Você está na página 1de 3

Miró e Vinho do Porto

In Memoriam do Dr. Jorge Almeida que, tivéssemos a felicidade de o ter ainda entre
nós, não deixaria de nos acompanhar nas lutas que o nosso Douro nos merece.

O título deste escrito pode induzir em erro o leitor desprevenido, levando


a pensar que irei dedicar estas breves linhas a algum milionário apreciador
de arte que, enquanto contempla as linhas traçadas pelo pintor catalão, se
deleita bebendo um Vintage de ano excepcional ou um Tawny
envelhecido na sombra fresca da frasqueira de uma Quinta do Douro.

Ora, o que me traz a este título é o recente episódio sucedido com a


colecção de arte do ex-BPN que uma empresa do Estado tentou vender
através da leiloeira Christie’s que, quando veio a público, deu o alarido
que se sabe.

Um coro de vozes se levantou contestando aquela operação,


insurgindo-se contra a venda de um acervo que, tendo acabado na posse
do Estado por linhas bem tortas e com os custos que são (ou talvez ainda
não…) sabidos, deveria ser mantido e constituir a base de uma colecção de
arte moderna a exibir num Museu que alguém haveria de criar.

E, mais uma vez, poderá o leitor interrogar-se. Mas que Diabo tem isto a
ver com Vinho do Porto?

Pois a relação é muito simples, e fácil de entender, como a seguir se verá.

Na sequência da nacionalização do Grupo BPN os seus activos, que


incluíam os chamados activos tóxicos e restantes bens patrimoniais, foram
entregues a três empresas criadas pelo Estado para o efeito com o
objectivo de “limpar” os balanços do Banco e permitir a sua venda
posterior, bem como de minorar as perdas financeiras do Estado
decorrentes da nacionalização.

Um destes activos são os vinhos que a Casa do Douro deu como garantia
ao BPN pela concessão de crédito entre 1999 e 2001 e que, face ao
incumprimento da casa-mãe de todos os viticultores, foram também
arrastados no processo de nacionalização tendo ficado à guarda da
Parvalorem, uma das sociedades que “herdou” os activos do banco.
Posteriormente, em 2013, a Parvalorem abriu um concurso público para
alienação dos activos que detinha, sendo que o lote onde se incluíam os
vinhos da Casa do Douro, foi adjudicado à Logicomer, uma empresa de
gestão e recuperação de créditos.

Ou seja, o Estado na busca de aligeirar as perdas decorrentes dos seus


maus negócios, vai passando de mão em mão uma batata quente que
ninguém quer segurar por muito tempo, até que a batata cai nas mãos de
alguém que a vai deixar esfriar e tentar recuperar algum do seu valor
inicial.

Mas aqui é que o caso se complica.


Pois, se qualquer um de nós pode comprar a colecção de Miró,
salvaguardada esteja a fundura dos seus bolsos, no que toca aos vinhos da
Casa do Douro, peço perdão, da Logicomer, os mesmos só podem ser
vendidos ao universo, cada vez mais reduzido e concentrado dos
comerciantes de Vinho do Porto, ou seja às Empresas exportadoras.

E, assim sendo, que lógica terá alienar, ainda que por concurso público e
supostamente seguida com rigor a cartilha da transparência, um crédito
em que o produto que lhe serve de garantia não pode ser livremente
transacionado pois está enquadrado num sector com regras específicas e
tem um mercado restrito a uma mão cheia de empresas?

Podemos sempre especular sobre os motivos por detrás da divisão dos


activos do BPN em lotes que foram depois “entregues” a empresas de
recuperação de créditos que, todos sabemos, irão retalhar esses bens e
tentar multiplicar por várias vezes o valor que por eles pagaram.

Podemos especular sobre a toxicidade destes vinhos, ou antes destes


activos.
Pois se, enquanto vinhos, estou certo que serão tudo menos tóxicos,
enquanto activos, poderão ser altamente tóxicos para a Região se forem
transaccionados sem controlo e apenas na busca de mais-valias.

Podemos especular sobre a irresponsabilidade de um Estado que entrega


a um privado, sem qualquer reserva ou controlo, um produto que, lançado
no mercado de forma irresponsável, pode causar ainda maior descalabro
na Região pondo em causa os volumes de vinho generoso a produzir na
próxima Vindima.
Mas sobre o que não podemos especular é sobre o alarido que se
levantou com a venda dos quadros de Miró, quando sobre a venda dos
vinhos da Casa do Douro, ou antes da Logicomer, nem um pio se ouviu aos
nossos patriotas de pacotiha, quer no País quer no Douro!
O primeiro alarido foi bem real, do segundo nem a sombra se viu…

Podemos não especular, mas estar certos, da falta de sentido de Estado de


um Governo que prepara em segredo a solução para a “dívida” da Casa do
Douro condenando-a à morte, enquanto sub-repticiamente prepara a
entrega de mão-beijada do seu património a uma confederação de
Agricultores.

Podemos não especular, mas estar certos, da mansidão de uma Região à


qual o Estado através dos sucessivos Governos, tem feito as maiores e
mais soezes aleivosias sem que uma voz se indigne.

E o Estado pode ir alegremente especulando com o património do Douro,


mas que fique certo que tanto a corda estica que um dia vai partir.
E quando a corda partir, ainda muitos hão-de suspirar pelos tempos da
outra senhora em que os interesses da Região sempre estiveram bem
acima dos interesses dos pequenos oligarcas que nos dominam.

Mário Mesquita Montes

Você também pode gostar