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As minhas

paisagens
textos desgarrados
e meio perdidos

“Não há livro,por mau que seja,


que não tenha alguma coisa boa”
Plínio

Salvador Massano Cardoso


2019
Introdução

Há alguns anos que não publico um livro. A razão é muito fá-


cil de explicar, não sabia como selecionar os textos. São tantos.
Hoje, lembrei-me de três palavras, tolos, serras e amor. Os tolos
seduzem-me pela sua simplicidade e forma de sentir o mundo.
Para mim uma terra sem o seu tolo não é nada, é um mero deserto.
O tolo chama sempre a atenção e é alvo de carinho e de respeito.
Dá cor à vida. Permite pensar que existe outra maneira de ver o
mundo. Não é um animal de circo, é uma espécie de anjo, não
caído, mas humilde e simples. Há frases que em criança cimentei
para o resto da vida, uma delas é “Bem-aventurados os simples de
espírito, porque deles é o reino dos Céus”. Foi por causa disso que
comecei a respeitá-los.

A outra palavra tem a ver com serras. Nasci num planalto entre
duas serras. Conheço as suas formas e anseios. Sei como falam, co-
nheço as suas formas, sei como se vestem, imagino o que sentem,
são livres, veem tudo, desde as terras longínquas até às profunde-
zas do universo. Vigiam o caminho do sol e da lua. Brincam com
as nuvens e recebem as suas lágrimas no seu longo e esguio corpo
com as quais alimentam o mundo a longas distâncias. Adoro vê-las
a todo o momento. Nunca consegui ver duas imagens idênticas,
são a expressão mais bela do que quer que seja, seja divino ou
qualquer outra coisa, Atraem-me. Por isso cavalgo-as sempre que
posso, faça o tempo que fizer. Os seus silêncios são misteriosos,
quer em dias de sol, quer em dias de nevoeiro, ou em dias de tor-
menta. Adoro-as e não consigo viver sem elas.

A outra palavra é amor. Palavra pequena, mas repleta de grandiosi-


dade, de generosidade, de esperança e fonte de inspiração, quais
nascentes de águas frescas que saciam tudo e todos.
O que é que eu fiz? Lancei as três palavras a propósito dos meus
textos. E depois? Depois surgiram textos sobre tolos, serras e amor.
Fiquei de boca aberta. Quase uma centena e meia de textos come-
çaram a desfilar perante os meus olhos, Mas o mais surpreendente
foram os textos em que a palavra amor estava presente. Muitos.
Nunca pensei que tivesse utilizado esta palavra tantas vezes. Fiquei
satisfeito, acabei por encontrar a “minha” palavra, amor. Amor em
toda a sua largura e profundidade, desde o amor cheio da alegria
e prazer ao amor vestido da mortalha da morte. O amor tem essa
característica, voa em todos os sentidos e sente-se com todos os
sentidos...
“Dedico esta obra à minha mulher, Lucília,
aos meus filhos, Ilda, Inês e José Miguel
e aos meus netos, Mariana, João António e Leonor.”
AS MINHAS PAISAGENS
(textos desagarrados e meio perdidos)

Autor:
SalvadorMassano Cardoso

Capa, pintura de:


Mário Salvador
As minhas paisagens

“O tolo”...

Boné na cabeça, mãos atrás das costas, cabeça de lado e sempre a olhar
para a rua como se estivesse à espera de alguém. O tolo, que não via há
alguns anos, estava no mesmo sítio, em frente da porta do cemitério. Viu-
me e comentou sem olhar: - A Marisa não me vem buscar. E são horas
do almoço. O relógio está a trabalhar. Às tantas só vou almoçar à noite.
Mas hoje é dia de Natal ou quê? Entre as múltiplas frases olhava para o
pulso como a querer confirmar o tempo.
- Esteve a trabalhar? Perguntei. – Estive. Estive à espera da Marisa. Nunca
mais me vem buscar para comer. – E quem é a Marisa? – É a minha cole-
ga. Trabalha neste escritório aqui. – Muito bem. Já agora pode dizer-me
o que é que o senhor faz? – Eu sou chefe. – Chefe de quê? – Chefe de pri-
meira. Ainda cuspo muito para comer. A que horas se almoça hoje? São
horas. Ia respondendo às minhas perguntas sempre de costas voltadas,
olhando para o lado esquerdo à espera que alguém chegasse. Sentado
à sombra de uma delicada árvore deixei-me ir naquele estranho diálo-
go. – O senhor trabalha aqui há muito tempo? – Quinze dias, só! – E já
é chefe? – Para o ordenado que tenho ainda é pouco. – Mas diga-me lá
uma coisa. O senhor é chefe dos coveiros? Não respondeu. Talvez não ti-
vesse ouvido, - Há muitos coveiros? – Há. – Quantos? – Quatro. – Afinal
há quanto tempo está aqui? – Há muito. Há vinte anos. Sorri e comecei
a recordar a conversa que tivemos há alguns anos em que o tempo era
a coisa mais elástica e volúvel que alguma vez vi. Tinha aspeto limpo e
cuidado. Quem o trata fá-lo com carinho e atenção. Continuei a conver-
sar com ele através das suas costas. Nunca me olhou de frente. Sempre
à coca da chegada da Marisa. – Já trabalhou hoje? – Estou à espera da
Marisa para comer. Eu tenho de comer. Se uma pessoa não come morre.
Vai para debaixo da terra. E não é que a gaja demora! Com catano. São
quase duas horas e ela não vem. Para a próxima não a deixo ir a lugar
nenhum. Primeiro come-se, depois trabalha-se. – Ela foi fazer o quê? - Se
calhar foi às compras. – A esta hora está quase tudo fechado. São horas
de almoço. – Ela já devia cá estar. Eu como às três horas. Depois as horas
fazem-se tarde de mais. – A que horas é que sai? – Saio às duas. – Mas
são uma e meia. Olhou para o relógio e ripostou: - São duas e meia, são.
– Como é que se chama? – José Manuel da S. R. – Mora aqui perto? –
Moro na Presa, antes de chegar à capela do Morais, lá para cima. Eu nem

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sei se a mulher dele já morreu ou não. Ainda há tempo a vi.


A conversa continuou sempre em redor da vinda ou não da Marisa. – Ela
esqueceu-se de que tenho de comer. São três horas e daqui a pouco são
três e vinte e ela sem vir. Olhava constantemente para o relógio cujos
ponteiros, se trabalhassem melhor do que a sua cabeça, deveriam estar
na uma e quarenta. – Ora, a gaja já cá devia estar. Ela e a outra. Eu como
às duas horas, duas e meia, três horas, as horas que eu quiser. E ela
demora-se. – Onde é que vai comer? – Aqui, no depósito. – Onde?! – O
Nélson já comeu e há muito tempo. Eu é que não. – Quem é o Nélson?
– É o coveiro cá disto. – Já agora o senhor quanto ganha por mês? – Dois
contos e tal. Mas isso é pouco! – Já pediu aumento? – Há quanto tempo!
Pedi à Marisa. Mas a Marisa hoje está demorada. Entretanto, rapa do
bolso um longo desdobrável e pôs-se a lê-lo. – Que lista tão grande! O
que é isso? Perguntei. – São as horas extraordinárias que ela me deve.
– Desde quando? – Desde fevereiro. – Ela já não volta. Disse-lhe. Não
respondeu. Permanecendo sempre de costas olhava atentamente à es-
pera do que não tem que aparecer. O tolo, no seu discurso enigmático,
ia construindo o seu mundo virtual, uma espécie de Pokémon desejoso
de ser apanhado por alguém que pudesse ajudar a treinar a sua pobre
mente. Repeti: - Ela hoje não vem. – Vem, mas só às quatro horas, quatro
e meia. Já são quase. – Mas que horas são? Olhou para o relógio e dis-
se: - São quase três horas. – Três ou duas? – Duas. – Pois são. Foi então
que me recordei da frase do tolo com a qual definiu, e bem, o trabalho,
“cuspir muito para comer”.
Foi o que eu fiz!
Aprendemos sempre com alguém, até com um tolo.

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“Ainda cuspo muito para comer”...

Confesso que me falta fazer muita coisa. O tempo passa com rapidez.
Escasseiam as oportunidades para satisfazer velhos desejos. São tantos
que se anulam praticamente uns aos outros. Um deles tem a ver com os
regionalismos. Adoro, gosto de os saborear e de os colecionar. Andam
perdidos, são esquecidos, mas, em tempos, desenhavam com precisão
e sentimento o pensar das gentes. Cá em casa ainda há quem os debite.
Fico surpreendido com este regresso a uma memória das vivências de
gente de outrora. Estou sempre a aprender. Ai como gosto de aprender!
Hoje, num diálogo de um tolo e de um candidato a toleirão, ouvi a ex-
pressão, “ainda cuspo muito para comer”. Assim que a escutei, surgiram
na minha mente os velhos cavadores a cuspir as mãos para as amaciar
como se quisessem adocicar o contacto duro e doloroso com os cabos
das enxadas. Nunca começavam a rasgar a terra sem antes lubrificar
com a sua saliva espessa as mãos calejadas. Como se estas precisassem!
De tão duras que eram nem deviam tugir ou mugir perante aquele ato
simbólico. Vi inúmeras vezes este gesto, que se ia repetindo ao longo
do dia, como sendo mais um ato de raiva do que qualquer outra coisa.
Tinham de comer. Tinham de trabalhar. Cuspindo nas mãos desafiavam a
própria vida, ingrata e dura até dizer basta.
Ouvi-a hoje da boca de um tolo.

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“Lamego”...

Vou a Lamego todos os anos, mais do que uma vez, mas no verão é
quase certo passar duas ou três vezes. Uma delas tem a ver com a Nos-
sa Senhora dos Remédios. Aproveito para cortar o cabelo. Uma mania
como qualquer outra. Gosto e aproveito a jornada para revisitar velhos
locais. Hoje fui por aí acima. Parei em Castro Daire para almoçar. O se-
nhor Carlos, muito simpático, já nos conhece. Assim que chega à mesa
para perguntar o que desejamos já traz um jarro de vinho de Valdigem.
Boa pinga. Depois nem dá tempo, em poucos minutos aparece o prato.
Hoje foi bacalhau à Gomes de Sá, muito diferente do que comemos
nos nossos sítios. Antes, tirou-nos os pratos e perguntou: - Vão comer
da travessa, não é verdade? Não sabendo o que dizer disse: - Vamos,
pois! Pois bem, o prato estava delicioso. Uma refeição agradável servida
por alguém excecionalmente simpático. Confesso que por vezes prefiro
andar durante três quartos de hora só por causa desta forma de servir e
da qualidade da comida, sardinhas, trutas, bacalhau, petingas, batatas
regadas por Deus, melão misterioso servido com travo a limão e um bom
vinho de uma região querida do Douro. – Até à próxima. Disse. Espero
que seja em breve, basta-me sentir esse desejo.
Ao chegar a Lamego confrontei-me com as festas. Engalanada e bonita
como sempre, recordo sempre o meu amigo Ferreira de Almeida. Sem-
pre presente na minha mente quando viajo até à sua terra. Ainda era
cedo para cortar o cabelo. Fomos dar uma volta pelas tendas, até nos
enfiarmos na parte popular, comum a qualquer romaria. De repente,
ouvimos barulho e gritos. Uma zaragata à maneira. Assustei-me, o tom,
as ameaças e o vernáculo mais imaculado da língua portuguesa, aliado a
sentimentos de explosão maligna, impregnavam a rua dos tendeiros. Bo-
nito! Pensei. Só espero que não acabe em confronto grave. Faltou pouco,
muito pouco, um tendeiro barafustava ameaçadoramente contra outras
duas que se tinham apropriado indevidamente de um espaço vazio à sua
frente. Parece-me que tinha pagado esse lugar. O fiscal da câmara nem
sabia o que fazer, umas vezes estava calmo, outras quase que perdia a
paciência. As duas usurpadoras ameaçavam chamar a polícia porque o
tendeiro ofendido disse que tinha uma pistola. O histerismo reinava e a
raiva também. – Estas pessoas são testemunhas de que nos ameaçastes
com uma pistola! E abria os braços como a quer arrolar como teste-

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munhas todos nós, incluindo eu. Ferviam como caldeirões do inferno.


Depois há os metediços, como um tolo, alto, vestido com uma camisola
do Benfica, braço direito engessado ao peito a advertir o feirante de
que aquilo não eram maneiras de falar com as duas senhoras! Senhoras
porque eram do sexo feminino, porque em termos de língua, upa, upa,
teriam de subir ao Evereste para adquirir aquele qualificativo. De repen-
te surgiu a Emília. A Emília era a mulher do feirante que, desesperada,
ia disposta a afrontar as usurpadoras. Tentaram acalmá-la, mas em vez
disso deu-lhe o fanico, deixando-se tombar na estrada, docemente, e
ficou estatelada no chão. Calaram-se todos. Cada um começou a empu-
nhar o seu telemóvel para chamar o 112. Bonito. Pensei. Aproximei-me,
identifiquei-me como sendo médico e observei a senhora. Um “fanico”
que iria resolver rapidamente. – Tenham calma. Deixem-se disso. Não
é preciso chamar ninguém. Retirei de uma pequena caixa, onde tenho
algumas “coisitas”, um comprimido cor-de-rosa e enfiei-o debaixo da
língua da senhora. Todos olhavam para mim, agora em silêncio. Com
dois belos e intensos beliscões na pele da região esternal ouvi um “ai”,
seguido de um outro muito mais audível, “Aiii! – Pronto! Já está. Já res-
ponde. Arranjem um copo de água. – Com açúcar senhor doutor? – Não.
Coloquem-na numa cadeira à sombra e daqui a pouco já estará muito
melhor. Vai ficar um pouco sonolenta, mas isso passa. E assim foi. Entre-
tanto, as duas “senhoras” agarraram na sua banca e foram para longe,
para um sítio que o fiscal da câmara arranjou para não haver mais com-
plicações.
- Então, está melhor? Perguntei-lhe. – Estou sim, senhor doutor. Muito
obrigada. – Como é que se chama? – Emília. – Vá. Descanse Emília. Já
acabou tudo.
Resultado da história, evitei a saída de uma ambulância do INEM em
Lamego. Eles não sabem, mas devem-me esta. Depois fui cortar o cabelo
e comprei uma Nossa Senhora dos Remédios.
Ora, não digam que não há remédios santos!

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“Ó Chiquinho, o lugar?”...

Na minha adolescência, as férias do Verão eram passadas, invariavel-


mente, na terra, em amenos e divertidos convívios com os colegas e
outros jovens que nessa época vinham das cidades. O local de encon-
tro, “Oásis”, era uma esplanada isolada junto à ponte do rio Dão, um
velho parque com belas e frondosas árvores, entre as quais sobressaíam
gigantescos cedros impedindo o sol de penetrar no espaço. Tardes e noi-
tes com jogos, música, conversas e alguns mosquitos. Durante a tarde,
depois da digestão feita, dava uma saltada ao rio e tomava umas boas
banhocas, acabando, em seguida, por repousar mais uns momentos na
esplanada até fazer horas para o jantar, rápido, findo o qual voltava ao
“Oásis” para a noite. Mas tinha que acabar a minha participação antes
das doze badaladas, exceto em alguns dias de festa. Mesmo nestes casos
a hora limite era até à uma, sendo um problema se chegasse meia hora
depois. Feitas as contas ainda eram uns razoáveis quilómetros a pé que
tinha que fazer diariamente.
No Verão dos meus quinze anos, juntou-se ao nosso grupo duas jovens
que não conhecíamos de lado nenhum. Sabíamos que estavam a habitar
a casa da curva do bairro. O pai, um senhor bem parecido, com aspeto
de ter idade na casa do meu, passou a ser objeto de curiosidade. Quem
seria? Donde vinha? Por que razão passou a ocupar uma casa que nin-
guém se lembrava de ter sido habitada. Uns diziam que era engenheiro,
que vinha para as obras, outros desconfiavam e diziam que não tinha
cara disso. Ao fim de algum tempo a curiosidade foi satisfeita, tratava-se
de um escritor. Mas o que é que fazia um escritor na vila? Devia escrever,
claro. Mas porque razão escolheu o nosso espaço? Se o escolheu devia
ter os seus motivos. Vi-o várias vezes a conversar junto do café da vila
e fiquei a saber o seu nome: Mário Braga. Presumo que passou mais do
que um verão.
Uma das filhas, no “Oásis”, desafiou-me para um jogo de cartas. – Va-
mos jogar à canasta? – Canasta?! Que jogo é esse? Ficou com ar meio
surpreendida com a minha resposta. Disse que era um jogo em que se
utilizavam as 52 cartas. Aí, fazendo de porta voz do grupo dos meus
amigos, respondi que não sabíamos jogar com tantas cartas, só com 40
e tinha que ser à bisca ou à sueca, porque ao burro era para os mais mi-
údos. Bem tentou explicar as regras, mas nós não achámos muita piada.

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Acabou por ter que jogar à sueca e à bisca. Que remédio!


Perguntámos se o pai era escritor, e ela disse que sim. Gostava da nossa
vila, queria conversar com as pessoas, estudá-las, ouvir as suas histórias,
tudo para se inspirar e produzir a sua obra.
Anos mais tarde, já era médico há algum tempo, em casa de um com-
padre, esbarrei numa obra intitulada “Histórias da Vila”. Perguntei-lhe:
- Olha lá. Este autor não era aquele senhor que chegou a habitar durante
o verão a casa da curva do bairro? Respondeu que sim e disse que o li-
vro contava histórias da vila. Pedi-lhe emprestado e li-o, freneticamente,
de uma penada. Recordo de algumas passagens e, sobretudo, de uma
personagem, facilmente identificável, que conheci muito bem. O livro
tinha um encanto especial. Adorei a narrativa e a análise das suas per-
sonagens.
Há dias, num intervalo de provas académicas que decorreram em Lis-
boa, aproveitei a tarde do primeiro dia para não fazer nada, ou melhor,
acabei por fazer o habitual, ir para a zona do Chiado, que eu adoro,
percorrer os alfarrabistas. Entrei num e deparei-me com quatro obras
que de imediato recolhi, a primeira das quais foi “Antes do Dilúvio” de
Mário Braga. O livro editado há quase 40 anos tinhas as marcas naturais
da passagem do tempo. Comecei a folheá-lo e a leitura do mesmo fez-
me recordar o outro que tinha lido há muitos anos. Na última página,
a fechar a obra, podia-se ler: “Santa Comba Dão. Agosto de 1966”. Ah!
Então este era o livro que o senhor andava a escrever naquele belo e sau-
doso verão! Em duas noites devorei-o com a mesma satisfação da leitura
de “Histórias da Vila”.
A história do “Antes do Dilúvio” descreve a vida e a problemática polí-
tica e social de uma vila tipicamente beirã. A personagem principal era
o Chiquinho Boavida, barbeiro, cronista do semanário da região, presi-
dente da junta de freguesia, dotado para as artes de fígaro e excelente
orador, desejoso de voos mais altos que lhe possibilitasse ir para Lisboa,
a fim de fugir à tirania da mãe e poder casar com a sua eterna amada,
além de tirar rendimentos dos seus talentos.
Numa das passagens, o escritor relata a entrada em cena do Recor. O
Recor é o tolo do sítio, defeituoso de mão e pé direitos que nunca con-
seguiu sair da primeira classe. O mestre-escola chegou a dizer-lhe que
batia o “record da estupidez”. De record a Recor foi um passo para pas-
sar a ser conhecido apenas pelo apodo. Era defeituoso, tinha as suas li-
mitações mentais, mas sabia que tinha que ganhar a vida, porque a mãe

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era pobre. Tinha pedido mais do que uma vez um lugar na junta ou no
cemitério a fim de providenciar o seu sustento. Volta e não volta atacava
o presidente da junta da freguesia. A sua entrada em cena, na obra de
Mário Braga, é notável. Chiquinho Boavida, numa caminhada, matutava
sobre como dar volta à vida, quando sentiu alguém, por detrás, a puxar
a manga do seu casaco dizendo: - “Ó Chiquinho, o lugar?” Surpreendi-
do, disse-lhe que estava a ser difícil porque não tinha o diploma e sem
o comprovativo da quarta classe não sabia como arranjar-lhe um. Lá se
descartou do pobre rapaz como pode.
No dia em que comprei esta obra, os jornais anunciavam as preocupa-
ções do senhor Presidente da República com o desemprego dos nossos
jovens que estão cada vez mais qualificados, mas cada vez mais longe
de arranjarem um lugar que lhes possa propiciar independência e sub-
sistência. É triste o ambiente depressivo que nos rodeia. Desempregados,
incapazes de conseguirem um lugar minimamente estável, objetos de
exploração indigna, o quadro não abona nada de bom e desmistifica a
promessa de alguém que há pouco mais de dois anos prenunciou uma
centena e meia de milhar de novos empregos! Não foi nenhum presiden-
te de junta, foi o atual (2007) Primeiro-Ministro.
Os jovens que andam por aí não são defeituosos, o que é, também,
de somenos importância, como é óbvio, não são tolos e têm, a grande
maioria, diplomas de ensino superior, um verdadeiro record.
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga do
senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: - “Ó Chiquinho, o lugar? “
Qual seria a sua resposta?
A do Boavida já eu sei.

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“Tolinhos da aldeia”...

Lembrei-me logo de manhã, numa viagem cheia de sol e encantada de


frescura e odor primaveril, do despovoamento que ocorre dolorosamen-
te no interior do país. Conheço bem, bem demais, a intimidade de Por-
tugal mergulhada em aldeias, vilas e belos locais cheios de amor e de
lembranças perdidas. Veio à minha memória, que se sente a esgotar-se
na tenebrosa realidade de uma época sombria e não desejada, velhas
figuras, verdadeiros símbolos da vida comunitária, os tolos das aldeias.
Subitamente, talvez inspirado pela combinação única da frescura de
uma manhã soalheira e de uma estranha nostalgia, dou por mim a pen-
sar nos velhos tolinhos da minha terra, pessoas únicas que pintavam
diariamente de cores garridas e quentes a vida comunitária.
Pensando bem, eram o centro da vila, ao seu redor cumpria-se um ritual
e uma liturgia própria que ajudava os mais velhos a compreender a vida
enquanto os mais novos aprendiam a ser tolerantes com os mais fracos.
Os tolos da aldeia davam vida e cor à terra. Não eram vexados e não
os ofendíamos, embora pudéssemos divertir-nos com algumas situações,
mas sempre dentro de limites corretos. Protegíamo-los como se fossem
da nossa própria família. Não passavam necessidades e justificavam as
nossas saídas, pelo menos as minhas. Na minha terra houve alguns que
me marcaram.
A vida tramou-lhes os seus desejos e direitos, mas nem por isso deixaram
de ser respeitados. No círculo desenhado pelas suas presenças criavam-
se laços de amizade. Conseguíamos parir desejos de respeito e de consi-
deração por indivíduos que a natureza se incumbiu de marcar com o fer-
rete da discriminação. Uma bela forma de repor a humanidade desfeita
por estranhos caprichos. Recordo-os com saudade. Não tenho dúvidas
de que a sua presença aglutinava as esperanças num futuro melhor. Eram
capazes de estimular algo que a humanidade sempre perseguiu, a tole-
rância e o amor ao próximo. Conheci alguns. Respeitei-os sempre. Agora
que tudo se perde, hospitais, quartéis, repartições, tribunais e muitos ou-
tros organismos públicos, levando o pobre interior à falência existencial,
vejo que foi antecedido pelo desaparecimento dos tolinhos da aldeia.
Uma aldeia, vila ou pequena cidade do interior que não consiga preser-
var a identidade e a centralidade de um tolo não abona nada a seu favor
no futuro. Quase que poderia afirmar que os tolos são mais sensíveis

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do que as andorinhas. Quando desaparecem, e não são substituídos,


é porque a desertificação já está em curso com as inevitáveis nefastas
consequências. Olho para muitas localidades e não vislumbro os "Van
Goghs" das nossas esperanças artísticas. Que pena e que saudades tenho
de rever velhos amigos.
A desertificação é uma estranha realidade, desaparece tudo, até os toli-
nhos da aldeia, logo...

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"Almoço de palavras"...

Comecei a sentir fome. Pensei, devem ser horas de almoço. Olhei para
relógio e vi que ainda faltava algum tempo. Então, imaginei, deve ser
fome de palavras. Sentei-me. Estava sozinho e violei a hora do almoço.
Comecei a comer sopa, onde as palavras se misturavam umas com as
outras, diferentes, algumas boiavam, outras mergulhavam e muitas dan-
çavam. Entraram na boca e senti um turbilhão, todas falavam ao mesmo
tempo, todas queriam fazer um sermão. Deixei-as à vontade e ouvi o
seu encanto, e senti prazer na boca e no coração. O vinho olhou-me,
triste e ansioso por desejar participar no festim. Vi que estava nervoso,
peguei no copo e bebi. Estava ainda a saboreá-lo e ele já andava a can-
tar poesia pelo corpo. Feliz e livre fazia belos poemas que nunca senti.
Continuei a comer. Enquanto o meu estômago agradecia, a minha alma
explodia com o encanto das palavras. Estava sozinho até que entrou o
tolo. Sentou-se, encomendou, começou a beber a cerveja e olhou para
mim com alguma inveja. Só um tolo consegue transformar a minha so-
bremesa num belo bolo. Entretanto, o vinho, triste, perguntou porque
é que não bebia mais. Expliquei-lhe, mas não entendeu, quis dizer-lhe
que só me apeteceu ouvir as palavras de um almoço que era só meu. O
pão gritou de raiva e de estupefação, porque é que não me comes, eu
que fui a tua paixão? Não te como pão, porque continuas a ser a minha
perdição. Calou-se, pois então, mas mesmo assim fiz a vontade ao meu
coração, mandando às malvas a razão, e comi, no final, um pequeno pe-
daço de pão. Uma ode à vida, ou uma oração ao céu, passa sempre por
um saboroso naco de pão partido à mão. Um momento simples capaz
de provocar a mais estranha emoção. Acabo por ver que estou a escrever
num espaço dedicado à oração, fazendo a minha digestão. Palavras, po-
esia e vida, pois então, chegam para tranquilizar o meu coração.

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"Dois loucos. Cada um à sua maneira"...

Criar hábitos ou rotinas é uma das minhas principais características,


é-me tão fácil que chego a pensar se não sofro de qualquer propen-
são para ser adicto. Por isso resta-me escolher os “melhores”, ou, então,
os que não sejam muito perigosos para a saúde. Ajudam a equilibrar
o dia-a-dia, e se forem bem aproveitados permitem colher elementos
interessantes que nos obrigam a refletir melhor sobre a vida e os seres
humanos. Aproveitar a hora de almoço, quando estou fora de casa, para
ler ou para escrevinhar é muito agradável. Faço-o frequentemente. Num
dos locais onde vou regularmente aproprio-me de um banco de madeira
à porta de um cemitério, debaixo de uma árvore que faz de excelente
guarda-sol. O que já li e o que já escrevi naquele local, e, também, o
que já vi! Sabe-me bem. Não me incomoda nada o que está para além
do portão. Entram e saem pessoas, eu vejo-as, tentando penetrar nas suas
almas, para logo mergulhar na escrita ou na leitura. São muito poucos
segundos, não dão para grande coisa. Ao longo deste exercício semanal,
que é essencialmente estival, acabei por reparar que, um pouco antes
das quatorze horas, aparece sempre um indivíduo meio destrambelhado
a falar sozinho e em passo acelerado transportando uma pasta de cabe-
dal que já viu, e há muito, melhores dias. Entra no cemitério com uma
bolina impressionante, revelando que não é por motivos sentimentais ou
de refúgio espiritual que o faz. Qual quê! Se tivesse de descrever o que
penso dele, poderia dizer, mais parece um fiscal das finanças desespe-
rado em colher impostos dos que estão ali deitados de costas, como se
isso fosse a salvação do país.
Hoje, apareceu à hora aprazada. Mas antes, comecei a ouvir alguém
aos berros, "filhos da puta, só greves, cabrões, só greves, malditos, fi-
lhos da puta", afinal era ele, que, muito agitado, passou à minha frente,
ignorando-me e, também, obviamente, os surdos que estavam lá dentro
a repousar. Pensei, este gajo deve estar fulo com a greve dos médicos.
Comecei a escrevinhar um pequeno texto que vinha gizando desde a
manhã, quando o tolo ou o meio-tolo sai do cemitério esbaforido a di-
zer cobras e lagartos das greves, mas de todas as greves e de todos os
grevistas. Senta-se num banco a meia dúzia de metros e começa a dizer,
“eu tenho que escrever isto, tenho, pois, ai vou escrever, malditos, fi-
lhos da puta, só greves, só greves”. Tira um caderno da pasta e um lápis

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As minhas paisagens

e começou, “ora, hoje são vinte e quatro, pois é isso mesmo, vinte e
quatro do quatro, quatro do vinte e quatro, filhos da puta, só greves, só
greves”. Olhei estupefacto para o meu vizinho e pensei, que quadro tão
curioso, ele escreve as suas notas e eu as minhas. Dois loucos que esco-
lheram dois bancos, debaixo de duas belas árvores à entrada do sítio da
verdade. Olhei novamente para ele, mas não se incomodou. Olho-me
e eu não me incomodei, fiquei apenas com uma curiosidade dos diabos
sobre o que conteria aquele bloco. Quem sabe se um dia destes ainda
não iremos trocar os nossos apontamentos, eu mostro-lhe os meus e em
troca ele mostra-me a sua escrita, escrita de delírios. Faltavam escassos
minutos para retomar o trabalho quando uma senhora vestida de negro,
testemunhando uma perda recente, sai pelo portão acompanhada de
duas crianças, a mais nova, um rapaz de dez a onze anos, traquina,
convencido da sua imortalidade e indiferente ao significado do espaço,
dirigiu-se ao meu companheiro, que ia escrevendo em voz alta os seus
protestos contra os grevistas, perguntando-lhe, a que horas é que parte
o próximo comboio para Lisboa, respondeu de imediato, sem levantar
a cabeça, como se fosse um horário vivo, “às cinco menos doze, e o
comboio a seguir, às cinco menos treze”, tal foi a velocidade com que
deu a informação revelando que estava mesmo junto de alguém que, se
não era louco, deveria sofrer de algum delírio quântico. O puto, que já
o devia conhecer muito melhor do que eu, riu-se, e a mãe, que tinha
ao sair um semblante triste, conseguiu revelar uma certa cumplicidade
com o filho, olhando-me como que a pedir desculpa pela brincadeira,
oferecendo-me um discreto sorriso. Retribui-lhe, naturalmente.

19
Salvador Massano Cardoso

“Colcha de algodão”...

Olho para a minha serra. Sempre em polvorosa. Nunca se cala no seu


eterno silêncio. Muda de cor e de roupa a todo o instante. Sei quando
está muito triste é que se esconde envolta em nuvens cinzentas e pesa-
das. Na maior parte do tempo canta, dança, sorri, espanta e chora como
se fosse uma criança. Nasceu naquele lugar há muito tempo. Passou-lhe
pelas mãos gentes e tormentos. Sabe que ficou na retina e nas almas
daqueles cujas vidas foram sugadas através de lamentos, dores e sofri-
mentos. Mas foi capaz, mesmo que por breves momentos, de encher
com alegria e beleza os que a beijaram com amor e paixão. É o mais
belo quadro que se transforma ao ritmo do tempo e do desejo dos que
esperam pela vida. Desejo vão, mesmo que seja no final da tarde de um
dia de verão. Cobre-se, nem sei para quê, com uma suave e bela colcha
de algodão.
Eu vejo e sinto o calor da serra que não tem medo de nada, nem da vida
e nem da morte. Dança como se fosse uma fada a voar num balão de
algodão doce.
Vou com ela...

20
As minhas paisagens

“O pedido”...

Na tasca, prontos para atacar as costeletas saborosas, a televisão debi-


tava as manifestações próprias do dia, desta feita com um cerimonial
muito especial que agradou a muitas pessoas.
Entrou uma pessoa de aspeto simples e humilde, mas limpo. Sapatilhas
brancas, calças de ganga e camisola amarela debaixo da qual saíam as
fraldas de uma camisa que devia ser aos quadrados. Puxava uma mala
pequena de duas rodas. Sentou-se ao balcão e começou a beber taças
de vinho tinto. Fazia comentários ao que estava a passar na televisão,
à espera de algum troco para poder meter conversa. Já apanhei o jeito
deste pessoal há muito. Não me fiz rogado, nem eu e nem a patroa do
estabelecimento, que também metia, de quando em vez, a colherada.
Conversa sem profundidade ou riqueza, apenas larachas para passar o
tempo. Nem me recordo bem o que foi dito, talvez uma ou duas tiradas
a propósito da cerimónia e do muito que se disse e não se disse, caso
dos milagres.
Ao sair veio atrás de mim. Julgo que terá perguntado à dona quem de-
veria ser. – Desculpe. Sei que é doutor. Pode ser que me seja útil. Pen-
sei: - Útil? Não me diga que quer que lhe faça alguma consulta. Já vivi
coisas que nem o diabo sonha. Parei e aguardei. – O senhor doutor de
que serviço é? Vi logo que queria saber qual era a minha especialidade.
Disse-lhe o que fazia em meia dúzia de palavras. – Sabe? É por causa
da minha carta de condução. – Querem ver que o tipo precisa de um
atestado para renovar a carta! Só me faltava mais esta. – Eu, há tempos,
fiquei sem a carta. – Ai sim? E porquê? Já o tinha visto a beber três copos
de tinto num curto espaço de tempo, a cor da pele, escura, era mais
adequada a excessos vínicos do que aos genes ou à exposição solar, e
as zonas das parótidas, largas, apontavam para estigmas de alcoolismo
crónico, isto para não falar no alongar e empastamento discursivo. – Fui
apanhado com álcool e fiquei sem a carta durante quatro meses. Mas
continuei a conduzir na mesma. Quando faltavam duas semanas para
a ir levantar, os guardas, a cem metros da casa onde vivo com a minha
companheira, fizeram-me uma espera às duas da manhã. Disse logo:
estou f.... Mandaram-me fazer o teste. Se não fizesse tinha que ir ao
hospital. Eu fiz, mas disse logo que tinha estado a beber uns copos. Olhe
senhor doutor, o problema é que desta vez acusei mais do que a primei-

21
Salvador Massano Cardoso

ra. – Quanto? Perguntei. – Dois e qualquer coisa. – Dois e qualquer coi-


sa? – Bom. Dois e muito. – Ah! Foi para o posto? – Fui. E no dia seguinte
tive que responder. A juíza tirou-me a carta. Faz-me tanta falta. O senhor
doutor não podia dar uma ajuda? – Como? – Olhe, fazendo com que
a justiça me desse a carta novamente. Pode ser que conheça alguém.
Além disso, a vinda do papa também podia ajudar. – Ó meu caro, eu
não posso e quanto ao papa não estou a vê-lo minimamente interessado.
Que eu saiba não foi decretado nenhuma amnistia. – Então tenho que
tirar novamente a carta? – Claro! Às tantas tem que ser mesmo. – Que
chatice! E não vai ficar nada barato. – Mas olhe lá uma coisa. O senhor
não foi condenado a pena de prisão ao fim de semana? – Estava para
ser. Estava mesmo, mas lá consegui evitar. Tinha de ir para o outro lado
da serra, para a Covilhã. Como é que eu podia? Tão longe! – Pois! Nada
a fazer. – Obrigado na mesma, senhor doutor. Meti-me no carro e fui à
vida. Esqueci-me rapidamente do caso quando vi uma carrinha junto da
estrada a vender fruta. Ainda não tinha comido cerejas este ano. Parei e
perguntei se tinha cerejas. – Claro. A senhora mostrou-me e optei pelas
vermelhas e escuras. O preço foi exorbitante face às outras que tinham
aspeto de sofrer de anemia. Ainda estive tentado a regatear, mas como
estava esfomeado larguei imediatamente os euros que me tinha pedido.
Ficou surpreendida e, à laia de uma explicação de ocasião, “a chuva que
tinha caído nos últimos dois dias foi muita”, deve ter limpado a explo-
ração ao papalvo que lhe tinha caído nas mãos. Só depois é que reparei
que os dois quilos foram medidos a olho. – Deixa cá ver o saco. Disse à
minha mulher. – Hum! Pelo menos tem mais de dois quilos. Aquilo é que
foi lançar caroços para a estrada, violando o código da estrada. Valia a
pena contar as sensações e as milhentas recordações de comer cerejas.
Fica para a próxima. O tempo não estava pelos ajustes, e passadas duas
horas e meia já estávamos perto de casa quando vi o “descartado” a
conduzir a maleta de duas rodas. Pelos meus cálculos já tinha feito uns
valentes dez quilómetros a pé, e ainda tinha que fazer mais uns cinco.
Acenei-lhe. Reconheceu-me e correspondeu efusivamente ao meu cum-
primento. Depois, pensei: - No caminho havia algumas tascas. Terá ido
“rezar” a alguma delas? Às tantas...

22
As minhas paisagens

"Viver”...

Viver é sair de casa, andar quarenta quilómetros com um tempo instá-


vel, o sol fazia caretas como se estivesse muito irritado, e, ao chegar ao
local do costume, levar com uma valente rajada de vento frio ao mesmo
tempo que as nuvens se derretiam em grossas gotas. Tudo para ir a um
café! Pouca gente nas ruas. Ouvi, ao longe, na rua principal, o castiço
do cauteleiro a apregoar no seu inconfundível linguarejar de tartamudo
a lotaria. Quando entrei na via mãe da cidade vi que estava acoitado sob
o umbral de uma porta cheio de frio e com o chapéu de chuva à moda
de quem vai pagar a décima. Estava um pouco afastado. Dirigi-me ao
café e pedi os habituais descafeinados, já tinha passado a hora limite
para saborear o verdadeiro café. Fiquei a olhar para os presentes. Alguns
miravam os seus aparelhos como se fossem breviários da missa. Ou-
tros liam o jornal e tentavam fazer as palavras cruzadas. Havia também
quem falasse e transmitisse algumas emoções. Emoções tão voláteis e
fúteis como a água da trovoada que, sob o efeito do sol ardente, não tem
tempo de amar a terra. A música ambiente, sempre agradável, apagou-
se e o silêncio das almas presentes intensificou-se. Através das montras
ia assistindo ao desfilar triste e macambúzio das pessoas. Retratei-as na
mente e inventei quais seriam os seus nomes e pensamentos. -Vamos
dar uma volta? Perguntou a minha mulher. – Vamos. A chuva estava a
descansar. Olhei em frente e vi o cauteleiro que tinha abandonado a
proteção da ombreira da porta. Comecei a andar em diagonal, na sua
direção, com o propósito de lhe ir comprar uma cautela. – Para onde
vais? – Vou ter com o cauteleiro. Deve ter compreendido o meu gesto,
e como quem não quer coisa colocou-se no meu trajeto. – O que é que
anda a apregoar? A lotaria nacional? – Sim. Sorriu. – Muito bem. Dê-me
uma cautela se faz favor. – Quer um número terminado em qual? – Num
muito grande. Começou à procura e deu-me uma cautela terminada
em nove. Sorri. Nunca ninguém me tinha feito uma pergunta destas.
Entreguei-lhe a nota. Feliz, meteu-a no bolso e logo a seguir benzeu-se
fazendo o sinal da cruz. Vi o seu gesto. Como não podia deixar de ver se
estava a menos de meio metro? – Olhe lá, não me diga que é a primeira
que vende hoje? Ficou um pouco surpreendido e, baixando, a cabeça
disse: - É sim senhor. Eram quatro e meio da tarde. – Desculpe ter-lhe
perguntado, mas como fez o sinal da cruz entendi que deveria ser. Sabe,

23
Salvador Massano Cardoso

há mais de quarenta anos, na Serra da Boa Viagem, por esta hora mais
ou menos, um fotógrafo à la minute beijou e fez o sinal da cruz com
a nota de vinte escudos que lhe tinha dado para pagar a fotografia. O
cauteleiro sorriu. – Sabe, por ter feito o sinal quero outra cautela. Pegou
na que me tinha dado e para não a repetir deu-me outra. – Como é que
o senhor se chama? – Ca...Ca...Carlos. Eu já o conhe...ço. Disse – Sim.
Mas não adiantei. – Só espero que o senhor tenha muita sorte. Depois,
na sua agradável gaguez, disse-me para que não fizesse como o outro.
O outro foi um indivíduo que entrou na igreja, ajoelhou-se perante o
altar, fez o sinal da cruz, e pediu ao Senhor para lhe dar sorte na lotaria.
Ouviu de imediato a resposta vinda do altar: - Olha lá. Já compraste a
cautela? – Não. Respondeu o crente – Então, como é que tu queres que
te ajude. Não te vai sair nada. Ai não vai não! Mais duas ou três larachas
e o senhor Carlos, o cauteleiro da Rua Formosa em Viseu, continuou a
apregoar no seu jeito muito próprio a sorte grande. Agora, visivelmente
mais feliz.
Viver é apenas isto...

24
As minhas paisagens

“O dia em que o Chico chorou”...

Não me perguntem por que razão embico em certas direções. Acontece


quando menos espero. Foi o que aconteceu hoje. Ao chegar à Portela,
em vez de ir, como é habitual, por Penacova até Santa Comba, guinei
para a direita. Atravessei o Mondego e subi até à entrada da autoestrada
para Tomar. – Vais para Tomar? Perguntou-me surpreendida. – Não! – En-
tão, vais para onde? – Para Santa Comba. – Por aqui? – Sim. Sabendo das
minhas manias, não disse mais nada. Comentei a paisagem e dirigi-me
até à serra dos Carvalhos. Enfiei-me por velhos caminhos até ficar em
frente de um espaço que posso considerar como sendo um santuário.
– Já viemos aqui, não viemos? – Sim. Não perguntou mais nada. Saí do
carro e embrenhei-me naquele espaço, onde a cruz quer abraçar as nu-
vens. Não havia mais ninguém. Nunca vi ninguém nas vezes que lá fui.
Não sei a razão porque fui até aquele espaço. Não interessa. Sou como
as aves, levanto voo e não sei onde vou parar. Andei naquele espaço, li
o memorial onde constam os nomes dos que morreram no trágico aci-
dente ocorrido no dia um de julho de 1955. O título toca qualquer um,
“Morrendo Voando”.
Naquele dia tinha quase quatro anos e meio. O dia estava cheio de
sol. Usava calções com peitilho de cor grená. Lembro-me das sandálias.
Eram novas, e tinham sido compradas na feira. Andava perto da Casa
do Povo a comer o papo-seco cheio de manteiga. Recordo o prazer da
mistura da gordura e do trigo. Fui a casa e ouvi o meu pai a dizer para
a minha mãe que tinha havido um terrível acidente em que caíram avi-
ões. Eu só tinha visto os aviões que andavam no céu, muito pequeninos.
Achava estranho que levassem pessoas. Comecei a fazer perguntas. Um
velho hábito que rapidamente se transformava em martírio para quem
me ouvia. Sabia que tinha acontecido algo terrível. Os aviões chocaram
em pleno voo. Desci as escadas, a trincar o que restava do pão, e fui
até à casa do Chico. O Chico era um homem dos sete ofícios. Vivia a
não mais de cinquenta metros. Gostava muito dele. Ensinava-me a fazer
construções, mostrava como funcionava o altifalante com que andava
nas ruas, e até fez uma magia, ouvir a minha voz graças à maquineta
que tinha acabado de comprar. – Isso não presta, ó Chico. – Não presta?
É a tua voz. – Não é, não senhor. É uma voz feia, não gosto dela. – Mas
é a tua voz! – Não. Não pode ser. Foi muito complicado ter de me ouvir

25
Salvador Massano Cardoso

através daquela maquineta. Mas naquele dia eu queria era avisar o Chi-
co, o “Chico dos Jornais”, de que tinha havido um acidente. – Ó Chico!
Ó Chico. Gritei junto à porta. A mulher abriu a janela e disse-me que
não estava. Tinha ido até ao local onde os aviões caíram. – O Chico foi
na lambreta? – Foi. O Chico tinha uma lambreta cinzenta com que fazia
a sua vida. Andei muitas vezes nela, em pé, entre o Chico e o guiador.
Pois. Naquela altura era uma sensação fora do comum. – Agarra-te bem,
ouviste? – Sim, Chico. Naquele dia, cheio de sol, o Chico não estava.
De repente, na parte da tarde, ouvi o som da lambreta. Corri. – Ó Chico,
onde foste? – Fui ver o acidente. Calei-me e esperei que me contasse o
que tinha sucedido. Mas não, não era o Chico que eu conhecia. Com
a lambreta encostada à parede, retirou da parte lateral, uma espécie
de porta-luvas, bocados de metal de cor cinzenta. Pareciam que eram
iguais à sua máquina, mas não. – O que é isso, Chico? – São restos de
um avião. – Dos que caíram? – Sim. – Mostra-me. – Deu-me o maior
de todos. Parecia que ainda estava quente. – Posso ir mostrar aos meus
pais? – Vai. E fui. Ao mostrar aquele pedaço de metal, o meu pai disse de
imediato: - Leva isso até ao Chico. Depressa. Ouviste? – Sim. Não per-
cebi bem aquela aspereza. Cheguei a casa do Chico, que estava na parte
de baixo, junto à loja, e vi-o sentado com as mãos na cabeça a chorar.
Nunca tinha visto um adulto a chorar. Eu já tinha chorado, bastas vezes,
mas aquela forma de chorar era diferente da minha. – Ó Chico, estás a
chorar? Não chores, Chico. Não Chores. Eu não percebi muito bem a
razão do meu amigo estar a chorar. Tinha a ver com a morte dos pilotos.
O problema é que não sabia muito bem o que era a morte. Ainda não
tinha visto nenhum morto. Mas meio ano depois vi o primeiro, a minha
melhor amiga. – Chico, não chores, Não chores, dizia-lhe, insistente-
mente. Toma. Toma o teu pedaço de avião. Olhou-me. Não disse nada.
Apertou o pedaço de metal contra o peito. – Vai para casa. Vai para casa.
Amanhã vamos construir a Torre de Belém como te prometi. Está bem?
– Está. Fui-me embora.
Não consigo recordar a cara do Chico, nem a sua voz. Apenas me lem-
bro do seu choro.
Hoje, fui, sem saber a razão, até àquele espaço onde há tantos anos
morreram oito pilotos, num dia belo, quente, em que comi um papo-
seco barrado de deliciosa manteiga e vi o meu grande amigo, o Chico,
a chorar.
“Morrendo voando”. Vivendo sonhando...

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As minhas paisagens

“Água e gases”...

O almoço cumpriu as promessas do dia anterior, achigãs grelhados à


maneira. Em boa companhia, que acabou por ser enriquecida pela che-
gada de mais um. Ainda bem, porque não havia estômagos para tanta
comida. Boas conversas e boa digestão gástrica e mental.
Depois, como havia notícias de mau tempo, não fomos para muito lon-
ge. Em Viseu o frio cortava à maneira graças a facas afiadas que estavam
a ser lançadas da serra. Uma sensação esquisita, sentir o sabor do frio
como ele é, seco, indelicado, atrevido, mas também gratificante a pedir
os complementos adequados à quadra que se avizinha. O sol, dourado
e envergonhado, apareceu, mas não aqueceu. Empurrou-me para as ve-
lhas ruas e acabei por o seguir mais uma vez no delicado museu Almeida
Moreira. Já perdi o conto às vezes que lá entrei. Hoje houve uma razão
especial. O sol outonal, vestido de ouro velho, aconselhou-me a vê-lo
nos muitos quadros naturalistas e impressionistas de grandes artistas por-
tugueses que estão ali abrigados. Foi o que eu fiz, ver o sol e a vida atra-
vés do naturalismo impressionista. Aqueci a alma, esqueci o frio da ci-
dade e senti desejo de comer castanhas assadas. Saímos bem-dispostos.
Mas antes, sem esquecer um ou outro apontamento, que ninguém levará
a mal, fotografei três ou quatro caricaturas desenhadas por Almeida Mo-
reira. Foram muito inspiradoras. Presumo que deverá ter sido uma delas
que me levou a despertar a vontade de comer castanhas. O título era su-
gestivo, “águas e gases”. Foi no ano de 1912 que o humanista deverá ter
ido até ao Gerês “a águas” e registou magistralmente muitos aquistas. A
caricatura é notável e dispensa comentários. As castanhas também estão
ligadas a gases, mas, no meu caso, não socorro de água. Prefiro outro
género de bebida.
Na rua Formosa havia castanhas junto ao Aquilino. Fiquei de boca aber-
ta com a quantidade de pessoas, cada uma com um pequeno cartucho
vazio na mão à espera de ser atendida– Bolas! Comentei para a minha
mulher. - Nunca vi uma romaria tão grande para castanhas assadas. De-
sistimos. Continuámos o passeio, e no regresso vi o assador sem “clien-
tes”. - O que é que terá acontecido? Perguntei se havia castanhas. – Sim,
mas ainda demora uns dez minutos. – Obrigado. Esperámos, antes que
fossemos ultrapassados. Rapidamente entabulei conversação e fiquei a
saber que estavam ali em representação do município de Penedono e

27
Salvador Massano Cardoso

que as castanhas eram à borla. – À borla?! Sorriu-me e disse: - Uma


gentileza do nosso município. – Muito obrigado. Conheço bem a terra.
Veja lá que no castelo do Magriço cheguei a enfiar a minha mulher na
gaiola suspensa. O colega do assador deu uma gargalhada. – Fui eu que
a coloquei naquele sítio. – Ai sim? Olhe, ainda pensei em deixar a minha
mulher fechada dentro da gaiola, mas depois arrependi-me. – Fez bem.
Porque lhe faz muito falta. – Pois faz. Não sei se a minha mulher seguia
ou não conversa meio tola. Vi que estava mais preocupada em aquecer
as mãos junto do fogareiro. Subitamente o assador despejou o tacho de
castanhas ao longo do carro. Tirámos cada um meia dúzia e agradece-
mos a gentileza. Em seguida fomos comê-las ao longo da rua Formosa
desafiando o frio com o calor das ditas. Foi pena não termos à mão uma
bebida apropriada. Foi muito agradável e nem precisámos de “água do
Gerês”, mas quanto ao dito senhor que Almeida Moreira retratou já não
digo nada. O que seria da rua Formosa se ele andasse por ali a comer
castanhas?

28
As minhas paisagens

“O Silva”...

Foi um martírio estacionar no dia de Todos-os-Santos na serra do Sal-


gueiral, em Santa Quitéria. Cada vez mais gente. Inúmeros romeiros a
preparar os repastos, febras, frangos, torresmos, fogueiras por tudo o que
era sítio. A fumarada que pintava de branco a serrania não conseguia es-
conder os vendedores e nem as barracas de comes e bebes. Às 11 horas
da manhã já se comia e bebia à tripa forra, enquanto junto da capela,
no coreto, decorria a tradicional missa. Meteu bispo e tudo. Estranha
mistura, enquanto uns rezavam e assistiam à missa, outros mercavam,
manjavam, descansavam, bebiam, conversavam, pediam, preparavam os
grelhados e interagiam com muita alegria e boa-disposição. Uma genu-
ína confusão, aparentemente caótica, mas tudo dentro da normalidade
de qualquer romaria que se preze. No meio disto tudo, no final da missa,
a procissão decorreu com uma religiosidade verdadeiramente profana,
coisa que nunca vi até hoje. Iam todos bem-dispostos, até a Santa! E se
julgam que os romeiros deixaram de comer ou beber para a ver passar
estão enganados.
Vi-me atrapalhado para arranjar dois lugares para almoçar. Ainda não
eram 11:30 e já estava a encomendar os torresmos. Antes desta pequena
epopeia, olhei para uma árvore onde estavam pendurados cartazes com
vários dizeres do “Herbal Silva”. Li-os todos. Achei muita piada a alguns
e, sobretudo, à forma de fazer publicidade. No regresso, teimei ir àquele
sítio para ver novamente os tais cartazes. Fotografei-os ao mesmo tempo
que ia fazendo alguns comentários à minha mulher. Um sujeito, bona-
cheirão, que largava um rasgado sorriso em cima de uma proeminente
barriga, olhou-me e começou a meter conversa. Vi logo que devia ser o
Silva. Aproximou-se e começou a debitar a importância das coisas natu-
rais, das ervas e de outras mezinhas que o governo devia aproveitar em
vez desses químicos que só fazem mal à saúde. Desconhecendo quem
era, obviamente, quis com a sua “natural” dialética, a fazer recordar os
velhos vendedores de banha da cobra, convencer-me de tantas virtudes.
– Sim senhor. Amanhã vou dizer aos meus alunos todas essas virtudes
que o senhor apregoa. Olhou-me, sempre a sorrir, e perguntou: - Alunos?
O senhor é professor? Claro que me apresentei e disse o que fazia. Mes-
mo assim não se intimidou, pelo contrário, sempre sorridente disse-me
que colegas meus da Universidade andavam com ele nas serranias à pro-

29
Salvador Massano Cardoso

cura das ervas. – Ai sim? Quem são eles? Pode dizer-me os seus nomes?
Não foi capaz de dizer nem um. Repliquei que alguns, de facto, gostam
de andar nas serras, mas para caçar. – Não. Não andam a caçar, andam à
busca de ervas. – O senhor doutor tem que aprender que aquilo que vem
nos livros é falso. São tretas. Nem tudo é verdadeiro. Nós é que sabemos
o que faz bem. E nem precisamos de ratinhos para fazer experiências.
– Ai não? Disse-lhe. - Muito bem. Sabe, senhor Silva, o meu problema
não são os ratinhos são as ratazanas como o senhor. Julgam que perdeu
a compostura e o sorriso? Qual quê! Continuou na sua. – Olhe, senhor
doutor, por exemplo, a insulina que tomam para a diabetes é um perigo.
São químicos. – Ó Silva, eu sofro de diabetes e tomo insulina. Ao dizer
isto mostrei-lhe a caneta. O Silva ficou tão surpreendido que repetiu três
ou quatro vezes. – O quê? Sofre de diabetes? Não posso acreditar. So-
fre de diabetes? Mas como é possível uma coisa dessas? Só é diabético
quem quer. Olhe eu já fui e deixei de ser. Aliás, tenho ali um produto
que, por dez euros, faz baixar a diabetes de setecentos para zero de um
dia para o outro. – Porra! Ó senhor Silva, não me diga uma coisa dessas.
Com esse produto deve “curar” toda a gente. Não sei se percebeu o
alcance da minha tirada, mas como já ia buscar o produto miraculoso,
afastei-me dizendo: - Ó senhor Silva, eu só espero que a Santa Quitéria
não se esqueça de si, e que lhe dê muita saúde e muito mais juizinho.
Só vi a enorme barriga a balançar aos soluços ao som do seu simpático
sorriso.

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As minhas paisagens

“A conversa e a serra”...

Gosto de andar pelas serranias correndo por velhos caminhos, estreitos


e pouco frequentados, à procura de aldeias, ver o que resta dos sopros
de vida, e deliciar-me com os quadros mais impressionistas que consigo
recriar. Antes tive de almoçar, e como é meu hábito mergulhei em locais
onde a humildade acasala com a frontalidade, e a boa disposição com a
comida agradável. Somos sempre poucos, tão poucos que dá para meter
conversa de mesa para mesa. E assim foi. Durante aquele período escre-
vemos no ar um livro único cheio de histórias e de emoções partilhadas,
porque todos, de uma forma ou outra, tínhamos em comum cruzamen-
tos de um passado que renega ser esquecido. A memória é extraordiná-
ria, e quando é estimulada por mais do que um copo de um bom vinho
salta, canta, desnuda-se e vive como se fosse o verdadeiro dia do acon-
tecimento. Até o mais calado se pôs a falar e a comentar. Claro que há
sempre uma costela salazarista típica na minha região. Não é para ser
tomada à letra, representa apenas um conceito de vida e de honra que,
entretanto, se perdeu. Respeito e compreendo as pessoas neste sentido,
não no outro, o político formal. As conversas saíam mais rapidamente do
que o vinho a entrar nas goelas. Perguntei ao anfitrião o que é que havia
nos arredores. – Hoje não há nada. – Nada? Disse-lhe. – E o São Barto-
lomeu? – É verdade. Hoje há procissão. – No dia 24 passei pela capela,
mas estava fechada. Que raio de sorte! Sorriu. E com a ponta do garfo
apontou para a mesa em frente onde estava a manjar um indivíduo meio
careca e com alguma idade. – Olhe, senhor doutor, está ali o gajo que
tem a chave da capela. – Ai sim! Foi pena não a ter aberto no seu dia. O
senhor, calado, continuou a comer. Depois, vendo que estava à vontade,
meteu palavras e começámos a conversar.
Em Santa Comba falar do Salazar é a coisa mais corriqueira do mundo.
Não sei como tudo começou, mas em pouco tempo estávamos a falar
do ditador. O mais calado, simpático e muito educado, interrompeu a
conversa dizendo algumas coisas que tive dificuldade em compreender.
Registo apenas o seguinte: - Na altura, se estivéssemos calados ninguém
ia preso. Sorri. Depois, o responsável pela capela do Vimieiro, que tem a
chave da capela onde está o São Bartolomeu, lembrou-se de alguns epi-
sódios. Como sou mais velho, tenho muito mais recordações. Contei que
quando via chegar uma locomotiva sozinha a meio da tarde à estação,

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Salvador Massano Cardoso

corria para avisar o meu pai que trabalhava no cais: - Ó pai, ó pai, o Sa-
lazar vem aí. O Salazar vem aí. – Cala-te rapaz. Cala-te. Não te ponhas
a gritar dessa maneira. Tu és parvo ou quê? Ficava de boca aberta com
tamanha admoestação. Eu sabia que passados dez minutos vinha outra
locomotiva com uma carruagem com o presidente do Conselho de Mi-
nistros. Quantas vezes vi este filme. Até já sabia, apesar da minha pouca
idade, que a primeira locomotiva era por causa dos atentados. Coitados.
Se houvesse uma bomba eram eles que iam à vida. Não gostava nada
desta ideia. Depois continuámos com a história dos dois chauffeurs de
praça, o senhor Torres e o senhor Ventura. Para evitar complicações, o
Salazar, que ia à vila muito cedo para assistir à missa, viajava alterna-
damente num carro ou no outro, pagando sempre do seu bolso. Bom,
às tantas, com a história da honra e da educação que muitos ainda van-
gloriam desse passado, o detentor da chave da capela do Santíssimo
Sacramento do Vimieiro contou que um dia não fez o que o pai lhe tinha
mandado fazer, presumo que foi regar o milho. – Ó senhor doutor, o
meu pai nunca me tinha batido, a minha mãe era dia sim dia sim, mas
o meu pai não. Quando o vi a empunhar um valente vime perguntei-lhe
surpreendido: - O pai vai bater-me? – Não! Vou dar-te educação. Demos
uma gargalhada em conjunto. – Outros tempos. Outros tempos. Dizia o
velhote que nunca fala. A conversa continuou e as histórias foram tantas
que davam para um livro de uma hora e meia a duas. Um livro único
que se desvaneceu após a refeição. Há livros assim. Só se escrevem uma
vez no ar saudável de uma agradável confraternização. Depois fui ver o
São Bartolomeu. Mais conversas, mais histórias, mais recordações, mais
emoções, mais poesia, mais vida, mais alegria, até me perder nos confins
longínquos da serra onde já não há praticamente ninguém. Numa aldeia
isolada encontrámos a Isabel, uma velhinha simpática, sem rugas, que,
agarrada a dois paus e caminhando com muita dificuldade, conversou
com um prazer difícil de descrever. A certo momento disse: - Este ano,
graças a Deus, ainda não houve lume. Há anos, por detrás aqueles mon-
tes, está a ver, houve um grande fogo. Morreram muitos bombeiros e
uma criança. Malditos. Deviam ser presos. Se fosse no tempo do Salazar
nunca mais viam sol e nem lua.
Quem diria que no fundo da serra a conversa da hora do almoço conti-
nuaria à volta de um tema considerado tabu. Não era a pessoa política
que estava em causa, mas sim os valores e os princípios que norteavam
as pessoas, que foram contemporâneas de alguém, como podiam ser de
outro qualquer.

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As minhas paisagens

“Santa Margarida”...

Para onde ir numa tarde de sábado inundada de sol abrasador? Ao mes-


mo tempo que perguntava, respondi: - Não vamos para muito longe. Va-
mos até algum sítio que seja calmo e fresco. Bebemos algo e esperemos
que aconteça algo. – O quê? – Não sei. - Vamos até ao Caramulo. Subi-
mos a serra e deparámo-nos com o já esperado em terras moribundas.
Conversámos um pouco na esplanada do café. Entretivemo-nos com as
brincadeiras de um miúdo a jogar à bola com o seu cão e observámos
uma bela alminha bem guardada no quintal da casa em frente a fazer-
me inveja. Sim, tenho de confessar, ainda não perdi a esperança de ar-
ranjar uma. Não disse em voz alta para não perturbar a minha mulher.
Convidei-a a ir até ao belo parque do Caramulo. Gosto imenso daquelas
sombras, verduras, flores e sons do sofrimento de outrora. Quando íamos
na sua direção, ouvi música popular ao longe a denunciar festejos. Mu-
dei de opinião e fomos até à capela de Santa Margarida. – Vamos ver. Há
festa. Ao subirmos a escadaria o som acentuou-se com as músicas popu-
lares. Vários homens faziam os preparativos para levantar uma valente
coberta que protegesse os foliões e os crentes do sol de amanhã junto da
pequena capela que tão bem conheço. Dentro do pequeno templo visu-
alizei várias pessoas em preparativos para a homenagem a Santa Marga-
rida. Pensei: - Um bom pretexto para meter conversa. Entrámos e vimos
que estava tudo em desordem. A Nossa Senhora de Fátima, no chão, em
cima de um pequeno andor, estava bem aperaltada, enquanto a Santa
Margarida, enfiada no seu, estava a ser enfeitada de verde e de belas flo-
res. A azáfama era evidente. Cumprimentei os presentes e vi um senhor
com uma agilidade e carinho a dar beleza e cor à delicada e amorosa
santa. Olhou-me e disse-me: - Eu estou a conhecê-lo! Não é fulano que
em tempos andou por aqui com o seu colega... Fiquei admirado. Res-
pondi que sim. Em seguida pediu à minha mulher para que tirasse os
óculos e disparou: - Claro. Estou mesmo a reconhecer-vos. Até sabia o
meu nome. Isto foi muito importante porque permitiu-nos entrosar no
grupo e nas conversas que emergiam com tanta naturalidade. Nestes
ambientes as conversas adquirem muita cor e espontaneidade, e fazem
a delícia de qualquer um. Eu já conhecia bem aquela santa de outras
visitas. Desta vez fiquei a saber que está ali há trinta anos e que veio do
jardim do padre na igreja de Guardão. - Uma preciosidade destas ao ar e

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Salvador Massano Cardoso

à chuva, veja lá senhor doutor! – Tem toda a razão. Diga-me uma coisa,
pelo que vejo o senhor é mesmo um especialista no arranjo do andor.
– Claro que sou. Faço isto há trinta anos! O senhor doutor tem que vir
amanhã. Ao meio-dia é a missa e depois realiza-se a procissão que dura
no máximo meia-hora. Hoje à noite há baile. Quer vir até cá? Sorri. A
azáfama era mais do que evidente com as mulheres a ajudar. Uma delas
cortava a verdura de forma particular. A minha mulher perguntou-lhe: -
Até parece que está a cortar couves para o caldo verde! Deu uma risada
e explicou que era para tapetar o chão em cima do qual iriam colocar as
flores. O senhor dos arranjos estava verdadeiramente entusiasmado com
a sua tarefa. Falava pelos cotovelos, comentava e dizia disparates que, à
partida, já estavam desculpados pela santa. Uma delícia. Expliquei à mi-
nha mulher que a Santa Margarida, protetora das grávidas, tinha debaixo
dos pés o diabo. – Não é o diabo, é um dragão. Respondeu o meu ami-
go. – Eu sei, personifica o diabo que a engoliu e que foi forçado a vomi-
tar a santa por causa da cruz que transportava. – O diabo ou a sogra! Às
vezes as sogras são piores do que o diabo. – Quem fala assim das sogras
é porque tem uma que é boa. Disse-lhe. A senhora que cortava verdura
para o “caldo verde” disse: - Ele não tem e nunca teve sogra. É solteiro.
A minha mulher desbocou-se e perguntou-lhe: - Mas ninguém o quis?
– Eu é que não quis nenhuma. A mais velha, que estava de costas para
o arranjador, debruçada sobre a gamela onde pairavam flores, e a fazer
contas ao dinheiro que tinha acabado de tirar da gaveta, comentou em
surdina e numa voz arrastada. – Aaaaai que é padeiroooo. Aaaaai que é
padeiroooo. Olhei para a senhora e perguntei-lhe: - Desculpe. Mas ele
é padeiro? – Não. Sorriu. - É decorador. Só depois é que entendi a tirada
da velhota cheia de malícia.
Adoro a Santa Margarida, talvez por causa da minha mãe que se chama-
va Margarida.

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As minhas paisagens

“Santas Combas”...

Portugal não é um país muito rico em santos, embora de vez em quando


um ou outro acabe por subir aos altares. Dos poucos existentes, uma
parte muito significativa de santos lusitanos foram “produzidos” antes de
nos transformarmos em reino independente, acabando por serem nacio-
nalizados.
Numa das minhas incursões a alfarrabistas, que são cada vez mais ra-
ras devido aos múltiplos afazeres, encontrei alguns volumes da Cole-
ção Educativa que fazia parte do plano de educação popular do Estado
Novo. Pequenas obras didáticas. Uma delas intitulava-se “Santos de Por-
tugal” da autoria de Américo Cortez Pinto.
Ao folhear o pequeno volume, deparei-me com um curto capítulo so-
bre Santa Comba acompanhado de uma pequena gravura a representar
cinco santas. Afinal, de acordo com o autor, houve cinco Santas Com-
bas. Atendendo ao facto do capítulo não ser muito extenso, o melhor é
transcrevê-lo.
“Santa Comba! Santa Pomba! Quantas pombinhas do Céu poisadas na
nossa terra!
Desde o norte até ao sul, poisam as Santas Combas em Capelinhos e em
ermidas, e abrigam-se nos nomes das povoações por toda a parte, como
se a revoada dum pombal se espalhasse pela nossa terra inteira!
Santa Comba do Lima, Santa Comba Dão, Santa Comba de Sines, e
quantas, quantas mais!...
Que eu saiba são dezanove povoações espalhadas pelas nossas provín-
cias, e mais uma em Trás-os-Montes com seu diminutivo carinhoso: -
Santa Combinha!
Isto nos diz, mais do que tudo, do amor e devoção que desde tempos
muito antigos tiveram sempre por Santa Comba as gentes de Portugal.
Por Santa Comba, não: - pelas Santas Combas, que elas foram cinco!
Santa Comba de Entre Douro e Minho, Santa Comba de Trás-os-Montes,
Santa Comba de Lamego, Santa Comba de Coimbra, Santa Comba do
Alentejo, cinco pombas, cinco Santas que foram Mártires, todas cinco
formosas e castas, com suas verdes palmas abraçadas ao peito, por pre-
servarem a sua Fé e virgindade.
Santa Comba de Entre Douro e Minho foi uma das nove irmãs, todas
santas, filhas de Lúcio Caio Atílio, Cônsul Romano, que foram todas mar-

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Salvador Massano Cardoso

tirizadas por ordem do Imperador numa das perseguições aos Cristãos


da Península.
O mesmo aconteceu a Santa Comba do Alentejo, que por não renegar a
sua fé foi degolada numa das outras perseguições que trouxeram a morte
aos cristãos da Lusitânia.
Santa Comba de Coimbra, por não abandonar a Fé de Cristo e para re-
sistir às perseguições dum Príncipe pagão que a requestava, refugiou-se
num bosque dos arredores, que o tirano, desesperado, mandou incen-
diar para lhe dar batida. E como o fogo respeitasse o bento corpinho da
Santa, amarraram-na a uma frondosa árvore e ali a cravejaram de setas
até que a sua alminha voou para o Céu como se fora uma pomba que do
peito lhe fugisse para o seio do Senhor!
A outra Santa Comba, que deu o nome a Santa Comba Dão, era Abades-
sa do Mosteiro da Tourega, perto de Lamego, e ali foi morta pelos moi-
ros, com todas as suas religiosas, numa investida que os Infiéis fizeram
às terras dessa província.
E vem por último a Santa Comba de Trás-os-Montes que deu o nome
à Serra de Santa Comba, a Santa Combinha, e a outras povoações da
mesma província. Foi também perseguida por um rei moiro que tudo fez
para atentar contra a sua pureza. E tendo esgotado todas as forças contra
a violência do renegado, Deus a tornou invisível, e desta maneira se lhe
escapou dentre os braços sem que o perseguidor pudesse entender como
ela levara sumiço do cerco das suas mãos. Tão irado porém se pôs o mal-
vado moiro que mais tarde para satisfazer a sua vingança a degolou a ela
e a um irmão. E foi mais uma alminha doutra Santa Comba que voou da
terra direitinha aos Céus.
Cinco Santas Combas, cinco alminhas voando no firmamento sob a bên-
ção de Deus e a cobrirem com o voo das suas asas tantos montes e vales
e tantos ermos e povoados da terra portuguesa!
Que elas acompanhem as nossas almas ao Céu, como um bando de
aves, puríssimas, na hora da nossa morte, Ámen.”
Este pequeno texto é delicioso e permite-nos ficar com uma visão mais
ampla das Santas Combas do nosso país, porque também existem nou-
tros, Espanha, França, Itália, Inglaterra. No tocante à Santa Comba que
está na base do epónimo de Santa Comba Dão, a lenda da cidade diz
que foram as monjas e a abadessa que se libertaram da vida e que viviam
num mosteiro à beira do Dão. Seja como for, uma lenda é sempre filha
da verdade e da fantasia e o mundo precisa cada vez mais de fantasias...

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As minhas paisagens

“Dia de São João”...

Aproveitei o dia de São João para dar um passeio ao sabor do acaso


como é meu apanágio, a melhor forma de desfrutar o tempo da vida.
À hora do almoço cheguei a Castro Daire. Tentei recordar-me se algu-
ma vez tinha almoçado por aquelas paragens. Sim. Fui diretamente ao
local, mas como não encontrei forma de estacionar dei uma volta pela
localidade. Ao chegar a uma zona que servia de mirante reparei num
restaurante e com lugares mesmo em frente. "Vai ser mesmo aqui", disse
para a minha mulher que nestas coisas de comer nunca põe qualquer
objeção. Éramos os primeiros. O dono, pícnico, de trato muito fácil e
educado, mimoseou-nos com um almoço à maneira, sardinhas assadas e
salada com pimentos delicados e tomates espirituosos. A sardinha, com
sabor do outro mundo, capaz de incendiar o próprio lume, vinha do
mar longínquo. As batatas, que “só foram regadas pelo próprio Deus”,
apareceram vestidas de cascas saborosas. E o vinho? O vinho deve ser
aquele que Deus um dia bebeu. Imagino a saudade que Cristo deve
ter em regressar a este mundo e poder beber o calor e a alegria da sua
própria vida. Um vinho de Deus que me foi oferecido com felicidade e
simpatia por alguém que melhor do que eu sabe o que é bom na vida. O
senhor explicou-me de onde vinha o néctar, de Valdigem. – Valdigem?
Sorri. – Conhece? Depois foi ainda mais fácil falar sobre tudo que havia
naquela refeição simples. Eu, que não sou dado a promessas, disse-lhe
que em breve iria regressar. Deve ter sido a melhor recompensa do dia.
Num recôndito e escondido monte de Portugal, no dia de São João, tive
de agradecer e beber ao doce e belo santo. O São João, talvez agradeci-
do pela minha saudação, “levou-me” pela monumental e esbelta serra
de Montemuro até Cinfães. Patrono da vila, e orago da igreja, fez com
que passasse parte da tarde a ver as festividades. O senhor Jerónimo, um
natural da terra com quem meti conversa por causa do cheiro a romaria,
foi muito simpático ao esclarecer-me tudo o que sabia sobre a festa, as fi-
larmónicas, as histórias e historietas do concelho, enfim, um verdadeiro
compincha com quem aprendi muito. Achei piada quando chamou “ra-
picoeiro” ao santo. – Como? Rapicoeiro? – Olhe, “rapicoeiro” ou “repi-
coeiro”, não sei bem, só sei que quer dizer que ele é um folgazão e que
gostava de gozar a vida. Se assim não fosse não havia tantas festividades.
Foguetório! Em seguida apareceu uma banda que deu a volta à igreja e

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depois pôs-se a tocar para o santo a marcha do São Joãozinho. Passado


um pedaço, novo foguetório. Eis que apareceu a outra banda, rival, que
fez o mesmo que a primeira. Depois dirigiram-se para dois palanques,
colocados um ao lado do outro, e tocaram à vez. Primeiro arrancou a
Banda Marcial de Cinfães com “Plegaria Taurina” de Rafael Méndez. Um
encanto. Respondeu em seguida a Banda Marcial de Tarouquela com
“Hispânico” de Nuno Osório, para logo em seguida a banda mais antiga
atacar à maneira a abertura de “Tannhâuser” de Wagner. Quando a de Ta-
rouquela começou com os primeiros acordes de “Capricho Italiano”, de
Tchaikovsky, o senhor Jerónimo aproximou-se para dizer: - Gosto muito
de “Capricho Italiano”. E de facto devia gostar, porque vi-o dar ao pé e
a ondular a cabeça. O que apreciei mais foi o facto das pessoas, mesmo
as de mais idade, não manifestarem problemas com os seus joanetes, as
artroses das ancas ou os tremores da idade. Qual quê, balanceavam os
pés, davam às ancas e os tremores patológicos sincronizavam-se com a
beleza da música.
E o São João ali tão perto a gozar imenso com a tarde do seu dia! E nós
também.
São João é sinónimo de vida. Hoje tive a prova disso.

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As minhas paisagens

“Serra”...

Olho para a serra do Caramulo. A noite já caiu há algum bocado. Consi-


go, mesmo assim, vislumbrar os seus recortes afagados por uma ligeirís-
sima aura como se fosse a recordação de um dia que já teve vida.
A serra tem vida, cor, sentimentos e dorme, às vezes de dia, outras na
noite fingida.
Adoro ver os movimentos dos seus contornos, as sombras do dia, os
beijos das nuvens e as cortinas da chuva contínua. Fala, chora, encanta,
desperta e ensina o que é a vida e o poder da transformação em função
dos seus humores e dos seus amores.
A serra olha-me a todo o instante, e convida-me a passear pelo seu ven-
tre como se que quisesse fazer de mãe. Não é louca, e eu também não.
Olhamo-nos na nossa perfeita mudez através de uma janela, ora aberta,
ora fechada, mas sempre apetecível e desejosa em comungar a vida e os
pensamentos do dia, ou da noite, à espera de saber o que é que irá surgir
ao nascer da nova manhã.

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“Maçãs secas”...

Tento descansar sempre que posso. Não é que o corpo faça muita ques-
tão nisso, e se o faz é porque não me recordo bem do que já fui. O en-
velhecimento tem essa particularidade, faz com que nos adaptemos com
mais facilidade ao momento presente, ao mesmo tempo que nos ajuda a
esquecer o que foi o passado.
Fingir é a arte de viver. Eu vou nessa, sempre é mais confortável e saudá-
vel. Fingir é a forma mais delicada de alimentar uma alma faminta.
Faço o que posso. Leio, escrevo, observo, passeio, meto conversa com
qualquer um, visito velhos locais, entro em templos silenciosos, subo
aos montes, delicio-me com o ondular de ribeiras e rios, descubro os
segredos de nuvens que mais parecem sereias, fujo às recordações de
uma sociedade injusta, fria e muitas vezes feia, e descanso ao deambular
nas sombras esquecidas da vida. Se me sabe bem? Sim, e cada vez mais.
Nesta onda de repouso ainda consigo adquirir uma ou outra obra que
me seduz pela sua beleza, carinho, arte e sentimentos escondidos. Des-
cansar é isto mesmo, viajar sem sentido e amar o que é devido. Não
preciso muito mais, é o efeito da lentidão imposta pelo envelhecimento,
como a querer travar o futuro certo e escuro.
Hoje, colecionei um conjunto de pequenas histórias, aparentemente
sem grande valor, mas que representam a essência da vida. Quem diria
que uma ida a uma feira do queijo teve como objetivo escondido ver
se encontrava a senhora que no ano passado me vendeu fatias de maçã
secas. Entrei, vasculhei e nada.
Ainda disse: - Este ano não está a senhora que nos vendeu as maçãs se-
cas. Comecei a imaginar o que é que lhe teria acontecido. Mais uma vol-
ta, e eis que de repente vi frutos secos. Olhei e vi os pacotes desejados.
Ainda me tentou convencer para levar também figos secos, mas recusei.
Não lhe expliquei a razão. Comprei dois pacotes. Sorriu agradecida e
disse: - É a minha primeira venda. Fiz de conta que não ouvi. Aviados fo-
mos para o carro. Começámos a mastigar rodelas atrás de rodelas. Uma
delícia. Parecia que estávamos a comer tremoços.
Ainda era cedo. O tempo parecia ter entrado em descanso das naturais
"febreiradas". Quando demos conta já estávamos perto do cume da ser-

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As minhas paisagens

ra. A chuva começou a cair com violência e, subitamente, como num


passe de mágica, transformou-se em neve. Os flocos pareciam que dan-
çavam, recusando-se a cair. O azul da tarde ficou mais azul, e o frio
também se azulou.
Entretanto íamos degustando lentamente as adoráveis maçãs secas.

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“Leão”...

Cada um pode escolher a ideologia que entender. E se não se entender


com nenhuma também tem direito. Cada um tem direito a escolher a
religião que entender. E se não se entender com nenhuma também tem
direito. Cada um pode escolher o clube que entender. E se não escolher
nenhum também tem direito. Ou seja, cada um tem direito a escolher
o que entender. O problema não está na escolha, está na forma como
vemos os outros que não partilham das nossas escolhas. Eu também sou
um preconceituoso do caraças. Porquê? Porque fui treinado e ensinado
a isso! Calma. Quero dizer que não sou suficientemente parvo para cair
nas malhas de qualquer absolutismo. Reconheço muitos aspetos positi-
vos de decisões políticas de quem discordo na generalidade. Posso pa-
recer parvo aos olhos dos prosélitos, sejam eles quem for, mas não sou,
ou, pelo menos, tento não ser.
Em resumo, se criticar uma medida do governo devido ao impacto que
considero negativo, apesar da "boa-vontade" do mesmo, porque no final
quem se lixa é sempre o mexilhão, espécie a que fui desclassificado nes-
te Portugal surrealista, posso sempre levar nas trombas de quem se julga
ser detentor da tal "superioridade política". Parece que o governo quer
aumentar o dito imposto do selo dos cartões, cujo custo, quer queira ou
não, vai cair sempre nos utilizadores.
Já tive muitas chatices por causa disso. - Desculpe, mas não tenho multi-
banco. - Ai não? E agora? - Agora, se quiser vá lá baixo, à esquina, onde
há uma máquina. Quando me dizem isto fico "cianosado" de raiva. Às
vezes saio e não regresso. Outras vezes deparo-me com o anúncio na
porta, "não aceitamos multibanco". - Ótimo. Neste caso já nem entro.
Mas há casos em que o vendedor pede desculpa pelo facto de o multi-
banco estar avariado! Enfim, tenho tantos casos que o melhor é ficar por
aqui. É fácil de entender o que está por detrás disto tudo. Custos a serem
suportados pelos comerciantes, cuja vida, na grande maioria dos casos,
anda pelas ruas da amargura.
Nas minhas voltas sem sentido acabei por passar em frente da loja. Ain-
da hesitei se deveria ou não parar. A forte escanevada que caía aconse-
lhava-me, ruidosamente, que o melhor era ir mesmo para casa e deixar
de aventuras. Mas não. Decidi dar a volta e acabei por entrar no espaço,
vazio de pessoas. Corri para fugir à chuva. Entrei e disse: - Boa-tarde! O

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As minhas paisagens

tempo está muito mau. O senhor, de ar triste, lançou um sorriso, respon-


dendo ao cumprimento. Senti que deveríamos ser as primeiras pessoas
a visitar a loja neste dia. Quase que ouvi o pensamento do senhor: -
Vêm ver, mas não vão comprar nada. O costume. Andámos e vimos um
pequeno quadro de rosas. Um quadro simpático e barato. Ficou admi-
rado quando o adquirimos. Foi pago com dinheiro. Depois, ao sair, vi
uma bela escultura. Um leão. Um bronze. Gosto de bronzes. Vi o preço.
Nada de extraordinário. Quase que me apetecia dizer, em conta. De
qualquer modo, perguntei-lhe o preço. Sorriu e explicou-me quem era o
autor e que até tinha conseguido alguma documentação sobre o mesmo
como a querer testemunhar o que estava a dizer. Em seguida mostrou-
me a documentação. Abriu o seu sorriso esperançoso em fazer negócio
e rematou um preço substancialmente inferior ao que estava marcado.
- Fico com ela. Entreguei-lhe o cartão. Nervoso, disse-me que não tinha
multibanco. O seu sorriso, que era branco, ficou amarelo. Lá fora chovia
que deus a dava. Indicou-me que havia um banco naquela zona, não
muito longe, mas como estava a chover muito iria ser um pouco difícil. -
Se for por aqui, mostrou-me o caminho, pode ser que não apanhe chuva,
a não ser ali, ao atravessar a rua, mas se andar um pouco para a direita
consegue passá-la sem se molhar. Sorri e corri. A minha mulher ficou na
loja enquanto fui levantar o dinheiro.
No final fiquei com a estranha sensação de ter ajudado alguém que deve
ter abençoado as notas que recebeu. Recordei nesse momento o gesto
de um velho fotógrafo "à la minute" que há mais de quarenta anos, na
serra da Boa Viagem, nos tirou uma fotografia. No final beijou a nota de
vinte escudos. Perguntei-lhe a razão de ser do seu gesto. - É o primeiro
dinheiro que ganho hoje! Dinheiro abençoado. É para ter sorte. Sorriu.
O de hoje não beijou, mas o seu sorriso foi idêntico.

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Salvador Massano Cardoso

"Transumância"...

Bolinei. Acabei por parar em Castro Daire. Senti sede e alguma fome.
Passeei e vi que havia qualquer coisa no ar. Ótimo. O quê não sei. Pen-
sei. Passei por uma pequena frutaria onde belas e sedutoras cerejas pis-
caram o olho. Meio quilo que mal deram para meia hora de descanso e
de conversa numa esplanada. Beber uma cerveja fresca e comer cerejas
é muito melhor do que comer tremoços. Fica o registo. Depois fiquei a
saber que havia um festival, iam passar rebanhos a testemunhar a tran-
sumância de velhos tempos. Olhei para o relógio, fiz os meus cálculos
e concluí que ia ter a tarde ganha. Sem saber, acabei por assistir a um
espetáculo único.
A transumância é um fenómeno que se perde na noite dos tempos, des-
de que o homem começou a pastorear levando os animais nesta altura
do ano a pastar nas montanhas. Os percursos variam com a região. De
acordo com o que li, estava perante a última rota da transumância em
Portugal. Os rebanhos são levados entre o São João e o São Pedro para
Montemuro onde a fartura do pasto espera pacientemente por tantos
animais. Permanecem aí até ao São Bartolomeu.
Recordo que quando era pequeno seduzia-me a passagem de rebanhos
à minha porta, estreita rua numa zona pobre e escondida. Inúmeros ani-
mais arrebanhavam todo aquele espaço, com muito barulho, balidos
quentes e às vezes furiosos, acompanhados pelo ladrar dos cães pastores
e dos berros e assobios ensurdecedores de homens e até de algumas
crianças. Fazia-me enorme confusão a passagem de tantos rebanhos.
Perguntava quem eram, de onde vinham e para onde iam. - Pastores,
que vêm das suas terras para irem até à serra. - Serra? Qual serra? - A da
Estrela. - Mas é longe, não é? - É. Mas têm que ir. - Por onde é que vão?
Pela estrada? - Não. São velhos caminhos que só eles sabem. Aprende-
ram com os pais. Encurtam o trajeto passando por locais remotos e de
difícil acesso. - E fazem isso todos os anos? - Fazem. É a transumância. - É
o quê?! - Transumância! Claro que tive de pedir explicações sobre esta
nova palavra que aprendi muito cedo. Todos os anos, por esta altura, já
sabia que ia ver a passagem de rebanhos. Entretinha-me a vê-los e con-
seguia explicar aos outros que se tratava da transumância. Não é preciso
dizer o espanto que eu provocava quando dizia esta palavra.
Hoje, fui atrás do Narciso, um cavaleiro vestido a preceito que indicava

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As minhas paisagens

o sítio do miradouro de onde se podia ver, como nos velhos tempos, a


chegada dos rebanhos. Ao chegar ao local, vislumbrei ao longe, na des-
cida para o rio Paiva, vários rebanhos. Nesse momento, o povo gritou em
uníssono: - Já lá vem o rebanho! Já lá vem! Uma alegria imensa tomou
conta da multidão. Eu aproveitei para meter conversa com um idoso.
Bem, para dizer a verdade foi ele. Contou-me imensas histórias e vivên-
cias do seu tempo. Deliciosas. Tinha oitenta e seis anos. Rijo.
- Sabe, meu bom senhor, eu ainda trabalho. E muito. Vou bulindo, em-
bora os meus filhos não queiram. A conversa continuou para apagar o
tempo que o rebanho tinha de galgar a subida da encosta.
Começámos a andar até um determinado local, rua estreita e muito in-
clinada, e perguntei-lhe o nome. Gosto de registar sempre o nome das
pessoas com quem vou falando.
- Aníbal Carvalho, mais conhecido por "Carvalho Duro". - Carvalho
quê?! - Duro. Porque ando por tudo o que é sítio e as pessoas desde
sempre disseram que tinha pernas duras para andar por estas serranias
e vales. Sorri, claro. O que é certo é que naquela caminhada, embora
pequena, verifiquei que andava que nem um sargento instrutor da tropa.
Depois, esperei e fiquei deslumbrado com o espetáculo.

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Salvador Massano Cardoso

“Segredos de velhas almas”...

Saí de casa com o pretexto de dar uma pequena volta a fim de esbarrar
em algo desconhecido, o que é um pouco difícil devido ao facto de
conhecer relativamente bem esta zona. Sei que é possível, mesmo que
tenha passado vezes sem conta por caminhos já calcorreados. Só preciso
estar atento e deixar que o acaso entre em cena.
Virava em cruzamentos sem saber onde iria parar, até que vi uma placa
indicativa de monumento. Pensei: - Aqui está um bom pretexto. Vou ver
a estação rupestre de Molelinhos. Sabia da sua existência há muito tem-
po e da recente "inauguração".
O tempo oscilava entre a chuva tocada a vento e um sol momentane-
amente radioso que se escondia com vergonha sempre que as nuvens
pesadas passavam por cima de mim. Andei até chegar à bifurcação final.
- Vá lá, desta vez a sinalética permitiu-me chegar até onde queria sem
ter de pedir orientações suplementares. Entrei num caminho de terra
batida, orlada de poças de água e de muitos ramos partidos, sinais de
tempestade recente. Não fiquei inibido, estou habituado a meter-me em
caminhos muito piores. À medida que circulava sentia ao meu lado a
habitual "indignação" por andar naquelas bandas. Não foram as palavras
que denunciaram o seu pensar, mas o silêncio. Expliquei-lhe do que se
tratava e respondeu que já tínhamos visto. - Vimos, mas não foi esta. Não
disse nada como esperava.
Lentamente, embrenhei-me na floresta silenciosa a qual me transportou
ao passado com uma facilidade incrível, como se estivesse a conduzir
através da estrada do tempo e não de um caminho de terra batida. Sabia
ao que ia e sabia o que iria encontrar. O ar era o mesmo e as forças da
natureza também se mostraram naqueles tempos como agora. O recorte
da serra, que se desenhava mesmo em frente, antecedido por vales de
pequenos riachos e ribeiras, não deviam ter sofrido qualquer alteração.
Uma espécie de altar dedicado a um deus pagão.
O recorte do espaço, a luminosidade da tarde, o vento que assobiava e
o mais odoroso silêncio que já senti devem ter encantado e despertado
as mesmas sensações em almas que por ali andaram no passado. Olhava
para os lados como se estivesse à espera de ver alguém vindo da beleza
do ventre do tempo.
Queria ver as pedras. Não consegui. Um tronco de um pinheiro cortou

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As minhas paisagens

o caminho como se fosse uma barreira a querer impedir que ouvisse os


segredos de velhas pedras esquecidas ao longo do tempo. Regressei sem
ver e, sobretudo, sem ouvir o que queria. Os segredos de velhas almas
estão lá. Sorri.
Eu sei que é um pouco difícil explicar as razões de querer ver, tocar,
ouvir e sonhar com pedras do passado.
Sorri. Prometi voltar e, talvez, contar...

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Salvador Massano Cardoso

“Desejo silencioso”...

Por vezes evito escrever sobre certos temas, não porque tenha receio;
julgo que já escrevi. Procuro os textos e não encontro. Chego ao ponto
de jurar que escrevi. Vejo-os com tanta limpidez. Procuro-os mais uma
vez e não encontro. Como é possível? A memória atraiçoa qualquer um,
só pode, ou, então, são textos escritos na própria memória à espera de
saírem para o mundo das letras, das frases, da fantasia, para o espaço
onde vivo e esqueço. Gosto de provocar a minha memória. Desafio-a a
todo o momento, indo aos confins da minha existência, onde tudo se ba-
ralha, e onde muitas coisas sussurram sons que não entendo. Vejo ima-
gens muito coloridas, cores que não encontro, brilhos diferentes e um
calor suave. O frio não existe. Curioso, não consigo recordar ambientes
frios e cinzentos da minha primeira infância. Até as doenças eram quen-
tes e coloridas; a febre e os exantemas andam sempre de mãos dadas.
Quando me recordo dos olhares e dos corpos dos mortos sinto que não
eram frios, nem feios e nem me causavam medo.
Recordo um dia de verão. Uma manhã rica de sol e cheia de calor muito
agradável. Brincava enfiado dentro dos meus calções. As sandálias eram
leves e deixavam-me correr velozmente pela estrada. Os carros não pas-
savam. Só de tempos a tempos, buzinando sons que não conseguiam
apagar o rosnar violento dos motores. A lambreta do meu vizinho tinha
um som mais feminino. Conhecia aquele som à distância. Quando ouvia
corria para casa do Chico. Gostava de brincar com ele. Uma espécie de
homem dos setes ofícios. Vendia jornais, tinha altifalantes para usar nos
bailaricos, montava casinhas e monumentos de papel que recortava com
uma perfeição incrível. Às vezes oferecia-me uma ou outra. Uma vez
ofereceu-me a Torre de Belém recortada em papel. Adorava-a, porque
julgava - como Jesus tinha nascido em Belém-, que a sua terra tinha a
mais bela torre de mundo! Passava horas de criança a olhar para aquela
preciosidade.
Um dia, o Chico chegou na sua velha lambreta.
- Onde foste Chico?
- Fui ver onde caíram os aviões. Eu tinha ouvido que vários aviões ti-
nham chocado em pleno ar. - Foi uma tragédia. Disse o meu pai. Morre-
ram oito pilotos. Chocaram uns com os outros em pleno ar.

48
As minhas paisagens

Nesse dia, uma manhã cheia de sol muito brilhante, em que espairecia
um calor muito saudável, o Chico contou-me tudo o que viu no local
do acidente. Ouvi-o atentamente, até que me disse: - Queres ver uns
pedaços dos aviões? - Pedaços, Chico? - Sim. Enquanto dizia isto retirava
da lambreta alguns fragmentos cinzentos de metal. - Toma! Se quiseres
podes ir mostrar ao teu pai. Levei-os com alguma dificuldade e sem
perceber muito bem o que tinha acontecido, porque nunca tinha visto
um avião ao perto. Sabia que andavam no ar, mas era a primeira vez que
tocava no pedaço de um. Entrei em casa e mostrei aos meus pais. Olha-
ram-me e disseram: - Vai entregar isso ao Chico. Não consegui entender
a forma como se expressaram. Só sei que senti um arrepio de frio. Foi a
primeira vez que me recordo de ter sentido frio. Coisa esquisita, pensei,
o dia está tão lindo e quente. Mas senti frio. Presumo que é a memória
mais antiga que tenho de ter sentido frio num dia quente e brilhante. En-
treguei os pedaços ao Chico. Depois fiquei com vontade de ir ver aquele
espaço. Vezes sem conta estive para ir ao local. Nunca perguntei a nin-
guém onde tinha ocorrido o acidente. Não sei a razão. Hoje, sem dizer
nada, deixei-me ir pela estrada ajudado pelo tempo. Um desejo escondi-
do, com quase sessenta anos, obrigou-me a ver o local que sempre quis
ver quando tinha apenas quatro anos. Encontrei-o sem perguntar nada
a ninguém. Um desejo silencioso. Estive no espaço da tragédia durante
alguns momentos e recordei muitas coisas. O dia de inverno, frio, ficou
subitamente quente. Senti o seu sabor. Algo diferente daquele dia quente
em que senti frio. Hoje, num dia muito frio, senti um suave calor.

49
Salvador Massano Cardoso

“Vazio”...

A violenta queda de água da manhã meio adormecida assustou-me, não


fosse o diabo mandá-la atrás de mim pela serra fora. Os ventres do alto
acalmaram-se e deixaram que fizesse o meu percurso sem sobressalto.
As ameaças não eram veladas, eram reais, mas passei entre duas valentes
quedas de água. Andei e cheguei ao destino, uma velha povoação per-
dida a sofrer a lenta e penosa morte anunciada. Chegar antes do tempo
permite-me saborear a realidade do momento. Não levei, ostensivamen-
te, o guarda-chuva. Tenho destas coisas, gosto de provocar os que andam
lá em cima. Meti-me em veredas e ruelas onde não cabem uma mula.
Olhando bem, convenci-me que nem elas seriam capazes de se meter
naqueles becos a relembrar as sombrias e estreitas ruas medievais. Andei
sem sentido, deixando-me guiar pelo barulho do rio que corria algures.
São sons que me atraem, talvez por recordarem outros sem igual e que
me moldaram como sonhar e pensar. Ao chegar à abertura vi o rio sim-
pático, velho, tortuoso e solitário, que chorava que nem um desalmado
à procura de alguém que o ouvisse e lhe falasse. Nessa altura, lá de
cima, a inveja despejou o seu azedume em cima de mim. Estremeci e
calculei o que iria acontecer, mas as ruas estreitas e esclerosadas tinham
recantos e encantos para me abrigar. Se chover a potes recolho-me e
escondo-me dos invejosos que vivem no alto. Não me devem ter visto,
a chuva calou-se. Saltitei, subi, desci, corri, sempre num deserto de al-
mas que me impressionou. Nem uma viva alma. Nada. Ninguém. Tudo
morto. Tudo fechado. Tudo apagado. Um silêncio que me incomodou.
Subitamente algo se mexeu na esquina de duas ruelas que mais pare-
ciam pequenas artérias esclerosadas. Um gato gordo, pardo a fugir para
o branco sujo, surgiu. O desgraçado deu um salto e pareceu-me que iria
ter algum enfarte. Assustou-se com a minha presença. Eu também, diga-
se de passagem. Encontrar algo vivo naquele sítio seria a última coisa
que procurava encontrar. O felino fugiu pelas ruelas e eu fui atrás dele.
Quando parava olhava para trás para ver se o seguia. E seguia-o. Olhava
e corria mais uns metros. Parava e olhava. E eu seguia-o. O tipo olhava
para mim como se o diabo tivesse visto a cruz. - Vai para o raio que te
parta, pensei. Continuei no meu percurso até que ele saltou um muro e
desapareceu, deixando o caminho livre. Ainda bem, pensei. Não sei se
lá em cima estava alguém ou não a ver a cena. Às tantas estava, porque

50
As minhas paisagens

nesse momento mimoseou-me com água das valentes. Virei-lhe as cos-


tas e escondi-me sob um alpendre. A casa estava fechada. Tinha cá fora
alguns objetos e utensílios domésticos. Esquecidos ou não estavam ali
ao meu alcance, mas o que me chamou a atenção foi uma pequena es-
tatueta de barro a representar um santo. Livro aberto. Pensei, um doutor
da igreja. Nada melhor do que este sítio para ler e pensar. Olhei-o com
admiração. Curioso. Como é que estás aqui? Sozinho, ao alcance de
uma qualquer mão. Não lhe toquei. Não gosto de tocar naquilo que não
é meu, mas falámos silenciosamente enquanto a chuva caía com sons
nunca vistos. O sino de uma torre, que tentava acasalar com a igreja,
começou a tocar. Eram horas de regressar e horas de calar a chuva que
caía. Agradeci-lhe a gentileza e fui à vida...

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Salvador Massano Cardoso

“Bordado de Tibaldinho”...

Sábado, véspera do dia em que o diabo anda à solta, saímos com o


objetivo de passar a tarde não muito longe. A pretexto de ir tomar um
café, o que não é natural depois de ter tomado um ao almoço, rumei
até uma localidade onde julgava estar a decorrer uma sessão de "pintu-
ra de rua". Instintivamente já estava a ver algumas obras e a pensar em
adquirir uma, caso fosse capaz de matar a minha sede de arte. No local
não havia nada. Dei mais uma volta e não vislumbrei quaisquer movi-
mentos. Também não bebi o café. Comecei a andar sem destino à espera
de poder esbarrar em qualquer coisa que desse sentido à viagem. Nada.
O vazio dos acontecimentos era substituído por paisagens mais do que
conhecidas e por verdes silenciosos e vulgares. Quando vi a placa, não
hesitei. No último momento guinei em direção a Tibaldinho. Já lá tinha
estado, mas não vislumbrei nenhum sítio onde pudesse ver os famosos
bordados. Ao chegar à povoação o deserto humano impôs-se e só vi um
trabalhador num telhado. Não parei para lhe perguntar onde é que po-
deria ver e adquirir os bordados. Enveredei por uma ruela estreita, que a
meio ainda se estreitava mais, e onde consegui vislumbrar uma tertúlia
típica das aldeias. Quatro mulheres de um lado, sentadas em bancos e
nas escadas e duas do outro lado. Aproximei-me, mas fiquei na dúvida
se passaria no local. Viram-me, levantaram-se, exceto duas, e começa-
ram a acenar-me para passar enquanto empurravam os bancos para trás.
Disse-lhes que não, que ia recuar, mas insistiram tanto que lhes fiz a von-
tade. Lentamente cheguei ao estreitamento da ruela. Parei. Abri a janela
e agradeci a gentileza. Aproveitei a ocasião para lhes perguntar onde é
que podíamos ver os famosos bordados. A mais nova apontou para uma
senhora de idade, vestida de preto, que estava sentada nas escadas com
a cabeça apoiada nas mãos. - A minha tia faz bordados. - Ai sim? Pode-
mos vê-los? - Claro. Olhe, bom senhor, pode parar o carro ali em baixo.
Indicou um pequeno cruzamento de duas estreitas vielas. Assim fiz. Saí
do carro, não fechei as portas e nem as janelas, e cumprimentei um
velho de olhar distante agarrado a um longo bordão que estava sentado
num banco de pedra. - Boa-tarde! Disse-lhe. Levantou a mão direita,
empurrou o chapéu roçado, e respondeu num tom triste e distante: -
Boas-tardes. Subimos as escadas estreitas da habitação e entrámos numa
pequena sala onde tive de baixar a cabeça com medo de tocar no teto.

52
As minhas paisagens

Casa muito humilde, acanhada, escura, dando a entender a condição


social da senhora. Pediu desculpa pela pobreza e pela forma como a
irmã, a senhora que tremia por todos os lados, e que apresentava um dis-
curso de perturbação mental evidente, que, entretanto, se tinha dirigido
à minha mulher, dizendo-lhe que era muito bonita, e que queria comer.
Estava com fome. - Está sempre naquilo, não sei o que fazer, pede comi-
da a todo o momento. Disse a mulher vestida de negro. Depois, retirou
de uma gaveta, vários bordados. Um deles, o primeiro, maior e muito
bonito ficou-nos debaixo dos olhos. Mostrou-nos outras obras mais pe-
quenas ao mesmo tempo que se queixava do trabalho. Não era fácil
bordar e além disso também não havia compradores. - Ninguém compra
nada, os tempos não estão para isso. O melhor é não fazer mais nenhum.
Os que lhe restavam podiam ir para os bisnetos, uma satisfação evidente
no meio daquela pobreza de Cristo. Fui eu que optei pelo primeiro, o
mais dispendioso. O preço teve de ser feito em escudos. Depois traduzi
para euros a pedido da velhinha. Entreguei-lhe as notas devidas as quais
agarrou com sofreguidão na mão esquerda e, quando íamos a sair, fez
algo que já não via há quase quarenta anos, quando um fotógrafo à la
minute nos tirou uma fotografia na serra da Boa Viagem, beijou a nota de
Santo António e benzeu-se. A senhora dos bordados não beijou as notas,
mas benzeu-se com discrição em frente a um quadro que retratava um
Sagrado Coração de Jesus. Tive a perceção de ter ajudado a resolver algo
que lhe estaria a atormentar o seu velho coração...
Ando por aí à espera de encontrar algo, e quase sempre encontro. Hoje
encontrei, um belo bordado de Tibaldinho, que vai ser centro de uma
mesa e centro de uma pequena história...

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Salvador Massano Cardoso

“Serpente”...

Sempre ouvi dizer mal das cobras. Existe algo de comum à quase totali-
dade das pessoas, uma aversão natural e irritante a este tipo de animais.
Rastejam, são silenciosos, metem medo, causam transtornos em muitos
de nós e são eivados de maldições que se perdem na noite dos tempos.
Não há civilização que não as tenham em lugar de destaque carregadas
de profundos simbolismos. Seres estranhos e misteriosos sem dúvida.
Desde pequeno que ouço dizer mal destes animais, ligados ao diabo, à
mentira, à traição e ao mal. Não sei se a minha aversão é constitucional
ou adquirida, às tantas tem origem em ambas.
Lembro-me da primeira vez que vi uma, era pequenino e foi "atrás dos
quintais". Era muito grande e tinha sido morta por alguém, a cor era
mista, amarela e preta. Ocupava toda a largura do caminho. Parei, olhei
e fiquei um pouco incomodado, mas não tive receio. Saltei por cima e
fiquei a olhá-la. Não recordo bem o que senti, um misto de surpresa, de
satisfação e de medo, não fosse ela estar viva. Cheguei a casa e contei
a minha experiência. Nunca mais esqueci este episódio e, sobretudo,
a influência que me provocou, algo de estranho. Mais tarde, talvez nos
dois anos seguintes, ao caminhar em cima de um carril, em pleno ve-
rão, tentava bater o meu recorde pessoal sem cair, quando fui alertado
pelo funcionário que vinha atrás para não parar. - Não pares e não olhes
para trás. Fiquei com curiosidade em ver o que se estava a passar, mas
obedeci face à voz autoritária. Ouvi uma pancada súbita no carril, um
som intenso de metal contra metal. O meu vizinho, funcionário da CP
que ia inspecionar o disco, levava o martelo da praxe e deu uma valente
martelada numa pequena serpente que vinha, também, sobre o carril
atrás de mim. Conhecedor da bicharada, disse-me que era uma víbo-
ra. Sem mais, sacou da sua navalha portuguesa e cortou-lhe a cabeça.
Explicou-me que quem tem a cabeça da víbora tem sempre sorte. Fiquei
com inveja e estive tentado a pedir-lhe, mas não fiz. Era a segunda vez
que via uma cobra, mas igualmente morta. Depois, com o tempo, vi
algumas, habitualmente pequenas, como uma que se lembrou de nadar
ao meu lado ao longo do rio. Mantive a calma e fiz todos os esforços por
nadar mais rápido do que a bicha, pequena, nervosa e negra, que nada-
va à distância de um braço. Suspirei de alívio quando consegui atingir
a margem. Vi muitas, sempre pequenas, verdes, amarelas e pretas. Sem-

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As minhas paisagens

pre que me cruzava com elas ficava na dúvida sobre quem ficava mais
assustado, se as cobras se eu. Acabei por concluir que elas tinham mais
receio. Só matei uma, e por acidente, foi há dois dias em viagem à serra.
Uma cobra pequena atreveu-se a cruzar a estrada e não tive tempo de
evitar o atropelamento. Olhei para o retrovisor e via que a tinha mata-
do. Perdeu-se aquela beleza de serpentear. Nunca me tinha acontecido
nada semelhante. Já me cruzei com algumas na estrada, mas esta foi a
primeira vez que atropelei o único animal amaldiçoado por Deus. Nun-
ca entendi muito bem o papel da serpente no livro sagrado. Ou melhor,
até consigo entender, afinal foi o único animal que libertou o homem
dando-lhe a conhecer o bem e o mal. Se não fosse a serpente ainda hoje
estaríamos a viver na ignorância da existência, talvez mais felizes, mas
nunca humanos, mortais candidatos a deuses. A serpente é diabolizada
por representar a sabedoria, o conhecimento e o atrevimento face aos
desejos de Deus. Não há cultura e não há civilização que não tenha
construído os seus mitos e explicações à sua custa. Na nossa, na Bíblia,
traduzida por São Jerónimo, no século IV, podemos ler, "Eritis sicut Deus,
scientes bonum et malum", a frase da serpente quando convenceu Eva
a colher o fruto proibido: "Sereis como deus, ficareis a conhecer o bem
e o mal".
Afinal, se não fosse a serpente o que é que seríamos? Seres humanos?
Duvido muito. E Deus? Viveria triste, sozinho, sem ter ninguém que o
adorasse ou conhecesse...

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Salvador Massano Cardoso

“Brinquedos”...

Domingo de agosto, domingo de férias, domingo de chuva, domingo


triste, domingo com nuvens brancas, cinzentas e negras a abraçarem
penosamente as montanhas e a taparem o sol arrogante. Um domingo
diferente que me levou a terras conhecidas. Viajei e encontrei. Encontro
sempre, é apenas uma questão de querer. Esbarrei em jardins desconhe-
cidos e passeei por caminhos conhecidos. Entrei no museu. A chuva
morna afagava-me a esperança de encontrar velhas lembranças. Vi os
brinquedos, muitos, mas o que eu queria era ver os meus. Depois é que
me lembrei, como posso recordar o que não tive. Muitos era eu que os
fazia. Sim, eu fazia os meus brinquedos. Lembro-me dos barcos e dos
pedaços de madeira que roubava na fábrica. Depois como não tinha
ferramentas ia ter com o padrinho do meu pai e pedia-lhe para que me
cortasse na serra o pedaço para poder fazer o casco do meu navio. - Vai-
te embora rapaz, não vês que tenho mais do que fazer? - Ande lá, pa-
drinho, eu também lhe chamava padrinho, corte-me este pedaço. Tanto
insistia que mandava um operário cortar-me num ápice a base do que se-
ria o casco do meu barco. - Obrigado, padrinho. - Vai-te embora, vai-te
embora, desaparece. Dizia com uma voz dura que eu nunca liguei, era a
sua forma de falar. Outras vezes batia-lhe à porta do escritório da fábrica
para lhe pedir esferas. - Esferas? Para quê? - Para jogar claro! - Não tenho!
Tem pois. Ainda agora vi lá em baixo na casa das máquinas tantas esfe-
ras. - Não viste nada. - Vi. Vi pois. Quer vir comigo? Eu mostro-lhe. Oh
rapaz, desaparece da minha vista. - Está bem, mas posso levar algumas?
- Leva, leva, mas desaparece. Descia as escadas com uma velocidade
louca e dizia para o operário das caldeiras. - O meu padrinho disse-me
para que me desse umas esferas. Já agora, podia dar-me uns rolamentos
para o meu carro? É que precisava de uns rolamentos, mas tive medo
de lhe pedir. O operário ria-se e satisfazia o meu pedido dizendo para
os esconder se não quem se lixava era ele. - Está bem! Eu meto-os nos
bolsos. - Nesses bolsitos? E apontava para os meus calções. - Sim. - Não,
não cabem, são pequeninos demais. - Olha eu deixo-os entre as tábuas
da vedação que dá para a tua casa e tu depois já os pode levar sem que
ninguém veja. - Está bem, obrigado. - Não digas nada a ninguém. Eu
dizia-lhe que sim abanando a cabeça.
Enquanto percorria o museu ia recordando os meus brinquedos, a maio-

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As minhas paisagens

ria feita por mim ou com a colaboração de um tio carpinteiro "especia-


lista" que me ajudava a fazer as minhas espadas, punhais, arcos, flechas
e pistolas. Outros brinquedos iam surgindo na minha mente. Foi então
que vi o meu avião de latão comprado num dia de Santa Cruz, uma ca-
mioneta de caixa aberta comprada na feira e uma traineira, também de
latão, que me fez as delícias e um barquito azul de baquelite com o qual
fazia corridas ao longo do desvio da canada que levava a água da ribeira
até ao moinho. Ainda vi mais alguns, mas nunca os tive, apenas os via
nas mãos de outros. Toquei com os olhos noutras coisas do passado que
reviveram naquele instante em que a chuva morna de um domingo de
verão suspirava de saudade pelos tempos de então...

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Salvador Massano Cardoso

"Novelo de vida"…

Após o almoço calcorreámos velhas ruelas sob um suave e doce calor,


a fazer horas para ver o que não vimos de manhã. O almoço decorreu
sob a égide dos produtos da serra, enchidos, carne e vinho. O cansaço,
despertado pelo tempo de espera, levou-nos à procura de um banco.
Sabia que nas redondezas havia um pequeno jardim. Abalei convicto
de encontrar um assento que propiciasse brincar com o relógio e falar
sem tempo. Debaixo da árvore estava um pequeno banco. Olhei e vi um
novelo cinzento e negro a querer rebolar-se e saltar para o chão.
Pequeno, muito pequeno e negro, o novelo humano começou a descer,
andando à pato, cabeça pendida e bossa dorida. A minha mulher aproxi-
mou-se atraída por tão inusitada figura e baixou-se. Começaram a falar.
Ouvi: - Sim, ando a passear um pouco, mas moro ali em baixo no início
da rua. Vou para casa. A fala era excelente e as ideias fluíam-lhe na ra-
zão inversa do seu corpo meio mirrado e que deverá ter perdido muitos
centímetros à sua estatura inicial. Simpática, e desejosa de dois dedos de
conversa, parou e começou a contar muitas coisas. Tinha que ser, pensei.
Interrompia-a e perguntei-lhe qual era a sua graça. - Maria dos Anjos. -
Posso saber a sua idade? - Sim. Tenho 94 anos. Nasci a 13 de junho, no
dia de Santo António. A felicidade de ter nascido num dia tão importante
levou-a a uma tentativa de levantar a cabeça, e sorriu, mostrando dois
velhinhos caninos a ornamentar um enorme diastema avermelhado. En-
tretanto, algumas repas de cabelo branco e fino teimavam em mostrar-se
fora do velho lenço negro. - O cabelo está a incomodá-la? - Não. Eu tive
sempre um cabelo muito comprido, quase que me chegava aos pés. Mas
sabe, naquela altura os pais não deixavam cortar os cabelos às filhas.
Ainda tenho o cabelo comprido, mas tive que fazer tranças, porque não
consigo levantar os braços para trás. Enquanto dizia isto, para provar,
tirou o lenço negro para que pudéssemos ver duas tranças entrelaçadas
numa espécie de rodilha. - Afinal, a senhora vive com quem? - Com o
meu irmão e a minha cunhada. - Que idade tem o seu irmão? - Oitenta e
seis anos. Olhe, meu senhor, eu já não consigo fazer o comer. Disse com
muita pena. - Mas sempre tem quem o faça para a senhora. - Pois. Sabe
uma coisa? Vou-lhe confessar. Não sei o que ando a fazer. Já estou cansa-
da de viver. São muitos anos. - Não diga isso. - Digo, digo. Já tenho muita
idade. - Mas ainda se mexe bem e fala com tanta desenvoltura. Tem uma

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As minhas paisagens

cabeça a trabalhar como deve ser. - Pois! Como quem diz, tens razão,
mas por isso mesmo é que ando cansada de viver. Mais uns momentos
de conversa, assuntos de outros tempos, uma quinta onde cresceu, viveu
e trabalhou. Despediu-se. A casa não ficava muito longe, segundo disse.
Espero que o seu fim esteja, apesar de tudo, muito mais longe.
No dia de Santo António vou lembrar-me da Maria dos Anjos, um deli-
cado novelo de vida.

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Salvador Massano Cardoso

"Sol na serra"...

É bom viajar entre dois pontos através da linha mais longa e demorada.
Um bom pretexto para regressar e encontrar o que de outra maneira
nunca acharia. Foi o que fiz hoje de tarde. Subi a serra por caminhos
bem conhecidos e depois de a cumprimentar e recordar tempos que já
lá passei desci a outra vertente, tortuosa, longa, bravia e vazia de gente.
Apenas os verdes baloiçavam nas íngremes e silenciosas encostas, cha-
mando a atenção para os vales profundos, onde se escondem almas e
pensamentos perdidos, uma espécie de vale dos reis.
Não vi ninguém, não me cruzei com ninguém, apenas o sol me fez com-
panhia. Aldeias vazias, descoradas pelo tempo, sussurravam encantos e
lendas escondidas. Ouvi-as sem entender, via-as com pena de as per-
turbar, e não lhes falei. Para quê? Não gosto de inquietar o mundo que
me rodeia. Prefiro passar pelo mundo sem incomodar, sem falar, apenas
ver e ouvir o que a natureza e a imaginação me convidam a pensar e a
fazer. Penso na simplicidade, na transitoriedade da vida, no encanto de
um momento de solidão e, sobretudo, na beleza do desconhecido, onde
qualquer um se encontra mesmo sabendo que não exista.

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As minhas paisagens

"Viagem à volta do fumo"...

Gosto mais de viajar para o norte e leste do país, onde encontro sempre
coisas novas, mas também me regalo com as velhas. Pensei, é raro andar
para as bandas do litoral. Hoje vou nessa direção, pode ser que consiga
encontrar motivos ou um verso para compor à noite.
Ao chegar a Mortágua guinei para a direita. Massena teve que recuar
no Buçaco e passou por estas bandas em direção a Coimbra. Na altura
eram descampados, pedras soltas e revoltas. Hoje, um tapete gigante de
eucaliptos tapa aqueles vales e outeiros. Se ainda houver algum soldado
francês perdido não vou conseguir vê-lo. Pensei nisso, porque desejei
vê-los na esquina de alguma curva. Que raio de ideia, o que é que eu iria
fazer ou dizer? Devíamos ficar os dois assustados, talvez mais ele do que
eu. Andar por estes lados obriga-me a rememorar e a "recordar" certos
acontecimentos, como se houvesse qualquer coisa a puxar para o pas-
sado. Esbarrei em Águeda onde deambulei pela cidade enfeitada com
coloridos chapéus nas ruas lembrando-me o quanto custa estar ao sol
e quanta falta faz a chuva. Não muito longe as ondas de fumo impreg-
navam as encostas da serra do Caramulo, da qual fugi como o diabo da
Cruz, embora sentisse uma nostalgia por não poder calcorreá-la como
faço todos os anos. Retive vários apontamentos e algumas frases dese-
nhadas na coluna onde está colocado o busto de um grande homem, Al-
bano de Mello, que disse um dia no Parlamento, "A minha terra é a mais
linda de Portugal". Sorri. Porque é uma frase que muitos de nós é capaz
de dizer a propósito da sua terra. Ser-se linda é uma questão de olhar,
não através do sentido físico da visão, mas através dos sentidos da alma,
onde olhos invisíveis veem, ouvem, falam e encantam ao mesmo tempo.
Os restantes breves dizeres da coluna foram suficientes para quebrar
laços de desconhecimento. Deste modo ficámos formalmente apresenta-
dos, esperando retomar a conversa um dia destes. Em seguida deixei-me
guiar pelo evoluir confrangedor das colunas de fumo, que iam evolando
sempre do meu lado direito. Acabei por visitar Oliveira de Frades. Não
conhecia. Gostei da vila, arejada, planeada, limpa e florida, um peque-
no encanto que delicia quem a visita e que tranquiliza quem por lá vive.
Tive pouco tempo para a desfrutar, mas, mesmo assim, deslumbrei-me
com lindas janelas quinhentistas e oliveiras aparadas e acariciadas aos
pés por belas flores fazendo lembrar santas alvo de qualquer devoção.

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Salvador Massano Cardoso

Não por a vila ser Oliveira, já que o seu nome provém de Ulveira, la-
meiros, locais onde abunda a ulva, terrenos ricos que devem ter atraído
quem deles necessitavam para viver. O tempo acasalou os dois nomes. E
procriaram. Depois regressei a casa, passando por velhos locais bem co-
nhecidos, hoje tristemente mergulhados num estranho nevoeiro de fumo
que amarelecia os campos, as florestas e as almas, recordando tragédias,
tragédias que não se esquecem.
Uma viagem à volta do fumo.

62
As minhas paisagens

"Manhã"...

Levanto-me depois de uma noite de descanso e cumpro um ritual de


férias, vou para a sala, abro as janelas, deixo entrar o suave e morno
perfume da manhã, acendo a televisão, pego no que estiver à mão e
observo se está tudo no sítio, a serra ao longe ainda lá está, as casas dos
vizinhos também, mas hoje o azul do céu está pintado no horizonte de
um cinzento descorado e ligeiramente rosa a testemunhar a presença do
diabo pelas florestas. Sento-me. Ouço a passarada feliz. Vou continuar a
descansar, a não fazer nada, como se fosse a coisa mais importante do
mundo. Por vezes até é, não fazer nada ou fingir que não se faz nada.
Pego num livro, pego numa revista, afinal o que faço é apenas mudá-
los de lugar. A televisão debita notícias. Fujo, habitualmente de manhã,
dos canais nacionais por mera proteção, para que não me recordem os
males que nos atinge e não ouvir o massacre dos que teimam em esbu-
racar as feridas com os seus dedos, grossos e imundos, uma prática que
devem julgar como sendo a melhor cura! Mesmo assim ouço e vejo o
sofrimento dos que são acometidos pelo ataque furioso das chamas, uma
dor e angústia que me fazem estremecer. Mudo para um canal estran-
geiro noticioso e deparo-me com uma mãe egípcia, sentada ao lado do
seu filho morto, com a cabeça ligeiramente virada para a câmara - não
vira as costas ao corpo -, a sentenciar a sua dor, perfeita, visível, emotiva,
sancionando-a com a revolta, com a vingança e com a esperança de que
outras mortes limpem, façam esquecer, ou heroifiquem a morte do seu
filho. Uma estranha combinação, a dor da morte do ente mais querido
e o desejo de morte de outros. Amor e ódio, sempre presentes, fazem
entender-me que só se pode apreciar uma delas através da outra. Uma
espiral que emerge da noite dos tempos. Nada, não há nada que consiga
mudar este comportamento, nada, nem mesmo as religiões, esses movi-
mentos apelativos de amor ao próximo, que também sabem alimentar-se
da "deformidade" criativa do homem. Queria descansar, queria não fazer
nada, queria, mas não consigo. Dói-me ver o que vejo, dói-me ouvir o
que ouço, dói-me sentir o que sinto, dói-me prever o que prevejo. Viver
é apenas fazer doer. E eu que não queria fazer nada...

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Salvador Massano Cardoso

"Navegar"...

O trabalho amolece o corpo e esgota o espírito. Se juntar o efeito do sol


e o peso da idade, então, tudo combinado provoca uma sensação estra-
nha de cansaço e de saturação que me obriga a fazer algo que contrarie
tamanhos efeitos.
Aproveitei a tarde para procurar um bálsamo ou uma mistela que me
ajudasse a encontrar repouso e tranquilidade. Sempre que necessito des-
ta terapêutica, e caso possa, enfio-me no carro e vou sem destino.
Para a direita ou para a esquerda? Não percebi. Perguntou-me novamen-
te, para a direita ou para a esquerda? Sem entender bem o alcance da
pergunta, respondi, para a direita. Anda bem, porque ao fundo da rua
houve um acidente. Avancei e de facto vi dois carros enfaixados num
entroncamento. O habitual na minha rua. Continuei e fui por velhos
caminhos conhecidos, rememorando as velhas paisagens que sempre se
vão modificando pela ação do tempo e do homem. Andar sem objetivo
é uma forma de acalmar e domesticar o tempo e, também, uma tentativa
simpática de rejuvenescimento, mas apenas na mente.
Criei então um destino. Ao chegar renunciei-o, não sei porquê. Subi a
serra e a meio, estranhamente, inverti a marcha. Desci e meti-me por
uma estrada de montanha. Acabei a viagem numa velha vila, depois
de passar por inúmeros locais em que a vida se esconde com vergonha
ou com medo. Soube, então, que procurava o simpático e tranquilo rio,
orlado por belas árvores, onde corria uma frescura muito suave. Senti as
suas margens perfumadas de inúmeras lembranças. Disse que senti, me-
lhor seria dizer que ouvi através do cantar de milhares de cigarras. Que
pena não entender a sua linguagem, mesmo assim imaginei histórias.
Consigo criá-las, vê-las e saboreá-las. Calcorreei espaços solitários,
cheios de sol e enfeitados de sensuais sombras. Imagens, recordações,
sons, sussurros, confissões, e sei eu o que mais, alastravam pela minha
mente como se os fantasmas daqueles espaços decretassem a tarde como
sendo o momento de orar aos vivos, pedindo-lhes que os recordassem e
que os ajudassem a reviver as suas belas histórias e reconstruindo as que
lhe eram mais pesadas e tristes.
Curioso, pensei, então, as almas também rezam, e logo a nós, mortais,
pequenos e pobres seres que vivem atormentados com o futuro? Sim,
oram, porque já não se atormentam com o futuro, apenas querem viver o

64
As minhas paisagens

passado, revisitá-lo, e se possível, nalguns casos, modificá-lo. Foi o que


eu fiz, ou melhor, o que tentei fazer, reviver e modificar o passado de
alguns. Como? Olhei para a beleza e suavidade do presente e ofertei-as
ao passado.
Tão simples. Senti que receberam o que queriam. E eu também...

65
Salvador Massano Cardoso

“Locais sagrados”...

Tudo tem uma explicação, tudo tem um nome. Conhecer a origem das
coisas ou o porquê do nome seduz qualquer um. Às vezes é fácil, existe
documentação ou elementos que expliquem os factos ou as designações,
outras vezes não é possível o que leva a investigar a origem. Mesmo que
a investigação não corresponda à realidade pode ser sempre fonte de um
novo mito. Os próprios mitos ou lendas são, por vezes, usados para lá
chegar. É uma área das mais adoráveis, misturar lendas e investigação,
criando e recriando novas verdades e interpretações.
Diz o investigador que as aberturas de todos os dólmenes do vale do
Mondego estão viradas em direção à serra da Estrela. Quando foram
construídos, há seis mil anos, a estrela Adelbaran, grande, tremelicando
como só um coração do universo sabe fazer, enviando uma luz averme-
lhada, nascia por detrás do maciço rochoso convidando os homens e
animais a beber a vida que brotava naquele majestoso altar. O sentido
religioso do homem compreendeu que o sagrado se deve pagar com o
sagrado, o que fez com que construíssem os seus monumentos em locais
tão belos e suaves.Conheço alguns desses locais, próximos e remotos,
autênticos portais do tempo, estranhos altares que nos ensinam a agrade-
cer a vida e a beleza, uma simbiótica relação que devem ter descoberto
há muito. O silêncio aquece a alma, o ar é o mesmo, os espaços circun-
dantes não devem ser muito diferentes aos nossos olhos, os deles e os
meus, e as pedras aquecidas pelo sol do verão devolvem o mesmo calor
provocando sensações idênticas. Tudo em redor se move num silêncio
adorável, as cores são as mesmas, sentaram-se nos mesmos locais, fala-
ram, comeram e amaram naqueles templos naturais. Não os ouço, mas
não é difícil adivinhar as suas presenças. Busco-os sempre que posso, e
quando não posso tenho a solução, para isso basta-me recordar as sen-
sações que têm produzido ao longo do tempo.
É o que estou a fazer neste momento, viajar no tempo próximo e no tem-
po remoto, o meu tempo e o tempo deles, nos mesmos locais, sagrados,
templos, onde consigo compreender o sentido da vida acasalado com
a beleza. Locais sagrados, com nomes, com significados, convidando
à criação de novas lendas que permitam perpetuar a vida e a beleza. É
isso, o único sacrifício que pedem é um nome e que os perpetuemos em
lendas, afinal, o seu equivalente a vida e beleza...

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As minhas paisagens

“O sol quer jogar”...

Conheço o sol há muito tempo, muito para mim, claro, porque para ele
eu nem valho um espirro de uma formiga. Mesmo assim, já o conheço
suficientemente para dizer que pode ser louco, irrequieto, tímido, mau,
meigo, mortal, amoroso, triste, enfim, nunca vi nada na minha vida pa-
recida com as suas múltiplas facetas. Bem mais previsível é a sua sombra
da noite, a lua, sempre discreta, fria, com laivos permanentes de uma
enigmática tristeza, apenas suspensa durante belos momentos em que,
cheia que nem um odre de vinho, se levanta no horizonte encharcando
o espaço de um abraço acobreado, despertando e transformando seres
que só ela conhece.
Agradeço ao sol algumas das mais belas e inesquecíveis imagens grava-
das com raios tépidos no corpo e na mente de uma criança. Ansiava por
esta altura do ano, embora não tivesse ainda muitas memórias de outros.
Imaginava que fora sempre assim.
O sol ensinou-me a compreender o sentido de muitas palavras e as esta-
ções do ano. Afinal de contas não eram as velas do bolo do aniversário, e
nem as prendinhas, que marcavam um novo ano, mas sim a repetição de
um belo ritual, o prolongar do dia, o corar do céu ao final da tarde, o ir
para casa mais tarde e as brincadeiras na laje de cimento aquecida pelo
calor da tarde. Quando desaparecia, atrás da serra, ficava a saboreá-lo
através do calor que irradiava do chão, onde desenhava, com um giz
pifado da escola, estradas tortuosas por onde teriam de andar as caricas,
imitando os ciclistas, como se fosse uma volta a Portugal. Tinha de ter
cuidado ao disparar com o dedo médio, porque se saíssem das linhas
traçadas tinham de voltar ao início. O sol ficava intrigado com o jogo,
mas quando ia perguntar o que é que eu estava a fazer, já a serra o tinha
escondido. - Deixa lá, amanhã digo-te. Quando começava a desenhar
novamente, no dia seguinte, ao final da tarde, novos trajetos para o meu
jogo, o sol, curioso, olhava-me com esperança de saber o que estaria a
fazer. Quando começava a jogar, a serra começava a tapá-lo e ouvia-o
dizer muito à pressa: - O que é que estás a fazer...? - Amanhã digo-te.
Entretanto, deitava-me no cimento e gozava com aquele calor que ele
me deixava, debaixo de um céu muito vermelho que pintava as minhas
pistas, as minhas caricas, dando uma cor muito especial ao meu jogo.
Hoje, o sol despertou de uma letargia, de uma depressão prolongada,

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Salvador Massano Cardoso

e, cheio de humor, fez-me reviver esse período. Só agora me lembrei


que nunca lhe disse o que estava a fazer. Digo-lhe agora: - Sabes sol,
brincava à volta em Portugal com caricas de garrafas de laranjadas e
de cerveja. Tinha que me treinar por causa dos campeonatos na escola.
Ficou surpreendido, por só agora lhe ter respondido. - Obrigado. Disse
timidamente, mostrando desejo de brincar. Apercebi-me da sua intenção
e perguntei-lhe: - Queres também jogar? - Quero, pois! Respondeu com
ansiedade infantil. - Bom, então, que tal jogarmos amanhã? - Sim, sim,
jogamos amanhã, mas quem escolhe as caricas sou eu. - Está bem! Podes
escolher. Até amanhã. - Até amanhã. Disse com muita satisfação, algo
que não devia sentir há muito tempo. E deixou-se cair alegre que nem
uma criança ansiosa atrás da serra do Caramulo, vermelho de excitação.
Bom. Pelo menos, sei que amanhã vamos ter um belo dia, alegre e in-
fantil, com o sol desejoso de brincar, mas só ao final da tarde, não vá ele
despertar maldisposto. Se quer jogar tem que se portar bem...

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As minhas paisagens

"Miserável sentir"...

Estou irritado, um sacana de um vírus lembrou-se de que eu era um bom


hospedeiro para dar continuidade à sua existência, uma besta qualquer
que não pensa, que nem autonomia tem para se reproduzir, um estú-
pido que nem sabe das vantagens da transmissão sexual, um perfeito
palerma que se tivesse consciência da sua existência ainda era capaz de
argumentar que estava a fazer bem à minha saúde ao estimular o meu
sistema imunológico ou coisa parecida como se isso fosse alguma van-
tagem para mim, face ao que terei de esperar a curto ou a médio prazo.
Sacana, consegue fazer-me sentir miserável e ainda por cima tenho de
trabalhar. E a este propósito, trabalho, levantei-me muito cedo para cum-
prir com as minhas obrigações e respeitar os direitos dos outros. Como já
vem sendo habitual não consegui começar a horas devido ao tradicional
e lusitano atraso de um colaborador que não sabe ou não lhe apetece
chegar a horas. Senti-me miserável. Dei uma volta para espairecer as
minhas misérias e vi que o belo rio, perto da vagina da serra que o pariu,
não tinha uma gota de água. Alargaram e cimentaram o seu leito e em-
paredaram-no com pompa e circunstância. Senti-me miserável perante
um rio seco, nem uma lágrima de tristeza conseguiu botar, não por falta
de vontade, nem por vergonha, mas por falta de água. Começo a ver os
trabalhadores. Alguns já conheço de anos anteriores. Os mesmos proble-
mas, as mesmas patologias e a mesma indiferença face aos conselhos.
Os trabalhadores hipertensos continuavam hipertensos, os que sofrem
de diabetes continuavam olimpicamente descontrolados, os que apre-
sentavam alterações hepáticas devidas ao abuso do álcool continuam
com as alterações e assim sucessivamente, transmitindo-me a ideia de
que pouco ou nada vale tentar alterar os hábitos de certas pessoas. Ainda
estive para lhes perguntar o que é que achavam do bosão de Higgs, mas
calei-me, porque o problema não está na descoberta desta partícula,
que pode explicar muita coisa, sobretudo a massa, mas sim na desco-
berta e finalidade da partícula da estupidez, e não é preciso nenhum
acelerador de partículas. Fizeram-me sentir miserável. A continuar assim
não tarda e deixo de reagir, equiparando-os a verdadeiros neutrinos, es-
sas estranhas partículas que atravessam tudo e todos sem darmos conta
da sua existência. Almoço com rapidez. Desta feita o polvo está duro.
Mais uma, pensei. E o raio do vírus a incomodar-me cada vez mais, ao

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Salvador Massano Cardoso

mesmo tempo que as conversas atrevidas da televisão me chagavam o


pensamento. É demais. Não, não é demais coisa nenhuma, as conversas
dos meus vizinhos da casa de pasto complementavam o quadro com os
seus ditos, opiniões e soluções para a crise, fazendo com que o polvo se
tornasse quase intragável, e sem culpa. Entretanto, as notícias e comen-
tários políticos sobre os assuntos do dia causavam-me perplexidade e
tristeza obrigando-me a reemergir o sentimento de miséria como se fosse
aquele geiser do parque de Yellowstone, grande e bonito de ver, mas pe-
rigoso de tocar ou de ser tocado. Miséria das misérias, como é que hei de
dar a volta a este estado de coisas? Um analgésico não chega, um copo
de bom vinho não é suficiente, morder com afinco o polvo é o menos,
calar-me perante a indiferença dos trabalhadores aos conselhos sempre
ajuda, escrevinhar algumas palavras e pensamentos poderá ser uma via,
mas, espero com ansiedade, que hoje, ao final do dia, depois do jantar,
possa ir à livraria comprar alguns livros que me permitam afogar-me
como um suicida nas suas páginas, enredos e pensamentos. Nada me-
lhor do que um bom livro para ultrapassar este miserável sentir.

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As minhas paisagens

"Esperança"...

Não consigo saborear o mundo. Cada vez está mais frio, mais distante,
mais desesperante, um mundo de aflição, um mundo de dor, um mundo
que é um estupor. Todos os dias ouço vozes enlouquecidas, vozes sem
esperança, vozes de sofrimento, vozes de mentiras, vozes que provocam
feridas, vozes sem som.
Todos os dias morro, morro às mãos de vilões, morro sem acreditar no
futuro, morro de sono, morro sem sonhos. Não entendo o mundo, não
entendo os homens, não entendo nada. Fujo, falo e empenho-me de for-
ma suicida no trabalho. Afogar no meio de ondas de trabalho, ondas de
pessoas sofredoras, que desesperam, que cirandam sem norte, pessoas
que anseiam por morrer na tranquilidade da praia da vida, é procurar
viver e tentar manter a esperança.
Esperança? Sim, esperança sem cor, esperança cheia de dor, uma estra-
nha esperança à procura de amor.

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Salvador Massano Cardoso

"Imagem tatuada"...

Sou um homem pacífico e respeito a humanidade. Gosto da essência


básica do ser humano, esse estranho ser que sabe que vive, que não se
recorda que nasceu e que sabe que um dia desaparecerá. Gosto desse
belo poema que foi ter sido criado à imagem de um Deus! Gosto de
reverberar com os seus feitos. Gosto da sua poesia e inebrio-me com as
produções artísticas capazes de alimentar almas desejosas de fé, de fé
num mundo melhor, de fé numa vida suave, alegre, confortante e que
nos deixe amar, amar até embriagar.
Gosto desta faceta do homem, gosto. Eu sei que não é fantasia, ela exis-
te, eu toco-lhe e bebo-a com sofreguidão. Ando à sua procura. Não a
encontro, desapareceu. Roubaram-ma. Ficou apenas a sua imagem que
não me serve para nada.
Procuro esconder essa imagem que me esculpiram em palavras, com
exemplos e através de histórias fantasiosas. Agora não a consigo expul-
sar. Vive tatuada no meu pensamento. Atormenta-me. Olho em redor e
não vejo o mundo que me prometeram. Olho em redor e assusto-me
com tamanho temor. É um horror viver neste mundo, neste país e nesta
sociedade sem amor, sem futuro, sem nada para dar a não ser dor.
Uma imagem que não serve para nada, uma imagem tatuada no pensa-
mento que se tornou num tormento...

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As minhas paisagens

"Conhaque de Napoleão"...

O dia não foi muito complicado, começou com a aula habitual, frequen-
tada por alguns alunos corajosos, que não se importam de levantar cedo
à segunda-feira, alunos que me confortam pela atenção, sempre os mes-
mos, e que irão acompanhar-me ao longo do ano. Ministro conhecimen-
tos, desperto ideias e estimulo-os com as minhas naturais provocações.
Só espero que daqui a muitos anos ainda se lembrem de algumas tiradas,
análises, críticas, observações e as naturais provocações. Se assim acon-
tecer ficarei feliz, esteja onde estiver, recorde ou não que ainda existo.
Dou-lhes tudo o que posso dar, dou-lhes tudo o que gostaria que me
tivessem dado. Professar é isso mesmo, amar quem nos ouve e quem nos
acarinha, mesmo no silêncio do início de uma manhã de segunda-fei-
ra. Depois, nada de especial, ver e ouvir pessoas, cumprir com deveres
profissionais e ouvir algumas histórias. Ser-se médico é ser um canavial
onde os seres humanos podem lançar os seus sons, angústias, dores, es-
peranças, desejos e sofrimentos. O dia de um médico é uma espécie de
vulcão que subitamente se transforma na mais bela, suave e encantadora
praia desejosa de ser amada por um mar silencioso e cheio de amor ou,
então, cair no mais doloroso inferno, incompreensível e amargurado. Foi
o que me aconteceu. Simpatia, amizade, felicidade, alegria e, de repen-
te, a dor estampada na expressão e nos sentimentos. Tragédias a roubar o
meu encanto e felicidade. Tive o condão de as ouvir e de as acompanhar
no seu sofrimento. Não consigo habituar-me à dor, sobretudo à dor da
alma, porque a do corpo é sempre mais fácil de aliviar. No entanto, pas-
so a sofrer, e só quero esquecer, mas não consigo. Aprendo novamente o
que já sei, recordo o que já sofri e atemorizo-me com o que ainda tenho
de sofrer. O doente é o mestre do meu sofrimento e da minha angústia. E
como se não bastasse tudo isto, o tempo - maldito tempo -, encarrega-se
de morder os calcanhares e desbotar a alma. O final da tarde fez-se na
escuridão da época, com pequenos sobressaltos, desde a desconfiança
da autoridade tributária, assustadora e ameaçadora, ao estranho com-
portamento de pessoas, cujo caráter fere a bondade humana. Mas a vida
é mesmo assim. A compensação chegou ao jantar com as travessuras
dos mais novos. As suas tiradas, criatividade, amor, ternura, beleza e
imaginação, conseguem apagar o que nos ofende, aterroriza e maltrata.
Sons de criança, imaginação de criança e responsabilidade de criança

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Salvador Massano Cardoso

são o melhor lenitivo para qualquer alma inquieta, e a minha anda mais
do que inquieta, anda cheia de temor e de dor.
Descanso, penso, analiso e escrevo. O dia está a acabar. O Courvoisier
ajuda-me a aquecer a alma e obriga-me a pensar que não me importaria
de acompanhar o exílio de Napoleão, não por ele, mas pela ilha, longe,
longínqua, isolada, mergulhada no silêncio frio do Atlântico e pelo calor
do delicioso conhaque que o acompanhou. Assim termina uma vulgar
segunda-feira de um outono triste e escuro.

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As minhas paisagens

"Escrever à noite"...

Escrever à noite é mergulhar nas profundezas da vida. Escrever à noite é


libertar a alma dos tormentos do dia. Escrever à noite é fecundar a espe-
rança do amor. Escrever à noite é nascer num outro mundo, mundo da
fantasia, mundo da alegria, mundo do passado, mundo nunca amado.
Escrever à noite é fugir do inferno.
Escrever à noite é procurar o eterno. Escrever à noite é tentar viver à
medida que versejo. Desejo escrever à noite. Não preciso de tema, não
preciso de um verso, não preciso de nada, só preciso de deixar vogar
um ensejo, o ensejo de descrever o que vejo, para isso almejo escrever à
noite, porque escrever é o meu maior desejo.

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Salvador Massano Cardoso

"Conversa num dia cinzento"...

Velhos doentes, novas conversas, velhos amigos e novas esperanças,


tudo mergulhado no cinzento de um dia triste. Não há maleita que re-
sista a um sorriso, a uma história vezes sem conta contada, a uma tirada
esperada, a uma expectativa desejada. Não há nada melhor para tratar
uma maleita do que uma boa conversa, conversa feita com carinho, feita
com amor e não desfeita pelo tempo que se aproxima do fim. Não há fim
que resista a uma boa conversa. Adia-se o fim e contraria-se a maleita.
Não há nada melhor do que um sorriso de um homem ou mulher doente
num dia cinzento, triste e sem sol. O dia cinzento esvanece-se, um novo
sol aparece, e fico com mais uma recordação, recordação que me enri-
quece. O dia cinzento e triste não resiste a uma simples e bela conversa
cheia de histórias, prenhe de esperanças, contrariando a maleita que
aflige e acena para um fim não desejado, mas esperado. Nada melhor
do que sentir os raios de um sol que nasce do tormento de uma maleita.
Nasce uma vez, mas nunca se sabe se vai aparecer outra vez.

76
As minhas paisagens

"Calor"...

Não chove. O sol anda por aí, sem saber o que fazer e o que dizer.
Deixa-se andar ao sabor da brisa do outono, dos sonhos dos mais novos
e das saudades dos mais velhos.
Quer brincar, mas depressa arrepende-se porque há quem o chame para
junto de si para que possa aquecê-los. É tempo de começar a reaprender
a procurar o calor, o calor de uma conversa, o calor do passado, o calor
de uma lembrança, o calor de uma lareira, o calor de um sol desnorte-
ado, e envelhecido pelo círculo do tempo, o calor de um bom vinho a
afagar a garganta sedenta e seca de castanhas douradas, o que interessa
é sentir calor e libertar o pensamento quente, quente de ideias novas,
feitas de velhas lembranças.
O que interessa é aquecer quem necessita de calor, calor da vida, calor
de esperança ou calor de amor. Sentir calor no silêncio de uma tarde
desértica, entremeada por recordações frenéticas, liberta a alma, aquece
o sol desnorteado de uma tarde de outono e justifica a existência, nem
que seja por breves instantes, instantes em que se consegue sentir algum
calor.
Donde é que ele vem? Do sol, da lareira, do vinho, da lembrança? Não
interessa, o que interessa é que me faça sentir bem.

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Salvador Massano Cardoso

"Dia de sol"...

Que belo dia de sol e logo hoje usei o meu cachecol. Tenho de o tirar,
sinto calor e um certo ardor. Calor no corpo e ardor na alma. Não há
medicamento para curar a dor da alma, a não ser amor empacotado em
essências de flor. Não vejo flores, não vejo nada, vejo apenas o sol a
espreguiçar-se num céu azul sem nuvens, nu, sem nada, apenas dançan-
do e cantando como se fosse o dia do juízo final.
Afinal o dia vai ser adiado, porque entrou em cena o safado do diabo.
Reclama para si o dom de ser a fonte do calor, mas não é calor que sinto,
mas sim ardor na alma, um triste ardor provocado por alguém em quem
confiava.
O ser humano é mesmo assim, raivoso e doloroso capaz de trair a con-
fiança vezes sem fim.
O que fazer, entretanto? Esperar pelo fim, porque depois posso respirar e
gritar bem alto, até que enfim!

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As minhas paisagens

"Frio"...

O cheiro do frio não me perturba, nem o cheiro, nem as carícias, nem


quaisquer ameaças gélidas. O que me perturba é ter de olhar para al-
guém e futurar-lhe o destino.
Isso sim, é que me gela a alma e provoca-me saudades futuras de um
presente que está a esvair-se nas mãos da doença. Depois é só esperar
que a morte adocique a existência do sofredor, deixando para trás cin-
zentas nuvens de pó de dor. Isso sim, isso é que me perturba. Olho e não
sei o que dizer. Olho e fico calado. Olho e fico atormentado. Viver é isso,
olhar e esperar pela morte, sentir e partilhar o sofrimento que alguns
consideram como sendo libertador. Nunca compreendi muito bem este
juízo de valor sobre a importância da dor, para mim basta sentir o frio da
vida, esse sim, esse perturba-me. Quero esquecê-lo, mas não consigo,
porque não há uma fonte de calor que me faça esquecer a dor, a dor do
próximo e a minha futura dor. O mundo perde a cor quando vejo e sinto
o tormento que a dor provoca em seres que sonham ainda com o amor.
Um sonho que acabará em breve em dor e sem calor. Mais uma altura
para perguntar por Deus. Deus deve estar a almoçar.

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Salvador Massano Cardoso

"Arco-íris"...

Sempre tive alguma dificuldade em me enquadrar dentro do espetro polí-


tico. Adoro ver arco-íris. Apetece-me correr e agarrar as suas cores e pro-
curar os tesouros que se escondem nos seus braços. Já não sei rezar, ou
melhor, esqueci-me de rezar, não tenho as orações presentes, as orações
que tive de aprender em criança com enorme dificuldade. Eu, que sem-
pre me pautei por ter uma memória interessante, tive muitas dificuldades
em decorar algumas orações. Recordo que consegui aprender apenas
duas com relativa facilidade: Ave-Maria, porque é uma bela poesia, e
o Pai-Nosso, este último já com alguma dificuldade, era mais pesado!
mais longo, mas, mesmo assim, com muito sacrifício, ainda consegui
aprender. Quantas às outras, valha-me Deus, nunca consegui decorá-las,
e logo eu que decorava tudo; chegava a ouvir duas ou três conversas ao
mesmo tempo e dava conta do recado. Ainda hoje questiono o porquê
de tantas dificuldades.
Quando vejo um arco-íris sinto uma atração tão forte que só me apetece
rezar, à minha maneira, da forma mais bela, mais sentida, mais poética e
mais herética possível. Corro atrás de um arco-íris sempre que vejo um.
Tantas cores, belas, puras, de braço dado dando significado à pureza da
cor branca. Olho para um arco-íris e vejo os diferentes partidos, cada
um com a sua cor, com as suas ideias, de braço dado e incapazes de
viver sem os outros, combinando-se de forma a garantir a vida de uma
sociedade. Uns gostam mais de uma cor do que as outras. Cada um sabe
explicar o porquê de apreciar a sua. Têm as suas razões e dão as suas
explicações. Em termos práticos as diferentes cores não conseguem vi-
ver umas sem as outras. Vivem em harmonia e respeitam-se. Sabem que
assim podem abraçar o mundo de horizonte a horizonte, e quando o sol
deixa de beijar as suas lágrimas, escondem-se, abraçam-se, beijam-se,
vivem com respeito e harmonia, alumiando o mundo desejoso de vida e
de luz. Não me importa se tenho ou não dificuldade em me enquadrar
dentro do espetro político.
Agora não tenho, mas não faço questão de dar a mão a outro qualquer
desde que me prove ter razão. No entanto, tenho de confessar, prefiro
ver um belo arco-íris e dizer uma oração, uma oração feita à minha ma-
neira, com amor, com paixão, deixando livre o meu coração e viver com
alegria e muita compreensão.

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As minhas paisagens

"Anjo-da-guarda"...

Adoro imprevistos, desde que me deslumbrem e aqueçam a alma. Criar


histórias está no interior das minhas células, que se alimentam do ines-
perado, do encanto, da poesia, do amor e de o respirar de gente sim-
ples, anónima, gente que ambiciona ser feliz. A história é simples, uma
imagem velha, delicada, harmoniosa, cheia de silêncio, repleta de belos
tempos, alvo de cuidados, adorada ou respeitada, um símbolo profundo
e religioso de quem tem o poder de proteger e guardar a alma dos mais
fracos e vulneráveis. Nada de especial. Um anjo-da-guarda, vindo dos
confins do tempo, e que alimentou a vida de quem o possuiu, acabou
por cair nas minhas mãos.
A imagem levou-me a pensar nas histórias de pequenas coisas, de gente
simples, e, sobretudo, das emoções e vidas associadas. Uma pequena
imagem cheia de histórias e que acaba de originar mais uma. Caiu-me
nas mãos. Tudo o que me caia nas mãos, seja qual for o valor que tenha,
tem que ter um tratamento especial, por respeito com todos os pensa-
mentos que absorveu e produziu nos seus donos. Só assim entendo o
valor de uma oferta. Cheguei a casa e mostrei as "ofertas" da semana.
Instintivamente olhei para a minha neta mais nova, que ouvia em si-
lêncio a conversa, e disse-lhe: - Gostas deste anjinho? - Gosto. É muito
lindo! Sabendo da sua apetência, perguntei-lhe: - Gostavas de ficar com
ele? Não respondeu, mas os olhos brilharam com a habitual cintilação
quando vai receber algo que não estava à espera. - É para ti. Sorriu com
felicidade. Quando acabámos de jantar perguntei-lhe onde é que o iria
colocar. Entretanto, pediu-me para o pegar. Com doçura, e muito cuida-
do, foi até à sala onde se sentou com o anjo ao colo. Respondeu-me que
ia colocá-lo na porta de entrada. - E o que é que lhe vais pedir? Esperou
um pouco e respondeu-me: - Para não ter maus sonhos. Para não cair.
Para não me fazerem mal. Para não ter sangue. Para dar saúde à mamã.
Disse as frases de forma pausada e séria. Subitamente, agita-se e grita: -
Vovô, agora, a Nossa Senhora que tu me deste vai ter a companhia do
anjo-da-guarda! Ela vai ficar feliz, não vai? - Vai, pois, os santos também
gostam de companhia. Calou-se durante alguns segundos e continuou:
- Vovô, podias ter dado também ao João e à Mariana. - Pois podia. Mas
não te preocupes, santos e santas é coisa que não me falta. Sorriu. - Eu
depois dou-lhes um. Está bem? - Está. Mas conta-me a história deste

81
Salvador Massano Cardoso

anjo-da-guarda. E eu contei-lhe. Ficou absorta e satisfeita com a origem


e as voltas do mesmo até lhe ter chegado às suas mãos. Fui dono durante
algumas horas de um anjo-da-guarda, mas entendi que estaria muito
melhor nas mãos da minha neta mais nova. Passou a ser dela.
Tenho a certeza que daqui a muitos anos, muitos mesmo, ela saberá o
que fazer com ele e irá contar uma nova história, simples, delicada e
cheia de emoção. É assim que se constrói uma história. É assim que as
histórias se alimentam das almas humanas e as almas de histórias.

82
As minhas paisagens

"A mordaça"...

Se alguém me perguntasse qual o maior atributo inerente à condição


humana responderia sem hesitação, a liberdade, a liberdade de ser, a
liberdade de estar, a liberdade de falar. Se alguém me perguntasse para
representar a maior igualdade do mundo descreveria sem hesitação, li-
berdade = humanidade. Não consigo conceber que se limite ou impeça
a liberdade de expressão de ninguém, mesmo que discorda frontalmente
da ideologia, do credo, do clube e da forma de ver o mundo. Quando
tal acontece, saio a terreiro para os defender. É meu dever, é um direito
que não abdico. Esta posição não significa que aceite todas as opiniões,
sobretudo quando estas caiem no âmbito do insulto ou da calúnia. Isso
nunca, isso não é sinónimo de liberdade, trata-se de uma conduta que
é própria dos sacanas, de gente sem escrúpulos, de pessoas sem caráter
e sem dignidade, que, afinal, não passam de meros representantes da
libertinagem, que é o oposto da liberdade.
Portugal viveu anos de ditadura. Não se podia falar. Havia um desprezo
pelos direitos das pessoas. Nas pequenas localidades, os "ditadorezinhos"
locais replicavam o comportamento dos dirigentes do país. Impunham
e viviam à custa do medo, da represália, da humilhação e da denúncia.
Uma verdadeira rede que se alimentava da negação dos direitos dos
mais necessitados. Ouvi e conheço muitas histórias que ilustram esses
comportamentos. A mordaça existia e era aplicada por tudo e por nada.
A tristeza e a humilhação andavam de braço dado, e descalças como os
pés da gente humilde e necessitada. Depois veio a explosão de alegria
e de amor social, graças a uma revolução que colocou no pedestal, no
altar da vida, a imagem que qualquer ser humano digno deveria adorar,
independentemente da sua fé, a deusa da liberdade. Mesmo os que não
têm religião são capazes, humildemente, de se ajoelharem perante esse
símbolo. E devem fazê-lo, porque ajoelhar aos pés da liberdade é sinó-
nimo de respeito pela condição humana. Custa-me que em "liberdade",
quase quarenta anos depois, começam a aparecer pessoas a queixarem-
se, a chorarem, porque não se sentem livres de poderem exprimir as suas
ideias e opiniões.
Falo de gente digna, respeitadora, consciente do seu papel e não de gen-
te sacana, tacanha, mesquinha e com falta de caráter. Falo de gente de
bem. Há, neste país, gente de bem que começa a queixar-se de que se

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Salvador Massano Cardoso

sentem amordaçadas, algo impensável, indigno, ofensivo e humilhante


da condição humana. Não aceito que se amordace ninguém por pen-
sar de forma diferente, pensamento que até pode ser oposto do meu,
mas está a acontecer, e eu coloco-me ao lado de todos, sejam os que
comungam das minhas ideias, sejam os que não concordam comigo.
Respeito-os no mesmo plano, e ao fazê-lo estou a dar-me ao respeito e a
contribuir para o desenvolvimento e equilíbrio social.
Não consigo aturar os libertinos, os sacanas, os trafulhas, os vigaristas,
mas respeito e admiro todos os que honestamente querem dar o seu
melhor para o país, independentemente da ideologia, credo, ou forma
de ser.
Não às mordaças, sim à denúncia da libertinagem.
Não consigo pensar viver sem liberdade, o maior bem que alguém pode
desfrutar.

84
As minhas paisagens

"Horas de descanso"...

Contei algumas horas esta noite, e meias horas também. Não me diverte
nada contá-las, mas o meu relógio biológico passou a ser comandado
por um oscilar de obrigações que exigem um despertar cedo. Prefiro ou-
vir as meias horas. Levam-me a imaginar a que horas pertencem. Meia
hora passa depressa, e espero pelo tocar da hora. Ponho-me a contar e
começo a fazer cálculos, ainda posso dormir mais um pouco. Hoje é
sábado, pensei, talvez consiga enganar o tempo.
Adormeço, acordo, julgo que durmo, chego a sonhar e descubro que
ando em bolandas sem saber o que fazer do tempo que me cai nos
braços num sábado de manhã. Tempo de conforto, tempo que deveria
ser reparador, mas que acaba por se transformar num estreito e escuro
corredor a empurrar-me para o terror. Fecho os olhos, aproveito o calor,
convenço-me do direito do corpo a repousar, mas as imagens do futuro
assolam-me a mente como se pertencessem a estranhos sonhos.
Fico na dúvida se estou acordado ou a dormir, e estremeço de dor quan-
do me apercebo dos toques que o velho relógio lança em redor. Sons
sem cor. Futuro de dor. Levanto-me. Finjo que não sinto temor. Ainda há
tempo para saborear o amor.

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Salvador Massano Cardoso

"Dezembro"...

Um mês interessante, o mês da morte do sol e do nascer de uma nova


vida. O mês em que a natureza se casou com o divino, o mês em que
o cristianismo se casou com o paganismo, o mês em que a fantasia de
uma criança se transforma na realidade dura da sua existência. Um mês
estranho, talvez o mais estranho de todos.
O mês da alegria que um dia se transformou em tristeza, em dor, em
desespero, o mês da esperança que um dia apagou as luzes e o brilho
da redenção da vida, um mês que mistura tudo, o mês que consegue
apagar a alegria e acender a tristeza no sofrimento de um ser indefeso,
uma criança.
O mês que nunca devia esconder-se, mas que humilha, que mata, que
faz sofrer os que creem na bondade de uma falsa existência. O mês que
me faz sofrer, mês que me faz lembrar a beleza da esperança, mas que a
matou numa dura e inesperada noite.
O mês mais estranho do mundo, o mês da cor e da tristeza, um mês que
tanto sabe desprezar a vida como anunciar o amor, um mês que sempre
adorei até que um dia o desprezei.
Dezembro, o mês mais estranho do mundo, o mês que nunca esqueci,
mas que um dia...

86
As minhas paisagens

"Última visita"...

Ainda cheguei a tempo de me refugiar no espaço que me tranquiliza e


seduz. É a última visita que faço este ano. Agradeço o silêncio, a solidão,
a paz e o anúncio de algo que nunca percebi bem o quê. Ainda hoje não
consigo vislumbrar o que me espera. Só sei que encontrei um espaço
que serve tanto um pagão como um religioso.
Não faz diferença nenhuma. Talvez seja isso, apenas um espaço que
convida à meditação e a um estranho e desejado descanso. Um espaço
que liberta, que encanta, que inspira, que deixa respirar, que alivia e que
explode de esperança, só não diz o quê. O seu segredo é esse, oferece,
mas não diz o quê. Tinha que vir.
Aqui estou, deslumbrado pelo estranho odor que não sei de onde vem, e
que não encontro em mais lugar nenhum, mas que me faz bem. Faz. Eu
sinto. Talvez seja por isso que me deixo aprisionar neste espaço. Espaço
que prende e liberta ao mesmo tempo. Não se sente frio, nem calor,
apenas se vê paz e ondas de um odor que não é mais do que o expirar
de amor. Olho para todos os lados e não consigo vislumbrar o seu autor.
Descobriria facilmente no fim do mundo este odor, um perfume ímpar,
estranho, suave e cheio de amor. Aqui estou pela última vez este ano.
Espero continuar a beber o ar, a saborear o silêncio, a captar a beleza
que irradia dos seus cantos e a inspirar o belo perfume capaz de afastar
qualquer dor.
Aqui estou pela última vez este ano.

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Salvador Massano Cardoso

"Inverno da vida"

Já o conheço há muito. Entrava sempre a claudicar, um estranho coxear


que lhe dava uma certa graça, a recordação de um velho acidente. A
simpatia precedia a entrada, sorriso meigo a anunciar o aperto de mão.
Delicado, e sempre acompanhando da mulher, mais nova, nos últimos
anos via-se mesmo que era mais nova, porque o carrear dos anos e o
trabalho acelerou-lhe a senescência, permanecia quase sempre calado.
A mulher fazia as honras da consulta, mas fazia-o com um carinho ex-
traordinário, diria mesmo comovente, tratando-o como se fosse o filho
que nunca teve. Algo de singular, para não dizer espetacular. Gostava
daquela supremacia feminina, nítida, mas amorosa, um cuidado cheio
de ternura que devia perdurar há dezenas de anos e que nunca vi ao lon-
go da minha existência. Acabei, naturalmente, por me afeiçoar ao casal.
As doenças, que acumulava de ano para ano, iam sendo compensadas,
mas a última, grave, prenunciadora de um fim próximo e de terapêuticas
agressivas, preocupou-me sobremaneira. Na prática "não o quiseram" e
nem lhe deram a devida atenção, pelo que tive de assumir a responsa-
bilidade de o tratar e acompanhar. Surpreendi-me com a evolução da
doença, nunca esperei tamanha recuperação. Um alívio, pensei, assim
posso dar-lhe algum conforto e permitir que um amor de seis dezenas
de anos continue a aquecê-los. Mas o tempo, aliado à lesão da perna,
começaram a tolher-lhe a marcha. Aflita, a mulher perguntou-me como
é que eu agora iria vê-lo: - O "pobrezinho" já não consegue andar! - É
fácil! Vou vê-lo a casa. - O senhor doutor é capaz disso? Perguntou com
uma cara de espanto. - Disso e muito mais. Então eu não iria cuidar do
seu marido? A conversa continuou com a descrição dos cuidados neces-
sários coisa que cumpria de uma forma tão certinha que quase poderia
utilizar como um exemplo perfeito de adesão à terapêutica.
Telefonou-me ontem, perguntando se poderia então ver o seu marido.
Hoje, à hora aprazada, na aldeia meio perdida e quase deserta, sem
saber onde morava, não me foi difícil encontrar a casa. Estava à minha
espera junto à cancela da entrada de uma habitação muito humilde.
Uma vizinha fazia-lhe companhia. Cumprimentaram-me efusivamente,
mostrando gengivas despovoadas de dentes, e entrei para a cozinha, que
estava do lado de fora da habitação. - Não se importa de o ver na cozi-
nha, pois não, senhor doutor? Ele assim está mais quentinho. Subi as es-

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As minhas paisagens

cadas e entrei num pequeno espaço, aquecido com o calor de um fogão


de lenha, antigo, um calor que me fez recordar o fogão da minha casa.
Ouvi o mesmo crepitar da lenha a arder e vi a vermelhidão a transpare-
cer no espaço limpo e humilde. Falámos, divertimo-nos, e o meu doente,
com os seus quase noventa anos de idade e sessenta de casado, ria com
uma felicidade tão quente como o calor que brotava do fogão. As análi-
ses tinham sido feitas e os resultados maravilharam-me. Transmiti o meu
sentir e alegria, que os contagiou, uma bela prenda de Natal, pensei. A
mulher, cheia de cuidados, sorriu, e, com um olhar pintado de uma bela
esperança, a querer mesmo brilhar, disse-me: - Acha que ainda vamos
fazer sessenta anos de casado para o ano, senhor doutor? - Se vai? Claro
que vai, por que é que não deveria? Olhei para o meu amigo que, com
um sorriso muito meigo, simples e difícil de encontrar, me comunicou:
- Oh, seja o que Deus quiser. - O que Ele quiser e eu também, homessa!
A conversa continuou e, à saída, depois de ter dado a volta, esperavam
para me saudar a mulher e duas vizinhas, que, interrompendo uma ame-
na cavaqueira, enfeitavam a rua, sinal de que há ainda vida naquele
povoado.
Conforta-me trazer do passado certas imagens e revivê-las, porque estão
impregnadas de sabedoria, humildade, consideração e de uma bela po-
esia que me enche o coração.
Agora, não posso esquecer-me de julho do próximo ano para poder fe-
licitar e cumprimentar um casal de velhos amigos que me ajudam a
saborear a vida.
Viver é isto mesmo, partilhar momentos em que somos capazes de trans-
mitir e oferecer um pouco de felicidade.

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Salvador Massano Cardoso

"Uma, duas, três...histórias"

Aquilo que o homem mais aprecia é uma história. Sempre que ouve a
frase, sabes o que aconteceu, para de imediato, acende as orelhas, fixa
com olhar penetrante o interlocutor e espera, ansiosamente, a narrativa
de uma história. Depois incorpora-a na sua mente, digere-a,armazena-a,
compara-a com outras e, sempre que a oportunidade ou a vontade lhe
surja, conta-a aos outros, nunca da mesma forma que ouviu ou leu, por-
que os filtros de ver e sentir o mundo divergem de pessoa para pessoa.
Por vezes a história sofre alterações, frequentemente enriquecidas, ou-
tras vezes empobrecidas, tudo depende da qualidade do contador. Mes-
mo que acrescente um ponto, o que interessa é que no final a essência
ou a alma da mesma se mantenha bela e pura como no original.
Ao longo da vida tenho ouvido muitas histórias as quais me enriquece-
ram sobremaneira, muito mais do que a literatura dos clássicos ou dos
intelectuais da época. Gosto de as ouvir, são fonte de inspiração, de
formação e de sedução. Quantas e quantas histórias perdidas andam por
aí à espera de desaparecer sem serem ouvidas, desfrutadas e amadas?
Quantas? Muitas. Há um provérbio árabe segundo o qual "cada velho
que morre é uma biblioteca que arde". Partindo desta realidade, seria
interessante descrever algumas páginas da vida dos idosos, sobretudo os
que permanecem em lares, registando algumas passagens das suas vidas
que mereçam ser realçadas e transformadas através da palavra escrita em
pequenos e sugestivos contos para prevenir o seu desaparecimento, en-
riquecer e enobrecer os seus familiares e amigos e todos os desconheci-
dos que gostem e que precisam de saber o que é que os outros viveram,
sofreram ou amaram. São histórias de vida, são descrições reais e não
imaginárias, são coisas contadas pelos próprios, impregnadas de senti-
mentos e emoções, são fontes de ensinamentos, de cultura e de esperan-
ça, são aulas de sabedoria, de cortesia, de amor, de tristeza e de dor, são
as lágrimas e os risos de quem pouco lhes resta de vida, mas que podem
eternizar-se através da palavra escrita enobrecidas por artísticas ilustra-
ções. Faz-se arte, faz-se cultura e eterniza-se a vida através da leitura.
Um projeto que pode ser realizado com eventual grande impacto. Basta
ir às minas de ouro, a lares e a outras instituições onde permanecem fi-
lões inesgotáveis, para escrever, para contar e ilustrar histórias que farão
as delícias da vida de futuras memórias...

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As minhas paisagens

"Lágrimas”...

Os rios nascem das lágrimas da tristeza, da saudade e do amor. Se não


fosse a sensibilidade das ninfas e das deusas eles não existiriam, e nós
também não.
Ao longo do trajeto as águas vão-se engrossando, umas vezes, turbulen-
tas e odiosas, outras, calmas e transparentes sempre que a pureza dos
sentimentos as alimentam, turvas quando a raiva e a dor fazem jorrar
lágrimas de sangue, azuladas e faiscantes quando a emoção da alegria
as faz brotar ao fim da tarde, altura em que o sol descobre o seu dourado
e o luar da noite consegue realçar o brilho prateado.
Quando as lágrimas secam, as águas deixam de correr, e a fome e a dor
aparecem, frutos de um sofrimento em que não é possível sentir mais o
amor.
Lágrimas, muitas, simples, doces, salgadas, amargas; lágrimas, a ima-
gem líquida das almas. Almas nobres, tristes, esperançosas, angustiosas,
sofredoras, secas, puras, ladras, venenosas, todas elas choram, mas são
poucas as que alimentam o rio da existência...

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Salvador Massano Cardoso

"Contar histórias”…

Quando escrevo tenho por hábito contar alguma história cuja essência
possa ajudar quem lê, despertando sentimentos, provocando emoções,
dar algum significado à vida ou semear esperanças para enfrentar o fu-
turo escondido na indiferença, na traição e na incompreensão, mas, ao
mesmo tempo, prometendo lançar luminosos e amorosos balões de S.
João. Escrever não é complicado e nem difícil. Uma simples observação,
uma frase, um olhar, um comentário, um qualquer tropeção é mais do
que suficiente para acordar a vontade de escrever, um despertar estre-
munhado ou mesmo alucinado. Outras vezes, a vontade de escrever
emerge das profundezas de um estado de espírito que procura o alívio
através do desenho analgésico de palavras escorridas e enlouquecidas,
sequiosas de sol, calor, afeto, amor e de paz.
Gosto de contar histórias pela simples razão de que todo o ser humano
precisa de se alimentar do trigo da vida dos outros. Gosto de contar his-
tórias porque ajudam a aperfeiçoar-nos, dão-nos alguma tranquilidade,
despertam tristeza, provocam alegria e auxiliam a visualizar os nossos
defeitos e virtudes. Gosto de contar histórias e de entrar nas histórias que
conto. Não me é difícil e nem muito complicado, pela simples razão de
que gosto de as ouvir. Não sou diferente dos outros. Ainda bem. Quanto
conto uma história faço com prazer, com humildade, sem preconceitos e
sem outro objetivo que não seja reviver as emoções e os sentimentos que
senti quando a ouvi. Igual a qualquer outra pessoa. Pode haver quem
não concorde com a descrição dos meus sentimentos, observações, aná-
lises e comentários, mas não pretendo ofender quem não se revê nos
mesmos, porque quando escrevo não faço por soberba, vaidade ou su-
perioridade, mas apenas por uma questão de necessidade de contar, de
partilhar e de ajudar.
Gosto de contar histórias, preciso de as contar e se for caso disso posso
escrever apenas para mim. Porquê? Porque preciso de contar histórias e,
sobretudo, de as ouvir, nem que seja as que escrevi...

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As minhas paisagens

“Uma rosa e uma cruz”...

Entraram os olhos, olhos que ofuscaram tudo, olhos tristes, olhos inter-
rogadores, olhos que não escondiam a dúvida, o medo e a ansiedade.
A conversa iniciou-se num tom baixo, mais baixo do que é habitual o
que me obrigou a reforçar a atenção, já de si presa ao enigmático olhar.
Pequenos e curtos cumprimentos deram seguimento à pergunta sacra-
mental. Ao responder, de uma forma inquietante, baixou ainda mais a
voz. Tive que fazer um enorme esforço para a entender, mas ouvi, “sou
uma doente oncológica”. “Sou uma doente oncológica”, repetiu. Não
disse nada e procedi ao interrogatório nesse sentido, mas com muito
cuidado. Explicou-me que teve um tumor na mama. Foi operada. Fez
posteriormente o tratamento complementar que é devido nestas circuns-
tâncias. - Mas agora já não está a tomar nada, não é verdade? - Sim.
Agora não tomo nada. - Ótimo, então as coisas estão bem. O exame
continuou. Ao auscultá-la vi, no lugar onde tinha nascido o seu dra-
ma, uma bela tatuagem, uma rosa vermelha com duas folhas verdes a
esconder uma cruz inclinada. Que estranho, pensei, uma rosa tão bem
desenhada a tentar esconder uma cruz inclinada. Interrompi o meu pen-
samento para tentar ouvir os sons cardíacos, mas nem sei se os ouvi
bem, porque quis interpretar aquela simbologia, a beleza e o amor de
uma rosa a querer esconder a cruz de uma vida. Evidentemente que não
podia permanecer naquela situação por mais tempo, embora quisesse
fazer-lhe algumas perguntas. O exame continuou e, no final, disse-lhe
que a reconstrução mamária estava muito bem feita. Explicou-me que
tinham tirado a pele do dorso. Foi então que me atrevi a comentar que
tinha uma bela tatuagem. Sorriu pela primeira vez e desnudou-se o sufi-
ciente para a mostrar. Agora a situação era diferente. Explicou-me que a
tinha feito por dois motivos, para tentar esconder a cicatriz e para gravar
a "cruz da sua vida". Foi a minha vez de sorrir. - Foi o que eu pensei,
tenho de a felicitar, tem uma tatuagem muito delicada, uma pequena
maravilha. Olhou-me e, pela primeira vez, sorriu de uma forma solta,
genuinamente livre, com olhos tranquilos e felizes, dizendo um sonoro,
“muito obrigada”! Despediu-se, primeiro os olhos, depois ela. Ainda lhe
disse: - Desejo-lhe muitas felicidades, e não se esqueça de sorrir, olhe
que tem a mais bela tatuagem que já vi até hoje. Foi então, que os olhos
se voltaram novamente para mim, agradecendo de uma maneira que só
outros olhos podem ver e sentir, mas nunca desenhar, porque para isso
seria preciso saber tatuar uma alma...

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Salvador Massano Cardoso

“Pedras do meu encantamento”...

Sinto necessidade em fugir da vida, simbolicamente falando, como é ób-


vio. Custa-me viver, sobretudo nos dias cinzentos e chuvosos, em que a
tristeza das pessoas agrava o frio do respirar. Viver cansa, amar descansa,
mas há dias em que a vida foge e o amor se esconde. Há dias em que
viver não presta, tudo se resume a um fingir sem pressa. Encontro pedras
húmidas a chorarem pelos cantos.
Também elas estão cansadas da vida, mas não se importam, julgam-se
mortas, mas choram, não sei porquê.
Tenho inveja das pedras mortas, velhas, frias e que choram, pedras que
se escondem em delicados nevoeiros, pedras perdidas, pedras achadas,
pedras encantadas, pedras feridas, pedras sem vida.
Pedras do meu encantamento.

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As minhas paisagens

"Sabes que dia é hoje?"...

Não me posso esquecer. É impossível. Ainda tenho razão e uma memó-


ria que me obriga amiúde a mergulhar no passado, alimentando-me de
histórias, de carícias, de imagens, de sons, de silêncios, de esperanças e
de muito amor. Ouvi da sua boca pela primeira vez quem era o São Brás.
Um santo, médico, bispo, que fez milagres com as doenças da gargan-
ta. Ela sabia o milagre da criança aflita com uma espinha espetada na
garganta que não conseguia respirar, quando, ao passar por ela, a mãe
pediu ao santo para a salvar. São Brás, sem qualquer instrumento, retirou
da garganta uma enorme espinha que a ameaçava de morte.
Deliciava-me com esta história e comecei a prestar um profundo respei-
to e admiração pelo santo. Talvez tenha sido o primeiro santo cuja data
decorei e nunca mais esqueci, três de fevereiro. Todos os anos, enquanto
fui criança, ouvia deliciado a mesma história e não deixava de colocar
a minha pequena mão na garganta como a querer tirar uma espinha
imaginária, embora já tivesse tido alguma experiência da incomodidade
provocada por uma ou outra, pequena, claro.
Perguntei-lhe por que é que a mãe não lhe tinha dado uma pequena bola
feita de miolo do pão para engolir e assim tirava a espinha. Era o que
faziam comigo. Dizia que naquele caso a espinha, sendo muito grande,
e estando espetada profundamente na garganta, não podia ser retirada
dessa forma. Eu ouvia, fascinado, a história, afagando a garganta como
se estivesse a sentir a maldita espinha. Depois vinha a pequena festa, pe-
quena mesmo, mas mesmo assim bonita, a que não faltava os beijinhos
e os abraços de parabéns. Era o dia do seu aniversário. Todos os anos
ouvia a lenda do São Brás. Depois, mais tarde, já não lhe pedia para
me contar novamente a história. Não precisava de a ouvir da sua boca,
ouvi-a mentalmente, vezes sem conta sem deixar de afagar a garganta.
Quando não estava com ela telefonava-lhe e começava a conversa di-
zendo: - Sabes que dia é hoje? É o dia do São Brás. Imagino que deveria
estar a sorrir. A seguir dava-lhe os parabéns e um beijinho por mais um
aniversário. Agradecia e dizíamos as trivialidades próprias do dia.
Continuámos com este ritual durante muitos anos. Mesmo quando a ca-
beça começou a render-se ao inevitável, nunca deixou de ter a lucidez
suficiente e uma explosiva alegria nesse dia que começava sempre com
a mesma frase: - Sabes que hoje é o dia de São Brás? Ria-se. Sim, nos úl-

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Salvador Massano Cardoso

timos anos ouvia-a rir-se do outro lado sempre que lhe lembrava o santo.
Mesmo no último ano em que fez anos, não deixei de lhe dizer: - Sabes
que dia é hoje? Respondeu-me: - Sei filho. Sei. É dia de São Brás? - É!
Uma pequena gargalhada, ou algo similar, saiu-lhe da garganta como se
estivesse abençoada pelo santo.
Hoje é dia de São Brás. Já não lhe posso perguntar, sabes que dia é hoje?
É o dia do santo, cuja lenda deverá ter sido a primeira, ou uma das pri-
meiras, que fixei e que todos os anos, neste dia, gostava de a ouvir pela
boca minha mãe.
- Sabes que dia é hoje?
Oiço, finjo ouvir, gostava de ouvir a resposta, “é dia de São Brás”.
Entretanto, afago a garganta como fazia em pequeno...

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As minhas paisagens

“Acontecimentos”...

Sou um ser frágil, cada vez mais frágil. A idade é uma espécie de cancro
do vidro capaz de a qualquer momento fazer com que a bela jarra da
vida se esfrangalhe sem lhe ninguém tocar. Os acontecimentos da vida
não me surpreendem muito. Pois não, vejo-os, toco-os e sou capaz de os
sentir. Já vi muito, já toquei em muito, já senti muito.
O pior de tudo é quando os acontecimentos se identificam com a nossa
própria existência. Quando isso acontece reparo que não consigo fugir
e nem consigo afastá-los. Só sei que me parasitam e me consomem de
uma forma dolorosa. A vida passa a assumir outras cores, ou, melhor,
grita sem cor, os sons transformam-se em ruídos e as imagens do futuro
desvanecem-se em manchas negras e disformes. Tudo se altera. Uma
anosmia existencial convida-me a mergulhar numa desejada sonolência.
Tento fugir, não consigo, sou constantemente perseguido por mim pró-
prio, mas ninguém consegue fugir de si mesmo. Tento fugir e encontro
letras, frias, brilhantes, à espera que lhes toque, que as faça dançar, can-
tar, chorar e sorrir. É o que estou a fazer neste momento.
Deixo que os meus dedos saltitem de letra para letra, pressiono-as, umas
com doçura, outras com raiva, outras com dor e outras com amor. Toco
em tantas que todas acabam por saborear e compreender o meu ardor,
uma espécie de louco fervor que só pretende aliviar a dor. Sinto que me
alivia.
Curioso, ainda há pouco senti desejo de não lhes tocar mais, de não
escrever, de não desenhar mais palavras, frases, ideias, poesia, reflexão
ou qualquer tentativa de criação. Agora que lhes toquei, que senti o seu
sabor, que alinhavei algumas frases e regurgitei algumas emoções, fiquei
melhor.
Sim, um pouco melhor. Uma agradável sonolência começou a invadir a
minha alma.

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Salvador Massano Cardoso

“Maresia”...

Receber uma prenda é um sinal de respeito, de amor, de atenção ou


de agradecimento. Quem o faz, faz por gosto e impregna o objeto com
sentimentos, emoções e recordações.
Olho-o e vejo uma paisagem que faz parte do meu imaginário. Recordo,
ou julgo recordar, a primeira vez que vi aquele espaço. Foi há muitos
anos, era pequeno, muito pequeno, mas fiquei com uma vaga ideia do
local que, depois, ao longo do tempo, se foi transformando em belos
quadros, cheios de vida, de cor, de brilho, de sons e de cheiros. Sempre
que passava naquele local ficava deslumbrado pela sua beleza em que
pontuavam barcos, sobretudo coloridas traineiras. A azáfama dos pesca-
dores, a vozearia de aves boçais, loucas nos seus propósitos, o tremelicar
de lingotes de prata debaixo da água a revelar como se transformam
raios de sol em brilhantes espelhos, aliados a um odor único capaz de
inebriar o mais sensível dos humanos, provocavam-me estranhas emo-
ções a ponto de querer ficar tempos infinitos naquele espaço. Tudo me
seduzia naquele lugar. Pedia para ir até lá e ficava absorto com as formas
sensuais das traineiras. Parecia que tinham anquinhas, prontas para bai-
lar e rodopiar no mar calmo.
Quando a maré vazava, adormeciam de lado como se fossem animais
cansados de tanto lidar. A água começava a subir e elas, meio adorme-
cidas, acabavam por estremecer e sair daquele estranho sono ficando
direitas e cheias de vida. Gostava tanto de as ver a endireitar-se ao som
do barulho das águas e do cheiro do perfume das algas. Um cheiro subtil
que me persegue desde então.
Um dia, como gostava daqueles barcos, deram-me uma pequena trainei-
ra de lata, verde, vermelha e amarela. Brinquei muitas vezes com ela no
tanque da minha casa, nos carreiros feitos pelas carroças dos bois nos
terrenos encharcados em frente da fábrica ou na ribeira que corria aos
pés da cozinha da minha avó. Adorava a minha traineira de lata, verde,
vermelha e amarela, igualzinha às que via na doca, quando ia à praia.
Trocava o incómodo das areias e o espumar de um mar assustador pela
beleza daquele espaço.
Pedia para ir para lá. Depois, mais tarde, já não pedia para ir. Ia sozinho.
Ficava, durante muito tempo, a ver aquele quadro de sons, luz, efeitos,
cheiros e azáfama dos animais, humanos e voadores.

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As minhas paisagens

Recebi a prenda anunciada. Entregaram-me a meio da tarde. Saí tarde,


já de noite. Sabia que o mar não estava longe, não o via nem o ouvia,
mas, subitamente, debaixo de intensa chuva, senti o perfume da maresia
a inundar-me os sentidos. Fiquei na dúvida se o perfume vinha do mar
ou do meu quadro. Voltei a olhá-lo e vi um dos mais belos espaços que
perduram na minha mente e que agora se materializou numa delicada
aguarela.
Olho e não encontro a minha traineira de latão, verde, vermelha e ama-
rela. Não faz mal, saiu, foi passear, bambaleando-se sensualmente, à
procura do seu amor. A minha traineira, verde, vermelha e amarela é
muito bela e agora já sabe que pode voltar.
A minha aguarela está à espera dela...

99
Salvador Massano Cardoso

“Belas peças”...

Aproveito os intervalos do tempo para poder viajar no tempo. Aproveito


os momentos mortos para conhecer o sabor da vida. Aproveito os locais
conhecidos ou desconhecidos para poder passar despercebido. Tudo isto
tem um sentido, ver o mundo sem trabalho, sem preocupação e sem me
sentir ofendido. É assim que eu entendo certos momentos vividos à custa
de uma oportunidade do momento, momento que não lamento.
Acabei mais cedo e deixei-me navegar nas nuvens transparentes de um
dia de sol. Andei sem sentido e encontrei um local que sempre desejei
ver. Entrei e esperei. Vi belas obras de arte, antiguidades únicas capa-
zes de calar a angústia do meu coração. Olhei-as, não lhes toquei por-
que tenho medo, medo de me perder no tempo e na alma de quem as
criou. Gente desconhecida, mas que sabia o verdadeiro significado da
vida. Fui tentado, sim, tentado pelas almas dos seus criadores. Decerto
aperceberam-se de que as tocaria da mesma maneira e que as apreciaria
com deleite como faziam quando tinham olhos de ver e almas de mortal.
Gostava de ficar com algumas. Para quê? Para sentir prazer, às escondi-
das, num recanto qualquer de lazer onde o prazer se mistura com o ter
e o ser. Não as adquiri, com muita pena minha. Ainda olhei vezes sem
fim para os preços que tinham. Podia adquirir uma ou outra, e depois, no
silêncio da minha angústia, ficaria a olhá-las tempos infinitos, viajando
no passado e eliminando a distância do tempo que ainda me separa dos
seus criadores. Um belo quadro com cores de uma estranha época, uma
imagem religiosa capaz de encher a alma de uma devota, o desenho
de um nome emudecido pelos anos e pelo esquecimento, porcelanas
velhas, coloridas e capazes de atrair alegrias, peças únicas, perdidas, à
espera de serem achadas para poderem ser compreendidas numa noite
ou tarde de dor, de nostalgia ou de amor. Sempre escondidas, mas nun-
ca perdidas, à espera da compreensão, do diálogo e do ser no que é a
estranha forma de viver. Não as adquiri. Peças belas, artefactos únicos,
cheios de histórias e de muitas vidas à espera de serem vividas. Deixei-
as tristes, fechadas, ocultas, não lembradas, desesperançadas, à espera
de serem amadas. Quanto não as desejaria ter, para as sentir, ver, falar e
amar no mais estranho e silêncio tempo que é o meu viver. Gravei-as na
minha imaginação. Talvez um dia possam ser objeto de oração. Se não
forem, paciência, fica mais vazio o meu coração.

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As minhas paisagens

“Sete anos perdidos”...

Entrou. Não falou de imediato. O olhar revelava incerteza e atribulações


quanto à dureza da vida. Foi o marido que tomou a dianteira. Explicou
sem rodeios o que estava a acontecer. Tinha a certeza de saber qual o
diagnóstico da situação.
- Há sete anos que cortámos relações com a mãe da minha mulher.
Agora está gravemente doente. Tem um tumor maligno, está cheia de
metástases, e a filha - que a seu lado ouvia sem dizer uma palavra, co-
meçou a relacionar-se intensamente com a mãe. Tão intensamente que
não dorme, não come e só fuma. Assim, direto, sem meias palavras,
sintetizou um quadro familiar, o aparecimento da doença e o viver amar-
gurado da mulher. Olhei-a e pedi-lhe com o meu habitual silêncio que
dissesse qualquer coisa. Mas não disse nada. Fiz duas ou três perguntas
circunstanciais, de rajada, sem lhe dar tempo para responder, até que
me centrei apenas numa, convicto de que já estaria a tomar qualquer
coisa. - O que é que está a tomar? Mostrou-me, uma bordoada química
à maneira, daquelas que nos fazem sentir como mortos-vivos. O marido
interrompeu. - Passa o dia a dormir e sem reação. Confirmava-se a minha
suspeita. Não quis entrar em pormenores, limitei-me apenas a aconse-
lhar o que se deve fazer naqueles casos, casos que conheço bem demais.
Antes não os conhecesse. Tentei criar uma aura de superioridade para
garantir a eficácia das minhas palavras.
Ouvia-me esperançada, sim, esperançada, porque julgava que os fár-
macos seriam uma qualquer solução milagrosa. Não são, nem para lá
caminham. Mesmo assim expliquei-lhe o que fazer, e por que razão
deverá proceder naturalmente perante a morte que se avizinha. Claro
que compreendeu, mas quem não compreende estas coisas quando elas
nos batem à porta?
O pior era o resto, aquilo que não tinha sido explicado, mas que já tinha
passado pela minha cabeça, sentimento de culpa. Pareceu que leu a
minha mente e antecipou-se dizendo que não era uma questão de sen-
timento de culpa, até porque a mãe já tinha confessado a terceiros a sua
responsabilidade.
Não dei motivos para continuar a expressar-se daquela maneira, embo-
ra o marido tivesse traçado algumas características que imediatamente
ignorei. Avancei com mais uns comentários e expliquei-lhe como pro-

101
Salvador Massano Cardoso

ceder, tentando eliminar o passado e fazendo-lhe ver que o que importa


é o presente.
- Viva o tempo que lhe falta, viva, sejam sete meses, sete semanas ou sete
dias, mas viva-os separado dos sete anos em que estiveram ausentes. Bai-
xei os olhos, fiz a medicação que melhor lhe servia, se é que servia para
alguma coisa, mas levou na alma conselhos, opiniões e a forma de en-
cher corações despedaçados pelo tempo e pela incompreensão. O amor
emerge nas mais estranhas ocasiões como é o caso da morte anunciada,
e do sofrimento que lhe serve de muleta.
Nestas alturas, os despertares de emoções únicas fazem-nos ver real-
mente o que somos e o que desperdiçámos ao longo da vida.
Sete anos de vida perdidos, sete semanas de esperança.

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As minhas paisagens

“Domingo à tarde”...

Um dos meus passatempos favoritos é sair de casa sem destino. Saio. A


minha mulher pergunta-me, sabendo antecipadamente a resposta: - Para
onde vamos? Respondo: - Não sei. Começo a andar e deixo o destino
às mãos do próprio. É a melhor maneira de fugir à depressão de um
domingo à tarde. Acabei por entrar numa autoestrada à beira de casa.
Novinha em folha, mais uma a somar a tantas outras. Entrei e andei. -
Vamos a Tomar. Entretanto fiz um desvio em Alvaiázere. Nunca tinha ido
aquele local. Lembrei-me dos chícharos. - É pena ser domingo. Gostava
de os comprar. Fazem bem à saúde. - Lá estás tu, com as tuas manias.
- Qual quê! Os chícharos são uma maravilha gastronómica para quem
é diabético. Temos de começar a comê-los. A par dos feijões, das favas
e do grão-de-bico é muito saudável para nós, para nós e para qualquer
um. Entretanto retomámos a autoestrada. - Sabes? Somos um país muito
rico. Penso não estar errado, li em qualquer lado que nós, portugueses,
somos o segundo povo do mundo com mais quilómetros de autoestradas
por habitante. - Ai sim? E quem é o primeiro? - O Canadá! - O Canadá?
- Sim, mas é um país muito grande e com pouca população. Somos um
povo muito curioso, pobre, em vias de nos transformarmos num país mi-
serável, mas ricos em autoestradas. Claro que não estão pagas, nem sei
quem vai pagá-las. - Às tantas os nossos netos, não? - Os nossos netos?
Qual quê! Os netos dos nossos netos. - Credo! Não me digas. - Digo,
digo. - Os nossos bisnetos é que vão pagar isto tudo? - Não, os nossos
trinetos. - Valha-me Deus! Graças a Ele já não vou ver nada disso. A
conversa continuou ao redor desta "riqueza" louca e de outros temas até
chegar à entrada de Tomar.
- Olha. Parece que conheço esta curva. - Conheces? - Sim conheço.
Conheço esta e mais esta. Há cerca de trinta e sete anos fazia este tra-
jeto quando ia para Tancos, para a tropa. - Lembras-te? - Claro que
me lembro. - Gosto muito de Tomar. Temos de vir aqui passar uns dias.
Chegámos, passeámos, entrámos num velho café que não mudou nada,
rigorosamente nada em quase quarenta anos.
Entrei na igreja, esbafori-me de beleza, de recordações de amor e de
muitas outras coisas que afluem ao espírito sem esforço, mas com prazer
e determinação. Gosto de viajar no meu país, gosto de recordar velhas
histórias e lembranças arquivadas, dispostas a libertar odores inesquecí-

103
Salvador Massano Cardoso

veis. Subi ao castelo, passeei e recordei o que é meu e o que é do mun-


do. Gosto de recordar, adoro imaginar, sinto que vale a pena representar.
Sentir a vida e dar-lhe significado é viajar pelo nosso passado, passado
individual e coletivo, sentir o amor desejado e o esquecido.
Dar sentido à vida, através da beleza, do encanto e da esperança de no-
vas lembranças, seduz-me. Entrego-me às suas mãos. Não me importo
de morrer desde que possa inebriar-me de felicidade ao som dos seus
cantos. É tão estranho e tão simples viver uma tarde de domingo em que
consegui afugentar o meu amigo e triste fantasma. Não sei o que é que
ele andou a fazer durante todo este tempo.
Talvez tenha sentido alguma sensação de felicidade com a viagem que
fiz.
Espero que esteja bem. Eu fiz o meu possível, dentro da natural impos-
sibilidade...

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As minhas paisagens

“Bosque sagrado”...

Meti-me a caminho e fui ter a um velho sítio cheio de silêncio e de paz.


A chuva caía em finas gotas de veludo e a névoa instalava-se com ansie-
dade, como a querer jogar às escondidas. Mas eu via, sempre vi e vejo
quando ando por aqueles caminhos.
Gritos de raiva, de ódio e de dor, e o sangue quente a jorrar a partir do
frio das almas atormentadas fazem sempre sentir-se e ouvir-se quando
por ali passo, haja sol, haja chuva, haja névoa ou haja frescura. Eu con-
sigo ouvir e até ver tudo isto, não me é difícil, porque muitas das almas
de então ficaram agarradas à terra. Libertaram-se da vida e da dor e apa-
ziguaram-se no belo bosque sagrado. Saboreio o ar e descortino muitas
árvores, algumas velhas conhecidas, que cantam e seduzem, enquanto
nos espaços enigmáticos, escondidos em deliciosas veredas, consigo
ouvir os meus pensamentos que ali deixo quando sinto necessidade de
falar sem som e sem ouvintes.
Espaços sagrados, espaços de silêncio, espaços de reflexão, espaços de
vida, espaços de solidariedade, espaços que não me esquecem. Normal-
mente são espaços vazios de humanos, mas nestes dias de tristeza não
se vislumbra nenhum. Quando tal acontece é possível ouvir sem temor a
beleza dos poemas das almas que por ali circulam, livres, alegres, indife-
rentes à chuva, ao frio ou à névoa. É o momento ideal para as ver e saber
o que pensam. Não fogem e não se assustam com a minha presença.
Fico com a sensação de que não se sentem perturbadas, talvez por me
reconhecerem como um irmão.
Deverão pensar, a esta hora e com este tempo não pode ser um humano,
mas sim uma alma livre.
É o momento de pensar e sentir como elas.
É um momento diferente, muito estranho, não sinto dor, nem temor, mas
consigo sentir o odor do amor...

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Salvador Massano Cardoso

“Viagem”...

Aprecio a comodidade de viajar de comboio. Aproveito para ler, dormi-


tar e, sobretudo, para apreciar. Aprecio os olhares, a azáfama dos que
regressam, a angústia dos que partem, o prazer dos que se divertem e o
encanto dos que se cruzam por frações de segundos.
Calados, palradores, sofredores, macambúzios, divertidos, incomodati-
vos, taralhoucos, vê-se de tudo. Aprecio as paisagens, sempre as mes-
mas, mas que variam de disposição consoante o momento. Algumas são
deliciosas, provocadoras, capazes de estimular a imaginação. É o que
acontece com os campanários das igrejas e capelas. Todos diferentes.
Encerram, no silêncio das torres, segredos de anos ou de séculos. Já vi-
ram e ouviram muitas coisas.
Gostava de viajar no seu interior para poder apreciar as histórias que
guardam com tanto zelo. Gostava de imaginar os pensamentos que mui-
tos lhes lançaram ao longo das viagens. Fragmentos de vida, pedaços de
almas perdidas, gotas de dor e finas areias de amor. Viajar de comboio
tem esse condão, poder imaginar os que outros viveram, quase sempre
em vão. Aqui vou, sem sentir os tremeliques de outrora e sem poder go-
zar o saltitar rítmico dos carris.
Agora desliza, outrora não, saltava ao sabor das palpitações do coração.
Passo o tempo à procura dos velhos campanários, espreito-os e imagino
se estão satisfeitos, é fácil de saber, é quando o galo empinado está em
oração.
Ele não se cansa, eu também não, e o comboio desliza como gosta, pois
então!

106
As minhas paisagens

“Escrever”...

Escrever é um ato delicado que deve ser bem pensado. Escrever não é
lançar palavras nuas, frias e escuras no branco do papel. Escrever é um
ato de sedução, deve ir diretamente ao coração, embora por vezes tenha
de passar pela razão.
Escrever é uma forma de amar que não deve ser utilizada para assustar.
Escrever é a melhor forma de encantar quem está condenado a penar.
Escrever é uma ilusão que ajuda quem vive na solidão.
Escrever é o caminho da perfeição para quem quer se embriagar de emo-
ção.
Escrever é tentar esquecer o mal que atormenta um pobre ser. Escrever é
sonhar, escrever permite afastar o futuro incerto, ausente e sempre duro.
Escrever é descobrir novos mundos e gerar pensamentos profundos.
Escrever é a mais bela das artes capaz de nos levar às setes partes.
Escrever não deve ser arma de arremesso para ofender.
Escrever afasta a morte para quem nasceu sem sorte.
Escrever alivia a dor de quem não sabe o que é o amor.
Escrever é viver.
Escrever é saber.
Escrever é morrer em paz...

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Salvador Massano Cardoso

“A maçã da consciência”...

O ritual da morte não se esgota no funeral, continua com as habituais


manifestações religiosas. Numa sociedade equilibrada, e que se pretende
justa, é perfeitamente compreensível que se mantenham vivas, porque
ajudam os que não necessitam delas e conforta os que nelas se reveem.
Estive atento. Vi como procediam. Ouvia com atenção as prédicas, as
leituras e as orações. Comparei-as com o meu tempo de criança. Tantas
diferenças na forma e no conteúdo. Cerimónias distintas. Olhei para o
templo e recordei alguns momentos que ali passei. Emoções, medos,
alegrias e tristezas confundiram-se naquele instante. Esfreguei os olhos
e afastei os pensamentos para outra ocasião. Entretive-me a ver a beleza
dos ornamentos, das imagens conhecidas e dos altares bem cuidados.
Escutei com particular atenção um dos mais sedutores episódios da Bí-
blia, quando a serpente seduziu Eva para comer o fruto da árvore que
estava no meio do paraíso, fruto interdito. Convenceu-a. E ainda bem.
Embora a interpretação feita em termos religiosos tenha sido um desafio
a Deus, um sacrilégio que motivou a sua expulsão do paraíso, mesmo
assim Eva, e depois Adão, fizeram o que tinham que fazer, comer o fruto
da árvore proibida, o fruto da árvore do conhecimento. Se não o fizes-
sem ainda estaríamos hoje no paraíso, um estranho paraíso, em que não
tínhamos conhecimento da nossa existência. Viver no paraíso é viver na
ignorância, é viver no desconhecimento da existência, é não ter cons-
ciência de si próprio, é não saber que há futuro e não saber que se vai
morrer. Viver no paraíso é o que fazem os animais que não têm consci-
ência da sua existência nem do que lhes vai acontecer. O
paraíso não é compatível com a consciência de si mesmo. Mas o ho-
mem, ou melhor, a mulher, em primeiro lugar, comeu o fruto da árvore
do conhecimento. Este momento é o mais belo de toda a existência do
Homem, porque marca, simbolicamente, o momento do nascimento da
consciência, a marca espiritual do homem, aquilo que o torna distinto
das outras espécies.
Ao tomar consciência da sua existência perdeu a "inocência", soube que
havia futuro, presente e passado, soube que iria morrer, soube que era
um ser muito frágil, soube que poderia candidatar-se a ser também um
deus.
Assustou-se, e continua assustado. Mas ainda bem que comeram esse

108
As minhas paisagens

fruto, o fruto do conhecimento, o fruto que lhe permitiu saborear o amor,


escrever poemas, pintar o mundo e os sentimentos, sentir a dor, viver a
esperança, chorar de alegria e amar sem fim, mesmo que saiba que vai
morrer.
Afinal, o que seria do mundo se não tivesse desobedecido a Deus? Seria
um estranho e vazio paraíso sem sentido. Será que Deus saberia que isto
iria acontecer? Uma pergunta que só terá resposta quando o homem se
transformar num deus, mas para isso precisa de comer o outro fruto, o
fruto da árvore da vida, que ainda lá está, espero eu! Entretanto vamos
entretendo com os poemas das fantasias, sejam os religiosos, sejam os
outros, aqueles de que eu mais gosto.
Sempre é uma forma de poesia, pelo menos é a minha poesia...

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Salvador Massano Cardoso

“Almas douradas”...

Andei à procura de um espaço desconhecido. Eu sei que há muitos lo-


cais que esperam por mim. Procuro-os mesmo que não saiba onde estão.
Gosto de tropeçar no imprevisto.
O sol chamava-me e eu fui no seu cantar. Andei, mudei de rumo e fui ter
a um espaço que já conhecia.
Parei, olhei, saboreei e imaginei. Imaginei outras eras, outras pessoas,
outras dores, outras esperanças, outros encantos e imaginei almas dou-
radas a emergir de águas prateadas.
O silêncio sorria, o açude cantava de alegria e o sol desenhava poesia.
Encanto inesperado parido num momento desejado. Oferta de vida mer-
gulhada num golo de amor. Uma imagem retida que não pode ser es-
quecida.
Tempo amado para um ser desesperado. Tudo sem forma, ar fugaz e luz
feliz a lembrar o que sentia quando era petiz.

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As minhas paisagens

“Ventre da mãe”...

Preciso de viver num mundo diferente, onde possa encontrar outro tipo
de gente.
Preciso de fugir do mundo para o monte escondido e perdido no meio
do ventre silencioso da mãe. Corro pelos vales e montanhas à procura de
lugares únicos, belos e sedutores que me ajudem a compreender onde
posso aliviar as minhas dores.
Encontro lugares únicos, belos e sedutores capazes de guardar os meus
estertores. Sinto que algo me atrai, que me fala, que me encanta, que me
acalenta e que me dá uma sensação de esperança.
São locais únicos, cheios de vida, escondidos na morte da despedida.
São locais belos, cheios de amor à espera de serem fecundados com o
alívio da dor. Corro à sua procura.
Não sei onde estão, só sei que os encontro com muita facilidade ao al-
cance do meu coração.
Uma estranha devoção? Não sei. Só sei que sinto tanta emoção que não
me importaria de morrer ali, naqueles locais onde paira o perdão e a
mais bela paixão.

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Salvador Massano Cardoso

“Espirros de alma”...

Passeei de tarde entre pequenos textos, espirros, bocejos e pestanejares


simples que saíram da alma em momentos distintos, como se fossem
gotas de água de um estado febril ou latejos de dor à procura da liber-
dade. Comecei a juntá-los sem ordem e sem preferência, jogando com
o acaso, recordando os momentos e os locais onde nasceram. Leio-os.
Sou obrigado a lê-los.
Os meus dedos comportam-se como se fossem achas de madeira prontas
a transformá-los em cinzas do passado. Junto-os, empilho-os, saboreio-
os e fico sem saber o que fazer. Reconheço-me em cada palavra, frase,
pensamento, amor e desespero. São espelhos de uma alma que se mos-
tra sem medo.
Não tem forma e nem cor, é apenas uma suave nuvem que pretende fugir
do mundo sem saber para onde. Não foge, não consegue ser livre, está
presa ao seu estranho destino, escrava das palavras e de uma vida sem
sentido.

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As minhas paisagens

“Véspera de domingo de ramos”...

Sábado de manhã com sol fresco e juvenil. Ondulam os pensamentos e


as recordações despertadas pelo anunciar do domingo de ramos. Penso
e sonho com brincadeiras e liberdades de outros tempos em que a fres-
cura da idade comungava com a alegria das férias e os gostos próprios
da altura.
Não vejo nada, nem ramos, nem azáfama, nem alegria, nem esperança,
apenas algumas pessoas de idade que se esqueceram do que já viveram.
Filhos do tempo morrem aos poucos com o passar do tempo. Eu não.
Fujo e viajo à procura do que fui, quando gostava e acreditava no que via
e sentia. Neste dia o sol aparecia também fresco e juvenil, porque tinha a
minha idade e gostava do que via e sentia. Íamos os dois numa azáfama
sentida à procura de belos e frescos ramos para o dia seguinte.
O meu primeiro ramo não era grande, mas era bonito, um pequeno arco
cheio de folhas verdes, frescas e brilhantes, ornamentado por belas flo-
res. Mas encontrar as flores não foi fácil, tive de as roubar, logo me avi-
saram do pecado em que caíra.
Deixá-lo, pensei, pelo menos irei entrar com um doce e belo arco na
igreja, não é que eu quisesse fazer inveja aos demais, apenas queria que
Ele me visse. Disseram-me logo, roubaste as flores, estás em pecado.
Deixá-lo, pensei.
No dia seguinte, depois de calcorrear o longo trajeto de terra batida,
acompanhado pelo meu colega de brincadeira, o sol, que nunca se fez
rogado nem preocupado com os roubos que efetuei, entrei na igreja.
Que odor a frescura e a verdura. Cheia de gente, até parecia que o cam-
po se tinha deslocado para ali. Muitos ramos e arcos tapavam-me as
vistas.
Quando chegou a hora de benzer os ramos consegui furar com destreza
e coloquei-me num local onde o meu ramo foi aspergido pela água ben-
ta, algumas gotas trespassaram-no e molharam os meus olhos. Não sei
se eram lágrimas ou se eram as gotas da benzedura, o que eu sei é que
fiquei tão feliz que deixei de estar preocupado com as flores que tinha
roubado no dia anterior.
À saída da igreja os meus amigos começaram a brincar e quase que
destruíam os seus ramos, mas eu, lesto, corri pela estrada fora sozinho
acompanhado do meu amigo sol.

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Salvador Massano Cardoso

À medida que passava pela varanda, canteiro, quintal e jardim de onde


tinha retirado as folhas e flores do dia anterior, lançava-as sem pudor,
com alegria e amor.
Algumas pessoas ficavam admiradas com o meu gesto. Já estou perdoa-
do, pensei.
Assim abençoei cada uma das pessoas a quem as tinha roubado.
Cheguei a casa feliz e leve. - Estou perdoado, gritei.

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As minhas paisagens

"Paixão"...

Surpreende-me a forma com tratam certas pessoas sobretudo nos seus


aspetos mais negativos, hediondos e até desprezíveis. Eu compreendo o
alcance de certas frases e opiniões, obviamente, mas, por vezes, questio-
no-me, e se não tivessem feito o que fizeram? As coisas seriam como são,
teriam tido a evolução que conhecemos? Não sei, presumo que não.
Ouço falar de Pôncio Pilatos e do seu "lavar das mãos" que levou à morte
de Cristo.
Ouço falar da "traição"de Judas e ouço falar do comportamento hedion-
do dos soldados romanos que maltrataram e ofenderam Cristo.
O papa Francisco questionou os "católicos se são traidores como Judas"
ou se "amam Deus como José".
Mas se não tivesse havido Judas, Pôncio Pilatos e grosseiros soldados
romanos teria havido a Paixão de Cristo? Teria havido julgamento, cruci-
ficação e morte de Cristo? Teria nascido o cristinianismo?
Talvez com outra designação, porque representa na essência a beleza e
a superioridade do humanismo.
Mas teria nascido a igreja? Não sei, esta que conhecemos não, talvez
outra, não sei e, também, não interessa.
Há coisas que me fazem confusão. Para invocar a beleza do amor será
preciso invocar a morte e a traição? Eu penso que não. Mas sou eu.

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Salvador Massano Cardoso

"A capela"...

O dia nasceu com um quarto de sol. Alguém o tinha cortado e deixou o


resto para o pessoal. O efeito da gula continuou a fazer-se sentir mesmo
no dia seguinte à Páscoa. Não deu para apreciar. Uma tentativa falhada
de rotina impediu que cumprisse o que estava à espera. Não desperdicei
o tempo, usei-o para corrigir e dar os últimos retoques aos textos que
tenho de apresentar durante a semana.
A meio da tarde apeteceu-me sair para um falso destino. Falso, porque
ao virar da primeira esquina já tenho outro e mais outro a substituir o pri-
meiro, que serve apenas de pretexto enquanto não descubro um melhor.
Cheguei ao local e deixei-me embevecer pela sua história, pelos seus
recantos, pela sua degradação e tristeza, embora aqui e ali houvesse
beleza mais do que suficiente para me apaixonar. É tão fácil apaixonar-
me por velhas paredes, janelas moribundas, torres entesadas e altares
escondidos. Andei à procura de um espaço para justificar a minha saída,
um chá de camomila foi o suficiente.
Antes de o beber, tive de voltar para trás porque vi uma capela a escar-
ranchar-se solenemente sob os raios do sol que tinham desabrolhado do
quarto dessa manhã.
Entrei e não gostei. Maltratada, sem encanto, humidade a mais, santos
deficientes, velas decadentes, paredes dementes, apenas o local, o sol e
o simbolismo do sagrado faziam estremecer a minha mente. Que pena
não ter uma capela. Preciso de uma. Ai se fosses minha, garanto-te que
te trataria com amor, garanto-te que cantarias de alegria, garanto-te que
chorarias de emoção, mas para isso precisava que fosses minha.
Numa capela podemos desenhar os sons da vida. Numa capela podemos
ouvir os primeiros sons do universo. Numa capela podemos encontrar
o significado do amor, da paz, da alegria e do respeito pela santidade.
Numa capela podemos saber o verdadeiro sentido da imortalidade. Uma
capela é uma espécie de útero da existência.
Sempre à espera de acolher o eterno fruto da esperança e do amor.
Pobre capela. Tão mal cuidada e com tanto sol a beijar os seus pés hú-
midos, velhos e tristes.
Abriste-me as portas, talvez por saberes quanto gosto de uma capela.
Numa capela seria capaz de escrever tudo. Tudo o que já viu e ouviu.

116
As minhas paisagens

Eu sei que estás cheia de dores, de pedidos, de lamentos e de tormentos.


Queres parir, queres libertar-te do peso de séculos, de lágrimas, de espe-
ranças, de anseios e de amores perdidos e nunca esquecidos? Se fosses
minha recebia com alegria o fruto do teu ventre e embrulhava-o em
belas mantas tecidas em poemas da vida e as tuas paredes e altar adqui-
ririam cores e vida e eu transformar-te-ia na mais bela capela do mundo.
Ai se fosses minha.
Não te arrependerias, e eu também não.

117
Salvador Massano Cardoso

"Viajar"...

Viajar por Portugal é o melhor que me pode acontecer. Sair de casa sem
destino definido e encontrar locais adormecidos é a melhor oração para
quem tem necessidade de acalmar o coração. Encontro tudo, por vezes
até demais. Encanto atrás de encanto, sedução atrás de sedução e, so-
bretudo, muita fonte de inspiração. É tão fácil. Basta andar e de repente
desviar para locais inesperados. Depois é só esperar, e encontro.
Entrei em ruelas que eram mais apropriadas para carros de bois, e devem
ter sido eles que desenharam aqueles caminhos. No meio de pedregulhos
desnudados apareceram à minha frente duas perdizes. Descaradas, não
se desviaram um milímetro. Caminharam à frente do carro sem medo. Eu
abrandei e fui atrás delas. Belas, encantadoras, frescas e provocantes. A
certa altura, talvez cansadas da minha presença, saíram delicadamente
do carreiro e embrenharam-se nas moitas. Sorri. Continuei a andar e
fiquei deslumbrado com os afloramentos rochosos e o odor de um pas-
sado rico e cheio de histórias. Tudo mergulhado num silêncio humano
delicioso. Até o meu velho amigo, o rio Mondego, corria feliz e puro
como convém a quem não vê e não necessita de seres humanos. Uma
velha ponte, rude, mas com um escudo nacional, impôs-se pela beleza e
nobreza das suas funções a que não era alheio a delicadeza de um deli-
cado cruzeiro. Tudo perdido no meio do mistério. Senti-me em casa. Os
odores eram os mesmos, as imagens já as tinha guardado, o sol aquecia
da mesma maneira e o silêncio devorava-me cheio de prazer. Há locais
que não são estranhos, são locais onde a imaginação já viveu, amou e
morreu. Todo o percurso estava cheio de mistérios, muitos, velhos como
o mundo e novos como os meus sentimentos. São locais sagrados que
teimam em desaparecer. São locais que gostam de falar. Basta estar aten-
to ao vento, à luz, à sombra e, sobretudo, às pedras que guardam no seu
ventre o gérmen da vida e da felicidade. Basta tocar-lhes para sentir o
que guardam, o que viram e ouviram. É fácil ouvir e falar com as pedras,
mais fácil e compreensível do que lidar com os humanos. São sinceras,
são ricas e sabem poesia. Eu sei falar com as pedras. Eu sei como elas
guardam os nossos sentimentos. Guardam-nos porque é a forma que
têm de se alimentar e justificar a sua existência. Os seus ventres vazios,
escavados e sombrios continuam a abrigar as almas de corpos que ali
foram depositados. Sabem tratar com respeito e amor as almas perdidas
que por ali andam e encantam quem sabe falar com elas.

118
As minhas paisagens

"O Lazarilho de Tormes"...

Ao ler o Lazarilho de Tormes deparei-me logo na primeira página, no


prólogo, o autor anónimo a fazer a seguinte observação a propósito do
seu projeto de escrita: "Segundo Plínio não há livro, por mau que seja,
que não tenha alguma coisa boa; principalmente porque os gostos não
são todos unos, mas o que um não come, outro se perde por ele. E assim
vemos coisas tidas em pouco para alguns, que para outros não o são".
Deliciosa observação a anteceder uma obra adorável que li praticamen-
te de um fôlego. De facto, não me canso de ler o que me cai nas mãos a
toda a hora e a todo o momento.
Por vezes quase que sou obrigado a reagir libertando litros de testoste-
rona mais do que suficientes para desarmar todos os grupos de forcados
deste país. Outras não, outras vezes parece que sou levado por suaves,
doces e quentes nuvens de prazer. Mas também tenho outras reações,
que, dentro dos limites enunciados, são as mais variadas, incredulidade,
simpatia, nostalgia, incompreensão, raiva, amor, tudo o que se possa
imaginar. Mas ler é isso mesmo, é andar à procura de sensações novas,
das diversas experiências, do saber, da informação e, até, da conspira-
ção, da estupidez, da manipulação, do preconceito, da soberba e sobre-
tudo da poesia. Ler é viver através das almas dos outros. Concordo com
o anónimo espanhol do século XVI, segundo o qual não há livro ou texto
mau que não tenha alguma coisa boa, porque tem de facto.
Ao ler tão deliciosa obra, é fácil verificar que a fraude, a malícia, a cha-
cota, a vigarice, a mentira e a corrupção são atributos universais. Tanto
faz estar no século dezasseis ou no século vinte um, os comportamentos,
as formas de ser e o objetivo supremo de muitos seres humanos, sobre-
viver à custa dos demais, são muito semelhantes. Usam as artimanhas
mais tenebrosas que se possam imaginar. Nada mudou.
Hoje, ao longo do dia, li um texto em que é posto em causa a etiologia
da Sida provocado pelo VIH. Invocam o pensamento e a afirmação de
um prémio "Nobel".
Está redigido de forma errada, com imperfeições evidentes, desvalori-
zando o papel do vírus na etiologia de tão grave doença que já causou
dezenas de milhões de óbitos.
O objetivo do texto, partilhado por pessoas de responsabilidade, aponta
para os interesses da indústria farmacêutica, cujos fármacos é que são os

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Salvador Massano Cardoso

verdadeiros responsáveis pela doença! Uma obscenidade incrível. Um


atentado à inteligência e ao esforço dos que se dedicam ao estudo, ao
tratamento e à prevenção desta doença.
O que é certo é que o texto está a ser divulgado, e ainda por cima por
pessoas com nível cultural elevado. O que é que tem de positivo este
comportamento? Ficarmos de pé atrás face a certas correntes, conspira-
doras, perigosas, preconceituosas, que se alimentam da fraude, da viga-
rice, da mentira e da corrupção.
O melhor é ler certas notícias e comentários, mesmo que tenham efeito
estimulador na produção de hormonas da agressividade.

120
As minhas paisagens

“Imagem”...

Tenho muitas lembranças da minha infância. São tantas que se atrapa-


lham umas às outras sempre que me querem visitar. Fico confuso com
tanta solicitação, guerra, inveja e primazia das minhas primeiras recor-
dações. Não me assusto e nem as assusto. As lembranças são sagradas,
são filhas do divino, são mágicas, são encantadoras, são divertidas e são
enigmáticas.
Adoro-as, chamo-as frequentemente. Como doces e frágeis animais cor-
rem logo na minha direção. Acolho-as com amor e saudade. Abraçam-
me e lambem a minha alma e as minhas feridas. Passei no corredor e
mirei-a como habitualmente. Está sempre na mesma, bela, sedutora,
encantadora. Velha no tempo, mas sempre nova na emoção. Recordo-a
desde muito pequenino. Lembro-me de a minha mãe, às vezes, dar-lhe
mais atenção do que a mim. Mas era uma atenção diferente, silenciosa,
em que a luz de uma lamparina irradiava um estranho sossegar, liber-
tando ondas de mistério que eu não compreendia. Um ritual que me
tranquilizava e que me animava. Via-as e não as compreendia. Só sabia
que gostava delas, a que se movia, e agora estava calada, e a que nunca
se moveu, mas que agora fingia que falava. Que estranho quadro me
sobe à mente. Um quadro que se renova e se purifica com o tempo, em
que novas imagens, agora mais visíveis e compreensíveis me levaram a
respeitar e a admirar o quadro. Um dia, em que sabia que iria ser mi-
nha, perguntei-lhe a história da santa e que santa era. Explicou-me a sua
origem, uma oferta em menina de alguém que mal conhecia. Como foi
possível receber tamanha virtude e beleza, entregue às mãos de uma
menina pequenina? Nunca soube explicar, nem entender, apenas sabia
que a adorava como se ambas fossem filhas do mesmo ventre. Adoro
esta imagem, pela beleza, pelo seu significado, pela história que encerra
e pelos muitos e dolorosos momentos em que foi capaz de partilhar o
seu silêncio. Adoro a minha imagem. Vive comigo há tantos anos quan-
tos tenho neste momento. Olho para ela e penso qual irá ser o seu futu-
ro. O meu é igual a qualquer mortal, mas o dela não, o dela tem de ser
impregnado com o perfume da vida dos que a possuíram e a trataram ao
longo dos séculos, para que possa, no seu enigmático silêncio, tranqui-
lizar e encher o coração de amor e de beleza.
Eu sei que o futuro está cheio de seres sedentos de amor e de beleza...

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Salvador Massano Cardoso

"Confessar e amar"...

Confesso que fujo por vales e montanhas à procura de algo que sei que
existe e que me pode dar aquilo que julgo merecer, paz, amor e um es-
tranho sossego que só a solidão de certos encontros pode gerar.
Os encontros dão-se a qualquer momento, numa bela escarpa, numa
fraga escondida, na sombra de belos e mudos carvalhos, na imensidão
dos recortes das montanhas e nas conversas com gente humilde, perdida
e ávida em contar vidas.
Paro, falo e estímulo o renascer de histórias sem fim como se fossem
sementes desejosas de procriar na minha mente, prolongando no tempo
velhas e deliciosas lembranças. Contam a quem sabe ouvir para depois
as poder contar. Foi o que fiz no dia do senhor. Vi, ouvi, imaginei, senti,
acalentei, sonhei, desejei e amei.
Sabe bem amar a vida, os sonhos, os sons da natureza e das almas livres,
o falar de pessoas perdidas e esquecidas, o calar e o ouvir de um estra-
nho divino, o cantar de histórias que um dia poderei contar, para não
falar da beleza suave e sensual, que, vestida de um agreste natural, quer
ser despida e possuída nos braços de quem a sabe amar.

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As minhas paisagens

“Chuva”...

Incomoda-me a chuva, faz-me sentir triste. Incomodam-me os meus


pensamentos, fazem-me sentir triste. Incomodam-me os comentários e
atitudes de muitos que se mostram, que são mostrados e que andam por
aí a martirizar os ouvidos, fazem-me sentir triste. Incomoda-me a falta de
carinho, de solidariedade e de amor, faz-me sentir triste. Incomoda-me o
advir sem esperança, faz-me sentir triste.
O mundo é mesmo triste.
Preciso de um espaço onde as lembranças termais possam aliviar-me a
tristeza. Eu sei onde está esse espaço.
O que eu queria agora era correr para ouvir o que lá está perdido num
silêncio aflitivo.
Um espaço desejoso de viver e de conversar comigo, um local amigo
onde consigo viver em paz comigo.

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Salvador Massano Cardoso

“Cruz”...

Andei por sítios desconhecidos e perdidos no tempo. Esbarrei com pe-


dras. Pedras que falavam, cantavam, choravam e tremiam de medo. A
vaidade de algumas, desenhadas com uma beleza ímpar, conseguiram
distrair-me e convidaram-me para debates mudos e estranhos. Os tem-
plos, uns mais e outros menos imponentes, ostentavam marcas de devo-
ção e de cristã invenção. Ao lado, nas ruas estreitas, apareciam velhas
casas a denunciar momentos tristes.
Embora passassem à categoria de olvidos, vi que choravam de dor. Co-
mecei a sentir o desprezo vivido naqueles tempos e a expulsão de pes-
soas de lugares considerados como sendo um paraíso. Nas ombreiras
de velhas portas vi cruzes esculpidas nas pedras. Toquei-lhes e senti que
queimavam, como se de repente o fogo do inferno fugisse através de um
símbolo que para uns era de libertação e para outros de condenação.
Estranho símbolo. Uns ajoelham-se, outros transportam-no às costas,
enquanto outros foram obrigados a morrer e a fugir de quem o queria
impor, não como símbolo do amor mas de um terrível poder.
Naquelas bandas, naquelas comunidades, ainda se consegue respirar
tragédias de outrora. É simples saber como as coisas aconteceram. Basta
parar numa dessas casas e colocar a mão na cruz escavada na pedra. A
dor em brasa atinge a alma e palavras estranhas ecoam atravessando as
longínquas montanhas.
As montanhas são as mesmas, o céu é o mesmo e as cores do final do dia
são as mesmas. Eu vejo, ouço, sinto e sofro com o poder de quem usou
a cruz para matar, humilhar e aprisionar.
Um passado que vive no presente.
Um passado sem perdão. Olho para o horizonte e não escondo a minha
emoção.

124
As minhas paisagens

“Brisa da noite”...

Cansaço é uma palavra interessante, só de pensar nela fico cansado.


Procuro momentos de repouso, no espaldar de um sofá, no olhar de um
horizonte de cores sonolentas, no contemplar de um céu ponteado de
pequenas botões brilhantes, cintilando sem cansaço desde os primeiros
instantes, no olhar vagabundo e nu do pensamento, no tocar de uma
pequena peça de arte, ouvindo os sons de amor de um coração feliz e
esquecido, no matraquear suave do teclado, vendo as palavras a dançar
com sorrisos felizes por obterem a tão desejada liberdade, no desenhar
de frases tímidas, doces e esperançosas numa melhor vida, no pintar se-
dutor de sentimentos, paixões e loucuras de uma vida à procura do seu
fim e no libertar de deuses aprisionados, deuses menores mas loucos de
amor procurando desesperadamente derreter as asas da dor.
O cansaço desvanece-se no ondular da brisa da noite. Desaparece como
por encanto, enquanto ouço o canto de almas livres, frescas e rebeldes.
A brisa retorna, pura. A brisa canta. A brisa salpica cores suaves. A brisa
chora copiosamente alegria pelos montes.
A brisa repousa no meu cansaço do dia e de uma vida.
Adormece e eu acordo.

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Salvador Massano Cardoso

“Duas velhas”...

Fui de metro até perto do hospital. Durante alguns momentos andei a pé.
O sol convidava mas o dia assustava. Não era motivo para isso, assustava
porque não me sentia bem. Nada que tivesse comido ou punhalada que
tivesse sofrido.
Sentia-me cansado e até um pouco farto destas andanças. Os meios
grandes provocam-me tristeza e empurram-me para as bandas da indi-
ferença. Com uma pachorra difícil de descrever fui andando. Vi muita
gente, a maioria amarelecida e desprovida de alegria. Havia qualquer
coisa nos seus olhares. Não sei se era dor, se era falta de amor ou uma
solidão fria a correr em veias esgotadas de vida. Duas velhas vinham na
minha direção. Uma era mais velha do que a outra. A mais nova, obe-
sa, descuidada, deslavada e com um cigarro na mão, dava o seu braço
direito à mais velha, cuidada, com aspeto fino, cabelo penteado e ar
distante. Trazia na mão esquerda uma mala, pequena, castanha. A mais
nova, de ar deslavado e olhar empertigado, depois de ter aspirado uma
nuvem de tabaco enegrecido, atestou-lhe com uma voz rouca de vida de
fumo: - Já te disse mais do que uma vez. Pega lá na mala como deve ser!
O tom. Sim, o tom, imperativo, frio, a contrastar com o calor do cigarro,
chamou-me a atenção. Uma dureza difícil de descrever. Assustei-me.
Não havia chama de amor naquela chamada de atenção. Tentei tatear
alguns restos.
Mas como encontrá-los naquela voz dura, rouca e implacável? Olhei
para a senhora mais velha, penteada e cuidada. Abrandou o passo e
tremeu um pouco. Sem dizer nada colocou a mala no braço direito.
As feições eram semelhantes. Mãe e filha. Pensei. O olhar da mãe dava
sinais de querer começar a perder o sentido e o significado da vida. Cui-
dada e bem penteada, longe da deslavada da filha, que empunhava um
cigarro, não sei se para queimar o passado da vida que levava a seu lado,
causou-me muito pena.
Ao dobrar as pernas, na atrapalhação da mudança de mão da mala para
o braço direito, a filha sacudiu-a com brusquidão, e em silêncio desapa-
receram na esquina, enquanto eu passei o portão.

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As minhas paisagens

“O sol adormeceu”...

O sol adormeceu na paz de um dia igual a outros, em que a vida, a mor-


te, a alegria, a doença, a paz, a conquista, o desejo e o amor andaram
de mãos dadas.
No silêncio da noite ouço o sol a cantarolar e a nascer noutros locais,
onde a vida, a alegria, a morte e a saudade são também iguais.
O sol anda sempre, alto ou baixo, sorridente ou ofegante, tranquilo ou
demente, mas anda sempre à procura da sua gente. Gosta de nascer, de
saborear e dar a provar a frescura e a brisa de uma nova madrugada.
Sente-se poderoso quando se senta no alto do seu trono.
A nostalgia do final da tarde invade-o quando recorda o que viu, ouviu
e sentiu, amores e desejos de amantes, dores e desamores de crentes.
Despe-se com suavidade e mergulha nos braços de gente desesperada,
ansiosa pela luz e a tranquilidade um novo dia.

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Salvador Massano Cardoso

“Coimbra”...

Cidade única. Cidade bela. Cidade da vida. Três conceitos que emergi-
ram ao mesmo tempo logo que vi a imagem. Única, porque não pode
haver nada igual, nasceu de um ventre de amor e foi através do amor que
cresceu para amar e dar lugar, durante o repouso, ao saber. Bela, porque
a vida alimenta-se e reproduz-se ao som da beleza.
Cidade da vida porque ensina, aprende e desperta o sentido da existên-
cia nos mais curtos e explosivos momentos, e nos longos, nostálgicos, e
quase perenes momentos de reflexão.
A primeira vez que a vi era muito pequenino. Vim da terra no trama. Ao
chegar à estação vi o rio. Largo, suave e muito belo com muitas barcas
com as velas desfraldadas. Não fazia sol, o dia estava enevoado, mas,
estranhamente, as águas brilhavam como se fosse um espelho. Vi mulhe-
res vestidas com cores garridas ao longo do rio. Havia muita cor, muito
som, muita alegria e eu julguei que o rio corria no sentido contrário ao
que acontecia.
Quanto tempo, quantos anos foram precisos para inverter o sentido do
rio. Fiquei deslumbrado com aquela paisagem. Dei a mão ao meu pai,
que abriu a janela da carruagem, puxando a larga banda de couro, e,
subitamente, senti a brisa, o cheiro, a vida e a cor da primeira grande
cidade da minha vida.
Ficou gravada na minha memória um quadro único, um quadro que
gostaria de desenhar, o mais belo quadro que até hoje vi de Coimbra,
cidade única, bela, cidade da minha vida.

128
As minhas paisagens

“Natureza”

Tenho por hábito dar umas voltas ao fim de semana sempre que posso.
Atendendo ao tempo não posso ir para muito longe, de qualquer modo
calcorreio a "minha zona" a ponto de começar a esgotar os trajetos des-
conhecidos.
Parece que não tenho mais estradas ou caminhos. Se isto continuar vou
ficar preocupado e ter que migrar para outras bandas, mas para isso pre-
ciso de entrar com o fator tempo. Mesmo assim, e apesar de conhecer
bem a região, continuo a surpreender-me. É uma questão de imagina-
ção. Passo em zonas despidas de gente e fortemente engalanadas dos
mais diversos verdes e castanhos numa simbiose única capaz de cortar
a respiração quando os jogos de luz, sol, sombras e penumbras se entre-
têm a desenhar quadros únicos que só se podem ver naquele instante,
verdadeiros flashes da natureza.
Deixo-me ir no embalo do encanto e depois esbarro em locais belos,
isolados, silenciosos, cheios de ternura e plenos de histórias perdidas
e desconhecidas. Olho, ouço, inspiro, sinto a brisa, delicio-me com os
odores, não interrompo os namoros dos animais e roubo aqui ou acolá
uma pequena imagem, verdadeiro suspiro de uma gigantesca alma que
se ri de mim e que não se importa que a leve e a use qualquer que seja
o seu fim.
Roubar uma simples imagem à natureza é tão simples, é uma oferta que
nos leva à descoberta de um mundo belo, suave, tranquilo e que respira
paz e amor sem fim. Sinto o seu abraço, os seus odores e cores, que fi-
cam para sempre registados dentro de mim, dizendo-me para regressar
as vezes que quiser, porque ali, naqueles rios, montanhas, vales e aldeias
perdidas poderei encontrar aquilo que sempre desejei, compreender a
razão do fim, sem medo, vivendo um poema único e sempre diferente,
só meu, um poema vivo, capaz de por fim aos tormentos e ansiedade
que vivem em mim.

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Salvador Massano Cardoso

“Chamar a capítulo”

Sou forçado, talvez seduzido pela fantasia da existência, a ir até determi-


nados lugares que estão repletos de histórias, de enigmas e de tragédias,
mas onde, também, abunda a arte.
Esperei durante algum tempo no silêncio do claustro do mosteiro, onde
senti a mistura do calor e do frio. Do calor do sol de uma tarde de verão
e do frio de almas que faziam a sesta sob os meus pés.
Não me incomodam as almas, nem as perdidas, nem as achadas, nem as
encantadas. Gosto de as sentir, de as ouvir e de imaginar o que querem
dizer mesmo sem saberem.
Como seria de esperar, o local denotava uma estrutura rica, poderosa,
influente e eminentemente religiosa. Entrei na sala do capítulo. Bancos
corridos ao longo das paredes ornamentadas com belos painéis de azu-
lejos a tentar dar um ar de brilho terreno no local onde se decidia o
futuro, a vida, as regras e julgavam as freiras, provavelmente as mais
rebeldes, aquelas que ainda esboçavam vivacidade, almas condenadas
à morte em vida.
Deliciei-me com belos artefactos, expressão de sentida arte, dourados,
esculturas, pinturas, brocados, todos com significado, todos visualizados
e adorados em noites e dias de êxtase, de dor, de saudade e de punição
de muito amor.
A grandiosidade e a exuberância do local acalma um pouco a alma
alimentando-a com a criação artística e a tentativa de aproximação ao
divino.
Sentado num dos cadeirais, imaginei alguém enclausurado contra a sua
vontade, alguém a quem quiseram martirizar o corpo e a apunhalar o
espírito, dando-lhe em troca a esperança vã de um destino sem interesse,
onde a promessa do céu se acoitava à sombra do inferno do espaço frio
e silencioso da vida.
Ouvi os mesmos acordes, maravilhosos, estrondosos, repletos de vida,
como se fossem verdadeiros anjos a denunciar o espaço que um dia as
acolheria no paraíso.
Vi os mesmos raios de sol a entrar no coro, dourando tudo, dando mais
vida às talhas, às paredes e às esculturas como se fosse a entrada da
mina de ouro da outra vida, mas mesmo assim senti o desejo de alguém
que queria apenas viver a sua, a da terra, sem ouro, sem promessas, sem

130
As minhas paisagens

loas, sem virtudes, sem nada, a não ser o desejo de amar como qualquer
outra. Curioso. Senti.
Depois soube mais sobre a vida e as tragédias daquela terra. Houve al-
guém, Margarida, a "Flor do Tâmega", que foi obrigada a professar ali, no
cemitério dourado das almas condenadas em vida.
Libertaram-na, nos alvores da nova ordem social, aquando da extinção
das ordens religiosas, ao fim de muito tempo de prisão religiosa, tempo
demais porque nunca mais encontrou o seu amor.
Tão pouco queria da vida e tanto lhe queriam dar em troca com a outra
vida.

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Salvador Massano Cardoso

“Solidariedade”...

Compreendo a solidariedade e sei o que ela significa para quem sofre,


para quem está em estado de carência, para quem precise de um pensa-
mento, de uma lágrima e de um gesto de ternura.
Compreendo e respeito quem a manifesta e quem é alvo desta concen-
tração de amor humano. Um comportamento que eleva os humanos aos
píncaros do amor. Também sei ser solidário, mal de mim se não soubes-
se, mas não preciso de a escrever, de a gritar aos quatro ventos ou de
a demonstrar em função da importância de quem sofre como qualquer
um, independentemente do status e da importância que representa para
alguns.
Não sei o que dizer, o melhor é não dizer muito mais, apenas que fico
incomodado, mas também fico com os não conhecidos, com os que
acabaram de nascer e são mortos às mãos de quem os devia vigiar e
cuidar.
Não costumo manifestar solidariedade em função da importância de
cada um, não é justo, mas hoje manifesto. Hoje quero ser injusto. Ma-
nifesto a minha solidariedade a quem desconheço o nome, mas sei que
sofre. Também merece. Servirá para alguma coisa?
Não sei, mas para mim serve, e muito.

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As minhas paisagens

“Sussurrar”...

Sussurrar é o instrumento mais banal para dizer o que não se quer. Quem
sussurra exige mais atenção, e quem ouve desliga-se do que sente para
poder ouvir melhor.
O sussurro desliza de forma pegajosa e doentia a pedir mais um hospe-
deiro para a nova aleivosia. Tudo é feito com um semblante de alegria.
Os sussurros não se ouvem através dos muros mas deixam adivinhar o
prazer de traiçoeiros murros.
Sussurrem à vontade, eu não entendo, sou surdo e falo alto para poder
testemunhar o direito à dignidade. Sussurrar é um verbo que só deveria
ser utilizado para amar.
O que vejo não é amor, é apenas o semear do terror, da ofensa e da dor.

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Salvador Massano Cardoso

“A quinta”...

Certas pessoas fazem parte da nossa identidade, não pelo facto de as


termos conhecido mas devido a histórias que entraram através do ou-
vido. Ouvi muitas em criança e continuo a ouvir agora. Preciso delas,
alimento-me delas, porque ajudam-me a suportar as atribulações e in-
cómodos da vida. Muitas dessas histórias são um misto de realidade e
de fantasia. Adoro a fantasia que nasce de um acontecimento, de um
episódio ou ação de um ser humano. Quando tal acontece apetece-me
dizer que estamos perante uma espécie de "santidade" laica, por vezes
muito superior àquelas que são noticiadas com pompa e circunstância e
que arregimentam fiéis e não fiéis.
Em pequeno ouvia uma tia e a minha avó a falarem do padre Américo,
que consideravam um santo. Tinham, numa mesinha, uma pequena es-
tatueta de meio corpo, de um padre, cabeça um pouco de lado, sorriso
simpático e com um largo chapéu, para não falar de algumas pagelas
com a mesma figura.
De dia e de noite uma pequenina lamparina iluminava-o com uma luz
suave que lhe realçava o sorriso. Nunca lhe faltou azeite. À noite a mi-
nha avó benzia-se e mexia os lábios com tal velocidade que nunca en-
tendi o que estava a dizer. Rezava. Gostava de a ver a fazer aqueles sinais
da cruz. Mais tarde vim a saber quem foi e o que fez. Um filantropo, um
homem de causas, que viveu para os outros com amor e intensidade
difícil de encontrar. O que eu gostava mesmo era de ouvir as suas histó-
rias. A minha tia contava-as com alegria, transformando-as com as mais
brilhantes cores da fantasia.
Recordei estes pequenos episódios da minha infância por causa do cui-
dado e atenção de um colega e amigo que começa a conhecer-me bem.
- Caro professor, vou mostrar-lhe mais duas coisas. Isto de depois de me
ter levado à Santa Quitéria, onde fiquei agradado com a paisagem e a
igreja. Não lhe disse nada, deixei-o guinar para uma pequena estrada
secundária. Parou numa ponte e mostrou-me um belo moinho no meio
da ribeira. Arrancou sem dizer mais nada. Ao fim de algum tempo disse:
- Está a ver esta quinta? É muito extensa, bem cuidada e alberga pessoas
idosas que vivem em pequenas e cuidadas casas, como se fosse uma al-
deia comunitária. Sabe como tudo começou? - Não! Conte se faz favor.
- Foi o padre Américo que, um dia, ao andar por aqui, viu a quinta. Na

134
As minhas paisagens

altura estava abandonada. Informou-se quem era o dono. Disseram-lhe


que era uma pessoa muito rica que vivia em Lisboa, que há muitos anos
não aparecia no lugar. Com base nesta informação escreveu uma carta
ao proprietário, dizendo qualquer coisa parecida como isto, "Exmo. Se-
nhor. Passei por uma quinta que me disseram que é de V.Exa. Pela forma
como se encontra, abandonada, concluo que a si não lhe faz falta, mas
a mim dava-me muito jeito para alojar os meus velhinhos.."
Na volta do correio recebeu a resposta. O dono informou-o dizendo
que se lhe dava jeito então podia ficar com ela e que iria regressar para
legalizar a situação. E assim foi. Que é que acha professor? - O que eu é
que acho? Sei lá! Há pessoas de bem neste mundo que, com uma simpli-
cidade extraordinária, conseguem resolver os problemas de muita gente.
Sorriu e levou-me à entrada da quinta. Entrámos, estivemos um bocado
de tempo a olhar para aquela bela comunidade e ainda tive oportuni-
dade de ver uma extraordinária capela como se fosse um gigante espi-
gueiro.
Nunca tinha visto nada semelhante.
Ganhei a tarde ou o dia, não importa, porque ainda coleccionei mais
uma duas interessantes histórias sobre o padre Américo.

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Salvador Massano Cardoso

“Viajar até oeste”...

Viajei até oeste convencido de que ia no bom sentido. Deparei-me com


a frescura matinal vendo o que não estava à espera de ver, e sempre
empurrado pelos raios solares que me propiciaram um belo espetáculo.
O céu é uma espécie de impressão digital, não há dois dias nem dois
momentos iguais, cria-se e recria-se a si próprio vezes sem fim. Durante
este curto período consigo ouvir comentários presos de preconceitos e
soltos de vontades indomáveis.
Repito-os mentalmente, ouvindo muitas vezes as vozes de quem os pro-
feriu. Quando não conheço o timbre e a sonoridade dos autores, fico um
pouco mais indeciso sobre o que pensar e o que dizer. A voz esconde
muita coisa, mas mostra aquilo que quero ver e sentir. Os sentimentos
e a forma de ser esvaem-se facilmente através da palavra, mais do que
aquilo que escrevem ou conseguem escrever.
Os sons escondem tonalidades únicas como as que vejo no céu, nas
manhãs em que ando de um lado para outro, por vezes à procura de
algum sentido para a vida, mesmo que às vezes acabe perdido. É como
na escrita, perco-me facilmente quando escrevo, mas enquanto falo não,
ouço, e quando ouço sinto as cores, o calor, o frio, o arrepio e até me
arrependo do que digo. Não se podem apagar as palavras, apesar de o
vento as levar.
O vento não consegue apagar os sentimentos que causam em que as
ouve, os outros ou o próprio. Se escrever e não gostar apago. Apago as
palavras, o meu sentir e o meu esperançar. Se falo não, ofereço palavras
sentidas, coloridas, feias, tristes, alegres e até as mais atrevidas. As pa-
lavras que digo desaparecem, voam, entristecem e apagam-se, menos o
sentir que provocam.
É a vantagem da palavra falada. Não se vê as letras, mas sente-se o amor,
a tristeza, o encanto e a raiva de uma vida que não sabe falar.

136
As minhas paisagens

“Esboço de um ensaio sobre a mudez”...

A palavra é o maior dom do ser humano. Através dela comunicamos, ex-


primimos as nossas emoções e sentimentos, e somos capazes do melhor
e do pior, solidarizando-nos com os sofredores e por vezes matando,
ofendendo, humilhando e descriminando.
Todos temos o direito a emitir uma opinião, mesmo nos casos em que
não estejamos presentes ou sermos parte do acontecimento em causa.
Imaginem se falássemos apenas dos casos que presenciássemos ou fos-
semos protagonistas.
Deixaríamos de falar, de opinar e de exteriorizar as nossas emoções.
Seriamos uma sociedade de mudos. Mudos sofredores porque continua-
ríamos a ouvir e a ler relatos e mais relatos que ocorrem em nosso redor
e nas zonas mais recônditas do mundo. Opinar é um dever. Dever de
consciência e de solidariedade por aqueles que se sentem injustiçados.
Opinar não é julgar. Opinar é também acreditar naqueles em que con-
fiamos e que são credores da nossa amizade e consideração. Opinar não
é ofender. Opinar não é crime. Opinar é uma expressão profundamente
humana, talvez a mais humana de todas. E mesmo que estejamos erra-
dos no nosso parecer tal não significa que somos injustos ou despropo-
sitados, apenas poderá ser entendido com uma expressão de ternura e/
ou repulsa pelos acontecimentos, mesmo que ouçamos apenas uma das
partes.
Quando há crime, então, o caso passa para outro plano. Aí sim, o direito
ao contraditório é indispensável para que o julgador se possa pronunciar
de forma independente e reparar o dano e castigando quem infringiu as
regras legais. Agora, no dia-a-dia, no contacto com amigos e conheci-
dos, somos confrontados com relatos diversos, alguns dos quais tradu-
zem humilhação, ofensa e descriminação.
A forma como ouvimos aliada à condição de amizade e de respeito que
nos merecem, permite entender o sofrimento e a dor de quem relata.
Uma dor que nos atinge também. Podemos opinar sobre estes aconte-
cimentos? Podemos e devemos. Mas há quem não entenda assim? Há.
Incomoda? Muito provavelmente.
E o que fazem quando o incómodo lhes bate à porta? Tentam calar os
produtores de opinião.
Este fenómeno, tentar calar os que incomodam, começa a ser frequente.

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Salvador Massano Cardoso

Não é que as ameaças com a espada da justiça leve a algum lado, por-
que a balança da mesma não está viciada e acaba por repor a legalidade
e o direito.
O problema está na própria ameaça, que passa a tornar-se num vírus
que se propaga de forma quase epidémica na nossa sociedade, o “vírus
da mudez”. Se não nos precavermos e imunizar-nos poderemos um dia
destes acordar sem poder falar.
E se não falarmos não podemos amar. Para que serve o ser humano sem
amor? Para nada.

138
As minhas paisagens

"Falsa compaixão"...

Não me surpreendem certos comentários e frases oriundos de persona-


lidades que ocupam os lugares cimeiros na hierarquia social, política e
religiosa.
Não me surpreendem, mas incomodam-me, e não é pouco. Sinto uma
certa arrogância capaz de humilhar e diminuir o valor de alguém que
não comungue dos mesmos princípios, dogmas e visão de estar no mun-
do.
Não vejo razão para os fazer, a não ser para reforçar a identidade da sua
tribo, cimentando a coesão dos seus elementos e dando-lhes algum sen-
tido para a sua existência. Se dizem com este objetivo, então, não tenho
nada a acrescentar, apenas devo respeitar.
Quando leio que o aborto, a eutanásia e a "produção" de filhos são teste-
munhos de uma "falsa compaixão", ou mesmo "perversidade", sinto que
não estão a respeitar os direitos e a forma de pensar de muitos outros,
cuja dignidade e cristianismo são indiscutíveis. Quanto à dignidade, im-
porta referir o amplo espetro que comporta, e que merece, naturalmente,
ser respeitada.
Não há uma "dignidade oficial" ou superior. A dignidade resulta da par-
tilha entre valores humanos e sociais e a forma de estar neste estranho
mundo, sempre com a ideia de não prejudicar ninguém e até defender
os seus semelhantes mesmo que não pertençam à mesma "tribo". Quan-
to ao cristianismo não é mais do que a adoção de códigos de conduta
compatíveis com o amor, a tolerância e o respeito que os seres huma-
nos merecem. É sinal de humanidade, melhor, de Humanidade com "h"
grande. Esse código é velho, quase que poderia dizer tão velho como o
homem, e antes de Cristo ter dado o nome a esta filosofia, já o cristianis-
mo existia e se manifestava com beleza e profundidade notáveis através
das inúmeras realizações humanas e condutas. Logo, ser-se "cristão" não
é uma descoberta recente, é tão velho como a própria Humanidade.
Não pode, nem deve ser utilizado como arma de arremesso ou crítica a
quem não se comporta ou pensa com o "oficial".
Aceito as opiniões de pessoas que estão contra o aborto, a eutanásia e
a "produção" de filhos. Respeito-as. Não tenho nada a dizer. Consigo
compreendê-las. Encaixam na forma de se verem, de verem este mundo,
um mundo em que acreditam, mas que não se vê. Nada a dizer.

139
Salvador Massano Cardoso

Têm esse direito e merecem todo o respeito.


Mas os "outros" também merecem alguma atenção, pelo menos não de-
vem ser rotulados de "perversos" ou de "falsa compaixão", até porque
muitos já demonstraram e provam que são verdadeiros "Humanos" ca-
pazes de ajudar os que precisam.
Escrevo este texto sabendo que não vai longe e nem ter qualquer reper-
cussão.
Faço-o apenas com um único objetivo, lê-lo de forma a compreender
melhor o que penso sobre certos temas.
Acabo de o ler.
Estou mais tranquilo, sinto que não sou "perverso nem cultor de "falsa
compaixão".
Ainda bem.

140
As minhas paisagens

“Ilusão”...

Não sei se gosto de viver.


Ainda não percebi bem o que é que andamos a fazer. Não compreendo
muitas coisas e muitas vezes não sou compreendido. Está certo, estamos
bem uns para os outros. Não sei se gosto de viver, mas vivo, também
não sei para quê. Dizem muitas coisas a propósito de viver. Dizem que é
uma vontade suprema que dita as leis a que se deve obedecer. Obedecer
a quê se não as entendo, nem as regras, nem as leis sagradas e também
aquilo que me circunda.
Para ultrapassar isto tudo tenho que fingir. Fingir é uma forma de viver no
mundo da fantasia, um mundo criado à minha imagem e semelhança,
muito mais útil do que aquele em que vivo, o dito mundo real. Este mun-
do tem coisas boas, únicas, irrepetíveis e cheias de poesia, que desapa-
recem num fração de segundo sugadas e assassinadas pelas atitudes,
comportamentos e formas de estar de outros que me são apresentados
como sendo meus iguais. Claro que são.
Alguns podem causar-me repulsa, mas é também natural que eu lhes
cause a mesma reação. Está certo, estamos bem uns para os outros. O
mundo é um atoleiro onde cada um vive, não como pode, não como
deseja, mas apenas com aquilo que os outros deixam. E deixam pouco,
pouca solidariedade, pouco amor e pouca atenção. Mas também dei-
xam muito, muita miséria, muita raiva, muita incompreensão e muito
mais coisas.
Resta a sensação de que viver feliz é tentar viver na ilusão perdida de um
mundo em construção.

141
Salvador Massano Cardoso

“Almas”...

Vadiei pela noite numa terra que dorme de dia. A tristeza esconde-se no
vazio das ruas e no sorriso das pessoas.
À noite a tristeza liberta-se e ondeia sem som, procurando almas que
aqui nasceram. Almas livres, a recordar um passado rico, intenso, cheio
de sons, de gritos, de amor e de vida ativa. Almas que não penam, e
ainda bem.
Penar é para os que ainda vivem, passeiam e amam este local. Incomo-
da-me o silêncio e surpreende-me a beleza de outrora. O tempo é uma
encruzilhada da vida passada e de um presente que morre e que nunca
irá ser passado. As almas são da terra que as viu pela primeira vez à luz
do sol e as beijou sob a lua das noites quentes ou frias quando as liber-
tou.
Hoje, as almas nascem longe e morrem perto. Não interessa onde nas-
cem, onde morrem ou onde vivem. Hoje, são os seres humanos que
andam a penar sem saber porquê. As almas ficam cegas e não sabem a
terra a que pertencem. Não sabendo, fogem.
Não se deixam ouvir ou sentir. Uma terra sem almas é uma terra conde-
nada a morrer. Andei pela noite e ainda encontrei algumas. Não assus-
tam, encantam, não choram, cantam, não gritam, sussurram, não têm
medo, confiam e brincam como crianças que um dia foram e que nunca
mais esquecem.
É bom pensar nelas até sermos mais uma para poder falar com elas.

142
As minhas paisagens

“Paz da vida”...

É bom passar um fim de semana sem sobressaltos, sem ter de saborear


o amargo do fel da vida, sem ser importunado pela maldade de almas
atormentadas e sem ter de ouvir o desencanto de gente sofrida. É bom
passar pelo tempo sem dar conta que existo.
É bom saborear recantos escondidos onde outrora fervilhou a vida. É
bom pintar as tardes e as noites com pincéis doces mergulhados em tin-
tas de esperanças escondidas.
É bom ouvir alguns sons, verdadeira música para quem os sabe interpre-
tar, sedutoras melodias cantadas por sereias desconhecidas.
É bom sentir as cores silenciosas de um tempo cheio de sono à espera de
adormecer embalado na alegria do futuro renascer. Adoro o perfume das
cores outonais, encantos especiais, capazes de transformar as tristezas
da vida em sons divinais. Adoro sentir a alma a ser invadida através dos
sentidos refrescando a alma com a paz de um mundo desconhecido.
Adoro sentir um mundo esquecido, o mundo da alegria, onde a paz
reina com sabedoria.
Adoro os cheiros, as cores, os sons, os sabores, os toques suaves e quen-
tes do amor de um outono livre e pronto para morrer.
Adoro saborear a paz da vida no presente.
Anseio por a saborear no silêncio do futuro onde o esquecimento reinará
na solidão da minha vida.

143
Salvador Massano Cardoso

“Álcool e liberdade”...

Falei. Às tantas falei de mais, mas que é que poderia fazer? Convidaram-
me com muita antecedência, desafiaram-me, deram-me campo para ba-
tatas, entusiasmei-me, pus-me a escrevinhar e a dissertar, tanto pensei,
tanto fiz que acabei por fazer aquilo que sempre desejei. Depois ali-
nhavei, alterei, substituí, reconsiderei, eu sei lá o que fiz. Escrever sobre
assuntos que nos dão prazer e incomodam ao mesmo tempo dá nisto,
texto, mais texto, alterações, histórias, sugestões e, por fim, tem que sair
algo novo, provocador e suscetível de mexer com o que está definido,
tentando recriar e ajudar a solucionar o que não tem solução. Parado-
xo dos paradoxos, falar sobre coisas importantes, recriá-las e enunciar
aspetos desconhecidos ou pouco habituais tentando dar a ideia de que
é possível modificar o mundo. É o mudas! Mas vale a pena tentar, nem
que seja para acalmar a consciência e manter a chama viva no combate
ao infortúnio e à doença.
Tenho o hábito, velho e doloroso, de fazer as coisas com profundidade e
alguma novidade. Enfim, uma forma de me tranquilizar e de obter algu-
ma satisfação. Foi o que aconteceu hoje. A comemoração decorreu bem,
com dignidade e alguma informalidade.
Comemorar cinquenta anos de trabalho e dedicação a uma doença tão
grave como o alcoolismo não é um acontecimento vulgar, sobretudo
quando o empenho, dedicação, afeto, amor e sucesso foram a pedra
de toque de profissionais de elevado gabarito. Acompanhei, e acompa-
nho, desde há decénios tão importante luta. Não acompanho desde o
princípio, porque quando tudo começou tinha apenas treze anos, mas
aos vinte e três já sabia, melhor, aos vinte e um, ainda era estudante
quando comecei a conhecer o serviço e a sua importância. Logo, tenho
um conhecimento pessoal sobre o evoluir de tão importante problema
ao longo do tempo; tratar alcoólicos, prevenir, informar e educar em
matéria de alcoologia, constituem áreas nobres e profícuas em termos
de saúde pública.
Até acabei por ser responsável pelo primeiro trabalho de investigação.
Coisas do destino. Hoje, participei mais uma vez conferenciando. Gos-
tei? Sim, gostei. A minha conferência deu trabalho? Claro que deu, mas
não me queixo, nem posso, pelo contrário, até tenho de agradecer, por-
que se não fosse convidado não poderia meditar, mais uma vez, sobre

144
As minhas paisagens

tão grave assunto que é o alcoolismo. Mas não devo falar de mim, nem
do que faço. O que eu quero mesmo é falar a propósito de dois episó-
dios. Um deles tem a ver com o discurso, ou melhor, poema cantado
na primeira pessoa de um alcoólico recuperado. Sim, chamo poema.
Adorei ouvir o Carlos de Brito.
Cito o seu nome, porque publicamente mostrou o que é, um exemplo
do valor a que um homem pode chegar, depois de ter adormecido a sua
dignidade à sombra fria do álcool. Passaram trinta e quatro anos depois
de ter sido reabilitado. O que este homem fez ao longo destes anos é
matéria mais do que suficiente para ser equiparado a um herói, salvan-
do e reabilitando milhares de seres humanos doentes. O seu poema é
único. Foi conciso. Foi profundo. Foi emotivo. Em poucos minutos fez
mais do que eu. Transmitiu valores únicos, de uma humanidade difícil
de alcançar. Um herói? Sim! Existe mais heroicidade e civilidade no seu
comportamento do que muitos que andam por aí ostentado medalhas,
comendas ou honrarias.
Esteve sentado todo o tempo a meu lado. Nunca o tinha visto. Não o
conhecia e desconhecia o que fez. Só pelo facto de conhecer a sua his-
tória e as histórias que ajudou a construir fiquei muito mais rico do que
as inúmeras horas e noites de escrita e de reflexão. Tinha a obrigação de
dizer isto. Não ficaria bem comigo se não publicitasse este testemunho.
Mas não fico por aqui, porque o violonista russo, virtuoso, encantador, e
agora liberto dos efeitos perniciosos da doença, inundou a minha alma,
e de muitas outras que pairavam naquele espaço, de uma alegria e sen-
sibilidade difícil de esquecer.
A música é a verdadeira língua das almas livres, o que prova que a sua
também se libertou das cruéis grilhetas do álcool. Sentiu-se tão bem
essa liberdade. Quanto aos outros, os profissionais que se dedicam a
esta causa, não vale a pena falar, pela simples razão de que fazem o que
gostam, com amor e muito afeto.
Para eles é suficiente o silêncio, e para mim também.

145
Salvador Massano Cardoso

“Passear de mão dada”...

Andou comigo todo o dia. De vez em quando ia ver se estava tudo bem
com ela. Levei-a na esperança de que a qualquer momento acordasse
e se pusesse a cantarolar, a dançar, a registar, a rezar e a amar. Ela sabe
fazer isto tudo, muito melhor do que eu. Não saiu do bolso onde a ti-
nha colocado. De tempos a tempos perguntava-lhe, em silêncio, se não
estaria interessada em correr pelas folhas suaves para libertar a energia
que ia acumulando ao longo do dia aliada à fantasia despertada por mais
um novo dia. Não respondia. Assustado ia logo tocar-lhe com medo de
a ter perdido. Mas não. Adormeceu, passeou, sonhou, e agora, quando
ao peso dos meus olhos se associam pensamentos sem norte, sinto uma
espécie de morte, a morte do sono.
Continua a correr, a saltitar, a registar, a inventar e, sobretudo, a amar.
Agradeço-lhe o empenho, coragem e devaneio. Amanhã, ao acordar,
faço-lhe duas festinhas como se fosse um recém-nascido, enchendo de
calor e de amor o seu pobre destino como se fosse um ser humano que
desconhece o futuro da dor.
A letra engalfinhou-se, esmoreceu, ao mesmo tempo que os meus olhos
iam descobrindo o segredo da morte. Qual é? Não posso dizer, porque a
sensação e a imagem da morte andam ao Deus dará, tristes e perdidas.
Não consigo escrever mais. Eu bem queria.
Agora, vou tentar saber onde paira o segredo. Só sei que nasce durante
o sonhar.
Esqueço sempre ao acordar...

146
As minhas paisagens

“Santa Eufémia”...

Há muitos anos, nas minhas deambulações erráticas, encontrei num ar-


mazém de velharias um quadro. Reconheci de imediato a beleza fora
do comum daquele olhar puro em que os olhos azuis faziam inveja ao
céu. Por uma questão de curiosidade perguntei o preço. Em Portugal,
tudo o que é antigo tem que valer “milhões”! Pensar que nas velharias se
pode encontrar coisas baratas é um mero exercício de retórica, embora
tenha que confessar que já adquiri muitas coisas de qualidade, não digo
por tuta-e-meia, mas por quantias acessíveis. Para isso tem de entrar em
jogo o fator sorte e algum desconhecimento por parte do vendedor. Um
exercício que exige tempo e disposição para vasculhar o que anda per-
dido à espera de ser achado. Não foi o caso desta imagem. Agradeci a
informação.
Quando regressava, ia à sala do costume para ver se já tinha sido adqui-
rido ou não. Aquele olhar, pensativo e cheio de paz, continuava sempre
no mesmo lugar. A beleza da mártir começou a tornar-se insuportável,
quase que sentia algo a cravar-se nas minhas costas como que a pedir
para lhe fazer companhia. Ideias poéticas criadas em momentos de ne-
cessidade. Perdi o conto às vezes que passei naquele local, até começar
a sentir vontade de a ver sem outro motivo que não fosse a beleza dos
seus olhos.
Acabei por decifrar que se tratava de Santa Eufémia. Santa da predileção
da minha mãe, o outro era o São Brás, nasceu no seu dia.
Não sei qual foi a promessa que a minha mãe fez. Por vezes, detetava no
ar os seus silêncios, misteriosos, únicos, mas ricos em vontades, dese-
jos, e sempre misturados com algo que nunca consegui decifrar. Nunca
me preocupei em “ler a sua mente”, um jeito que adquiri desde muito
novo. Nunca descortinei a razão deste comportamento. Como sabia que
dela só poderia jorrar o bem e ondas de amor nunca me preocupei em
interrogá-la.
Um dia ouvi o rabo de uma conversa que estava a ter com a vizinha.
– Enquanto puder irei sempre à Santa Eufémia no seu dia. Não percebi
bem quais as frases que se seguiram. Fiquei com a sensação de que seria
por minha causa. Incomodou-me o facto de ter que ir em peregrinação,
mas depressa deixei-me disso. Afinal, o local onde iria não era assim tão
longe, quatro quilómetros no máximo. Que grande sacrifício! Pensei.

147
Salvador Massano Cardoso

Claro que a lógica infantil mede-se por parâmetros muito próprios. Mes-
mo assim, recordo perfeitamente ter pensado, “então, quando não for à
Santa Eufémia é porque estará muito mal”. Todos os anos ficava muito
satisfeito quando sabia que tinha ido, até que um dia deixou de ir. Estre-
meci e soube o que iria acontecer.
O olhar de Santa Eufémia, doce e cheio de paz, difícil de entender, obri-
gou-me a que fosse às velharias mais uma vez. Fui, quase que diria, em
modo automático. Entrei, desloquei-me até à sala, retirei o quadro da pa-
rede, saquei as notas embrulhadas do bolso (sabia perfeitamente o preço
da obra) e coloquei-as na mão do vendedor, julgo ter tido a perceção
de que começou a salivar. Despedi-me com um delicado boa tarde e fui
para casa muito mais tranquilo.
Está há muitos anos num quarto. Foi testemunha de doenças e da morte.
Todos os dias sinto o seu olhar, belo, suave e discreto, sem nunca se
incomodar. Vejo-a todos os dias através da porta aberta de um quarto
vazio.
A minha mãe devia ter muita fé. E não parecia. Embrulhava-a nos seus
misteriosos silêncios. Há silêncios muito poéticos e sensíveis à vida, à
morte, à doença, à felicidade, à esperança e a coisas que não sou capaz
de entender. Também não preciso. Basta-me olhar para o quadro de San-
ta Eufémia para ficar feliz.
(Apesar de o dia de Santa Eufémia ser no próximo dia 16, hoje, segundo
domingo de setembro, comemora-se o seu dia para as minhas bandas.
Fui lá mais uma vez. Uma pequena homenagem à minha mãe.)

148
As minhas paisagens

“Vazio de amor”...

O dia está quase a terminar. Um dia simples. Um dia de verdadeiro ou-


tono. O sol não entrou hoje pela janela. Quando tal acontece é sinal de
fim do verão. Não me importo. Prefiro assim porque não tenho de fechar
a janela.
Vejo o mundo dominado por um belo azul a querer arrefecer após mais
um ano de vida. O dia está mais pequeno. Adivinho o encanto dos fins
de tarde sombrios com folhas disfarçadas a tombarem enrugadas sem
sentido.
Folhas vermelhas, folhas douradas, tristes, mas muito amadas por quem
gosta do frio vestido de azul celeste e orlado de ouro dos pobres.
Gosto do outono, sempre gostei. Antecâmara da morte, fonte de vida,
desejo louco que preenche qualquer vazio. Vazio sem dor. Vazio sem
temor.
Vazio de amor...

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Salvador Massano Cardoso

“Cristo”...

Não tenho grandes pretensões. Preciso apenas de mergulhar de cabeça


no rio das emoções. Para quê? Para descobrir nas profundezas do velho
rio os corações de almas enganadas pelas ilusões da vida. Lembro-me
delas, das almas, das ilusões, das emoções e dos corações que palpitam
sob as águas do tempo sem saberem para onde ir.
Conheço-as tão bem. Cantam, dançam e choram no seu mundo. O mun-
do do amor. O mundo de um tempo esquecido e perdido num pego
triste e muito profundo. Já não o vejo há muito tempo. Sinto-o como se
fosse o túmulo da minha alma. Meia dúzia de metros acima e tudo se
transforma nas lembranças da minha fantasia.
Adoro viajar no espaço sem tempo. Corro a tempo de ver o velho Cristo
a espreitar-me na capela do Senhor da Ponte. Nem paro. Apenas aceno
com a mão direita e digo-lhe que me vou portar bem.
Claro que ele sabe que é mentira. Mas para um Cristo, preso na penum-
bra de uma capela, o que lhe vale é o atrevimento de uma criança que
O trata como se fosse um companheiro da brincadeira. Cheguei-lhe a
propor um dia se não queria jogar ao eixo.
Pareceu-me ter sorrido. Olhou para as mãos pregadas na cruz e pensou:
- Como é que posso jogar ao eixo contigo? – É fácil. Finge como eu. Salta
daí e vem comigo. Brincar é fingir. E fingir é viver. Entendeste?
- Acho que sim....

150
As minhas paisagens

"Tenho sede"...

E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: "Está consumado". E, inclinando


a cabeça, entregou o espírito.
Estas foram as últimas palavras de Cristo.
Todos temos sede. Sede de vida, sede de amor, sede de paz, sede de
justiça, sede de justificar o que conhecemos e desconhecemos. Eu te-
nho, e não é pouco, mas não consigo encontrar a esponja embebida em
vinagre.
O vinagre dos romanos era uma mistura em que a água se tornava potá-
vel. O soldado romano bebia água misturada com vinagre. Um conheci-
mento empírico que impedia ou evitava muitas doenças veiculadas por
via hídrica.
Em pequeno julguei que fosse mais uma maldade para O atormentar.
Afinal de contas não foi. O soldado romano condoeu-se e ofereceu-lhe
água do seu cantil. Todos os soldados romanos usavam esponjas para a
sua higiene pessoal.
Afinal de contas, a sede "mata-se" de muitas maneiras. Deve ter-Lhe sa-
bido bem. A frescura e a acidez percorreram os lábios e o corpo a tempo
de O tranquilizar para poder expressar a sua última frase: "Está consu-
mado".
Hoje, recordei esta passagem bíblica que bebi em silêncio em pequeno.
Lembro-me bem desse momento, o que pensei e o que senti. Foi tão
forte que ainda me persegue. Que o digam os meus belos Cristos, cada
um com o seu apodo inventado por mim. São belos; alguns não estão
ainda mortos, outros sim. O mais recente é maravilhoso. Nunca vi nada
semelhante. Representa o momento da última frase, que adoro, "Está
consumado". Está ali. E ali vai permanecer até eu poder dizer, pensar ou
imaginar o mesmo, "Está consumado". Entretanto, faço todos os possíveis
para poder apagar a minha sede. Não sei se conseguirei.
Digo "apagar" e não matar...

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Salvador Massano Cardoso

"Diferenças"...

Somos muito diferentes uns dos outros. Nada de especial. É bom, sinal
de diversidade cultural. Ajuda à preservação e desenvolvimento da nos-
sa espécie, embora possa ser fonte de atrito, de guerra e até de morte.
Desconheço quais os limites para essa diversidade de modo a não causar
prejuízos e mal-estar. Mas não há. Se houvesse limite esse deveria ser
imposto pelo bom-senso. Mas não há bom-senso que vença a falta de
carácter e a vontade dolorosa de ofender o outro.
Uma das vantagens das redes sociais é permitir “ver” até onde as pessoas
podem ir e mostrar o que são. Confesso que fico assustado. Não tenho
qualquer dúvida que a diversidade é também fonte de confusão e sinal
de ódio.
Se me espanto? Claro que não. O caldo do confronto está presente, de-
masiado presente, não obstante as manifestações de carinho, de confian-
ça e de amor, pétalas de flores condenadas à morte.
Também os outros, os que querem impor a sua ideologia, e que mostram
intolerância maligna aos demais, estão condenados.
Entretanto vão destilando aquilo que é dramático na espécie humana, a
raiva, a intolerância e o ódio.

152
As minhas paisagens

"O abraço"...

Os seres humanos têm inúmeras formas de manifestar o que sentem.


De todas, aquela que considero mais profunda é o abraço. No abraço
há contacto de dois corpos. É uma forma de intimidade. Uma tentativa
de fazer passar entre duas pessoas o que sentem, o que temem, o que
desejam e o que sonham.
O abraço é a expressão máxima da nossa existência. Ao nascer somos
abraçados no mais profundo e puro carinho. Ao longo da vida corremos
a refugiar-nos nos braços de quem nos quer bem e nos protege. O abraço
da felicidade, da comunhão, da despedida, do regresso, da recompensa,
da admiração, do medo, do amor, da ternura, da dor, da traição, e até da
morte, ronda em redor dos pescoços de dois seres que sabem como nin-
guém, e de acordo com a ocasião, falar no mais profundo dos silêncios.
Cada um sabe saborear o seu abraço.
Cada um tem a sua forma de abraçar. No abraço sentimos tudo, a ale-
gria, a tristeza, o amor, a fantasia, o respeito, a admiração, o orgulho, a
humildade, a vida e a forma de afastar a dor e a morte.
Gosto de abraçar.
Gosto de ser abraçado.

153
Salvador Massano Cardoso

"Cumplicidade"...

Gosto de saborear uma bebida forte, suave e cheia de calor vindo não do
sol, mas de um alambique em que mãos carinhosas souberam encontrar
o equilíbrio entre a cor e o sabor.
Depois saboreio-a gota a gota durante o máximo tempo possível. Uma
forma de prolongar o prazer. Mas não é suficiente, preciso de um acom-
panhamento. Busco uma caneta e escolho a que melhor irá revelar o
que sinto.
Não imaginam a alegria da escolhida. Salta, corre e desenha com alegria
os meus sentimentos no final de mais um dia. Fico meio espantado, e
delicio-me com o escorrer da tinta a querer imitar o percurso das gotas
da água da vida. E o som? Silêncio. Ouço apenas o roçar no papel. Sinto
a voluptuosidade de algo tão suave como se fosse uma carícia cheia de
amor.
E a beleza das letras? Lindas, arredondadas, azuladas e cheias de sen-
sualidade como se fossem traços desenhados num quadro elaborado ao
ritmo do sonho e do encanto próprio de um dia que se nega a ter fim.
- Paramos por aqui? Olhou para mim e em silêncio disse que sim. Sabe
que irá regressar a qualquer momento. Eu também sei.
Enfim, não há nada melhor do que uma cumplicidade sem fim.

154
As minhas paisagens

"Voar e amar”...

Escrever sem título é uma experiência interessante.


Não é a primeira vez que faço. Gosto imenso de correr desta maneira
através da escrita. Escrever sem caminho definido e sem meta à vista.
Deixo que as minhas emoções se libertem do conforto.
Não há nada melhor do que a sensação de correr pelo mundo sem a
preocupação de ser o primeiro ou o último. Sabe bem viajar no dorso
das palavras e saborear a doçura das frases.
Olhar para um pequeno texto e ver o interior de uma pessoa é um pri-
vilégio, uma espécie de oração num templo que não sabe o que são
paredes e que nunca sonhou com preconceitos.
Gosto de correr com as palavras, preciso de dançar com elas, obrigam-
me a adormecer nos seus braços e alimentam a mais estranha das fomes,
o amor.
E agora? Que título vou arranjar?
Talvez “voar e amar”...

155
Salvador Massano Cardoso

"Folha"...

Linda folha. Ligeiramente amarelada, fina e pura. Uma página como


tantas outras, cheia de desejos e de medos.
Só tem uma vida e não sabe o que a vai vestir, se um poema, se uma
oração, se uma recordação, se uma história, se um desabafo, se uma
crítica, se um ensaio, se um desenho, se uma aguarela ou se ficará em
branco como uma tia velha que um dia deu a entender que a sua fortuna
iria cair nas suas mãos.
A página em branco tem medo de ter uma vida em vão. Mas não, vou-
lhe dar algo que qualquer ser precisa, pão. O pão desenha-se com uma
cor que à noite deixa de se vestir de negro e aparece ligeiramente acas-
tanhado, rico e cheio de emoções.
Que bom é cozinhar pão em frases que são introduzidas em fornos ali-
mentados com a doçura do coração.
Linda folha que se vestiu de amor e de emoção. Até os erros sabem bem
e o riscar parece querer imitar os rebordos da montanha do destino, lon-
gínquos, mal definidos e guardadores dos nossos sentimentos, lamentos
e esperanças.
Adoro folhas em branco.

156
As minhas paisagens

"Arco-íris diferente”...

Não sei se devo ser delicado no trato escrito. Delicado na vertente edu-
cada, polida, parafraseada, rebuscada, adocicada, enfim, um faz de con-
ta em que certas palavras, grosseiras, duras, empedernidas, malfazejas e
apimentadas da maior ordinarice, não têm lugar, mas mesmo assim não
deixam de ser ricas em sentimento.
Digo, ricas em sentimento porque são sinceras, violentas, críticas e de-
sejosas de atingir os alvos da minha atenção e preocupação. Pouco ou
muito se me dá se as escrevo, e assim poder ofender os “puritanos”. Não
gosto de puritanos. São umas perfeitas bestas que, em muitas circunstân-
cias, derramam sem pudor a maldição e a dor sobre os seus semelhantes.
Puta que os pariu.
As palavras têm que ser como o arco-íris, variadas, coloridas, intensas e
sempre unidas na cumplicidade da fala e da escrita. Não me incomoda
minimamente pronunciá-las ou escrevê-las. Faço com o mesmo à-von-
tade quando falo de amor, da beleza ou da esperança.
Pintar a escrita exige tantas cores brilhantes e suaves como as mais du-
ras, escuras e violentas,
Gosto do meu arco-íris linguístico. Pego numa das cores e aí vou eu,
sem limites, à procura do pote de ouro que nunca ninguém encontrou. A
vantagem é que o meu arco-íris é feito de uma miríade de cores que está
constantemente a modificar-se.
Um arco-íris que nunca foi branco, porque esse deve ser próprio dos
anjos e nem nunca foi negro porque no inferno não existe tal coisa.
Um arco-íris diferente. Há quem aprecie, há quem se inquiete e há quem
se sinta ofendido.
Para estes últimos aconselho que olhem apenas para os arco-íris natu-
rais, que não deixam de ser bonitos.
Só que eu prefiro construir os meus. Uma porra?
Não, apenas uma banal carícia de uma escrita sonhada e desejada.

157
Salvador Massano Cardoso

"Nascimento"...

Gosto de sentir o beijo do aparo quando roça a página de um bloco de


notas. É o que estou a fazer neste momento. Uma caneta com alguns
anos, como quem diz, com muitos, mesmo, acabou por ver a luz da
noite, e a noite da vida, pela primeira vez. Esperou décadas, mas nunca
desesperou.
Hoje, soube, ou compreendeu, para que servia. Começou a dar os seus
primeiros passos. Não hesita, discorre ao som do meu pensamento e
desejo. Impregnei-lhe as entranhas com tinta sépia. Uma cor adequada à
idade, e sóbria para justificar a vinda ao mundo da escrita neste primeiro
dia. Está feliz. Sinto-a a dançar e até me quer beijar. Não penso.
Deixo que a minha mão siga o seu curso. Nunca vi uma caneta tão ale-
gre. Escreve em português como se tivesse nascido neste país. Mas não,
uma caneta que se preze é natural do mundo, e só quer ver a cor das
letras, as curvas das palavras, os cheiros dos pensamentos, as lágrimas
da tristeza e a mais bela poesia escrita, vivida ou sofrida no coração de
qualquer ser.
Não há nada melhor do que escrever à noite, no silêncio da vida e no
despertar da morte anunciada. Tudo serve de pretexto para a deixar cor-
rer sem saber bem o que é que irei fazer ou dizer.
Escreve bem, e corre velozmente como se fosse uma lebre atrás do bri-
lho do mar azul, ou um pardal perdido no meio de qualquer perigo.
O aparo começou a encontrar o ângulo de entrada no novo espaço da
escrita. Não quer riscar, não quer abusar, quer apenas desenhar, brincar,
sonhar e amar como se fosse o eleito para uma nova vida que a alimente
de paz, amor e alegria. Tento acalmar a caneta, mas não consigo.
Prometo-lhe que não a irei esquecer, e que a libertarei neste espaço
construído por mim para que possa brilhar e mostrar os seus enfeites,
"dourados do sol e castanhos da terra".
Uma caneta que desconhece o fim...

158
As minhas paisagens

"Raiva"...

Divirto-me, com quem diz, a ler as justificações e opiniões sobre os mais


diversos assuntos que podem ir da astronomia à política passando pela
religião e futebol. Em suma, acabo por reconhecer que tudo me interes-
sa, mas o que me seduz mesmo é a amplitude e diversidade das opini-
ões, críticas e interpretações. Transmitem a precisa ideia da minha pe-
quenez e da grandiosidade do disparate, do atrevimento e da arrogância.
De facto, estas três facetas, disparate, atrevimento e arrogância são a
imagem de marca do pensar humano. São tão diversos e intensos que
chegam a causar-me espanto de forma contínua. Concluo que não há
solução para nada, nem nunca haverá.
Momentaneamente cria-se a ilusão de que sim, mas, na realidade, há
sempre alguém à espera de a matar, renovar, alterar, substituir, ou seja,
cada um tenta impor a sua forma de pensar e de ser.
A raiva, contida umas vezes, explosiva noutras, forjada em linguagem
básica ou, então, travestida de uma intelectualidade rebuscada, quase a
querer raiar o incompreensível, está sempre presente, ou quase. Raiva.
Raiva espumosa, raiva silenciosa, raiva sorridente, raiva odiosa, raiva
maldosa, raiva de todas as cores e feitios que saem como jatos de fogo
de olhos cínicos, ou através de palavras violentas, não são mais do que
testemunhos de almas que se alimentam e se embriagam com ela,
Raiva maldita e malditos raivosos. Raiva a mais e tolerância a menos,
para não dizer ausência de amor. O que vale é o silêncio da imaginação.
Procuro-o cada vez mais.
O silêncio de ouro é imune à acidez da raiva.

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Salvador Massano Cardoso

"Companhia"...

A caneta acordou. Estremeceu e gritou de prazer. É preciso dar vida à


sombra e matar a tristeza da solidão. Nada melhor do que uma caneta.
Deixa-se possuir pela ternura da mão e voa sem asas transportando as
emoções do coração. Adoro o riscar, que mais parece o som do lembrar.
Adoro a cor, que mais sugere a forma de aliviar a dor.
Adoro a ternura que deixa escorrer lentamente, que mais parecem lágri-
mas de amor. Adoro escrever ao som de uma fonte agradável de calor.
Gosto dos desenhos que escrevo. Parecem aguarelas nascidas em ma-
nhãs de primavera e terminadas nas noites de inverno.
Gosto da serenidade do aparo e da delicadeza da escrita desejosa de
iluminar a noite como se fosse o sol prometido do novo dia.
Gosto de aquecer as páginas vazias do meu bloco, que está sempre à
espera dos segredos e aspirações de uma alma que adora ter a escrita
por companhia...
Gosto.

160
As minhas paisagens

"Os frangos de Barrelas"...

Fui por velhos caminhos tentando saborear a tarde. Não choveu. Entrei
na localidade, que conheço muito bem, mas não consegui estacionar à
maneira. O Pipoca tem o condão de condicionar a nossa vida. Não me
incomodo. Queria tomar um café, mas não consegui estacionamento
perto. Rumei até outra localidade, a antiga Barrelas. Seduz-me andar
pelas Terras do Demo. Gosto imenso de Aquilino e ainda mais das gentes
que transpiram alegremente a beleza e a dureza de um viver que teima
em respirar como se o passado estivesse mesmo à nossa frente. É como
estar em casa. Sabia onde ir. Antes de estacionar, no amplo terreiro, visu-
alizei o comerciante dos frangos assados sentado com ar pensativo junto
da sua carrinha bem apetrechada.
Devia ter havido feira na parte da manhã. No largo restavam dois ou três
comerciantes a levantar as tendas. O "frangueiro" pensava sobre a vida e
o negócio do dia. Abrandei e disse-lhe: - Já regresso. Arranje um frango.
Vamos só tomar um café. Acordou de uma aparente letargia e sorriu. -
Esteja à vontade. Eu espero. Falámos como se fôssemos conhecidos de
longa data. Estacionei no terreiro. Ao sair, dizemos sempre ao Pipoca:
- Espera. Espera. Nós já "viemos". Nós já "viemos". Está do "já viemos" é
uma forma de parodiar algumas pessoas da minha terra. De tanto dizer,
qualquer dia já nem sabemos conjugar corretamente o verbo vir. O que
é certo é que o Pipoca entende. Nunca se inquieta, porque sabe que
regressamos sempre. Fomos falar com o homem e encomendei-lhe um
frango. - Um? Dois! Fiquei de boca aberta. Sorri. - Quer com picante ou
sem picante? - Com. - Hum! Pois. Pois. Eu não disse nada. Vão lá tomar
o café que eu espero. Passava um pouco das três e meia da tarde e o
movimento era nulo. No regresso, o comerciante, que sabia da poda,
estava à conversa com um amigo que se entretinha a jogar à raspadinha
. - Então, já lhe saiu mil euros? Perguntei. - Não. Mas parece ter qualquer
coisa. Importa-se de ver? Peguei no cartão e tentei perceber os códigos.
Não foi difícil. Parece que ganhou seis euros. -"Vistes"? Disse para o
homem dos frangos. Nada mau. Raspou outra e desta feita saiu-lhe três
euros. - Três euros? Perguntou-me. - Sim. Confirmei. - Mas diga-me uma
coisa. Quanto custa cada cartão? - Três euros. - Bom, sendo assim, já
está com um ganho de três euros. Começou a raspar uma atrás de outra,
com uma agilidade difícil de igualar, e nada. Fiquei com curiosidade e

161
Salvador Massano Cardoso

perguntei-lhe quanto é que tinha gastado. - Dezoito. - Ó diabo! Então


está a perder. A conversa continuou com toda a naturalidade até que
o esperto do homem dos frangos me disse: - Pronto. Aqui estão os três
frangos. - Três? - Sim. - Mas eu e a minha mulher não vamos dar conta
do recado com tantos frangos.- Deixe lá. Tem aqui este saco que é para
depois aquecer no microondas, mas tem de fazer da seguinte maneira,
e depois deu-me as instruções técnicas. Ao perguntar quanto é que lhe
devia vi na sua carrinha-assadora ainda uma fila de frangos assados, que
devido ao adiantado da hora não sei se iriam ter saída. - Dezoito? Bom,
uns gastam nas raspadinhas e eu em frangos.
A conversa continuou à maneira de acordo com os costumes e forma de
falar de um passado remoto. Sorri. O tipo sabia da poda, muito melhor
do que eu. Desejou-me um Bom Ano e muito amor. - Sabe? Sem amor
as coisas não prestam. Não acha? O amor vale tudo. Aqui tem o troco,
dois euros. Agradeci e virei-me para o seu amigo: - Ó homem, tenha
cuidado. A continuar assim ainda fica "raspado". Deram cada um a sua
gargalhada. O "frangueiro" acompanhou a sua da seguinte tirada: - Ai
fica, fica! Depois pensei: - Mas o que é que eu vou fazer a tantos frangos?
Depois lembrei-me que o Pipoca adora frango. - Estás com uma sorte do
caraças.
Tudo isto depois de contar à minha mulher, durante a viagem, algumas
histórias do famoso juiz de Barrelas com as quais se divertiu imenso. -
Estás a ver? É o que faz andar por Barrelas. Estou a ver que o espírito do
juiz de meias amarelas ainda perdura com toda a sua sapiência e maro-
tice. Digo isto a testemunhar pelo encanto do homem dos frangos. Ainda
estive tentado a perguntar-lhe se era ainda parente dele.
Não faz mal, fica para a próxima....

162
As minhas paisagens

“Misterianismo”...

Todos nós temos a perceção de que o avanço do conhecimento irá per-


mitir compreender tudo o que já se conhece e o que vier a ser conhe-
cido. Mas será mesmo assim? Ou tudo isso não passa de uma mera ilu-
são? Não será uma espécie de nova “fé”? Uma forma arrogante de ver
o mundo? Há muito que alguns cientistas e pensadores definiram que
existem fronteiras para o intelecto humano e que a maioria dos mistérios
da natureza nunca serão compreendidos.
Os anglo-saxões denominam esta corrente de “mysterianism”. Não sei
se é correto ou justo traduzir para “misterianismo”. Pouco importa. O
que interessa é que os cérebros animais sofreram os efeitos da evolução.
O nosso também. Acabámos por adquirir a propriedade da consciência,
“coisa” que não conseguimos compreender e nem explicar muito bem.
Todos os cérebros têm as suas limitações e fronteiras, o nosso não é ex-
ceção. Dentro da nossa espécie as fronteiras do cérebro são enormes,
até os génios sentem as limitações. Como temos fronteiras intelectuais
nunca poderemos conhecer tudo o que existe e muito menos aquilo que
venha a ser descoberto. Seria uma utopia e uma arrogância ter a convic-
ção de que iremos um dia saber e compreender tudo.
O misticismo, seja ele qual for, está posto de lado, porque não só não
explica grande coisa como é também uma forma redutora de esconder
as nossas limitações.
O “misterianismo” é um sinal de humildade. Compreender as nossas
limitações intelectuais é um ato generoso e sincero que nos deve colocar
num plano justo e equilibrado, muito longe daquela mania de sermos
aprendizes de deuses desejosos de ser como eles. Se é que eles existem!
Assumir que não há limites para a compreensão humana é acreditar na
excecionalidade dos seres humanos. Ora, ora. Que coisa mais milagro-
sa!
A conduta da nossa espécie, apesar de alguns laivos de amor, de solida-
riedade, de tolerância e de espiritualidade, é uma tragédia sem fim, mi-
serável até dizer basta e suficientemente estúpida para provar as nossas
limitações intelectuais.

163
Salvador Massano Cardoso

"Passear!”...

Gosto de passear. Faço por instinto. Deixo-me ir nas asas do destino.


Conheço como as palmas das minhas mãos a região em que vivo e nas-
ci. Portugal é muito pequeno. Pequeno geograficamente mas imenso em
variedade e em história. Mesmo sem pessoas, e sem cães, consigo ouvir
o passado que me sussurra segredos por onde passo.
E se não sussurra faz algo de incompreensível, empurra-me para lugares
onde já estive e passei e diz: - Olha! Eu olho e fico embasbacado. - Por-
quê? Porque já conhecia só que desta feita vi o que não tinha ainda visto.
Sorrio. Gosto de ser presenteado com o desconhecido e ser confrontado
com a beleza despercebida.
Calcorreio sem receio. Registo, emocionalmente, muitas coisas. Tantas
que nem as consigo desenhar nos meus breves apontamentos. Às vezes
assusto-me, porque julgo não ser possível descobrir nada de novo pelos
locais que atravesso. Puro engano. Sou confrontado com imensas coisas,
misturas de aromas, ideias perdidas, vontade de ir atrás de deusas e jogar
às escondidas com almas sofridas. Incrível ter de desenhar permanente-
mente o passado dos outros ao meu presente como se isso fosse a salva-
ção de todos. Mesmo que não seja, mesmo que seja uma mera ilusão,
dou comigo a querer ser uma espécie de pai da criação. O meu mundo,
o meu passado, os passados de outros, que vejo e ouço ao meu passar,
como a quererem perpetuar no futuro o amor e a esperança de gente
sem passado, sem presente e sem futuro. Gente esquecida.
Jogo com eles, e eles agradecem. É o que sinto.
Amanhã continuo. Não preciso de alminhas, que muito admiro, ou de
cruzes de homem-morto, que muito respeito.
Prefiro refazer a minha fantasia sobre o meu país, pequeno como uma
tangerina e grande como o próprio universo.
É muito fácil, basta descascar e saborear o seu sumo...

164
As minhas paisagens

"À maneira de uma criança”...

Gosto de registar as minhas “coincidências”. Não sei se são ou não, tal-


vez seja a minha vontade em encontrar formas de dar uma explicação.
Não interessa, mas registo.
O nome de Augusto de Castro não é novo para mim. Sei quem foi. Não
sabia muitas coisas, além de ter sido diretor do Diário de Notícias, jornal
que lia na estação. Nunca percebi a razão, mas o chefe recebia-o dia-
riamente. O vendedor dos jornais, o Zé, abria com uma navalha afiada
os cilindros de vários jornais. Fazia aquilo com uma rapidez que me
assustava, mas não cortava nenhum que vinha no interior. Não sabia, na
altura, como é que os cirurgiões atuavam, mas muito mais tarde, quan-
do os via a operar, cheguei a recordar aquela navalha. No final do ato
“cirúrgico”, passava a lâmina pelas calças e fechava-a com uma mestria
a fazer relembrar os revólveres dos cowboys quando os disparavam nos
duelos e sopravam os canos.
Digo isto, porque era ele que me arranjava e vendia as revistas aos qua-
dradinhos. A minha leitura preferida naquela altura. Um dos jornais fica-
va para o chefe da estação. Era permitido lê-lo por todos os “camaradas”
ferroviários. Era assim que se tratavam! Eu ia lendo algumas coisas, mas
o que me seduzia era o tipo de letra do título. O meu pai conseguia
escrever daquela forma. Pedia-lhe para escrever o meu nome em letras
que mais tarde soube que eram designadas como “góticas”. Ficava des-
lumbrado. Tinha muito jeito. Talvez tenha sido por isso, ou por ter ouvido
vezes sem conta, ou mesmo lido o nome de Augusto de Castro, que fixei
o seu nome. Fixar não é a mesma coisa que entender, mas não faz mal.
É assim que se começa a aprender.
Há dias, num leilão, vi um livro interessante, “Amor e Segurança” de um
Dr. Brennus. A obra fora traduzida por Augusto de Castro. Adquiri a obra.
Já comecei a ler. Um encanto, uma pequena preciosidade em redor da
teoria malthusiana, da sexualidade e da “prevenção” da procriação.
Presumo que a responsabilidade tenha sido o diretor do Diário de No-
tícias. Hoje, nas minhas habituais voltas e no desejo de alimentar a
preceito as novas amizades que vou construindo, entrei no alfarrabista.
Entrei, não. Entrámos. O cão foi o primeiro. Como teve autorização na
última vez, por exigência do dono, deve ter-se lembrado do facto. Fiquei
admirado. O Pipoca entrou e sentou-se com ar todo satisfeito. Tive que

165
Salvador Massano Cardoso

sorrir. Quando o dono apareceu, o animal “atacou-o” à maneira, mor-


discando-o, lambendo-o e saltando. Um gesto incrível. Fiquei a ver se
encontrava qualquer coisa, como se tivesse necessidade disso. Adquiri
uma obra, “Fumo do meu cigarro” de Augusto de Castro. Uma coletânea
de crónicas que agora vim a saber fizeram parte de uma coluna no seu
jornal. Fiz alguns comentários a propósito do autor.
Cheguei a casa e diverti-me a “abrir” o livro com uma faca afiada da co-
zinha. Esbarrei com uma crónica intitulada, “Coimbra”. Até agora não li
mais nenhuma. Depois de escrever este texto irei ler muitas mais. Fiquei
seduzido pelo estilo, encheu-me de ternura, e embebedei-me de alegria
com o conteúdo da crónica da minha cidade. Valha-me Deus. Como
posso ter a ousadia de ser cronista face à qualidade e riqueza deste au-
tor? Não posso e nem devo. Só posso deliciar-me e enriquecer com o
passado de pessoas que não conheci, mas com as quais aprendi que a
vida deve ser interpretada à maneira de uma criança.
Ainda hoje não passo de uma criança, porque senti um certo orgulho
quando soube que nascemos no mesmo dia.
Reação típica de uma criança...

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As minhas paisagens

"Ajuntador”...

Sou um ajuntador. Junto muitas coisas, sem qualquer ordem ou justifica-


ção. Sou levado pelo impulso do momento e pelo prazer do despertar da
emoção. Junto coisas atrás de coisas. Depois olho-as e tento ver qual a
razão. Não sei. Só sei que me dá prazer no momento em que as adquiro
e depois recordo as sensações escondidas que um dia foram despertadas
por elas.
Misturo tudo, tempo com tempo, sol com chuva, alegria com tristeza, es-
perança com desespero, vida com morte, raiva com amor, saudade com
esquecimento. Só não coleciono ou junto nada que tenha a ver com o
futuro. O futuro não é para mim, mas sim para os outros. Faço os possí-
veis para que os seus “futuros” sejam enriquecidos com o meu passado.
Se conseguir fico satisfeito. Passarei a ser mais um elemento próprio de
quem gosta “juntar”.
Um “ajuntador” pode ser mais profícuo do que um colecionador. É anár-
quico. É errante. Sabe que vai encontrar algo. E encontra. Não finge.
Bebe o momento e emociona-se com o que está escondido. É por isso
que navego pelo interior do meu país. Encontro tudo. Até consigo encon-
trar a minha pessoa, vestida, nua, fria, aquecida, lembrada, esquecida,
mas sempre viva no meio do que vejo, do que imagino e do que sinto.
Ai se eu tivesse arte e engenho para pintar ou escrever o que “junto” nos
meus momentos e dias de vida perdidos por um mundo que também é
meu.
Então seria um verdadeiro colecionador, de vidas, de passados, de futu-
ros, de almas, de sorrisos e de sonhos perdidos...

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Salvador Massano Cardoso

"Mães-Deusas"...

Há sempre um minúsculo “big-bang” na criação de um ser vivo. Pode


surgir a qualquer momento, de dia ou, sobretudo, de noite sob o silêncio
cúmplice e concupiscente da abóbada estrelada do amor. Não explode
em energia destruidora, mas sim em ternura criadora. Passado algum
tempo surgem os sinais e sintomas do anúncio de uma nova vida em
que o corpo da “mãe-deusa” se transforma e acolhe o segredo mais bem
guardado do mundo, o emergir de uma nova vida.
Lenta e prazerosamente espreguiça-se à vontade, e espirra com gozo os
tecidos da mãe. Surge o dia da verdade. Ninguém se recorda do momen-
to, exceto as mães que, com dor e simultaneamente prazer, se libertam
com ternura daquele que irá ser a sombra mais valiosa da sua alma. E
assim se gera e pare uma nova vida. Vida que desconhece o seu destino.
Vida que irá construir novas vidas, viver paixões e sentir desilusões. Vida
que irá amar a intervalos de curtos prazeres e sofrer dores e tormentos
de morrer. Vida que desconhece a razão da vida e a quem é prometido a
morte sem razão e com estranho sentido.
Contraste doloroso entre a sua criação, algures no leito quente, inspi-
rado pelos sentidos, e a morte em leitos frios e dolorosos. Uma vida
que é fruto do amor de uma deusa. Só as deusas é que sabem gerar e
dar continuidade à existência de novos seres. Deusas que se pavoneiam
orgulhosamente dos seus feitos, das suas imagens, vontades e sonhos.
Esperanças vivas que emergem, dançam, riem e choram nas almas dos
seus filhos,
As “mães-deusas” suportam tudo na vida, tudo exceto o desaparecimen-
to do fruto do seu ventre. A maior ofensa à vida é uma mãe ver partir o
filho. É uma ofensa e, até, mesmo o maior pecado daquele que muitos
consideram ser o “criador”, mas que, indiferentemente à dor e ao ras-
gar da alma, mais valia ser designado de “destruidor”. Mesmo assim, a
beleza e a superioridade de uma “mãe-deusa” é o maior testemunho de
amor que alguma vez inundou a Terra. Terra que é diariamente atacada
por testemunhos injustos, cruéis e destruidores.
O tempo espreita, não sei se por curiosidade ou se por necessidade, mas
acaba por transformar qualquer tipo de dor em brisas suaves onde irão
navegar em silêncio doces e inesquecíveis recordações de amor...

168
As minhas paisagens

“A vida é bela”

Por acaso vi o filme. Tinha poesia e muitas mensagens, todas elas des-
tinadas a dar algum significado à vida, que muitas vezes se enche de
lama, sangue, miséria e sofrimento. A imaginação humana, enfeitada da
mais pura das maldades, é capaz de parir situações indignas da condi-
ção de um ser que crê ter sido criado à imagem e à semelhança de um
qualquer deus. Não pode ter sido, obviamente.
Gosto de poesia. No filme, “A vida é bela”, Guido, interpretado por Beg-
nini, tenta fazer acreditar ao seu filho que tudo o que está a acontecer
não é mais do que um mero jogo, escondendo os horrores próprios dos
campos de concentração. Só num poema é possível ver tamanha fanta-
sia, o mundo da beleza a querer tentar encaixar-se nos esgotos do horror
da vida, onde nada se pode vangloriar de que “a vida é bela”.
Esta frase, “A vida é bela”, é uma das mais ofensivas e hipócritas que
conheço. A vida não é bela, nunca foi, apenas oferece breves momentos
em que pudemos respirar e embriagar-nos com a beleza de um gesto,
de uma paisagem, de um sorriso, de uma atitude ou de uma esperança
nunca sentida. Nestes casos, e noutros semelhantes, é possível observar,
ainda que por breves instantes, a beleza que a vida poderia oferecer.
A vida não é bela; é dura, madrasta, injusta, moldada pelo nepotismo
político, mafioso, económico e, até, religioso. Eu consigo, com alguma
facilidade, ver e sentir relâmpagos, coriscos, cascatas, sombras, sons e
nuvens de beleza. Não é muito complicado. Basta esquecer que existo,
que o mundo é irreal, que o passado transpira a sensualidade sobrenatu-
ral e que o futuro chorará lágrimas de dor por não ter ouvidos os poemas
daqueles que amam a beleza escondida nos mais recônditos e inespera-
dos cantos de um mundo condenado à morte. Mundo onde o ressuscitar
será apenas um sonho esquecido. O mundo atual é falso e hipócrita,
sem vontade de fazer valer a verdadeira justiça. O amor e o respeito, que
todos os seres humanos devem ter neste estranho mundo, criado num
momento de falsa inspiração, e sem justificação, são esquecidos na mais
estranha peregrinação, a vida.
Não, a vida não é bela, o que existe são algumas almas belas, belas de-
mais para viverem lado a lado com os que justificam a vida através de
uma frase que não tem sentido, porque eles não sentem e não sabem o
que verdadeiramente significa a vida.

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Salvador Massano Cardoso

"Conversas de pedras"...

Pedras desbotadas, descarnadas, negras e ofendidas emergem com tris-


teza das entranhas da terra. Já as conheço. Vejo-as em dias de chuva,
mergulhadas em nevoeiro ou aquecidas pelo sol brilhante que passa por
elas como cão por vinha vindimada.
Eu não. Olho-as e consigo ler os seus pensamentos. Estranhos, treme-
luzentes, encantadores e sempre à espera da conversa nunca tida ou
havida. Tantas. São tantas. Elaboradas, artísticas, toscas, brutas ou lapi-
dadas pelo tempo e pelas emoções, deixo-me ir ao seu encontro para
conversar.
Adoro as minhas conversas de pedras. Duras, francas, cristalizadas pela
verdade e doiradas pelo amor, levam-me a qualquer tempo, seduzem-
me em qualquer momento e permitem que escreva nas suas almas, com
um estilete de névoa pura, o que penso e sinto, na esperança de conti-
nuarem a conversa um dia, uma noite, numa época qualquer, vivida ou
desaparecida. Conversas de pedras, as mais sinceras, as mais silenciosas
e as mais puras.
Pedras não me faltam.
Conheço-as e elas vão-me conhecendo...

170
As minhas paisagens

"Capela da Casa Grande...

Sou um homem de recordações. Coleciono-as compulsivamente, algu-


mas saboreio-as com prazer, mas também posso estremecer de dor e
chorar de raiva. A minha amiga, de longa data, lembrou-se de reavivar
um episódio que vivemos em 1996, em Luanda. Nesse dia senti o sig-
nificado da ignomínia humana. São raros os dias que me esfacelaram a
alma. Pediram-me para que escrevesse no livro as minhas impressões.
Parei durante uns segundos olhando para as folhas brancas que se abri-
ram como se fossem braços de alguém desejoso de sentir conforto, ca-
lor e amor. Tirei a minha velha caneta e desprendi-me da realidade do
mundo moderno. Fugi no tempo e senti milhares de almas a quererem
ver o que é que iria fazer e escrever. Foi fácil, mas muito duro, cruzar a
minha vida com as de que por ali passaram e foram torturados. Senti-me
também escravo.
Nunca pensei visitar um local como aquele. Fui invadido por longos
arrepios. Suores frios escorreram no meu corpo enquanto a minha alma
era invadida por um terror paralisante. Naquele local soube até onde
pode chegar a vontade e a forma de estar de alguns seres perante os seus
iguais, entendendo por iguais enquanto membros da mesma espécie,
mas não digo seus irmãos, porque os esclavagistas não conhecem o sig-
nificado da bondade e da irmandade.
Há muitos anos, tive a oportunidade de visitar o museu da escravatura
em Luanda. Num pequeno morro, a “Capela da Casa Grande” encerrava
com muita simplicidade vários testemunhos daqueles tempos. Gravuras,
utensílios diversos, instrumentos de tortura e haveres de velhos escravos,
preenchiam aquele espaço, sobranceiro a uma planície de águas tran-
quilas onde os barcos negreiros iam colher os negros. Era naquele ponto
que os concentravam antes de embarcar para o continente americano,
nomeadamente o Brasil.
Foram centenas de milhar os que viram pela última vez a sua terra. A
zona, bela e silenciosa, não era suficiente para limpar as alvas paredes
do edifício impregnadas de dores e sofrimentos, facto que eu interpretei
como responsável por um crescendo mal-estar que ia sentindo. Naquele
local roubavam corpos à África, mas também, antes de os despejarem
nos porões dos navios, os despojavam da sua essência humana ao bati-
zarem-nos à força. Escravos sim, mas iam como cristãos!

171
Salvador Massano Cardoso

A segunda vez que senti algo semelhante ocorreu no decurso de uma


exposição itinerante sobre instrumentos de tortura utilizados pela Inqui-
sição. Em Coimbra escolheram o Pátio da Inquisição, o edifício onde
funcionou esta tenebrosa instituição. Os instrumentos não eram réplicas,
eram originais e foram mesmo utilizados em seres humanos a quem rou-
baram e escravizaram as almas. Não consegui chegar ao fim. A sensação
de mal-estar foi tão forte que demorei muito tempo a recuperar, recor-
dando a capela da Casa Grande de Luanda.
Hoje, não há escravatura, nem Inquisição, mas os atentados contra a dig-
nidade humana continuam a verificar-se. Continuamos a ver fenómenos
pouco dignificantes em inúmeras áreas.
É preciso que os responsáveis tomem iniciativas, que divulguem os es-
tudos, que debatam até à exaustão toda esta problemática, que sacrifi-
quem a obscenidade da informação desportiva, da propaganda política,
da saloiada de eventos sociais, e foquem mais atenção nas formas mo-
dernas de “escravatura” e de “inquisição”.
E não me venham dizer que tudo isto sempre existiu e que há de conti-
nuar a existir ou que não há mecanismos de controlo ou de fiscalização.
Não aceito. Investiguem e punem como verdadeiros criminosos todos
aqueles que atentam contra a dignidade humana, a qual se expressa
de muitas maneiras, não esquecendo que o trabalho é o seu expoente
máximo.
A escravatura continua a existir e o homem a fingir e a mentir."

172
As minhas paisagens

"Chuva”...

Os dias de chuva limpam as alegrias e apagam as esperanças. A água


que brota dos céus faz reviver o passado quando as fantasias do futuro
eram apresentadas como sendo belas, coloridas e aromáticas. Naquelas
épocas sentia que estava muito longe e pensava que nunca iria vê-lo ou
tocar-lhe.
O sonho de chegar ao ano dois mil levava-me a fazer contas de cabe-
ça. – Ena! Faltam tantos anos. Sentia que era uma espécie de eternidade
adiada. Fazendo de conta que o esquecia, deixava-me embalar em lem-
branças que um dia iria recolher. Vontade não me faltava de lá chegar,
mas o raio do tempo espraiava-se num longo e silencioso bocejo sem
se incomodar minimamente comigo. Ainda hoje me despreza. Guardo
muito do que o tempo me fez e não me esqueço o que me prometeu.
Vejo a água a tombar, e o céu a chorar e a gritar. Quer correr para o mar
onde pode viver livre e sem par. Sei por onde vai e sei o que vai ver. Re-
cordo a forma como lambe, bate e grita com as pedras. Vi muitas vezes
o seu desfilar, bruto, raivoso e, por vezes, cheia de espuma.
Uma beleza bruta aliada a suave e genuína agressividade. Esculpe como
ninguém as tristes pedras de granito nascidas num tempo em que não
havia fantasias e nem futuro.
Ao longo do velho rio deliciava-me com o espetáculo das águas a saltitar
entre e sobre as pedras trazidas do interior da terra por gigantes e fadas.
Símbolos inesquecíveis da vida que não conhece a morte, nem a força
do tempo e muito menos o significado de esperança.
Amor e Deus são apenas duas palavras nascidas num tempo que irá fazer
com que nasça e morra sem saber a razão.
Não sou muito diferente da chuva...

173
Salvador Massano Cardoso

“Sopro de sol”....

Não corro, prefiro suspirar entre duas suaves baforadas de vento ao mes-
mo tempo que me encosto a uma sombra sem tormento.
Não invejo, prefiro beber o som de uma ribeira que não vejo mas que me
faz recordar o sabor de um doce beijo.
Não sonho, apenas invento futuros sem cor e sem dor, tentando recordar
o passado desenhado a tinta de amor.
Vivo à procura de encantos em que paisagens iluminadas por sopros de
sol são oferecidas por almas perdidas.
Nada melhor do que saber por onde andam as alminhas. Conheço-as.
Um dia serão também minhas...

174
As minhas paisagens

“A palavra”...

A propósito de uma experiência recente, em que a palavra foi senhora e


humilhante, fui à procura deste texto, por acaso escrito num dia treze de
maio, "A palavra". Com estava eivado de duas ou três palavras a descam-
bar para o vicentino, expurguei-as, substituindo por outras, mais corretas
e menos violentas. Não fosse o diabo entrar em contradição, condição
em que caio com alguma frequência a par de muitos outros...
“O maior dom do ser humano é a palavra. Através da palavra consegue
exprimir o seu pensamento, criatividade, amor, ódio, fantasias, medos
e alegrias. Dizer o que se pensa implica respeito por um conjunto de
regras a fim de limitar danos ou evitar preocupações e mal-estar ao pró-
ximo. Não se pode dizer mal de outrem, sobretudo se se usar expressões
ditas ofensivas, humilhantes ou destruidoras do caráter. Mas é sempre
possível ofender, quer seja de forma direta ou indireta, com agressivida-
de, sem pudor, nas entrelinhas, nas insinuações, enfim, há mil e uma for-
ma de insultar, de humilhar e até de matar através da palavra, escrita ou
falada, menos na pensada. Pensar é uma coisa, dizer é outra. As leis que
regulam a forma de exprimir o pensamento são mais ou menos claras.
Há quem defenda a liberdade de expressão - e acho muito bem-, desde
que não seja ofensiva.
O problema está no conceito de ofensa. Há quem se ofenda por dá aque-
la palha e há quem se esteja “borifando” para o que lhe dizem, mesmo
que seja nas formas mais violentas e assassinas. Há quem se ofenda e
veja as queixas arquivadas, porque não ficou provado a “ofensa”, e há
sempre medo de que possa pôr em causa a liberdade. Mas há quem se
lixe. Neste caso lá tem de pagar as ofensas com multas, com uns dinhei-
ros, que até podem dar algum jeito ao ofendido. E se quiser mostrar que
é do género filantropo acaba por doá-lo a qualquer organização social!
Ofende-se muito. Muitas das ofensas não são consideradas como tais,
porque a liberdade de expressão é o maior dos direitos, não digo que
seja o maior bem, porque o maior bem é a palavra, que pode ser bela,
doce, amarga, feia, criativa, destrutiva e que pode tanto gerar vida como
matar vidas.
Insultar está na mente de muitos, para não dizer de todos, mesmo daque-
les que aspiram, hipocritamente, a ser santos. Há quem ande com Deus
no coração e o diabo na cabeça.

175
Salvador Massano Cardoso

Imagino o que seria a vida da humanidade se pudéssemos ouvir as men-


tes dos outros. Só de pensar fico arrepiado. Tentamos muitas vezes ler a
mente dos outros, uma característica que nos individualiza desde muito
novos, precisamente o momento em que tomamos consciência da nossa
identidade.
Se um dia um “vírus” de origem desconhecida atacasse a humanidade
e nos propiciasse essa particularidade, ouvir o pensamento dos outros,
deveria ser a maior loucura deste universo.
Até os anjos deixavam de o ser aos nossos olhos, e muitos santos des-
membrar-se-iam em finas fitinhas de trampa misturadas com belas ondas
de beleza. Nem sei se o próprio Deus escaparia a algum juízo de valor
menos positivo; olhando para o que fez, a (H)umanidade. Não sei, só
sei que seria uma confusão do caraças, para não dizer outras coisas. Fe-
lizmente que ainda não fui atacado pelo “vírus da liberdade da mente”,
porque se fosse a enxurrada de palavrões e de insultos seria de tal ordem
que até o diabo ficava corado, mas como é vermelho não se notaria mui-
to, o pior que lhe podia acontecer era ficar branco como a cal.
As palavras são estranhas, mas muito belas quando queremos.
O segredo deve ser esse mesmo, o que permite insultar, ofender e des-
truir também permite criar, amar e elogiar a beleza...”

176
As minhas paisagens

"Arte e pão"...

Nunca entendi qual o sentido da vida, mas sinto necessidade de a ali-


mentar. Mesmo antes de ter consciência da minha existência deveria
berrar quando tinha fome. Matar a fome é o mesmo que matar a morte
e preservar a vida.
Muito tempo antes de conjugar verbos e exteriorizar os meus sentimen-
tos, e muito tempo antes de questionar o sentido da vida, já sentia fome.
Ainda bem. Mais tarde, ao conhecer a beleza do mundo e a tristeza dos
humanos, comecei a saborear a doçura e o efeito inebriante da arte.
Lentamente, deixei-me possuir pelas almas da beleza. Almas perdidas e
escondidas em inúmeras obras de arte. Apurei os meus sentidos e come-
cei a viajar até ao fundo da minha alma.
Ainda hoje continuo nessa imensa viagem ao desconhecido onde o belo,
o calor, o silêncio, o encanto, a transformação, o divino, a esperança, a
alegria, a imensidão do espaço, a força e a doçura de deusas desconhe-
cidas, conseguem transformar-se na mais intensa e sincera oração capaz
de preencher o vazio e a tristeza de um pobre e esquecido coração. Sem
arte a alma morre à fome.
Sem pão morre o corpo. Nada melhor do que oferecer o mais belo sím-
bolo da criação, uma obra de arte, seja de alguém conhecido ou de um
sorriso desconhecido. No fundo do espaço infinito, frio e belo, há um
grande vazio que nenhum deus conseguiu até hoje preencher. Só um ser
humano criativo pode alegrar e aquecer a eternidade através dos filhos
dos seus ventres, as obras de arte, símbolos da vida ou suspiros do co-
ração que se transformam no mais saboroso pão, pão de Deus, pão do
amor, pão da verdadeira vida...
Eu mato a fome de muitos, oferecendo pão e arte.

177
Salvador Massano Cardoso

"Eu vou contar tudo a Deus”...

As redes sociais são o espelho da sociedade. São tão transparentes que


até arrepiam. Servem para tudo. Tem uma enorme vantagem, podemos
contabilizar e ver a amplitude do caráter das pessoas. Nada de novo. O
mundo foi sempre assim, diversificado até dizer basta. O que não sabí-
amos era a possibilidade de acesso instantâneo a tudo o que acontece.
Fujo, sempre que possível, a qualificar o que quer que seja, senão teria
de me explicar sobre o que escrevo e para quê. Não é para desagradar,
mas devo incomodar, não é para aliviar o sofrimento, embora tenha a
perceção de que possa conseguir nalguns casos. Sou capaz de divertir,
de divulgar, de incomodar, de questionar e, provavelmente, satisfazer
parte de um ego escondido, não sei se exagerado ou não, tanto faz, de
qualquer maneira faço sempre com alguma satisfação.
Notícias requentadas, sedutoras, manipuladas e tendenciosas, teorias de
conspiração, bílis negra e malcheirosa, poemas de amor, conversas de
treta, há de tudo neste pântano da vida virtual. Olho e passo em frente
em muitas dessas notícias ou aleivosias. Agora, depois de um curto pas-
seio, e de algum asseio mental, li uma frase que acompanhava a foto
de uma criança síria que, antes de morrer, do alto dos seus três anos
disse: “Eu vou contar tudo a Deus”. Não sei se é verdade ou não, pouco
importa, o que interessa é o contexto. Uma criança sofrida que, apesar
da sua curta vida, teve a perceção da desgraça e da maldade do mundo
onde caiu. Três anos de vida são suficientes para categorizar e catalogar
a humanidade. Um mundo que não deveria existir, ou melhor, não de-
veria haver seres humanos. Há uma incompatibilidade perfeita entre o
universo e o ser humano. A criança viveu o suficiente para interiorizar o
conceito de Deus. Um Deus construído de acordo com a sua imagina-
ção. O verdadeiro e perfeito Deus só pode ser visto e construído na men-
te de uma criança. Eu sei do que falo, porque em pequeno também fiz
a minha construção do que deveria ser um verdadeiro e perfeito Deus.
Sorri e entristeci ao mesmo tempo com a frase da criança síria que disse
que ia contar a Deus tudo o que viu e sofreu. A criança morreu. Deus
esqueceu-o. Não acredito, mesmo que exista, que tivesse capacidade
dialética em convencer do contrário a pobre criança. Defraudada neste
mundo e desconsolada na eternidade. Não sei como te chamavas, mas
não vou esquecer-te.
Prometo.

178
As minhas paisagens

"Ladrões e piões...

Diariamente sou confrontado com situações pouco ortodoxas. A senho-


ra, um pouco triste, respondeu-me que o seu estabelecimento tinha sido
alvo de atenção dos larápios. Não arrombaram a porta, abriram-na e
levaram dois expositores, uma imitação de uma pistola antiga e o mea-
lheiro da filha mais nova.
Subitamente dei-me conta de que a espécie humana é a mais estranha
de todas. Acredita em deuses, fabrica-os à sua imagem e semelhança, é
capaz das coisas mais extraordinárias, desde a arte à ciência, vai até à
Lua, e um dia qualquer até ao fim do mundo, descobre causas das doen-
ças, consegue explicar muito do inexplicável, cria sinfonias, é autora das
mais sinceras manifestações de amor e de solidariedade, mas também
mata, provoca guerras e rouba como se fosse a coisa mais natural do
mundo. E deve ser. A força da evolução humana reside precisamente na
capacidade de matar e de fazer as maiores tropelias que causam desgos-
to e perturbação nos que entendem que a honestidade e a honra são os
princípios de uma nova humanidade, que tarda em aparecer. Desconfio
que nunca irá acontecer.
Acreditamos que sim, ou melhor, fingimos, mas os seres humanos deso-
nestos irão dominar sempre a realidade humana.
Um dia, devia andar na segunda classe, penso que por altura das férias
da Páscoa, lembrei-me de ir ao tribunal. Ia a subir as escadas enfiado
nos meus calções quando o meu avô me viu. - O que é que estás aqui a
fazer? Perguntou muito admirado. - Vou fazer queixa ao senhor doutor
juiz. - Vais o quê? - Vou dizer-lhe que me roubaram o meu pião de buxo,
o que tinha uma ponta de prego. - Mas tu és doido? - Não. Não me dis-
seste que é aqui que os homens de bem vêm queixar-se das injustiças?
Puxou o chapéu para trás, afagou o bigode, um costume, silencioso, que
tinha antes de tomar uma decisão, e depois disse: - Vou contigo. Subiu
as escadas, deu-me a mão e entrámos no átrio um pouco escuro. Tirou
o chapéu.
Olhámos para o lado direito, onde era a sala de audiências, e através da
porta semiaberta vi ao fundo, sentado na tribuna, o senhor doutor juiz
com o seu ar austero. Nunca tive medo do senhor. Quando me cruzava
com ele cumprimentava-o sempre: - Bom-dia (ou boa-tarde) senhor dou-
tor juiz. Interrompia o passo e respondia: - Bom-dia (ou boa-tarde) me-

179
Salvador Massano Cardoso

nino. Mas o que eu achava mais importante era quando tirava o chapéu.
Sentia que era importante.
Um juiz tirava-me o chapéu quando o cumprimentava. Eu e o meu avô
ficámos a olhar durante uns instantes para o julgamento que estava a
decorrer. Foi então que me disse: - Estás a ver? O senhor doutor juiz está
a fazer um julgamento e parece-me que vai demorar um pouco. O me-
lhor é virmos noutra altura. Não achas? Fiquei a pensar durante alguns
segundos. Concordei. Caso contrário iria perder a tarde e eu queria era
jogar à bola com os meus amigos. Ao descermos a escadaria, o meu avô
perguntou-me se não tinha outro pião. - Tenho, mas não é nada com-
parado com o outro. Quando o lançava escachava a cabeça dos piões
dos meus colegas. Ficavam sem conserto. E quando ganhava ao jogo do
pião, usava-o sempre para dar ferroadas. Os outros ficavam bonitos, ai
ficavam! E se perdia era ele que tinha de as receber, mas como era duro
ficava na mesma. - Hum! Estou a ver.
Vou ver se consigo arranjar-te outro, - Vais mesmo? - Vou, mas só se me
prometeres que não vais incomodar o senhor doutor juiz. - Está bem.
Não vou. Mas olha lá, explica-me uma coisa, porque é que as pessoas
roubam coisas aos outros? Isso não é pecado? Parou, empurrou o chapéu
para trás, afagou, em silêncio, o bigode com o indicador e o polegar, e
disse: - Pois! Uma boa pergunta. Olha, não sei. Nunca roubei nada a
ninguém. - Então, eu também nunca vou saber. - É melhor não.
Vai brincar. Passados dois ou três dias, ofereceu-me um gordo e duro
pião com um bico que prometia muitas vitórias.
Como era especialista em lançar piões - foi ele que me ensinou -, fez das
suas, atirou de frente, bico para cima, de costas, e fazia aquilo que mais
adorava, apanhava-o à unha...

180
As minhas paisagens

"Cansado"...

Não sei escrever, não sei pintar, não sei musicar, não sei poetizar, não
sei o que faço e nem compreender o que sinto. Deixo-me ir ao toque
do ritmo dos dias e das estações. Sei que pertenço, sem saber a razão,
a um ponto insignificante a quem chamam “azul” num universo longo,
grosso, frio, bonito e sem explicação. Só sei que os dias cansam, e as
noites atemorizam-me.
As horas são a medida do tempo das punhaladas e os minutos os sorrisos
sardónicos dos diabos da minha construção. Não falo dos segundos,
gotículas de água dos frios e estranhos nevoeiros. O cansaço invade-me
como se fossem ondas alterosas a querer mudar as formas de velhas ro-
chas. Rochas que morrem às suas mãos deixando-se escoar em insignifi-
cantes grãos de areias perdidos no meio de um mar sem cor e sem amor.
O cansaço invade-me. Destrói lentamente as fibras da minha essência.
Nunca acreditei em qualquer vida.
Apenas recordo o sabor tranquilizador de um sol carinhoso, o sabor de
uma enigmática sandes de presunto, o mergulho nas águas de um rio
amigo, o sussurrar louco de cigarras numa noite de verão, o toque de
sino em comunhão com as águas da ribeira numa passagem do ano, o
silêncio perfumado do incenso em redor de um morto na sala ao lado, a
alegria fugaz de um momento inesperado, a construção de uma esperan-
ça sob o olhar das estrelas, vulgares prazeres de ocasião e medos, muito
medos de quem é obrigado a viver sem razão.
O cansaço invade-me.
Pena não matar...

181
Salvador Massano Cardoso

"O Rogério"...

Faz hoje dois anos que conheci o Rogério. Desde esta cena já passei
muitas vezes pelo mesmo local. Passo e recordo o Rogério. Nunca mais
o vi. Tenho receio de que já não exista. O melhor é não perguntar. Passo
pelo mesmo local e recordo a história de um dia de calor. Sou filho de
histórias e quero ser pai e avô de histórias. Sim, sem histórias não sou
ninguém...
Aproveitei o dia livre para o encher de prazer e de emoção. Basta-me
andar ao “deus-dará” para tropeçar com pequenos episódios, aconteci-
mentos e fazer belas descobertas. Cada vez gosto mais de andar ao sabor
do vento do tempo. Eu também me transformarei um dia nesse vento.
Depois de termos almoçado, bem, demos um pequeno passeio pela lo-
calidade. O sol estava no seu pique. Gente nem vê-la. O calor apertava
e de que maneira. Procurávamos incessantemente a sombra quando, de
repente, surgiu uma figura surpreendente.
Um velho, mirrado pelos anos, com uma das mãos, a esquerda, a aper-
tar simultaneamente a camisola e as calças (ou pijama), como a querer
evitar que lhes caísse aos tornozelos, caminhava à pato e a pequenos e
instáveis passos. – Valha-me Deus! De onde terá surgido aquela figura?
Disse para a minha mulher. – Fugiu de algum sítio. Só pode. Pela forma
como caminha, e atendendo à idade, aquela cabeça está toda baralha-
da. Vamos. Vamos perguntar-lhe o que é que ele anda a fazer. Avançá-
mos meia dúzia de metros e interpelei-o. – Bom tarde, bom senhor. Boa
tarde. À segunda saudação parou e olhou-me. – Como é que se chama?
Tive de repetir mais duas vezes. Deu-me a sensação de que estaria a
processar a resposta a uma pergunta que deve ter ouvido várias vezes
ao longo da vida. – Rogério. Rogério. – Ó senhor Rogério, o que anda
a fazer com este sol? – Bjjjj. Bjjj. Bjjj. Fugi de casa. – O quê? Fugiu de
casa? Mas o senhor sabe o que fez? Com quem é que vive? Sem perce-
ber, voltou a sorrir e a lançar os seu “bjjjjs”. – Mas sabe ir até à sua casa?
– Sei. – Ai sabe? Onde é que mora? – Ali. – Ali onde? – Ali. E apontava
o local. Disse para a minha mulher: - Isto vai ser complicado. Como a
conheço bem, vi logo que se ia meter com o Rogério. Pôs-se a falar com
ele e, claro, não tardou a vê-lo todo sorridente e a dançar. Levantou os
braços, começou a agitar os dedos ao mesmo tempo que levantava o
rabiosque acompanhado da tentativa de se elevar do chão. – Valha-me

182
As minhas paisagens

Deus. Ó senhor Rogério vá para casa por amor de Deus. – Está bem.
Está bem. Avançou pela rua principal, velha de séculos e de história, até
chegar junto de uma escadaria cujos degraus, monstruosos mesmo para
um jovem, tentou galgar. À primeira tentativa ia malhando com os ossos
no granito escaldante. A minha mulher correu e segurou-o.
Depois, com muita dificuldade, ajudou-o a subir. Lá em cima, na rua
medieva, começou a caminhar com os trejeitos de quem não sabe para
onde ir. Passou em frente a uma casa, porta escancarada, junto da qual,
num velho assento de granito, uma velha apanhava o ar da tarde à som-
bra. Vi que ela lhe disse alguma coisa, mas o Rogério continuou na sua
marcha. Sempre na expectativa do que poderia acontecer, aproximei-
me da velha e perguntei-lhe se sabia quem era aquele senhor. – Não.
Não sei. – Não conhece o Rogério? – Não. - Não? Não é daqui? Sorriu
e vi que não estava melhor da cabeça. Pus-me no seu encalço, até que
o apanhei. Gritei-lhe: - Ó Rogério! Ó Rogério! À segunda interpelação
parou. Olhou-me e com aquele ar de quem está aprisionado dentro de
um cérebro esquecido ficou à espera de instruções. – Vamos para casa.
Estão todos preocupados consigo. O pior é que eu não sabia onde mora-
va, até que duas senhoras presenciaram a situação. Vi que o conheciam.
Pedi-lhes ajuda. Sem ficarem muito surpreendidas, disseram-me que era
comum andarem à sua procura. – Sabem onde é que ele mora? Quando
me disseram onde era fiquei de boca aberta. Afinal, vivia na casa cuja
porta estava escancarada e na qual, sentada no banco de granito, estava
a mulher. – O quê? Aquela senhora é a mulher? – É sim senhor. Mas ela
não sabia quem era o Rogério! – Sorriram. Estava tudo explicado. Enfiei
o braço debaixo do braço direito dele, enquanto a mão esquerda aper-
tava insistentemente as calças para que não caíssem. Levei-o até casa.
Satisfeito com o episódio, começou a querer dançar. As senhoras que o
conheciam bem disseram-me que em novo saltava no ar e batia com os
pés um no outro a dançar.
Não perdeu o jeito, faltou-lhe apenas a elevação. Entrou em casa. De-
pois, duas vizinhas vieram em seu auxílio e estivemos a conversar um
bom bocado sobre o quadro.
Sei que ambos tinham mais de noventa anos e...
Agradeceram a nossa ajuda.
O país está cada vez mais deserto, mais pobre e mais velho...

183
Salvador Massano Cardoso

“Santa Bárbara”...

Demorou muitos anos. Demasiados. Um dia desapareceu da loja. Pen-


sei: - Alguém a levou. Felizardo. Mais tarde apareceu no mesmo sítio,
bela e delicada como sempre. Nunca a adquiri. Nem sempre pudemos
adquirir o que desejamos. Quantas vezes passei pelo local? Centenas e
centenas de vezes. Sempre que passava dizia, ou melhor, tentava dizer,
porque a meu lado ouvia de imediato o responso: - Sim. Eu sei. Está ali
uma bela Santa Bárbara que tu gostas. Mas tens tantos santos e santas. Já
não há lugar para mais nenhum.
Esta noite sonhei com a Santa. Tracei de imediato um roteiro de forma
a passar no local, nem que fosse para a ver. De manhã a andorinha
morreu. Após o almoço abalei. - Vais parar aqui? - Vou. - Vais fazer o
quê? - Comprar a Santa Bárbara. - Mas como é que sabes que ainda está
lá? - Como é que eu sei? Ora essa, "guardado está o bocado para quem
o há de comer".
A senhora ia a entrar naquele preciso momento. - Boa tarde. - Boa tarde.
Respondeu. - A Santa Bárbara ainda está no mesmo local? - A santa? -
Sim, a santa Bárbara. - Ah. Está. - Eu levo-a mas não por aquele preço,
até porque tem o indicador da mão direito partido. Dou-lhe X. - Para
isso preciso de falar com o senhor C. - Então fale que eu espero. Passa-
dos uns minutos, poucos, apareceu e disse: - Pode levá-la. - Levo-a sim
senhora, com muito gosto. Eu sei que está aqui há muitos anos. - Sim.
Pelo menos há treze. Foi quando abriu a loja. - Treze anos? Tanto tempo!
Pareceu-me que foi ontem. - Ela foi adquirida em tempos, mas depois o
dono devolveu-a para trocar por outra. Estava explicado a ausência da
santa. - Foi renegada? Não se deve renegar um santo. Compra-se e, de-
pois, o máximo que pudemos fazer é ofertar a quem temos amor e afeto.
A senhora sorriu.
Demorou bastante tempo a limpar as teias de aranha e a sujidade acu-
mulada de larguíssimas dezenas de anos. Ainda falta mais "uma de mão".
De qualquer modo a sua beleza é evidente.
Agora, na mão direita, em contraponto à esquerda com a torre, tem duas
pequeninas penas de uma andorinha.
Está completado o quadro, e a história de uma santa, que levei quase
treze anos para a adquirir.
Agora também tem uma história para contar.

184
As minhas paisagens

“Desejo” ...

Devia escrever. Tenho fome. A fome aguento, a sede não. Quero beber.
O quê? Não sei.
Preciso de me embriagar com lembranças e esperanças. Sinto a força do
calor que invade a noite. Abro os braços. Recebo-o como um testemu-
nho da mais pura oração, viver a vida sem saber.
Imagino o sentir da força das almas a escorrer ao longo dos meus dedos
como se fosse a cura de todos os tormentos que assolam o mundo, Não
quero invocar deus, e nem recordar o diabo, quero apenas paz, calor,
amor e um sentir diferente como se acabasse de parir uma nova forma
de vida, a liberdade expurgada de tristeza e vestida da mais brilhante
pureza.
Um desejo...

185
Salvador Massano Cardoso

"Banalidades” ...

Nas conversas banais surgem sempre temas interessantes que acabam


por preencher vazios e justificar o dia-a-dia. Adoro este tipo de banali-
dades em que projetamos a nossa maneira de ser e de estar sem outro
objetivo que não seja comunicar e viver.
Preciso de muitas coisas para viver, como qualquer um. Nada que seja
do outro mundo. Tudo o que estimule o meu sentido estético provoca-
me uma sensação de felicidade.
Mas a felicidade também é despertada através de manifestações de
amor. Uma carícia, uma frase, um sorriso, uma prendinha, uma atenção,
uma lambidela de um animal de estimação ou o cuidar de um ser vivo
indefeso, também ajudam a saborear esse sentimento. Sou confrontado
diariamente com pequenas coisas que acabo por transformar em gran-
des acontecimentos. Sou eu que defino a grandiosidade do que quer
que seja. Muitas vezes partilho estas descobertas, de forma simples e
humilde. Outras vezes não digo nada, talvez devido ao facto de passar
demasiado tempo a saboreá-las.
Gosto de arte. Sou capaz de percorrer longas distâncias para desfrutar
uma obra, esperar tempos infinitos para as ver, ou, então, deixar que me
caiam nas mãos sem saber.
Numa conversa banal alguém adiantou que a arte não tem uma finali-
dade definida. Contestei, dizendo que tem. Estimular o sentido estético
provoca bem-estar, prazer, felicidade, contribuindo para o crescimento
espiritual da humanidade.
Tão importante como o trigo que alimenta o corpo ou o vinho na sua
mais profunda conceção de alimento do espírito.
Quanto ao amor as fontes são inúmeras. Basta usar a nossa imaginação
como se fosse o bastão de Moisés na travessia do deserto que fez jorrar
água que matou a sede de um povo sedento. O amor é a mesma coisa,
pode brotar sob a forma de jorros de felicidade.
É o que tento fazer todos os dias.

186
As minhas paisagens

"Sonhar"...

Há dias em que não consigo domesticar os meus sentimentos. Sentir rai-


va não é habitual, mas face a tanta filha de putice que conspurca o meu
país não tenho outra alternativa. Grito de forma contundente.
Sentir ternura é a coisa mais fácil do mundo. Sentado numa esplanada
da baixa deixo-me enternecer pelo olhar puro de uma criança que corre
para mim dizendo: - Cão. Cão. Liberto o Pipoca que já sabe o que fazer.
Salta para os ombrinhos e começa a lamber a face.
O menino começa a rir de uma forma que diria ser a imagem perfeita de
uma timidez feliz. Sentir tristeza é o prato diário face à miséria humana
com a qual me cruzo a qualquer momento. Descrevê-la seria duro e
demorado. Não quero chorar. Sentir prazer é como ver um meteorito
atrevido a rasgar o céu.
Pena demorar alguns segundos. Resta-me a lembrança. Sou fadado em
desfrutar recordações medidas em segundos de prazer. Sentir a força
do amor é mais complexo e estranhamente é muito profundo. Estava a
dormir há algum tempo. Acordou. Perguntou-me: - Onde está a minha
mãe? - Está no céu. - No céu? - Sim! Já lá está há sete anos.
Queres sonhar com ela? -Quero. - Então dorme. Sorriu e adormeceu.
Deve estar a sonhar com a mãe...

187
Salvador Massano Cardoso

“Parto da morte”...

O parto da vida pode ser muito doloroso, mas é compensado pelo calor
de uma nova existência, embrechada de alegria e de esperança. O parto
da morte pode ser muito doloroso e tem como compensação a liberta-
ção da existência, despejada de alegria e sem esperança.
Sei que o meu parto foi doloroso, mas encheu de felicidade e de alegria
a minha mãe.
Tento procurar entre o nevoeiro dos meus primeiros tempos de existên-
cia onde é que ela estava. Não consigo vislumbrá-la com clareza, talvez
a voz, doce, talvez o calor do corpo, suave, talvez a luz da alma, brilhan-
te, talvez tudo, misturado em proporções variáveis que, com o tempo,
se materializou na sua figura, ou melhor, na sua presença. Uma estranha
sensação de proteção, inebriante às vezes, cáustica e certeira noutras.
São tantos, tantos os episódios de vida e de cuidados que guardo, tudo
caldeado em belos e coloridos frascos de compota. Tantos sabores, tan-
tas cores, tantos episódios, tantos carinhos, tantas tareias, tantos afectos,
tantas preocupações, tantas vivências.
Um dia, seduzido por uma bela caixa azul suave, de baquelite, surripiei-
a, sem que desse conta, de uma gaveta onde estava escondida. Abria-a e
vi uma espécie de fita, pequena, negra, esquisita, embrulhada em algo-
dão amarelecido. Deitei fora o conteúdo e pus-me a brincar com a bela
caixa. Ao ver-me com ela na mão ficou aflita, tirou-ma, abriu-a e ficou
pálida. Onde é que puseste o que estava dentro da caixa? Perguntou-me
muito irritada. Deitei fora, era uma coisa negra e feia, não prestava.
Ai meu desgraçado, então, tu deitaste fora aquilo que me prendeu à tua
vida! Eu fiquei de boca aberta, sem perceber, mas vi que deveria ser al-
guma coisa muito importante. Mais tarde entendi do que se tratava. Era
uma recordação única, tinha-a guardado com tanto zelo e amor.
E aquela mão, que na altura soube acariciar à maneira o meu traseiro,
apertava agora a minha nas últimas horas de vida.
Era a única parte do seu corpo que tinha ainda calor ou recebia-o. A res-
piração, estridulosa, anunciava o fim, intensificando-se de forma gutural
e abrasiva, não para si, que há muito deixou de saber que existia. De
vez em quando lançava um estranho olhar como a querer dizer algo. Às
tantas não queria dizer o que quer que fosse, mas a expressão era funda,
perturbadora.

188
As minhas paisagens

De súbito, fechou os olhos, continuando a sua respiração de afogada no


mar da morte.
Não senti a presença de quaisquer divindades, e também não fui capaz
de as invocar para que a libertassem do sofrimento.
Não sei o que senti, talvez uma serenidade incómoda, irritante mesmo.
A mão que me deu a mão continuava quente num corpo em arrefeci-
mento pelo frio do esquecimento.
O cordão do parto da morte caiu-me nas mãos. Que fazer com esta re-
cordação? Vou colocá-la numa bela caixa azul suave. Vou guardá-la na
gaveta da minha imaginação, e, desta vez, ninguém vai abri-la e deitar
fora o seu conteúdo. É para mim, só para mim.
Vá, pronto, já está. Descansa.
Dei-lhe um beijo na testa, o último da vida e o primeiro da morte.

189
Salvador Massano Cardoso

“Arte, amor e vida”...

Vale a pena envelhecer. Consegue-se ver o mundo de uma forma dife-


rente. Nunca pensei ver com olhos de ver e sentir com uma alma seden-
ta de amor.
Consigo entender muitas coisas que desconhecia. Um sorriso, um abra-
ço, uma palavra perdida, um prato cheio de prazer, uma ajuda despren-
dida, um planeta perdido, um ladrar de amor, uma visão do mundo es-
pelhado numa obra de arte, enfim, acabo por saber que a velhice é
um estado de contemplação que se apaga no momento da verdadeira
criação, o nascer do esquecimento.
Mergulhar na eternidade é a maior das bênçãos. Não sentimos descon-
forto, não despertamos inveja, não desejamos nada, talvez ser lembrado
por entes queridos.
Tento aliar um sorriso fugaz, mas doce, com uma obra de arte que relem-
bra o meu maior desejo, adormecer ao colo da minha mãe, e saborear a
fantasia da vida, desenhada por mim e despida para mim...

190
As minhas paisagens

"Sabor da vida” ...

Tenho noites em que coloco as perguntas mais estranhas.


Gosto de usar a palavra como se fosse o abracadabra do tesouro escon-
dido da vida. Para isso preciso de não a sentir.
A de hoje foi muito banal. - Qual é o sabor da vida?
A brisa que corria sobre o Mondego parou. A lua quase cheia suspirou.
O meu cão levantou-se e ladrou.
E a noite gritou: - Sabe a amor. - Sabe a amor? Sim. O cuidado, a ter-
nura, o afeto e a alegria, aliados ao nervosismo de um cão ansioso com
o estado de saúde do dono ou a recordação do amor de um casal de
pássaros desconhecidos perante o nascimento de um filho, conseguem
transmutar a minha insignificância realçando o mais estranho sabor da
existência, o amor.

191
Salvador Massano Cardoso

“Gostas de mim”?...

À medida que envelheço sinto a vida de forma diferente. Olho para os


meus anos de adolescência, cheios de fantasia, e os de luta na fase mais
criativa da vida e acabo por concluir que prefiro a atual. Mais pesada?
Sim. Mais complicada? Sim. Mais dolorosa? Sim.
Embora a dor tenha sido uma constante entremeada de momentos de
prazer e de felicidade. Não me queixo. Não posso e nem devo, por uma
questão de criação e de vivência onde flui a miséria e o sofrimento de
imensos seres que passaram pelas mãos. Posso ser dado à tristeza, mas
nunca atribuí a dor a quem quer que seja. Ela existe e faz parte da essên-
cia humana. Recuso atribuir-lhe qualquer vontade ou desígnio divino.
Coloco a fantasia de deus fora desta estranha aventura que é o viver. Sou
honesto, ou pretendo ser.
Não creio em culpas ou em fatalidades, mas sim em estranhas formas de
viver. Eu sou uma delas, a par de todas as outras. O que é que faço nesta
fase outonal? Adoro as cores do outono. Sempre fui apaixonado pelas
cores e pelos sons. A imagem da minha vida espraia-se na de outras.
Acarinho-as como se fosse eu próprio.
Ouço o estremecer da voz, a inquietação do que irá fazer em seguida,
o desejo de fazer caracóis, a vontade de ir dar uma voltinha, o questio-
nar onde vai dormir, o querer ajudar sem saber como, o sorriso rasgado
perante uma velha tirada e a vontade de exprimir sem saber a razão,
“gostas de mim”?
Gosto!
O toque da minha mão na sua face acaba por pintar o quadro que sem-
pre sonhei, uma pintura cheia de cor e de amor...

192
As minhas paisagens

"Noite diferente” ...

Uma noite diferente. Preciso de noites ricas em sentimentos e emoções.


Amanhã é o dia em que temos de lembrar os nossos mortos. Não preciso
deste dia. Prefiro um dia qualquer sem contar. As lembranças são como
as brisas frescas do ar que suspira de amor.
As tradições são sempre boas. Pretextos para pensar e para sonhar. Sen-
tado, com o meu companheiro sempre a meu lado, pensava na noite,
nas noites de anos anteriores e também daquelas que poderão surgir. Eis
que um grupo de meninos começa a cantar, como é tradição na cidade
de Coimbra, os “bolinhos e bolinhós”.
Estava preocupado, porque eram quase onze horas e ninguém aparecia.
A pequena nota, e algumas moedas, estavam a dormir junto ao Pipoca.
Apareceram, e a festa foi fabulosa. Aos gritos, cavalgando uns sobre os
outros, não sabia como fazer para os receber. O Pipoca estava espantado
ao meu colo. A canalhada ficou de tal modo feliz que, ao reconhecer
o meu “famoso” cão, saltaram para cima de nós aos beijos e a oferecer
com ternura frases de enorme gratidão.
As mães ao longe, no seu papel de vigilantes, apreciaram incrédulas
as atitudes dos miúdos. Sorriram, acenaram e agradeceram aquela bela
confusão. No meio disto tudo, recordei uma peça que nunca esperei
obter. Fui ver o resultado.
Caiu-me nas mãos uma escultura bela e cheia de significado, em que o
amor é visível. Sente-se o calor dos corpos como se fosse um suspiro do
sol a sonhar numa noite fria, em que a tristeza da perda de entes queri-
dos se transforma na alegria da vida a desabrochar e no apaziguar da dor
de quem está a desaparecer.
Uma noite diferente...

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Salvador Massano Cardoso

“Nomes” …

Gosto de conversar e, sobretudo, de criar uma atmosfera simples, hu-


milde, em que é possível respirar tranquilidade e alguma alegria num
mundo doido, perdido e sem sentido. Gosto mesmo. Através da conversa
viajo pelo mundo, pelo mundo das almas, penetro na intimidade dos
seres humanos, reconforto os que sofrem, dou a mão aos que julgam que
estão a afundar-se, desperto risos de alegria, vejo olhos espantados como
se o mundo fosse o desejado circo da alegria e sinto formas únicas de sa-
tisfação, por vezes há muito esquecidas. Tudo isso surge ao longo do dia.
Quadros impressionistas, sinfonias de amor e poemas de dor e de triste-
za. Vejo a vida de forma única, como se fosse um deus, mesmo sabendo
que nunca irei conhecer o Olimpo. Não falo do inferno, não preciso,
não vale a pena, a não ser para realçar os sumptuosos momentos es-
pontâneos que vou criando, adoçando, desenhando e amando a cada
dia. Não me canso, mesmo que o corpo refile. Desconfio que nem isso.
Torna-se leve como se não tivesse necessidade da existência.
Gosto de conversar. Gosto de perguntar às senhoras os nomes dos fi-
lhos. Não é que seja uma pergunta relevante para o encontro, mas é
uma forma de respeitar e ao mesmo tempo de as libertar e sentirem-
se confiantes. É curioso ver as suas reações. Interpretam sempre como
uma simpática delicadeza. Os lábios embandeiram em arco e os olhos
iluminam-se. Tudo se torna mais fácil.
Não é que fosse indispensável para a consulta. Há muitas outras manei-
ras de acender a lareira da empatia entre seres que se encontram pela
primeira vez. Mas eu gosto.
Perguntei à jovem senhora, depois de a mesma ter dado a informação de
um parto recente, como se chamava o filho. - Salvador. - Não me diga?
Eu também me chamo Salvador.
Depois foi muito fácil contar histórias, revisitar tempos e abrir saudades
há muito adormecidas. Mas os momentos continuaram. A senhora, nova,
barriga emproada à maneira, respondeu à minha pergunta. - Não é o se-
gundo, melhor, a segunda. Perguntei-lhe o nome da primeira filha. Não
fiz grandes comentários. Sorri. - Pois.
Confesso que certos nomes não me caem bem. Não tenho nada a ver.
Não sou o pai. Entendo que os pais procurem que os seus filhos sejam
únicos, singulares e diferentes dos outros. Mas isso somos todos. Não é

194
As minhas paisagens

por causa de nomes mais ou menos exóticos que eles irão distinguir-se
no futuro. - E a segunda menina? Apontei para a barriga que estava à mi-
nha frente. - Já tem nome? Já. Disse. Não comentei. Sorri delicadamente
e disse: - Pois! Quer um, quer outro, encerram o tal desejo de quererem
ser diferentes. Não é pelo nome que somos diferentes. Não estive para
divagações e nem podia, obviamente.
Em contrapartida adoro aqueles nomes simples, doces, cheios de cari-
nho, a ponto de imaginar que estou a dançar com uma menina nos meus
braços ouvindo o dobrar do seu sorriso ou o espreguiçar cheio de alegria
de um menino a lançar saliva como se fosse doce de anjos ao fazer-lhe
cócegas.
Tudo isto ao mesmo tempo que pronuncio os seus nomes, simples, amo-
rosos, delicados, doces e cheios de alegria que um dia vogarão pelo
mundo como se fossem brisas suaves da vida.

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Salvador Massano Cardoso

"Caligrafia” ...

Os orientais usam a arte da caligrafia para alcançarem a paz de espírito,


Seduzem-me aqueles toques, lânguidos, rápidos, sensuais, misteriosos e
cheios de arte. Ainda por cima fazem poemas e transmitem as suas emo-
ções num mundo esquisito e sem futuro. Uma forma de entrega total ao
presente, esquecendo o passado e ignorando o futuro.
Gostava de ser como eles. Não conseguindo, tento desenhar as letras
com uma caneta ávida de amor. Digo-lhe o que penso e o que sinto.
Confio no aparo e sinto o cheiro da tinta. O silêncio da escrita convida-
me à confissão e à contemplação de sensações únicas e originais a que-
rerem colorir a vida.
Depois tudo surge como num sonho, sons, ideias e emoções sem senti-
do, apenas quadros originais, muitas vezes assustadores e outras vezes
deliciosos. O acordar serena tudo e mata qualquer desejo.
Gosto de escrever.
Mas o que queria mesmo era transformar a escrita em cores, as cores
em sabores, os sabores em odores, os odores em alegrias, onde as dores
desaparecem como por magia...

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Índice

O tolo 7
Ainda cuspo muito para comer 9
Lamego 10
Ó Chiquinho, o lugar? 12
Tolinhos da aldeia 15
Almoço de palavras 17
Dois loucos. Cada um à sua maneira 18
Colcha de algodão 20
O pedido 21
Viver 23
O dia em que o Chico chorou 25
Água e gases 27
O Silva 29
A conversa e a serra 31
Santa Margarida 33
Santas Combas 35
Dia de São João 37
Serra 39
Maças secas 40
Leão 42
Transumância 44
Segredos de velhas almas 46
Desejo silencioso 48
Vazio 50
Bordado de Tibaldinho 52
Serpente 54
Brinquedos 56
Novelo de vida 58
Sol na serra 60
Viagem à volta do fumo 61
Manhã 63
Navegar 64
Locais sagrados 66
O sol quer jogar 67
Miserável sentir 69
Esperança 71
Imagem tatuada 72
Conhaque de Napoleão 73
Escrever à noite 75
Conversa num dia cinzento 76
Calor 77
Dia de sol 78
Frio 79
Arco-íris 80
Anjo-da-guarda 81
A mordaça 83
Horas de descanso 85
Dezembro 86
Última visita 87
Inverno da vida 88
Uma, duas, três... histórias 90
Lágrimas 91
Contar histórias 92
Uma rosa e uma cruz 93
Pedras do meu encantamento 94
Sabes que dia é hoje ? 95
Acontecimentos 97
Maresia 98
Belas peças 100
Sete anos perdidos 101
Domingo à tarde 103
Bosque sagrado 105
Viagem 106
Escrever 107
A maçã da consciência 108
Almas douradas 110
Ventre da mãe 111
Espirros de alma 112
Véspera de domingo de ramos 113
Paixão 115
A capela 116
Viajar 118
O Lazarilho de Tormes 119
Imagem 121
Confessar e amar 122
Chuva 123
Cruz 124
Brisa da noite 125
Duas velhas 126
O sol adormeceu 127
Coimbra 128
Natureza 129
Chamar a capítulo 130
Solidariedade 132
Sussurrar 133
A Quinta 134
Viajar até oeste 136
Esboço de um ensaio sobre a mudez 137
Falsa compaixão 139
Ilusão 141
Almas 142
Paz da vida 143
Alcool e liberdade 144
Passear de mão dada 146
Santa Eufêmia 147
Vazio de amor 149
Cristo 150
Tenho sede 151
Diferenças 152
O abraço 153
Cumplicidade 154
Voar e amar 155
Folha 156
Arco-íris diferente 157
Nascimento 158
Raiva 159
Companhia 160
Os frangos de Barrelas 161
Misterianismo 163
Passear 164
À maneira de uma criança 165
Ajuntador 167
Mães-Deusas 168
A vida é bela 169
Conversas de pedras 170
Capela da Casa Grande 171
Chuva 173
Sopro de sol 174
A palavra 175
Arte e pão 177
Eu vou contar tudo a Deus 178
Ladrões e piões 179
Cansado 181
O Rogério 182
Santa Bárbara 184
Desejo 185
Banalidades 186
Sonhar 187
Parto da morte 188
Arte, amor e vida 190
Sabor da vida 191
Gostas de mim? 192
Noite diferente 193
Nomes 194
Caligrafia 196

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