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Profa. Dra.

Luiza Lobo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Um diálogo com Machado de Assis1

A leitura da obra de Machado de Assis nos desperta para a importância do uso da


metáfora e outras figuras de linguagem em seus textos. Ele é um dos escritores
brasileiros que mais utilizam este recurso estilístico, ao lado de Clarice Lispector e
Guimarães Rosa. Talvez seja por este motivo que sua prosa ainda está tão viva entre
nós, como vou procurar demonstrar, citando alguns exemplos em seus romances e
crônicas.
A mais famosa de suas metáforas é a dos “olhos de ressaca de Capitu”, que jamais
será explicitada pelo autor. Cabe, portanto, ao leitor decifrá-la. Bentinho sente a força, a
atração, o perigo deste olhar, e é invadido pela fascinação, mas também pelo medo, a
tontura. Ele tivera formação para padre. Esta ressaca é a imagem do amor, dominador,
destrutivo, ciumento, o infinito mar-amor, que talvez estivesse sendo vivido por Escobar
e Capitu. Como se trata de um romance, o Memórias póstumas de Dom Casmurro, a
metáfora da ressaca será estendida e se desdobrará ao longo da narrativa. Escobar vai
morrer no mar, nadando na Praia do Flamengo. Ao mesmo tempo, Bentinho sente-se
atraído por Sancha, e não tira os olhos dela. Ela tem um filho de Escobar, enquanto
Bentinho não consegue ter filhos. Este conflito revive a biografia do próprio Machado,
que não pôde ter filhos. Projeta-se na fantasia de Bentinho o sentimento de que, se
Capitu teve um filho, este só poderia ser filho do outro, de Escobar (incluindo-se nessa
fantasia o próprio sentimento de Bentinho por Sancha). A criança ganha o nome de
Ezequiel, o filho da distância, da diáspora, no exílio babilônico. Filho também destinado
a morrer, como seu presumível pai, Escobar. Nesta metáfora do amor filial, em que
Ezequiel visita a Terra Santa, e Capitu (Capitolina) morre na Europa, encerra-se a noção
do amor materno sagrado infringido: daí, a ressaca.
Outra belíssima metáfora de Machado, em Brás Cubas, é a da melancolia, a “flor
amarela, solitária e mórbida”, imagem num verso decassílabo. Ela representa a
depressão da personagem, justamente após a morte da mãe. Brás Cubas fica órfão, como
Machado ficara, na infância. Isso o faz refugiar-se por três meses numa chácara da
Tijuca, vítima de tédio, hipocondria, desespero, imerso na tal “flor amarela, solitária e

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mórbida”. É a ausência materna que deflagra esse estado de coisas, acrescida pela
imagem de uma borboleta negra que se bate contra a vidraça, também como ele,
prisioneira do quarto. Diversos elementos passam a desdobrar-se então, a partir dessa
metáfora matriz. Aparece a noiva Eugênia, cujo nome indica boa formação, mas que
nasceu coxa. Ironia ou humor negro? “Coxa! (...) Por que bonita, se coxa? Por que coxa,
se bonita?”. Mas não é só. A morte materna o lança ainda a outros acontecimentos
insuportavelmente tristes. Outra noiva, Eulália – a bem falante, em grego –, morre de
epidemia. Virgília, que Brás Cubas tanto amava, mas não se decidia por ela, termina por
se casar com Lobo Neves – um nome contraditório, lobo em pele de cordeiro, ou vice-
versa? – mas, aparentemente, apenas para conquistar o título de baronesa, uma vez que
pouco depois se torna amante de Brás Cubas, numa relação secreta. E, quando ela se
torna mãe, a relação visivelmente o choca e decepciona.
No início do romance, surge a figura de Prudêncio, ex-escravo de Brás Cubas, que
muito apanhara dele quando ele fora seu dono, em criança. Assim que é alforriado,
Prudêncio compra um escravo, com a precípua intenção de vingar-se, só para bater-lhe
diariamente. A situação é descrita por Brás Cubas com requintes metafóricos: “ia-lhe
pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera”. A imagem, muito bem
urdida, mostra a circulação de sentimentos, emoções, ações, entre os seres humanos,
aquilo que Freud chamou de transferência e Lacan de deslocamento. Numa espécie de
punição metafórica, a beleza de Marcela, cortesã e interesseira, que fora amante do
herói na sua juventude, é destruída por bexigas. Na mesma direção, Brás Cubas também
utiliza uma famosa metáfora financeira a respeito da cortesã, como a negar qualquer
sentimento que os ligasse na sua juventude: “Marcela amou-me durante quinze meses e
onze contos de réis”. É o realista quem fala. Morte, depressão e hipocondria são
interrompidas por um breve lapso de tempo, quando Brás Cubas pensa ter encontrado a
cura vital para todos os males, do coração e do mundo: o emplasto Brás Cubas. É a
fonte da juventude. Mas o doente não tem energia para levar adiante a idéia.
Não poderíamos deixar de citar outra famosa metáfora de Brás Cubas, presente na
reação quase indiferente da personagem diante da morte da avó, atropelada por uma
carroça. Ela será explicada pela teoria do Humanitismo, do filósofo Quincas Borba,
numa intertextualidade com outro romance seu, homônimo. A falta de comiseração de
Brás Cubas pela morte da avó estaria impregnada do sentido darwinista do “struggle for
life”.2 O narrador-autor-personagem Brás Cubas o resume: “Humanitas tem fome”,
significando a necessidade de renovação da vida. Noutro momento, Brás Cubas

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compara a vida a um jogo entre duas tribos que se massacram para alcançar um único
campo: “Ao vencedor, as batatas”. Mas há, aí, não só Darwin, como também o
Positivismo de Comte. Nessa metáfora, Machado ridiculariza as metas e etapas para se
alcançar o conhecimento e o aperfeiçoamento social traçadas pelo pensador francês, em
voga então no Brasil.
As metáforas utilizadas nas crônicas são menos extensas que as usadas nos
romances, pois, na imprensa, o espaço é exíguo, e o ritmo das metáforas se torna rápido
e cortante, embora às vezes Machado se entregue a longas digressões e citações da
Bíblia. Analisaremos as crônicas da coluna “Balas de estalo”, da Gazeta de Notícias, do
Rio de Janeiro, de Julho a Dezembro de 1863; de Janeiro a Outubro de 1864; de Janeiro
a Dezembro de 1885; de Janeiro a Março de 1886; e de Setembro a Outubro de 1886.
Seu conteúdo político deve-se ao fato de Machado de Assis ter sido incumbido por este
jornal de observar a Câmara dos Deputados. A uma certa altura, o jornal chega a lhe
chamar a atenção por estar sendo excessivamente crítico!
Citarei aqui alguns exemplos da linguagem metafórica de Machado:
A crônica do dia 4 de Julho de 1883 é sobre o comportamento dos passageiros nos
bondes. São os dez regulamentos para quem anda de bonde, que são absolutamente
atuais, e deveriam ser seguidos ainda hoje. Logo no artigo 1º recomenda aos
encatarroados que fiquem em casa, ou que afastem o jornal para deixar passar o vizinho
do lado.
A crônica do dia 2 de Julho continua com um trecho que poderia ser um ensaio para
o antológico conto “Teoria do medalhão”. Neste, um pai prepara o filho para a vida
política, quando ele faz 18 anos, ensinando-lhe a ser imoral, aproveitador, pouco
trabalhador, mas tudo isso com fineza, sem ser descoberto. É um diálogo muito bem
urdido. Aqui temos um processo semelhante, em que os políticos ganharam um aumento
de forma inconstitucional, e só agora, ao final do mandato, o presidente da Câmara quer
mandar suspendê-lo, sob a alegação de que foram concedidos de forma inconstitucional.
O comentário de Machado é que não se pode corrigir um ato inconstitucional com outro
igualmente inconstitucional. Então, que permaneça o aumento inconstitucional, conclui
com ironia.
Em 15 de Agosto de 1883, Machado ridiculariza a mania brasileira de trocar os
nomes das ruas – uma verdadeira pandemia. Mas insinua que isso ocorre quando elas
apresentam muitos atoleiros e má iluminação, e o governo deseja ocultá-lo, temendo

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que sejam identificadas e criticadas, provavelmente na sessão de cartas publicadas nos
jornais...
Em todas essas crônicas, observa-se a grande admiração de Machado por dois
motivos que são os únicos solos sagrados na sua prosa, embora não esbanje emoção por
eles: a Bíblia e a Inglaterra. No mais, tudo ele demole (com exceção da figura materna).
Por exemplo, na crônica do dia 8 de Julho de 1885, explica que Comte concedia dois
dias de descanso semanais, o sábado, para os judeus, e o domingo, para os cristãos – e lá
vem a Bíblia de novo!
No dia 16 de Outubro de 1883, Machado se distrai criando uma carta de um
Mandarim sob a forma satírica de um arremedo de chinês, numa algaravia na qual
algumas palavras cômicas em português tornam o texto compreensível. Este pobre
mandarim foi alvo também de terríveis sátiras de Artur Azevedo e de Moreira Sampaio,
numa peça de teatro que teve estréia marcada para Janeiro de 1884. O Mandarim viera
resolver a questão dos chins que iam plantar chá no Brasil, um sonho há muito alentado
pela Coroa Portuguesa. Machado volta ao tema no dia 23 de Outubro de 1883,
simulando uma carta escrita pelo Ministro do Trabalho e Vice-Rei da Índia, em Calcutá,
na qual ridiculariza os pobres orientais trazidos ao Brasil, em viagens longuíssimas
desde Hong-Kong, alcançando um balbucio digno de Alfred Jarry, e conclui: chim, mas
podem ser chimpanzés...
Machado não se dá por achado, e faz graça até em italiano. “um capo d’opera” – pau
para toda obra – “il mondo casca” – bom freqüentador de ópera e teatro que é; o francês
ele aprendeu em adolescente, com o padeiro do bairro. No dia 23 de Agosto de 1884, ele
expõe sua teoria darwiniana do “struggle for life”, não isenta de uma pitada de Pangloss,
na sátira feita por Voltaire em Cândido, ou o otimismo, a respeito da filosofia de
Leibniz. Enquanto os ricos atacadistas importadores de vinho, os “molhadores”, apesar
de perseguidos, falsificam-no, por serem caras sua importação e guarda em barris, 20
milhões de brasileiros pobres vivem “na pindaíba” (apertado). Uns vendem, na esquina,
declarações de heráldica e genealogia, com árvores genealógicas feitas com letras
góticas, outros abrem bancas de cartomante... É a lei de Darwin, a struggle for life.
Machado também se dedica à teoria do humor, fino como a casca do ovo, segundo
Breton3, quando afirma, em 26 de Janeiro de 1885: “Há pessoas que não sabem, ou não
se lembram de raspar a casca do riso para ver que há dentro:” Naquele mês põe-se a
escrever em francês, sabe-se lá por quê.

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É interessante observar as metáforas abaixo à luz de um estudo de Luiz Costa Lima
sobre o uso, em Guimarães Rosa, de provérbios inteiros ou quebrados (os ditados), em
que o autor reaproveita a linguagem popular de Minas. 4 É claro que as metáforas de
Machado são altamente criativas, pessoais, e promovem a inversão satírica ou
desconstrução dos ditos populares. Seus aforismos também antecipam os quatro
prefácios surrealistas de Guimarães Rosa, em Tutaméia. Na verdade, Machado é uma
encruzilhada que abre para todas as direções.
Em 24 de Março de 1885, utiliza uma de suas engenhosas metáforas para prender a
atenção do leitor. Lá vai ela: “Sapateiro não faria sapato se acreditasse que todos iam
nascer com pernas de pau”. Mas complementa, no dia 13 de Novembro de 1885, numa
chusma de aforismos que são uma verdadeira paródia de Nietzsche: “os melhores
sapatos são os dos sapateiros – crença infundada!”
Em 28 de Maio de 1885 ele torna a empregar as roupas como metáfora: ridiculariza
as fábricas de tecido nacionais, que têm de exportar exclusivamente calças pretas
masculinas nos meses de verão do Brasil, devido ao inverno nos países frios.
Adiante, informa: “A gramática não é boa, mas o sentimento é sincero”. E, no
mesmo espírito popular, explica, em 11 de Outubro de 1885: “O sol é para todos, e a
chuva só para alguns”. Neste dia, estava inspirado, e retoca criticamente o nome da rua
para Mata-Porcos, em lugar de Matacavalos (atual Riachuelo). Mais uma vez, na
crônica do dia 13 de Novembro de 1885, utiliza um dito popular para se referir ao
tempo de antanho: “quando as galinhas ainda tinham dentes”, e, adiante, se sai com um
comentário típico da atitude do malandro que acaba de enganar um tolo: “Quando o
meu ouvinte desembrulha o pacote, eu já voltei a esquina”.

Conclusão
Retomando a crônica do dia 28 de Maio de 1885, o cronista expõe um comentário do
Vigário Santos que muito o chocou – pois, como afirmei, Machado admirava realmente
duas coisas, a Inglaterra e a Bíblia, incluindo-se aí a Santa Madre Igreja e sua
associação com a figura materna ausente, pois foi órfão: “O padre, em geral, procura as
melhoras freguesias, nas quais possa subsistir sem o grande ônus da cura d’almas”.
O cronista reluta em crer que um padre possa se entregar tão abertamente ao
exercício de um dos dez pecados capitais: a preguiça.
Mas, como estamos falando de Brasil, lembremo-nos que, neste ano de 2008
comemora-se a chegada da família Real no Rio, o centenário do falecimento de

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Machado, mas também dos 80 anos da publicação de Macunaíma, de Mário de
Andrade. Portanto, terminarei este artigo como o padre que não quer trabalhar muito,
prefere uma sinecura, numa grande metáfora extensiva a todo o Brasil, com exceção do
Sul, que lá eles preferem ser alemães: “Ai, que preguiça!”, e paro por aqui. Muito
obrigada.

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NOTAS AO TEXTO

Quero agradecer ao Professor Pal Ferenc –, especialista da obra do poeta romântico brasileiro Sousa Andrade que venho
estudando –, a quem conheci num Congresso de História de 1988 aqui na Universidade ELTE, e que me proporcionou este
retorno a Budapeste, para esta comemoração dos 30 anos de criação do Departamento de Português da ELTE. Agradeço
também a recepção ao Leitor Prof. Dr. Marcos Machado Nunes e o apoio da Embaixada do Brasil em Budapeste.
2
Ver Júlio de Castilhos S. da Cunha Neto e Eunice Piazza Gal, “Humanitas, demasiado humanitas. O darwinismo social
em Memórias póstumas de Brás Cubas”.
3
Breton, André, Anthologie de l’humour noir, 1940.
4
Lima, Luiz Costa, “Esboço de análise de um aforismo de G. Rosa”, in A metamorfose do silêncio, Rio de Janeiro, 1974,
p. 62-72.

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