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AS TRÊS FACES DO MODERNISMO EM MÁRIO DE ANDRADE – O “ESCREVER

BRASILEIRO”, A NARRAÇÃO E A CULTURA ALEMÃ EM AMAR, VERBO


INTRANSITIVO1

João Alfredo Ramos Bezerra2


Lilian Kelly Ferreira Teixeira3
Samara Silva Monteiro 4

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 1927, Mário de Andrade publica a narrativa Amar, verbo intransitivo, obra escrita
entre 1923-24 e terminada em 1926. A história trata de uma “lição de amar”: a imigrante
alemã Elza é contratada como instrutora para a iniciação amorosa do jovem Carlos, único
filho homem da família Sousa Costa. No decorrer da obra, diversos aspectos da sociedade
paulista do início do século XX são apresentados: não apenas suas reações diante dos avanços
notados tanto no âmbito tecnológico quanto no comportamental, mas também as influências
recebidas de diversas partes do mundo a cada instante.
Em Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade explora – por trás de um título
aparentemente isento de qualquer polêmica – a vida da burguesia paulistana dos anos 1920 e o
faz adotando os seguintes preceitos modernistas: escrever conforme a língua que o povo
brasileiro fala; considerar o caráter fragmentário da época, refletindo-o no modo de narrar; e
“apropriar-se” antropofagicamente do elemento estrangeiro. Tais aspectos serão os pontos
sobre os quais se debruçará o presente ensaio.

1. O “Escrever Brasileiro”

"estralos", "compridas", "malacabada", "sabenças", "nunca jamais", "dezasseis",


"assustadiças", "arre!", "desinfeliz", "assuntou".

Há quem diga que as palavras acima estão erradas, que pleonasmos não são aceitáveis,

1 Trabalho apresentado na disciplina Literatura Brasileira III, ministrada pela Profª Ms. Sayuri G. Matsuoka,
como aproveitamento de créditos.
2 Graduando em Letras – Português/ Inglês pela Universidade Federal do Ceará.
3 Graduanda em Letras – Português/ Literatura pela Universidade Federal do Ceará.
4 Graduanda em Letras – Português/ Francês pela Universidade Federal do Ceará.
que aglutinações são vícios e que algumas acima (“arre!”) não fazem sentido. São palavras
extraídas de uma obra modernista e, de acordo com a visão do autor, não está errado. Isso se
levarmos em consideração que a grande maioria dos brasileiros fala assim. É o linguajar de
um povo distante da realidade burguesa, letrada, rica. E, de acordo com a realidade adversa e
severa, que é a da maioria dos falantes do português do Brasil, está corretíssimo.
Perfeitamente compreensível. É a gramática diária deles. Mais para uns que para outros,
variando de acordo com a região. E esta foi a maneira que Mário de Andrade encontrou,
injetando boas doses de regionalismos, vulgarismos, idiotismos, gíria e sintaxe pouco
ortodoxa, para construir a linguagem do livro Amar, verbo intransitivo (1927) e fazer dele um
experimento, um ensaio verbal para o que viria em seguida, que é a sua obra prima, pela qual
é lembrado por todos: Macunaíma (1928).

“O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo


de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia
era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de
medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia
mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos:
- Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato!” (ANDRADE, s/d.,
p.13)

Há um certo despojamento, um espírito jovial. A leitura é fluida, íntima de um verbo


que os populares usam e ele é rápido, porque econômico na fala. Prioriza a mensagem,
formula a gramática de acordo com a necessidade da comunicação. Este é o estilo que Mário
de Andrade utilizou para escrever – oral, porque dessa maneira se aproximava ainda mais da
identidade do brasileiro do cotidiano, e fluido porque evita palavras desconhecidas,
aprimorando o estilo mais nacional por falar menos com as palavras da minoria e mais com o
espírito do povo.
Em carta a Manuel Bandeira, em outubro de 1924, provavelmente quando do término
da primeira redação de Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade apresenta uma síntese de
seu projeto e ressalta sua escolha:

“O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica, teoria, psicologia e até
romance: sou eu. E eu pesquisador. Pronomes oblíquos começando a frase, 'mandei
ela' e coisas assim, não na boca de personagens, mas na minha direta pena. Fugi do
sistema português. Que me importa que o livro seja falho. Meu destino não é ficar.
Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos. Se
conseguir que se escreva brasileiro sem por isso ser caipira mas sistematizando erros
diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já
cumpri o meu destino. Que me importa ser louvado em 1985? O que eu quero é
viver a minha vida e ser louvado por mim nas noites antes de dormir. Daí: Fräulein.
Confesso-te que sou feliz.” (ANDRADE, 1924 apud LOPEZ, 1981.)

Como se vê, para o ficcionista que busca a psique brasileira, a base é a língua falada, o
que não coloca apenas a ideia de arte ligada à vida, mas também a ideia de som, de texto
atento para a sonoridade.
Estilo de escrever como se fala, registrando formas sonoras que foram colhidas de
estudos e pesquisas que o autor fez com as camadas desfavorecidas, longe dos grandes centros
urbanos, bem onde está a raiz da linguagem brasileira, pura, inculta e que funciona destarte a
gramática e as imposições: "Está errado. Se fala assim e não assado", pontuando à medida que
se pensa, tal como na fala. Narrador fiel ao fluxo do pensamento. Fiel à oralidade. Meio seco,
às vezes, com a gramática tradicional, mas muito próximo ao povo e à sua realidade.

"Se impacientou. Quis pensar prático, e o almoço? Porque o criado não chegava? A
senhora Sousa Costa avisara que o almoço era já. Devia de ser já. No entanto
esperava fazia bem uns quinze minutos, que irregularidade. Olhou o relógio-
pulseira. Marcava aluado como sempre, ponhamos seis horas. Ou dezoito, à escolha.
Havia de acertá-lo outra vez quando chegasse em baixo no hol. Dez vezes, cem
vezes. Inútil mandá-lo mais ao relojoeiro, mal sem cura. Em todo o caso sempre era
relógio. Porém não teriam hora certa de almoçar naquela casa? Olhou pro céu. Ficou
assim." (ANDRADE, 1944, p. 51)

Permeia a obra um olhar cinematográfico, um objetivismo de quem não tem outro


interesse senão comunicar uma cena sem muitos floreios. Descreve a imagem, as ações de
modo finito evitando a prolixidade. Em alguns momentos o personagem fez. Aconteceu.
Ponto.

“Lhe davam o lugar na Universidade... A janta acabava... Ele atirava-se ao estudo...


Ela arranja de novo a toalha sobre a mesa... Temos concerto da Filarmônica amanhã”
(ANDRADE, 1944, p. 64)

A gramática portuguesa não comanda o escritor; sua linguagem está determinada por
seu projeto literário que engloba naturalmente o projeto estético e o ideológico do modernista:
a construção de uma arte nacional, capaz de se alçar – ainda que um dia – ao universal,
traduzindo, tocando verdades humanas.

"É coisa que se ensine o amor? Creio que não. Pode ser que sim. Fräulein tinha um
método bem dela. O deus paciente o construíra, talqual os prisioneiros fazem essas
catitas cestinhas cheias de flores e de frutas coloridas. Tudo de miolo de pão, tão
mimoso!" (ANDRADE, 1944, p. 63)

2. O Narrador e o Autor

Amar, verbo intransitivo pode ser considerada uma obra de pesquisa estética bastante
significativa de Mário de Andrade. Em outras palavras, o autor não apenas produz um texto
literário, mas também teoriza acerca do processo de escrita no decorrer do próprio livro. Isso
ocorre nas passagens dedicadas às digressões do narrador: a partir de certos acontecimentos
da narrativa, o narrador passa a “teorizar” sobre determinados aspectos que revelam seu ponto
de vista em relação ao tempo em que vive e à sociedade na qual está inserido; em meio a tais
aspectos, encontram-se reflexões sobre o processo de criação literária e a recepção da obra
pelo leitor, questões essas que serão focalizadas neste tópico.
A princípio, pode-se “tentar” classificar o narrador de Amar, verbo intransitivo como
onisciente – em 3ª pessoa – e de caráter predominantemente descritivista – dedicado à
descrição dos acontecimentos. Porém certos traços revelados no decorrer da narrativa tornam
essa classificação, de certa forma, redutora e questionável.
Um desses traços diz respeito ao peso que é dado aos personagens. Eles são
construídos no texto, mas crescem de tal maneira que a narração parece estar a serviço deles:
são os personagens que determinam o desenrolar dos fatos, e não a voz do narrador. Eis o
efeito de sentido provocado por passagens como esta:

“Aquilo de Fräulein falar que 'hoje a filosofia invadiu o terreno do amor' e mais duas
ou três largadas que escaparam na fala dela, só vai servir pra dizerem que o meu
personagem está mal construído e não concorda consigo mesmo. Me defendo já.
Primeiro: Que mentira, meu Deus! dizerem Fräulein, personagem inventado por
mim e por mim construído!não construí coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu,
era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse. Nem a invocasse, pois sou incréu de
mesas volantes e de médiuns dicazes. (...)
Um dia, era uma quarta-feira, Fräulein apareceu diante de mim e se contou. O que
disse aqui está com poucas vírgulas, vernaculização acomodatícia e ortografia. Os
personagens, é possível que uma disposição particular e momentânea do meu
espírito tenha aceitado as somas por eles apresentadas, essa toda a minha falta.
Porém asseguro serem criaturas já feitas e que se moveram sem mim. São os
personagens que escolhem os seus autores e não estes que constroem as suas
heroínas. Virgulam-nas apenas, pra que os homens possam ter delas conhecimento
suficiente. Segunda e mais forte razão: Afirmarem que Fräulein não concorda
consigo mesma... Mas eu só queria saber neste mundo quem concorda consigo
mesmo! Somos misturas incompletas, assustadoras incoerências, metades, três-
quartos e quando muito nove-décimos. Até afirmo não existir uma só pessoa
perfeita, de São Paulo a São Paulo, a gente fazendo toda a volta deste globo, com
expressiva justeza adjetivadora, chamado de terráqueo.” (ANDRADE, 1944, p. 79)
Na citação acima, os personagens são descritos como seres dotados de autonomia que
exercem influência direta sobre a narrativa. Além de personagens, são também construtores
do texto. Tais reflexões feitas pelo narrador no decorrer da obra conferem a Amar, verbo
intransitivo um matiz de simultaneidade, graças à característica da escrita automática, a qual,
segundo Alfredo Bosi, está presente em Mário de Andrade e diz respeito a uma teoria “(...)
que os surrealistas pregavam como forma de liberar as zonas noturnas do psiquismo, únicas
fontes autênticas de poesia.” (BOSI, 1994, p. 347-348). Esse efeito de simultaneidade da
construção textual acaba por descentralizar o processo de criação literária, expandindo a
“autoria” também para o leitor. Em outras palavras, Mário de Andrade estrutura de tal
maneira seu livro que articula as semelhanças entre as figuras do Narrador e do Autor de
modo a construir uma ambiguidade entre elas e a conferir à leitura um papel de destaque para
a compreensão da obra. Isso pode ser exemplificado na passagem que segue:

“Não vejo razão pra me chamarem vaidoso se imagino que o meu livro tem neste
momento cinqüenta leitores. Comigo 51. Ninguém duvide: esse um que lê com mais
compreensão e entusiasmo um escrito é autor dele. (...)
Volto a afirmar que o meu livro tem 50 leitores. Comigo 51. Não é muito não.
Cinqüenta exemplares distribuí com dedicatórias gentilíssimas. Ora dentre cinqüenta
presenteados, não tem exagero algum supor que ao menos 5 hão de ler o livro. Cinco
leitores. Tenho, salvo omissão, 45 inimigos. Esses lerão meu livro, juro. E a lotação
do bonde se completa. Pois toquemos para a avenida Higienópolis!” (ANDRADE,
1944, p. 57)

No fragmento acima, o Narrador relaciona a si mesmo atividades que diriam respeito


ao Autor biográfico Mário de Andrade, como o tratamento do texto enquanto “o meu livro”, a
distribuição dos exemplares, as dedicatórias e a presença de leitores. Esta última atividade
citada tem um papel crucial para a obra Amar, verbo intransitivo, o qual pode ser
exemplificado no trecho a seguir:

“Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas.
É bem desagradável, mas logo depois da primeira cena cada um tinha a Fräulein dele
na imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de
qualquer familiaridade com a moça a minuciasse em todos os seus pormenores
físicos, não faço isso. Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria
fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um só idílio.
51, com a minha, que também vale. Vale, porém não tenho a mínima intenção de
exigir dos leitores o abandono de suas Elzas e impor a minha como única de
existência real. O leitor continuará com a dele. Apenas por curiosidade, vamos
cotejá-las agora. Pra isso mostro a minha nos 35 janeiros dela.” (ANDRADE, 1944,
p. 57)

Nessa passagem é importante ressaltar que o narrador estabelece uma equiparação


entre a Fräulein que será descrita por ele e as Fräuleins que surgirão na imaginação dos
leitores – “51, com a minha, que também vale.” –, ou seja, ele não quer impor de imediato
uma descrição sem reconhecer antes o papel desempenhado por aqueles que lerão o texto – os
quais, por fim, serão também seus autores – e a liberdade da personagem dentro da obra,
característica já citada anteriormente – “ (...) teria sido indiscreto se antes de qualquer
familiaridade com a moça a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso.”.
Tal liberdade é tão marcada no texto que, em determinados trechos o narrador hesita se deve
ou não proceder à narração devido ao acontecimento que será narrado. O fragmento a seguir,
por exemplo, trata de uma cena íntima entre Fräulein e Carlos. O narrador assim procede:

“Aqui devem-se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação – se ele


der espaço para tanto entre os dois! – porém obedeço a várias razões que obrigam-
me a não contar a cena do quarto. Mas como nos será impossível dormir, ao leitor e
a mim, ambos naquela torcida pelo triunfo de Carlos, vamos gastar este resto de
noite resolvendo uma questão pançuda: Quais eram de fato as relações entre
Fräulein e o criado japonês? Inimigos? Quem me falou que eles se entendem?...”
(ANDRADE, 1944, p. 97)

O tratamento dado por Mário de Andrade à narração de Amar, verbo intransitivo no


que tange ao efeito de simultaneidade da escrita e ao constante diálogo com o leitor faz
lembrar o procedimento estilístico de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, como se pode verificar no excerto a seguir, retirado do capítulo “O Senão do Livro”:

“Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que
fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é
tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a
sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave e, aliás, ínfimo, porque o
maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer e o livro anda
devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente e este livro e
o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param,
resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem.” (MACHADO
DE ASSIS, 2004, p. 118-119.)

É notável o destaque que ambos os livros dão à figura do leitor e à proximidade entre
narrador e autor. Porém faz-se necessário apontar uma diferença crucial entre os dois: a
identidade do narrador. Ainda que tanto no texto machadiano quanto no de Mário de Andrade
seja perceptível uma relação de proximidade entre narrador e autor, na primeira narrativa
encontramos um narrador identificado que foi criado por Machado de Assis: Brás Cubas. Este
conta suas memórias, mas é sabido que não é seu autor efetivo, pois a autoria do texto é do
escritor carioca, o qual teve existência real, ao contrário de seu narrador. No caso de Amar,
verbo intransitivo, a situação é distinta, pois o fato de não haver identificação alguma do
narrador contribui não apenas para o crescimento da ambiguidade entre ele e o autor
biográfico, mas também para uma maior proximidade entre leitor e obra, tendo em vista que o
texto passa ao leitor a sensação de que se está conversando diretamente com o autor da obra.
A síntese de todas essas características da narrativa de Mário de Andrade resulta numa
obra que, ao ver de Flávio Loureiro Chaves (1970), representa bem o caráter fragmentário e
polifônico dos “tempos modernos”:

“Desaparece o narrador onisciente, recusa-se a unidade narrativa enquanto caminho


exclusivo para a construção do personagem, nega-se ao leitor a posição de mero
observador. Passa-se a explorar, isto sim, aquele rico 'potencial das zonas
indeterminadas' (...).” (CHAVES, 1970, p. 29)

Tais “tempos modernos” são revelados por Mário de Andrade não apenas através de
sua linguagem ou de seu procedimento estético, mas também de sua observação, enquanto ser
histórico, das influências culturais pelas quais passava o Brasil do início do século XX,
temática que será abordada no tópico seguinte.

3. A Cultura Alemã na Obra: Zwischen den Zeilen

O primeiro motivo pelo qual podemos destacar o porquê do interesse de Mário de


Andrade pelo idioma alemão é que o autor queria conhecer mais a arte e a literatura desse
povo, mais especificamente o Expressionismo. Além de se “desintoxicar do exagerado
francesismo do ser” (ANDRADE, 1972, p. 314-315). Com o alemão, foi possível a leitura dos
clássicos e a aproximação dos movimentos artísticos.
A língua alemã não é uma língua tão fácil de se entender ou de se traduzir. O fato de
alguns vocábulos surgirem a partir da junção de outros dois (ou mais) é bem característico. A
união de das Feuer (o fogo) com das Zeug (a coisa), formando das Feuerzeug gera “o
isqueiro”, ou seja, “a coisa de fogo”. Isso é um feito ótimo para a Literatura, podendo gerar
não apenas interpretações variadas, mas também outros recursos, como neologismos e rimas,
os quais nem todas as línguas podem acompanhar. Mário de Andrade desperta um interesse
por essa língua e reflete a sua aprendizagem, principalmente em Amar, verbo intransitivo .
Foi ainda com o auxílio do alemão que o autor chegou a Macunaíma, a partir de
escritos do etnólogo Theodor Koch-Grünberg, como Vom Roroima zum Orinoco, a obra
Indianern arehen aus Südamerika (de onde o título foi tirado do texto “Makunaíma und Pia”).
O alemão, em contraste com a cultura brasileira, é bem diferente das outras línguas. O
francês é essencial à educação, o inglês começa a se tornar importante com o crescimento da
influência dos Estados Unidos no cenário mundial, o italiano é utilizado pelas massas de
trabalhadores em São Paulo. Já o alemão, fragmentado na própria Alemanha, é um pouco
isolado na região sul brasileira, não ganhando tanto destaque. No romance, o idioma refletirá
tanto esse isolamento quanto será essencial na construção psicológica da personagem
principal, a Fräulein.
Como caracterização do alemão (nacionalidade), Mário considera duas faces: o
homem-da-vida, “espécie prática do homem que Sócrates se dizia” (ANDRADE, 1944, p.59),
e o homem-do-sonho, “o cujo que sonha, trapalhão, obscuro, nostalgicamente filosófico,
religioso, idealista incorrigível, muito sério, agarrado com a pátria, com a família, sincero e
120 quilos” (ANDRADE, 1944, p.59-60). O primeiro é aquele que se adapta; o outro é
imutável. A mistura dos dois gerava Fräulein.
Há ainda os estudos de Freud e sua psicanálise, em alemão. Na obra temos a Fräulein,
contratada como professora de alemão e piano e como “professora-de-amor” para Carlos. E
todo o desenlace desse amor dá-se durante as aulas de alemão. Segundo a estudiosa Pincherle:

Mas há um uso ainda mais profundo da língua no seu aspecto “privado”: o recurso
psicanalítico, freudiano, ao lapso como a um sinal revelador de desejos ou medos
inconscientes dos protagonistas. Dado que as lições de alemão coincidem com as
aulas de amor é natural que Fräulein aproveite o ato da correção como um
instrumento de aproximação e cumplicidade, criando um contato sensual com seu
aluno. E, sutilmente, o autor escolhe termos significativos para sublinhar o momento
crucial. (PINCHERLE, 2008, p.128)

O fato da correção é usado nas passagens em que a língua é fundamental. Ao final de


um poema de Heine, Carlos escreve errado e Fräulein usa sua mão por cima da mão do
menino para fazê-lo corrigir. Em outra ocasião, Carlos questiona-se acerca da grafia de uma
palavra e Fräulein, novamente, entra em contato físico com ele. No final da cena, ocorre o
primeiro beijo entre os dois. Ainda segundo Pincherle:

Nos dois casos, a palavra correta põe fim a um momento de forte tensão. Mas além
desta função narrativa, há sempre um valor simbólico dos termos alemães, encerrado
em seu próprio significado. O aluno de alemão e de amor é ainda um principiante
em ambos os domínios: sua hesitação sobre a grafia das palavras corresponde ao
fato de que ele ignora seu sentido real, da mesma forma que não entende a natureza
dos próprios sentimentos. Ignora o “sossego nas profundezas” do sentimento por
Fräulein e que este sentimento é “desejo”. Seu guia, conduzindo-o fisicamente à
grafia correta das palavras, leva-o, ao mesmo tempo, a tomar consciência de seu
sentido verdadeiro. Significante e significado são iluminados ao mesmo tempo.
(PINCHERLE, 2008, p.129)

Outro momento em que a língua alemã é muito importante é quando Fräulein e Carlos
sabem o significado, porém esqueceram a tradução da palavra Geheimnis (segredo). O uso da
palavra causa um efeito, o qual somente o português não conseguiria. Os dois esqueceram
como traduzir Geheimnis e ficaram inquietos por isso. Depois de um momento (de
isolamento) não há o que temer, já que apenas significa “segredo”, não significando o segredo
deles dois. A autora conclui em seu estudo:

Por um processo de aprofundamento progressivo no pensamento e na linguagem dos


personagens, Mário chega a insinuar-se no fundo da alma deles e a mostrá-la a seu
público através de termos estrangeiros. Estes, alheios ao narrador, são por isso ainda
mais contundentes, adquirindo sentidos duplos ou múltiplos e ressoando, não só com
suas conotações evidentes, mas também com seus valores escondidos.
(PINCHERLE, 2008, p.130)

O uso que Mário faz do alemão vai além de um simples jogo de palavras. A língua
alemã, como já foi dito antes, não é fácil de traduzir e dá abertura para diversas interpretações,
deixando coisas subentendidas ou, como em bom alemão, Zwischen den Zeilen – nas
entrelinhas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Mário de Andrade apresenta uma riqueza e uma diversidade que não
caberiam no espaço de um ensaio. O próprio livro por nós trabalhado, Amar, verbo
intransitivo, possui ainda muitas peculiaridades que não foram contempladas devido às
limitações deste trabalho, mas que poderão ser um ponto de partida para futuras pesquisas
acerca das produções legadas por um dos escritores mais destacados da Semana de Arte
Moderna.
Gostaríamos de ressaltar, por fim, que Amar, verbo intransitivo vai muito além do
idílio designado no subtítulo do livro. Trata-se de uma obra que aborda questões crucias
presentes na sociedade brasileira do início do século XX. Sejam elas de ordem cultural –
devido ao contato com o estrangeiro e com os avanços da modernidade –, estético-literária –
graças ao advento do Modernismo – ou simplesmente humana – com aspectos que,
ultrapassando fronteiras, instigavam o homem universal, não apenas o brasileiro –, deve-se
atentar para o fato de que, acima de tudo, foram reveladas a nós através de uma das maneiras
mais eficazes para se transmitir a essência de um tempo: a arte. E ela é quem as levará às
gerações posteriores.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. 16ª ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1944.
__________________. Macunaíma. Série Arca Literária. s/d. Livro eletrônico disponível em:
<http://acasadoebook.blogspot.com/2009/05/download-macunaima-mario-de-andrade.html>,
acesso em 05/06/10, às 19:45.
__________________. Teutos mas músicos. (Artigo para O Estado de São Paulo de 1939).
Agora em ANDRADE, Mário de. Música doce música. São Paulo: Martins, 1972.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CHAVES, Flávio Loureiro. Contribuições de Oswald e Mário de Andrade no Romance
Brasileiro. In: CHAVES, F. L. (et all.). Aspectos do Modernismo Brasileiro. Porto Alegre:
Editora da UFRS, 1970.
LOPEZ, Telê Porto A. Uma difícil conjugação [introdução]. Mongaguá, dezembro de 1981.
In: ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. 16ª Ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1944
(data da 1ª edição).
MACHADO DE ASSIS. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Gold Editora, 2004.
PINCHERLE, Maria Caterina. "O linguajar multifário": os estrangeiros e suas línguas na
ficção de Mário de Andrade. Disponível online em:
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rieb/n47/a07n47.pdf >, acesso em 03/06/10, às 13:22.

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