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Harappa e Mohenjo-Daro

A noroeste da Índia e leste do Paquistão há uns quatro mil anos


atrás, corriam rios abundantes e perenes que propiciaram um
acesso regular à água potável, vital para o sustento de animais e
humanos. Terra essa que é chamada de Punjab, “cinco rios”, pois
assim corriam os rios a desaguarem todos como afluentes do rio
Indo. E desse nome adveio, através dos cronistas e viajantes
estrangeiros a nos relatar pelos séculos seguintes, o que se
convencionou referir-se a toda a região como a “Índia” 8.

Foi então no vale do rio Indo que foram encontrados os primeiros


vestígios de assentamentos planejados e permanentes de
comunidades humanas datando por volta de 2200 a.C. Em locais
hoje referidos como Harappa e Mohenjo-Daro ficou evidenciado
um avançado sistema de planejamento urbano e sanitário, com
largas ruas pavimentadas e locais que parecem remeter a banhos
públicos e tanques de água.

Nesses dois sítios podemos identificar, portanto, as primeiras


evidências de uma sociedade sedentária organizada com algum

8O nome oficial que os próprios indianos referem ao seu país é bem diferente,
Bharata ou Bárata, como dignos filhos do personagem mítico do épico
Maaabárata, o rei Bárata, o “abençoado”.

21
controle centralizado e as primeiras manifestações civilizacionais
do passado indiano. Havia necessidade, diante do mostra o
avançado planejamento dos sítios, de um comando centralizado e
de um mínimo de especialização social demandada para o
planejamento e execução de construções que teriam servido ao
bem público – como as reservas de água para tempos de seca – ou
a um rico e poderoso membro sobre o restante da sociedade. Mas
isso são ainda conjecturas, pois tudo ainda permanece um mistério.

Há outros vestígios materiais que podemos inferir sobre as


sociedades dos locais citados. Uma escultura de pedra, hoje num
museu de Carachi, Paquistão, nos mostra uma pessoa de vestes
elaboradas e aparência serena e imponente que sinaliza uma pessoa
proeminente, talvez um sacerdote. Em outra gravação, é retratada
uma pessoa em posição peculiar, talvez medidativa, indicando
remotas origens de posições defendidas pelas escolas iogues. E
pelos símbolos e retratos silvestres na gravação, talvez seja até
mesmo uma divindade, um antecessor de Xiva, deus indiano
caracteristicamente próximo do meio silvícola e da animália, num
dos seus atributos como Pashupati, “senhor dos animais”.

Há evidências de continuado assentamento em outros sítios. E


mais recuados no tempo, como em Mehrgarh, no Baluchistão, ao
oeste indiano em direção ao atual sudeste iraniano. Nesse local as

22
datas vão desde o sétimo milênio a.C., na transição da vida
nômade para a sedentária. Em Amri, no Sind, também ao oeste
indiano, a datação situa-se em torno de 3600 a.C., e neste parece
indicar que o desenvolvimento de sua cerâmica, por exemplo, se
deu em termos autóctones, sem, portanto, ser influenciado por
contatos com outros povos. Algo extraordinário, pois há
evidências de cerâmicas e outros produtos originados dessa região
encontrada mais ainda ao oeste, na Mesopotâmia, no sul do Iraque,
e ao norte, nas estepes da Ásia Central.

A partir de 2500 a.C. além dos centros como Harappa e Mohenjo-


Daro, outros locais como Kalibangan, indicam que o padrão de
construção convergiu num mesmo padrão e estilo, possivelmente
apontando para uma confederação política unida. E já no fim do
mesmo milênio, em Harappa, houve a construção de muralhas e
fortes para fins defensivos contra invasores.

Sobre as hipóteses de seu declínio dessa cultura do vale do Indo, a


maior parte dos arqueólogos concorda situar num período entre
9
1800 a.C. a 1700 a.C. Alguns estudiosos apontam para as
crescentes invasões de estrangeiros vindos do norte, com uso de

9MCINTOSH, Jane. The Ancient Indus Valley: New Perspectives. Santa Barbara,
Califórnia: ABC-CLIO, 2008, pp. 396-400.

23
10
armas de bronze e a cavalo, povos chamados de arianos ,
sustentando os seus argumentos nos achados de ferramentas e
utensílios que foram subitamente abandonados nos sítios
escavados. Outro fator considerado foram os fatores de mudanças
ambientais. Com o clima alterado, grandes inundações do vale do
Indo alteraram de maneira definitiva o curso dos rios, gerando
erosão do solo e seca do clima na região.

Os arianos

Por volta do segundo milênio a.C. uma onda migratória de povos


advindos da Ásia Central começou a avolumar-se nas regiões do
noroeste indiana e do Punjab. Com esses chegaram o uso de armas
de cobre, bronze, montagem em cavalos e carruagens. A origem
desses povos, chamados em sânscrito de aryas 11, arianos, ainda é
motivo de viva controvérsia entre historiadores e arqueólogos.
Alguns apontam para a vasta estepe da região central asiática,
outros em regiões meridionais russas ou até mesmo mais a oeste,

10Povos do grupo linguístico pertencentes à família indo-ariana que têm sua


história guardada em memória nos épicos dos Vedas, cuja compilação ao longo
do tempo serviu de base posterior para a ordenação do hinduísmo e da língua
sânscrita.
11 FORTSON IV, Benjamin W. Indo-European Language and Culture: An

Introduction. Nova Iorque: Blackwell, 2010, p. 209.

24
na Europa 12. O grande estudioso britânico, Sir William Jones, no
13
seu clássico estudo sobre a escrita sânscrita trazida com esses
povos, buscou estabelecer a origem dessa cultura com as línguas
europeias. Atestando para uma suposta dominação inerente dos
povos indo-europeus sobre outros povos asiáticos, uma forma de
legitimar a dominação britânica sobre a Índia em fins do século 18.

Não se sabe ao certo a relação desses povos arianos com o que é


recitado pelo mais antigo dos sagrados quatro épicos védicos, o
Rig Veda. Neste, não é descrito nenhuma forma urbana de
organização social, algo que já era notável em locais como em
Harappa, local onde, a partir de 2000 a.C. a 1400 a.C., os arianos
gradativamente começaram a se mesclar com os elementos locais.
Talvez fosse mais apropriado considerarmos um extenso período
de contato e miscigenação entre os elementos pré-arianos
anteriores no noroeste indiano com a chegada de povos arianos.
Interpenetrações que irão combinar elementos harappanos de
culto a divindades e animais, como visto na figura do proto-Xiva,
com o culto ariano do cavalo, do fogo e do raio (como nos deuses

12 BRYANT, Edwin F. The Quest for the Origins of Vedic Culture: The Indo-Aryan
Migration Debate. Oxford & Nova Iorque: Oxford University Press, 2001, pp. 43-
45.
13 JONES, William & LORD TEIGNMOUTH. The Works of Sir William Jones -

With the Life of the Author by Lord Teignmouth, Vol. 3. “The Third Anniversary
Discourse, on the Hindus, delivered 2d of February, 1786”. Cambridge:
Cambridge Univ. Press, 2013, pp. 24-46.

25
Agni e de Indra, respectivamente). E que depois se inseriu uma
relação de dominação e diferenciação social, em castas sociais
hierarquizadas (varnas) com os setores dominantes arianos,
sacerdotes (brâmanes) e guerreiros (xátrias), a prevalecer sobre
outros (shudras) da sociedade 14. Na convivência dos tempos, os
arianos foram ordenando a hierarquia social conforme sua posição
de dominação.

Os Vedas

O conjunto dos épicos védicos é a mais importante fonte de


informação a respeitos dos arianos, e é a base mais antiga de
crenças, práticas, valores e línguas da Índia. Em sua consideração a
respeito da importância dos Vedas, Rabindranath Tagore (1861 -
1941)15 com propriedade assim os descreveu:

Um testamento poético da reação coletiva de um povo pela admiração


e respeito da existência. Um povo de vigorosa e simples imaginação

14 BRYANT, Edwin F. & PATTON, Laurie L. The Indo-Aryan Controversy:


Evidence and Inference in Indian History. Nova Iorque: Routledge, 2005, pp. 468-
504.
15 Poeta, romancista, polímata, músico e dramaturgo indiano, de origem bengali,

ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1913, o primeiro não-europeu a


receber o prêmio. Além da vasta erudição e influência de suas obras, seus
escritos inspiraram os hinos nacionais de Bangladesh e da Índia.

26
que foi despertado logo no início da civilização a um sentido do
mistério inesgotável que está implícito na vida.16 (tradução nossa)

Os épicos são compostos por quatro categorias de textos. Os


mantras, que tratam de palavras sagradas, os brâmanas que ordenam
os rituais sacrificiais, os upanixades que são tratados esotéricos e
filosóficos e os sutras, instruções ritualísticas. Essas categorias,
17
conforme Kulke & Rothermund , expressam etapas históricas
dos arianos desde a vida seminômade nas estepes asiáticas até o
seu gradual assentamento e incorporação dos elementos urbanos
sedentários no vale do rio Indo e posteriormente nas planícies a
leste do rio Ganges 18.

Os mantras, conjunto mais sagrado transmitidos apenas entre os


sacerdotes (brâmanes), são compostos por quatro grupos: o Rig
Veda (o mais antigo deles), o Sama Veda, o Iajur Veda e o Atarva
Veda. O Rig é a mais completa e valiosa fonte histórica que temos
sobre a sociedade ariana, pois se considera que fora composto por
volta de 1300 a 1000 a.C. Os primeiros livros do Rig tratam mais

16 Apud NEHRU, Jawaharlal. The Discovery of India. Nova Delhi: Oxford


University Press. 1994, p. 79.
17 KULKE, Hermann & ROTHERMUND, Dietmar. A History of India.

Londres: Routledge, 1998, p. 33.


18 O rio Ganges foi tão crucial para os assentamentos humanos que é venerado

como o mais sagrado dos rios indianos pelos hindus, como a deusa Ganga.
BHATTACHARJI, Sukumari. Legends of Devi. Hyderabad: Orient Longman,
1995, p. 54.

27
de assuntos filosóficos e sagrados, além de ordenamentos sociais e
familiares. Os livros posteriores do épico Rig têm como assuntos a
política e a guerra, ao abordar os confrontos entre os arianos e
povos do vale do rio Ganges. Nesses, há relatos de povos não-
arianos de pele escura, chamados de dasas ou dasyus que serão
gradativamente incorporados, expulsos ou dominados. Nas
inúmeras campanhas de guerra descritas, há hinos védicos do Rig
que glorificam uma das mais destacadas divindades arianas, o deus
do fogo, raio e destruidor de fortes (purandara), Indra:

Armado com seu raio e confiante em sua proeza, ele vagou


quebrando os fortes dos dasas.

Lança o seu dardo, (...) ó Trovejante, sobre os dasyus; a aumentar o


poder e glória dos arianos , ó Indra.

(Rig Veda, Livro 1, Hino CIV)

Indra, (...) o destruidor de fortes, dispersou os anfitriões dasas que


habitavam nas trevas (...).

A ele rendido (...), a Indra no tumulto da batalha.


Quando em seus braços estendeu o raio, ele massacrou os dasyus e
derrubou seus fortes de ferro.

28
(Rig Veda, livro 2, Hino XX) 19 (tradução nossa)

A expansão dos povos arianos se deu em etapas subsequentes


advindos da região da Ásia Central para o noroeste indiano, e em
direção a leste ao longo da planície dos rios Ganges e Yamuna,
local de excepcional fertilidade para o plantio de culturas como o
arroz e propício para rebanhos de animais domesticados como o
gado bovino. Junto com os rios da região do Punjab, a importância
das regiões fluviais, cultivo de culturas agrícolas e gado parecem ter
ganhado proeminência entre esses povos antes seminômades das
estepes. Assim como nos revela trechos do Rig Veda:

Quando dois exércitos opostos entram em contenda em batalha


por sementes e proles, águas, vacas ou milho da terra.

(Rig Veda, livro 6, Hino 25) 20 (tradução nossa)

A vida sedentária, portanto, começou a partir de meados do


primeiro milênio a. C. entre os arianos, com o estabelecimento de
vilas e cidades, e de campos cultivados descerrados da condição
silvestre resultado de uso de ferramentas (e armas) de ferro. O
comércio e o artesanato ganharam proeminência na sociedade
ariana, a surgir uma casta nova, os vaixás. E houve,

19 GRIFFITH, Ralph Thomas Hotchkin. The Hymns of the Rig Veda. Benares,
Lazarus: 1896–7.
20 Ibidem.

29
concomitantemente, um incremento nas reflexões e preocupações
filosóficas a respeito da vida, sociedade e universo.

Nessas sociedades assentadas, várias entidades políticas arianas


começaram a despontar na região do vale do Ganges-Yamuna,
entre eles os báratas e os purus que uniram-se como a clã dos kurus
e predominaram sobre outros povos da terra que a partir de então
passou a ser chamada de kurukshetra, lar dos kurus. E são os kurus,
suas glórias e feitios que são recitados no épico Maabárata, como
na batalha de Bárata, supostamente ocorrida por volta de 950 a.C.,
combatida entre duas grandes tribos arianas dos kurus, os kauravas
e os pandavas.

Os arianos se mesclaram com o passar dos séculos com outras


etnias locais, resultando numa sociedade cada vez mais indo-ariana.
Em tempos de paz como nos é revelado nos textos védicos, é
distinguida uma diferenciação social entre aqueles membros livres
(vish) e aqueles nobres guerreiros (xátrias) dentre dos quais era
selecionado um rei (rajan). Os sacerdotes (brâmanes) também são
mencionados como grupo distinto nos textos. Povos não-arianos
submetidos ao trabalho manual eram considerados à parte de
todos. E todos foram sistematizados em castas, (varnas). Essa
ordem estabelecida aparece em textos védicos:

30
Quando os deuses prepararam o sacrifício de Purusha 21
Seu óleo era a primavera, o dom era o outono, verão era a madeira
Quando dividiram Purusha, quantas porções eles fizeram?
Do que eles chamam de sua boca, seus braços? Do que eles chamam
suas coxas
e os pés ?
O Brâmane era sua boca, de ambos os braços foi o Raj feito
[Xatriá]
Suas coxas se tornaram o Vaixá, de seus pés o Shudra foi
produzido.
(Rig Veda, Livro 10, hino 90) 22 (tradução nossa)

A estratificação social foi mais explicitada no período tardio


védico, ou seja, por volta de 1100 a.C. a 500 a.C., com a
necessidade de ordenamento social e político a consolidar as
conquistas e o poderio sobre os povos submetidos. Nesse sentido,
o topo do poder residia na mão de um gramani, espécie de líder
guerreiro da sociedade ariana advindo, portanto, da casta dos
guerreiros, vaixás. A inserção de sacerdotes, brâmanes, junto à
elite, constituiu sinal de que entre os arianos desde tempos
seminômades era reservada a líderes espirituais uma posição de
destaque e influência na sociedade. Tal é atestado com a cerimônia

21 Purusha, no Rig Veda , é descrito como um ser que se torna uma vítima
sacrificial dos deuses, e cujo sacrifício criou todas as formas de vida, incluindo
os seres humanos.
22 Ibidem.

31
anual de um rei, o rajasuya, que deveria ser guiada e conduzida
segundo rituais sacrificiais e preceitos guardados por sacerdotes.

Abaixo desses vinham os artesãos e trabalhadores, carpinteiros,


ceramistas e ferreiros, normalmente advindos de sociedades
submetidas. Compostos de povos de pele mais escura. Eles são
mencionados nos textos védicos pela sua importância na
manutenção de carruagens e fabrico de armas e instrumentos.
Muitos eram desconsiderados pela elite, que os enxergavam como
shudras, o estrato mais baixo social, indicando sua posição
marginal na sociedade védica. Com relação ao comércio, a
atividade não era considerada tão impura, podendo brâmanes e
xátrias participar dessa ocupação considerada crucial para a
economia e prosperidade das sociedades arianas 23.

O que nos remete ao conceito de jati (“nascimento, origem”) que


somente aparece no corpus védico num período tardio. Esse
conceito social é uma forma de casta que conviveu com o sistema
de varnas e buscou organizar as diferentes comunidades, tribos,
nações e grupos religiosos e linguísticos da Índia designando-lhes
determinadas ocupações na sociedade. Assim, as milhares de
categorias jatis iam desde as funções militares (srivastava) até

23ERALY, Abraham. The First Spring: The Golden Age of India. Nova Delhi:
Penguin Books India, 2011, p. 258.

32
vendedores de perfume (gandhi), nomes que depois foram
incorporados como nomes de famílias e clãs. E cada categoria era
dinâmica, pois dependia do prestígio e poder de cada jati numa
determinada sociedade, o grupo poderia ascender ou decair dentro
da ordem social. O aparecimento tardio desse conceito aos Vedas
parece indicar uma incorporação posterior de uma antiga prática
social em vigor em outras partes da Índia além do compasso dos
varnas 24.

O Maabárata e os Upanixades

25
O maior épico da literatura indiana, o Maabárata nos conta a
respeito das guerras e intrigas no Kurukshetra – região ocidental do
vales do Ganges e Yamuna – de duas entidades políticas arianas
tardias relacionadas, e o drama dos regentes de ambos os lados. Há
controvérsias de sua autoria, mas atribui-se tradicionalmente a
compilação dos seus cantos ao lendário sábio Vyasa (literalmente,
“compilador”) e ao deus Ganesha 26 27, e sua datação remete acerca
de 800 a. C. até suas versões finais por volta de 400 a. C.

24 THAPAR, Romila. Early India: From the Origins to A.D. 1300. Berkeley & Los
Angeles: University of California Press, 2004, pp. 63-64.
25 Épico composto por mais de dois milhões de versos, dez vezes mais

volumoso do que a Ilíada e Odisséia combinados.


26 Divindade, primeiro filho de Xiva e Parvati. Identificado com um corpo de

homem e cabeça de elefante, é normalmente retratado sentado com as pernas


cruzadas, com um livro e caneta à mão indicando seu apreço pelo intelecto e

33
Seu tema trata das intrigas e disputas pelo trono dos kurus, na
capital Hastinapura, disputado pelos regentes dos kauravas e
pandavas. Ambos os lados discordavam sobre o casamento da
princesa kuru Draupati. As disputas políticas pelo poder
culminaram na Guerra de Kurukshetra, em que os pandavas saíram
vitoriosos. Muita além das batalhas, o foco maior é em torno da
tragédia humana em busca de poder, riqueza, glória acompanhada
de mortes, perdas e miséria. As lealdades de família e política se
entrelaçam e resultam, com frequência, em conflitos dramáticos
revelados no épico.

Entre as inúmeras histórias que compõe o Maabárata, a mais


notória é o Bhagavad Gita. Num momento dramático no campo
28
de batalha, um avatar do deus Vixnu, Krishna, aparece ao
angustiado príncipe pandava, Arjuna, a aconselhá-lo sobre o seu
dever (darma) de um guerreiro (xátria) diante do seu destino. Em
determinado momento, Arjuna começa a questionar a real
divindade de Krishna e este, após hesitar, decide então revelar

sabedoria, sendo o patrono das artes e ciências. Idolatrado por mercadores e


homens de negócio, juntamente com sua consorte, Lakshmi.
27 Cf. HILTEBEITEL, Alf. Rethinking the Mahabharata: A Reader's Guide to the

Education of the Dharma King. Chicago: University of Chicago Press, 2001, pp. 32-
91.
28 “Descida” em sânscrito, que consiste numa manifestação encorpada em

forma humana usado por divindades, como Vixnu, para melhor guiar e
aconselhar a humanidade.

34
todo o esplendor divino e do universo, uma forma de teofania
(vishvarupa):

Ó Mestre (...), se você acha que é possível, em seguida, gentilmente


mostra-se em sua forma imortal para mim.

(...) Krishna respondeu: (...) eis minhas formas divinas ilimitadas de


vários matizes e formas.

Ó descendente de Bharata [Arjuna], eis aqui os Adityas, Vasus, Rudras,


os Ashvini-Kumaras e os Marutas 29. Eis as múltiplas formas
surpreendentes, nunca antes vistas.

Ó conquistador do sono, eis que neste único lugar todo o cosmos,


incluindo todos os seres móveis e imóveis, tudo dentro dessa Minha
forma, juntamente com qualquer outra coisa que você deseja ver.

No entanto, você é incapaz de perceber isso com os olhos do presente,


por isso vou dar-lhe visão divina. Agora, eis meu esplendor místico!

(...) Krishna revelou a Sua forma de bocas infinitas e os olhos,


adornado com muitos ornamentos divinos e levantando muitas armas
celestes. Ele foi decorado com guirlandas e roupas divinas e ungiu com
fragrâncias celestiais. Ele era o mais maravilhoso, esplendoroso,
ilimitado e que a tudo permeia.

29 Divindades e personagens diversos da mitologia hindu.

35
(Bhagavad Gita, Capítulo 11, versos 4 a 11) 30 (tradução nossa).

A filosofia indiana no período tardio védico começou a refletir


uma mudança de atitude diante do destino e do universo,
diferentemente da atitude anterior dos arianos seminômades de
fatalismo, magia e transitoriedade. A partir de então, a visão
enfatiza cada vez mais a vulnerabilidade e brevidade do indivíduo,
e da importância de sua conduta na vida com relação aos outros,
surgindo conceitos como o carma (“ação”, em sânscrito), uma boa
conduta a gerar consequências no futuro e em outras formas de
vida. E samsara (“perambulação”), em que nossas ações irão se
refletir nas subsequentes reencarnações, consistindo estas num
ciclo incessante de renascimentos. Esses dois conceitos talvez
tenham sido incorporados pelos arianos védicos diante das
mudanças sociais e políticas ao estabelecerem-se e ordenarem-se
em reinos permanentes e dinásticos, a refletirem sobre os efeitos
da guerra, morte e fragilidade da vida humana 31.

Esses acréscimos filosóficos e religiosos foram sendo adotados


pela sociedade, desde os brâmanes aos shudras e incorporados
como comentários finais aos textos védicos, conhecidos como os

30 EASWARAN, Eknath. The Bhagavad Gita (Classics of Indian Spirituality). Tomale,


California: Nilgiri Press, 2007.
31 WOLPERT, Stanley A. India. Berkeley: University of California Press, 2005, p.

32.

36
Upanixades, ao final dos textos védicos (por isso conhecido como
vedanta, “fim dos Vedas”) entre 750 a.C. e 500 a. C. A ênfase dada
no período final dos Vedas e dos Upanixades, portanto, se voltam
mais para o caminho místico do indivíduo, para a sua alma (atma) e
sua relação com a alma do universo (brahman), acreditando numa
relação entre esses dois universos em termos de conciliação e
unidade, através de transmigrações e renascimentos 32.

Os Mahajanapadas e a ascensão do império Mágada

Por volta de 700 a.C. ocorreram assentamentos indo-arianos na


região de Ujjain, capital do reino de Avanti, a mais de 800 km ao
sul de Kurukshetra. Ao norte e a leste, houve deslocamentos para
regiões de altitude com temperaturas amenas e menos florestadas
em comparação ao sul e ao leste indiano. Mas foram as terras
férteis a leste, em direção ao vale do rio Ganges e Yamuna, hoje
nos estados indianos de Bihar e Uttar Pradesh, que provaram ser
irresistíveis aos povos indo-arianos. Da região do Kurukshetra no
século 6 a. C., a maior migração foi em busca de kshetra, termo que
designa terras propícias ao cultivo e gado.

MÜLLER, Friedrich Max & DEUSSEN, Paul. The Golden Book of Upanishads.
32

Nova Delhi: Lotus Press, 2006, p. 15.

37
As terras do leste indiano forneceram também as condições para a
formação de estados unificados sob comando militar e sacerdotal,
em categorias chamadas de janapadas. Algumas dessas unidades
após anexações e ampliações resultaram em mahajanapadas, ou
grandes reinos. Entre esses constaram alguns com maior projeção:
os reinos de Mágada (Magdha ou Magadha), Kosala, Vatsa e Avanti
a disputarem entre si a supremacia. Em essência, foi essa a história
política da Índia do século 6 a.C., com a gradual predominância do
33
reino de Mágada . A maior expansão deste reino se deu na
dinastia dos Haryankas (c. 600 a 413 a. C.), especificamente sob o
reinado de Bimbisara (r. 542 – 492 a.C.). Com este, o reino ganhou
contornos imperiais, abarcando as regiões indianas de Bihar e
Bengala a leste, além mais de Uttar Pradesh e Odisha ao longo da
costa sul.

A estrutura desses estados Mahajanapadas foi, em essência, um


conjunto fluido de alianças e lealdades entre lideranças políticas. O
comando central direto exercia-se apenas sobre territórios nos
arredores da capital e algumas entidades tribais adjacentes. Os
reinos mais afastados e aliados tinham considerável autonomia,
somente sendo exigida lealdade em casos de guerra e atendimento
a ocasionais cerimônias reais. As fronteiras imperiais confinaram-

33SHARMA, Ram Sharan. Ancient India. Madras: National Council of


Educational Research and Training, 1981, p. 71.

38
se em grande parte a limites naturais, como rios, desertos e
montanhas. Esse sistema político de alianças, conceituado como
34
rajamandala (“círculo de estados”) por Cautília (Kautilya) 35, foi
praticado em tempos posteriores entre regentes hindus e o sistema
imperial indo-britânico a partir do século 18.

O Budismo e o Jainismo

Na fase histórica entre o final do século 7 a.C. ao final do século 5


a.C., foi decisivo o desenvolvimento da cultura indiana e regiões
próximas. Foi uma fase de intensa urbanização e efervescência
36
cultural . E foi sob o império Mágada que o budismo e o
jainismo foram fundados e floresceram. Nos cânones budistas em
37
língua páli consta que Bimbisara concedeu proteção e culto à
primeira destacada personalidade histórica da Índia, o príncipe
Sidarta Gautama (563 a. C. ou 480 a.C. – 483 a.C. ou 400 a. C.), o

34 SINGH, M. P. & ROY, Himanshu (Orgs.). Indian Political Thought: Themes and
Thinkers. Nova Delhi: Pearson, 2011, p. 11.
35 Filósofo e pensador indiano (350 a.C. a 275 a. C.) que escreveu extensamente

sobre a política, o poder, economia política e estratégia militar na sua clássica


obra “Artaxastra”.
36 KULKE, Hermann & ROTHERMUND, Dietmar. A History of India.

Londres: Routledge, 1998, p. 49.


37 Uma das línguas litúrgicas indo-arianas usadas entre os séculos 5 a.C. a 1 a. C.

com possíveis origens do sânscrito clássico. O páli foi o meio usado no período
mais antigo da literatura budista, como nas compilações do Tripitaka e dos
cânones do budismo teravada.

39

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