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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1

FICÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO DE CIÊNCIAS – RELATO DE EXPERIÊNCIA

Maurício Lorenzetti (Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ)


José Junior dos Santos (Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ)
Geovana Mulinari Estuani (Universidade Comunitária da Região de Chapecó –
UNOCHAPECÓ)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência de dois acadêmicos de
licenciatura em C. Biológicas no uso da Ficção Científica como ferramenta de ensino, através
de uma feira de ciências realizada na disciplina Lab. de Ensino VI. Foram realizados
experimentos que demonstravam o funcionamento dos "poderes" dos heróis do Quarteto
Fantástico. Em seguida, os estudantes eram questionados sobre como conseguir derrotar os
heróis usando leis da química ou da física que eles já haviam estudado. De acordo com o
interesse dos estudantes pela atividade, e a posterior devolutiva em forma de questionário,
essa metodologia se mostrou eficiente em chamar a atenção dos estudantes e fazê-los refletir
sobre os conceitos e conteúdos que estudam presentes nos filmes que assistem ou podem vir a
assistir.

PALAVRAS-CHAVE: Ficção Científica. Ensino. Ciências.

INTRODUÇÃO
Segundo Krasilchik e Marandino (2004), o ensino de ciências e biologia sofreu
mudanças, e o que inicialmente eram aulas expositivas, neutras e descontextualizadas, passou
a serem aulas contextualizadas, refletindo como a ciência trás consequências à sociedade.
Dentre os materiais que ajudaram a causar essas mudanças, podemos citar a Ficção Científica.
A Ficção Científica tem sido apontada como uma importante ferramenta didática no
ensino de ciências, uma vez que pode despertar nos estudantes questionamentos e interesse
por temas da disciplina, podendo ser utilizada na forma de livros, contos, histórias em
quadrinho (HQ), mangás e filmes como subsídios para auxiliar e facilitar na aprendizagem e
desenvolvimento de conceitos em sala de aula, bem como incitar debates e reflexões sobre a
história, métodos, características e construção da ciência em nossa sociedade (REIS, 2001;
VON LINSINGEN, 2007; BORGES; LIMA, 2007; GOMES-MALUF; SOUZA, 2008;
PIASSI; PIETROCOLA, 2007, 2009; TATALOVIC, 2009; PIASSI, 2013).

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Piassi e Pietrocola (2007) reiteram que a ficção científica pode ser encarada como um
discurso social sobre a ciência, expressando interesses e preocupações com relação ao
desenvolvimento tecnológico e científico, sendo que alguns autores vão além ao propor a
leitura e criação de histórias de ficção científica como uma forma de “amarrar” os conceitos
estudados, auxiliando também o desenvolvimento da escrita dos estudantes (NAUMAN;
SHAW, 1994, apud PIASSI; PIETROCOLA, 2007). O discurso presente na Ficção Científica
é digno de crédito como qualquer outro gênero cultural porque através dela são apresentadas
leituras do real, são criados mundos ainda não imaginados e nos colocam de frente com o real
em uma narrativa que apresenta diferentes manifestos epistemológicos, filosóficos,
sociológicos e científicos.
Senso assim, utilizaremos os pressupostos de Gomes-Maluf e Souza (2008) de que a
Ficção Científica pode ou não incorporar novos elementos na estrutura conceitual dos
estudantes, através do papel de organizadora ou desencadeadora de aprendizagem.

FICÇÃO CIENTÍFICA E CIÊNCIA


As conquistas técnicas dos seres humanos tem alterado a sociedade desde a
antiguidade até os tempos atuais. Segundo Piassi (2013), a intensidade dessas mudanças foi
variada durante todo esse processo ao longo da história da humanidade, assim como a
percepção dessas mudanças. Para esse autor, parece não haver dúvida de que foi a partir da
Revolução Industrial, principalmente a partir do século XIX, que a ciência e seus produtos
começaram a ter visibilidade e influência nas relações sociais, econômicas e culturais
(PIASSI, 2013).
A ficção científica moderna teve início no final do século XIX com Júlio Verne e
Herbert George Wells, autores que influenciaram muitas obras publicadas posteriormente;
Verne produzia histórias para causar admiração nos leitores, enquanto Wells utilizava a ficção
científica como veículo de crítica social (PIASSI; PIETROCOLA, 2009; PIASSI, 2013). Nos
EUA da década de 1920, contos voltados para o público popular impulsionaram a Ficção
Científica, dando a ela características únicas, que depois vieram a influenciar outros gêneros
de entretenimento populares, como o cinema, seriados de televisão, histórias em quadrinhos e
desenhos animados (CAUSO, 2003; PIASSI; PIETROCOLA, 2009).
Allen (1976) considera a Ficção Científica um subgênero da ficção em prosa,
caracterizada principalmente pela presença de uma extrapolação dos efeitos humanos dentro
de uma ciência que também é extrapolada. Para tanto, iremos considerar o conceito de Ficção
Científica proposto por Allen (1976) em consonância com o proposto por Asimov em 1984,

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que nos trás uma visão e um conceito mais geral desse gênero: Ficção Científica são histórias
que mostram “fatos que se verificam em ambientes sociais não existentes na atualidade e que
jamais existiram em épocas anteriores”, sendo que esses fatos “podem ser concebivelmente
derivados do nosso meio social, mediante adequadas mudanças ao nível da ciência e da
tecnologia” (ASIMOV, 1984, p. 16).
Mesmo não se preocupando com a produção de verdades, os escritores de ficção
científica produzem um mundo ainda não pensado pela ciência, sem se preocupar em explicar
o mundo e ao mesmo tempo incorporando termos e ideias científicas para a criação de seu
universo (GOMES-MALUF; SOUZA, 2008), ou seja, apesar de serem mundos imaginados,
estes são baseados em elementos da realidade, entendida aqui como tudo o que é externo ao
ser humano.
Sendo assim, trazer o universo da Ficção Científica para a sala de aula nos permite
questionar não apenas os fenômenos e leis científicas, mas também discutir o funcionamento
da ciência e os interesses envolvidos em sua construção (PIASSI, 2013). A ficção científica
deixa de ser apenas mais um recurso ou método que estimula os estudantes, mas é, também,
um elemento cultural que possui potencial privilegiado no momento de abordarmos questões
científicas (PIASSI, 2013), uma vez que a Ficção Científica pode ter um papel mais
esclarecedor do que a Ciência para que os estudantes possam compreender como é o seu
funcionamento, uma vez que estas não estão inseridas diretamente no desenvolvimento da
ciência (DYSON, 1998).

O QUARTETO FANTÁSTICO
Criada por Stan Lee e Jack Kirby no ano de 1960, a história em quadrinhos da Marvel
Comics nos mostra como um grupo de cientistas, em uma missão espacial na órbita da Terra,
são atingidos por “radiação cósmica” e passam a ter “superpoderes” quando a radiação afeta o
material genético (DNA) dos integrantes da missão: Susaz Storm passa a ser conhecida como
Mulher Invisível, sendo capaz de desviar a luz, ficando invisível, além de ter a capacidade de
criar campos de força protetores ou ofensivos; Reed Richards passa a ser conhecido como
Senhor Fantástico, com elevado Q.I. e alta capacidade de esticar, deformar, expandir e
contrair seu corpo em qualquer forma, como uma “borracha-humana”; Johnny Storm recebe o
nome de Tocha Humana, pois torna-se capaz de transformar seu corpo em fogo, também
controlando e absorvendo energia; Ben Grimm recebe o nome de O Coisa, pois tem o seu
corpo transformado em rocha sólida e passa a ter força física muito acima do normal.

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Desde a sua criação na década de 60, a história do supergrupo permaneceu popular,


sendo adaptada a outras mídias: três séries de desenhos animados, três filmes live action
(1994, 2005 e 2007), e uma nova versão cinematográfica do supergrupo será lançada em
2015.

CONTEXTO E METODOLOGIA
O presente relato de experiência surgiu depois da realização de uma feira de ciências
produzida na disciplina Laboratório de Ensino VI (Ciências) do curso de Ciências Biológicas
da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Nessa disciplina,
cada grupo de acadêmicos foi responsável pela elaboração de uma apresentação na feira de
ciências, que tinha como tema central o ensino de química e física da 9ª série de uma escola
municipal de Chapecó. Ao chegarem na sala onde seria realizada a feira de ciências, os
estudantes da escola podiam andar livremente de estande a estande para apreciar os trabalhos
que estavam expostos.
Nosso projeto, intitulado “Como derrotar super-heróis usando leis da química e da
física?” teve como objetivo despertar o interesse dos estudantes pelo estudo de ciências
através da ficção científica, mais especificamente através do grupo de super-heróis Quarteto
Fantástico, propondo aos estudantes a elaboração de um método para derrotar os heróis do
grupo utilizando leis da química e da física.
Este trabalho se configurou em uma demonstração do funcionamento dos poderes dos
super-heróis do Quarteto Fantástico através de experimentos de química e física, para depois
questionarmos os estudantes sobre como os “superpoderes” dos heróis poderiam ser anulados
utilizando a química e a física que eles haviam estudado até o momento.
Para demonstrar os “superpoderes” dos integrantes do Quarteto Fantástico, foram
utilizados os seguintes experimentos: foram construídos cinco bonecos de pano pequenos e
preenchidos com algodão, para simular o herói Tocha Humana; em seguida, ateávamos fogo
no boneco, e depois de questionar os alunos sobre como derrota-lo, abafávamos o boneco com
um becker para que ocorresse a extinção das chamas. Depois disso, uma vela também foi
acessa e abafada com auxílio do Becker, para que pudéssemos questionar os estudantes sobre
o porque de as chamas do boneca ter se apagado antes do que a chama da vela.
Para mostrar aos estudantes o funcionamento dos poderes do Senhor Fantástico
utilizamos tiras de borracha que eram submetidas à chama da vela, para que pudesse derreter,
e depois colocadas em cubos de gelo para que resfriassem e endurecem, demonstrando assim

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o efeito do calor sobre a movimentação das moléculas e como esta influencia os estados da
matéria, mostrando, ainda, como a calorimetria poderia nos ajudar a neutralizar esse herói
Com relação a personagem Mulher Invisível, não questionamos os estudantes sobre
como derrota-la, mas apenas demonstramos através de um experimento o funcionamento de
seus poderes: uma garrafa de vidro pequena e incolor, cheia de glicerina, era colocada dentro
de um outro recipiente de vidro incolor preenchido por água e um pouco de glicerina; quando
mergulhada a garrafa incolor cheia de glicerina dentro do recipiente maior, a parte da garrafa
que fica em contato com a glicerina exterior desaparece, podendo-se trabalhar conceitos
relacionados a fenômenos ópticos. Por último, devido a dificuldade de encontrar um
experimento adequado para demonstrar os poderes do personagem O Coisa, optamos por não
demonstrar seus poderes.
No final da conversa e demonstrações dos experimentos e conceitos inerentes, um
pequeno questionário foi aplicado aos estudantes, para que respondessem que outros filmes de
ficção científica poderiam ser utilizados nas aulas de ciências e quais os conteúdos ou
conceitos poderiam ser estudados ou relembrados através deles, bem como o que acharam da
atividade (Excelente, Boa ou Ruim). Doze estudantes responderam o questionário, e os
resultados da segunda questão dos questionários encontram-se na Tabela 1. Dos dozes
estudantes que avaliaram a atividade, 10 avaliaram como boa, 1 como excelente e um como
ruim.
Quando os estudantes eram questionados sobre como derrotar o Tocha Humana, a
resposta era quase imedita: é só privar ele de oxigênio, que o fogo se extingue, demonstrando
que de alguma maneira a atividade os fez relembrar alguns conceitos de combustão. Com
relação ao Senhor Fantástico, as respostas também eram quase imediatas: basta aquecer a
borracha, ou então resfriá-la, fazendo a borracha derreter ou dura o suficiente para que
pudesse ser quebrada.

Tabela 1 - Respostas do questionário aplicado aos estudantes com a relação de filmes de


ficção científica que poderiam ser utilizados nas aulas de ciências e quais conteúdos estariam
relacionados.
FILME CONTEÚDO OU CONCEITO
John Carter: Entre Dois Mundos Astronomia
Harry Potter Árvore genealógica
Avatar Relações entre os animais (Ecologia)

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Super-Homem Gravidade
Jurassic Park DNA (Genética, Biotecnologia)
Star Trek Astronomia e Gravidade
Splice – A Nova Espécie DNA (Genética) e Ética

CONSIDERAÇÇOES FINAIS
O objetivo do ensino fundamental, de forma geral, segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais (2000) é de compreender a cidadania como participação social,
exercitando seus direitos e deveres políticos, de forma a se posicionar de maneira crítica
perante as diferentes situações vividas. Além disso, os PCNs, dentre os vários objetivos do
ensino fundamental, destaca que os estudantes devem “saber utilizar diferentes fontes de
informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos” (BRASIL,
1998), tornando o uso da ficção científica no ensino de ciências uma das ferramentas que
podem ser utilizadas para atingir esse objetivo.
Os estudantes que participaram da atividade demonstraram bastante interesse na
atividade proposta, provavelmente devido ao conteúdo de nossa apresentação e a forma com
que este foi apresentado (através da demonstração de experimentos), o que é reforçado pelo
número de estudantes que consideraram a atividade como sendo boa. Alguns ainda
escreveram que gostaram bastante da atividade, demonstrando que essa nova metodologia
pode ser empregado e pode gerar bons resultados, ajudando, ainda, a atrair a atenção dos
estudantes para o estudo de ciências, química ou física. Cabe ressaltar que cada grupo de
estudantes da turma tinha entre 10 a 15 minutos para participar de cada atividade, e que
devido ao tempo curto que estes poderiam permanecer na universidade onde a atividade foi
realizada, não foram todos os estudantes da turma que puderam acompanhar a atividade.

REFERÊNCIAS

ASIMOV, I. No mundo da ficção científica. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1984.

BORGES, R. M. R.; LIMA, V. M. R. Tendências contemporâneas do ensino de biologia no


Brasil. Revista Eletrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 6, n. 1, 2007.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto.Secretaria de Educação Fundamental.


Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Brasília:MEC/SEF, 1998.

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CARUSO, F.; CARVELHO, M. de; SILVEIRA, M. C. Uma proposta de ensino e divulgação


de ciências através dos quadrinhos. Disponível em:
http://www.nre.seed.pr.gov.br/irati/arquivos/File/BIOLOGIA/quadrinhos_em_ciencias.pdf.
Acesso em: 2-05-2014.

CAUSO, R. S. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Editora UFMG:
Belo Horizonte, 2003.

DYSON, F. J. Mundos imaginados: conferências Jerusalém-Harvard. Trad. Cláudio Weber


Abramo. Companhia das Letras: São Paulo, 1998.

GOMES-MALUF, M. C.; SOUZA, A. R. de. A ficção científica e o ensino de ciências: o


imáginário como formador do real e do racional. Ciência & Educação, v. 14, n. 2, 2008.

KRASILCHIK, M.; MARANDINO, M. Ensino de Ciências e cidadania. 1ª ed. São Paulo:


Moderna, 2004.

PIASSI, L. P.; PIETROCOLA, M. De olho no futuro: ficção científica para debater questões
sociopolíticas de ciência e tecnologia em sala de aula. Ciência & Ensino, vol. 1, n. especial,
2007.

PIASSI, L. P.; PIETROCOLA, M. Ficção científica e ensino de ciências: para além do


método de ‘encontrar erros em filmes’. Educação e Pesquisa, v. 35, n. 3, 2009.

PIASSI, L. P.; PIETROCOLA, M. Possibilidades dos filmes de ficção científica como recurso
didático em aulas de física: a construção de um instrumento de análise.

PIASSI, L. P.; PIETROCOLA, M. Quem conta um conto aumenta um ponto também em


física: contos de ficção científica na sala de aula. XVII Simpósio Nacional de Ensino de
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PIASSI, L. P. A ficção científica e o estranhamento cognitivo no ensino de ciências: estudos


críticos e propostas em sala de aula. Ciência & Educação, v. 19, n. 1, 2013.

REIS, M. S. A. As revistas em quadrinhos como recurso didático no ensino de ciências.


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VON LINSINGEN, L. Mangás e sua utilização pedagógica no ensino de ciências sob a


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