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sangue. Sangue dos meus camaradas. Sangue do meu irmão. Sangue da minha Nação.
O ideal da Revolução já estava impregnado no nosso povo. Nós já não suportávamos
mais ver nossos semelhantes serem praticamente escravos dos grandes industriários.
do meu irmão. Mas fomos ingênuos. Meu deus, como fomos ingênuos! A ordem do
nosso monarca em fuzilar todos os manifestantes foi recebida por nós com uma
irmão enforcado que não voltaria atrás em nossas convicções revolucionárias. Mesmo
assim, fugi. Esse novo fracasso ainda iria ser somado a uma quantidade obscena de
revolucionária.
Sonhava acordado e, em um momento, achei ter saído do meu corpo por alguns
instantes. Questionei se o que acontecia era real ou fruto da minha mente delirante.
Percebi meu irmão de pé, ao meu lado. Seu rosto tinha feições mais amenas, mas o nó
da forca ainda balançava em seu pescoço. Ele me estendeu a mão e, quando a toquei,
não estávamos mais na Suíça, eu havia sido transportado de volta para a Rússia. A visão
ecoou aos meus ouvidos e, quando olhei para trás, deixamos o campo e chegamos à
penumbra de uma fábrica. O som ressoava ritmado, acompanhado das faíscas
avermelhadas criadas pelo impacto do martelo no ferro fundido. O silêncio caiu, e meu
irmão sussurrou em meu ouvido de forma serena: “já chega...”. Essa simples frase
adquiria incontáveis significados na minha mente, repetindo-se infinitas vezes até que
uma vertigem lancinante me levou de volta ao meu refúgio. Repeti para mim mesmo:
que temos nas nossas mãos, nossas vidas. Decidi voltar. Eu seria o que o povo esperava
de mim, objeto e símbolo de mudança, Revolução. Dessa vez eu tinha certeza, guiaria
meu povo contra essa tirania instaurada, mesmo que tivesse que utilizar de todos os
meios disponíveis para chegar a este fim, mesmo que isso significasse lutar com as
mesmas armas do inimigo. Mas desta vez não iria despreparado, não iria fazer com
que o povo lutasse no meu lugar. Eu estava pronto, mas precisava preparar mais
pessoas para me acompanhar neste caminho.
Segui para a Europa. Sabia que cada passo meu era observado, espionado.
Reuni meus camaradas em uma casa discreta, mas com uma grande oficina. A partir
de então, nossa “pequena” Revolução começou a tomar forma. Pessoas vinham de
todos os lugares, principalmente da mãe Rússia, para conhecer e estudar na nossa
precisávamos vencer de uma vez por todas o maldito Capital que escravizava nosso
povo para que a classe mais rica usufruísse de privilégios. Nestes anos, minhas
“escola”, soube que a situação havia mudado na Rússia. Lá, revoltas estouravam a todo
momento com a insatisfação da população sobre a participação da nossa Nação na
Primeira Guerra Mundial. A contínua repressão do Czar contra a população serviu para
reavivar as labaredas da Revolução. O exército estava desestruturado e os camponeses
Alemanha, simpatizante do nosso movimento. O elo com este país era forte e se
estreitava cada vez mais. Eu entendo que foi um pacto que seria cobrado no futuro,
mas, mesmo assim, decidi correr o risco. Quando finalizamos os preparativos, achei
que seria tarde demais. O Czar havia abdicado.
O governo havia ficado nas mãos do irmão mais novo de Nicolau II, Miguel, que,
por sua vez, entregou o poder a um governo-provisório comandado inicialmente pelo
Príncipe Lvov. A situação era caótica. Alexander Kerensky, que na época era ministro,
na plenária da Duma foi decisiva para essa empreita. Ele foi alçado a presidente do
governo-provisório em pouco tempo e, em menos tempo ainda, já era tido como um
salvador. Um mero burguês oportunista assumindo o comando do governo foi uma
afronta para o nosso ideário. Ainda assim, talvez por acaso, sua incompetência
conseguiu superar sua sorte.
brando por todo este tempo, estava para explodir. Boatos sobre meu iminente retorno
incentivaram outros, que, como eu, estavam no exílio. Nosso partido possuía uma
de um exército, liderado pelo camarada Trotsky. Cada peça necessária para a queda de
Kerensky estava pronta para ser movimentada. O jogo iria começar.
alemão arquitetou minha entrada de trem cruzando todo o território alemão até a
Suécia e, de lá, chegando à Rússia em um vagão selado. A princípio, pensei em rejeitar
a oferta, mas não podia perder essa chance. Eles também tinham fichas em jogo e eu
seria uma peça essencial para seus planos. Assim eu pensei e assenti pela viajem. A
estava cada vez mais próxima, mas sonhos febris me atormentavam. Crises de
ansiedade me faziam tremer naquela escuridão e, com o passar dos dias, meus
devaneios.
Ao chegar em Petrogrado, descemos na Estação Finlândia e o povo já se
não conseguia alcançar o que estava tão próximo das minhas mãos? Eu já tinha o povo
do meu lado, minha propaganda já estava disseminada em toda a Nação, tínhamos
balançando. Seus rostos estavam distorcidos de dor e de agonia, mas eles ainda
estavam vivos. Conhecia cada um deles. Eram meus camaradas, minha esposa e, no
centro, eu mesmo. Tudo era muito real para ser uma apenas uma alucinação, e, me ver
ali, entre os meus, padecendo do mesmo destino que meu irmão, me levou outra vez
para a beira do abismo da loucura. A visão permaneceu vívida até que todos os
enforcados, inclusive eu, estivessem mortos, balançando a um vento sobrenatural.
Senti um frio subindo na minha espinha e senti o chão ardendo em brasa sob meus
pés. Antes que eu entrasse em um ataque histérico, ouvi um ruído de um canto escuro
próximo da lareira apagada, e, quando direcionei meu olhar, percebi uma silhueta
esguia, anormalmente alta. “Aquilo” me olhava de cima. Pensei em perguntar quem se
para a viga da sala e grasnou como uma ave agourenta “Este é seu destino, você quer
fugir dele? Não vai demorar muito, agora”. Assenti com a cabeça. Uma inexplicável e
incômoda calma me tomara depois que a estranha criatura falou comigo. “Eu tenho
lhe acompanhado desde que você passou pelo meu território. Todas as noites observei
enquanto você suplicava para ser um ‘objeto de mudança’, desejando uma tal
‘Revolução’. Eu o ouvi e estou aqui”. Mais uma vez, “aquilo” apontou para a viga, onde
os corpos ainda balançavam, e disse “Pendurado ali, você não alcançará nada, apenas
a inevitável morte – a qual eu domino”. Me ajoelhei e, mais uma vez, supliquei em
pensamentos, agora para o “ídolo” errado. A voz agourenta parecia alegre quando
disse “As coisas vão mudar e você estará no centro da mudança. Você aceitará o preço?
Será demasiado alto, mas creio que a imortalidade é um prêmio inestimável para a
espécie ‘humana’”. Apesar de não compreender totalmente, mais uma vez assenti com
de mim. Eu estava certo de que, agora, conseguiria cumprir a minha missão. Quando
meus camaradas retornaram, eu disse que este havia sido meu último exílio e que as
passei a ouvir sussurros e vozes que me diziam exatamente o que eu devia fazer, mas
não como uma ordem, mais como uma sugestão. Inexplicavelmente, cada vez que eu
governo, já que sua liderança havia sido tão importante para alcançarmos nosso
objetivo final. Qual não foi minha surpresa quando todos, incluindo o próprio Trotsky,
decisão errada após a outra. Pensei na possibilidade de fracassar, depois de toda a luta
para chegar até onde eu cheguei. Todas as noites, sempre que eu achava que estava
sozinho, podia sentir a presença da “sombra”. Nestes casos, ela falava comigo
diretamente e me induzia a seguir seus desígnios. Mas, a cada noite, aquela voz se
parecia mais com a minha própria voz. Isso passou a me dar medo. Depois de alguns
meses, senti um pavor inominável.
aposentos. Temi que alguém pudesse escutar o teor de nossas discussões noturnas,
por isso, tentei de todas as formas silenciar os sussurros daquele “ser” odioso, que
insistia em fazer aparições noturnas. Depois desse pedido infame, deixei de seguir
todas as suas orientações. A cada dia que se passava, o “espectro” parecia a perder a
forma, ficava imenso e passava a se fundir com os cômodos que eu habitava. Depois
de mais algum tempo, em uma certa noite, a escuridão não foi embora. Permaneceu.
Perdido na escuridão, vaguei por dias, talvez meses. Pensei ter morrido, mas, em um
certo momento, consegui enxergar a mim mesmo. Eu estava em uma reunião com
vários líderes do governo instituído. Mas não era “eu”. Eles discutiam sobre a execução
da família real e comemoravam que tudo tinha transcorrido de acordo com os planos.
Nada mais poderia desafiar a hegemonia do Sovnarkom.
perdido. A fome e a miséria que tanto lutamos para combater nos anos de militância
contra o Czar haviam voltado à Rússia, mas, desta vez, sob “minha” tutela. Vi o Terror
Vermelho ser instituído por “mim” para oprimir ou eliminar membros da burguesia que
tivessem posses e fossem contra o governo. Confisquei tudo e de todos sob o pretexto
Cada vez que eu resolvia não olhar para o que “eu” estava fazendo, o tempo
passava muito rápido. Depois de anos dessa tortura insuportável, enxerguei uma luz.
Ao segui-la, caminhei por uma espécie de corredor de sombras sem saber ao certo se
a luz se aproximava ou se distanciava, mas era tudo que eu podia fazer, seguir em
frente. Pareceu bem simples e natural, mas, depois de tantos anos de escuridão total,
consegui enxergar através dos meus próprios olhos. Estava de volta ao meu corpo,
sentado na penumbra em uma grande sala com móveis luxuosos. Nela, uma grande
lareira estava acesa e, ao lado, pude perceber uma sombra, uma silhueta conhecida,
A voz agourenta de anos atrás, agora tão familiar quanto a minha própria, voltou
a me cumprimentar, mas seu tom era de pesar. “A promessa que eu lhe fiz foi cumprida.
A obra que você construiu será imortalizada para sempre nas páginas da História. É
uma pena que você tenha complicado as coisas nestes últimos anos. Você me ‘obrigou’
a assumir o controle. Mesmo assim, espero que você tenha ficado orgulhoso dos
resultados. Chegou a hora de você pagar o preço. Tomarei, por fim, sua alma. O
restante da sua consciência ficará ‘à deriva’ e você viverá como um ‘vagante’, apenas
uma ‘casca’, uma ‘sombra’ da grandeza do que você já foi, até que sua forma física
sucumba às leis naturais”. Sem conseguir dizer uma só palavra, apenas observei a
“coisa” com a qual eu selei aquele maldito acordo sair com a minha alma em suas mãos
os símbolos visionados por mim passando a ser o símbolo da nossa Nação. A União
Soviética havia nascido, mas não o ideal de nação escrita nos meus livros. Muito tempo
décadas. Mas isso já não importa mais. O que eu desconheço, também se tornou
História, e, provavelmente, você já deve conhecer, caro leitor.
Fim.