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Considerações introdutórias
O Brasil viveu sobre uma Ditadura Civil-Militar durante cerca de 20 anos (1964-
1985). Nesse período muitas liberdades foram cerceadas, sendo que o Estado, instituição que
por excelência deve proteger os cidadãos, converteu-se em grande repressor, sequestrando,
torturando, matando e desaparecendo com aqueles que, em maior ou menor medida, se
opusessem às arbitrariedades. Algumas organizações, atuando na clandestinidade, resolveram
combater o autoritarismo, seja pegando em armas ou inserindo-se entre os trabalhadores e
fazendo o chamado “trabalho de base”2. É importante frisar que o auge da atuação dos
movimentos clandestinos ocorreu entre os anos de 1968 e 1975, ou seja, entre o Ato
Institucional número 5 e o término da Guerrilha do Araguaia.
Participando de tais grupos encontramos homens e mulheres, embora estas estivessem
em número bem inferior. De acordo com Marcelo Ridenti (1990), cerca de 12% das pessoas
que militavam em organizações clandestinas eram mulheres, sendo que tal número aumenta
para 18% quando se fala da luta armada. Devemos lembrar que a década de 1960 viu surgir o
chamado “Feminismo de Segunda Onda”3, onde as mulheres, para além de direitos políticos,
almejavam agora direitos sexuais, reprodutivos, ou seja, questões relacionadas ao corpo
feminino, as quais ficavam anteriormente relacionadas ao âmbito privado. Não é por acaso
que o lema do movimento era “O privado é político”. De acordo com Joan Scott (1992):
1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Pelotas, orientada pela professora Clarice Speranza.
Bolsista CAPES.
2
As divergências entre as diferentes organizações não serão trabalhadas no presente texto. Para mais
informações ver: GORENDER, Jacob. O Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1987.
3
O “Feminismo de Primeira Onda” foi caracterizado pelo movimento sufragista do início do século XX.
É nesse contexto que se insere o presente trabalho e se formula alguns
questionamentos: como as militantes dos movimentos de combate à Ditadura perceberam o
movimento feminista? É importante ressaltar que a quase totalidade dos grupos possuía
orientação teórica marxista-leninista, de forma que as problemáticas levantadas não estavam
na ordem do dia, sendo que após a queda do capitalismo enquanto regime econômico, as
posturas machistas, enquanto derivadas deste, seriam automaticamente extintas. Contudo,
percebeu-se que, após o retorno à democracia, muitas militantes pautaram sua atuação a partir
de uma perspectiva feminista, de forma que surge a indagação colocada.
Para a realização da pesquisa foram analisadas três entrevistas realizadas pela autora
no ano de 2012. Foram utilizados pseudônimos como forma de preservar a identidade das
militantes.
A militância e o feminismo
Até nas torturas aparecia essa questão. Éramos chamadas de comunistas, mas no
geral nos xingavam de putas, vadias. Assim muitas vezes justificavam as atrocidades
que fizeram com as mulheres. Certamente fizeram também com os homens, mas nas
falas, penso eu, o que era utilizado era o que a sociedade pensa das mulheres livres.4
Então se nós estamos num ‘aparelho’, que o aparelho é aquela casa, que se fica
fechada, ali trabalhando, todo mundo tinha responsabilidades com a limpeza, o
banheiro, da cozinha, da cama que dormia, com a sua roupa. E isso era uma eterna
discussão. Porque, quando eu fazia a discussão todo mundo concordava comigo,
você entendeu, mas na hora da prática voltava todo aquele comportamento. Então
era muito difícil. Nossa, era muito difícil. Era uma discussão permanente. Aquilo
para mim era muito importante, para eles não era importante, porque se eles não
fizessem nada, alguém ia fazer e esse alguém era eu, né, entendeu?5
4
Depoimento concedido à autora. Porto Alegre: 2012. Acervo pessoal.
5
Depoimento concedido à autora. Passo Fundo: 2012. Acervo pessoal.
Percebe-se, a partir daí, que a discussão do trabalho doméstico era levantada de
forma a se buscar a igualdade entre ambos, de forma a não reproduzir a clássica divisão de
tarefas comum na sociedade capitalista patriarcal. Já para Silvia, a lembrança de tais
discussões não existe: (a luta) “Era a luta contra a ditadura e era derrubar a ditadura. Eu não
lembro de outro tipo de discussão, de papel de mulher, era uma coisa generalizada. Eu não me
lembro.”6 Ou seja, o principal objetivo da militância como um todo, nas distintas
organizações das quais faziam parte, era a concretização da revolução socialista, com a
consequente derrubada do regime autoritário.
Já na visão de Nádia, a inserção das mulheres na luta contra a Ditadura fez com que
as mulheres passassem a problematizar mais a questão da desigualdade. Percebe-se que, na
sua interpretação, homens e mulheres passaram a lutar pela liberdade, mas, acredita-se que a
partir de perspectivas diferentes:
Até a década de 1960 as mulheres praticamente não haviam ocupado o espaço público
de modo efetivo. Para Cristina Scheibe Wolff (2010, p.149) tal aumento na participação foi
resultado da maior inserção no âmbito universitário, onde o contato com a política era
inevitável:
É dessa forma que se pode explicar a presença das mulheres nestas ‘trincheiras’,
pois ao contrário de outras gerações de estudantes universitários, naquela geração do
final dos anos 1960, a proporção de mulheres universitárias era muito maior do que
nas décadas anteriores.
Faz-se importante ressaltar que a inserção das mulheres nos mencionados grupos não
ocorreu sem conflitos, tendo em vista a, até então, quase que ausência das mesmas no campo
político. Dessa forma, em muitos episódios, a chamada dessexualização foi um fenômeno
presente, ou seja, a militante deveria tentar se aproximar do ideal masculino de militante.
Susel Oliveira da Rosa (2013, p.46-7) apresenta o paradoxo:
6
Depoimento concedido à autora. Porto Alegre: 2012. Acervo pessoal.
7
Depoimento concedido à autora. Porto Alegre, 2012. Acervo pessoal.
Na suposta relação de igualdade estabelecida pela esquerda, a transformação coube
às mulheres, que deveriam se adequar ao modelo universal masculino do militante
político. [...] Como podemos perceber, apesar do discurso de igualdade e do
aparente apagamento das diferenças. Os papéis tradicionais e assimétricos da
generização do humano, que autorizam a ação no mundo, eram mantidos e, mesmo,
reafirmados pela esquerda.
Maria Amélia Teles (1999, p. 72) também faz referência a tal problemática: “O amor e
a maternidade eram vistos como peias que enfraqueciam os guerrilheiros. O ideal era a
abstinência sexual. Como na prática isso era inviável, buscou-se negar a sexualidade,
particularmente da mulher guerrilheira.” Percebe-se, assim, o quão problemático era ser
mulher e desejar posicionar-se enquanto isso em meio ao contexto machista e autoritário no
qual se encontravam.
A invisibilidade da atuação feminina também é levantada, de forma que os próprios
militantes reconheciam o seu trabalho feminino como sendo naturalmente invisível. De
acordo com Nádia:
E aí foi muito interessante, ele (o dirigente) pegou e disse “To precisando alguém
para serviço e disse algo que me parece ser para mulher eu preciso de alguém que
consiga ser invisível. Alguém que consiga ser invisível.” Próprio do trabalho
feminino né... ser invisível... O trabalho da mulher é invisível. É um trabalho onde
ninguém vai ficar sabendo, nem daqui, nem de lá.
De modo geral, a partir dos depoimentos, diferentes visões aparecem sobre a questão
levantada. Para Ana, a problematização relativa à situação feminina fazia-se pertinente, de
forma a levantar conflitos, inclusive. Já para Silvia, tais questões praticamente não foram
mencionadas, enquanto que Nádia viu o momento como sendo de libertação. A memória de
cada uma sobre a problemática elencada foi/é elaborada de acordo com suas vivências e
percepções, portanto.
Mesmo com a discussão sendo incipiente, pode-se afirmar que, concordando com
Maria Lygia Moraes (2007, p.345) tal experiência foi fundamental para que o feminismo
brasileiro e latino-americano como um todo fosse peculiar, pois as militantes, em sua maioria
comunistas, saíram da luta contra o autoritarismo exacerbado percebendo que somente a luta
contra o capitalismo não fornecia as respostas adequadas para as suas questões.
Cyntia Sarti (2004, p.37) também aborda a questão da construção do feminismo a
partir da reflexão sobre o combate realizado:
Percebe-se, assim, que a atuação mais incisiva do movimento feminista, bem como as
suas discussões iniciais, deram-se no seio do combate ao autoritarismo.
Algumas reflexões
A partir de todo o exposto, podemos fazer algumas reflexões que nos fazem
compreender como foi ser mulher militante naquele período. Inicialmente, de acordo com
Marcelo Ridenti (1990) devemos levar em consideração que aquela que escolhesse o caminho
da luta contra a Ditadura já rompia um duplo paradigma, o da mulher que deve ficar restrita
ao lar e que se insere no espaço público, masculino por excelência.
Segundo, ao estar em combate, muito pouco se discutiu acerca das especificidades das
suas demandas, devido à luta contra o terrorismo de Estado, bem como sobre o foco principal
concentrar-se na transformação do capitalismo.
Por fim, é importante salientar e, concorda-se com Cristina Wolff (2010, p.152),
quando menciona que:
O fato é que mesmo com as ditaduras e com a filosofia da esquerda daquela época,
colocando a luta de classes a frente e acima de qualquer outra luta ou transformação
social, a revolução das mulheres já estava se fazendo, pela própria incorporação
destas aos movimentos e organizações que lutavam contra as ditaduras.