Os
magistrados, por conseguinte, já não têm "de consultar o Corão e a Suna,
porque uma interpretação infalível e definitiva foi fornecida pelo Idjmâ".
Nesse diapasão, prossegue o mesmo autor, são "apenas os livros de figh,
aprovados pelo Idjmâ, que devem (…) ser consultados nos nossos dias para
conhecer o direito muçulmano". O Idjmâ constitui, na atualidade, a única
base dogmática do direito muçulmano.

   Como derradeira fonte do direito muçulmano está o Qiyâs, ou raciocínio por


analogia.

   Com o intuito de suprir as lacunas deixadas pelas três fontes do direito até aqui
estudadas, admitiu-se o caráter lícito do raciocínio por analogia como fonte do
direito muçulmano.

   O raciocínio por analogia só pode ser considerado como um modo de


interpretação e de aplicação do direito. Não se pode criar regras fundamentais,
de valor absoluto, comparáveis ao do corpo tradicional fixado no século X, pois o
direito muçulmano se baseia no principio da autoridade. Para o jurista muçulmano
apenas pode se tratar de interpretação, não de criação do direito:
Rechtsauslegung, não Rechtsfindung. Assim, o legalista muçulmano é diferente
do common lawyer e do jurista do sistema românico.

   Desse modo, o raciocínio por analogia permite, na maioria da vezes, descobrir


a solução para um caso particular concreto partindo das regras do fiqh.

   Além disso, é salutar ressalvar que o fato de a ciência do direito muçulmano ter

10 / 21
Direitos religiosos

se formado e estabilizado na Alta Idade Média explica algumas de suas


características: o caráter laico de certas instituições, ausência de sistematização
e aspecto casuístico. No entanto, o fundamental é perceber a total originalidade
que o direito muçulmano apresenta, em face de sua própria natureza, em relação
aos demais sistemas de Direito em geral e do direito canônico em especial. É
nesse contexto que se compreende como a prática muçulmana se encontra na
origem de determinadas instituições do Direito Comercial (v.g. Aval e Cheque).

   Não se pode olvidar também que a despeito de uma aparente rigidez, o direito
muçulmano é capaz de se adaptar às condições e exigências do mundo
moderno. Ocorre que apesar de ser imutável, o direito muçulmano é flexível, pois
deixa um vasto campo de aplicação ao costume, à convenção das partes, à
regulamentação administrativa, possibilitando a tal direito chegar a soluções que
permitam constituir uma sociedade moderna. Apenas como forma da exceção
que confirma a regra é que o caráter arcaico de certas instituições e/ou regras
pode causar algum tipo de embaraço.

   Por sua vez, no que tange o Estado Islâmico, a responsabilidade pela


administração do Governo é atribuída a um Amir (chefe) que corresponde ao
Presidente ou ao Primeiro-Ministro de um Estado-Nação democrático moderno.
Todos os homens adultos e todas as mulheres adultas que acreditem nos
fundamentos da Constituição tem o direito de votar para eleger o chefe.

   Para ser eleito, o Amir deve ter virtude e capacidade. Assim, ganhar a
confiança da maioria das pessoas nos seus conhecimentos e no seu
entendimento do espírito do Islã e possuir os atributos islâmicos do temor de
Deus e mostrar qualidades de bom político estão entre as qualidades básicas que
ele deve reunir.

   A Shura (Conselho Consultivo) deve também ser eleita pelo povo para ajudar e
guiar o Amir na administração do Estado. Logo, compete ao Amir, administrar o
país com a ajuda dos conselhos desta Shura.

   Dessa forma, o Amir terá a autoridade de governar e exercer os poderes do


Governo, com o auxílio da Shura e dentro dos limites previstos pelo châr'ia,
somente enquanto detiver a confiança do povo, sendo obrigado a desistir da
função quando perdê-la.

   Todo cidadão tem pleno direito de criticar o Amir e seu respectivo governo,

11 / 21
Direitos religiosos

dispondo de todos os meios razoáveis para mobilizar a opinião pública.

   Em um Estado Islâmico, a legislação fica circunscrita aos limites prescritos pela
lei do châr'ia. Os mandamentos de Deus e do Seu Profeta serão aceitos e
obedecidos, e nenhum órgão legislativo poderá operar neles alguma alteração ou
modificação, nem promulgar lei que os rejeite.

   Já no que se refere àqueles mandamentos passíveis de duas ou mais


interpretações, o dever de esclarecer a verdadeira intenção do châr'ia competirá
à um sub-comitê do Conselho Consultivo formado por pessoas especializadas no
direito islâmico.

   Entretanto, ainda resta um enorme campo à disposição da legislação, que diz


respeito a assuntos não abordados por nenhum mandamento específico do
châr'ia; e o conselho consultivo e a legislação terão a liberdade de elaborar as
leis concernentes a tais matérias.

   No Islã, o Poder Judiciário não está sujeito ao controle pelo Poder Executivo. A
sua autoridade emana diretamente do châr'ia e é responsável perante Deus.
Apesar dos juízes serem nomeados pelo Governo, uma vez que estejam no
exercício da função, terão que julgar com imparcialidade de acordo com a lei de
Deus. Ademais, os Órgãos e os funcionários do Governo não saem de sua esfera
de jurisdição legal, de tal sorte que mesmo a mais alta autoridade executiva do
Governo é susceptível de ser citada para comparecer ao tribunal na qualidade de
demandante ou acusado, igual a qualquer outro cidadão. Ou seja, dirigentes e
dirigidos estão sujeitos à mesma lei, não havendo (teoricamente) discriminação
com base na posição, poder ou privilégio. Quer dizer, o sistema social do Islã se
baseia na convicção de que todos os seres humanos são iguais, constituindo
uma irmandade una.

   Como se vê, a concepção que norteia o islã é a de uma sociedade teocrática,


na qual o Estado não tem valor senão como servidor da religião revelada. O islã
é, essencialmente, como o judaísmo, uma religião da Lei.

   Ex positis, conclui-se que o direito muçulmano começou como a lei do Estado
e da comunidade governante, servindo aos propósitos dessa comunidade
enquanto o domínio muçulmano cresceu em dimensões e se estendeu desde o
Atlântico ao Pacífico. Ele detinha capacidade inerente para se desenvolver e se
adaptar às contingências do tempo e do clima, não perdendo o seu dinamismo

12 / 21
Direitos religiosos

nem mesmo nos dias atuais. De fato, o direito muçulmano se encontra recebendo
um crescente reconhecimento como força ativa para o bem dos países
muçulmanos, que estiveram sob o jugo político-jurídico estrangeiro, e que
hodiernamente estão tentando reintroduzir o châr'ia em todos os aspectos da
vida.

5. DIREITO NA ÍNDIA:

   Segundo a Arqueologia, a primeira grande cultura existente no território da


atual Índia(7) foi a civilização centrada em torno das três Cidades-Estados de
Mohenjodaro, Harappa e Chanhudaro e que se localizava nas imediações do Rio
Indo.

   Tal civilização, fora destruída por volta de 1.500 a. C., em função da invasão e
conquista de grande parte do atual território indiano por um grupo étnico que se
auto-identificava como "arianos" e falava um idioma indo-europeu: o
sânscrito. Dessa conquista e colonização ariana da atual Índia, cujos pálidos
ecos podem ser inferidos no mais antigo documento literário indiano (o Rig Veda),
nasceu a Civilização Hindu atual.

   Durante a Dinastia Mauria (séculos IV a.C. - III a.C.) foi estabelecido o Primeiro
Império Hindu, o qual representa o apogeu da cultura clássica hindu devido suas
realizações políticas, artísticas e científicas e marco embrionário de diversos dos
aspectos essenciais da sociedade hindu atual.

   No transcorrer do século X da Era Cristã, vastas porções territoriais do Leste,


Norte e segmentos da região central da atual Índia foram ocupadas por
conquistadores de fé islâmica, ocasionando a conversão de parcelas
significativas da população ao credo muçulmano. Desse fenômeno histórico
deriva, nos presentes dias, um dos mais graves problemas da Índia, qual seja, os
violentos conflitos étnico-religiosos entre a maioria hindu e a minoria muçulmana,
particularmente no território da atual Caxemira Hindu.

   Ao longo da segunda metade do século XVIII, a Inglaterra assumiu


gradativamente o controle sobre a atual Índia aproveitando-se do declínio do
Império Mogul então estabelecido no território daquele país. De fato, os mongóis
de fé muçulmana jamais conseguiram se integrar totalmente à cultura hindu, em
grande parte devido a sua origem etno-cultural indo-persa, completamente
diferente das tradições culturais e religiosas hindus.

13 / 21
Direitos religiosos

   Considerada "a mais bela jóia da Coroa Britânica", a Índia só


conquistou sua independência política na segunda metade do século XX , graças
aos esforços hercúleos de uma das figuras mais notáveis da última centúria,
Mahatma Gandhi.

   No que tange ao direito na Índia, não se pode confundir o direito hindu com o
direito indiano, que é o direito territorial da Índia enquanto país; o direito indiano é
constituído, sobretudo por leis da República Indiana, teoricamente aplicado a
todos os habitantes do território; mas na verdade, em vários domínios, os direitos
das comunidades religiosas subsistem, seja o direito hindu, seja o direito dos
Muçulmanos, seja o dos Cristãos, etc."

   Berço do hinduísmo, budismo, sikismo e jainismo, a Índia chama a atenção


porque sua religião predominante - o Hinduísmo - traz em seu bojo estruturas de
Direito (dharma) e de Justiça próprias, sendo que essas estruturas ainda
perduram para grande parte da população com bastante vigor e convivem com o
Direito e a Justiça estatais disputando espaço.

   Justamente essa coexistência entre o Direito oficial e o Direito religioso é a


peculiaridade jurídica da Índia.(8) Senão vejamos:

5.1. DIREITO HINDU:

   O Hinduísmo é o conjunto de princípios, doutrinas e práticas religiosas


dominante na Índia, conhecido dos seguidores pelo nome sânscrito Sanatana
Dharma, que significa a ordem permanente. Baseia-se nos Vedas (conhecimento,
em sânscrito), textos sagrados compostos de hinos de louvor e ritos. Suas
principais características são o politeísmo e a crença na reencarnação. Além
disso, o hinduísmo distingue quatro metas na vida humana, a saber: kama
(prazer físico), artha (prosperidade), dharma (condutas e deveres morais
definidos pela casta do indivíduo e pelo dharma universal) e moksha
(iluminação)(9).

   Nessa conjuntura, o hinduísmo é a terceira religião do mundo em número de


praticantes e seus preceitos influenciam extremamente a organização da
sociedade indiana.(10)

   Com se vê, quanto ao Direito religioso sua maior expressão se consolida no


Direito hindu, pois a maioria da população é adepta do hinduísmo, sendo

14 / 21
Direitos religiosos

representado pelo dharma (conjunto de deveres a serem cumpridos pelos


hinduístas) e pelos costumes, válidos para cada casta e sub-casta
separadamente.

   Destarte, a primeira e mais importante característica do direito hindu é que ele


se constitui num direito de substrato religioso, embora não seja um direito oriundo
de uma "fé revelada", como é o direito muçulmano.

   O direito hindu é o direito da comunidade que, na Índia ou em outros países do


sudeste asiático, adere ao hinduísmo. Consiste num sistema jurídico composto
de normas extra-estatais de composição dos litígios sociais, notadamente as de
cunho religioso. Por ser um sistema legal de origem religiosa o direito hindu
pretende ir além e acima do Estado laico, ou seja, é um direito cujas normas são,
exclusivamente, voltadas para a sua comunidade étnico-religiosa.

   Assim como o direito muçulmano, o direito hindu é um direito extremamente


conservador e que não incentiva mudanças sociais abruptas. Quer dizer, o direito
hindu se fundamenta numa visão hierarquizada da sociedade e, por conseguinte,
os princípios legais que regem esse sistema jurídico estão longe de propiciar um
tratamento jurídico-legal igualitário.

   A palavra "direito", no significado que os ocidentais conhecem, não


existe em sânscrito; logo os hindus não estão familiarizados com o conceito de
regras de comportamento sancionadas por constrangimento físico e/ou
pecuniário.

   As regras que regulam o comportamento dos homens estão expostas em


obras chamadas sastras, de três espécies distintas: dharma, artha e kama.

   O que corresponde melhor à noção ocidental de direito é o dharma, o qual


pode ser traduzido como "dever". O dharma é o conjunto das regras
que o ser humano deve seguir em razão da sua condição social, isto é,
obrigações que se impõem aos homens por derivarem da ordem natural das
coisas.

   Por sua vez, as fontes do dharma são três, a saber: 1) o Veda(11) que, em
suma, é o somatório de todo o saber ou verdades de cunho moral e religioso
reduzidos a determinados preceitos escritos contidos nos livros sagrados, dos
quais o mais importante é o Rigveda; 2) a tradição; 3) o costume(12).

15 / 21
Direitos religiosos

   A Justiça hindu é representada por "assembléias" dentro de cada


casta e sub-casta.

   Outro aspecto relevante é que a área abrangida pelo Direito hindu está cada
vez menor(13). Primeiramente porque só diz respeito aos adeptos do hinduísmo,
e, segundo, porque somente tem validade para certas relações jurídicas,
mormente sobre Direito de Família.

   Mesmo depois da elaboração dos textos de leis modernas sem base religiosa,
o costume é aplicado quando não se procuram os Tribunais e Cortes estatais.
Essas leis também prevêem exceções em favor dos costumes.

   Na realidade, ocorre que a maioria hindu não aceita a questão da igualdade e
mobilidade sociais, uma vez que naquele país se fixou a crença de que cada um
deve viver no nível em que nasceu por deméritos de vidas pretéritas (caso dos
membros das castas mais desprestigiadas) ou méritos de vidas passadas (para
os membros das castas mais elevadas) para que uns e outros alcancem o
paraíso após a morte. Trata-se da crença no fatalismo, na Justiça Divina.

   Após a edição da Constituição da Índia em 1950, talvez a conquista mais


importante a ser alcançada seja o reconhecimento da igualdade entre as pessoas
como meio de solucionar os demais problemas que dele derivam.

5.2. DIREITO INDIANO:

   O Direito e a Justiça estatais são o resultado de cerca de dois séculos de


influência direta da Inglaterra, com adaptações indígenas, alguma interferência
da França, Holanda e Portugal (todos países colonizadores) e a natural evolução
posterior à independência do país.

   A tendência atual na Índia é substituir o conceito tradicional de direito religioso


(direito hindu, direito parsi, direito muçulmano, direito canônico) pelo conceito
ocidental de direito: laico (autônomo à religião) e de aplicação nacional. De fato, a
criação de um Estado moderno e eficiente, bem como a instituição de uma
verdadeira Democracia num país de mais de um bilhão de pessoas, com a
correspondente superação das enormes desigualdades sociais, econômicas e
étnico-culturais, demanda a criação de um sistema jurídico laico de abrangência
nacional.

16 / 21
Direitos religiosos

   Nesse sentido, o atual direito indiano é, antes de mais nada, um sistema


jurídico de origem estatal que extrapola as diversas etnias e comunidades
religiosas que formam a Índia contemporânea para ser um Direito supra-étnico e
desvinculado desta ou daquela fé religiosa. Mas, o que salta aos olhos no que
concerne ao Direito e a Justiça estatais contemporâneas é a flagrante procura
pela igualdade social e pelo ideal do justo nos processos, inclusive dispensando
muitas regras consagradas do Direito Processual.

   Destarte, esse direito nacional da Índia compreende todas as leis do país que
são, em princípio, de aplicação geral, mesmo quando disposições particulares
destas leis as declaram inaplicáveis a determinadas categorias de cidadãos. Por
exemplo, o Indian Succession Act, é tido como integrante do direito indiano,
embora esteja disposto expressamente nesta lei que, exceto certas disposições,
ela não se aplica aos hindus, muçulmanos, budistas e parsis, e também não se
aplica a maior parcela da população da Índia em toda matéria referente às
sucessões ab intestato.

   Além disso, não se pode olvidar que direito laico de aplicação nacional da Índia
é baseado em grande parte no common law(14), já que a Constituição de 1950
proclamou a manutenção em vigor do direito anterior (art.372). Logo, a Índia
continua a pertencer a Commonwealth, permanecendo um país de common law.
Entretanto, a ligação com o direito inglês foi bastante reduzida, apresentando o
direito indiano, no interior da common law, uma inquestionável originalidade,
principalmente em matéria de direito constitucional.

   Ademais, vale ressaltar que o Serviço Judiciário da Índia galgou um patamar


de boa reputação graças a sua coragem e espírito de independência, avançando
por "novas fronteiras" dentro da ação judiciária, e contando com a
confiança e consideração da população.

   Por fim, à luz de tudo o que foi exposto, a situação do Direito na Índia pode ser
sintetizada como uma situação de extremos opostos: de um lado o hinduísmo
pregando uma vida de conformação fatalista e principalmente aos pobres sua
aceitação à indigência para merecer reencarnações mais felizes (direito hindu) e
sua Justiça interna ("assembléias" de casta) punindo os membros
inadaptados, e, de outro, o Direito estatal legislando sobre direitos e deveres de
todos e a Justiça estatal lutando pela abolição das desigualdades abissais.

6. CONCLUSÃO:

17 / 21
Direitos religiosos

   A religião sempre foi usada como desculpa para legitimar e justificar inúmeras
guerras ao longo da história. Desde o tempo das Cruzadas até os
homens-bomba e ataques terroristas da atualidade, a intolerância religiosa tem
colocado em risco o futuro da humanidade como conhecemos, pondo em rota de
coalizão as civilizações ocidentais e orientais, acarretando um inevitável choque
entre culturas, valores e religiões tão discrepantes. Os ataques terroristas de
Osama Bin Laden as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York
(símbolo do capitalismo norte-americano) e ao Pentágono (símbolo do poderio
militar daquele mesmo país) em 11 de setembro de 2001 são os expoentes
máximos dessa alarmante situação.

   É insuficiente uma profícua e combativa legislação para enfrentar o problema


que, na essência, possui raízes emocionais e sociais. Já faz tempo que as
sociedades liberais modernas compreenderam a importância de normas jurídicas
e constitucionais que expressem um compromisso com a liberdade religiosa e
com a igualdade de cidadãos que professam outros credos. Contudo, apesar da
codificação jurídica ser essencial, Constituições e leis não se implementam
sozinhas, e as normas públicas não são eficazes na ausência de reforços
educativos e culturais. Todavia, os governos têm se esquecido de seu papel na
garantia e na valorização dessa tolerância.

   Destarte, compete à própria sociedade civil refletir sobre como a retórica (tal
como a poesia, a música e a arte) poderia estimular o pluralismo e a tolerância.
Nesse diapasão, o papel das lideranças dos movimentos pelos direitos civis é
primordial.

   Por séculos, pensadores liberais se concentraram nas garantias jurídicas e


constitucionais para a tolerância, negligenciando o cultivo público da emoção e
da imaginação. Porém, existe um custo nessa desconsideração da retórica pelos
liberais, a saber: todos os Estados modernos e seus líderes transmitem
concepções de igualdade ou desigualdade religiosa por intermédio da linguagem
e das imagens com que se comunicam.

   Como se vê, a religião vai continuar sendo uma das mais graves questões
políticas dos próximos tempos, inclusive nas mais sólidas democracias.

   Diante desse futuro atemorizante e nebuloso, no qual a última "janela de


esperança" para a raça humana parece estar prestes a se fechar, só nos
resta ficar com as sábias e proféticas palavras do primeiro presidente e

18 / 21
Direitos religiosos

"pai" dos Estados Unidos da América, General George Washington,


ao se dirigir à comunidade quacre em 1789. É essa vertente de seu pensamento
que nos ensina, ainda hoje, a filosofar a golpes de martelo:

   "As objeções de consciência de todos os homens merecem ser tratadas


com o maior tato e cuidado".

7. BIBLIOGRAFIA:

• ALVES, Ricardo Luiz. O direito hindu e o direito indiano . Jus Navigandi,


Teresina, ano 8, n. 445, 25 set. 2004. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. Acesso em: 01 out. 2007.
• ANDRADE, André Luis Buchman de. Direito Canônico. Disponível em:
www.presbiteros.com.br. Acesso em: 11 out. 2007.
• BUROW, T.: The Aryan Invasion of Indian. In: Cotterell, Arthur (editor): The
Penguin Encycopledia of Ancients Civilizations. Reino Unido: Penguin Books, /c.
1980/.
• DAVID, René: Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 4. ed.
Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002.
• DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 17.ed. Rio de Janeiro: Forense,
2000.
• DIREITO comparado: os três poderes no direito brasileiro, britânico e
muçulmano. Disponível em: http://br.geocities.com/dtocomparado.doc. Acesso
em: 12 out. 2007.
• GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito. 2ª. ed. Tradução de A. M.
Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1995.
• MARQUES, Luiz Guilherme. A Justiça e o Direito da Índia. Jus Navigandi,
Teresina, ano 8, n. 160, 13 dez. 2003. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4552. Acesso em: 01 out. 2007.
• THAPAR, Romila e SPEAR, Percival: A History of India. 2 volumes. Reino
Unido: Penguin Books, sem data.

Notas:

• 1 - Enquanto os parsis heterodoxos defendem que o termo "Parsi"


denota raça e o termo "zoroastra" denota religião, os parsis ortodoxos
sustentam que ambos os termos são sinônimos podendo ser usados
alternadamente.

19 / 21
Direitos religiosos

• 2 - Fonte: site www.wikipedia.com.br


• 3 - O Código de Direito Canônico atual foi promulgado em 1983.
• 4 - Não confundir a Igreja Católica com a Igreja Católica Latina, a qual é uma
das 23 Igrejas autônomas integrantes da Igreja Católica (fonte: site
www.wikipedia.com.br).
• 5 - Podem-se citar algumas outras diferenças: a) a Igreja Ortodoxa só admite
sete Concílios, enquanto a Romana adota vinte; b) a Igreja Ortodoxa nega a
existência do limbo e do purgatório; c) a Igreja Ortodoxa não admite a existência
de um Juízo Particular para apreciar o destino das almas, logo após a morte, mas
um só Juízo Universal; d) a Igreja Ortodoxa não admite a existência de
indulgências; e) os sacerdotes ortodoxos podem optar livremente entre o celibato
e o casamento, f) a Igreja Ortodoxa é governada tendo Jesus Cristo como o
supremo primaz, que atua através do Espírito Santo através do conceito de
"sobornost" - consenso. (Fonte: site
www.fatheralexander.org/booklets/portuguese/a_ortodoxia.htm)
• 6 - (David, René: Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Página
516).
• 7 - Cronologia sumária da história da Índia: a) aproximadamente 1.500 A.C.:
Invasão das tribos arianas da Índia, dando início a Civilização Hindu; b)
1498-1510: Inicia-se o contato direto entre a Europa e a Civilização Hindu com a
chegada dos portugueses ao território da atual Índia com a expedição
capitaneada pelo português Vasco da Gama em 1498; c) 1526-1707: Período da
Dinastia Mogul na atual Índia; d) 1612: Começo da colonização inglesa da Índia
coma instalação de entrepostos comerciais ingleses no território hindu,
particularmente nos litorais leste e oeste daquele país; e) 1746-1763: Luta entre
forças militares inglesas e francesas pelo domínio da atual Índia. Pelo Tratado de
Paris (1763) a Grã-Bretanha assegura a posse da maior parte do território do
subcontinente indiano; f) 1850-1930: Ápice do domínio inglês na Índia; g) 1947:
Independência da Índia.
• 8 - Essa coexistência existiu na Idade Média européia, onde ao lado do Direito
e da Justiça estatais, estavam presentes o Direito e a Justiça da Igreja Católica.
• 9 - As quatro metas têm relação com quatro fases da vida ou ashramas, do
nascimento à morte: na infância, estudar os Vedas e preparar-se para a vida;
posteriormente, casar-se e constituir família; aposentar-se do trabalho e
desligar-se das posses materiais; e, na velhice, focar-se na busca religiosa.
• 10 - Conforme os Vedas, o ser humano está preso a um ciclo eterno de morte
e renascimento, denominado samsara, pelo qual está fadado a reencarnar e a
sofrer em infinitas vidas. As reencarnações, na forma de ser humano ou animal,
são regidas pelo carma, preceito de acordo com o qual o modo como

20 / 21
Direitos religiosos

renascemos em nossa vida atual foi definida na vida anterior, pelo estágio
espiritual que alcançamos e os atos que nela praticamos. O hindu pleiteia
fundir-se a Brahman (a verdade suprema, espírito que rege o Universo), o que só
é possível se libertando do samsara através da purificação de seus infinitos
carmas, atingindo o estágio conhecido como nirvana (a sabedoria resultante do
conhecimento de si mesmo e do universo). O caminho para o nirvana passa
pelas práticas religiosas, pelas orações e pela ioga, porém vários hindus adotam
igualmente dietas vegetarianas e o ascetismo (renúncia aos bens e prazeres
materiais) para atingi-lo. Os textos sagrados do hinduísmo são: os Vedas (mais
antigo), os Puranas (narrativas sobre a tríade divina Brahma, Shiva e Vishnu, as
festas e condutas do hindu), o Mahabharata (O Grande Combate dos Bharata),
poema que se refere a luta do bem e do mal, aos cultos a Shiva e Vishnu e as
lutas entre as tribos hindus; os Upanishads (aulas dos mestres), o Ramayana
(poema sobre o amor de Rama por Sita) e o Código de Manu (normas, regras e
práticas sociais hindus).
• 11 - O Veda representa o somatório de todo o saber ou verdades de cunho
moral e religioso reduzidos a determinados preceitos escritos contidos nos livros
sagrados, dos quais o mais importante é o Rigveda.
• 12 - Existe um número sem fim de costumes, diferentes não só de uma região
para outra, todavia, sobretudo de uma casta para outra.
• 13 - No sul, na região tamul, a lei permanece ineiramente costumeira, sendo
que os dharma-sastras se aplicam somente aos brâmanes, os quais são mestres
da religião, conhecedores das realidades do espírito, que mereceram, pelo
nascimento, ter contato com as obras sagradas do hinduísmo.
• 14 - Nesse diapasão, René David assevera que "os códigos e leis com
que a Índia foi dotada, na época do domínio britânico, são fundados sobre os
conceitos do direito inglês. Estão, porém, longe, de ser uma obra, de simples
consolidação; não se limitaram a expor sistematicamente as regras do direito
anterior; a codificação foi utilizada para reformar o direito." E prossegue
aduzindo que "a independência da Índia não acarretou uma revisão dos
conceitos implantados na época da dominação britânica, nem tampouco colocou
em perigo a obra legislativa realizada." (David, René: Os Grandes Sistemas
do Direito Contemporâneo. Páginas 572, 573 e 577).

Francisco Carlos Távora de Albuquerque Caixeta é Advogado no Pará

Originalmente publicado no Jornal Jurid (http://secure.jurid.com.br), em


23/10/2007

21 / 21

Você também pode gostar