Você está na página 1de 7

SO
N
The Assassination Of

O
F
Jesse James

A
By The Coward Robert Ford

L
A Banda Sonora de Nick Cave & Warren Ellis

E
E As músicas para os Homens Infames

FA
Nome: Rafael do Carmo Afonso • Nº2101028

A
3º Ano de Licenciatura | Ano Lectivo 2017-2018

R
Produção de Música para Cinema — Prof. Emídio Buchinho
Produção de Música para Cinema

Introdução
A par de duplas como Trent Reznor e Atticus Ross, dos Nine Inch Nails, ou Geoff Barrow e
Ben Salisbury, dos Portishead e Beak., nos últimos anos, os nomes de Nick Cave e Warren Ellis
têm sido cada vez mais associados a bandas sonoras, dando um contributo consistentemente notável
aos filmes que integram, e ultrapassando com sucesso a notoriedade que conquistaram com as suas

SO
bandas de renome.
É curioso que tantos músicos com origens bem sucedidas em bandas ou a solo, façam a ponte
entre a música e o cinema (isto é, que componham uma banda sonora, ou escrevam/produzam algo
especificamente para um filme). Ao mesmo tempo, parece ser algo absolutamente inevitável,

ON
justamente porque são duas áreas com múltiplos pontos de contacto, e que facilmente se interligam.
Trata-se de uma relação simbiótica: um pode-se servir do outro, como o cinema muitas vezes se
serve de música original (e também música não-original) para guiar o filme, ou construir uma
ambiência; e como a música apresenta o meio visual dos videoclips como um companheiro útil que
informa o seu significado. O mundo da música para Cinema já não é simplesmente constituído por
AF
compositores que se dedicam única e exclusivamente à composição, e o workflow e a mentalidade
“fora-da-caixa” que uma banda acarreta, traz bastantes vantagens à própria produção de bandas
sonoras, e produz resultados que frequentemente se demonstram inovadores.
O caso do Assassination Of Jesse James By The Coward Robert Ford (2007), de Andrew
Dominik, é um pico das carreiras de Cave e Ellis enquanto compositores, e duas das peças centrais
EL
que constituem a sua banda sonora — primeiro a “Song For Jesse”, e por fim a “Song For Bob”
—, que abrem e encerram o filme, são as que mais facilmente encapsulam todo o sentimento gerado
pelo filme e pela banda sonora. Também são, coincidentemente, as duas músicas que se referem aos
dois protagonistas da história. Bem sei que transgredi um pouco as regras para este trabalho: não
FA

escolhi apenas uma música, porque sinto que separadamente, nenhuma música poderia
verdadeiramente ser um bom exemplo desta banda sonora; porém, a junção destas duas peças, para
mim, já é uma boa amostra do trabalho concretizado por Cave e Ellis.
O Poder Elegíaco, A Partir do Western
RA

Os instrumentos principais que vamos ouvir ao longo desta banda sonora são o piano (que
marca a sua presença em todas as músicas), os instrumentos de cordas (numa sobreposição que dá
lugar a dois grupos: um mais orquestral de violinos, violoncelos e contrabaixos, que por vezes
preenche os vazios, como é o exemplo da música “Money Train”; e um pequeno grupo, constituído
por, pelo menos, um violino mais velho e desafinado), guitarras e baixos (veja-se a “Carnival” e a
“Falling”), tambores (que dão um ar mais pesado, e pautam as músicas), e kits de sinos, triângulos,
!1
Produção de Música para Cinema

e alguma percussão (que, por vezes soando como gotas de água, conferem uma aura onírica e
delicada ao filme, como se pode ouvir na “Song For Jesse”). Contudo, os que se distinguem mais,
são sem dúvida o piano e as cordas (Cave está encarregue do piano, enquanto Ellis toma conta das
cordas, pode-se quase dizer), sempre num registo que não procura as grandiosidades e a epicidade
do Western que as bandas sonoras clássicas dos anos 40, e as revolucionárias bandas sonoras de

SO
Ennio Morricone evocam, mas sim a intimidade e a discrição inerentes à história que se conta.
O que Cave e Ellis fazem, ao fim e ao cabo, é servir-se das convenções do género; contudo,
subvertem as expectativas que advêm delas. Não há nunca nenhuma sensação de bondade, ou de
“movimentos contidos”, apenas uma dominância impressionista que, aliás, a fotografia também

ON
procura manter, com enquadramentos claramente inspirados no “Days Of Heaven” (1978), de
Terrence Malick, e na obra do pintor, Andrew Wyeth.
A dupla abandona bastante da sua própria herança punk e rock trazida dos grupos musicais
que integraram — os Bad Seeds e os Grinderman: já não há a presença do noise rock porque
ficaram conhecidos, ou de influências de garage rock, mas sim de um folk e blues, que algumas
AF
músicas dos Bad Seeds davam a entender conter. Aliás, se se der uma vista de olhos à carreira como
compositores de bandas sonoras destes dois artistas, podemos verificar uma tendência para filmes
do género Western e do Revisionismo do Western, com filmes como o The Proposition (2005), cujo
argumento Cave também escreveu; ou o Hell Or High Water (2016). Especializaram-se na feitura
de bandas sonoras introspectivas, quase poéticas (que tratam o Western como algo envelhecido), e
EL
que se inserem em cenários negros, violentos e tristes. Neste sentido, a música que nos apresentam
no Assassination é quase sempre empática: acompanha os momentos narrativos a um compasso
mais prolongado, geralmente em tenuto, e ao ritmo da narração, montagem, e prestação dos actores.
Convém dizer que esta característica possa talvez ser explicada pelo próprio caminho que os
FA

Seeds têm traçado ao longo dos anos: não quero tirar qualquer mérito a Cave, sem dúvida um dos
arquitectos de ambos os projectos, mas sinto que ainda mais que as suas influências, se ouvem as
influências de Ellis, com o seu violino solitário, desafinado, e old-timey (já no último álbum dos
Bad Seeds, o mais introspectivo e trágico “Skeleton Tree” [2016], o violino era um dos pontos
RA

altos); neste caso fílmico, em certos momentos faz lembrar as canções náuticas que se cantavam nos
navios, e noutros constrói o crescendo de tensão e desconfiança que as personagens sentem (a mim
até me lembra as composições de Prokofiev para a peça “Romeu & Julieta”, nomeadamente com a
“Dança dos Cavaleiros Nº13”, relativamente a faixas como “What Happens Next”).

!2
Produção de Música para Cinema

A "Song For Jesse" — O Ponto de Entrada (Intro)


Torna-se aparente logo a partir dos primeiros planos da exuberante fotografia, e a partir das
palavras que o narrador profere naqueles minutos iniciais, que o filme transpirará uma aura
contemplativa, quase poético-pastoril e bucólica, um sintoma da sua natureza literária (o filme é
baseado no romance do mesmo nome). No entanto, é a música, “Song For Jesse” que nos

SO
transporta melhor para este estado de espírito.
Num misto de curiosidade e mistério, de construção da lenda de James — a quem o narrador
se refere apenas como “ele”, um homem com diversas peculiaridades, tanto físicas (a condição do
globo ocular granulado, que o faz piscar os olhos mais vezes que o normal; a picada do bigode que

ON
os filhos sentiam quando encostavam as bochechas), como psicológicas (a sua forma de passar
despercebido sob a sua identidade falsa, e a sua paranóia discreta), e pessoais (o facto de até para os
filhos ser um autêntico desconhecido, de quem não sabiam sequer o verdadeiro nome, ou o que
fazia) —; acompanhado dos belíssimos planos de corte e sons que fielmente correspondem às
palavras do narrador (a sombra da cadeira a fazer lembrar um relógio de sol; planos paisagísticos de
AF
enormes campos de searas); começamos também a percepcioná-lo como um humano.
Ao longo sensivelmente de um ano, as personagens (e as interpretações dos actores principais,
Brad Pitt, Casey Affleck, Sam Rockwell, entre outros), prestam-se a um olhar taciturno, por vezes
até mesmo cínico (ou talvez, realista), triste e doloroso; e neste primeiro momento, o olhar de Pitt
fixo no horizonte, parece dizer-nos que já sabe que estes serão os seus últimos dias. O piano
EL
vagaroso prolonga-se até deixar de se ouvir; e os sinos, xilofones e triângulos aparecem-nos como
gotículas de água da chuva que o narrador fala.
A melancolia que todo o filme nos traz, ouve-se aqui, e acompanha a noção que Jesse James
tem da sua (iminente) mortalidade, dos seus feitos ao longo da vida, e da sua isolação; e a música
FA

que ouvimos neste começo corrobora justamente esta tese. As coisas são como são. A morte chegará
para todos eventualmente; e é por isso que paira sobre todos os momentos do filme uma espécie de
ideia de destino. O próprio título do filme dá-nos o desfecho da forma mais directa possível, mas fá-
lo de forma a não lhe retirar o mistério de como o eventual assassinato aconteceu.
RA

A "Song For Bob" — Enquanto Bob procura as


palavras certas, a música fala por ele (Outro)
O segundo momento do filme que escolhi para falar, que me parece sumarizar incrivelmente
bem a sensação que a banda sonora e o filme dão, refere-se à música “Song For Bob”, que no filme
surge nos momentos finais, numa espécie de clímax do Epílogo. No fundo, esta secção do filme
após a morte de Jesse (os últimos 15/20 minutos finais), que engloba tantos ou mais acontecimentos

!3
Produção de Música para Cinema

que no resto do filme, serve como um “canto do cisne” aos Ford (e é isso que se parece ouvir), para
demonstrar as brutais consequências da sua traição.
É curioso que a música incluída no álbum tenha uma introdução/Prólogo que no filme não
existe: salta imediatamente para o crescendo, para espelhar a dificuldade que Bob tem em admitir
os verdadeiros motivos para ter cometido o assassinato (instintos tão básicos como o medo, e o

SO
dinheiro da recompensa), deixando para trás a amargura inicial da música. Sente-se ao longo da
música uma interpelação dos diversos instrumentos que figuram nela — nomeadamente, o violino,
o instrumento que mais faz a diferença e que se vai sobrepondo aos outros (a orquestração lembra-
me, inclusive, o êxito dos Bad Seeds, a “Where The Wild Roses Grow”, com Kylie Minogue).

ON
A música sobe de intensidade, e levanta o véu sobre o momento mais catártico do filme, e a
maior ironia final da vida de Bob. Ao contrário do assassinato premeditado que dá nome ao filme
(que se tratou, no fim de contas, do emprego da justiça, ainda que se tratasse de um crime muito
íntimo, e com um enorme build-up), o assassinato de Bob foi cometido por um desconhecido que
apenas procurava fama. Assim, Jesse James, um dos mais conhecidos foras-da-lei do seu tempo,
AF
ficou conhecido como uma das figuras da mitologia americana mais sobrevalorizadas de sempre (o
povo conhecia-o como uma espécie de Robin dos Bosques, que roubava aos ricos para dar aos
pobres, algo que não podia estar mais distante da realidade); enquanto Robert foi vilificado,
esquecido pela História. Ao longo do filme, vêmo-lo a esforçar-se loucamente para ser como Jesse,
o seu herói (fumar charutos, usar chapéus, assumir uma postura descontraída e cool), e no final,
EL
essas semelhanças revelam-se ainda mais intrínsecas. A desilusão e o arrependimento acompanham-
no, e um sentimento geral de apatia preenche-o (a música muda de tom com o olhar rancoroso que
lança às cartas, mostrando-nos um lado “magoado”, mas “honrado”), porque sabe que se tornou
numa variação de Jesse, condenado a esperar a morte. Ao mesmo tempo, Bob já aceitou a condição
FA

em que se meteu.
Os freeze frames com o arrastamento das acções demonstram o quão rápido o assassinato de
Bob parece ter acontecido, e a coincidência dos fades lânguidos da música, som e da imagem no
último plano, selam o destino dos infames homens numa nota amarga.
RA

Conclusão
Naquele ano de 2007, na qual o Assassination saiu — na minha opinião, um dos melhores
anos em termos de qualidade do Cinema Norte-Americano —, saíram quatro filmes importantes
ligados ao Western e a géneros de si derivados: o já-referido “Assassination Of Jesse James By
The Coward Robert Ford”; o “There Will Be Blood”, de Paul Thomas Anderson; o “No Country
For Old Men”, dos Irmãos Cohen; e o “3:10 To Yuma”, de James Mangold. Dois deles são já
!4
Produção de Música para Cinema

considerados clássicos modernos — o There Will Be Blood e o No Country For Old Men —; o 3:10
To Yuma, é o êxito mais imediato para o público; e o Assassination um sucesso de culto, que não foi
visto por gente suficiente. Há inúmeras coisas consistentes entre estes filmes, mas há uma delas que
é mais relevante para nós: as bandas sonoras de todos estes são memoráveis (ironicamente, só a
banda sonora do 3:10 To Yuma, composta por Marco Beltrami seria nomeada para o Oscar), e no

SO
caso de There Will Be Blood (composto por Jonny Greenwood, dos Radiohead), e do Assassination,
na minha opinião, chegam a ser verdadeiramente inovadoras.
Infelizmente, devo salientar que não há muito material, ou artigos profissionais sobre a feitura
desta banda sonora, algo que me desaponta, mas que não significa que a banda sonora não deva ser

ON
discutida (porque deve).
É engraçado porque esta é daquelas bandas sonoras, na qual posso já não ter visto o filme há
muito tempo, mas se ouvir uma faixa como a “Song For Jesse”, sou imediatamente transportado
para aqueles planos belos com aberrações cromáticas que emulam fotografias antigas; e mais
importante ainda, redescubro a emoção que sinto quando vejo o filme. Julgo que seja essa a
AF
absoluta função principal da banda sonora. Sempre que ouço o contrabaixo tomar posição na “Song
For Bob”, sinto um arrepio pela espinha. É das bandas sonoras cujas músicas são mais fáceis de
memorizar e trautear, mesmo sem letras, ou grandes arranjos, porque as suas subtilezas ficam no
ouvido. Para mim, esta banda sonora (e o próprio filme) é das mais incríveis e genuinamente
bonitas dos últimos anos, porque parece que está tudo em tandem: o piano, o baixo, o violino, e os
EL
momentos em que encaixam.

Bibliografia / Fontes
“The Assassination Of Jesse James By The Coward Robert Ford” (“O Assassinato de
FA

Jesse James pelo Cobarde Robert Ford”), 2007.


Realizado por Andrew Dominik. Argumento de Andrew Dominik. Produzido por Ridley
Scott, Jules Daly, Brad Pitt, Dede Gardner & David Valdes. Fotografia de Roger Deakins. Música
de Nick Cave & Warren Ellis. Montagem de Dylan Tichenor & Curtiss Clayton. Com: Brad Pitt,
RA

Casey Affleck, Sam Rockwell, Jeremy Renner, Sam Shepard, Paul Schneider, Garret Dillahunt,
Mary-Louise Parker, Ted Levine & Zooey Deschanel. Distribuído pela Warner Bros..
Wikipedia, 2018 — “Assassination Of Jesse James By The Coward Robert Ford (Film)”.
Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/
The_Assassination_of_Jesse_James_by_the_Coward_Robert_Ford. Consultado a 12 de Maio de
2018.
!5
Produção de Música para Cinema

Pitchfork, 2018 — “Nick Cave & Warren Ellis — The Assassination Of Jesse James By The
Coward Robert Ford Album Review”, KLEIN, Joshua, 1 de Fevereiro de 2008. Disponível em:
https://pitchfork.com/reviews/albums/11121-the-assassination-of-jesse-james-by-the-coward-robert-
ford/. Consultado a 19 de Abril de 2018.
Film School Rejects, 2018 — “How Warren Ellis & Nick Cave’s Music Haunted ‘The

SO
Assassination Of Jesse James By The Coward Robert Ford’”, LORING, Allison, 5 de Dezembro de
2013. Disponível em: https://filmschoolrejects.com/how-warren-ellis-and-nick-caves-music-
haunted-the-assassination-of-jesse-james-by-the-coward-62f51989ae67/. Consultado a 20 de Abril
de 2018.

ON
AF
EL
FA
RA

!6

Você também pode gostar