Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
39
40
perpassa a porção oeste de Nasik, Pune, Satara, vales dos rios foram formados pela erosão
Sangli, Kolhapur e segue para o estado de posterior. Esses depósitos geológicos contínu-
Karnataka. A altura média dessa formação os, de natureza vulcânica, costumam apresen-
rochosa fica acima dos 900 m. Serras e estreitos tar uma mudança de padrão na densidade e
numerosos fazem a ligação entre a faixa litorânea estrutura da composição da rocha ígnea,
do Konkan e o planalto do Deccan. A porção decorrente do resfriamento lento do magma
oeste dessa cadeia montanhosa possui alto fundido, que resulta em estratos horizontais
índice pluviométrico que diminui em direção a alternados de maior ou menor dureza.
leste. O clima quente e úmido, da faixa oeste, A distribuição dos conjuntos de grutas
permite a preservação de áreas de floresta com escavadas na rocha e das rotas comerciais está
vegetação densa. A faixa leste, mais seca e com diretamente associada à presença dessa topo-
vales mais amplos, apresenta vegetação rasteira, grafia singular na costa oeste indiana. A cadeia
seus rios correm em direção ao leste ou sudoes- montanhosa Sahyadri funcionava como uma
te e formam vastos cinturões de irrigação barreira natural que dificultava o contato entre
pontilhados por montanhas isoladas. os portos do litoral do Konkan e as cidades do
A topografia da região é formada, em sua platô do Deccan. Assim, as passagens, estreitos
maior parte, por rocha de origem vulcânica. A e vales que ali existiam foram utilizados como
cadeia Sahyadri (Fig. 1), resultante do movi- rotas de acesso para interligar as duas áreas
mento tectônico – diastrofismo –, apresenta geográficas.
aspecto escarpado e intercalado por platafor- As regiões do norte do Konkan, distritos
mas horizontais que dão a essas montanhas e de Thana e Kolaba, e a área adjacente do
vales uma aparência de amplos degraus ou Mawal, porção oeste do distrito de Pune,
terraços. Os picos montanhosos possuem possuíam elementos mais favoráveis à ocupa-
forma de domo, os platôs e as bases planas ção humana – recursos hídricos, terras cultivá-
estão associados a deposições sucessivas de veis e florestas – e, mesmo na época atual, são
camadas horizontais de magma vulcânico. Os as áreas mais populosas de Maharashtra.
Fig. 1. Cadeia montanhosa Sahyadri com as escarpas rochosas de origem vulcânica (Aldrovandi 2004).
41
42
Fig. 2. Mapa das regiões do Konkan e Deccan na costa oeste de Maharashtra com os principais conjuntos de
grutas budistas talhadas na rocha (em Dehejia 1972:12).
tam escarpas colossais. Nesses locais surgiu um montanhas, mas sua localização podia variar de
segundo tipo de fachada, pois era possível talhar acordo com as características específicas da área
as grutas diretamente nas paredes escarpadas sem circunvizinha. Nos casos em que os vilarejos
a necessidade de muito trabalho preliminar – ficassem situados em vales, estuários ou à beira
exemplos desse tipo ocorrem em Ajanta (Fig. 4), mar, as grutas foram construídas na parte mais
Bhaja e Karli. As grutas foram geralmente alta da encosta dos morros; já no planalto, as
talhadas na área central, entre a base e o topo das cidades costumavam ficar acima das grutas que
43
44
foram escavadas nos paredões escarpados das tes em cada conjunto monástico. Enquanto
formações. A natureza da formação rochosa alguns desses monastérios possuem apenas uma
também determinou as dimensões das grutas. Na ou duas grutas – como Chaul II e III, ou
região do Sahyadri-Mawal os monumentos são Gomasi –, outros desses centros – como
geralmente maiores e mais altos que aqueles Kanheri –, têm mais de uma centena de monu-
existentes no Konkan. mentos num único sítio, o que fornece evidênci-
Outra variável importante dessa paisagem as importantes das mudanças na demografia
sagrada refere-se à quantidade de grutas existen- budista durante o desenvolvimento dessa
tradição arquitetônica. As grutas, por sua vez,
apresentam as mais diversas plantas, bem como
(2) Os vocábulos em sânscrito, com exceção dos nomes
funções distintas que variam de salas ou salões
próprios, localidades e obras literárias, foram grafados pelo amplos construídos para abrigar estupas e
sistema “Tokyo-Standard”. imagens – os caityagRha2 (Figs. 5 e 6) –, a
45
Fig. 6. Planta do caityagRha do conjunto monástico de Bhaja, c. 100-70 a.C. (em Huntington 1985:77).
46
Fig. 8. Planta da Gruta 27 do conjunto monástico de Mahad (adaptada de Nagaraju 1981: fig.53).
pequenas celas e unidades de habitação monásti- nichos abertos na rocha, cuja função permanece
ca mais elaboradas – os leNa ou vihAra (Figs. 7 e desconhecida.
8). O estudo extensivo dos padrões arquitetônicos A maior parte dos centros monásticos está
presentes nesses monumentos, realizado por situada em áreas de densidade pluviométrica
Nagaraju (1981), menciona ainda os maTapa – maior. As chuvas sazonais, entre junho e
salas simples, com ou sem bancos e varanda, setembro, permitiam o armazenamento de
cuja função pode ter estado associada a refei- água para o restante do ano. O suprimento de
ções, estudo ou abrigo de viajantes; os poDhi – água durante o verão e inverno era garantido
cisternas para armazenamento de água potável e, pelas numerosas cisternas talhadas ao lado das
em casos raros, para banho; os asanapeDhikA – grutas, que eram abastecidas durante as
bancos e bancadas, geralmente nas áreas monções por meio de dutos escavados na
externas das grutas; e os koDhi – espécies de rocha (Figs. 9 e 10).
47
48
Evidências da tecnologia construtiva empre- região analisada que, embora sucinto, seja
gada nesses conjuntos arquitetônicos podem ser capaz de fornecer elementos fundamentais à
obtidas, principalmente, por meio das escavações compreensão contextual da área em questão.
inacabadas. Os blocos eram retirados com o O Período Histórico Inicial do Sul da Ásia
auxílio de ferramentas rudimentares e as paredes abrange o intervalo aproximado entre 600 a.C.
aplainadas com auxílio de cinzéis, cujas marcas e 400 d.C. (ver Ray 2006:71), e esteve direta-
ainda podem ser observadas em algumas grutas. mente associado ao reaparecimento das
As formas arquitetônicas encontradas nos cidades e unidades sociopolíticas complexas,
conjuntos mais antigos revelam um desenvolvi- especialmente na região de Magadha, mas
mento iniciado possivelmente a partir da imitação também em outras áreas geográficas do
dos edifícios contemporâneos construídos em subcontinente.
madeira. Nessa fase inicial, a arquitetura recebeu Assim como nas demais regiões, as fontes
a complementação de elementos em madeira – históricas existentes sobre o início do período
como nos casos de Karli e Bhaja. Numa fase histórico no Deccan e Konkan são relativamen-
subseqüente, esses elementos funcionais foram te escassas, mas as evidências arqueológicas
transpostos integralmente para as construções na sistematicamente pesquisadas em Maharashtra
rocha. Partes estruturais, antes confeccionadas pelo Deccan College forneceram dados impor-
em madeira, passaram a ser talhadas na própria tantes para compreensão do processo de
rocha e são consideradas evidências da gradual surgimento das cidades do período Histórico
familiaridade técnica dos artesãos diante desse Inicial. Apesar de essa região ter freqüentemente
novo suporte. Nagaraju (1981:67) observa que sido considerada uma área secundária de
os primeiros artesãos mencionados em inscrições formação estatal em relação à planície gangética
eram carpinteiros – vaDhaki –, termo que (cf. Parasher-Sen 1993:66), os estudos compro-
aparece em Karli e Kanheri. Mas para Dehejia varam a existência de assentamentos desde o
(1972:77), essa mudança construtiva não pode Neolítico superior (Sankalia 1974:471-512).
ser considerada uma evidência confiável para Esses sítios apresentaram continuidade no
estabelecer o desenvolvimento e a cronologia Calcolítico, especialmente representado pelo
relativa das grutas, como muitos pesquisadores chamado período Malwa (1800 a 1500 a.C.).
acreditam. Em seguida, observou-se uma grande expansão
As características específicas dessa arquitetu- dos assentamentos agrícolas no período Jorwe
ra talhada na rocha permitiram que esses (1500 a 1100 a.C.) e Jorwe tardio (1100 a 800
conjuntos monásticos fossem preservados no a.C.), que marca o início da Idade do Ferro na
registro arqueológico ao longo dos séculos. A região (Allchin 1982:271-77, 327).
profusão e continuidade dos conjuntos de A razão da proposição de uma urbaniza-
grutas aqui tratados possibilitam compreender o ção abrupta ou artificial na região do Deccan é,
desenvolvimento da tradição arquitetônica segundo Morrison (1995:204-207), conseqüên-
budista nessa área geográfica. Essas peculiarida- cia do conhecimento parcial da arqueologia
des permitem, por sua vez, observar que esta foi dos períodos anteriores, particularmente a
uma arquitetura totalmente adaptada às condi- Idade do Ferro e o período Megalítico. A
ções geográficas naturais da região e, como região, antes da época em questão, já possuía
veremos, às mudanças políticas, econômicas e uma população de agricultores sedentários,
religiosas a que esteve sucessivamente exposta. com uma estrutura econômica especializada
bem desenvolvida e padrões de diferenciação
1.3 Contextualização histórica social em unidades sociopolíticas pré-Maurya
baseadas em chefias, como por exemplo, nos
O propósito de traçar um breve histórico sítios Calcolíticos em Prakash, Nevasa e Nasik
da fase inicial de desenvolvimento do período que, apesar de apresentarem em certos casos
abordado nesta pesquisa – entre o século III indícios de abandono, mais tarde foram
a.C. e III d.C. – é delinear um panorama da importantes cidades Satavahana.
49
Nos séculos anteriores ao surgimento dos 1995; Sinopoli 2001). No entanto, as datas
Satavahana, a História política da área geográfi- permanecem controversas.
ca em questão esteve relacionada à hegemonia As principais evidências utilizadas para o
de Magadha e do Império Maurya. O impera- estabelecimento de uma cronologia são as
dor Chandragupta Maurya é considerado o fontes textuais. Os Purana fornecem duas
responsável pela anexação desses territórios cronologias dinásticas: uma mais longa, de 460
durante seu governo, mas a data exata da anos, utilizada por aqueles que defendem uma
expansão do império de Magadha, ao sul dos influência Maurya mais direta; e outra mais
Vindhya, é incerta. As inscrições de Ashoka, curta, na qual os Satavahana teriam surgido
em Sopara, na costa de Mumbai, Sanci, na durante o século I a.C. No entanto, as listas
Índia central, Erragudi, Maski, Brahmagiri e dos reis e dinastias fornecidas pertencem a eras
Kopbal, no sul do Deccan, atestam que essa desconhecidas. Da mesma maneira, existem
área esteve sob o domínio dos Maurya. As estudiosos que postularam a origem geográfica
evidências arqueológicas fornecidas, por dos Satavahana no oeste do planalto do
exemplo, pelos sítios de Nasik, Nevasa e Chaul Deccan (Dehejia 1972; Sinopoli 2001; Thapar
confirmam os contatos existentes entre a região 1966:65-66; Morrison 1995:208-210), en-
do Deccan e o norte da Índia – região de quanto outros propuseram o leste da Índia,
Magadha, desde o período Maurya. As razões junto ao vale do rio Krsna e Godavari (Shastri
para a conquista Maurya do Konkan são 1987; Ray 1986).
atribuídas ao domínio dos recursos e do Apesar das discrepâncias cronológicas e
comércio da região (Thapar 2000:112-113). geográficas, o início dessa dinastia e sua
Durante a segunda metade do século III expansão territorial estão atestados no registro
a.C. até III d.C., essas áreas fizeram parte de arqueológico por meio das inscrições e da
uma unidade sociopolítica que esteve, na numismática. Alguns reis, mencionados nos
maior parte do tempo, sob o domínio do Purana, aparecem nas moedas e inscrições do
império Satavahana. O período de surgimento Deccan e do vale do rio Krsna. Por outro lado,
e desenvolvimento dos conjuntos da arquitetu- há também indícios de que os Satavahana não
ra monástica budista esteve, portanto, direta- possuíam um controle territorial centralizado,
mente associado às dinastias Satavahana, que pois muitos nomes de reis que aparecem nas
reinaram nas regiões do Deccan, Andhra moedas não são mencionados nos Purana, isso
Pradesh e nos vales dos rios Krsna e Godavari. pode indicar que eles eram apenas governantes
Nos Purana, os Satavahana são chamados locais. A distribuição dessas moedas apresenta
Andhra e esse período é, por isso, algumas um padrão geográfico circunscrito, o que
vezes chamado Andhra ou Andhra-Satavahana corrobora essa idéia (ver Sarma 1980; e Dutta
(Huntington 1985:90-91). 1990).
A cronologia do período ainda apresenta Um outro indício da descentralização
problemas e, por essa razão, não está ainda durante o império dos Satavahana foi a
esclarecido se o início do poderio dos Satavahana existência de diferentes capitais, embora ainda
teria se dado durante, imediatamente após, ou não haja certeza sobre seu sincronismo ou
somente depois da desintegração do império diacronismo. Essa descentralização não estaria
Maurya. Algumas teorias optaram pela suces- associada à formação de uma única unidade
são direta dos Maurya e, nesse caso, os sociopolítica, mas a grupos competitivos ou
Satavahana são retratados como um poder cooperativos de elites políticas (Morisson
imperial centralizador e expansionista, nos 1995:213). Linhagens dinásticas contemporâ-
mesmos moldes que seus antecessores (ver neas parecem ter estado dispersas pela região,
Sastri 1966; Mirashi 1955). Outras propostas como os Mahabhoja, que aparecem nas
favorecem uma origem mais tardia e organiza- inscrições de Kuda (ver Nagaraju 1981:340-
ção descentralizada (ver Ray 1986, 2003; 341), os Maharathi (Ray 2003:145-146), e os
Parasher-Sen 1993; Shastri 1987; Morrison Kura, na região de Kolhapur (ver Nilakanta
50
Sastri 1957:338). Por outro lado, algumas Paithan (Tagara e Paethana, no Périplo; Baethana,
inscrições registram a existência de um sistema em Ptolomeu), esta última, a capital do rei
de taxação e de oficiais territoriais, o que indica [Siri]ptolomaeos, isto é, o rei Andhra, Sri
a presença de uma autoridade imperial. Essas Pulomavit ou Pulumayi II (138-170 d.C.). Em
evidências apontam para a supremacia dos Nasik encontra-se uma inscrição mais tardia em
Satavahana como governantes regionais em que Gautamiputra Satakarni, um célebre rei
períodos dinásticos específicos, nos quais teria Satavahana, destitui a família dos Ksatrapa
havido uma centralização política e administra- Ksaharata, por volta de 124 d.C. Durante seu
ção mais efetiva na região do Deccan, intercala- reinado o controle dos Shaka sobre passagens
dos por épocas de fragmentação decorrente da estratégicas foi extinto – como as vias de acesso
invasão do Ksaharata Nahapana (Dehejia a Nasik e Karli – e o poder Satavahana recupe-
1972:29-30; Sinopoli 2001:177). rado (Huntington 1985:166-167). No entanto,
Assim, durante a época mais tardia do as fontes mencionam que em 130 d.C., os
domínio Satavahana, é possível que tenha Ksatrapa que dominavam a região norte do
existido um controle territorial mais amplo. império Satavahana anexaram grandes áreas
Existem, por exemplo, inscrições que mencio- junto ao rio Narmada (Mirashi 1955; Yazdani
nam o reinado de Shri Satakarni em Sanci 1960:97-108).
(Luders 1912: n.º 346) e nas grutas de Nanaghat Historicamente, o período foi caracteriza-
(ver Fergusson e Burgess 1880:264; Nagaraju do pelas rivalidades entre os Satavahana e
1981:24). Uma inscrição em Nasik, datada do Ksaharata, mas apesar dos conflitos políticos,
século I d.C., menciona que um rei Satavahana as regiões dominadas por essas dinastias
plantou milhares de coqueiros na costa oeste presenciaram, como veremos a seguir, um
(Kosambi 1976:185-189; Gokhale 1999:282). crescimento econômico surpreendente. Nessa
Algumas inscrições indicam que essa dinastia mesma época, o norte da Índia estava envolto
era poderosa o bastante para realizar alguns pela instabilidade política decorrente do
dos mais elaborados sacrifícios védicos, como declínio e fragmentação do império Maurya.
o rAjasUya e o aCvamedha. Os reis Satavahana O declínio do império Satavahana ocor-
apoiavam diferentes religiões e parecem ter reu, provavelmente, após a morte de Sri Yajña
sido flexíveis em suas tradições culturais Satakarni, no ano 201 d.C., e sua extinção deu-
(Thapar 2000:119), o que reflete uma combi- se por volta do ano 224 d.C. O território foi,
nação de aspectos políticos e religiosos capazes então, dividido em pequenos principados.
de favorecer sua inserção num meio social Algumas das grutas de Kanheri, escavadas
heterogêneo. nesse período, apresentam qualidade inferior –
Embora na maior parte desse período as especialmente as esculturas presentes nos
regiões do Deccan e Konkan estivessem sob capitéis –, o que pode ser um indício das
domínio dos Satavahana, até mesmo essa pressões políticas existentes e um prenúncio da
supremacia esteve sujeita a épocas de declínio, desintegração do império Satavahana (cf.
como durante a ocupação dos territórios pelos Huntington 1985:174). Por volta do ano 248
reis Ksaharata ou Ksatrapa, dos Abhira. Esta ou 249 d.C., os Abhira restabeleceram sua
foi uma linhagem dos Shaka que reinou entre supremacia no Deccan, no entanto, as evidên-
os séculos II e III d.C. e teria sobrepujado os cias existentes sobre essa dinastia são mínimas,
Satavahana em Maharashtra, depois no como nos Purana, em que há registros de uma
Konkan e Gujarat (Nagaraju 1981:22-23). dinastia de dez Abhira (Mirashi 1955).
Baseado nos relatos de Ptolomeu, Warmington
(1928:112) menciona nove cidades regidas 1.4 As trocas comerciais
pelo rei Tiastanes, um Ksatrapa-Shaka da
linhagem de Chastana, que governava em O desenvolvimento socioeconômico
Ozene (Ujjain) e foi visitado por mercadores observado nas regiões do Konkan e do Deccan
gregos, e outras sete cidades, dentre elas Ter e durante os primeiros séculos a.C. e d.C. foi
51
decorrente da fase de urbanização iniciada Prakasa, Kaundapur, Dhatva (no Surat), Bahal,
durante o período Maurya. A unificação Ter e Chaul forneceram fragmentos da Cerâmi-
alcançada pelo império de Magadha, no norte ca Preta Polida (BPW – Black Polished Ware)
da Índia, havia tornado essas regiões parte de que é originária da região gangética; além dela,
uma unidade sociopolítica organizada, o que foram encontradas moedas e objetos de
favoreceu o crescimento das trocas comerciais. mesma procedência (ver Sankalia e Dikshit
Durante essa época, parte dos oficiais e 1952; Sankalia e Deo 1955; Sankalia et al.
soldados do império tinham passado a residir 1960; Thapar 1966; Gogte e Aldrovandi 2005-
nessas áreas e os contatos comerciais podem 2006).
ter crescido devido às condições políticas mais Nessa época, as atividades comerciais
estáveis estabelecidas na região. crescentes entre as regiões do Konkan e do
Assim como na esfera política, houve uma Deccan foram impulsionadas pela reorganiza-
tendência a considerar a organização econômi- ção política e pela criação de uma rede de rotas
ca dessas regiões como um mero produto comerciais para o escoamento das mercadori-
importado da região gangética (Morrison as. A mobilidade e o dinamismo econômico
1995: 203). No entanto, como vimos, as observados a partir desse período foram
pesquisas arqueológicas confirmaram a fatores viabilizados pela existência de um
existência de cidades Satavahana cuja ocupação amplo sistema de comunicação que interligava
remonta ao período Calcolítico. várias partes do subcontinente indiano. Essas
Evidências do aumento dos contatos entre vias ligavam o extremo sul como Madurai e
essas regiões estão registradas nas fontes Arikamedu ao estado de Karnataka e, no
literárias da época, assim como nos registros Deccan, chegavam a cidades como Kolhapur,
arqueológicos. Existem referências específicas à Karad, Sirval e Ter. Cidades do período
região no Ramayana, que mencionam lugares e Satavahana foram encontradas ao longo dessa
rios do Deccan, como Chitrakuta, Nasika, rota. A partir de Ter a rota seguia até Nasik, via
Godavari e Narmada. No Mahabharata Junnar. Paithan, capital do império, era ligada
(Sabhaparva) estão descritos eventos que teriam por estradas a Ter, Nasik, Bahal e Junnar, via
ocorrido em Nasika, Sanjayanti (Sanjan) e Nevasa (ver Deshpande 1959:58-59). As
Karahata (Karhad); o épico também cita cidades do norte da Índia possuíam rotas até
Shurparaka (Sopara) como uma cidade sagrada Paithan e Nasik (Nilakanta Sastri 1957:437;
em Aparanta, esse porto também é menciona- Nagaraju 1981:30). O Périplo do Mar Eritreo
do no Ramayana e na literatura budista informava que as rotas de Paithan até Barygaza
primitiva. O Mahaniddesa refere-se à Surata eram feitas em caravanas em grandes trilhas
(Surat) e Shurparaka como entrepostos (Yazdani 1960:138).
comerciais (Yazdani 1960:16-27; Charpentier Na era Satavahana e Ksaharata, a econo-
1927:111). mia organizou-se em vários setores. As evidênci-
O processo de formação e estruturação de as arqueológicas e em especial a epigrafia
uma nova sociedade e o desenvolvimento apontam duas camadas sociais, nobres e
econômico que teve início durante o império comerciantes, como grupos econômicos
Maurya apresentou continuidade durante o poderosos (Figs. 11 e 12). Na esfera social,
período Satavahana. Esse crescimento esses grupos pertenciam às varNa dos kSatriya e
ininterrupto da economia foi evidenciado nos vaiCya e ocupavam posições de elite na
níveis estratigráficos de sítios arqueológicos da sociedade local.
região que apresentaram níveis habitacionais Os comerciantes possuíam funções
mais complexos – com material arqueológico específicas que incluíam, como confirmam as
mais abundante –, e indícios de prosperidade inscrições, o comércio de perfumes, metais e
econômica (Chandra 1977:100). ouro. Naquela época, havia mercadores para o
Sítios arqueológicos de cidades como comércio de longa distância — os sathavAha —,
Nevasa, Brahmapuri (Kolhapur), Nasik, mencionados em três inscrições em Kuda
52
53
região. Por meio dessas fontes, sabe-se que os crescimento das trocas marítimas. No início do
mercadores comercializavam tanto em regiões período Satavahana, os mercadores árabes e
próximas quanto nas distantes. As associações egípcios eram responsáveis por grande parte
de mercadores – negama ou señhi (seNi ou CreNi) das atividades comerciais entre o oeste da Índia
– existiram em cidades importantes como e o Mediterrâneo que, no final do século I
Dhenukàkata e Junnar. As inscrições de Kanheri a.C., passaram a ser administradas pelos
mencionam Soparaganegama; e Kaliyanakasanegama romanos. Um pequeno tratado escrito por
(Nagaraju 1981:40). Agartharchides de Alexandria, em 110 a.C.,
Essas associações ou guildas parecem ter fornece um panorama do comércio da época
recebido doações e depósitos permanentes que (Dehejia 1972:18). Durante o reinado de
respondiam por um excedente anual à base de Ptolomeu (século II d.C.) foram criadas
rendimentos decorrentes do capital deposita- facilidades para os navegadores egípcios e
do. Uma inscrição no conjunto de Nasik Alexandria havia se tornado um enorme
menciona, por exemplo, que Usavadata, genro empório. Anteriormente, o comércio entre o
de Nahapana (dos Ksaharata) depositou 3000 mundo mediterrâneo e a Índia tinha sido
kArCApaNa (valor monetário) em duas guildas facilitado pela abertura do canal que ligava o
de tecelões de Nasik, com a garantia de que os Nilo ao Mar Vermelho em 190 a.C.4
lucros obtidos a partir dessa soma, a juros de A fundação do Império Romano, por sua
1% e 0,75%, fossem utilizados na distribuição vez, trouxe paz, facilitou a comunicação,
de mantos para os monges que habitavam ampliou a segurança das rotas comerciais e
aquela gruta; além disso, uma plantação com criou um aumento considerável no volume de
8000 coqueiros foi incluída na doação dessa mercadorias importadas. Nessa época, os
gruta (ver Thapar 1966, 1984, 2000; Ray romanos já conheciam as monções que facilita-
1986; 2003; 2006:77). Comerciantes de vam o acesso dos navios à costa indiana e que
Dhenukakata aparecem, por exemplo, em são mencionadas por Hippalus em c. 45 a.C. A
inscrições em Pitalkhora, Kanheri e Karli. A ocupação do Egito por Augusto, por volta do
localização da cidade de Dhenukakata é ano 30 a.C., ampliou o domínio romano sobre
controversa (ver Burgess 1883:24; Senart o Mar Vermelho e Arábico. Há registros de uma
1903:47; Johnston 1941:208; Kosambi expedição enviada pelo imperador para assegu-
1955:51; Nagaraju 1981:40; Thosar 1991; rar o monopólio da rota marítima até a Índia.
Cimino 1994:161), mas essa cidade aparece Enquanto na época de Hippalus apenas 20
associada aos nomes de muitos yavana – navios por ano eram enviados ao subcontinente,
estrangeiros –, como veremos a seguir. nos registros de Estrabão (67 a.C. a 20 d.C.)
esse número subiu para 120 navios por ano, e
1.4.1 O comércio ultramar e os estrangeiros durante o início do império romano passou a
um navio por dia [Geografia, XV]. A perplexida-
Outro fator importante que envolve a de do mundo político romano frente à evasão
atividade comercial da época é o aumento de dinheiro para os mercados estrangeiros
considerável do comércio marítimo. As trocas (Índia, China e a península Arábica) foi registra-
comerciais com mercados estrangeiros estão da por Plínio, o velho [História Natural VI-
atestadas desde a proto-história, além de haver XXVI.101; XII-XLI-84], que menciona uma
fontes textuais que confirmam a existência de quantia de 100 milhões de sestércios ao ano,
contatos comerciais entre a Índia, Ceilão (Sri metade da qual cabia à Índia.
Lanka), Arábia e Egito, antes do império
romano (ver Filliozat 1949). (4) Esses contatos foram descritos por Majumdar e Pusalkar
O domínio parta e a crescente rivalidade (1953:619-621), ver também Nilakanta Sastri (1957:307);
Yazdani (1960:130) e Casson (1986). O comércio de longa
com os romanos na disputa pelas rotas distância foi objeto de estudo de muitos pesquisadores como
terrestres no oeste da Ásia, por volta do ano Wheller (1954), Huntingford (1980), Begley e De Puma
175 a.C., pode também ter impulsionado o (1992) e Ray (1986; 1988; 2003; 2006).
54
O crescimento do comércio marítimo foi, símbolo das trocas marítimas que enriquece-
em grande parte, responsável pela ampliação ram seu império. A existência de moeda
dos portos no oeste da Índia. Os documentos corrente durante o período Satavahana –
mais antigos a mencioná-los são o Périplo do principalmente nos reinados mais tardios – é
Mar Eritreu e a Geografia de Ptolomeu. Dentre um indício claro do crescimento econômico
eles estão o de Barygaza (Bharuch, no Gujarate), pelo qual passou a região em questão, cujo
Soupara (Sopara, no distrito de Thana), excedente era grande o suficiente para que o
Calliena (Kalyan, também em Thana) e Symilla estado interviesse no controle do meio de
(Chaul, no distrito de Kolaba). troca (Shastri 1972; Thapar 2000).
As trocas comerciais entre Roma e Índia Além das moedas, foram também escava-
puderam ser comprovadas por meio dos dos artefatos de cerâmica, como jarros e
vestígios arqueológicos de origem mediterrânea ânforas. A maior parte das mercadorias
encontrados em diferentes regiões do transportadas pelos navios cargueiros romanos
subcontinente. Os produtos romanos foram era armazenada em ânforas. Os tipos de ânfora
encontrados, por exemplo, em escavações nos identificados no subcontinente indiano são
sítios de Arikamedu, Ter, Nasik, Nevasa, Dressel 2-4, 6, 7 e 8. As ânforas Dressel 2-4
Brahmapuri, Junnar, Kalyan, Chaul, Paithan, são associadas ao transporte de vinho e de
Amreli, e Devnimori (no Gujarate). origem romana (século I a.C - I d.C); Dressel 6
Uma grande quantidade de moedas de mesma procedência, talvez para transporte
romanas foi recuperada, principalmente, no de azeite; Dressel 7-8, provenientes do sul da
sul da Índia. As moedas mais antigas pertence- Espanha, seriam para transporte de peixe
ram à República romana, séculos I e II a.C. e salgado (Dressel 1879, 1899; Will 1992; Slane
as mais numerosas são as dos imperadores 1992; Cimino 1994:35-36, 154-160). As
Augusto e Tibério. Coimbatore, no sul da ânforas em solo indiano foram identificadas
Índia forneceu um conjunto numeroso de pela primeira vez na coleção cerâmica de
moedas da dinastia Julio-Claudiana. Durante o Arikamedu (Wheller et al. 1946; Will 1992).5
século I d.C., Nero diminuiu a exportação de Entre outros achados estão os vasos de
moedas; na época de Vespasiano e Adriano terra sigillata, as vasilhas de vidro, as estatuetas
houve uma redução das importações, decor- e lamparinas de terracota, as gemas lapidadas e
rente da situação econômica desfavorável, estatuetas de bronze. As vasilhas romanas de
assim os romanos passaram a utilizar moedas vidro foram encontradas em sítios como
antigas nas trocas comerciais. Os imperadores Arikamedu, Ter, Nevasa, Paithan, Kondapur,
seguintes diminuíram gradativamente a percen- Kolhapur e Dharanikota, associadas a vasos
tagem de metal precioso na cunhagem e, após a
divisão, o Império Romano oriental, especial-
mente Alexandria e Constantinopla, continuou (5) Fragmentos de ânfora também foram relatados em
a comercializar com a Índia. As moedas mais Dharnikota, Nagarjunakonda e Kondapur em Andhra
tardias encontradas no subcontinente perten- Pradesh; em Akota, Bet Dvarka, Devnimori, Dvarka,
Hathab, Lothal, Nagara, Nani Rayan, Prabhas Patan e
cem a Arcádio, Honório e finalmente a Shamalji, no Gujarate; Talkad em Karnataka; Ujjain, em
Justiniano (ver Wheller et al. 1946; Wheller Madhya Pradesh; Bhokardan, Brahmapuri, Junnar, Nevasa,
1954; Gupta 1965; Turner 1989; Sathyamurthy Paunar, Sopara, Ter e Elephanta em Maharashtra;
1992; Cimino 1994:28-31;135-147). Uma Knachipuram, Karaikadu, Kaveripattnam, Nattamedu,
Vasavasamudram e Teriruveli, em Tamil Nadu; Mathurà, em
teoria interessante, formulada por Raschke Uthar Pradesh; Chandraketugarh e Tamluk em Bengala; e
(1979), propôs a associação das moedas Taxila, no noroeste da Índia. Ver Gupta et al. (2001:7-18);
romanas aos monastérios budistas e ao caráter Joshi e Sinha (1991); Tripathi (1993; 1995). Durante a
itinerante dos monges. escavação do sítio de Chaul também foram encontrados
fragmentos de ânfora (Gogte e Aldrovandi, 2005-2006).
O rei Gautamiputra Satakarni cunhou Representações de ânforas podem ser observadas num
uma moeda, nos moldes romanos, com seu relevo de Amaravati – século II d.C. e num relevo de
perfil no anverso e um navio no reverso – Nagarjunakonda, do século III d.C. (Cimino 1994:XLI).
55
56
Figs. 13 e 14. A Gruta 8 do conjunto monástico de Karli, nave principal do caityagRha com o estupa na parte
posterior, c. 120 d.C. Inscrição no pilar 5 da fileira direita do caityagRha, que menciona a doação do mesmo
feita por um yavana chamado Vitasamgata (Aldrovandi 2004).
57
58
Durante o período em que chegou ao convivência dos monges budistas com mem-
Deccan e Konkan, o Budismo já tinha passado bros de outras religiões como o Bramanismo e
por alguns cismas e se dividido em escolas ou o Jainismo também é um aspecto extremamen-
ramos distintos. Sob a égide do Dharma te importante para compreensão da interação
budista encontravam-se diferentes grupos religiosa ocorrida nessa região, no entanto esta
monásticos, com ideologias e práticas diferenci- análise foge ao escopo do presente artigo.8
adas. As inscrições mais antigas, existentes nos Os conjuntos de grutas budistas foram
monumentos budistas do Deccan e Konkan, criados com a finalidade de abrigar os monges,
não fazem referência a uma filiação budista portanto seu padrão arquitetônico esteve
específica. As epígrafes mais tardias, dos intrinsecamente associado às práticas e necessi-
primeiros séculos d.C., mencionam pelo dades da vida monástica de cada período.
menos cinco ramos existentes na região: os Alguns aspectos da ordem monástica budista
Bhadrayaniya e Dharmottariya – da escola podem ser traçados a partir dos Vinaya, no
Vibhajyavadin, mais conservadora e voltada à entanto, essas fontes receberam acréscimos
disciplina ética e moral; e os Mahasamghika, posteriores com o objetivo de adaptar as
que são citados com dois de seus ramos – os necessidades da comunidade à realidade dos
Chetika e Aparaseliya, cujo propósito estava períodos sucessivos de desenvolvimento dessa
centrado nos aspectos metafísicos e altruístas religião. Com o crescimento da Ordem budista
da doutrina (Nagaraju 1981:33-35). e a admissão de discípulos leigos, as necessida-
As diferenças na ideologia e nas práticas des do samgha se modificaram.
religiosas presentes nas diferentes escolas e As fontes canônicas atribuem o início da
ramos do Budismo podem ter sido responsá- doação de monastérios ao período final da
veis pela variedade arquitetônica e iconográfica vida do Buda. Os monges, que no Budismo
encontrada na região. No entanto, a pouca primitivo eram itinerantes, se encontravam
quantidade de inscrições que mencionam nesses conjuntos de grutas durante os retiros
ramos budistas específicos não permite uma realizados na estação chuvosa. De acordo com
análise consistente desse aspecto. Apesar disso, o Mahavamsa [XVI. 2; XVII.1] tal prática
o que parece ter ocorrido foi a convivência recebia o nome de vassAvAsa que era iniciada
sincrônica de monges de diferentes ramos em no 13° dia da lua crescente de Asadha e
alguns dos conjuntos de grutas. Esse convívio terminava na lua cheia do mês de Karttika. No
parece estar atestado por inscrições que início as habitações monásticas teriam sido
mencionam que os monastérios eram dedica- celas ou cabanas, individuais – e a ênfase esteve
dos aos monges das quatro direções – voltada ao isolamento ascético. No restante do
catudisabhikhusamgha, ou à comunidade ano, de acordo com prescrições do Vinaya, os
budista – buddhasamgha, encontradas em monges não deveriam permanecer num mesmo
Kanheri, Karli e Nasik (Nagaraju 1981:43). lugar por mais de três dias (ver Dutt 1925:101).
Como observado por Dutt (1925:291), o Com o passar do tempo, esses mendicantes
relato de Hiuen Thsiang, embora mais tardio, budistas passaram a coexistir por períodos
menciona que, durante o século VII d.C., mais prolongados e administrar esses centros
mestres de diferentes escolas viviam num monásticos. Os monastérios sazonais, fossem
mesmo monastério. Assim, é possível que a
ênfase nas diferenças entre os diversos ramos
(8) Como lembraram Trautmann e Sinopoli (2002:500), a
budistas, mencionadas nas crônicas páli, definição de períodos históricos a partir de elementos
tenham sido acréscimos posteriores. A arquite- arquitetônicos provenientes das religiões budista, hinduísta e
tura religiosa mais tardia do início do período muçulmana foi uma grande e perigosa simplificação, que
Medieval, indica uma paisagem diversificada e a continua a existir atualmente no Sul da Ásia. Ao atribuir
primazia à identidade religiosa como a variável mais
coexistência de centros monásticos budistas, importante na história dessa região, negou-se a complexida-
heremitérios e templos bramânicos, além de de histórica que envolve a paisagem religiosa, étnica, política
outros cultos regionais (ver Ray 2006). A e social do Sul da Ásia.
59
eles edifícios de tijolo ou construções talhadas juros feitos a partir das doações à comunidade
na rocha, passaram a ter um caráter permanen- budista (ver Kosambi 1955:59-60; Schopen
te (Basham 1951:151-152). 1997; 2004). Esse fato, por si só, já exigia uma
Os estudos, realizados ao longo do século segurança maior do local.
XX, sobre as comunidades do Budismo Enquanto as teorias mais antigas sobre a
primitivo no sul da Ásia deram ênfase ao função desses monastérios enfatizaram o
suposto isolamento intencional dos centros isolamento intencional e o papel da nobreza no
monásticos: os locais estariam próximos o financiamento dos centros monásticos
suficiente para permitir que os monges pudes- (Cunningham 1854; Fergusson e Burguess
sem receber doações diárias de alimento da 1880; Sastri 1966; Nagaraju 1981), existiram
população leiga, mas distantes o bastante para visões que atribuíram mais autonomia aos
permitir um afastamento favorável ao caráter monastérios e monges (Brown 1941) e, mais
contemplativo do Budismo. recentemente, voltadas justamente à ênfase na
Embora esse distanciamento possa ter localização dos complexos monásticos ao
existido nas épocas mais remotas, há indica- longo das rotas comerciais e seu envolvimento
ções do caráter ambíguo dessa teoria quando com o comércio de longa distância e a produ-
confrontada com os monastérios surgidos a ção agrícola (Thapar 1966; Dehejia 1972;
partir do século I a.C. Não há dúvida de que, Heitzman 1984; Ray 1986; Lahiri 1992; e
no caso da paisagem sagrada elaborada no Morrison 1995).
Deccan e Konkan, as grutas talhadas na rocha Essa aparente incoerência entre as formu-
estiveram situadas em locais que, até certo lações canônicas e a prática efetiva das comuni-
ponto, estavam afastados dos centros urba- dades budistas do Deccan e Konkan remete a
nos, geralmente com vista privilegiada do vale aspectos extremamente importantes para
e das cercanias. No entanto, a clara associação compreensão da interação do Budismo
desses conjuntos monásticos com as rotas primitivo com as demais esferas da sociedade
comerciais que interligavam a região requer na Índia antiga. Muito do que de se definiu
uma reflexão sobre o grau de isolamento sobre os primórdios do Budismo pautou-se
intencional supostamente engendrado pelas nas fontes escritas – os cânones budistas – e
comunidades monásticas. relegou as fontes arqueológicas ao segundo
A distribuição espacial dessa paisagem plano.
sagrada é um indicador visivelmente diferencia- O pioneirismo de Schopen (1997; 2004) e
do, senão mesmo antagônico, daquele propos- de outros estudiosos contribuiu para o
to por teorias baseadas na necessidade de surgimento de novas perspectivas sobre os
isolamento físico. Nesse sentido, o isolamento primórdios do Budismo que discutiram
pode não ter sido tão fundamental quanto se extensamente essas questões. Essas abordagens
acreditou ou, ainda, pode ter possuído com ênfase na prática religiosa baseiam-se
finalidades mais abrangentes ou distintas exatamente na recuperação e equiparação dos
daquelas inicialmente propostas, como, quiçá, dados arqueológicos e epigráficos, que são
a segurança e proteção. A escolha dos locais confrontados com a suposta verdade apresenta-
onde seriam construídos os conjuntos monás- da pelo discurso budista preservado nas fontes
ticos foi sem dúvida alguma intencional, textuais. Nesse sentido, a realidade material
entretanto, não se pode desconsiderar as vem trazendo uma nova luz aos estudos
evidências que apontam para as mudanças nos budológicos e tem revelado um perfil monásti-
propósitos que envolveram a localização dos co e laico muito mais pragmático e dinâmico
centros religiosos. Estudos mais recentes que aquele idealizado nos princípios sagrados e
verificaram, por exemplo, que a partir de um nos discursos filosóficos presentes nos textos
determinado período os monastérios passaram canônicos. Ser budista não era um mero
a acumular somas consideráveis de dinheiro, exercício do intelecto, mas também incorpora-
decorrentes de contratos e empréstimos a va práticas rituais – peregrinação, circum-
60
ambulação, doações –, que podem ser recupe- diferentes camadas sociais ao bhikusamgha – a
rados a partir dos vestígios e contextos arqueo- comunidade monástica. A análise do material
lógicos. epigráfico associado ao patrocínio e à constru-
Nesse sentido, a idéia de isolamento ção dos monumentos budistas revelou que
intencional merece ser revista sob a ótica de um diferentes camadas sociais financiaram a
engajamento religioso surgido durante o desen- criação desses estabelecimentos monásticos.
volvimento do Budismo primitivo e da retórica Os comerciantes – entre eles os yavana –,
da paisagem sagrada a ele associada. Os concei- formam o grupo que se destaca como principal
tos de engajamento econômico e engajamento doador dos conjuntos de grutas, seguidos
religioso fornecem interpretações inovadoras a pelos nobres, oficiais, clérigos e, em menor
respeito da relação entre os monges e a número, agricultores e artesãos (Dehejia
comunidade leiga. 1972:45-70). Um levantamento sistemático e a
A maior parte dos conjuntos monásticos quantificação das inscrições em cerca de 40
talhados na rocha, no Deccan e Konkan, conjuntos de grutas somou 156 registros com
possui um caityagRha com um estupa – menção ao doador, dentre estes: 35% foram
tridimensional ou em baixo-relevo. A presença feitos por mercadores; 23% pela nobreza;
desses elementos denota uma ênfase no seguidos pelos oficiais e clérigos, com 12%
aspecto devocional budista, uma vez que a cada; e agricultores e artesãos com 10%; os
adoração do estupa esteve associada ao culto yavana são mencionados em 10 inscrições, que
das relíquias do Buda. Por outro lado, o caráter representam 8% do total (Nagaraju 1981:27-
monacal desses conjuntos arquitetônicos não 29, 328-364).
excluía a presença da população leiga, mas O desenvolvimento de uma arquitetura
promovia a interação entre as duas comunida- mais complexa, através dos tempos, esteve
des. Um bom exemplo dessa relação foi também associado ao crescimento de doações
verificado na arquitetura do monastério de permanentes, que incluíram somas em dinhei-
Thotlakonda, na costa leste da Índia, que ro ou, ainda, terras cultiváveis. Embora os
evidenciou a necessidade de um engajamento cânones budistas mencionem uma regra que
ritual fruto da interação entre as duas comuni- teria sido determinada pelo próprio Buda
dades. No entanto, as idiossincrasias de cada sobre a não aceitação de terras, animais e
grupo teriam gerado, de lado a lado, tensões e dinheiro (Beal 1883 [XXVI.2020]; Johnston
resistências que permaneceram observáveis na 1936 [XXVI.27]), como vimos, a epigrafia
distribuição espacial dessa arquitetura monásti- aponta para a existência de um excedente
ca (cf. Fogelin 2003). econômico proveniente das doações de terras
A interação contínua entre os monges e a cultivadas, que era dividido entre a comunida-
população leiga teria sido responsável pelo de monástica. Esses monastérios eram consu-
desenvolvimento de uma atmosfera piedosa, midores dos bens de que faziam uso e, embora
que resultou no crescimento das doações feitas não existam informações conclusivas a esse
por essa última – o que, por outro lado, respeito, talvez também sediassem atividades de
revertia em méritos (Nagaraju 1981:36). Esses trocas ou possuíssem mercados nas cercanias
méritos, de acordo com os cânones budistas, (Dehejia 1972:144-145; Ray 2006:83). O
podiam ser alcançados por meio da doação de antigo vilarejo de Mahad, associado ao conjun-
acomodações, alimentos e vestes à comunidade to monástico de mesmo nome, foi um grande
monástica. mercado de acordo com o significado local
Assim, a construção da paisagem sagrada atribuído a esse vocábulo na antiguidade
budista do Deccan e Konkan esteve diretamen- (Aldrovandi 2006:544).
te associada ao anseio leigo e monástico de Ao mesmo tempo, os cânones budistas
obter méritos espirituais – punya. Como vimos, registraram que uma das primeiras regras
grande parte das inscrições presentes nos estabelecidas pelo Buda era a subsistência do
conjuntos de grutas atesta as doações de monge com alimento obtido por meio da
61
62
Abstract: Based on the field survey undertook during 2004 and 2005, this
article discusses the development and interaction of the Buddhist sacred
landscape from Deccan and Konkan regions. Hundreds of rock-cut caves
developed along the ancient commercial routes which linked the west coast of
Maharashtra state, they work as spatial marks in the landscape making it possible
to establish ways of access from the coast to the platô. The continuous growth
and recurrence of these monasteries along almost one milenia are considered
under the perspective of the sacred landscape’s rhetoric. This approach allows
understanding the interaction and the dynamics among political, economic and
religious spheres in this geographic area of ancient India.
Referências bibliográficas
63
64
65
66
67