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As noções hegelianas de desejo e negatividade na gênese das categorias do


imaginário e do simbólico

Alexandre Cherulli Marçal


Mestrando em filosofia na UFF. Bolsista CNPq. alexandrecherulli@gmail.com

Resumo: Trata-se de apresentar as categorias do imaginário e do simbólico tais como


estabelecidas por Jacques Lacan no início de seu percurso intelectual. Para tanto, escolhemos
como chave de leitura as referências à filosofia hegeliana. A leitura kojèviana dos conceitos
de desejo e de negatividade funciona como base discursiva através da qual Lacan opera a
formação dessas categorias no período do “retorno a Freud”. A partir da articulação dos dois
pensadores acreditamos que seja possível repensar o estatuto da noção de realidade e de
alteridade tanto na filosofia quanto na teoria psicanalítica.

Palavras-chave: desejo, negatividade, alteridade, realidade, linguagem

Muitas vezes o estilo de Lacan torna difícil uma reconstrução cuidadosa dos “quês” e
“porquês” das referências a autores que participam da formação de seu pensamento. Ainda
assim, existem pistas que podem nos apontar caminhos profícuos.
Em meados dos anos 30, mais precisamente no inverno de 1933-34, Lacan começa a
participar dos seminários sobre a filosofia hegeliana ministrados pelo russo Alexander
Kojève. Levado por Georges Bataille e acompanhado por uma célebre plateia Lacan inicia seu
contato com a literatura hegeliana e, em pouco tempo, tal contato se tornará decisivo para a
formação de seu pensamento. Porém, vale lembrar que antes de chegar aos seminários de
Kojève, Lacan era um jovem psiquiatra já reconhecido nos meios intelectuais mais diversos e
um proeminente crítico das assim chamadas “ciências psíquicas”.
Em 1936, três anos após iniciar as leituras de Hegel, Lacan escreve um artigo
intitulado Para além do princípio de realidade. A tópica introdutória desse texto reza o
seguinte: “Em torno desse princípio fundamental da doutrina de Freud, a segunda geração de
sua escola pode definir sua dívida e seu dever” (LACAN, 1998, p. 77). O problema reside na
valoração atribuída à noção de realidade, isto é, na própria delimitação de uma realidade
verdadeira oposta à realidade ilusória. Operando através dessa oposição, a psicologia e a
psiquiatria terminariam por ser incapazes de fazer valer sua pretensão científica; deslegitimam
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sua relação com a verdade justamente no momento em que acreditam alcançar um critério
rigoroso para delimitação e fundamentação de seu saber.i
Divergindo das bases que sustentam essas disciplinas, Lacan terá em vista aquilo que é
seu mote maior, a saber, fazer jus à especificidade que caracteriza a experiência analítica e
quem quiser valorizá-la “há que reconhecer o entendimento mesmo da realidade humana, na
medida em que ela se empenha em transformá-la” (LACAN, 1998, p. 84). Ou seja, modelos
epistemológicos próprios à modernidade, nos quais os critérios de verdade e os métodos de
conhecimento são aplicações exteriores ao objeto não fazem jus a essa experiência. Na
introdução da Fenomenologia do Espírito Hegel promove uma crítica à noção moderna de
conhecimento que, de modo geral, tem em comum o fato de tratar a verdade e o saber como
polos não relacionais, o que resulta numa concepção de conhecimento que separa “um
verdadeiro absoluto e um verdadeiro ordinário” (HEGEL, 2011, §75); seria como se olhando
através de uma “lente bem polida” pudéssemos conhecer a verdade do objeto sem a
interferência de saberes prévios. Como que parafraseando Hegel, Lacan afirma que “se
quisermos reconhecer uma realidade característica das reações psíquicas, não convém
começarmos por escolher entre elas: é preciso começar por não escolher” (LACAN, 1998, p.
85). Ou seja, não subsumir os fenômenos a quadros categorias pré-formados
(“transcendentais”) dos saberes.
Para tanto, a experiência de linguagem que uma análise implica deve ser considerada
em toda a sua importância, reconhecendo uma “presunção de significação a qualquer
rebotalho da vida mental” (LACAN, 1998, p. 85). Nesse momento da obra lacaniana, isso
significará dizer que a experiência psicanalítica opera através de uma noção de alteridade que
lhe é essencial, pois “toca no fato simples de que a linguagem, antes de significar alguma
coisa, significa para alguém” (LACAN, 1998, p. 86). A presença de um sujeito e de um
interlocutor a quem esse sujeito se direciona será fundamental para pensar o estatuto da
experiência analítica: “a “natureza” do homem é sua relação com o homem. É nessa realidade
específica das relações inter-humanas que uma psicologia pode definir seu objeto próprio e
seu método de investigação” (LACAN, 1998, p. 91). Compreender o estatuto dessa alteridade
e como através dela o sujeito humano se forma são questões fundamentais da experiência
intelectual de Lacan que ressoam no modo como ele se apropriará da filosofia hegeliana.
Abordando a teoria da libido de Freud, Lacan coloca questões moventes do seu
pensamento:

Aqui se colocam duas questões: através das imagens, objetos do interesse, como se
constitui essa realidade em que se concilia universalmente o conhecimento humano?
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Através das identificações típicas do sujeito, como se constitui o [eu], onde é que ele
se reconhece? A essas duas questões, Freud novamente responde de passagem no
terreno metapsicológico. Ele formula um ‘princípio de realidade’ cuja crítica, em sua
doutrina, constitui o final de nosso trabalho (LACAN, 1998, p. 95).

Em outras palavras, como se constituem os objetos em vista do desejo sexual e como a


realidade intersubjetiva das imagens é responsável pela formação do sujeito? Seguir as
referências de Lacan à filosofia hegeliana pode nos ajudar a responder a essas questões e a
fornecer elementos para uma compreensão da teoria do imaginário nos anos 40/50.

Antes de Darwin, Hegel havia fornecido a teoria perene da função própria da


agressividade na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea de nossa época.
Foi do conflito entre o Senhor e o Escravo que Hegel deduziu todo o progresso
subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo surgir dessas crises as sínteses que
representam as formas mais elevadas do status da pessoa Ocidental (LACAN, 1998,
p. 123).

Lacan parece encontrar em Hegel a figura do arauto do estatuto histórico e ontológico


do sujeito humano em nossa época. De fato, parece ser “a título de uma nova antropologia que
o pensamento de Kojève participa da elaboração das teses lacanianas” (SIMANKE, 2002, p.
398). A interpretação kojèviana da história da humanidade como sendo o processo de
formação da consciência de si, baseada na dialética do senhor e do escravo de Hegel,
fornecerá a Lacan a possibilidade de erigir uma teoria não psicológica da constituição do
sujeito e da coformação entre sujeito e objeto a partir de um critério intersubjetivo.
A leitura kojèviana de Hegel parte de um critério exegético questionável que faz do
capítulo IV da Fenomenologia do Espírito uma chave de leitura para toda a obra hegeliana.
Esse capítulo aborda a passagem da consciência para a consciência de si, isto é, quando ela
reconhece o fracasso de buscar sua verdade em objetos imediatos e passa a procurar sua
certeza em algo que não um objeto dado. A consciência começa a buscar “sua satisfação em
outra consciência de si” (HEGEL, 2011, §75). Daí o título do capítulo: A verdade da certeza
de si mesmo. Essa verdade nada mais será do que outra consciência de si. O desejo será aí a
figura fenomenológica responsável pela passagem da consciência para a consciência de si.
“Com a consciência de si entramos na terra pátria da verdade” (HEGEL, 2011, §167) mas
essa entrada só se torna possível através da mediação do desejo. Devemos adiantar que essa
relação será essencialmente negadora.
Quando Kojève alude à constituição do sujeito, ele está se referindo ao processo de
formação do ser humano na realidade histórica. O sujeito não é anterior ao mundo nem a
qualquer verdade que dele se tenha, mas, antes, constitui-se nele e através dele. O mundo
exterior não aparece como realidade efetiva separada da ação do sujeito, assim como o sujeito
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não existe sem a referência ao objeto, pois “tomados isoladamente, sujeito e objeto são
abstrações” (KOJÈVE, 2002, p. 449). Também para Lacan será importante entender os modos
de constituição do sujeito e do mundo exterior, uma vez que um é impossível sem o outro:
“Somente um sujeito pode compreender um sentido; inversamente, todo fenômeno de sentido
implica um sujeito” (LACAN, 1998, p. 105).
No caso da psicanálise, como dissemos antes, sua experiência implica certa relação
intersubjetiva entre analista e analisando. E, para Lacan, tal caráter ganha mais importância se
considerarmos que é através de um outro que o eu poderá se formar. Tal como o sujeito não
existe isoladamente sem relação com objetos e nem existe previamente ao mundo que lhe
cerca, o sujeito também não existe sem uma relação com outro ser humano, seu semelhante, e
ele só se forma enquanto ser humano na medida em que é mediatizado pelo outro. É a noção
de desejo que permite essa relação. O desejo abre uma dimensão subjetiva a partir da qual o
ser humano assume o mundo e o transforma, pois o desejo que caracteriza a relação do ser
humano com o outro é marcado pela negatividade. Colocando em termos hegelianos, diríamos
que para que a unidade da consciência venha a ser essencial ela precisa realizar a experiência
de negação do objeto que se antepõe a ela, seja como objeto imediato, seja como outra
consciência de si. O eu procura subsumir todo não-eu para assim se formar e garantir sua
certeza de si mesmo. É através do movimento dialético de negação do desejo que a
consciência nasce enquanto ipseidade, singularidade oposta à vida natural. Há uma “libido
negativa” (LACAN, 1998, p. 118) que marca o descompasso do ser humano com o meio e é
nessa discordância que ele se constitui. Essa libido negativa é, em outras palavras, o desejo
compreendido enquanto Begierde, relação de falta e discordância com totalidade vital que
impulsiona o homem no drama concreto das relações socialmente partilhadas.
Esse movimento de formação da ipseidade através da negatividade do desejo e da
experiência de identificação e alienação é tratado no texto Estádio do Espelho (LACAN,
1998, p. 98) como o momento em que o ser humano se reconhece como “eu-corpo”. Tal
experiência só é possível através da alienação da imagem própria do sujeito num outro. De
fato, será somente através da imagem do semelhante que o ser humano se diferenciará do
animal para se tornar propriamente humano.ii
Esse caráter negativo que marca o descompasso do ser humano com a realidade
natural e que preside a dinâmica de constituição do eu pode ser compreendida a partir da tese
da prematuração específica do ser humano encontrada no Estádio do Espelho (LACAN,
1998, p. 100). Nos primeiros meses de vida, o bebê ainda não possui o pleno controle motor
de seus movimentos corporais e quando ele procura dar a si mesmo uma imagem de unidade
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corporal, seu corpo ainda não está plenamente formado, o que termina por caracterizar uma
inadequação essencial entre a imagem que ele faz de si e o outro do qual recebe essa imagem:

Essa relação com a natureza é alterada, no homem por uma certa deiscência do
organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial [...]. Esse desenvolvimento é
vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história a
formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita-se da insuficiência para a antecipação (LACAN, 1998, p. 100, grifo meu).

O sujeito é forçado a buscar antecipadamente fora de si a satisfação de sua unidade


uma vez cindida. Lacan nos relata que a criança vivencia essa antecipação de sua unidade
como um júbilo triunfante no momento em que encontra com sua imagem num espelho.
Entretanto, essa primeira identificação é antes o momento de uma alienação primordial, pois a
imagem que o bebê faz do próprio corpo é a introjeção da imagem especular de um não-eu.
Por isso, “o eu-corpo próprio é assim uma imagem vinda do exterior. A autorreferência [que a
formação de um ser consciente de si pressupõe] é a referência à imagem de um outro na
posição de um ideal” (SAFATLE, 2008, p. 77).
Portanto, o estádio do espelho não é vivido pelos seres humanos como um
desenvolvimento do organismo rumo a sua identidade, mas antes como uma função de
desconhecimento e de alienação. Em Lacan, essa alienação será o pré-requisito a todo vínculo
social e a situações socialmente elaboradas. O narcisismo que é fundamental à formação do eu
continua exercendo sua atividade quando o sujeito se inscreve na ordem das relações sociais.
Isso nos aponta para a relação de “concorrência” que o sujeito estabelecerá com seu
semelhante e que é descrita por Hegel no conflito entre Senhor e Escravo. Desde então, as
relações humanas serão marcadas pela rivalidade e pela agressividade.
A diferença entre a realidade animal e a realidade humana que encontramos em
Kojève é aqui válida e pode ser lida em Lacan na medida em que ela também aparece e atua
de modo específico na formulação da teoria do imaginário. O indivíduo é puro nada, vazio
ávido de satisfação que não encontra sua pertença na natureza: “Aqui, o indivíduo natural é
tido por nada, já que o sujeito humano efetivamente o é diante do Senhor absoluto que lhe é
dado na morte. A satisfação do desejo humano só é possível se mediatizada pelo desejo e pelo
trabalho do outro” (LACAN, 1998, p. 123). Numa formulação kojèviana, que não será
estranha a Lacan, diríamos que o que caracteriza a existência humana é propriamente a
presença da ausência instaurada pelo desejo. Ou seja, para alcançar sua certeza, o ser humano
busca o reconhecimento de seu desejo em outro desejo. Por isso, Kojève afirma que “a
história humana é a história dos desejos desejados” (2002, p. 13). Aí encontramos a fórmula
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kojèviana que Lacan literalmente copia: o desejo humano é desejo de desejo. No Seminário I,
Lacan como que reconhece a importância de Hegel na formação da teoria do imaginário:

Essa hiância [descompasso do ser humano com sua própria imagem] faz com que
haja uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do
acabamento do desejo - o desejo é essencialmente uma negatividade [...]. O desejo é
apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa. A relatividade do
desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em
que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização,
[...]. O sujeito localiza e reconhece originalmente o desejo por intermédio não só da
sua própria imagem, mas também do corpo do seu semelhante. É exatamente aí,
nesse momento, que se isola, no ser humano, a consciência enquanto consciência de
si. É na medida em que é no corpo do outro que ele reconhece o seu desejo que a
troca se faz. É na medida em que o seu desejo passou para o outro lado, que ele
assimila o corpo do outro e se reconhece como corpo (LACAN, 1993, pp. 172-73).

Onde Kojève vê o processo de formação do eu e de sua autonomia através da luta por


reconhecimento, Lacan vê a própria lógica imaginária que forma o sujeito numa identidade
corporal alienada, pois está fundamentada no desejo de desejo do outro, desejo de
reconhecimento do outro. Assim, desde então, o eu se encontra numa esfera de
desconhecimento. Os objetos do mundo serão formados a partir dessa relação de
desconhecimento e objetivação que está em consonância com as formações do eu. Entretanto,
além do imaginário, encontramos a categoria do simbólico. Sua gênese no pensamento
lacaniano também pode ser compreendida através das noções hegelianas de desejo e
negatividade na medida em que fundamentam uma noção de alteridade essencial para seu
funcionamento:

Portanto, o sujeito toma consciência do seu desejo no outro, por intermédio da


imagem do outro que lhe dá a fantasia do seu próprio domínio. [...] Se se deve
definir em que momento o homem se torna humano, digamos que é no momento em
que, por menos que seja, entra na relação simbólica. (LACAN, 1993, p. 182)

Tal instância é o âmbito de intersubjetividade no qual o homem pode se referir a si


mesmo e às coisas, e o faz a partir da mediação com outro. Se lembrarmos Kojève, o ser
humano só se torna consciente quando nega a imediatidade da natureza e direciona o desejo à
não-identidade que caracteriza a realidade humana. Essa negação do imediato acontecerá no
nível intersubjetivo da linguagem, ou seja, no momento de aquisição da linguagem o sujeito
perde para sempre a relação direta com as coisas na sua imediatidade. Entretanto, a
negatividade será novamente o índice de não identidade do sujeito consigo mesmo, ao invés
de ser uma afirmação autoreflexiva de sua identidade. Falar de desejo é falar de
reconhecimento, e esse reconhecimento em Lacan envolve a experiência da linguagem e, mais
propriamente, da fala do sujeito. O imaginário começa a ser concebível somente através da
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mediação do simbólico: “A troca simbólica é o que liga os seres humanos entre si, ou seja, a
palavra, e que permite identificar o sujeito. Não se trata aí de metáfora – símbolo engendra
seres inteligentes, como diz Hegel” (LACAN, 1993, p. 166).
O desejo é uma relação de falta que não se esgota em objetos ou em qualquer outra
coisa. Desejo como falta é a manifestação de uma realidade sempre negadora e movente que
caracteriza a existência humana. Para Lacan, assim como para a leitura kojèviana de Hegel, o
desejo será a ação propriamente humana na qual o ser se engendra no mundo. No entanto, por
ser essencialmente negativo, ele não se reduz a uma realidade específica, ou a determinado
objeto. Isso tem uma implicação direta no modo como Lacan irá compreender a linguagem
nesse momento. Por um lado, o “desejo é anterior a qualquer espécie de conceitualização”
(LACAN, 1992, p. 282), contudo, por outro lado, será “sempre na juntura da fala, no nível de
sua aparição, de sua emergência, [...] que se produz a manifestação do desejo. O desejo surge
no momento em que se encarna numa palavra, surge como símbolo” (LACAN, 1992, p. 294).
Afinal, o que Lacan entende pela relação entre desejo e palavra, negatividade e simbólico?
Como o desejo pode estar além da própria possibilidade de conceitualização e ao mesmo
tempo se manifestar no simbólico?
A ambiguidade do desejo e sua relação com o simbólico será uma questão central por
pelo menos mais cinco anos no trajeto lacaniano, sendo formulada e reformulada até chegar à
teoria falo como significante e a uma nova teoria do sujeito. Aqui, entretanto, interessa
somente chamar a atenção para o caráter negativo que o desejo estabelece entre a Coisa e a
linguagem.
Lacan vê na descrição que Freud faz do fort-da um momento característico importante
da formação do sujeito e de sua relação com a linguagem.

Assim, o símbolo se manifesta inicialmente como o assassinato da coisa, e essa


morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo. O primeiro símbolo em que
reconhecemos a humanidade em seus vestígios é a sepultura, e a intermediação da
morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua
história (LACAN, 1998, p. 320).

O momento em que o sujeito nasce para a linguagem é também aquele em que se


perde a relação direta com a coisa. Isso significa que, no momento em que a criança aprende a
simbolizar, seu desejo não depende mais da presença da coisa para perseverar. Ela produz no
plano do simbólico o fenômeno da presença da ausência, onde a ausência é evocada na
presença e a presença, na ausência.
Interessante notar que para Kojève a transformação do imediato em discurso é
entendida como a elevação da coisa ao conceito. Através da palavra, o conceito expressa a
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negação, e com a palavra o desejo se cristaliza numa relação de independência com a coisa.
Assim, o sujeito não é mediado e determinado unicamente por uma dialética espelhar com seu
semelhante, mas, agora, também pela ordem simbólica.
Compreendida assim, linguagem é negação, experiência de independência e morte do
objeto. Isso faz do desejo algo outro: ele existe apesar de qualquer conceitualização, ou seja,
há uma negatividade que persiste à nomeação da palavra, no entanto, ele se faz presença de
uma ausência quando é articulado simbolicamente. É a morte da coisa que permite o advir do
sujeito. O sujeito é alienado pela alteridade do Outro, lei simbólica que determina as relações
humanas. Ao mesmo tempo em que a ela aliena o desejo do sujeito, é através dela que o
desejo poderá se manifestar: como presença de uma ausência. Assim, “a linguagem serve
tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendê-lo. E é
justamente disto que se trata na experiência analítica” (LACAN, 1992, p. 308).

Referências

HEGEL, G. W. F. (1807/2011). Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes.

KOJÈVE, A. (1947/ 2002). Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Ed. UERJ.

LACAN, J. (1953-1954/ 1993). Seminário I – Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor.

_________. (1954-1955/1992).Seminário II – O eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

_________. (1966/ 1998).Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

SAFATLE, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Editora UNESP.

SIMANKE, R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana - os anos de formação. Paraná: Editora


UFPR.

i
É notável que o objetivo de Lacan não seja rivalizar com qualquer aspiração de cientificidade. Pelo contrário,
ele pretende restabelecer o que realmente poderia vir a ser uma psicologia fundamentada e positiva, o que,
até o momento, para ele, será sinônimo de psicologia concreta. Compreender o que Lacan visa ao nomear o
concreto como o próprio critério de cientificidade da psicologia marca o primeiro momento de sua
aproximação com a filosofia hegeliana. (cf. SIMANKE, 2002).

ii
No entanto, temos que chamar a atenção para o fato de que esse processo não é mero processo de
conhecimento, tal como se percebe e se conhece um objeto exterior. Ver-se no outro não é algo claro e
evidente para o sujeito: a alienação do sujeito consiste em não ver sua própria alienação, ou seja, em pensar
que é totalmente unificado e não cindido; é uma operação que poderíamos chamar de inconsciente.

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