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paisagens
textos desgarrados
e meio perdidos
A outra palavra tem a ver com serras. Nasci num planalto entre
duas serras. Conheço as suas formas e anseios. Sei como falam, co-
nheço as suas formas, sei como se vestem, imagino o que sentem,
são livres, veem tudo, desde as terras longínquas até às profunde-
zas do universo. Vigiam o caminho do sol e da lua. Brincam com
as nuvens e recebem as suas lágrimas no seu longo e esguio corpo
com as quais alimentam o mundo a longas distâncias. Adoro vê-las
a todo o momento. Nunca consegui ver duas imagens idênticas,
são a expressão mais bela do que quer que seja, seja divino ou
qualquer outra coisa, Atraem-me. Por isso cavalgo-as sempre que
posso, faça o tempo que fizer. Os seus silêncios são misteriosos,
quer em dias de sol, quer em dias de nevoeiro, ou em dias de tor-
menta. Adoro-as e não consigo viver sem elas.
Autor:
SalvadorMassano Cardoso
“O tolo”...
Boné na cabeça, mãos atrás das costas, cabeça de lado e sempre a olhar
para a rua como se estivesse à espera de alguém. O tolo, que não via há
alguns anos, estava no mesmo sítio, em frente da porta do cemitério. Viu-
me e comentou sem olhar: - A Marisa não me vem buscar. E são horas
do almoço. O relógio está a trabalhar. Às tantas só vou almoçar à noite.
Mas hoje é dia de Natal ou quê? Entre as múltiplas frases olhava para o
pulso como a querer confirmar o tempo.
- Esteve a trabalhar? Perguntei. – Estive. Estive à espera da Marisa. Nunca
mais me vem buscar para comer. – E quem é a Marisa? – É a minha cole-
ga. Trabalha neste escritório aqui. – Muito bem. Já agora pode dizer-me
o que é que o senhor faz? – Eu sou chefe. – Chefe de quê? – Chefe de pri-
meira. Ainda cuspo muito para comer. A que horas se almoça hoje? São
horas. Ia respondendo às minhas perguntas sempre de costas voltadas,
olhando para o lado esquerdo à espera que alguém chegasse. Sentado
à sombra de uma delicada árvore deixei-me ir naquele estranho diálo-
go. – O senhor trabalha aqui há muito tempo? – Quinze dias, só! – E já
é chefe? – Para o ordenado que tenho ainda é pouco. – Mas diga-me lá
uma coisa. O senhor é chefe dos coveiros? Não respondeu. Talvez não ti-
vesse ouvido, - Há muitos coveiros? – Há. – Quantos? – Quatro. – Afinal
há quanto tempo está aqui? – Há muito. Há vinte anos. Sorri e comecei
a recordar a conversa que tivemos há alguns anos em que o tempo era
a coisa mais elástica e volúvel que alguma vez vi. Tinha aspeto limpo e
cuidado. Quem o trata fá-lo com carinho e atenção. Continuei a conver-
sar com ele através das suas costas. Nunca me olhou de frente. Sempre
à coca da chegada da Marisa. – Já trabalhou hoje? – Estou à espera da
Marisa para comer. Eu tenho de comer. Se uma pessoa não come morre.
Vai para debaixo da terra. E não é que a gaja demora! Com catano. São
quase duas horas e ela não vem. Para a próxima não a deixo ir a lugar
nenhum. Primeiro come-se, depois trabalha-se. – Ela foi fazer o quê? - Se
calhar foi às compras. – A esta hora está quase tudo fechado. São horas
de almoço. – Ela já devia cá estar. Eu como às três horas. Depois as horas
fazem-se tarde de mais. – A que horas é que sai? – Saio às duas. – Mas
são uma e meia. Olhou para o relógio e ripostou: - São duas e meia, são.
– Como é que se chama? – José Manuel da S. R. – Mora aqui perto? –
Moro na Presa, antes de chegar à capela do Morais, lá para cima. Eu nem
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Confesso que me falta fazer muita coisa. O tempo passa com rapidez.
Escasseiam as oportunidades para satisfazer velhos desejos. São tantos
que se anulam praticamente uns aos outros. Um deles tem a ver com os
regionalismos. Adoro, gosto de os saborear e de os colecionar. Andam
perdidos, são esquecidos, mas, em tempos, desenhavam com precisão
e sentimento o pensar das gentes. Cá em casa ainda há quem os debite.
Fico surpreendido com este regresso a uma memória das vivências de
gente de outrora. Estou sempre a aprender. Ai como gosto de aprender!
Hoje, num diálogo de um tolo e de um candidato a toleirão, ouvi a ex-
pressão, “ainda cuspo muito para comer”. Assim que a escutei, surgiram
na minha mente os velhos cavadores a cuspir as mãos para as amaciar
como se quisessem adocicar o contacto duro e doloroso com os cabos
das enxadas. Nunca começavam a rasgar a terra sem antes lubrificar
com a sua saliva espessa as mãos calejadas. Como se estas precisassem!
De tão duras que eram nem deviam tugir ou mugir perante aquele ato
simbólico. Vi inúmeras vezes este gesto, que se ia repetindo ao longo
do dia, como sendo mais um ato de raiva do que qualquer outra coisa.
Tinham de comer. Tinham de trabalhar. Cuspindo nas mãos desafiavam a
própria vida, ingrata e dura até dizer basta.
Ouvi-a hoje da boca de um tolo.
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“Lamego”...
Vou a Lamego todos os anos, mais do que uma vez, mas no verão é
quase certo passar duas ou três vezes. Uma delas tem a ver com a Nos-
sa Senhora dos Remédios. Aproveito para cortar o cabelo. Uma mania
como qualquer outra. Gosto e aproveito a jornada para revisitar velhos
locais. Hoje fui por aí acima. Parei em Castro Daire para almoçar. O se-
nhor Carlos, muito simpático, já nos conhece. Assim que chega à mesa
para perguntar o que desejamos já traz um jarro de vinho de Valdigem.
Boa pinga. Depois nem dá tempo, em poucos minutos aparece o prato.
Hoje foi bacalhau à Gomes de Sá, muito diferente do que comemos
nos nossos sítios. Antes, tirou-nos os pratos e perguntou: - Vão comer
da travessa, não é verdade? Não sabendo o que dizer disse: - Vamos,
pois! Pois bem, o prato estava delicioso. Uma refeição agradável servida
por alguém excecionalmente simpático. Confesso que por vezes prefiro
andar durante três quartos de hora só por causa desta forma de servir e
da qualidade da comida, sardinhas, trutas, bacalhau, petingas, batatas
regadas por Deus, melão misterioso servido com travo a limão e um bom
vinho de uma região querida do Douro. – Até à próxima. Disse. Espero
que seja em breve, basta-me sentir esse desejo.
Ao chegar a Lamego confrontei-me com as festas. Engalanada e bonita
como sempre, recordo sempre o meu amigo Ferreira de Almeida. Sem-
pre presente na minha mente quando viajo até à sua terra. Ainda era
cedo para cortar o cabelo. Fomos dar uma volta pelas tendas, até nos
enfiarmos na parte popular, comum a qualquer romaria. De repente,
ouvimos barulho e gritos. Uma zaragata à maneira. Assustei-me, o tom,
as ameaças e o vernáculo mais imaculado da língua portuguesa, aliado a
sentimentos de explosão maligna, impregnavam a rua dos tendeiros. Bo-
nito! Pensei. Só espero que não acabe em confronto grave. Faltou pouco,
muito pouco, um tendeiro barafustava ameaçadoramente contra outras
duas que se tinham apropriado indevidamente de um espaço vazio à sua
frente. Parece-me que tinha pagado esse lugar. O fiscal da câmara nem
sabia o que fazer, umas vezes estava calmo, outras quase que perdia a
paciência. As duas usurpadoras ameaçavam chamar a polícia porque o
tendeiro ofendido disse que tinha uma pistola. O histerismo reinava e a
raiva também. – Estas pessoas são testemunhas de que nos ameaçastes
com uma pistola! E abria os braços como a quer arrolar como teste-
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“Ó Chiquinho, o lugar?”...
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era pobre. Tinha pedido mais do que uma vez um lugar na junta ou no
cemitério a fim de providenciar o seu sustento. Volta e não volta atacava
o presidente da junta da freguesia. A sua entrada em cena, na obra de
Mário Braga, é notável. Chiquinho Boavida, numa caminhada, matutava
sobre como dar volta à vida, quando sentiu alguém, por detrás, a puxar
a manga do seu casaco dizendo: - “Ó Chiquinho, o lugar?” Surpreendi-
do, disse-lhe que estava a ser difícil porque não tinha o diploma e sem
o comprovativo da quarta classe não sabia como arranjar-lhe um. Lá se
descartou do pobre rapaz como pode.
No dia em que comprei esta obra, os jornais anunciavam as preocupa-
ções do senhor Presidente da República com o desemprego dos nossos
jovens que estão cada vez mais qualificados, mas cada vez mais longe
de arranjarem um lugar que lhes possa propiciar independência e sub-
sistência. É triste o ambiente depressivo que nos rodeia. Desempregados,
incapazes de conseguirem um lugar minimamente estável, objetos de
exploração indigna, o quadro não abona nada de bom e desmistifica a
promessa de alguém que há pouco mais de dois anos prenunciou uma
centena e meia de milhar de novos empregos! Não foi nenhum presiden-
te de junta, foi o atual (2007) Primeiro-Ministro.
Os jovens que andam por aí não são defeituosos, o que é, também,
de somenos importância, como é óbvio, não são tolos e têm, a grande
maioria, diplomas de ensino superior, um verdadeiro record.
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga do
senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: - “Ó Chiquinho, o lugar? “
Qual seria a sua resposta?
A do Boavida já eu sei.
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“Tolinhos da aldeia”...
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"Almoço de palavras"...
Comecei a sentir fome. Pensei, devem ser horas de almoço. Olhei para
relógio e vi que ainda faltava algum tempo. Então, imaginei, deve ser
fome de palavras. Sentei-me. Estava sozinho e violei a hora do almoço.
Comecei a comer sopa, onde as palavras se misturavam umas com as
outras, diferentes, algumas boiavam, outras mergulhavam e muitas dan-
çavam. Entraram na boca e senti um turbilhão, todas falavam ao mesmo
tempo, todas queriam fazer um sermão. Deixei-as à vontade e ouvi o
seu encanto, e senti prazer na boca e no coração. O vinho olhou-me,
triste e ansioso por desejar participar no festim. Vi que estava nervoso,
peguei no copo e bebi. Estava ainda a saboreá-lo e ele já andava a can-
tar poesia pelo corpo. Feliz e livre fazia belos poemas que nunca senti.
Continuei a comer. Enquanto o meu estômago agradecia, a minha alma
explodia com o encanto das palavras. Estava sozinho até que entrou o
tolo. Sentou-se, encomendou, começou a beber a cerveja e olhou para
mim com alguma inveja. Só um tolo consegue transformar a minha so-
bremesa num belo bolo. Entretanto, o vinho, triste, perguntou porque
é que não bebia mais. Expliquei-lhe, mas não entendeu, quis dizer-lhe
que só me apeteceu ouvir as palavras de um almoço que era só meu. O
pão gritou de raiva e de estupefação, porque é que não me comes, eu
que fui a tua paixão? Não te como pão, porque continuas a ser a minha
perdição. Calou-se, pois então, mas mesmo assim fiz a vontade ao meu
coração, mandando às malvas a razão, e comi, no final, um pequeno pe-
daço de pão. Uma ode à vida, ou uma oração ao céu, passa sempre por
um saboroso naco de pão partido à mão. Um momento simples capaz
de provocar a mais estranha emoção. Acabo por ver que estou a escrever
num espaço dedicado à oração, fazendo a minha digestão. Palavras, po-
esia e vida, pois então, chegam para tranquilizar o meu coração.
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e começou, “ora, hoje são vinte e quatro, pois é isso mesmo, vinte e
quatro do quatro, quatro do vinte e quatro, filhos da puta, só greves, só
greves”. Olhei estupefacto para o meu vizinho e pensei, que quadro tão
curioso, ele escreve as suas notas e eu as minhas. Dois loucos que esco-
lheram dois bancos, debaixo de duas belas árvores à entrada do sítio da
verdade. Olhei novamente para ele, mas não se incomodou. Olho-me
e eu não me incomodei, fiquei apenas com uma curiosidade dos diabos
sobre o que conteria aquele bloco. Quem sabe se um dia destes ainda
não iremos trocar os nossos apontamentos, eu mostro-lhe os meus e em
troca ele mostra-me a sua escrita, escrita de delírios. Faltavam escassos
minutos para retomar o trabalho quando uma senhora vestida de negro,
testemunhando uma perda recente, sai pelo portão acompanhada de
duas crianças, a mais nova, um rapaz de dez a onze anos, traquina,
convencido da sua imortalidade e indiferente ao significado do espaço,
dirigiu-se ao meu companheiro, que ia escrevendo em voz alta os seus
protestos contra os grevistas, perguntando-lhe, a que horas é que parte
o próximo comboio para Lisboa, respondeu de imediato, sem levantar
a cabeça, como se fosse um horário vivo, “às cinco menos doze, e o
comboio a seguir, às cinco menos treze”, tal foi a velocidade com que
deu a informação revelando que estava mesmo junto de alguém que, se
não era louco, deveria sofrer de algum delírio quântico. O puto, que já
o devia conhecer muito melhor do que eu, riu-se, e a mãe, que tinha
ao sair um semblante triste, conseguiu revelar uma certa cumplicidade
com o filho, olhando-me como que a pedir desculpa pela brincadeira,
oferecendo-me um discreto sorriso. Retribui-lhe, naturalmente.
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“Colcha de algodão”...
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“O pedido”...
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"Viver”...
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há mais de quarenta anos, na Serra da Boa Viagem, por esta hora mais
ou menos, um fotógrafo à la minute beijou e fez o sinal da cruz com
a nota de vinte escudos que lhe tinha dado para pagar a fotografia. O
cauteleiro sorriu. – Sabe, por ter feito o sinal quero outra cautela. Pegou
na que me tinha dado e para não a repetir deu-me outra. – Como é que
o senhor se chama? – Ca...Ca...Carlos. Eu já o conhe...ço. Disse – Sim.
Mas não adiantei. – Só espero que o senhor tenha muita sorte. Depois,
na sua agradável gaguez, disse-me para que não fizesse como o outro.
O outro foi um indivíduo que entrou na igreja, ajoelhou-se perante o
altar, fez o sinal da cruz, e pediu ao Senhor para lhe dar sorte na lotaria.
Ouviu de imediato a resposta vinda do altar: - Olha lá. Já compraste a
cautela? – Não. Respondeu o crente – Então, como é que tu queres que
te ajude. Não te vai sair nada. Ai não vai não! Mais duas ou três larachas
e o senhor Carlos, o cauteleiro da Rua Formosa em Viseu, continuou a
apregoar no seu jeito muito próprio a sorte grande. Agora, visivelmente
mais feliz.
Viver é apenas isto...
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através daquela maquineta. Mas naquele dia eu queria era avisar o Chi-
co, o “Chico dos Jornais”, de que tinha havido um acidente. – Ó Chico!
Ó Chico. Gritei junto à porta. A mulher abriu a janela e disse-me que
não estava. Tinha ido até ao local onde os aviões caíram. – O Chico foi
na lambreta? – Foi. O Chico tinha uma lambreta cinzenta com que fazia
a sua vida. Andei muitas vezes nela, em pé, entre o Chico e o guiador.
Pois. Naquela altura era uma sensação fora do comum. – Agarra-te bem,
ouviste? – Sim, Chico. Naquele dia, cheio de sol, o Chico não estava.
De repente, na parte da tarde, ouvi o som da lambreta. Corri. – Ó Chico,
onde foste? – Fui ver o acidente. Calei-me e esperei que me contasse o
que tinha sucedido. Mas não, não era o Chico que eu conhecia. Com
a lambreta encostada à parede, retirou da parte lateral, uma espécie
de porta-luvas, bocados de metal de cor cinzenta. Pareciam que eram
iguais à sua máquina, mas não. – O que é isso, Chico? – São restos de
um avião. – Dos que caíram? – Sim. – Mostra-me. – Deu-me o maior
de todos. Parecia que ainda estava quente. – Posso ir mostrar aos meus
pais? – Vai. E fui. Ao mostrar aquele pedaço de metal, o meu pai disse de
imediato: - Leva isso até ao Chico. Depressa. Ouviste? – Sim. Não per-
cebi bem aquela aspereza. Cheguei a casa do Chico, que estava na parte
de baixo, junto à loja, e vi-o sentado com as mãos na cabeça a chorar.
Nunca tinha visto um adulto a chorar. Eu já tinha chorado, bastas vezes,
mas aquela forma de chorar era diferente da minha. – Ó Chico, estás a
chorar? Não chores, Chico. Não Chores. Eu não percebi muito bem a
razão do meu amigo estar a chorar. Tinha a ver com a morte dos pilotos.
O problema é que não sabia muito bem o que era a morte. Ainda não
tinha visto nenhum morto. Mas meio ano depois vi o primeiro, a minha
melhor amiga. – Chico, não chores, Não chores, dizia-lhe, insistente-
mente. Toma. Toma o teu pedaço de avião. Olhou-me. Não disse nada.
Apertou o pedaço de metal contra o peito. – Vai para casa. Vai para casa.
Amanhã vamos construir a Torre de Belém como te prometi. Está bem?
– Está. Fui-me embora.
Não consigo recordar a cara do Chico, nem a sua voz. Apenas me lem-
bro do seu choro.
Hoje, fui, sem saber a razão, até àquele espaço onde há tantos anos
morreram oito pilotos, num dia belo, quente, em que comi um papo-
seco barrado de deliciosa manteiga e vi o meu grande amigo, o Chico,
a chorar.
“Morrendo voando”. Vivendo sonhando...
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“Água e gases”...
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“O Silva”...
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cura das ervas. – Ai sim? Quem são eles? Pode dizer-me os seus nomes?
Não foi capaz de dizer nem um. Repliquei que alguns, de facto, gostam
de andar nas serras, mas para caçar. – Não. Não andam a caçar, andam à
busca de ervas. – O senhor doutor tem que aprender que aquilo que vem
nos livros é falso. São tretas. Nem tudo é verdadeiro. Nós é que sabemos
o que faz bem. E nem precisamos de ratinhos para fazer experiências.
– Ai não? Disse-lhe. - Muito bem. Sabe, senhor Silva, o meu problema
não são os ratinhos são as ratazanas como o senhor. Julgam que perdeu
a compostura e o sorriso? Qual quê! Continuou na sua. – Olhe, senhor
doutor, por exemplo, a insulina que tomam para a diabetes é um perigo.
São químicos. – Ó Silva, eu sofro de diabetes e tomo insulina. Ao dizer
isto mostrei-lhe a caneta. O Silva ficou tão surpreendido que repetiu três
ou quatro vezes. – O quê? Sofre de diabetes? Não posso acreditar. So-
fre de diabetes? Mas como é possível uma coisa dessas? Só é diabético
quem quer. Olhe eu já fui e deixei de ser. Aliás, tenho ali um produto
que, por dez euros, faz baixar a diabetes de setecentos para zero de um
dia para o outro. – Porra! Ó senhor Silva, não me diga uma coisa dessas.
Com esse produto deve “curar” toda a gente. Não sei se percebeu o
alcance da minha tirada, mas como já ia buscar o produto miraculoso,
afastei-me dizendo: - Ó senhor Silva, eu só espero que a Santa Quitéria
não se esqueça de si, e que lhe dê muita saúde e muito mais juizinho.
Só vi a enorme barriga a balançar aos soluços ao som do seu simpático
sorriso.
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“A conversa e a serra”...
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corria para avisar o meu pai que trabalhava no cais: - Ó pai, ó pai, o Sa-
lazar vem aí. O Salazar vem aí. – Cala-te rapaz. Cala-te. Não te ponhas
a gritar dessa maneira. Tu és parvo ou quê? Ficava de boca aberta com
tamanha admoestação. Eu sabia que passados dez minutos vinha outra
locomotiva com uma carruagem com o presidente do Conselho de Mi-
nistros. Quantas vezes vi este filme. Até já sabia, apesar da minha pouca
idade, que a primeira locomotiva era por causa dos atentados. Coitados.
Se houvesse uma bomba eram eles que iam à vida. Não gostava nada
desta ideia. Depois continuámos com a história dos dois chauffeurs de
praça, o senhor Torres e o senhor Ventura. Para evitar complicações, o
Salazar, que ia à vila muito cedo para assistir à missa, viajava alterna-
damente num carro ou no outro, pagando sempre do seu bolso. Bom,
às tantas, com a história da honra e da educação que muitos ainda van-
gloriam desse passado, o detentor da chave da capela do Santíssimo
Sacramento do Vimieiro contou que um dia não fez o que o pai lhe tinha
mandado fazer, presumo que foi regar o milho. – Ó senhor doutor, o
meu pai nunca me tinha batido, a minha mãe era dia sim dia sim, mas
o meu pai não. Quando o vi a empunhar um valente vime perguntei-lhe
surpreendido: - O pai vai bater-me? – Não! Vou dar-te educação. Demos
uma gargalhada em conjunto. – Outros tempos. Outros tempos. Dizia o
velhote que nunca fala. A conversa continuou e as histórias foram tantas
que davam para um livro de uma hora e meia a duas. Um livro único
que se desvaneceu após a refeição. Há livros assim. Só se escrevem uma
vez no ar saudável de uma agradável confraternização. Depois fui ver o
São Bartolomeu. Mais conversas, mais histórias, mais recordações, mais
emoções, mais poesia, mais vida, mais alegria, até me perder nos confins
longínquos da serra onde já não há praticamente ninguém. Numa aldeia
isolada encontrámos a Isabel, uma velhinha simpática, sem rugas, que,
agarrada a dois paus e caminhando com muita dificuldade, conversou
com um prazer difícil de descrever. A certo momento disse: - Este ano,
graças a Deus, ainda não houve lume. Há anos, por detrás aqueles mon-
tes, está a ver, houve um grande fogo. Morreram muitos bombeiros e
uma criança. Malditos. Deviam ser presos. Se fosse no tempo do Salazar
nunca mais viam sol e nem lua.
Quem diria que no fundo da serra a conversa da hora do almoço conti-
nuaria à volta de um tema considerado tabu. Não era a pessoa política
que estava em causa, mas sim os valores e os princípios que norteavam
as pessoas, que foram contemporâneas de alguém, como podiam ser de
outro qualquer.
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“Santa Margarida”...
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à chuva, veja lá senhor doutor! – Tem toda a razão. Diga-me uma coisa,
pelo que vejo o senhor é mesmo um especialista no arranjo do andor.
– Claro que sou. Faço isto há trinta anos! O senhor doutor tem que vir
amanhã. Ao meio-dia é a missa e depois realiza-se a procissão que dura
no máximo meia-hora. Hoje à noite há baile. Quer vir até cá? Sorri. A
azáfama era mais do que evidente com as mulheres a ajudar. Uma delas
cortava a verdura de forma particular. A minha mulher perguntou-lhe: -
Até parece que está a cortar couves para o caldo verde! Deu uma risada
e explicou que era para tapetar o chão em cima do qual iriam colocar as
flores. O senhor dos arranjos estava verdadeiramente entusiasmado com
a sua tarefa. Falava pelos cotovelos, comentava e dizia disparates que, à
partida, já estavam desculpados pela santa. Uma delícia. Expliquei à mi-
nha mulher que a Santa Margarida, protetora das grávidas, tinha debaixo
dos pés o diabo. – Não é o diabo, é um dragão. Respondeu o meu ami-
go. – Eu sei, personifica o diabo que a engoliu e que foi forçado a vomi-
tar a santa por causa da cruz que transportava. – O diabo ou a sogra! Às
vezes as sogras são piores do que o diabo. – Quem fala assim das sogras
é porque tem uma que é boa. Disse-lhe. A senhora que cortava verdura
para o “caldo verde” disse: - Ele não tem e nunca teve sogra. É solteiro.
A minha mulher desbocou-se e perguntou-lhe: - Mas ninguém o quis?
– Eu é que não quis nenhuma. A mais velha, que estava de costas para
o arranjador, debruçada sobre a gamela onde pairavam flores, e a fazer
contas ao dinheiro que tinha acabado de tirar da gaveta, comentou em
surdina e numa voz arrastada. – Aaaaai que é padeiroooo. Aaaaai que é
padeiroooo. Olhei para a senhora e perguntei-lhe: - Desculpe. Mas ele
é padeiro? – Não. Sorriu. - É decorador. Só depois é que entendi a tirada
da velhota cheia de malícia.
Adoro a Santa Margarida, talvez por causa da minha mãe que se chama-
va Margarida.
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“Santas Combas”...
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“Serra”...
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“Maçãs secas”...
Tento descansar sempre que posso. Não é que o corpo faça muita ques-
tão nisso, e se o faz é porque não me recordo bem do que já fui. O en-
velhecimento tem essa particularidade, faz com que nos adaptemos com
mais facilidade ao momento presente, ao mesmo tempo que nos ajuda a
esquecer o que foi o passado.
Fingir é a arte de viver. Eu vou nessa, sempre é mais confortável e saudá-
vel. Fingir é a forma mais delicada de alimentar uma alma faminta.
Faço o que posso. Leio, escrevo, observo, passeio, meto conversa com
qualquer um, visito velhos locais, entro em templos silenciosos, subo
aos montes, delicio-me com o ondular de ribeiras e rios, descubro os
segredos de nuvens que mais parecem sereias, fujo às recordações de
uma sociedade injusta, fria e muitas vezes feia, e descanso ao deambular
nas sombras esquecidas da vida. Se me sabe bem? Sim, e cada vez mais.
Nesta onda de repouso ainda consigo adquirir uma ou outra obra que
me seduz pela sua beleza, carinho, arte e sentimentos escondidos. Des-
cansar é isto mesmo, viajar sem sentido e amar o que é devido. Não
preciso muito mais, é o efeito da lentidão imposta pelo envelhecimento,
como a querer travar o futuro certo e escuro.
Hoje, colecionei um conjunto de pequenas histórias, aparentemente
sem grande valor, mas que representam a essência da vida. Quem diria
que uma ida a uma feira do queijo teve como objetivo escondido ver
se encontrava a senhora que no ano passado me vendeu fatias de maçã
secas. Entrei, vasculhei e nada.
Ainda disse: - Este ano não está a senhora que nos vendeu as maçãs se-
cas. Comecei a imaginar o que é que lhe teria acontecido. Mais uma vol-
ta, e eis que de repente vi frutos secos. Olhei e vi os pacotes desejados.
Ainda me tentou convencer para levar também figos secos, mas recusei.
Não lhe expliquei a razão. Comprei dois pacotes. Sorriu agradecida e
disse: - É a minha primeira venda. Fiz de conta que não ouvi. Aviados fo-
mos para o carro. Começámos a mastigar rodelas atrás de rodelas. Uma
delícia. Parecia que estávamos a comer tremoços.
Ainda era cedo. O tempo parecia ter entrado em descanso das naturais
"febreiradas". Quando demos conta já estávamos perto do cume da ser-
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“Leão”...
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"Transumância"...
Bolinei. Acabei por parar em Castro Daire. Senti sede e alguma fome.
Passeei e vi que havia qualquer coisa no ar. Ótimo. O quê não sei. Pen-
sei. Passei por uma pequena frutaria onde belas e sedutoras cerejas pis-
caram o olho. Meio quilo que mal deram para meia hora de descanso e
de conversa numa esplanada. Beber uma cerveja fresca e comer cerejas
é muito melhor do que comer tremoços. Fica o registo. Depois fiquei a
saber que havia um festival, iam passar rebanhos a testemunhar a tran-
sumância de velhos tempos. Olhei para o relógio, fiz os meus cálculos
e concluí que ia ter a tarde ganha. Sem saber, acabei por assistir a um
espetáculo único.
A transumância é um fenómeno que se perde na noite dos tempos, des-
de que o homem começou a pastorear levando os animais nesta altura
do ano a pastar nas montanhas. Os percursos variam com a região. De
acordo com o que li, estava perante a última rota da transumância em
Portugal. Os rebanhos são levados entre o São João e o São Pedro para
Montemuro onde a fartura do pasto espera pacientemente por tantos
animais. Permanecem aí até ao São Bartolomeu.
Recordo que quando era pequeno seduzia-me a passagem de rebanhos
à minha porta, estreita rua numa zona pobre e escondida. Inúmeros ani-
mais arrebanhavam todo aquele espaço, com muito barulho, balidos
quentes e às vezes furiosos, acompanhados pelo ladrar dos cães pastores
e dos berros e assobios ensurdecedores de homens e até de algumas
crianças. Fazia-me enorme confusão a passagem de tantos rebanhos.
Perguntava quem eram, de onde vinham e para onde iam. - Pastores,
que vêm das suas terras para irem até à serra. - Serra? Qual serra? - A da
Estrela. - Mas é longe, não é? - É. Mas têm que ir. - Por onde é que vão?
Pela estrada? - Não. São velhos caminhos que só eles sabem. Aprende-
ram com os pais. Encurtam o trajeto passando por locais remotos e de
difícil acesso. - E fazem isso todos os anos? - Fazem. É a transumância. - É
o quê?! - Transumância! Claro que tive de pedir explicações sobre esta
nova palavra que aprendi muito cedo. Todos os anos, por esta altura, já
sabia que ia ver a passagem de rebanhos. Entretinha-me a vê-los e con-
seguia explicar aos outros que se tratava da transumância. Não é preciso
dizer o espanto que eu provocava quando dizia esta palavra.
Hoje, fui atrás do Narciso, um cavaleiro vestido a preceito que indicava
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
Saí de casa com o pretexto de dar uma pequena volta a fim de esbarrar
em algo desconhecido, o que é um pouco difícil devido ao facto de
conhecer relativamente bem esta zona. Sei que é possível, mesmo que
tenha passado vezes sem conta por caminhos já calcorreados. Só preciso
estar atento e deixar que o acaso entre em cena.
Virava em cruzamentos sem saber onde iria parar, até que vi uma placa
indicativa de monumento. Pensei: - Aqui está um bom pretexto. Vou ver
a estação rupestre de Molelinhos. Sabia da sua existência há muito tem-
po e da recente "inauguração".
O tempo oscilava entre a chuva tocada a vento e um sol momentane-
amente radioso que se escondia com vergonha sempre que as nuvens
pesadas passavam por cima de mim. Andei até chegar à bifurcação final.
- Vá lá, desta vez a sinalética permitiu-me chegar até onde queria sem
ter de pedir orientações suplementares. Entrei num caminho de terra
batida, orlada de poças de água e de muitos ramos partidos, sinais de
tempestade recente. Não fiquei inibido, estou habituado a meter-me em
caminhos muito piores. À medida que circulava sentia ao meu lado a
habitual "indignação" por andar naquelas bandas. Não foram as palavras
que denunciaram o seu pensar, mas o silêncio. Expliquei-lhe do que se
tratava e respondeu que já tínhamos visto. - Vimos, mas não foi esta. Não
disse nada como esperava.
Lentamente, embrenhei-me na floresta silenciosa a qual me transportou
ao passado com uma facilidade incrível, como se estivesse a conduzir
através da estrada do tempo e não de um caminho de terra batida. Sabia
ao que ia e sabia o que iria encontrar. O ar era o mesmo e as forças da
natureza também se mostraram naqueles tempos como agora. O recorte
da serra, que se desenhava mesmo em frente, antecedido por vales de
pequenos riachos e ribeiras, não deviam ter sofrido qualquer alteração.
Uma espécie de altar dedicado a um deus pagão.
O recorte do espaço, a luminosidade da tarde, o vento que assobiava e
o mais odoroso silêncio que já senti devem ter encantado e despertado
as mesmas sensações em almas que por ali andaram no passado. Olhava
para os lados como se estivesse à espera de ver alguém vindo da beleza
do ventre do tempo.
Queria ver as pedras. Não consegui. Um tronco de um pinheiro cortou
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
“Desejo silencioso”...
Por vezes evito escrever sobre certos temas, não porque tenha receio;
julgo que já escrevi. Procuro os textos e não encontro. Chego ao ponto
de jurar que escrevi. Vejo-os com tanta limpidez. Procuro-os mais uma
vez e não encontro. Como é possível? A memória atraiçoa qualquer um,
só pode, ou, então, são textos escritos na própria memória à espera de
saírem para o mundo das letras, das frases, da fantasia, para o espaço
onde vivo e esqueço. Gosto de provocar a minha memória. Desafio-a a
todo o momento, indo aos confins da minha existência, onde tudo se ba-
ralha, e onde muitas coisas sussurram sons que não entendo. Vejo ima-
gens muito coloridas, cores que não encontro, brilhos diferentes e um
calor suave. O frio não existe. Curioso, não consigo recordar ambientes
frios e cinzentos da minha primeira infância. Até as doenças eram quen-
tes e coloridas; a febre e os exantemas andam sempre de mãos dadas.
Quando me recordo dos olhares e dos corpos dos mortos sinto que não
eram frios, nem feios e nem me causavam medo.
Recordo um dia de verão. Uma manhã rica de sol e cheia de calor muito
agradável. Brincava enfiado dentro dos meus calções. As sandálias eram
leves e deixavam-me correr velozmente pela estrada. Os carros não pas-
savam. Só de tempos a tempos, buzinando sons que não conseguiam
apagar o rosnar violento dos motores. A lambreta do meu vizinho tinha
um som mais feminino. Conhecia aquele som à distância. Quando ouvia
corria para casa do Chico. Gostava de brincar com ele. Uma espécie de
homem dos setes ofícios. Vendia jornais, tinha altifalantes para usar nos
bailaricos, montava casinhas e monumentos de papel que recortava com
uma perfeição incrível. Às vezes oferecia-me uma ou outra. Uma vez
ofereceu-me a Torre de Belém recortada em papel. Adorava-a, porque
julgava - como Jesus tinha nascido em Belém-, que a sua terra tinha a
mais bela torre de mundo! Passava horas de criança a olhar para aquela
preciosidade.
Um dia, o Chico chegou na sua velha lambreta.
- Onde foste Chico?
- Fui ver onde caíram os aviões. Eu tinha ouvido que vários aviões ti-
nham chocado em pleno ar. - Foi uma tragédia. Disse o meu pai. Morre-
ram oito pilotos. Chocaram uns com os outros em pleno ar.
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As minhas paisagens
Nesse dia, uma manhã cheia de sol muito brilhante, em que espairecia
um calor muito saudável, o Chico contou-me tudo o que viu no local
do acidente. Ouvi-o atentamente, até que me disse: - Queres ver uns
pedaços dos aviões? - Pedaços, Chico? - Sim. Enquanto dizia isto retirava
da lambreta alguns fragmentos cinzentos de metal. - Toma! Se quiseres
podes ir mostrar ao teu pai. Levei-os com alguma dificuldade e sem
perceber muito bem o que tinha acontecido, porque nunca tinha visto
um avião ao perto. Sabia que andavam no ar, mas era a primeira vez que
tocava no pedaço de um. Entrei em casa e mostrei aos meus pais. Olha-
ram-me e disseram: - Vai entregar isso ao Chico. Não consegui entender
a forma como se expressaram. Só sei que senti um arrepio de frio. Foi a
primeira vez que me recordo de ter sentido frio. Coisa esquisita, pensei,
o dia está tão lindo e quente. Mas senti frio. Presumo que é a memória
mais antiga que tenho de ter sentido frio num dia quente e brilhante. En-
treguei os pedaços ao Chico. Depois fiquei com vontade de ir ver aquele
espaço. Vezes sem conta estive para ir ao local. Nunca perguntei a nin-
guém onde tinha ocorrido o acidente. Não sei a razão. Hoje, sem dizer
nada, deixei-me ir pela estrada ajudado pelo tempo. Um desejo escondi-
do, com quase sessenta anos, obrigou-me a ver o local que sempre quis
ver quando tinha apenas quatro anos. Encontrei-o sem perguntar nada
a ninguém. Um desejo silencioso. Estive no espaço da tragédia durante
alguns momentos e recordei muitas coisas. O dia de inverno, frio, ficou
subitamente quente. Senti o seu sabor. Algo diferente daquele dia quente
em que senti frio. Hoje, num dia muito frio, senti um suave calor.
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“Vazio”...
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“Bordado de Tibaldinho”...
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“Serpente”...
Sempre ouvi dizer mal das cobras. Existe algo de comum à quase totali-
dade das pessoas, uma aversão natural e irritante a este tipo de animais.
Rastejam, são silenciosos, metem medo, causam transtornos em muitos
de nós e são eivados de maldições que se perdem na noite dos tempos.
Não há civilização que não as tenham em lugar de destaque carregadas
de profundos simbolismos. Seres estranhos e misteriosos sem dúvida.
Desde pequeno que ouço dizer mal destes animais, ligados ao diabo, à
mentira, à traição e ao mal. Não sei se a minha aversão é constitucional
ou adquirida, às tantas tem origem em ambas.
Lembro-me da primeira vez que vi uma, era pequenino e foi "atrás dos
quintais". Era muito grande e tinha sido morta por alguém, a cor era
mista, amarela e preta. Ocupava toda a largura do caminho. Parei, olhei
e fiquei um pouco incomodado, mas não tive receio. Saltei por cima e
fiquei a olhá-la. Não recordo bem o que senti, um misto de surpresa, de
satisfação e de medo, não fosse ela estar viva. Cheguei a casa e contei
a minha experiência. Nunca mais esqueci este episódio e, sobretudo,
a influência que me provocou, algo de estranho. Mais tarde, talvez nos
dois anos seguintes, ao caminhar em cima de um carril, em pleno ve-
rão, tentava bater o meu recorde pessoal sem cair, quando fui alertado
pelo funcionário que vinha atrás para não parar. - Não pares e não olhes
para trás. Fiquei com curiosidade em ver o que se estava a passar, mas
obedeci face à voz autoritária. Ouvi uma pancada súbita no carril, um
som intenso de metal contra metal. O meu vizinho, funcionário da CP
que ia inspecionar o disco, levava o martelo da praxe e deu uma valente
martelada numa pequena serpente que vinha, também, sobre o carril
atrás de mim. Conhecedor da bicharada, disse-me que era uma víbo-
ra. Sem mais, sacou da sua navalha portuguesa e cortou-lhe a cabeça.
Explicou-me que quem tem a cabeça da víbora tem sempre sorte. Fiquei
com inveja e estive tentado a pedir-lhe, mas não fiz. Era a segunda vez
que via uma cobra, mas igualmente morta. Depois, com o tempo, vi
algumas, habitualmente pequenas, como uma que se lembrou de nadar
ao meu lado ao longo do rio. Mantive a calma e fiz todos os esforços por
nadar mais rápido do que a bicha, pequena, nervosa e negra, que nada-
va à distância de um braço. Suspirei de alívio quando consegui atingir
a margem. Vi muitas, sempre pequenas, verdes, amarelas e pretas. Sem-
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As minhas paisagens
pre que me cruzava com elas ficava na dúvida sobre quem ficava mais
assustado, se as cobras se eu. Acabei por concluir que elas tinham mais
receio. Só matei uma, e por acidente, foi há dois dias em viagem à serra.
Uma cobra pequena atreveu-se a cruzar a estrada e não tive tempo de
evitar o atropelamento. Olhei para o retrovisor e via que a tinha mata-
do. Perdeu-se aquela beleza de serpentear. Nunca me tinha acontecido
nada semelhante. Já me cruzei com algumas na estrada, mas esta foi a
primeira vez que atropelei o único animal amaldiçoado por Deus. Nun-
ca entendi muito bem o papel da serpente no livro sagrado. Ou melhor,
até consigo entender, afinal foi o único animal que libertou o homem
dando-lhe a conhecer o bem e o mal. Se não fosse a serpente ainda hoje
estaríamos a viver na ignorância da existência, talvez mais felizes, mas
nunca humanos, mortais candidatos a deuses. A serpente é diabolizada
por representar a sabedoria, o conhecimento e o atrevimento face aos
desejos de Deus. Não há cultura e não há civilização que não tenha
construído os seus mitos e explicações à sua custa. Na nossa, na Bíblia,
traduzida por São Jerónimo, no século IV, podemos ler, "Eritis sicut Deus,
scientes bonum et malum", a frase da serpente quando convenceu Eva
a colher o fruto proibido: "Sereis como deus, ficareis a conhecer o bem
e o mal".
Afinal, se não fosse a serpente o que é que seríamos? Seres humanos?
Duvido muito. E Deus? Viveria triste, sozinho, sem ter ninguém que o
adorasse ou conhecesse...
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“Brinquedos”...
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"Novelo de vida"…
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As minhas paisagens
cabeça a trabalhar como deve ser. - Pois! Como quem diz, tens razão,
mas por isso mesmo é que ando cansada de viver. Mais uns momentos
de conversa, assuntos de outros tempos, uma quinta onde cresceu, viveu
e trabalhou. Despediu-se. A casa não ficava muito longe, segundo disse.
Espero que o seu fim esteja, apesar de tudo, muito mais longe.
No dia de Santo António vou lembrar-me da Maria dos Anjos, um deli-
cado novelo de vida.
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Salvador Massano Cardoso
"Sol na serra"...
É bom viajar entre dois pontos através da linha mais longa e demorada.
Um bom pretexto para regressar e encontrar o que de outra maneira
nunca acharia. Foi o que fiz hoje de tarde. Subi a serra por caminhos
bem conhecidos e depois de a cumprimentar e recordar tempos que já
lá passei desci a outra vertente, tortuosa, longa, bravia e vazia de gente.
Apenas os verdes baloiçavam nas íngremes e silenciosas encostas, cha-
mando a atenção para os vales profundos, onde se escondem almas e
pensamentos perdidos, uma espécie de vale dos reis.
Não vi ninguém, não me cruzei com ninguém, apenas o sol me fez com-
panhia. Aldeias vazias, descoradas pelo tempo, sussurravam encantos e
lendas escondidas. Ouvi-as sem entender, via-as com pena de as per-
turbar, e não lhes falei. Para quê? Não gosto de inquietar o mundo que
me rodeia. Prefiro passar pelo mundo sem incomodar, sem falar, apenas
ver e ouvir o que a natureza e a imaginação me convidam a pensar e a
fazer. Penso na simplicidade, na transitoriedade da vida, no encanto de
um momento de solidão e, sobretudo, na beleza do desconhecido, onde
qualquer um se encontra mesmo sabendo que não exista.
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As minhas paisagens
Gosto mais de viajar para o norte e leste do país, onde encontro sempre
coisas novas, mas também me regalo com as velhas. Pensei, é raro andar
para as bandas do litoral. Hoje vou nessa direção, pode ser que consiga
encontrar motivos ou um verso para compor à noite.
Ao chegar a Mortágua guinei para a direita. Massena teve que recuar
no Buçaco e passou por estas bandas em direção a Coimbra. Na altura
eram descampados, pedras soltas e revoltas. Hoje, um tapete gigante de
eucaliptos tapa aqueles vales e outeiros. Se ainda houver algum soldado
francês perdido não vou conseguir vê-lo. Pensei nisso, porque desejei
vê-los na esquina de alguma curva. Que raio de ideia, o que é que eu iria
fazer ou dizer? Devíamos ficar os dois assustados, talvez mais ele do que
eu. Andar por estes lados obriga-me a rememorar e a "recordar" certos
acontecimentos, como se houvesse qualquer coisa a puxar para o pas-
sado. Esbarrei em Águeda onde deambulei pela cidade enfeitada com
coloridos chapéus nas ruas lembrando-me o quanto custa estar ao sol
e quanta falta faz a chuva. Não muito longe as ondas de fumo impreg-
navam as encostas da serra do Caramulo, da qual fugi como o diabo da
Cruz, embora sentisse uma nostalgia por não poder calcorreá-la como
faço todos os anos. Retive vários apontamentos e algumas frases dese-
nhadas na coluna onde está colocado o busto de um grande homem, Al-
bano de Mello, que disse um dia no Parlamento, "A minha terra é a mais
linda de Portugal". Sorri. Porque é uma frase que muitos de nós é capaz
de dizer a propósito da sua terra. Ser-se linda é uma questão de olhar,
não através do sentido físico da visão, mas através dos sentidos da alma,
onde olhos invisíveis veem, ouvem, falam e encantam ao mesmo tempo.
Os restantes breves dizeres da coluna foram suficientes para quebrar
laços de desconhecimento. Deste modo ficámos formalmente apresenta-
dos, esperando retomar a conversa um dia destes. Em seguida deixei-me
guiar pelo evoluir confrangedor das colunas de fumo, que iam evolando
sempre do meu lado direito. Acabei por visitar Oliveira de Frades. Não
conhecia. Gostei da vila, arejada, planeada, limpa e florida, um peque-
no encanto que delicia quem a visita e que tranquiliza quem por lá vive.
Tive pouco tempo para a desfrutar, mas, mesmo assim, deslumbrei-me
com lindas janelas quinhentistas e oliveiras aparadas e acariciadas aos
pés por belas flores fazendo lembrar santas alvo de qualquer devoção.
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Salvador Massano Cardoso
Não por a vila ser Oliveira, já que o seu nome provém de Ulveira, la-
meiros, locais onde abunda a ulva, terrenos ricos que devem ter atraído
quem deles necessitavam para viver. O tempo acasalou os dois nomes. E
procriaram. Depois regressei a casa, passando por velhos locais bem co-
nhecidos, hoje tristemente mergulhados num estranho nevoeiro de fumo
que amarelecia os campos, as florestas e as almas, recordando tragédias,
tragédias que não se esquecem.
Uma viagem à volta do fumo.
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As minhas paisagens
"Manhã"...
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"Navegar"...
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“Locais sagrados”...
Tudo tem uma explicação, tudo tem um nome. Conhecer a origem das
coisas ou o porquê do nome seduz qualquer um. Às vezes é fácil, existe
documentação ou elementos que expliquem os factos ou as designações,
outras vezes não é possível o que leva a investigar a origem. Mesmo que
a investigação não corresponda à realidade pode ser sempre fonte de um
novo mito. Os próprios mitos ou lendas são, por vezes, usados para lá
chegar. É uma área das mais adoráveis, misturar lendas e investigação,
criando e recriando novas verdades e interpretações.
Diz o investigador que as aberturas de todos os dólmenes do vale do
Mondego estão viradas em direção à serra da Estrela. Quando foram
construídos, há seis mil anos, a estrela Adelbaran, grande, tremelicando
como só um coração do universo sabe fazer, enviando uma luz averme-
lhada, nascia por detrás do maciço rochoso convidando os homens e
animais a beber a vida que brotava naquele majestoso altar. O sentido
religioso do homem compreendeu que o sagrado se deve pagar com o
sagrado, o que fez com que construíssem os seus monumentos em locais
tão belos e suaves.Conheço alguns desses locais, próximos e remotos,
autênticos portais do tempo, estranhos altares que nos ensinam a agrade-
cer a vida e a beleza, uma simbiótica relação que devem ter descoberto
há muito. O silêncio aquece a alma, o ar é o mesmo, os espaços circun-
dantes não devem ser muito diferentes aos nossos olhos, os deles e os
meus, e as pedras aquecidas pelo sol do verão devolvem o mesmo calor
provocando sensações idênticas. Tudo em redor se move num silêncio
adorável, as cores são as mesmas, sentaram-se nos mesmos locais, fala-
ram, comeram e amaram naqueles templos naturais. Não os ouço, mas
não é difícil adivinhar as suas presenças. Busco-os sempre que posso, e
quando não posso tenho a solução, para isso basta-me recordar as sen-
sações que têm produzido ao longo do tempo.
É o que estou a fazer neste momento, viajar no tempo próximo e no tem-
po remoto, o meu tempo e o tempo deles, nos mesmos locais, sagrados,
templos, onde consigo compreender o sentido da vida acasalado com
a beleza. Locais sagrados, com nomes, com significados, convidando
à criação de novas lendas que permitam perpetuar a vida e a beleza. É
isso, o único sacrifício que pedem é um nome e que os perpetuemos em
lendas, afinal, o seu equivalente a vida e beleza...
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As minhas paisagens
Conheço o sol há muito tempo, muito para mim, claro, porque para ele
eu nem valho um espirro de uma formiga. Mesmo assim, já o conheço
suficientemente para dizer que pode ser louco, irrequieto, tímido, mau,
meigo, mortal, amoroso, triste, enfim, nunca vi nada na minha vida pa-
recida com as suas múltiplas facetas. Bem mais previsível é a sua sombra
da noite, a lua, sempre discreta, fria, com laivos permanentes de uma
enigmática tristeza, apenas suspensa durante belos momentos em que,
cheia que nem um odre de vinho, se levanta no horizonte encharcando
o espaço de um abraço acobreado, despertando e transformando seres
que só ela conhece.
Agradeço ao sol algumas das mais belas e inesquecíveis imagens grava-
das com raios tépidos no corpo e na mente de uma criança. Ansiava por
esta altura do ano, embora não tivesse ainda muitas memórias de outros.
Imaginava que fora sempre assim.
O sol ensinou-me a compreender o sentido de muitas palavras e as esta-
ções do ano. Afinal de contas não eram as velas do bolo do aniversário, e
nem as prendinhas, que marcavam um novo ano, mas sim a repetição de
um belo ritual, o prolongar do dia, o corar do céu ao final da tarde, o ir
para casa mais tarde e as brincadeiras na laje de cimento aquecida pelo
calor da tarde. Quando desaparecia, atrás da serra, ficava a saboreá-lo
através do calor que irradiava do chão, onde desenhava, com um giz
pifado da escola, estradas tortuosas por onde teriam de andar as caricas,
imitando os ciclistas, como se fosse uma volta a Portugal. Tinha de ter
cuidado ao disparar com o dedo médio, porque se saíssem das linhas
traçadas tinham de voltar ao início. O sol ficava intrigado com o jogo,
mas quando ia perguntar o que é que eu estava a fazer, já a serra o tinha
escondido. - Deixa lá, amanhã digo-te. Quando começava a desenhar
novamente, no dia seguinte, ao final da tarde, novos trajetos para o meu
jogo, o sol, curioso, olhava-me com esperança de saber o que estaria a
fazer. Quando começava a jogar, a serra começava a tapá-lo e ouvia-o
dizer muito à pressa: - O que é que estás a fazer...? - Amanhã digo-te.
Entretanto, deitava-me no cimento e gozava com aquele calor que ele
me deixava, debaixo de um céu muito vermelho que pintava as minhas
pistas, as minhas caricas, dando uma cor muito especial ao meu jogo.
Hoje, o sol despertou de uma letargia, de uma depressão prolongada,
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As minhas paisagens
"Miserável sentir"...
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As minhas paisagens
"Esperança"...
Não consigo saborear o mundo. Cada vez está mais frio, mais distante,
mais desesperante, um mundo de aflição, um mundo de dor, um mundo
que é um estupor. Todos os dias ouço vozes enlouquecidas, vozes sem
esperança, vozes de sofrimento, vozes de mentiras, vozes que provocam
feridas, vozes sem som.
Todos os dias morro, morro às mãos de vilões, morro sem acreditar no
futuro, morro de sono, morro sem sonhos. Não entendo o mundo, não
entendo os homens, não entendo nada. Fujo, falo e empenho-me de for-
ma suicida no trabalho. Afogar no meio de ondas de trabalho, ondas de
pessoas sofredoras, que desesperam, que cirandam sem norte, pessoas
que anseiam por morrer na tranquilidade da praia da vida, é procurar
viver e tentar manter a esperança.
Esperança? Sim, esperança sem cor, esperança cheia de dor, uma estra-
nha esperança à procura de amor.
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"Imagem tatuada"...
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As minhas paisagens
"Conhaque de Napoleão"...
O dia não foi muito complicado, começou com a aula habitual, frequen-
tada por alguns alunos corajosos, que não se importam de levantar cedo
à segunda-feira, alunos que me confortam pela atenção, sempre os mes-
mos, e que irão acompanhar-me ao longo do ano. Ministro conhecimen-
tos, desperto ideias e estimulo-os com as minhas naturais provocações.
Só espero que daqui a muitos anos ainda se lembrem de algumas tiradas,
análises, críticas, observações e as naturais provocações. Se assim acon-
tecer ficarei feliz, esteja onde estiver, recorde ou não que ainda existo.
Dou-lhes tudo o que posso dar, dou-lhes tudo o que gostaria que me
tivessem dado. Professar é isso mesmo, amar quem nos ouve e quem nos
acarinha, mesmo no silêncio do início de uma manhã de segunda-fei-
ra. Depois, nada de especial, ver e ouvir pessoas, cumprir com deveres
profissionais e ouvir algumas histórias. Ser-se médico é ser um canavial
onde os seres humanos podem lançar os seus sons, angústias, dores, es-
peranças, desejos e sofrimentos. O dia de um médico é uma espécie de
vulcão que subitamente se transforma na mais bela, suave e encantadora
praia desejosa de ser amada por um mar silencioso e cheio de amor ou,
então, cair no mais doloroso inferno, incompreensível e amargurado. Foi
o que me aconteceu. Simpatia, amizade, felicidade, alegria e, de repen-
te, a dor estampada na expressão e nos sentimentos. Tragédias a roubar o
meu encanto e felicidade. Tive o condão de as ouvir e de as acompanhar
no seu sofrimento. Não consigo habituar-me à dor, sobretudo à dor da
alma, porque a do corpo é sempre mais fácil de aliviar. No entanto, pas-
so a sofrer, e só quero esquecer, mas não consigo. Aprendo novamente o
que já sei, recordo o que já sofri e atemorizo-me com o que ainda tenho
de sofrer. O doente é o mestre do meu sofrimento e da minha angústia. E
como se não bastasse tudo isto, o tempo - maldito tempo -, encarrega-se
de morder os calcanhares e desbotar a alma. O final da tarde fez-se na
escuridão da época, com pequenos sobressaltos, desde a desconfiança
da autoridade tributária, assustadora e ameaçadora, ao estranho com-
portamento de pessoas, cujo caráter fere a bondade humana. Mas a vida
é mesmo assim. A compensação chegou ao jantar com as travessuras
dos mais novos. As suas tiradas, criatividade, amor, ternura, beleza e
imaginação, conseguem apagar o que nos ofende, aterroriza e maltrata.
Sons de criança, imaginação de criança e responsabilidade de criança
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Salvador Massano Cardoso
são o melhor lenitivo para qualquer alma inquieta, e a minha anda mais
do que inquieta, anda cheia de temor e de dor.
Descanso, penso, analiso e escrevo. O dia está a acabar. O Courvoisier
ajuda-me a aquecer a alma e obriga-me a pensar que não me importaria
de acompanhar o exílio de Napoleão, não por ele, mas pela ilha, longe,
longínqua, isolada, mergulhada no silêncio frio do Atlântico e pelo calor
do delicioso conhaque que o acompanhou. Assim termina uma vulgar
segunda-feira de um outono triste e escuro.
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"Escrever à noite"...
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As minhas paisagens
"Calor"...
Não chove. O sol anda por aí, sem saber o que fazer e o que dizer.
Deixa-se andar ao sabor da brisa do outono, dos sonhos dos mais novos
e das saudades dos mais velhos.
Quer brincar, mas depressa arrepende-se porque há quem o chame para
junto de si para que possa aquecê-los. É tempo de começar a reaprender
a procurar o calor, o calor de uma conversa, o calor do passado, o calor
de uma lembrança, o calor de uma lareira, o calor de um sol desnorte-
ado, e envelhecido pelo círculo do tempo, o calor de um bom vinho a
afagar a garganta sedenta e seca de castanhas douradas, o que interessa
é sentir calor e libertar o pensamento quente, quente de ideias novas,
feitas de velhas lembranças.
O que interessa é aquecer quem necessita de calor, calor da vida, calor
de esperança ou calor de amor. Sentir calor no silêncio de uma tarde
desértica, entremeada por recordações frenéticas, liberta a alma, aquece
o sol desnorteado de uma tarde de outono e justifica a existência, nem
que seja por breves instantes, instantes em que se consegue sentir algum
calor.
Donde é que ele vem? Do sol, da lareira, do vinho, da lembrança? Não
interessa, o que interessa é que me faça sentir bem.
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Salvador Massano Cardoso
"Dia de sol"...
Que belo dia de sol e logo hoje usei o meu cachecol. Tenho de o tirar,
sinto calor e um certo ardor. Calor no corpo e ardor na alma. Não há
medicamento para curar a dor da alma, a não ser amor empacotado em
essências de flor. Não vejo flores, não vejo nada, vejo apenas o sol a
espreguiçar-se num céu azul sem nuvens, nu, sem nada, apenas dançan-
do e cantando como se fosse o dia do juízo final.
Afinal o dia vai ser adiado, porque entrou em cena o safado do diabo.
Reclama para si o dom de ser a fonte do calor, mas não é calor que sinto,
mas sim ardor na alma, um triste ardor provocado por alguém em quem
confiava.
O ser humano é mesmo assim, raivoso e doloroso capaz de trair a con-
fiança vezes sem fim.
O que fazer, entretanto? Esperar pelo fim, porque depois posso respirar e
gritar bem alto, até que enfim!
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As minhas paisagens
"Frio"...
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"Arco-íris"...
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As minhas paisagens
"Anjo-da-guarda"...
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As minhas paisagens
"A mordaça"...
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As minhas paisagens
"Horas de descanso"...
Contei algumas horas esta noite, e meias horas também. Não me diverte
nada contá-las, mas o meu relógio biológico passou a ser comandado
por um oscilar de obrigações que exigem um despertar cedo. Prefiro ou-
vir as meias horas. Levam-me a imaginar a que horas pertencem. Meia
hora passa depressa, e espero pelo tocar da hora. Ponho-me a contar e
começo a fazer cálculos, ainda posso dormir mais um pouco. Hoje é
sábado, pensei, talvez consiga enganar o tempo.
Adormeço, acordo, julgo que durmo, chego a sonhar e descubro que
ando em bolandas sem saber o que fazer do tempo que me cai nos
braços num sábado de manhã. Tempo de conforto, tempo que deveria
ser reparador, mas que acaba por se transformar num estreito e escuro
corredor a empurrar-me para o terror. Fecho os olhos, aproveito o calor,
convenço-me do direito do corpo a repousar, mas as imagens do futuro
assolam-me a mente como se pertencessem a estranhos sonhos.
Fico na dúvida se estou acordado ou a dormir, e estremeço de dor quan-
do me apercebo dos toques que o velho relógio lança em redor. Sons
sem cor. Futuro de dor. Levanto-me. Finjo que não sinto temor. Ainda há
tempo para saborear o amor.
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Salvador Massano Cardoso
"Dezembro"...
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As minhas paisagens
"Última visita"...
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Salvador Massano Cardoso
"Inverno da vida"
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
Aquilo que o homem mais aprecia é uma história. Sempre que ouve a
frase, sabes o que aconteceu, para de imediato, acende as orelhas, fixa
com olhar penetrante o interlocutor e espera, ansiosamente, a narrativa
de uma história. Depois incorpora-a na sua mente, digere-a,armazena-a,
compara-a com outras e, sempre que a oportunidade ou a vontade lhe
surja, conta-a aos outros, nunca da mesma forma que ouviu ou leu, por-
que os filtros de ver e sentir o mundo divergem de pessoa para pessoa.
Por vezes a história sofre alterações, frequentemente enriquecidas, ou-
tras vezes empobrecidas, tudo depende da qualidade do contador. Mes-
mo que acrescente um ponto, o que interessa é que no final a essência
ou a alma da mesma se mantenha bela e pura como no original.
Ao longo da vida tenho ouvido muitas histórias as quais me enriquece-
ram sobremaneira, muito mais do que a literatura dos clássicos ou dos
intelectuais da época. Gosto de as ouvir, são fonte de inspiração, de
formação e de sedução. Quantas e quantas histórias perdidas andam por
aí à espera de desaparecer sem serem ouvidas, desfrutadas e amadas?
Quantas? Muitas. Há um provérbio árabe segundo o qual "cada velho
que morre é uma biblioteca que arde". Partindo desta realidade, seria
interessante descrever algumas páginas da vida dos idosos, sobretudo os
que permanecem em lares, registando algumas passagens das suas vidas
que mereçam ser realçadas e transformadas através da palavra escrita em
pequenos e sugestivos contos para prevenir o seu desaparecimento, en-
riquecer e enobrecer os seus familiares e amigos e todos os desconheci-
dos que gostem e que precisam de saber o que é que os outros viveram,
sofreram ou amaram. São histórias de vida, são descrições reais e não
imaginárias, são coisas contadas pelos próprios, impregnadas de senti-
mentos e emoções, são fontes de ensinamentos, de cultura e de esperan-
ça, são aulas de sabedoria, de cortesia, de amor, de tristeza e de dor, são
as lágrimas e os risos de quem pouco lhes resta de vida, mas que podem
eternizar-se através da palavra escrita enobrecidas por artísticas ilustra-
ções. Faz-se arte, faz-se cultura e eterniza-se a vida através da leitura.
Um projeto que pode ser realizado com eventual grande impacto. Basta
ir às minas de ouro, a lares e a outras instituições onde permanecem fi-
lões inesgotáveis, para escrever, para contar e ilustrar histórias que farão
as delícias da vida de futuras memórias...
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As minhas paisagens
"Lágrimas”...
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Salvador Massano Cardoso
"Contar histórias”…
Quando escrevo tenho por hábito contar alguma história cuja essência
possa ajudar quem lê, despertando sentimentos, provocando emoções,
dar algum significado à vida ou semear esperanças para enfrentar o fu-
turo escondido na indiferença, na traição e na incompreensão, mas, ao
mesmo tempo, prometendo lançar luminosos e amorosos balões de S.
João. Escrever não é complicado e nem difícil. Uma simples observação,
uma frase, um olhar, um comentário, um qualquer tropeção é mais do
que suficiente para acordar a vontade de escrever, um despertar estre-
munhado ou mesmo alucinado. Outras vezes, a vontade de escrever
emerge das profundezas de um estado de espírito que procura o alívio
através do desenho analgésico de palavras escorridas e enlouquecidas,
sequiosas de sol, calor, afeto, amor e de paz.
Gosto de contar histórias pela simples razão de que todo o ser humano
precisa de se alimentar do trigo da vida dos outros. Gosto de contar his-
tórias porque ajudam a aperfeiçoar-nos, dão-nos alguma tranquilidade,
despertam tristeza, provocam alegria e auxiliam a visualizar os nossos
defeitos e virtudes. Gosto de contar histórias e de entrar nas histórias que
conto. Não me é difícil e nem muito complicado, pela simples razão de
que gosto de as ouvir. Não sou diferente dos outros. Ainda bem. Quanto
conto uma história faço com prazer, com humildade, sem preconceitos e
sem outro objetivo que não seja reviver as emoções e os sentimentos que
senti quando a ouvi. Igual a qualquer outra pessoa. Pode haver quem
não concorde com a descrição dos meus sentimentos, observações, aná-
lises e comentários, mas não pretendo ofender quem não se revê nos
mesmos, porque quando escrevo não faço por soberba, vaidade ou su-
perioridade, mas apenas por uma questão de necessidade de contar, de
partilhar e de ajudar.
Gosto de contar histórias, preciso de as contar e se for caso disso posso
escrever apenas para mim. Porquê? Porque preciso de contar histórias e,
sobretudo, de as ouvir, nem que seja as que escrevi...
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As minhas paisagens
Entraram os olhos, olhos que ofuscaram tudo, olhos tristes, olhos inter-
rogadores, olhos que não escondiam a dúvida, o medo e a ansiedade.
A conversa iniciou-se num tom baixo, mais baixo do que é habitual o
que me obrigou a reforçar a atenção, já de si presa ao enigmático olhar.
Pequenos e curtos cumprimentos deram seguimento à pergunta sacra-
mental. Ao responder, de uma forma inquietante, baixou ainda mais a
voz. Tive que fazer um enorme esforço para a entender, mas ouvi, “sou
uma doente oncológica”. “Sou uma doente oncológica”, repetiu. Não
disse nada e procedi ao interrogatório nesse sentido, mas com muito
cuidado. Explicou-me que teve um tumor na mama. Foi operada. Fez
posteriormente o tratamento complementar que é devido nestas circuns-
tâncias. - Mas agora já não está a tomar nada, não é verdade? - Sim.
Agora não tomo nada. - Ótimo, então as coisas estão bem. O exame
continuou. Ao auscultá-la vi, no lugar onde tinha nascido o seu dra-
ma, uma bela tatuagem, uma rosa vermelha com duas folhas verdes a
esconder uma cruz inclinada. Que estranho, pensei, uma rosa tão bem
desenhada a tentar esconder uma cruz inclinada. Interrompi o meu pen-
samento para tentar ouvir os sons cardíacos, mas nem sei se os ouvi
bem, porque quis interpretar aquela simbologia, a beleza e o amor de
uma rosa a querer esconder a cruz de uma vida. Evidentemente que não
podia permanecer naquela situação por mais tempo, embora quisesse
fazer-lhe algumas perguntas. O exame continuou e, no final, disse-lhe
que a reconstrução mamária estava muito bem feita. Explicou-me que
tinham tirado a pele do dorso. Foi então que me atrevi a comentar que
tinha uma bela tatuagem. Sorriu pela primeira vez e desnudou-se o sufi-
ciente para a mostrar. Agora a situação era diferente. Explicou-me que a
tinha feito por dois motivos, para tentar esconder a cicatriz e para gravar
a "cruz da sua vida". Foi a minha vez de sorrir. - Foi o que eu pensei,
tenho de a felicitar, tem uma tatuagem muito delicada, uma pequena
maravilha. Olhou-me e, pela primeira vez, sorriu de uma forma solta,
genuinamente livre, com olhos tranquilos e felizes, dizendo um sonoro,
“muito obrigada”! Despediu-se, primeiro os olhos, depois ela. Ainda lhe
disse: - Desejo-lhe muitas felicidades, e não se esqueça de sorrir, olhe
que tem a mais bela tatuagem que já vi até hoje. Foi então, que os olhos
se voltaram novamente para mim, agradecendo de uma maneira que só
outros olhos podem ver e sentir, mas nunca desenhar, porque para isso
seria preciso saber tatuar uma alma...
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As minhas paisagens
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timos anos ouvia-a rir-se do outro lado sempre que lhe lembrava o santo.
Mesmo no último ano em que fez anos, não deixei de lhe dizer: - Sabes
que dia é hoje? Respondeu-me: - Sei filho. Sei. É dia de São Brás? - É!
Uma pequena gargalhada, ou algo similar, saiu-lhe da garganta como se
estivesse abençoada pelo santo.
Hoje é dia de São Brás. Já não lhe posso perguntar, sabes que dia é hoje?
É o dia do santo, cuja lenda deverá ter sido a primeira, ou uma das pri-
meiras, que fixei e que todos os anos, neste dia, gostava de a ouvir pela
boca minha mãe.
- Sabes que dia é hoje?
Oiço, finjo ouvir, gostava de ouvir a resposta, “é dia de São Brás”.
Entretanto, afago a garganta como fazia em pequeno...
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As minhas paisagens
“Acontecimentos”...
Sou um ser frágil, cada vez mais frágil. A idade é uma espécie de cancro
do vidro capaz de a qualquer momento fazer com que a bela jarra da
vida se esfrangalhe sem lhe ninguém tocar. Os acontecimentos da vida
não me surpreendem muito. Pois não, vejo-os, toco-os e sou capaz de os
sentir. Já vi muito, já toquei em muito, já senti muito.
O pior de tudo é quando os acontecimentos se identificam com a nossa
própria existência. Quando isso acontece reparo que não consigo fugir
e nem consigo afastá-los. Só sei que me parasitam e me consomem de
uma forma dolorosa. A vida passa a assumir outras cores, ou, melhor,
grita sem cor, os sons transformam-se em ruídos e as imagens do futuro
desvanecem-se em manchas negras e disformes. Tudo se altera. Uma
anosmia existencial convida-me a mergulhar numa desejada sonolência.
Tento fugir, não consigo, sou constantemente perseguido por mim pró-
prio, mas ninguém consegue fugir de si mesmo. Tento fugir e encontro
letras, frias, brilhantes, à espera que lhes toque, que as faça dançar, can-
tar, chorar e sorrir. É o que estou a fazer neste momento.
Deixo que os meus dedos saltitem de letra para letra, pressiono-as, umas
com doçura, outras com raiva, outras com dor e outras com amor. Toco
em tantas que todas acabam por saborear e compreender o meu ardor,
uma espécie de louco fervor que só pretende aliviar a dor. Sinto que me
alivia.
Curioso, ainda há pouco senti desejo de não lhes tocar mais, de não
escrever, de não desenhar mais palavras, frases, ideias, poesia, reflexão
ou qualquer tentativa de criação. Agora que lhes toquei, que senti o seu
sabor, que alinhavei algumas frases e regurgitei algumas emoções, fiquei
melhor.
Sim, um pouco melhor. Uma agradável sonolência começou a invadir a
minha alma.
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“Maresia”...
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“Belas peças”...
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“Domingo à tarde”...
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“Bosque sagrado”...
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“Viagem”...
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“Escrever”...
Escrever é um ato delicado que deve ser bem pensado. Escrever não é
lançar palavras nuas, frias e escuras no branco do papel. Escrever é um
ato de sedução, deve ir diretamente ao coração, embora por vezes tenha
de passar pela razão.
Escrever é uma forma de amar que não deve ser utilizada para assustar.
Escrever é a melhor forma de encantar quem está condenado a penar.
Escrever é uma ilusão que ajuda quem vive na solidão.
Escrever é o caminho da perfeição para quem quer se embriagar de emo-
ção.
Escrever é tentar esquecer o mal que atormenta um pobre ser. Escrever é
sonhar, escrever permite afastar o futuro incerto, ausente e sempre duro.
Escrever é descobrir novos mundos e gerar pensamentos profundos.
Escrever é a mais bela das artes capaz de nos levar às setes partes.
Escrever não deve ser arma de arremesso para ofender.
Escrever afasta a morte para quem nasceu sem sorte.
Escrever alivia a dor de quem não sabe o que é o amor.
Escrever é viver.
Escrever é saber.
Escrever é morrer em paz...
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“A maçã da consciência”...
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“Almas douradas”...
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“Ventre da mãe”...
Preciso de viver num mundo diferente, onde possa encontrar outro tipo
de gente.
Preciso de fugir do mundo para o monte escondido e perdido no meio
do ventre silencioso da mãe. Corro pelos vales e montanhas à procura de
lugares únicos, belos e sedutores que me ajudem a compreender onde
posso aliviar as minhas dores.
Encontro lugares únicos, belos e sedutores capazes de guardar os meus
estertores. Sinto que algo me atrai, que me fala, que me encanta, que me
acalenta e que me dá uma sensação de esperança.
São locais únicos, cheios de vida, escondidos na morte da despedida.
São locais belos, cheios de amor à espera de serem fecundados com o
alívio da dor. Corro à sua procura.
Não sei onde estão, só sei que os encontro com muita facilidade ao al-
cance do meu coração.
Uma estranha devoção? Não sei. Só sei que sinto tanta emoção que não
me importaria de morrer ali, naqueles locais onde paira o perdão e a
mais bela paixão.
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“Espirros de alma”...
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"Paixão"...
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"A capela"...
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"Viajar"...
Viajar por Portugal é o melhor que me pode acontecer. Sair de casa sem
destino definido e encontrar locais adormecidos é a melhor oração para
quem tem necessidade de acalmar o coração. Encontro tudo, por vezes
até demais. Encanto atrás de encanto, sedução atrás de sedução e, so-
bretudo, muita fonte de inspiração. É tão fácil. Basta andar e de repente
desviar para locais inesperados. Depois é só esperar, e encontro.
Entrei em ruelas que eram mais apropriadas para carros de bois, e devem
ter sido eles que desenharam aqueles caminhos. No meio de pedregulhos
desnudados apareceram à minha frente duas perdizes. Descaradas, não
se desviaram um milímetro. Caminharam à frente do carro sem medo. Eu
abrandei e fui atrás delas. Belas, encantadoras, frescas e provocantes. A
certa altura, talvez cansadas da minha presença, saíram delicadamente
do carreiro e embrenharam-se nas moitas. Sorri. Continuei a andar e
fiquei deslumbrado com os afloramentos rochosos e o odor de um pas-
sado rico e cheio de histórias. Tudo mergulhado num silêncio humano
delicioso. Até o meu velho amigo, o rio Mondego, corria feliz e puro
como convém a quem não vê e não necessita de seres humanos. Uma
velha ponte, rude, mas com um escudo nacional, impôs-se pela beleza e
nobreza das suas funções a que não era alheio a delicadeza de um deli-
cado cruzeiro. Tudo perdido no meio do mistério. Senti-me em casa. Os
odores eram os mesmos, as imagens já as tinha guardado, o sol aquecia
da mesma maneira e o silêncio devorava-me cheio de prazer. Há locais
que não são estranhos, são locais onde a imaginação já viveu, amou e
morreu. Todo o percurso estava cheio de mistérios, muitos, velhos como
o mundo e novos como os meus sentimentos. São locais sagrados que
teimam em desaparecer. São locais que gostam de falar. Basta estar aten-
to ao vento, à luz, à sombra e, sobretudo, às pedras que guardam no seu
ventre o gérmen da vida e da felicidade. Basta tocar-lhes para sentir o
que guardam, o que viram e ouviram. É fácil ouvir e falar com as pedras,
mais fácil e compreensível do que lidar com os humanos. São sinceras,
são ricas e sabem poesia. Eu sei falar com as pedras. Eu sei como elas
guardam os nossos sentimentos. Guardam-nos porque é a forma que
têm de se alimentar e justificar a sua existência. Os seus ventres vazios,
escavados e sombrios continuam a abrigar as almas de corpos que ali
foram depositados. Sabem tratar com respeito e amor as almas perdidas
que por ali andam e encantam quem sabe falar com elas.
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“Imagem”...
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"Confessar e amar"...
Confesso que fujo por vales e montanhas à procura de algo que sei que
existe e que me pode dar aquilo que julgo merecer, paz, amor e um es-
tranho sossego que só a solidão de certos encontros pode gerar.
Os encontros dão-se a qualquer momento, numa bela escarpa, numa
fraga escondida, na sombra de belos e mudos carvalhos, na imensidão
dos recortes das montanhas e nas conversas com gente humilde, perdida
e ávida em contar vidas.
Paro, falo e estímulo o renascer de histórias sem fim como se fossem
sementes desejosas de procriar na minha mente, prolongando no tempo
velhas e deliciosas lembranças. Contam a quem sabe ouvir para depois
as poder contar. Foi o que fiz no dia do senhor. Vi, ouvi, imaginei, senti,
acalentei, sonhei, desejei e amei.
Sabe bem amar a vida, os sonhos, os sons da natureza e das almas livres,
o falar de pessoas perdidas e esquecidas, o calar e o ouvir de um estra-
nho divino, o cantar de histórias que um dia poderei contar, para não
falar da beleza suave e sensual, que, vestida de um agreste natural, quer
ser despida e possuída nos braços de quem a sabe amar.
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“Chuva”...
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“Cruz”...
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As minhas paisagens
“Brisa da noite”...
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“Duas velhas”...
Fui de metro até perto do hospital. Durante alguns momentos andei a pé.
O sol convidava mas o dia assustava. Não era motivo para isso, assustava
porque não me sentia bem. Nada que tivesse comido ou punhalada que
tivesse sofrido.
Sentia-me cansado e até um pouco farto destas andanças. Os meios
grandes provocam-me tristeza e empurram-me para as bandas da indi-
ferença. Com uma pachorra difícil de descrever fui andando. Vi muita
gente, a maioria amarelecida e desprovida de alegria. Havia qualquer
coisa nos seus olhares. Não sei se era dor, se era falta de amor ou uma
solidão fria a correr em veias esgotadas de vida. Duas velhas vinham na
minha direção. Uma era mais velha do que a outra. A mais nova, obe-
sa, descuidada, deslavada e com um cigarro na mão, dava o seu braço
direito à mais velha, cuidada, com aspeto fino, cabelo penteado e ar
distante. Trazia na mão esquerda uma mala, pequena, castanha. A mais
nova, de ar deslavado e olhar empertigado, depois de ter aspirado uma
nuvem de tabaco enegrecido, atestou-lhe com uma voz rouca de vida de
fumo: - Já te disse mais do que uma vez. Pega lá na mala como deve ser!
O tom. Sim, o tom, imperativo, frio, a contrastar com o calor do cigarro,
chamou-me a atenção. Uma dureza difícil de descrever. Assustei-me.
Não havia chama de amor naquela chamada de atenção. Tentei tatear
alguns restos.
Mas como encontrá-los naquela voz dura, rouca e implacável? Olhei
para a senhora mais velha, penteada e cuidada. Abrandou o passo e
tremeu um pouco. Sem dizer nada colocou a mala no braço direito.
As feições eram semelhantes. Mãe e filha. Pensei. O olhar da mãe dava
sinais de querer começar a perder o sentido e o significado da vida. Cui-
dada e bem penteada, longe da deslavada da filha, que empunhava um
cigarro, não sei se para queimar o passado da vida que levava a seu lado,
causou-me muito pena.
Ao dobrar as pernas, na atrapalhação da mudança de mão da mala para
o braço direito, a filha sacudiu-a com brusquidão, e em silêncio desapa-
receram na esquina, enquanto eu passei o portão.
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As minhas paisagens
“O sol adormeceu”...
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Salvador Massano Cardoso
“Coimbra”...
Cidade única. Cidade bela. Cidade da vida. Três conceitos que emergi-
ram ao mesmo tempo logo que vi a imagem. Única, porque não pode
haver nada igual, nasceu de um ventre de amor e foi através do amor que
cresceu para amar e dar lugar, durante o repouso, ao saber. Bela, porque
a vida alimenta-se e reproduz-se ao som da beleza.
Cidade da vida porque ensina, aprende e desperta o sentido da existên-
cia nos mais curtos e explosivos momentos, e nos longos, nostálgicos, e
quase perenes momentos de reflexão.
A primeira vez que a vi era muito pequenino. Vim da terra no trama. Ao
chegar à estação vi o rio. Largo, suave e muito belo com muitas barcas
com as velas desfraldadas. Não fazia sol, o dia estava enevoado, mas,
estranhamente, as águas brilhavam como se fosse um espelho. Vi mulhe-
res vestidas com cores garridas ao longo do rio. Havia muita cor, muito
som, muita alegria e eu julguei que o rio corria no sentido contrário ao
que acontecia.
Quanto tempo, quantos anos foram precisos para inverter o sentido do
rio. Fiquei deslumbrado com aquela paisagem. Dei a mão ao meu pai,
que abriu a janela da carruagem, puxando a larga banda de couro, e,
subitamente, senti a brisa, o cheiro, a vida e a cor da primeira grande
cidade da minha vida.
Ficou gravada na minha memória um quadro único, um quadro que
gostaria de desenhar, o mais belo quadro que até hoje vi de Coimbra,
cidade única, bela, cidade da minha vida.
128
As minhas paisagens
“Natureza”
Tenho por hábito dar umas voltas ao fim de semana sempre que posso.
Atendendo ao tempo não posso ir para muito longe, de qualquer modo
calcorreio a "minha zona" a ponto de começar a esgotar os trajetos des-
conhecidos.
Parece que não tenho mais estradas ou caminhos. Se isto continuar vou
ficar preocupado e ter que migrar para outras bandas, mas para isso pre-
ciso de entrar com o fator tempo. Mesmo assim, e apesar de conhecer
bem a região, continuo a surpreender-me. É uma questão de imagina-
ção. Passo em zonas despidas de gente e fortemente engalanadas dos
mais diversos verdes e castanhos numa simbiose única capaz de cortar
a respiração quando os jogos de luz, sol, sombras e penumbras se entre-
têm a desenhar quadros únicos que só se podem ver naquele instante,
verdadeiros flashes da natureza.
Deixo-me ir no embalo do encanto e depois esbarro em locais belos,
isolados, silenciosos, cheios de ternura e plenos de histórias perdidas
e desconhecidas. Olho, ouço, inspiro, sinto a brisa, delicio-me com os
odores, não interrompo os namoros dos animais e roubo aqui ou acolá
uma pequena imagem, verdadeiro suspiro de uma gigantesca alma que
se ri de mim e que não se importa que a leve e a use qualquer que seja
o seu fim.
Roubar uma simples imagem à natureza é tão simples, é uma oferta que
nos leva à descoberta de um mundo belo, suave, tranquilo e que respira
paz e amor sem fim. Sinto o seu abraço, os seus odores e cores, que fi-
cam para sempre registados dentro de mim, dizendo-me para regressar
as vezes que quiser, porque ali, naqueles rios, montanhas, vales e aldeias
perdidas poderei encontrar aquilo que sempre desejei, compreender a
razão do fim, sem medo, vivendo um poema único e sempre diferente,
só meu, um poema vivo, capaz de por fim aos tormentos e ansiedade
que vivem em mim.
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Salvador Massano Cardoso
“Chamar a capítulo”
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As minhas paisagens
loas, sem virtudes, sem nada, a não ser o desejo de amar como qualquer
outra. Curioso. Senti.
Depois soube mais sobre a vida e as tragédias daquela terra. Houve al-
guém, Margarida, a "Flor do Tâmega", que foi obrigada a professar ali, no
cemitério dourado das almas condenadas em vida.
Libertaram-na, nos alvores da nova ordem social, aquando da extinção
das ordens religiosas, ao fim de muito tempo de prisão religiosa, tempo
demais porque nunca mais encontrou o seu amor.
Tão pouco queria da vida e tanto lhe queriam dar em troca com a outra
vida.
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“Solidariedade”...
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As minhas paisagens
“Sussurrar”...
Sussurrar é o instrumento mais banal para dizer o que não se quer. Quem
sussurra exige mais atenção, e quem ouve desliga-se do que sente para
poder ouvir melhor.
O sussurro desliza de forma pegajosa e doentia a pedir mais um hospe-
deiro para a nova aleivosia. Tudo é feito com um semblante de alegria.
Os sussurros não se ouvem através dos muros mas deixam adivinhar o
prazer de traiçoeiros murros.
Sussurrem à vontade, eu não entendo, sou surdo e falo alto para poder
testemunhar o direito à dignidade. Sussurrar é um verbo que só deveria
ser utilizado para amar.
O que vejo não é amor, é apenas o semear do terror, da ofensa e da dor.
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“A quinta”...
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
Não é que as ameaças com a espada da justiça leve a algum lado, por-
que a balança da mesma não está viciada e acaba por repor a legalidade
e o direito.
O problema está na própria ameaça, que passa a tornar-se num vírus
que se propaga de forma quase epidémica na nossa sociedade, o “vírus
da mudez”. Se não nos precavermos e imunizar-nos poderemos um dia
destes acordar sem poder falar.
E se não falarmos não podemos amar. Para que serve o ser humano sem
amor? Para nada.
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"Falsa compaixão"...
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“Ilusão”...
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“Almas”...
Vadiei pela noite numa terra que dorme de dia. A tristeza esconde-se no
vazio das ruas e no sorriso das pessoas.
À noite a tristeza liberta-se e ondeia sem som, procurando almas que
aqui nasceram. Almas livres, a recordar um passado rico, intenso, cheio
de sons, de gritos, de amor e de vida ativa. Almas que não penam, e
ainda bem.
Penar é para os que ainda vivem, passeiam e amam este local. Incomo-
da-me o silêncio e surpreende-me a beleza de outrora. O tempo é uma
encruzilhada da vida passada e de um presente que morre e que nunca
irá ser passado. As almas são da terra que as viu pela primeira vez à luz
do sol e as beijou sob a lua das noites quentes ou frias quando as liber-
tou.
Hoje, as almas nascem longe e morrem perto. Não interessa onde nas-
cem, onde morrem ou onde vivem. Hoje, são os seres humanos que
andam a penar sem saber porquê. As almas ficam cegas e não sabem a
terra a que pertencem. Não sabendo, fogem.
Não se deixam ouvir ou sentir. Uma terra sem almas é uma terra conde-
nada a morrer. Andei pela noite e ainda encontrei algumas. Não assus-
tam, encantam, não choram, cantam, não gritam, sussurram, não têm
medo, confiam e brincam como crianças que um dia foram e que nunca
mais esquecem.
É bom pensar nelas até sermos mais uma para poder falar com elas.
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“Paz da vida”...
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“Álcool e liberdade”...
Falei. Às tantas falei de mais, mas que é que poderia fazer? Convidaram-
me com muita antecedência, desafiaram-me, deram-me campo para ba-
tatas, entusiasmei-me, pus-me a escrevinhar e a dissertar, tanto pensei,
tanto fiz que acabei por fazer aquilo que sempre desejei. Depois ali-
nhavei, alterei, substituí, reconsiderei, eu sei lá o que fiz. Escrever sobre
assuntos que nos dão prazer e incomodam ao mesmo tempo dá nisto,
texto, mais texto, alterações, histórias, sugestões e, por fim, tem que sair
algo novo, provocador e suscetível de mexer com o que está definido,
tentando recriar e ajudar a solucionar o que não tem solução. Parado-
xo dos paradoxos, falar sobre coisas importantes, recriá-las e enunciar
aspetos desconhecidos ou pouco habituais tentando dar a ideia de que
é possível modificar o mundo. É o mudas! Mas vale a pena tentar, nem
que seja para acalmar a consciência e manter a chama viva no combate
ao infortúnio e à doença.
Tenho o hábito, velho e doloroso, de fazer as coisas com profundidade e
alguma novidade. Enfim, uma forma de me tranquilizar e de obter algu-
ma satisfação. Foi o que aconteceu hoje. A comemoração decorreu bem,
com dignidade e alguma informalidade.
Comemorar cinquenta anos de trabalho e dedicação a uma doença tão
grave como o alcoolismo não é um acontecimento vulgar, sobretudo
quando o empenho, dedicação, afeto, amor e sucesso foram a pedra
de toque de profissionais de elevado gabarito. Acompanhei, e acompa-
nho, desde há decénios tão importante luta. Não acompanho desde o
princípio, porque quando tudo começou tinha apenas treze anos, mas
aos vinte e três já sabia, melhor, aos vinte e um, ainda era estudante
quando comecei a conhecer o serviço e a sua importância. Logo, tenho
um conhecimento pessoal sobre o evoluir de tão importante problema
ao longo do tempo; tratar alcoólicos, prevenir, informar e educar em
matéria de alcoologia, constituem áreas nobres e profícuas em termos
de saúde pública.
Até acabei por ser responsável pelo primeiro trabalho de investigação.
Coisas do destino. Hoje, participei mais uma vez conferenciando. Gos-
tei? Sim, gostei. A minha conferência deu trabalho? Claro que deu, mas
não me queixo, nem posso, pelo contrário, até tenho de agradecer, por-
que se não fosse convidado não poderia meditar, mais uma vez, sobre
144
As minhas paisagens
tão grave assunto que é o alcoolismo. Mas não devo falar de mim, nem
do que faço. O que eu quero mesmo é falar a propósito de dois episó-
dios. Um deles tem a ver com o discurso, ou melhor, poema cantado
na primeira pessoa de um alcoólico recuperado. Sim, chamo poema.
Adorei ouvir o Carlos de Brito.
Cito o seu nome, porque publicamente mostrou o que é, um exemplo
do valor a que um homem pode chegar, depois de ter adormecido a sua
dignidade à sombra fria do álcool. Passaram trinta e quatro anos depois
de ter sido reabilitado. O que este homem fez ao longo destes anos é
matéria mais do que suficiente para ser equiparado a um herói, salvan-
do e reabilitando milhares de seres humanos doentes. O seu poema é
único. Foi conciso. Foi profundo. Foi emotivo. Em poucos minutos fez
mais do que eu. Transmitiu valores únicos, de uma humanidade difícil
de alcançar. Um herói? Sim! Existe mais heroicidade e civilidade no seu
comportamento do que muitos que andam por aí ostentado medalhas,
comendas ou honrarias.
Esteve sentado todo o tempo a meu lado. Nunca o tinha visto. Não o
conhecia e desconhecia o que fez. Só pelo facto de conhecer a sua his-
tória e as histórias que ajudou a construir fiquei muito mais rico do que
as inúmeras horas e noites de escrita e de reflexão. Tinha a obrigação de
dizer isto. Não ficaria bem comigo se não publicitasse este testemunho.
Mas não fico por aqui, porque o violonista russo, virtuoso, encantador, e
agora liberto dos efeitos perniciosos da doença, inundou a minha alma,
e de muitas outras que pairavam naquele espaço, de uma alegria e sen-
sibilidade difícil de esquecer.
A música é a verdadeira língua das almas livres, o que prova que a sua
também se libertou das cruéis grilhetas do álcool. Sentiu-se tão bem
essa liberdade. Quanto aos outros, os profissionais que se dedicam a
esta causa, não vale a pena falar, pela simples razão de que fazem o que
gostam, com amor e muito afeto.
Para eles é suficiente o silêncio, e para mim também.
145
Salvador Massano Cardoso
Andou comigo todo o dia. De vez em quando ia ver se estava tudo bem
com ela. Levei-a na esperança de que a qualquer momento acordasse
e se pusesse a cantarolar, a dançar, a registar, a rezar e a amar. Ela sabe
fazer isto tudo, muito melhor do que eu. Não saiu do bolso onde a ti-
nha colocado. De tempos a tempos perguntava-lhe, em silêncio, se não
estaria interessada em correr pelas folhas suaves para libertar a energia
que ia acumulando ao longo do dia aliada à fantasia despertada por mais
um novo dia. Não respondia. Assustado ia logo tocar-lhe com medo de
a ter perdido. Mas não. Adormeceu, passeou, sonhou, e agora, quando
ao peso dos meus olhos se associam pensamentos sem norte, sinto uma
espécie de morte, a morte do sono.
Continua a correr, a saltitar, a registar, a inventar e, sobretudo, a amar.
Agradeço-lhe o empenho, coragem e devaneio. Amanhã, ao acordar,
faço-lhe duas festinhas como se fosse um recém-nascido, enchendo de
calor e de amor o seu pobre destino como se fosse um ser humano que
desconhece o futuro da dor.
A letra engalfinhou-se, esmoreceu, ao mesmo tempo que os meus olhos
iam descobrindo o segredo da morte. Qual é? Não posso dizer, porque a
sensação e a imagem da morte andam ao Deus dará, tristes e perdidas.
Não consigo escrever mais. Eu bem queria.
Agora, vou tentar saber onde paira o segredo. Só sei que nasce durante
o sonhar.
Esqueço sempre ao acordar...
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As minhas paisagens
“Santa Eufémia”...
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Salvador Massano Cardoso
Claro que a lógica infantil mede-se por parâmetros muito próprios. Mes-
mo assim, recordo perfeitamente ter pensado, “então, quando não for à
Santa Eufémia é porque estará muito mal”. Todos os anos ficava muito
satisfeito quando sabia que tinha ido, até que um dia deixou de ir. Estre-
meci e soube o que iria acontecer.
O olhar de Santa Eufémia, doce e cheio de paz, difícil de entender, obri-
gou-me a que fosse às velharias mais uma vez. Fui, quase que diria, em
modo automático. Entrei, desloquei-me até à sala, retirei o quadro da pa-
rede, saquei as notas embrulhadas do bolso (sabia perfeitamente o preço
da obra) e coloquei-as na mão do vendedor, julgo ter tido a perceção
de que começou a salivar. Despedi-me com um delicado boa tarde e fui
para casa muito mais tranquilo.
Está há muitos anos num quarto. Foi testemunha de doenças e da morte.
Todos os dias sinto o seu olhar, belo, suave e discreto, sem nunca se
incomodar. Vejo-a todos os dias através da porta aberta de um quarto
vazio.
A minha mãe devia ter muita fé. E não parecia. Embrulhava-a nos seus
misteriosos silêncios. Há silêncios muito poéticos e sensíveis à vida, à
morte, à doença, à felicidade, à esperança e a coisas que não sou capaz
de entender. Também não preciso. Basta-me olhar para o quadro de San-
ta Eufémia para ficar feliz.
(Apesar de o dia de Santa Eufémia ser no próximo dia 16, hoje, segundo
domingo de setembro, comemora-se o seu dia para as minhas bandas.
Fui lá mais uma vez. Uma pequena homenagem à minha mãe.)
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As minhas paisagens
“Vazio de amor”...
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Salvador Massano Cardoso
“Cristo”...
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As minhas paisagens
"Tenho sede"...
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Salvador Massano Cardoso
"Diferenças"...
Somos muito diferentes uns dos outros. Nada de especial. É bom, sinal
de diversidade cultural. Ajuda à preservação e desenvolvimento da nos-
sa espécie, embora possa ser fonte de atrito, de guerra e até de morte.
Desconheço quais os limites para essa diversidade de modo a não causar
prejuízos e mal-estar. Mas não há. Se houvesse limite esse deveria ser
imposto pelo bom-senso. Mas não há bom-senso que vença a falta de
carácter e a vontade dolorosa de ofender o outro.
Uma das vantagens das redes sociais é permitir “ver” até onde as pessoas
podem ir e mostrar o que são. Confesso que fico assustado. Não tenho
qualquer dúvida que a diversidade é também fonte de confusão e sinal
de ódio.
Se me espanto? Claro que não. O caldo do confronto está presente, de-
masiado presente, não obstante as manifestações de carinho, de confian-
ça e de amor, pétalas de flores condenadas à morte.
Também os outros, os que querem impor a sua ideologia, e que mostram
intolerância maligna aos demais, estão condenados.
Entretanto vão destilando aquilo que é dramático na espécie humana, a
raiva, a intolerância e o ódio.
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As minhas paisagens
"O abraço"...
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Salvador Massano Cardoso
"Cumplicidade"...
Gosto de saborear uma bebida forte, suave e cheia de calor vindo não do
sol, mas de um alambique em que mãos carinhosas souberam encontrar
o equilíbrio entre a cor e o sabor.
Depois saboreio-a gota a gota durante o máximo tempo possível. Uma
forma de prolongar o prazer. Mas não é suficiente, preciso de um acom-
panhamento. Busco uma caneta e escolho a que melhor irá revelar o
que sinto.
Não imaginam a alegria da escolhida. Salta, corre e desenha com alegria
os meus sentimentos no final de mais um dia. Fico meio espantado, e
delicio-me com o escorrer da tinta a querer imitar o percurso das gotas
da água da vida. E o som? Silêncio. Ouço apenas o roçar no papel. Sinto
a voluptuosidade de algo tão suave como se fosse uma carícia cheia de
amor.
E a beleza das letras? Lindas, arredondadas, azuladas e cheias de sen-
sualidade como se fossem traços desenhados num quadro elaborado ao
ritmo do sonho e do encanto próprio de um dia que se nega a ter fim.
- Paramos por aqui? Olhou para mim e em silêncio disse que sim. Sabe
que irá regressar a qualquer momento. Eu também sei.
Enfim, não há nada melhor do que uma cumplicidade sem fim.
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As minhas paisagens
"Voar e amar”...
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Salvador Massano Cardoso
"Folha"...
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As minhas paisagens
"Arco-íris diferente”...
Não sei se devo ser delicado no trato escrito. Delicado na vertente edu-
cada, polida, parafraseada, rebuscada, adocicada, enfim, um faz de con-
ta em que certas palavras, grosseiras, duras, empedernidas, malfazejas e
apimentadas da maior ordinarice, não têm lugar, mas mesmo assim não
deixam de ser ricas em sentimento.
Digo, ricas em sentimento porque são sinceras, violentas, críticas e de-
sejosas de atingir os alvos da minha atenção e preocupação. Pouco ou
muito se me dá se as escrevo, e assim poder ofender os “puritanos”. Não
gosto de puritanos. São umas perfeitas bestas que, em muitas circunstân-
cias, derramam sem pudor a maldição e a dor sobre os seus semelhantes.
Puta que os pariu.
As palavras têm que ser como o arco-íris, variadas, coloridas, intensas e
sempre unidas na cumplicidade da fala e da escrita. Não me incomoda
minimamente pronunciá-las ou escrevê-las. Faço com o mesmo à-von-
tade quando falo de amor, da beleza ou da esperança.
Pintar a escrita exige tantas cores brilhantes e suaves como as mais du-
ras, escuras e violentas,
Gosto do meu arco-íris linguístico. Pego numa das cores e aí vou eu,
sem limites, à procura do pote de ouro que nunca ninguém encontrou. A
vantagem é que o meu arco-íris é feito de uma miríade de cores que está
constantemente a modificar-se.
Um arco-íris que nunca foi branco, porque esse deve ser próprio dos
anjos e nem nunca foi negro porque no inferno não existe tal coisa.
Um arco-íris diferente. Há quem aprecie, há quem se inquiete e há quem
se sinta ofendido.
Para estes últimos aconselho que olhem apenas para os arco-íris natu-
rais, que não deixam de ser bonitos.
Só que eu prefiro construir os meus. Uma porra?
Não, apenas uma banal carícia de uma escrita sonhada e desejada.
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Salvador Massano Cardoso
"Nascimento"...
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As minhas paisagens
"Raiva"...
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Salvador Massano Cardoso
"Companhia"...
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As minhas paisagens
Fui por velhos caminhos tentando saborear a tarde. Não choveu. Entrei
na localidade, que conheço muito bem, mas não consegui estacionar à
maneira. O Pipoca tem o condão de condicionar a nossa vida. Não me
incomodo. Queria tomar um café, mas não consegui estacionamento
perto. Rumei até outra localidade, a antiga Barrelas. Seduz-me andar
pelas Terras do Demo. Gosto imenso de Aquilino e ainda mais das gentes
que transpiram alegremente a beleza e a dureza de um viver que teima
em respirar como se o passado estivesse mesmo à nossa frente. É como
estar em casa. Sabia onde ir. Antes de estacionar, no amplo terreiro, visu-
alizei o comerciante dos frangos assados sentado com ar pensativo junto
da sua carrinha bem apetrechada.
Devia ter havido feira na parte da manhã. No largo restavam dois ou três
comerciantes a levantar as tendas. O "frangueiro" pensava sobre a vida e
o negócio do dia. Abrandei e disse-lhe: - Já regresso. Arranje um frango.
Vamos só tomar um café. Acordou de uma aparente letargia e sorriu. -
Esteja à vontade. Eu espero. Falámos como se fôssemos conhecidos de
longa data. Estacionei no terreiro. Ao sair, dizemos sempre ao Pipoca:
- Espera. Espera. Nós já "viemos". Nós já "viemos". Está do "já viemos" é
uma forma de parodiar algumas pessoas da minha terra. De tanto dizer,
qualquer dia já nem sabemos conjugar corretamente o verbo vir. O que
é certo é que o Pipoca entende. Nunca se inquieta, porque sabe que
regressamos sempre. Fomos falar com o homem e encomendei-lhe um
frango. - Um? Dois! Fiquei de boca aberta. Sorri. - Quer com picante ou
sem picante? - Com. - Hum! Pois. Pois. Eu não disse nada. Vão lá tomar
o café que eu espero. Passava um pouco das três e meia da tarde e o
movimento era nulo. No regresso, o comerciante, que sabia da poda,
estava à conversa com um amigo que se entretinha a jogar à raspadinha
. - Então, já lhe saiu mil euros? Perguntei. - Não. Mas parece ter qualquer
coisa. Importa-se de ver? Peguei no cartão e tentei perceber os códigos.
Não foi difícil. Parece que ganhou seis euros. -"Vistes"? Disse para o
homem dos frangos. Nada mau. Raspou outra e desta feita saiu-lhe três
euros. - Três euros? Perguntou-me. - Sim. Confirmei. - Mas diga-me uma
coisa. Quanto custa cada cartão? - Três euros. - Bom, sendo assim, já
está com um ganho de três euros. Começou a raspar uma atrás de outra,
com uma agilidade difícil de igualar, e nada. Fiquei com curiosidade e
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Salvador Massano Cardoso
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As minhas paisagens
“Misterianismo”...
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"Passear!”...
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"Ajuntador”...
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"Mães-Deusas"...
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As minhas paisagens
“A vida é bela”
Por acaso vi o filme. Tinha poesia e muitas mensagens, todas elas des-
tinadas a dar algum significado à vida, que muitas vezes se enche de
lama, sangue, miséria e sofrimento. A imaginação humana, enfeitada da
mais pura das maldades, é capaz de parir situações indignas da condi-
ção de um ser que crê ter sido criado à imagem e à semelhança de um
qualquer deus. Não pode ter sido, obviamente.
Gosto de poesia. No filme, “A vida é bela”, Guido, interpretado por Beg-
nini, tenta fazer acreditar ao seu filho que tudo o que está a acontecer
não é mais do que um mero jogo, escondendo os horrores próprios dos
campos de concentração. Só num poema é possível ver tamanha fanta-
sia, o mundo da beleza a querer tentar encaixar-se nos esgotos do horror
da vida, onde nada se pode vangloriar de que “a vida é bela”.
Esta frase, “A vida é bela”, é uma das mais ofensivas e hipócritas que
conheço. A vida não é bela, nunca foi, apenas oferece breves momentos
em que pudemos respirar e embriagar-nos com a beleza de um gesto,
de uma paisagem, de um sorriso, de uma atitude ou de uma esperança
nunca sentida. Nestes casos, e noutros semelhantes, é possível observar,
ainda que por breves instantes, a beleza que a vida poderia oferecer.
A vida não é bela; é dura, madrasta, injusta, moldada pelo nepotismo
político, mafioso, económico e, até, religioso. Eu consigo, com alguma
facilidade, ver e sentir relâmpagos, coriscos, cascatas, sombras, sons e
nuvens de beleza. Não é muito complicado. Basta esquecer que existo,
que o mundo é irreal, que o passado transpira a sensualidade sobrenatu-
ral e que o futuro chorará lágrimas de dor por não ter ouvidos os poemas
daqueles que amam a beleza escondida nos mais recônditos e inespera-
dos cantos de um mundo condenado à morte. Mundo onde o ressuscitar
será apenas um sonho esquecido. O mundo atual é falso e hipócrita,
sem vontade de fazer valer a verdadeira justiça. O amor e o respeito, que
todos os seres humanos devem ter neste estranho mundo, criado num
momento de falsa inspiração, e sem justificação, são esquecidos na mais
estranha peregrinação, a vida.
Não, a vida não é bela, o que existe são algumas almas belas, belas de-
mais para viverem lado a lado com os que justificam a vida através de
uma frase que não tem sentido, porque eles não sentem e não sabem o
que verdadeiramente significa a vida.
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Salvador Massano Cardoso
"Conversas de pedras"...
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
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As minhas paisagens
"Chuva”...
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Salvador Massano Cardoso
“Sopro de sol”....
Não corro, prefiro suspirar entre duas suaves baforadas de vento ao mes-
mo tempo que me encosto a uma sombra sem tormento.
Não invejo, prefiro beber o som de uma ribeira que não vejo mas que me
faz recordar o sabor de um doce beijo.
Não sonho, apenas invento futuros sem cor e sem dor, tentando recordar
o passado desenhado a tinta de amor.
Vivo à procura de encantos em que paisagens iluminadas por sopros de
sol são oferecidas por almas perdidas.
Nada melhor do que saber por onde andam as alminhas. Conheço-as.
Um dia serão também minhas...
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As minhas paisagens
“A palavra”...
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Salvador Massano Cardoso
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As minhas paisagens
"Arte e pão"...
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Salvador Massano Cardoso
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As minhas paisagens
"Ladrões e piões...
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Salvador Massano Cardoso
nino. Mas o que eu achava mais importante era quando tirava o chapéu.
Sentia que era importante.
Um juiz tirava-me o chapéu quando o cumprimentava. Eu e o meu avô
ficámos a olhar durante uns instantes para o julgamento que estava a
decorrer. Foi então que me disse: - Estás a ver? O senhor doutor juiz está
a fazer um julgamento e parece-me que vai demorar um pouco. O me-
lhor é virmos noutra altura. Não achas? Fiquei a pensar durante alguns
segundos. Concordei. Caso contrário iria perder a tarde e eu queria era
jogar à bola com os meus amigos. Ao descermos a escadaria, o meu avô
perguntou-me se não tinha outro pião. - Tenho, mas não é nada com-
parado com o outro. Quando o lançava escachava a cabeça dos piões
dos meus colegas. Ficavam sem conserto. E quando ganhava ao jogo do
pião, usava-o sempre para dar ferroadas. Os outros ficavam bonitos, ai
ficavam! E se perdia era ele que tinha de as receber, mas como era duro
ficava na mesma. - Hum! Estou a ver.
Vou ver se consigo arranjar-te outro, - Vais mesmo? - Vou, mas só se me
prometeres que não vais incomodar o senhor doutor juiz. - Está bem.
Não vou. Mas olha lá, explica-me uma coisa, porque é que as pessoas
roubam coisas aos outros? Isso não é pecado? Parou, empurrou o chapéu
para trás, afagou, em silêncio, o bigode com o indicador e o polegar, e
disse: - Pois! Uma boa pergunta. Olha, não sei. Nunca roubei nada a
ninguém. - Então, eu também nunca vou saber. - É melhor não.
Vai brincar. Passados dois ou três dias, ofereceu-me um gordo e duro
pião com um bico que prometia muitas vitórias.
Como era especialista em lançar piões - foi ele que me ensinou -, fez das
suas, atirou de frente, bico para cima, de costas, e fazia aquilo que mais
adorava, apanhava-o à unha...
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As minhas paisagens
"Cansado"...
Não sei escrever, não sei pintar, não sei musicar, não sei poetizar, não
sei o que faço e nem compreender o que sinto. Deixo-me ir ao toque
do ritmo dos dias e das estações. Sei que pertenço, sem saber a razão,
a um ponto insignificante a quem chamam “azul” num universo longo,
grosso, frio, bonito e sem explicação. Só sei que os dias cansam, e as
noites atemorizam-me.
As horas são a medida do tempo das punhaladas e os minutos os sorrisos
sardónicos dos diabos da minha construção. Não falo dos segundos,
gotículas de água dos frios e estranhos nevoeiros. O cansaço invade-me
como se fossem ondas alterosas a querer mudar as formas de velhas ro-
chas. Rochas que morrem às suas mãos deixando-se escoar em insignifi-
cantes grãos de areias perdidos no meio de um mar sem cor e sem amor.
O cansaço invade-me. Destrói lentamente as fibras da minha essência.
Nunca acreditei em qualquer vida.
Apenas recordo o sabor tranquilizador de um sol carinhoso, o sabor de
uma enigmática sandes de presunto, o mergulho nas águas de um rio
amigo, o sussurrar louco de cigarras numa noite de verão, o toque de
sino em comunhão com as águas da ribeira numa passagem do ano, o
silêncio perfumado do incenso em redor de um morto na sala ao lado, a
alegria fugaz de um momento inesperado, a construção de uma esperan-
ça sob o olhar das estrelas, vulgares prazeres de ocasião e medos, muito
medos de quem é obrigado a viver sem razão.
O cansaço invade-me.
Pena não matar...
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Salvador Massano Cardoso
"O Rogério"...
Faz hoje dois anos que conheci o Rogério. Desde esta cena já passei
muitas vezes pelo mesmo local. Passo e recordo o Rogério. Nunca mais
o vi. Tenho receio de que já não exista. O melhor é não perguntar. Passo
pelo mesmo local e recordo a história de um dia de calor. Sou filho de
histórias e quero ser pai e avô de histórias. Sim, sem histórias não sou
ninguém...
Aproveitei o dia livre para o encher de prazer e de emoção. Basta-me
andar ao “deus-dará” para tropeçar com pequenos episódios, aconteci-
mentos e fazer belas descobertas. Cada vez gosto mais de andar ao sabor
do vento do tempo. Eu também me transformarei um dia nesse vento.
Depois de termos almoçado, bem, demos um pequeno passeio pela lo-
calidade. O sol estava no seu pique. Gente nem vê-la. O calor apertava
e de que maneira. Procurávamos incessantemente a sombra quando, de
repente, surgiu uma figura surpreendente.
Um velho, mirrado pelos anos, com uma das mãos, a esquerda, a aper-
tar simultaneamente a camisola e as calças (ou pijama), como a querer
evitar que lhes caísse aos tornozelos, caminhava à pato e a pequenos e
instáveis passos. – Valha-me Deus! De onde terá surgido aquela figura?
Disse para a minha mulher. – Fugiu de algum sítio. Só pode. Pela forma
como caminha, e atendendo à idade, aquela cabeça está toda baralha-
da. Vamos. Vamos perguntar-lhe o que é que ele anda a fazer. Avançá-
mos meia dúzia de metros e interpelei-o. – Bom tarde, bom senhor. Boa
tarde. À segunda saudação parou e olhou-me. – Como é que se chama?
Tive de repetir mais duas vezes. Deu-me a sensação de que estaria a
processar a resposta a uma pergunta que deve ter ouvido várias vezes
ao longo da vida. – Rogério. Rogério. – Ó senhor Rogério, o que anda
a fazer com este sol? – Bjjjj. Bjjj. Bjjj. Fugi de casa. – O quê? Fugiu de
casa? Mas o senhor sabe o que fez? Com quem é que vive? Sem perce-
ber, voltou a sorrir e a lançar os seu “bjjjjs”. – Mas sabe ir até à sua casa?
– Sei. – Ai sabe? Onde é que mora? – Ali. – Ali onde? – Ali. E apontava
o local. Disse para a minha mulher: - Isto vai ser complicado. Como a
conheço bem, vi logo que se ia meter com o Rogério. Pôs-se a falar com
ele e, claro, não tardou a vê-lo todo sorridente e a dançar. Levantou os
braços, começou a agitar os dedos ao mesmo tempo que levantava o
rabiosque acompanhado da tentativa de se elevar do chão. – Valha-me
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As minhas paisagens
Deus. Ó senhor Rogério vá para casa por amor de Deus. – Está bem.
Está bem. Avançou pela rua principal, velha de séculos e de história, até
chegar junto de uma escadaria cujos degraus, monstruosos mesmo para
um jovem, tentou galgar. À primeira tentativa ia malhando com os ossos
no granito escaldante. A minha mulher correu e segurou-o.
Depois, com muita dificuldade, ajudou-o a subir. Lá em cima, na rua
medieva, começou a caminhar com os trejeitos de quem não sabe para
onde ir. Passou em frente a uma casa, porta escancarada, junto da qual,
num velho assento de granito, uma velha apanhava o ar da tarde à som-
bra. Vi que ela lhe disse alguma coisa, mas o Rogério continuou na sua
marcha. Sempre na expectativa do que poderia acontecer, aproximei-
me da velha e perguntei-lhe se sabia quem era aquele senhor. – Não.
Não sei. – Não conhece o Rogério? – Não. - Não? Não é daqui? Sorriu
e vi que não estava melhor da cabeça. Pus-me no seu encalço, até que
o apanhei. Gritei-lhe: - Ó Rogério! Ó Rogério! À segunda interpelação
parou. Olhou-me e com aquele ar de quem está aprisionado dentro de
um cérebro esquecido ficou à espera de instruções. – Vamos para casa.
Estão todos preocupados consigo. O pior é que eu não sabia onde mora-
va, até que duas senhoras presenciaram a situação. Vi que o conheciam.
Pedi-lhes ajuda. Sem ficarem muito surpreendidas, disseram-me que era
comum andarem à sua procura. – Sabem onde é que ele mora? Quando
me disseram onde era fiquei de boca aberta. Afinal, vivia na casa cuja
porta estava escancarada e na qual, sentada no banco de granito, estava
a mulher. – O quê? Aquela senhora é a mulher? – É sim senhor. Mas ela
não sabia quem era o Rogério! – Sorriram. Estava tudo explicado. Enfiei
o braço debaixo do braço direito dele, enquanto a mão esquerda aper-
tava insistentemente as calças para que não caíssem. Levei-o até casa.
Satisfeito com o episódio, começou a querer dançar. As senhoras que o
conheciam bem disseram-me que em novo saltava no ar e batia com os
pés um no outro a dançar.
Não perdeu o jeito, faltou-lhe apenas a elevação. Entrou em casa. De-
pois, duas vizinhas vieram em seu auxílio e estivemos a conversar um
bom bocado sobre o quadro.
Sei que ambos tinham mais de noventa anos e...
Agradeceram a nossa ajuda.
O país está cada vez mais deserto, mais pobre e mais velho...
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Salvador Massano Cardoso
“Santa Bárbara”...
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As minhas paisagens
“Desejo” ...
Devia escrever. Tenho fome. A fome aguento, a sede não. Quero beber.
O quê? Não sei.
Preciso de me embriagar com lembranças e esperanças. Sinto a força do
calor que invade a noite. Abro os braços. Recebo-o como um testemu-
nho da mais pura oração, viver a vida sem saber.
Imagino o sentir da força das almas a escorrer ao longo dos meus dedos
como se fosse a cura de todos os tormentos que assolam o mundo, Não
quero invocar deus, e nem recordar o diabo, quero apenas paz, calor,
amor e um sentir diferente como se acabasse de parir uma nova forma
de vida, a liberdade expurgada de tristeza e vestida da mais brilhante
pureza.
Um desejo...
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Salvador Massano Cardoso
"Banalidades” ...
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As minhas paisagens
"Sonhar"...
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Salvador Massano Cardoso
“Parto da morte”...
O parto da vida pode ser muito doloroso, mas é compensado pelo calor
de uma nova existência, embrechada de alegria e de esperança. O parto
da morte pode ser muito doloroso e tem como compensação a liberta-
ção da existência, despejada de alegria e sem esperança.
Sei que o meu parto foi doloroso, mas encheu de felicidade e de alegria
a minha mãe.
Tento procurar entre o nevoeiro dos meus primeiros tempos de existên-
cia onde é que ela estava. Não consigo vislumbrá-la com clareza, talvez
a voz, doce, talvez o calor do corpo, suave, talvez a luz da alma, brilhan-
te, talvez tudo, misturado em proporções variáveis que, com o tempo,
se materializou na sua figura, ou melhor, na sua presença. Uma estranha
sensação de proteção, inebriante às vezes, cáustica e certeira noutras.
São tantos, tantos os episódios de vida e de cuidados que guardo, tudo
caldeado em belos e coloridos frascos de compota. Tantos sabores, tan-
tas cores, tantos episódios, tantos carinhos, tantas tareias, tantos afectos,
tantas preocupações, tantas vivências.
Um dia, seduzido por uma bela caixa azul suave, de baquelite, surripiei-
a, sem que desse conta, de uma gaveta onde estava escondida. Abria-a e
vi uma espécie de fita, pequena, negra, esquisita, embrulhada em algo-
dão amarelecido. Deitei fora o conteúdo e pus-me a brincar com a bela
caixa. Ao ver-me com ela na mão ficou aflita, tirou-ma, abriu-a e ficou
pálida. Onde é que puseste o que estava dentro da caixa? Perguntou-me
muito irritada. Deitei fora, era uma coisa negra e feia, não prestava.
Ai meu desgraçado, então, tu deitaste fora aquilo que me prendeu à tua
vida! Eu fiquei de boca aberta, sem perceber, mas vi que deveria ser al-
guma coisa muito importante. Mais tarde entendi do que se tratava. Era
uma recordação única, tinha-a guardado com tanto zelo e amor.
E aquela mão, que na altura soube acariciar à maneira o meu traseiro,
apertava agora a minha nas últimas horas de vida.
Era a única parte do seu corpo que tinha ainda calor ou recebia-o. A res-
piração, estridulosa, anunciava o fim, intensificando-se de forma gutural
e abrasiva, não para si, que há muito deixou de saber que existia. De
vez em quando lançava um estranho olhar como a querer dizer algo. Às
tantas não queria dizer o que quer que fosse, mas a expressão era funda,
perturbadora.
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
“Gostas de mim”?...
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As minhas paisagens
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Salvador Massano Cardoso
“Nomes” …
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As minhas paisagens
por causa de nomes mais ou menos exóticos que eles irão distinguir-se
no futuro. - E a segunda menina? Apontei para a barriga que estava à mi-
nha frente. - Já tem nome? Já. Disse. Não comentei. Sorri delicadamente
e disse: - Pois! Quer um, quer outro, encerram o tal desejo de quererem
ser diferentes. Não é pelo nome que somos diferentes. Não estive para
divagações e nem podia, obviamente.
Em contrapartida adoro aqueles nomes simples, doces, cheios de cari-
nho, a ponto de imaginar que estou a dançar com uma menina nos meus
braços ouvindo o dobrar do seu sorriso ou o espreguiçar cheio de alegria
de um menino a lançar saliva como se fosse doce de anjos ao fazer-lhe
cócegas.
Tudo isto ao mesmo tempo que pronuncio os seus nomes, simples, amo-
rosos, delicados, doces e cheios de alegria que um dia vogarão pelo
mundo como se fossem brisas suaves da vida.
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Salvador Massano Cardoso
"Caligrafia” ...
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Índice
O tolo 7
Ainda cuspo muito para comer 9
Lamego 10
Ó Chiquinho, o lugar? 12
Tolinhos da aldeia 15
Almoço de palavras 17
Dois loucos. Cada um à sua maneira 18
Colcha de algodão 20
O pedido 21
Viver 23
O dia em que o Chico chorou 25
Água e gases 27
O Silva 29
A conversa e a serra 31
Santa Margarida 33
Santas Combas 35
Dia de São João 37
Serra 39
Maças secas 40
Leão 42
Transumância 44
Segredos de velhas almas 46
Desejo silencioso 48
Vazio 50
Bordado de Tibaldinho 52
Serpente 54
Brinquedos 56
Novelo de vida 58
Sol na serra 60
Viagem à volta do fumo 61
Manhã 63
Navegar 64
Locais sagrados 66
O sol quer jogar 67
Miserável sentir 69
Esperança 71
Imagem tatuada 72
Conhaque de Napoleão 73
Escrever à noite 75
Conversa num dia cinzento 76
Calor 77
Dia de sol 78
Frio 79
Arco-íris 80
Anjo-da-guarda 81
A mordaça 83
Horas de descanso 85
Dezembro 86
Última visita 87
Inverno da vida 88
Uma, duas, três... histórias 90
Lágrimas 91
Contar histórias 92
Uma rosa e uma cruz 93
Pedras do meu encantamento 94
Sabes que dia é hoje ? 95
Acontecimentos 97
Maresia 98
Belas peças 100
Sete anos perdidos 101
Domingo à tarde 103
Bosque sagrado 105
Viagem 106
Escrever 107
A maçã da consciência 108
Almas douradas 110
Ventre da mãe 111
Espirros de alma 112
Véspera de domingo de ramos 113
Paixão 115
A capela 116
Viajar 118
O Lazarilho de Tormes 119
Imagem 121
Confessar e amar 122
Chuva 123
Cruz 124
Brisa da noite 125
Duas velhas 126
O sol adormeceu 127
Coimbra 128
Natureza 129
Chamar a capítulo 130
Solidariedade 132
Sussurrar 133
A Quinta 134
Viajar até oeste 136
Esboço de um ensaio sobre a mudez 137
Falsa compaixão 139
Ilusão 141
Almas 142
Paz da vida 143
Alcool e liberdade 144
Passear de mão dada 146
Santa Eufêmia 147
Vazio de amor 149
Cristo 150
Tenho sede 151
Diferenças 152
O abraço 153
Cumplicidade 154
Voar e amar 155
Folha 156
Arco-íris diferente 157
Nascimento 158
Raiva 159
Companhia 160
Os frangos de Barrelas 161
Misterianismo 163
Passear 164
À maneira de uma criança 165
Ajuntador 167
Mães-Deusas 168
A vida é bela 169
Conversas de pedras 170
Capela da Casa Grande 171
Chuva 173
Sopro de sol 174
A palavra 175
Arte e pão 177
Eu vou contar tudo a Deus 178
Ladrões e piões 179
Cansado 181
O Rogério 182
Santa Bárbara 184
Desejo 185
Banalidades 186
Sonhar 187
Parto da morte 188
Arte, amor e vida 190
Sabor da vida 191
Gostas de mim? 192
Noite diferente 193
Nomes 194
Caligrafia 196