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Compreender uma Fotografia ­ de John Berger 

Stephen Shore ­ Trail's End Restaurant, Knab, Utah, August 10, 1973
Há   mais   de   um   século   que   os   fotógrafos   e   os   seus   defensores   afirmam   que   a   fotografia   merece   ser
considerada uma das belas­artes. E difícil saber em que medida foram bem sucedidos. É verdade que a
grande maioria das pessoas não considera a fotografia como uma arte, inclusivamente quando a praticam,
desfrutam dela, a utilizam e a valorizam. O argumento dos seus apologistas (onde me incluo) tem sido um
pouco académico.

Agora torna­se evidente que a fotografia merece ser considerada, mesmo que não faca parte das belas­artes.
Aparentemente, a fotografia (seja o que for este tipo de actividade) irá sobreviver à pintura e à escultura tal
como as vemos desde o Renascimento. Parece ter sido uma sorte que poucos museus tenham tido suficiente
iniciativa   para   abrir   departamentos   de   fotografia,   pois   isso   significa   que   poucas   fotografias   foram
preservadas num isolamento sagrado, e que o público não considerou nenhuma fotografia como estando
fora do seu alcance (os museus funcionam como as casas nobres nas quais as pessoas podem entrar a certas
horas de visita. A natureza de classe da «nobreza» pode variar, mas, logo que uma obra é colocada num
museu, adquire o mistério de um modo de vida que exclui a grande massa).
Vou ser mais claro. A pintura e a escultura, tais como as conhecemos, não estão a morrer de nenhuma
doença estilística, de nada que fosse diagnosticado pelos horrorizados profissionalmente como decadência
cultural; estão a morrer porque, no mundo tal como ele é, nenhuma obra de arte pode sobreviver sem se
converter num bem valioso. E isso implica a morte da pintura e da escultura, porque, agora, a propriedade,
ao contrário do que acontecia no passado, está inevitavelmente oposta a todos os outros valores. As pessoas
acreditam na propriedade, mas, na essência, só acreditam na ilusão da protecção que dá a propriedade.
Todas as obras pertencentes às belas­artes, seja qual for o seu conteúdo, seja qual for a sensibilidade de um
espectador   em   particular,   devem   agora   ser   consideradas   como   simples   sustentáculos   da   confiança   do
espírito mundial do conservadorismo.

Pela sua natureza, as fotografias têm pouco ou nada de valor de propriedade, porque não têm valor como
raridade. O próprio principio da fotografia é que a imagem resultante não é única, mas, pelo contrario,
infinitamente reprodutível. Deste modo, em termos do século XX, as fotografias são registos de coisas
vistas. Podemos pensar que não estão mais próximas das obras de arte do que os electrocardiogramas.
Estaremos   assim   mais   livres   de   ilusões.   O   nosso   erro   foi   classificar   coisas   como   arte,tendo   em
consideração certas  fases do processo criativo. Mas, logicamente,  isto pode fazer que qualquer objecto
criado pelo homem seja arte. E mais útil classificar a arte por aquilo em que se tomou a sua função social.
Ela funciona como propriedade. Portanto, na sua maior parte, as fotografias ficam fora desta categoria. As
fotografias são o testemunho de uma escolha humana que foi exercida numa dada situação. Uma fotografia
é o resultado da decisão do fotógrafo de que vale a pena registar um acontecimento particular  ou um
determinado objecto que foi visto. Se tudo o que existe fosse continuamente fotografado, toda a fotografia
perderia o seu significado. Uma fotografia não celebra o acontecimento em si mesmo nem a faculdade da
visão em si mesma. Uma fotografia já é uma mensagem acerca do acontecimento que regista. A premência
desta mensagem não esta inteiramente dependente da premência do acontecimento, mas também não pode
ser completamente independente dela. A mensagem, nos termos mais simples, decifrada, significa: decidi
que ver isto é algo que merece ser registado.
Isto  é  tão  verdadeiro   para  as  fotografias  memoráveis   quanto para  os  instantâneos   mais banais.  O  que
diferencia umas das outras  é o grau em que uma fotografia explica a mensagem, o grau em que uma
fotografia   faz   que   a   decisão   do   fotógrafo   seja   transparente   e   compreensível.   Assim,   chegamos   a   um
paradoxo mal compreendido que cada fotografia encerra. Esta constitui um registo automático, através da
medição da luz, de um dado acontecimento, e, no entanto, utiliza esse acontecimento dado para explicar o
seu registo. A fotografia é o processo de tornar a observação consciente de si mesma.

Temos de nos desembaraçar da confusão que suscita a comparação continua da fotografia com as belas­
artes. Todos os livros de fotografia falam da composição. Uma boa fotografia é aquela que tem uma boa
composição. Contudo, isso só é verdade na medida em que considerarmos as imagens fotográficas como
uma imitação das imagens pintadas. A pintura é a arte da disposição, pelo que é justo exigir que haja algum
tipo de ordem no que está a ser disposto. Todas as relações entre formas numa pintura podem adaptar­se até
certo ponto ao objectivo do pintor. Não é isso que acontece com a fotografia, a menos que incluamos essas
obras absurdas de estúdio em que o fotógrafo prepara todos os pormenores do tema antes de disparar a
máquina. A composição, no sentido profundo, formativo, da palavra,  não pode entrar na fotografia.  A
disposição formai de uma fotografia não explica nada. Os acontecimentos retratados são, em si mesmos,
misteriosos   ou   explicáveis,   consoante   o   conhecimento   que   o   espectador   tenha   deles   antes   de   ver   a
fotografia. O que confere então significado à fotografia enquanto fotografia? O que torna a sua mensagem
mínima ­ decidi que ver isto é algo que merece ser registado ­ tão grande e vibrante?

O verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível, porque deriva de um jogo, não com a forma, mas com
o tempo. Poder­se­ia argumentar que a fotografia está tão próxima da música quanto da pintura. Disse atrás
que uma fotografia é testemunho de uma escolha humana. Esta escolha não é entre fotografar x e y, mas
entre fotografar num momento x ou num momento y. Os objectos registados em qualquer fotografia (desde
os mais notáveis até aos mais vulgares) têm aproximadamente o mesmo peso, a mesma convicção. O que
varia é a intensidade com a qual tomamos consciência dos pólos de ausência e presença. Entre estes dois
pólos,   a   fotografia   encontra   o   seu   significado   adequado   (o   uso   mais   comum   da   fotografia   é   como
recordação do ausente). Uma fotografia, ao registar o que foi visto, refere­se sempre, e pela sua própria
natureza, ao que não é visto. Isola, preserva e apresenta um momento extraído de um continuo. O poder de
uma pintura depende das suas referências internas. As referências ao mundo natural para além dos limites
da superfície pintada nunca são directas: processam­se por equivalências. Ou, dizendo de outra maneira, a
pintura   interpreta  o  mundo,  traduzindo­o  na   sua   própria   linguagem.  Mas  ela  não  tem   uma   linguagem
própria.   Aprende­se   a   ler   fotografias   da   mesma   maneira   que   se   aprende   a   ler   pegadas   ou
electrocardiogramas.  A linguagem  em  que a fotografia  se exprime  é a linguagem  dos acontecimentos.
Todas as suas referências são externas a ela própria. Daí o continuo.

Um realizador de cinema pode manipular o tempo como um pintor pode manipular a confluência dos
acontecimentos que pinta. O fotógrafo, não. A única decisão que pode tomar refere­se ao momento que
escolhe isolar. Contudo, esta aparente limitação confere à fotografia o seu poder único. O que mostra evoca
o que não se mostra. Pode olhar­se para qualquer fotografia para verificar que isto é verdade. A relação
imediata entre o que está presente e o que está ausente é especifica de cada uma delas: pode ser a relação
entre o gelo e o sol, entre a dor e a tragédia, entre um sorriso e um prazer, entre um corpo e o amor, entre
um cavalo de corrida vencedor e a corrida em que participou.

Uma fotografia é eficaz quando o momento escolhido que regista contém uma partícula de verdade que é
aplicável de maneira geral, que revela tanto o que está ausente na fotografia quanto o que está presente
nela. A natureza desta partícula de verdade, e os modos como pode ser discernida, varia enormemente.
Pode   encontrar­se   numa   expressão,   numa   acção,   numa   justaposição,   numa   ambiguidade   visual,   numa
configuração. Esta verdade também nunca pode ser independente do espectador. Para o homem que tem no
bolso uma fotografia da namorada do tipo Polyfoto, a partícula de verdade numa fotografia «impessoal»
ainda tem de depender das categorias gerais que já estão na mente do espectador. Tudo isto pode parecer
próximo do velho principio da arte que transforma o particular em universal. Mas a fotografia não se ocupa
de construções. Não há   transformação na fotografia. Apenas há decisão, apenas focagem. A mensagem
minimalista de uma fotografia pode ser menos simples do que o que pensamos na primeira abordagem. Em
vez de ser: decidi que ver isto é algo que merece ser registado, poderíamos descodificá­la como o grau em
que creio que isto merece ser olhado pode ser avaliado por tudo o que deliberadamente não mostro,
porque está contido no seu interior.

Porquê   complicar   desta   maneira   uma   experiência   que   temos   várias   vezes   por   dia   ­   a   experiência   de
observar uma fotografia? Porque a simplicidade com que muitas vezes tratamos esta experiência é inútil e
confusa.   Pensamos   nas   fotografias   como   obras   de   arte,   como evidencias   de   uma   verdade   particular,
como similitude,  como novos  objectos.  De  facto,  cada  fotografia   é  um  meio  de  verificar,  confirmar  e
construir uma visão total da realidade. Dai o papel crucial da fotografia no combate ideológico. Dai a
necessidade de que compreendamos uma arma que podemos usar e que pode ser usada contra nós.

John Berger, Understanding a Photograph, em The Look of Things, Viking Press, Nova Iorque, 1974
à(s) 15.8.14 

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