Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Muitas vezes o estilo de Lacan torna difícil uma reconstrução cuidadosa dos “quês” e
“porquês” das referências a autores que participam da formação de seu pensamento. Ainda
assim, existem pistas que podem nos apontar caminhos profícuos.
Em meados dos anos 30, mais precisamente no inverno de 1933-34, Lacan começa a
participar dos seminários sobre a filosofia hegeliana ministrados pelo russo Alexander
Kojève. Levado por Georges Bataille e acompanhado por uma célebre plateia Lacan inicia seu
contato com a literatura hegeliana e, em pouco tempo, tal contato se tornará decisivo para a
formação de seu pensamento. Porém, vale lembrar que antes de chegar aos seminários de
Kojève, Lacan era um jovem psiquiatra já reconhecido nos meios intelectuais mais diversos e
um proeminente crítico das assim chamadas “ciências psíquicas”.
Em 1936, três anos após iniciar as leituras de Hegel, Lacan escreve um artigo
intitulado Para além do princípio de realidade. A tópica introdutória desse texto reza o
seguinte: “Em torno desse princípio fundamental da doutrina de Freud, a segunda geração de
sua escola pode definir sua dívida e seu dever” (LACAN, 1998, p. 77). O problema reside na
valoração atribuída à noção de realidade, isto é, na própria delimitação de uma realidade
verdadeira oposta à realidade ilusória. Operando através dessa oposição, a psicologia e a
psiquiatria terminariam por ser incapazes de fazer valer sua pretensão científica; deslegitimam
2
sua relação com a verdade justamente no momento em que acreditam alcançar um critério
rigoroso para delimitação e fundamentação de seu saber.i
Divergindo das bases que sustentam essas disciplinas, Lacan terá em vista aquilo que é
seu mote maior, a saber, fazer jus à especificidade que caracteriza a experiência analítica e
quem quiser valorizá-la “há que reconhecer o entendimento mesmo da realidade humana, na
medida em que ela se empenha em transformá-la” (LACAN, 1998, p. 84). Ou seja, modelos
epistemológicos próprios à modernidade, nos quais os critérios de verdade e os métodos de
conhecimento são aplicações exteriores ao objeto não fazem jus a essa experiência. Na
introdução da Fenomenologia do Espírito Hegel promove uma crítica à noção moderna de
conhecimento que, de modo geral, tem em comum o fato de tratar a verdade e o saber como
polos não relacionais, o que resulta numa concepção de conhecimento que separa “um
verdadeiro absoluto e um verdadeiro ordinário” (HEGEL, 2011, §75); seria como se olhando
através de uma “lente bem polida” pudéssemos conhecer a verdade do objeto sem a
interferência de saberes prévios. Como que parafraseando Hegel, Lacan afirma que “se
quisermos reconhecer uma realidade característica das reações psíquicas, não convém
começarmos por escolher entre elas: é preciso começar por não escolher” (LACAN, 1998, p.
85). Ou seja, não subsumir os fenômenos a quadros categorias pré-formados
(“transcendentais”) dos saberes.
Para tanto, a experiência de linguagem que uma análise implica deve ser considerada
em toda a sua importância, reconhecendo uma “presunção de significação a qualquer
rebotalho da vida mental” (LACAN, 1998, p. 85). Nesse momento da obra lacaniana, isso
significará dizer que a experiência psicanalítica opera através de uma noção de alteridade que
lhe é essencial, pois “toca no fato simples de que a linguagem, antes de significar alguma
coisa, significa para alguém” (LACAN, 1998, p. 86). A presença de um sujeito e de um
interlocutor a quem esse sujeito se direciona será fundamental para pensar o estatuto da
experiência analítica: “a “natureza” do homem é sua relação com o homem. É nessa realidade
específica das relações inter-humanas que uma psicologia pode definir seu objeto próprio e
seu método de investigação” (LACAN, 1998, p. 91). Compreender o estatuto dessa alteridade
e como através dela o sujeito humano se forma são questões fundamentais da experiência
intelectual de Lacan que ressoam no modo como ele se apropriará da filosofia hegeliana.
Abordando a teoria da libido de Freud, Lacan coloca questões moventes do seu
pensamento:
Aqui se colocam duas questões: através das imagens, objetos do interesse, como se
constitui essa realidade em que se concilia universalmente o conhecimento humano?
3
Através das identificações típicas do sujeito, como se constitui o [eu], onde é que ele
se reconhece? A essas duas questões, Freud novamente responde de passagem no
terreno metapsicológico. Ele formula um ‘princípio de realidade’ cuja crítica, em sua
doutrina, constitui o final de nosso trabalho (LACAN, 1998, p. 95).
não existe sem a referência ao objeto, pois “tomados isoladamente, sujeito e objeto são
abstrações” (KOJÈVE, 2002, p. 449). Também para Lacan será importante entender os modos
de constituição do sujeito e do mundo exterior, uma vez que um é impossível sem o outro:
“Somente um sujeito pode compreender um sentido; inversamente, todo fenômeno de sentido
implica um sujeito” (LACAN, 1998, p. 105).
No caso da psicanálise, como dissemos antes, sua experiência implica certa relação
intersubjetiva entre analista e analisando. E, para Lacan, tal caráter ganha mais importância se
considerarmos que é através de um outro que o eu poderá se formar. Tal como o sujeito não
existe isoladamente sem relação com objetos e nem existe previamente ao mundo que lhe
cerca, o sujeito também não existe sem uma relação com outro ser humano, seu semelhante, e
ele só se forma enquanto ser humano na medida em que é mediatizado pelo outro. É a noção
de desejo que permite essa relação. O desejo abre uma dimensão subjetiva a partir da qual o
ser humano assume o mundo e o transforma, pois o desejo que caracteriza a relação do ser
humano com o outro é marcado pela negatividade. Colocando em termos hegelianos, diríamos
que para que a unidade da consciência venha a ser essencial ela precisa realizar a experiência
de negação do objeto que se antepõe a ela, seja como objeto imediato, seja como outra
consciência de si. O eu procura subsumir todo não-eu para assim se formar e garantir sua
certeza de si mesmo. É através do movimento dialético de negação do desejo que a
consciência nasce enquanto ipseidade, singularidade oposta à vida natural. Há uma “libido
negativa” (LACAN, 1998, p. 118) que marca o descompasso do ser humano com o meio e é
nessa discordância que ele se constitui. Essa libido negativa é, em outras palavras, o desejo
compreendido enquanto Begierde, relação de falta e discordância com totalidade vital que
impulsiona o homem no drama concreto das relações socialmente partilhadas.
Esse movimento de formação da ipseidade através da negatividade do desejo e da
experiência de identificação e alienação é tratado no texto Estádio do Espelho (LACAN,
1998, p. 98) como o momento em que o ser humano se reconhece como “eu-corpo”. Tal
experiência só é possível através da alienação da imagem própria do sujeito num outro. De
fato, será somente através da imagem do semelhante que o ser humano se diferenciará do
animal para se tornar propriamente humano.ii
Esse caráter negativo que marca o descompasso do ser humano com a realidade
natural e que preside a dinâmica de constituição do eu pode ser compreendida a partir da tese
da prematuração específica do ser humano encontrada no Estádio do Espelho (LACAN,
1998, p. 100). Nos primeiros meses de vida, o bebê ainda não possui o pleno controle motor
de seus movimentos corporais e quando ele procura dar a si mesmo uma imagem de unidade
5
corporal, seu corpo ainda não está plenamente formado, o que termina por caracterizar uma
inadequação essencial entre a imagem que ele faz de si e o outro do qual recebe essa imagem:
Essa relação com a natureza é alterada, no homem por uma certa deiscência do
organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial [...]. Esse desenvolvimento é
vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história a
formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita-se da insuficiência para a antecipação (LACAN, 1998, p. 100, grifo meu).
kojèviana que Lacan literalmente copia: o desejo humano é desejo de desejo. No Seminário I,
Lacan como que reconhece a importância de Hegel na formação da teoria do imaginário:
Essa hiância [descompasso do ser humano com sua própria imagem] faz com que
haja uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do
acabamento do desejo - o desejo é essencialmente uma negatividade [...]. O desejo é
apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa. A relatividade do
desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em
que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização,
[...]. O sujeito localiza e reconhece originalmente o desejo por intermédio não só da
sua própria imagem, mas também do corpo do seu semelhante. É exatamente aí,
nesse momento, que se isola, no ser humano, a consciência enquanto consciência de
si. É na medida em que é no corpo do outro que ele reconhece o seu desejo que a
troca se faz. É na medida em que o seu desejo passou para o outro lado, que ele
assimila o corpo do outro e se reconhece como corpo (LACAN, 1993, pp. 172-73).
mediação do simbólico: “A troca simbólica é o que liga os seres humanos entre si, ou seja, a
palavra, e que permite identificar o sujeito. Não se trata aí de metáfora – símbolo engendra
seres inteligentes, como diz Hegel” (LACAN, 1993, p. 166).
O desejo é uma relação de falta que não se esgota em objetos ou em qualquer outra
coisa. Desejo como falta é a manifestação de uma realidade sempre negadora e movente que
caracteriza a existência humana. Para Lacan, assim como para a leitura kojèviana de Hegel, o
desejo será a ação propriamente humana na qual o ser se engendra no mundo. No entanto, por
ser essencialmente negativo, ele não se reduz a uma realidade específica, ou a determinado
objeto. Isso tem uma implicação direta no modo como Lacan irá compreender a linguagem
nesse momento. Por um lado, o “desejo é anterior a qualquer espécie de conceitualização”
(LACAN, 1992, p. 282), contudo, por outro lado, será “sempre na juntura da fala, no nível de
sua aparição, de sua emergência, [...] que se produz a manifestação do desejo. O desejo surge
no momento em que se encarna numa palavra, surge como símbolo” (LACAN, 1992, p. 294).
Afinal, o que Lacan entende pela relação entre desejo e palavra, negatividade e simbólico?
Como o desejo pode estar além da própria possibilidade de conceitualização e ao mesmo
tempo se manifestar no simbólico?
A ambiguidade do desejo e sua relação com o simbólico será uma questão central por
pelo menos mais cinco anos no trajeto lacaniano, sendo formulada e reformulada até chegar à
teoria falo como significante e a uma nova teoria do sujeito. Aqui, entretanto, interessa
somente chamar a atenção para o caráter negativo que o desejo estabelece entre a Coisa e a
linguagem.
Lacan vê na descrição que Freud faz do fort-da um momento característico importante
da formação do sujeito e de sua relação com a linguagem.
negação, e com a palavra o desejo se cristaliza numa relação de independência com a coisa.
Assim, o sujeito não é mediado e determinado unicamente por uma dialética espelhar com seu
semelhante, mas, agora, também pela ordem simbólica.
Compreendida assim, linguagem é negação, experiência de independência e morte do
objeto. Isso faz do desejo algo outro: ele existe apesar de qualquer conceitualização, ou seja,
há uma negatividade que persiste à nomeação da palavra, no entanto, ele se faz presença de
uma ausência quando é articulado simbolicamente. É a morte da coisa que permite o advir do
sujeito. O sujeito é alienado pela alteridade do Outro, lei simbólica que determina as relações
humanas. Ao mesmo tempo em que a ela aliena o desejo do sujeito, é através dela que o
desejo poderá se manifestar: como presença de uma ausência. Assim, “a linguagem serve
tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendê-lo. E é
justamente disto que se trata na experiência analítica” (LACAN, 1992, p. 308).
Referências
KOJÈVE, A. (1947/ 2002). Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Ed. UERJ.
SAFATLE, V. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Editora UNESP.
i
É notável que o objetivo de Lacan não seja rivalizar com qualquer aspiração de cientificidade. Pelo contrário,
ele pretende restabelecer o que realmente poderia vir a ser uma psicologia fundamentada e positiva, o que,
até o momento, para ele, será sinônimo de psicologia concreta. Compreender o que Lacan visa ao nomear o
concreto como o próprio critério de cientificidade da psicologia marca o primeiro momento de sua
aproximação com a filosofia hegeliana. (cf. SIMANKE, 2002).
ii
No entanto, temos que chamar a atenção para o fato de que esse processo não é mero processo de
conhecimento, tal como se percebe e se conhece um objeto exterior. Ver-se no outro não é algo claro e
evidente para o sujeito: a alienação do sujeito consiste em não ver sua própria alienação, ou seja, em pensar
que é totalmente unificado e não cindido; é uma operação que poderíamos chamar de inconsciente.