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V V

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ - UFPA


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - IFCH

PLANO DE ENSINO DE DISCIPLINA


FpA

Hl - Identificação
1.1 Faculdade de Ciências Sociais
1.2 Curso de Direito
1.3 Disciplina: Sociologia Jurídica
1.4 Professor: Jaime Luiz Cunha de Souza
1.5 Carga Horária: 60 horas/aula
1.6 Período:

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Da filosofiaSocial à Sociologia: contexto históricodo-naseimento-da-Soctologia;
O direito como objeto de investigação sociológica; Karl Marx e o direito como
superestrutura; Émile Durkheim e o direito como fato social; Max Weber e a
racionalidade Jurídica na modernidade; Pierre Bourdieu e o Campo Jurídico;
Habermas: facticidade e validade do direito; Direito e Teoria Sistêmica na análise
de Niklas Luhmann; Direito, globalização e multiculturalismo; Direito e acesso à
justiça.

Ao término da disciplina o(a) aluno(a) deverá ter compreendido como alguns dos
principais teóricos da Sociologia analisaram o papel do direito na modernidade;
deverá ter compreendido o que significa conceber o direito como fato social;
deverá compreender os fatores sociais responsáveis pela lógica interna de
funcionamento das instituições jurídicas; deverá também ser capaz de
compreender as novas configurações que o direito assume/ ou deverá assumir no
mundo contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de
informação e comunicação, pela diversidade cultural e pelos variados tipos de
demandas por justiça.
2

4-UNIDADES TEMATICAS:

4.1 PRIMEIRA UNIDADE - OS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA E O


DIREITO:
4.1.1 Transformação da filosofia social em sociologia; contexto de
surgimento da sociologia; positivismo e ciências sociais; o direito
como preocupação sociológica;
4.1.2 Categorias gerais de Karl Marx; Classes Sociais,
Dominação, Alienação, o direito como superestrura;
4.1.3 Conceitos fundamentais da teoria Sociológica de Émile Durkheim:
o direito como fato social; solidariedade mecânica; solidariedade
orgânica; crime; anomia; sociedades onde predomina o direito
repressivo e sociedades onde predomina o direito restitutivo;
4.1.4 Principais conceitos e categorias de Max Weber; a sociedade
moderna, a racionalidade burocrática e o Direito;

4.2 SEGUNDA UNIDADE - TEORIAS SOCIOLÓGICAS


CONTEMPORÂNEAS DO DIREITO:
4.2.1 Pierre Bourdieu e o campo jurídico: agentes, habitus e capital
Jurídico;
4.2.2 A teoria da ação comunicativa e o direito em Habermas: facticidade
e validade;
4.2.3 Teoria sistêmica de Niklas Luhmann: sistema social; complexidade
e contingência; estrutura e função; subsistemas funcionais; Direito
como sistema; autopoiesis, clausura operacional; acoplamento
estrutural;
4.3 TERCEIRA UNIDADE - DIVERSIDADE CULTURAL E ACESSO À
JUSTIÇA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO:
4.3.1 Globalização e direito;
4.3.2 Perspectivas Multiculturalistas e direito;
4.3.3 Acesso à justiça: limites e possibilidades no mundo contemporâneo.
3

%
5-Procedimentos Metodológicos

Levando-se em consideração que a disciplina prioriza debates, contextualizações


e análises dos fenômenos sociais que interferem na dinâmica do direito na
contemporaneidade, escolhemos como estratégia metodológica principal a
realização de aulas expositivas, dada a extensão do conteúdo programático e a
complexidade dos temas a serem abordados.

6-Recursos Didáticos
Quadro e pincel marcador, computador, datashow, vídeos.

7-Avaliação
O processo avaliativo será realizado através da aplicação de avaliações escritas e
individuais, as quais ocorrerão após ser completado o conteúdo de cada unidade
temática, perfazendo um total de três avaliações parciais. Sobre as três avaliações
parciais será aplicado o critério regimental adotado pela UFPA com o intuito de
chegar ao conceito final do aluno.

- t i -

í 8- Bibliografia Básica

ABREU, José Maurício Martins de. Durkheim e o Fenômeno Jurídico na Obra Da


Divisão do Trabalho Social: ensaio crítico. R.EMERJ. Rio de Janeiro v 14 n 56
p. 179-192, out-dez 2011.

ANDRADE, Cleber. Notas Sobre o Estado e o Direito no Pensamento de Marx. Revista


de Direito da UNIGRANRIO. Volule 2- Número 2 - 2009.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na Alta Modernidade:


incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Rio de Janeiro* Lumen Juris
2010.

CITTADINO, Gisele. Autodeterminação e Identidade; sobre direitos individuais e


direitos coletivos em Habermas IN: Jürgen Habermas, 80 anos Direito e Democracia.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

FORST, Rainer. Jürge n Habermas: factidade e validade IN: Jürgen Habermas, 80 anos
Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

GIANNOTTI, José Arthur. Sobre o Direito e o Marxismo. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1980.
MARTUCCELLI, Danilo. As Contradições'políticas do Multiculturalismo. Revista
Brasileira de Educação. Mai/jun/jul/ago 1996, n.2.

MOREIRA, Luiz; FRANKENBERG, Günter. Jüngen Habermas, 80 anos Direito e


Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

NAVES, Márcio Bilharino. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São


Paulo: Bitempo, 2000.

ROSA, Felipe Augusto de Miranda. Sociologia do Direito: o fenômeno jurídico como


fato social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: textos básicos para a


disciplina sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomas Learning, 2002.

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Poderá o Direito Ser Emancipatório? Revista


Crítica de Ciências Sociais, 65, Maio 2003: 3-76.

TRUBEK, David M. Max Weber Sobre o Direito e Ascensão do Capitalismo. Revista


Direito GV. V.3, n.l, p.151-186, Jan-Jun 2007.

VITA, Álvaro de. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo. Lua Nova, :N°5 5-56 -
"20027

9- Bibliografia C o m p l e m e n t a i f e ^ | | ^ S f t Í Í M

ARNAUD, André-Jean. (org.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do


Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes,


2000.

CARBONNIER, Jean. Sociologia jurídica. Coimbra: Almedina, 1979.

CASTRO, Celso A. Pinheiro de Castro. Sociologia Aplicada ao Direito: São Paulo:


Atlas, 2001.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 2001.

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
(capítulo "da divisão do trabalho social").

. Lições de Sociologia: a moral, o direito e o Estado. São Paulo: Editora


da Universidade de São Paulo, 1983.
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1986. ^ ^

FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: crise do Direito e práxis política. Rio de
Janeiro: Forense, 1984.

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária


2000.

LIRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2006.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

• Sociologia do direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

MARX, Karl. Sociologia/Organizador [da coletânea] Octávio Ianni. São Paulo- Ática
1984.

WEBER,Max. Sociologia/Organizador [da coletânea] Gabriel Cohn. São Paulo- Ática


2008.

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F.A. de Miranda Rosa

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SOCIOLOGIA DO DIREITO
O Fenômeno Jurídico
como Fato Social

17 à edição
revista e atualizada

Jorge Z a h a r E d i t o r
Rio de Janeiro
Copyright Ê> 2004, F.A. dc Miranda Rosa

Copyright desta edição © 2004:


Jorge Zahar Editor Ltda
r u j México 31 sobrcloja
20031-144 Rio de Janeiro, R)
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Edições anteriores: 1970,1973,1974, 1975,1977,1978,1981 (7 J .ed. rev. e ampl.),


1984, 1992,1993,1994,1996 (duased.), 1997,1999, 2001

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Rosa, Felippe Augusío de M i r a n d a


R694s Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato so-
17.ed. cial / EA. de Miranda Rosa. — 17.ed. rev. e atual. — Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

Apêndice | i
ISBN 85-7110-219-8

1. Sociologia jurídica. I. Título.

04-1513 C D U 316.334.4
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Capítulo III

O DIREITO COMO FATO SOCIAL

1. A norma jurídica como resultaào e reflexo da realidade social.

2. Condicionamentos socioculturais da normatividade jurídica.


i
3. Formação extralegislativa do Direito.

4. Dicussão esclarecedora.
1 : A norma jurídica como resultado e reflexo da realidade social.

O Direito c fato social. Ele se manifesta como uma das realidades observáveis na
sociedade.' É o i n s t r u m e n t o institucionalizado de maior importância para o con-
trole social. Desde o início das sociedades organizadas manifestou-se o f e n ô m e n o
jurídico, c o m o sistema de normas de conduta a que corresponde u m a coação
exercida pela sociedade, segundo certos princípios aprovados e obedientes a for-
m a s predeterminadas.
A n o r m a jurídica, portanto, e um resultado da realidade social. Ela e m a n a da
sociedade, por seus instrumentos c instituições destinados a formular o Direito,
refletindo o que a sociedade tem c o m o objetivos, bem c o m o suas crenças e valora-
ções, o complexo de seus conceitos éticos e finalísticos.
Esse fato pode ser esclarecido mediante simples referência à variedade de
sistemas e normas de Direito em diferentes quadros culturais. O estudo histórico
das sociedades revela a existência de estruturas jurídicas bastante diversas no t e m -
p o e no espaço. As pesquisas realizadas sobre a evolução do direito de família, ou
sobre as diversas fórmulas adotadas no direito de sucessão hereditária, n o q u e se
refere ao direito de propriedade etc., mostram que cada u m a dessas faces do fenô-
m e n o jurídico global apresentou uma dessemelhança de formulações, extrema-
m e n t e interessante e curiosa. As realidades sociais diferentes c o n d i c i o n a r a m or-
d e n s jurídicas t a m b é m diversas.
É importante pesquisar as relações existentes entre as estruturas e a dinâmica
sociais dos exemplos tomados, e as manifestações das instituições de Direito. Nes-
se estudo, a relação entre a realidade do meio social e cada u m a das facetas d o seu
sistema cultural, nele incluída a ordem jurídica, revela a existência de u m a intera-
ção entre a c o n j u n t u r a global e a normatividade jurídica.
É p o r esse motivo, p o r exemplo, que as manifestações jurídicas nas sociedades
em desenvolvimento t e n d e m a apresenfar grandes diferenças em relação às q u e
são vigentes nos países chamados desenvolvidos. As sociedades "em desenvolvi-
mento", ou subdesenvolvidas, têm realidades socioculturais próprias, i n c o n f u n d í -
veis e não-identificáveis com outros modelos. O contexto real de tais sociedades
não pode ser assemelhado ao que se observa nas sociedades plenamente desenvol-
vidas.
Há u m a realidade particular de cada processo histórico nacional, o u grupai,
m u i t o p r ó p r i a e diferenciada, dentro de u m q u a d r o m u n d i a l q u e tende à r e d u ç ã o
das diversidades f u n d a m e n t a i s e à maior influência recíproca de todos os g r u p o s
h u m a n o s . A essa realidade particular corresponde a p r o d u ç ã o de instituições t a m -
b é m particulares, entre elas as jurídicas. O motivo evidente d o fracasso de f ó r m u -

44
Ias e instituições de Direito tão bem-sucedidas em certas sociedades, q u a n d o apli-
cadas sem as devidas modificações a outras sociedades, é precisamente a inade-
quação das n o r m a s assim editadas à realidade concreta do meio em que se as
pretende empregar. Modelos jurídicos das sociedades industriais mais avançadas
não p o d e m , evidentemente, ser bons para sociedades subdesenvolvidas, a menos
que sofram grandes transformações no processo de aplicação, q u a n d o isso for
possível.
A m u d a n ç a social, que opera em escala planetária, repercute assim, sempre,
na t r a n s f o r m a ç ã o d o Direito. O fato, notório aliás, mereceu de Friedmann um
preciso exame cm três livros interessantes, cm um dos quais o analisou de forma
genérica, focalizando especialmente as interações da mudança social com a mu-
dança do Direito, l e m b r a n d o que os estímulos sociais à modificação da ordem
jurídica a s s u m e m formas variadas, seja pelo crescimento lento da pressão dos
padrões c n o r m a s alterados na vida social, criando uma distância cada vez maior
entre os fatos da vida e o Direito, seja pela súbita e imperiosa exigência de certas
emergências nacionais, visando a u m a redistribuição dos recursos naturais ou
novos paradigmas de justiça social, ou seja, ainda pelos novos desenvolvimentos
científicos. 2

Condicionamentos socioculturais da normatividade jurídica.

Os c o n d i c i o n a m e n t o s socioculturais da normatividade jurídica, destarte, se mos-


tram claros e indiscutíveis. Às modificações do complexo cultural de uma socieda-
de c o r r e s p o n d e m , a seguir, alterações na sua ordem jurídica. Tais modificações são
verificadas com maior ou m e n o r celeridade, dependendo de diversos fatores inci-
dentes sobre o processo social, e a t e n d e n d o ao fato de que a n o r m a jurídica, geral-
mente, mas não sempre, c o m o a f i r m o u erradamente Hall, 3 em trabalhos de 1952,
é editada após a constatação, pelos órgãos sociais a isso destinados, da sua necessi-
dade diante de determinada realidade da vida social. O chamado "retardamento
cultural" que se refere à maior lentidão com que as modificações sociais se ope-
ram, c o m p a r a d a s com os progressos materiais; e o fenômeno da diferença em
ritmos e velocidades na m u d a n ç a social, entre as diversas manifestações culturais,
explicam essa variação na rapidez da resposta dos mecanismos produtores de
n o r m a s jurídicas às alterações do sistema cultural.
O q u e se a f i r m o u acima fica mais claro diante da observação do que ocorre no
c a m p o do Direito, paralelamente à evolução das comunicações e dos contatos
entre as diversas sociedades, em u m a escala global. Um dos fatos marcantes dos
m e a d o s do século XX e precisamente essa expansão do sistema de comunicações,
de m o d o que qualquer fato social de alguma significação é quase imediatamente
conhecido e observado em todos os continentes. As modificações do contexto
social, p o r t a n t o , se verificam em dimensão mundial, ocorrendo a tendência para
certa u n i f o r m i d a d e cultural em todo o planeta.
46 Sociologia do Direito

Esse processo rumo à padronização sociocultural ainda está em sua fase de


desenvolvimento, porém a previsão normal é de que não se detenha, de m o d o que
a Terra apresentará, provavelmente, dentro de certo número de decênios, u m pa-
norama sociocultural relativamente homogêneo. Não vaticinamos aqui a supres-
são de todas as diversidades histórico-culturais relativamente às diversas civiliza-
ções, porém tais variações tendem a esmaecer, sob o influxo das conseqüências
sociais do enorme progresso tecnológico.
O fenômeno da transformação de nosso m u n d o planetário n u m a grânde
aldeia foi analisado com grande sucesso por McLuhan, especialmente no qtie se
refere ao campo da comunicação social, seus símbolos e os resultados do aperfei-
çoamento de seus meios e instrumentos, mostrando que a humanidade estendeu,
com o progresso tecnológico, o sistema nervoso central de cada h o m e m , " n u m
abraço global", em pleno processo de transformação da criatura h u m a n a que esta-
ria readquirindo uma escala de valores de culturas anteriores à escrita e retoifian-
do, pelo conhecimento em bloco, instantâneo, dos fatos de toda parte, procéssos
socioculturais de longa data em declínio. 4
A verdade é que o Direito vai também sofrendo os impactos de tais novas
realidades. A influência do elemento "tempo" nas várias formas de normativi Jade
jurídica é disso exemplo. Prazos de validade, presunção de conhecimento de ratos
juridicamente relevantes, encurtamento de distância para efeitos práticos, pela
facilidade de comunicações e de deslocamento físico das pessoas, problemas rela-
tivos à eficácia e aos efeitos das leis, foram diretamente afetados pelas novas con-
dições materiais que a tecnologia moderna criou.
Assim sendo, é curioso observar que essas relativas identidades de quadros
socioculturais apresentam, também, u m a semelhança crescente dos sistemas jurí-
dicos das diversas sociedades, que se aproximam, uma das outras, no m o d o de
viver. Existe certa uniformidade de padrões socioculturais, por exemplo, na civili-
zação ocidental; os sistemas de Direito nos países pertencentes a tal civilização são
também assemelhados, e nele são observados idênticos modos de tratar as princi-
pais instituições jurídicas.
C o m o já se acentuou, o fenômeno jurídico poderia ser qualificado comp um
"universal" da sociedade. Sanchez de la Torre o afirmou em interessantes conside-
rações, sobre a força garantidora que a n o r m a jurídica possui contra o mero arbí-
trio. Não é, porém, exclusivamente sob esse aspecto que nos ocupa essa caracl erís-
tica de "universal" que o Direito possui. Reexaminemos, a propósito, a afirmação
de que a presença da ordem jurídica é fato constatável em qualquer sociedade
complexa. Ao aparecimento do grupo social com características próprias e insti-
tucionalizadas corresponde de logo o surgimento de um determinado sistema
jurídico, compreendendo as normas de conduta aprovadas e desaprovadas pelo
grupo, e os meios de coação que este utiliza, para assegurar obediência àquelas
normas. j
Isso porque, em qualquer agrupamento humano, estão presentes, inevita-
velmente, fenômenos de valoração, pelos quais o grupo atribui certos valores a de-
Direito como Fato Social 47

terminadas situações, coisas e idéias. Não há, contudo, valores da sociedade sem que
se estabeleçam condutas necessárias; n e m imposições normativas sem a avaliação
concreta do que é justo e do que é injusto. Daí que todas as sociedades sejam orga-
nizações jurídicas, pelo menos no que se refere à confirmação de u m a consciência
de solidariedade que estabelece regras necessárias à sobrevivência d o grupo. 5
Essa relação entre a realidade social, condicionante sociocultural da n o r m a t i -
vidade jurídica, e esta p o d e ser ainda salientada pela e n o r m e força q u e possui o
costume, cujo papel c o m o elemento decisivo na formação d o Direito n ã o p o d e ser
negado. 6 O costume reflete práticas <^ue se revelaram socialmente úteis e aprova-
das, ajustadas às demais formas de^vida do grupo social e que, com o tempo,
tendem à uniformidade e a adquirir autoridade própria.
Essa autoridade é u m a conseqüência da convicção que se f o r m a na sociedade
de que tal o u qual m o d o de proceder é adequado e conveniente aos fins sociais. Em
grande número de casos, o costume se transformou em Direito Positivo, acolhido
e institucionalizado nas leis que os órgãos da sociedade editaram. E m m u i t o s
outros, o costume foi m a n d a d o observar no texto das n o r m a s de Direito C o m e r -
cial, cuja importância para a Sociologia do Direito ainda não foi convenientemen-
te estudada. Ha grande maioria dos exemplos, entretanto, o costume permanece à
margem do Direito Positivo, mas o influencia de maneira peculiar e o condiciona
em todos os momentos.
A questão das regras sociais juridicamente relevantes, aliás, é de grande atua-
lidade. Não apenas no que tange ao costume, mas t a m b é m às n o r m a s morais,
normas religiosas e outras normas de c o m p o r t a m e n t o que existem em vários pla-
nos e atendendo a interesses diversos, há conseqüências jurídicas a considerar,
mesmo quando não são expressamente mandadas observar no texto das leis. O
assunto, sempre fascinante para juristas e sociólogos, mereceu de Balossini u m
tratamento primoroso que muito pode esclarecer os estudiosos, e que faz intei-
ramente clara a natureza de lato social que tem o f e n ô m e n o jurídico, de acolhi-
mento que a normatividade jurídica manifesta às demais formas de n o r m a t i v i d a -
dc social. 7

Formação extralegislativa do Direito.

Aqui vale focalizar a questão da formação extralegislativa d o Direito. Do p o n t o d e


vista sociológico, não se discute mais a existência de copioso material que p o d e ser
classificado como " n o r m a s jurídicas" e que não provém dos órgãos estatais cuja
função seja a edição das leis. Gurvitch analisou com meticulosidade os diversos
planos em que opera a p r o d u ç ã o das normas de Direito, segundo a estratificação
social e atendendo às diversas formas de sociabilidade que adotou em sua classi-
ficação.8 Depois dele, todos os autores e pesquisadores do assunto são c o n c o r d e s
na existência da produção de normas jurídicas fora dos quadros legiferantes d o
Estado.
O Direito que e m a n a das associações, criando obrigações e deveres intragru-
pais, é disso u m exemplo marcante. O u t r o é o c o n j u n t o de regras das organizações
sindicais, paralelas às n o r m a s estatais, e que, c o m o outras regras de Direito, não-
o r i u n d a s d o s órgãos do Estado, possuem, por vezes, força coativa superior às que
o são e prevalecem em casos de conflito. Exemplo disso é a normatividade que
e m a n a das grandes corporações industriais e dos acordos entre elas, na sociedade
industrial m o d e r n a .
Tais regras de Direito, de formação extralegislativa, têm u m a importância que
ainda está por receber exame e pesquisa adequados à sua verdadeira influência na
sociedade. Elas são bem a medida da afirmação de que o Direito é reflexo da
realidade social e se ajusta, necessariamente, às demais formas de sociabilidade
adotadas pelo grupo, a cujo m o d o de viver, a cujas crertças e valorações se adapta.

Discussão esclarecedora.

C o n v é m acrescentar aqui as reflexões que fizemos sobre os aspectos ideológicos


relevantes do que seja justo ou injusto na sociedade. As considerações que se se-
g u e m dizem respeito à natureza do que se convencionou c h a m a r ideologia e sua
influência no conceito básico de justiça.
1) Ideologia 9 não é apenas ideologia política. Esta é simples manifestação da-
quela, tipo, ramo, parte. O conceito de ideologia, tout court, é m u i t o mais amplo.
Pode-se ler em Caldas Aulette 10 que ideologia é

ciência que trata da formação das idéias; tratado das idéias em abstrato. Interpretação
subjetiva dos fenômenos sociais. Sistema de idéias sobre a vida. Maneira de pensar
característica de um indivíduo, ou de uma classe, dentro das suas convicções e con-
venções filosóficas, religiosas, sociais e políticas. Sistema filosófico que considera a
sensação como fonte única dos nossos conhecimentos e único princípio de nossas
faculdades.

O u t r o dicionarista, o mais famoso de hoje, Aurélio Buarque de Holanda Fer-


r e i r a , " dá os seguintes conceitos de ideologia:
i
Ciência da formação das idéias; tratado das idéias em abstrato; sistema de idéias.
Pensamento teórico que pretende desenvolver-se sobre seus próprios princípios abs-
tratos, mas que, na realidade, é a expressão de fatos, principalmente sociais e econô-
micos, que não são levados em conta ou não são expressamente reconhecidos como
determinantes daquele pensamento.

C o m o se constata, a maneira de definir ideologia é a p r o x i m a d a m e n t e a mes-


m a nos dicionários do vernáculo. E em ambos os exemplos, aliás clássicos, o con-
ceito é largo, transcende em muito o aspecto p u r a m e n t e político, entretanto o
mais conhecido.
Já Emílio Willems 1 2 diz ser ela u m sistema de idéias peculiar a determinado
g r u p o e condicionado, em última análise, aos interesses desse grupo. Depois de
lembrar q u e a f u n ç ã o da ideologia é a conquista o u a conservação de um determi-
n a d o status social d o g r u p o e de seus m e m b r o s , assinala que d o u t r i n a s políticas,
religiosas, econômicas e filosóficas d e s e m p e n h a m , geralmente, funções de ideolo-
gia. Ele observa, p o r é m , ser raro que essas funções cheguem à luz da consciência
dos que professam a ideologia. >
i Ao a p o n t a r esse fato, Willems toca no p o n t o possivelmente essencial do con-
deito de ideologia na teoria marxista. Para M a r x e Engels, as ideologias são formas
de falsa consciência, sistemas de idéias distorcidas e enganadoras que se contra-
p õ e m às teorias ou opiniões científicas. A questão da falsa consciência 1 ' 1 c funda-
n e n t a l para o e n t e n d i m e n t o da teoria marxista — que não se quer enquadrada
Çomo ideologia — e tem sido objeto de extenso debate. H
Paulo D o u r a d o de Gusmão 1 5 aproxima-se do conceito de Willems ao dizer
c ue ideologia é

forrha dc pensamento, sentir e agir, correspondente aos interesses do grupo, destina-


da a perpetuá-lo cm uma dada condição. Sistema de idéias e de reformas sociais
defendido pelos partidos políticos ou pelos grupos sociais. Formas de pensamento,
sentir e agir provocadas pelos interesses do grupo. Sistema de idéias destinado a expli-
car o fato social, modificá-lo, aperfeiçoá-lo, transformá-lo ou destrui-lo.

Em D o u r a d o de G u s m ã o fica mais explicitada a face de processo que a ideo-


logia t e m . Ela é, assim, fato estrutural e processo.
A a b o r d a g e m sistêmica é enriquecida p o r Loewenstein, 1 6 para q u e m a "ideo-
logia é u m sistema coerente de idéias e de crenças, explicando a atitude do h o m e m
ém relação à sociedade e c o n d u z i n d o a adoção de u m m o d o de c o m p o r t a m e n t o
que reflete essas idéias e essas crenças e que a elas se conformam".
Na m e s m a linha de e n t e n d i m e n t o , A d a m Schaaf 17 afirma que a ideologia "é
í m sistema de opiniões que, f u n d a d o sobre u m sistema de valor, determina as
Atitudes e o c o m p o r t a m e n t o a respeito dos objetivos desejados de desenvolvimen-
to da sociedade, do grupo social ou do indivíduo".
Assim, e m b o r a i m p o r t e s e m p r e , e m u m posicionamento que acaba por ser
político, pois o f e n ô m e n o político p o r excelência, o Poder, está em todas as mani-
festações da vida social, 18 o conceito de ideologia é mais abrangente que o de
ideologia política. Esta é u m a de suas f o r m a s de presença, relativa a u m determi-
n a d o g r u p o de aspectos dos processos e das estruturas sociais.
Para os fins aqui buscados, dessa maneira, ideologia é u m sistema de idéias,
crenças, valores e opiniões que se manifesta por m o d o s de sentir e de agir e por uma
'àsão do m u n d o peculiar a determinado grupo. Tal sistema pode referir-tje às reli-
giões, às manifestações artísticas, à cultura, ao conhecimento, à política. Ele permeia
<: influencia a sociedade. Está presente, pois, na percepção da idéia de Justiça.
2) A idéia d o justo está entrosada com, e depende do valor "justo". Ou seja,
segundo o valor que d a m o s ao que é, ou nos parece, justo, definimos o que o seja.
50(8 Sociologia do Direito

Ou talvez a recíproca seja mais verdadeira. Na verdade, essa é uma influência


mútua. O u melhor, trata-se no caso de duas manifestações da mesma coisa. Idéia
e valor, valor e idéia, configuram o que é justo e definem o que seja Justiça no
sentido de Justiça-idéia, Justiça-valor, em contraposição à Justiça-Instituição.
O que seja justo é assim u m conceito sociocultural. As sociedades humarfas e
seu contexto cultural f o r m u l a m os parâmetros da Justiça como idéia e como valor.
Daí que algumas coisas sejam tidas como justas em determinadas formações! so-
ciais, e injustas em outras. C o m o a desigualdade (ou a igualdade) entre homens e
mulheres. Para o m u n d o árabe, é justo que o h o m e m tenha simultaneamente
várias mulheres, oficialmente, e que ele exerça domínio e autoridade sobre elas; no
Brasil, como aliás no m u n d o ocidental em geral, isso é impensável na atualidade.
Assim, o conteúdo do conceito do que é justo e do que seja Justiça é relativo
no tempo e no espaço. Entre nós, já foi considerado justo (e não apenas legal) o
predomínio masculino no casamento e nas relações familiares. Hoje, não apçnas
isso não ocorre e, por conseqüência, a lei (a nova Constituição o faz) declara a
completa igualdade.
O conceito do que seja o justo é, portanto, uma criação social. Mais precisa-
mente, um p r o d u t o sociocultural. O u seja, da formação social e da cultura que lhe
é peculiar. Convém assim precisar qual o conceito de cultura com que se trabilha
aqui. Ele não é o grau mais ou menos elevado de saber, que faz com que se diga que
alguém é u m a pessoa culta. Trata-se da acepção sociológica e antropológici de
cultura, segundo a qual ela é o conjunto de normas de convivência, cohhecimênto
acumulado, técnicas de produção, criações artísticas e do pensamento, valores,
idéias, crenças, ética, modos de pensar, agir e sentir, as instituições juntamente
com os objetos, vestuário, utensílios, instrumentos etc., e o modo como tais ele-
mentos se combinam. 1 9 Esse conceito ajusta-se à segunda e à terceira acepções
apontadas por T.S. Eliot- 0 em ensaio famoso, segundo o qual o termo "cultlura"
pode ser compreendido como referido ao desenvolvimento de a) um indivíduo, b)
um grupo ou classe, e c) a sociedade c o m o um todo.
Pois é esse " m o d o de vida" de u m a formação social dada que condiciona o
que nele é tido por justo. Ora, pode-se observar que o conceito de ideologia abjran-
gfc parte dos elementos que c o m p õ e m uma cultura. Ou seja, cada cultura desen-
volve certos tipos de ideologia que lhe são peculiares, característicos do modo
como se estrutura e "funciona".
Lógico, portanto, que a idéia e o sentimento do justo dependam desse contex-
to. Mais que isso, porém, eles estão vinculados aos interesses ideologicamente
válidos. O processo de compreensão e de sentir que algo é, ou não é justo, é domi-
nado pela ideologia do agente, ou observador. Por isso mesmo, quando se enuncia
o princípio "a cada um segundo suas necessidades e seu merecimento", afirma-se
algo justo porque p r o f u n d a m e n t e enraizado no universo ideológico.
Claro está que tais considerações necessitam de mediação para o entendi-
mento do que se passa na mente individual diante de certas situações conflitivas.
O elemento "interesse" intervém então, c o m o expressão conjuntural de preten-
I
Direito como Fato Social 51

sões culturalmente (e, portanto, ideologicamente) válidas. Q u a n d o interesses in-


dividuais ou grupais estão em oposição, isso produz freqüentemente (quase sem-
pre) representações conflitantes do que é justo. Cada u m dos oponentes considera
justo aquilo que atende a seus interesses, mas o faz somente dentro dos parâme-
tros ideologicamente admitidos no contexto sociocultural em que se encontra.
Como se sabe, o conceito do justo é o cerne do conceito de Justiça. Este possui
duas acepções básicas: a) Justiça-valor, que abrange aspectos racionais, ideativos e
d o sentir, e b) Justiça-instituição, locus ideal daquele, por meio da qual a Justiça-
valor alcança a sua concretude (o aparelho judicial do Estado).
A realização do justo, da Justiça-valor, entretanto, não está circunscrita ao
funcionamento do aparelho judicial, o u Justiça-instituição. Ela se faz em grande
amplitude, por todas as formas pelas quais a interação social constrói as composi-
ções que correspondem ao que é equânime. Esses pontos ideais de equilíbrio so-
cial, nos quais os interesses diversos são respeitados em proporção à sua "justiça",
são o elemento central de todo u m universo normativo que, integrando o controle
social atua por vezes (a maioria) de maneira difusa, constante e generalizada,
conformando comportamentos a um elenco de expectativas que a seu respeito a
sociedade desenvolve.
Não é, contudo, apenas o aparelho judicial do Estado que constitui Justiça-
instituição. Outras instituições sociais atuam para a realização da Justiça-valor.
Todos os organismos, estatais e da chamada sociedade civil, inclusive as institui-
ções religiosas, funcionam para que se atinja o justo nas relações interindividuais
e grupais.
Tais organismos, instituições, aparelhos de Estado, assim agindo, f u n c i o n a m
no sentido de ajustar as condutas sociais aos parâmetros das expectativas sociais
de comportamento. Estas são, entretanto, dominadas por considerações de justi-
ça-valor, ou do valor justiça, e por interesses que podem, ou não, ser conflitantes.
A presença do f u n d a m e n t o ideológico reproduz, dessa maneira, os modelos
do que é justo, como objetivo de tais criações institucionais ou funcionais, que têm
como uma das razões de ser a adequação dos modos de sentir, agir e pensar aos
valores estabelecidos como equânimes. Tal busca da equidade é, pois, essencial.
Nos casos conflituais mais agudos, excetuados os das contradições básicas da
formação social (macroconflitos que pertencem ao fato político e que, portanto,
só se resolvem ou compõem no plano do poder), porém, é o aparelho judicial do
Estado que deve atuar em busca do justo. Ele o faz, ele também, segundo os funda-
mentos ideológicos definidores da eqüidade e das regras para cumpri-la. Daí que
se possa afirmar que o Judiciário funciona segundo os parâmetros ideológicos que
lhe deram vida e o condicionam em sua função. Os valores, as crenças, as idéias, os
sentimentos que informam a vida social estão presentes na razão de ser do Judiciá-
rio e nas regras segundo as quais ele se deve comportar, o modo como ele deve
decidir litígios, assim como a obrigatoriedade imposta a todos, no sentido de
cumprir suas decisões.
s
ej

S e g u n d o essas considerações, o aparelho judicial de uma determináda socie-


dade é u m p r o d u t o ideológico.
3) A l g u m a s conseqüências podem ser extraídas do que foi dito: •
a) Os órgãos d o Judiciário, como aparelho estatal, são estruturados, q u a n t o à
sua organização e competência, segundo a ideologia d o m i n a n t e na sociedade a
que p e r t e n ç a m . Os órgãos judicantes e administrativos são estabelecidos em con-
f o r m i d a d e c o m o sistema de idéias, valores, crenças, do meio em que devem atuar
e essa a d e q u a ç ã o é condição de sua viabilidade.
Dessa maneira, criam-se juízos monocráticos ou colegiados, coordenados ou
hierarquizados entre si, tribunais de vários tipos e níveis; são estabelecidos os seus
p r o c e d i m e n t o s judiciais e administrativos; é a eles atribuída a respectiva c o m p e -
tência, tanto n o plano jurisdicional quanto no do f u n c i o n a m e n t o administrativo.
A visão d o m u n d o espelhada na ideologia d o m i n a n t e é refletida em tudo isso.
b) Os seus m e m b r o s , principalmente os magistrados de todos os níveis, são
r e c r u t a d o s segundo p a r â m e t r o s e regras que refletem essa mesma ideologia. Per-
tencem eles quase sempre aos estratos sociais mais condicionados p o r t a l ideologia
— e q u e são geralmente os m e m b r o s da classe média, a mais fiel seguidora dos
f u n d a m e n t o s ideológicos d o m i n a n t e s da vida social.
O s requisitos para o ingresso no aparelho judicial são ajustados aos valores,
idéias e crenças dominantes; o tipo de formação intelectual é t a m b é m assim con-
dicionado, p o r u m longo processo de educação e ensino. E os conhecimentos
necessários são referidos à o r d e m jurídica existente que é, a toda evidência, espe-
lho das relações de Poder e m curso e da ideologia dominante, quer no aspecto
político, q u e r nas demais manifestações.
c) As decisões do Judiciário são, assim, tendentes a u m a certa (relativa) uni-
f o r m i d a d e , q u e respeita os postulados ideológicos aludidos. É compreensível que,
s u b m e t i d o s aos m e s m o s tipos de condicionamento: em sua formação e n o seu
r e c r u t a m e n t o , os juizes t e n d a m a decidir de maneira p r e d o m i n a n t e m e n t e u n i f o r -
m e a m a i o r i a das questões a eles submetidas; e que esses condicionamentos, de
n a t u r e z a ideológica, c o m o afirmado, p r o d u z a m decisões que p o d e m ser tidas
c o m o ideologicamente condicionadas.
Assim, q u a n d o u m juiz concede a alguém a indenização p o r dano moral, ele
está a f i r m a n d o , de u m lado, que os dan^s devem ser indenizados para restabeleci-
m e n t o do equilíbrio social (o que é vinculado ao sentimento e à idéia do justo) e,
p o r o u t r o lado, que n ã o apenas o aspecto material há de ser considerado, mas
t a m b é m os valores m o r a i s — o que é u m a postura ideológica evidente.
d) Logo, é possível fazer u m a "leitura" dos componentes básicos da referida
ideologia d o m i n a n t e , n o m o d o como juizes e tribunais d i r i m e m os litígios a eles
s u b m e t i d o s , e c o m o a t u a m n o conjunto dos instrumentos do p o d e r social.
De m a n e i r a idêntica à "leitura" da m u d a n ç a social subjacente aos julgados
dos juizes ,e tribunais, 2 1 o estudo do conteúdo das decisões judiciais permite cons-
tatar q u e valores, q u e visão d o m u n d o , que complexo ideológico enfim, é d o m i -
n a n t e n a sociedade em que tais decisões são proferidas. Leia-se, p o r exemplo, e m
c o n f r o n t a ç ã o , o s j u l g a d o s d o s t r i b u n a i s d o s é c u l o XIX e o s d e h o j e . O s v a l o r e s
sociais, d e e n t ã o e d e a g o r a , s ã o m u i t o d i f e r e n t e s . O q u e o c o r r e e m f a c e d a m u d a n -
ça social ( q u e é, q u a s e s e m p r e , a c o m p a n h a d a d e m o d i f i c a ç õ e s d a i d e o l o g i a d o m i -
n a n t e ) , r e p e t e - s e , p o r t a n t o , a q u i . E essa f u n ç ã o r e v e l a d o r a d a j u r i s p r u d ê n c i a é d a s
suas mais i m p o r t a n t e s características.
4) O que foi dito pode parecer o óbvio. Mas não é. O simples fato de que, na
conceituação da ideologia, muito freqüentemente se confunda a parte com o todo,
recomenda uma reflexão a respeito. Nada tem de negativo o reconhecer-se que as
decisões dos tribunais, a que se atribui imparcialidade, impessoalidade e busca
pura e simples do justo, sejam manifestações da ideologia que prevalece no meio
social, da visão do m u n d o que condicionou a toda a sociedade, o seu sistema de
idéias, crenças, valores e sentimentos. Trata-se de mera constatação de algo ele-
mentar no conhecimento sociológico, o fato de que todos os m e m b r o s de um
grupo social, grande ou pequeno, simples ou complexo, são condicionados pelos
modos de pensar, agir e sentir d o m i n a n t e s no mencionado meio.
Muito pelo contrário, a percepção desse f e n ô m e n o ajuda a conseguir uma
abordagem realista do que acontece q u a n d o se observa o direito vivo, o direito em
ação, que de fato acontece no m u n d o jurídico, n o r m a ou instituição. Isso permite
melhor compreender a necessidade da abordagem do sein, e não apenas do sollen,
p o estudo do Direito. É que não se pode perder de vista o real, o que é, q u a n d o se
ireflete sobre a ordem jurídica, sua validade, sua funcionalidade, sua legitiipidade.
j O Direito é instrumento de controle social em expansão, que vai ocupando
espaços antes reservados a outras formas de controle, e o m o d o c o m o ele é efetiva-
mente aplicado é uma dimensão essencial d o seu estudo. É preciso verificar se a
n o r m a jurídica eficaz do ponto de vista da dogmática, porque é apta a produzir os
efeitos para os quais foi criada, é t a m b é m eficaz c o m o realidade, funciona como
pretendido, condiciona, verdadeiramente, na prática, os c o m p o r t a m e n t o s sociais.
À definição do dever ser da dogmática, é preciso corresponder o ser que se investiga
na Sociologia do Direito.
A ideologia, entendida no sentido amplo já referido no princípio destas refle-
xões, cdndiciona tanto o dever ser enunciado na dogmática, q u a n t o o que é, o ser, a
que se dirige o estudo sociojurídico. Ela define o justo como dever ser, e o configu-
ra como ser. D o m i n a o discurso da Justiça e condiciona as suas práticas, integrados
ambos, o discurso e os usos, na praxis reveladora do real.
C a p í t u l o IV

O DIREITO COMO CONDICIONANTE


DA R E A L I D A D E S O C I A L

1 .A interação social e o Direito. Influência deste sobre as demais


manifestações sociais.

2. A norma jurídica como instrumento de controle social.

3. Funções educativa, conservadora e transformadora. O Direito


como agente de mudança social. Ação do Direito sobre a opinião
pública.

4. Em resumo.
1 A interação social e o Direito. Influência deste sobre as demais manifestações sociais.

Se o Direito é c o n d i c i o n a d o pelas realidades d o m e i o em que se manifesta, entre-


tanto, age t a m b é m c o m o elemento condicionante. A integração entre todos os
c o m p o n e n t e s de u m complexo cultural é u m dos fatos de m a i o r significação na
vida social. A exata c o m p r e e n s ã o da sociedade c o m o c a m p o em que essa interação
múltipla opera e n t r e milhares de fatores influentes é indispensável a q u e m cuide
do e s t u d o das Ciências Sociais. Essa c o m p r e e n s ã o leva à convicção da extrema
m u t a b i l i d a d e d o s f e n ô m e n o s dos g r u p o s h u m a n o s , d o estado de fluidez perma-
n e n t e q u e eles a p r e s e n t a m . E faz que se perceba seguramente que cada u m dos
e l e m e n t o s influentes na vida social é, ao m e s m o tempo, condicionante e condi-
cionado.
O f e n ô m e n o jurídico é, assim, reflexo da realidade social subjacente, mas
t a m b é m fator c o n d i c i o n a n t e dessa realidade. Ele atua sobre a sociedade, como as
o u t r a s f o r m a s pelas quais se apresenta o complexo sociocultural. A vida política é
regulada pelas n o r m a s d o Direito. Ela se processa segundo princípios e n o r m a s
fixados na o r d e m jurídica, e o Estado, m e s m o , é a institucionalização maior dessa
o r d e m jurídica estabelecida. Em todos os aspectos, está presente a regra do Direito.
Os fatos e c o n ô m i c o s , certamente os de m a i o r influência n o condicionamento ge-
ral da sociedade, são c o n t u d o , t a m b é m eles, condicionados pelos demais, desde a
arte, o senso estético, as religiões, as valorações coletivas, e assim t a m b é m pelo
Direito. 1
O q u e aqui d e n o m i n a m o s "condicionamento", e n o caso, o "condicionamen-
to de retorno", d o Direito sobre o socioeconômico é, mutatis mutandi, a "sobrede-
t e r m i n a ç ã o " da teorização althusseriana, que a reconhece nas diversas "instâncias"
de q u a l q u e r f o r m a ç ã o social concreta. 2 O u t r a coisa não é, t a m b é m o que outros
autores marxistas, p r i n c i p a l m e n t e de pajses socialistas, c h a m a m de "efeito consti-
tutivo" das f o r m a s jurídicas, reconhecendo a i m p o r t â n c i a q u e esse "efeito" tem na
c o n f o r m a ç ã o das condições econômicas.' 3
T o d o o processo educacional em u m a sociedade se desenvolve segundo prin-
cípios j u r í d i c o s q u e o m o l d a m . A sociedade m o d e r n a , aliás, deslocou e m muito
esse processo da esfera d o g r u p o familiar, o u dos grupos vicinais, para instituições
de raízes m a i s amplas, com a criação das escolas e o desenvolvimento dos sistemas
de ensino, e m q u e a intervenção normativa do Estado se faz sentir de maneira cada
vez m a i s i m p o r t a n t e . A instrução pública é disso u m exemplo d o qual se p o d e m
tirar lições significativas, d a d o o seu caráter de serviço público em expansão em
t o d o s os países.
i i
56
C o m o resultado disso, o desenvolvimento científico e tecnológico está, sem-
pre, condicionado pela variada legislação que, d o m i n a n d o toda atividade educa-
cional da sociedade, nos seus diversos níveis e setores, regulam a atribuição de
recursos, as atividades de pesquisa pura e aplicada, o regime de sua administração
e a sua propriedade, assim c o m o a aplicação final dos resultados do conhecimento
técnico-científico.
É i m p o r t a n t e assinalar como u m a adequada legislação pode favorecer, ou
desfavorecer, o desenvolvimento científico, mediante a concessão de vantagens aos
estudiosos, a canalização de verbas, a limitação, ou não, da troca de informações,
a garantia da continuidade, o estímulo a iniciativas nacionais, ou pioneiras, ou
regionais, ou ainda, aparentemente destituídas de interesse prático imediato, mas
cújos resultados p o d e m vir a ser de importância inusitada para o progresso da
ciência e da tecnologia.
A ética recebe, de volta, influências da n o r m a jurídica. O m u n d o da moral,
cüja capacidade condicionante da normatividade jurídica é axiomática, e a isso se
ráferiu, de novo, recentemente, o já aludido Jorion, 4 não escapa assim às influên-
cias de torna-viagem que o Direito distribui em toda a sociedade. Tem sido obser-
vado que, com u m a freqüência pouco ressaltada, mas significativa, c o m p o r t a m e n -
tos ditados aparentemente apenas pelas n o r m a s morais de certos grupos tiveram
e t ê m origem em m a n d a m e n t o s de ordem jurídica. Tais m a n d a m e n t o s se refletem,
dessa maneira, em m o d o s de agir, formas de c o m p o r t a m e n t o que adquirem con-
teúdo m o r a l próprio, independente da origem jurídica, mas nem por esse motivo
despidos de conteúdo ético marcante. Idêntico fenômeno, de formação aproxima-
damente a mesma, é o do costume de origem legal, nascido de determinação em
l^i o u n o r m a estatal de outra espécie, que pode, ou não, continuar em vigor. No
n i o m e n t o em q u e se forma u m c o m p o r t a m e n t o costumeiro decorrente daquela
n o r m a jurídica, ele passa a ter vida independente, de m o d o q u e se projeta, por
v:zes, m u i t o tempo após a revogação da n o r m a e sua substituição p o r outra. Isso
explica e se exemplifica nos casos de leis posteriores que modificam institutos ou
simples disposições de Direito, mas que n ã o chegam a ter eficácia real, continuan-
do a prevalecer os c o m p o r t a m e n t o s inspirados nas antigas n o r m a s legais revoga-
das, p o r q u e tais c o m p o r t a m e n t o s criaram força consuetudinária capaz de se so-
brepor às novas determinações da o r d e m jurídica.
Tudo, enfim, o que se observa dentro de u m a sociedade é influenciado por
certa o r d e m jurídica, que se infiltra nas formas de sociabilidade, modificando-as
pbr vezes, reforçando-lhes os traços principais, dando-lhe maior vigor o u redu-
zindo-lhe a força condicionante.

A norma jurídica como instrumento de controle social.

É| a n o r m a jurídica o instrumento institucionalizado mais importante de controle


sçcial. É p o r seu intermédio, sem a m e n o r dúvida, que esse controle se manifesta
58 Sociologia do Direito

formalmente com maior eficiência, pois a n o r m a jurídica dispõe da força de coa-


ção, pode ser imposta à obediência da sociedade pelos instrumentos que essa ir es-
ma sociedade çriou com esse fim.
Stone dedicou a esse aspecto do Direito u m capítulo inteiro de Social Dinipn-
sions ofLaw and Justice,5 focalizando minuciosamente o fenômeno jurídico iem
relação ao controle social. É interessantíssima a análise que esse professor austra-
liano fez das fronteiras entre o controle jurídico ou legal e os outros controles
sociais, fronteiras essas que qualifica de cambiantes. No breve apanhado histórico
que realizou, contudo, indicou fato que nos parece de grande significação: q de
que o controle jurídico invadiu áreas antes guardadas a outros tipos de controle
social, por exemplo, a competição (referida pelo próprio Stone), na evolqção m o -
derna dos Estados industriais.
A interdependência do controle jurídico, ou legal, e os demais tipos de con-
trole social, também é de interesse. Se a interação entre o fenômeno jurídico os
demais fenômenos socioculturais é fato evidente, ao qual já fizemos referência,
segue-se necessariamente que essa interação se estende a todas as manifestações
desses fenômenos, ou melhor, a todas as funções sociais de tais fenômenos, incluí-
da a de controle social.
É preciso não esquecer aquela "onipresença" do fato jurídico na vida da socie-
dade, a que nos referimos antes, e o caráter que o Direito possui de constituir a
forma expressa mais elevada de ordenamento social, emanados dos órgãos especi-
ficamente destinados a produzi-lo dentro de cada grupo. Logo, a ordem jurídiça se
destina, precisamente, a abranger a vida grupai, de maneira a estabelecer nela a
regulação dominante da conduta coletiva e individual. Não é a mais copiosa, mas
é aquela a que a sociedade atribui maior força, mais elevada situação hicrárqi.ica,
na escala de normas socialmente aprovadas.
Sua função de controle social, portanto, não pode ser posta de lado em qual-
quer análise que se faça de sua natureza. O Direito não é apenas um m o d o de
resolver conflitos. Ele os previne e vai mais além, pois condiciona, direta ou i hdi-
retamente, o comportamento. Sua simples autoridade, como forma de manifesta
ção da vontade social, exerce influência da maior significação sobre a conduta
grupai, como veremos adiante."

Funções educativa, conservadora e transformadora. 0 Direito como


agente de mudança social. Ação do Direito sobre a opinião pública.

Outras funções de importância exercidas pelo Direito devem ser referidas, entre-
tanto, especialmente as funções educativa, conservadora e transformadora. A res-

" Sobre essa função de "resolver", ou de "tratar" os conflitos que se manifestam na vida social, ver o
capítulo v.
Realidade Social 59

peito da primeira dessas funções, existem trabalhos curiosos que demonstram que
a simples existência de uma regra de Direito resulta, geralmente, na convicção, por
parte de quem a conhece, de que a conduta recomendada na referida norma é a
mais conveniente.
Esse fato revela a influência educativa da n o r m a jurídica, m o l d a n d o as opi-
niões sociais e p o r t a n t o o c o m p o r t a m e n t o grupai, p o r m e i o de u m processo d e
a p r e n d i z a d o e de c o n v e n c i m e n t o de q u e é socialmente útil, ou b o m , agir de certo
m o d o . N ã o se trata, a p r o p ó s i t o , a p e n a s de ameaça de sanções i m p o s t a s pela socie-
d a d e , em conseqüência da transgressão dos m a n d a m e n t o s da o r d e m jurídica, o
q u e já possui e m si a q u e l a influênci^ sobre a c o n d u t a , a q u e a l u d i m o s . Cuida-se
t a m b é m da força c o n d i c i o n a n t e da o p i n i ã o pessoal e grupai, q u a n t o ao q u e é j u s t o
o u injusto, b o m ou m a u p a r a a sociedade, m o d o de p r o c e d e r a d e q u a d o ou inade-
quado.
Skolnick observou, c o m p r o p r i e d a d e , q u e indagar dos entrevistados, e m pes-
quisa, qual o seu p o n t o de vista s o b r e o c a m i n h o q u e a lei deve adotar, entre duas
hipóteses possíveis, e m t e r m o s abstratos, n ã o é o m e s m o q u e fazer idêntica p e r -
g u n t a depois de dizer qual a solução q u e a lei efetivamente a d o t o u . L e m b r o u mais
q u e se poderia fazer a p e r g u n t a pelas duas formas, a dois g r u p o s diversos de entre-
vistados de características semelhantes, para se m e d i r a diferença das respostas n o s
dois casos, p o r q u e o Direito é, e m si m e s m o , u m a força q u e cria opiniões. 6
N o que se refere à f u n ç ã o c o n s e r v a d o r a da o r d e m jurídica, deve ser dito q u e
ela é, essencialmente, a expressão de u m a d e t e r m i n a d a o r d e m social cuja regula-
ção, c u j o controle e cuja proteção se destina a realizar. C o m o b e m a c e n t u a m os
a u t o r e s mais m o d e r n o s , ela reflete a relação de p o d e r entre as várias classes sociais^'
e as convicções d o m i n a n t e s na sociedade. 7 Logo, exerce f u n ç ã o c o n s e r v a d o r a des-
sa o r d e m , g a r a n t i n d o - I h e as instituições e o tipo de d i n â m i c a social c o n s i d e r a d o
b o m para seus fins, c o m u m a e s t r u t u r a a isso a d e q u a d a . Protege os valores social-
m e n t e aceitos e, c o m o já a c e n t u a m o s , gera u m a tendência c o n s e r v a d o r a entre os
especialistas em seus estudos.
A inclusão de n o r m a s de autodefesa d o sistema, assim, é algo de n o r m a l e
e n c o n t r a d i ç o em todos os exemplos de o r d e m jurídica de mais c o m p l e x i d a d e . As
sociedades n ã o - p r i m á r i a s , ao estabelecerem seu m o d o de vida, seu sistema de
valores e instituições, ficam t a m b é m , na o r d e m jurídica, princípios e regras de
m a n u t e n ç ã o d o sistema total, e m q u e são previstas as hipóteses d e sua defesa
c o n t r a as tentativas de modificá-lo. Sob esse p o n t o de vista, a Sociologia d o Direito
p o d e ser entendida em í n t i m a relação c o m a c h a m a d a Sociologia d o Poder. A
natureza, a qualidade de suas n o r m a s de autodefesa, d e p e n d e das relações de p o -
der na sociedade observada.
Tais relações de póder, c e r t a m e n t e , r e p o u s a m na e s t r u t u r a social e n o seu
m e c a n i s m o funcional. Os c o n d i c i o n a n t e s socioeconômicos das relações de p o d e r
possuem, p o r t a n t o , conseqüências políticas, que se verificam em tais relações p r o -
p r i a m e n t e , e se explica,m, s e m p r e , em manifestações de o r d e m jurídica. Estas,
c o m o resultado, p o s s u e m s e m p r e aquele caráter de expressão de u m a d e t e r m i n a -
da o r d e m social e, inegavelmente, são manifestações de u m a ideologia, sob cuja
pressão se f o r m a m e vivem.
Em s e n t i d o contrário, p o r é m , as n o r m a s jurídicas p o s s u e m u m a f u n ç ã o
t r a n s f o r m a d o r a d o meio. Q u a n d o editadas a t e n d e n d o a necessidades sentidas pe-
los órgãos legiferantes, ou em resposta ao consenso de grupos que se antecipam ao
processo histórico, elas resultam em modificações da sociedade, alterando-lhe o
sistema de controle social e, diretamente, a relação de influências recíprocas dos
diversos elementos condicionantes da vida grupai. Por o u t r o lado, c o n t r i b u e m
indiretamente para a formação de novas manifestações de consenso, nisso con-
fundidas as funções t r a n s f o r m a d o r a e educativa do Direito.
Este precisa, na verdade, ser b e m estudado c o m o agente da m u d a n ç a social. É
essa u m a i m p o r t a n t e manifestação da função t r a n s f o r m a d o r a , exercida pelas n o r -
mas jurídicas, cuja utilização planejada, visando alterar determinado contexto so-
ciocultural, começa a ser objeto de estudos e de primeiras aplicações. Não se perca
de vista que, no p r ó p r i o m o m e n t o em que o legislador edita a n o r m a legal, ou
q u a n d o o Juiz a aplica ao caso concreto, ou ainda, q u a n d o o a d m i n i s t r a d o r execu-
ta os seus m a n d a m e n t o s , um e o u t r o estão modificaiido, em alguma parcela,
maior ou menor, a realidade social. Esse fato é especialmente sensível e fácil de
constatar n o primeiro caso, pois a edição da n o r m a legal sempre, invariavelmen-
te, u m fato de m u d a n ç a da estrutura social.
É t a m b é m visível, em u m exame simples, essa f u h ç ã o de m u d a n ç a social,
q u a n d o os tribunais firmam orientação jurisprudencial em questões de grande
repercussão e que envolvam grande número.de casos concretos, fixando interpre-
tação nova às n o r m a s legais imprecisas, ou quando, t a m b é m interpretando as leis,
a administração adota orientação determinada para a sua execução. Tais situações,
m o d i f i c a n d o em alguma coisa a o r d e m jurídica, se projetam sobre a realidade
social nela regulada, m u d a n d o - a .
A propósito, é interessante abordar a relação existente entre Direito e opinião
pública. A m b o s os fenômenos, c o m o ocorre em geral na sociedade, são condicio-
nantes e condicionados recíprocos, em virtude da interação que opera entre a
n o r m a jurídica e a opinião pública. As reações desta à realidade da o r d e m jurídica
constituem m e s m o , na atualidade, u m dos campos de pesquisa mais i m p o r t a n t e s
dos sociólogos norte-americanos e europeus. Entre estes últimos, Podgorecki e
seus assistentes, n a Polônia, Vinke e sua ecjuipe, na Holanda, e n u m e r o s o g r u p o
italiano, a q u e faremos referência detalhada em outro capítulo, têm realizado, n o s
últimos anos, preciosas indagações que tendem a assumir o caráter de pesquisa
coordenada de c u n h o mundial.
As regras de Direito m o l d a m , em parte, c o m o aliás já ficou d e m o n s t r a d o n o
desenvolvimento deste trabalho, a opinião d o m i n a n t e em d e t e r m i n a d a sociedade.
O que ficou dito há p o u c o a respeito de suas funções educativa e t r a n s f o r m a d o r a
o atesta. A maneira c o m o são encaradas, porém, tais regras pelos c o m p o n e n t e s da
opinião grupai, constitui algo que exige reflexão e pode indicar caminhos legisla-
tivos mais apropriados.
4 Em resumo.

Já tivemos a o p o r t u n i d a d e de dizer 8 que "a o r d e m jurídica é filha do poder". Essa


afirmação provoca, freqüentemente, contradita indignada, refutaçâo acalorada.
N e m por esse motivo é m e n o s verdadeira. A reação desfavorável que suscita é
m u i t o compreensível e se situa principalmente entre os juristas e os que, voltados
para u m a atuação política, ideológica ou moralista, acabam por perder de vista o
m u n d o dos fatos reais, para se entregar por inteiro aos princípios cujo predomínio
seria desejável, ou às cogitações ideais de u m universo do dever ser.
Desde, porém, que o cientista social se atenha à realidade, ao m u n d o do ser,
do q u e efetivamente é e acontece, não há c o m o fugir à constatação. Fenômeno
social superestrutural, do p o n t o de vista das estruturas sociais, sistema normativo
qjue, c o m o estrutura o u c o m o processo, é conseqüência da realidade socioeconó-
róica e sociocultural em que existe, a o r d e m jurídica é editada, mantida, modifica-
da, preservada precisamente pela sociedade que a sentiu necessária, como revela-
çào e expressão d o p o d e r que essa m e s m a sociedade possui. Dona do poder, a
sociedade regula a vida social por diversos modos, desde as normas costumeiras
rftenos coercitivas, até as regras jurídicas, obrigatórias para todos. É o poder social
q u e p r o d u z tais n o r m a s e as t r a n s f o r m a , t e n d o e m vista, sempre, os interesses
sociais — ou interesses d o m i n a n t e s na sociedade. Porque, como se verá mais
adiante, não é o Direito p r o d u t o apenas d o p o d e r social, ou da sociedade, mas
t á m b é m d o poder na sociedade.
Volíamos assim ao exame das duas f o r m a s básicas do poder social: o poder da
sociedade, que se pode dizer poder social p r o p r i a m e n t e dito, e o poder na socieda-
de, aquele que nela é exercido por c o m p o n e n t e s seus, indivíduos ou grupos. Para
ojs fins q u e ora temos nesta análise, as duas f o r m a s referidas são expressas em
p o d e r do Estado e p o d e r no Estado. É q u e a o r d e m jurídica é, em verdade, e hoje,
f e n ô m e n o característico da organização estatal. E dentro do Estado que ela é sig-
nificativa; ela a edita (exceção feita a certas manifestações supra-estatais ou extra-
efctatais que, entretanto, n ã o lhe dispensam a intermediação, para a própria eficá-
cia) e a aplica. C o m o p o d e r do e no Estado, portanto, é que aqui cogitaremos das
manifestações do p o d e r da e na sociedade.
As duas formas condicionam a o r d e m jurídica. Tanto as influências autênti-
cas d o p o d e r estatal p r o p r i a m e n t e dito q u a n t o aquelas dos que, no Estado, o exer-
cçm provocam repercussões n o c a m p o jurídico, modelando as suas normas. É
relevante, contudo, fazer u m a observação. Ela é a de que, na ordem estatal, as
n o r m a s juridicamente relevantes são, quase todas, oriundas dos órgãos institucio-
nalizados e competentes para a respectiva edição. As que não o são têm a sua
eficácia dependente das n o r m a s estatais e a elas se subordinam. Logo, utilizando-
se d o Direito, detentores do p o d e r no Estado só p o d e m exercê-lo através de tais
ÓTgãos, ou seja, t r a n s m u d a d o em p o d e r do Estado, ou poder estatal propriamente
dito.
62 Sociologia do Direito

Nisso reside u m a distinção importantíssima entre as n o r m a s jurídicas (que


são i n s t r u m e n t o institucionalizado de controle social) e as demais n o r m a s dp
controle social, que p o d e m ser m a n i p u l a d a s diretamente, sem intermediação dp
Estado (ou dos instrumentos institucionalizados da sociedade, quaisquer s e j a n
eles) em favor d o exercício d o p o d e r na sociedade. O controle social através do
Direito é s e m p r e exercido pelo Estado, m e s m o q u a n d o , desvirtuado, sirva a i n t í -
resses ou a objetivos dos que, n o Estado, exercem poder. Essas considerações têih
sua i m p o r t â n c i a realçada pelo q u e segue. Delas resultam, aliás, conseqüências
m u i t o mais p r o f u n d a s n o plano teórico, tanto na Sociologia do Direito, icomo ria
Sociologia d o Poder, quanto ainda na ciência política, pois a matéria p o d e lançar
luz e solver algumas questões f u n d a m e n t a i s ligadas à legitimidade e à a u t o r i d a d e .
Há que se considerar, p o r é m , u m aspecto que precede a questão acima expor-
ta: é que, na o r d e m estatal, e antes de se t r a n s m u d a r em c o m a n d o jurídico (e,
portanto, em manifestação d o p o d e r do Estado), o poder no Estado se manifesta
c o m o p o d e r sobre o Estado, ou seja, ele se exerce t e n d o c o m o sujeito u m indivíduo,
ou um grupo de indivíduos, e tendo c o m o objeto o aparelho estatal, i n s t r u m e n t o
cujo controle é indispensável, c o m o vimos, para a segunda operação, a edição! e
aplicação de n o r m a s jurídicas. Essa é outra observação essencial ao b o m entendi-
m e n t o do tema.
A sociedade exerce u m autocontrole sobre as manifestações das diversas ati-
vidades políticas, socioculturais e socioeconômicas, e outras, no exercício d o con-
trole social, c o m o foi dito n o texto original. Desde os c o m a n d o s constitucionais,
os de maior influência e ação, sobre c o m p o r t a m e n t o s individuais e coletivos, é
exercido esse poder de controle que se destina a c o n f o r m a r as ações e os c o m p o r -
tamentos dos m e m b r o s da sociedade. Isso se refere não apenas aos indivíduos
h u m a n o s , mas t a m b é m às pessoas jurídicas que eles f o r m a m e organizam e que
passam a ter funções e atividades, que, elas t a m b é m , devem se ajustar aos modelos
preestabelecidos. Já dissemos alhures que as n o r m a s jurídicas, além de serem as de
maior importância no processo de controle social, constituem i n s t r u m e n t o em
expansão no m u n d o m o d e r n o , sempre seguindo o c a m i n h o das transformações
que o c o m p o r t a m e n t o individual e coletivo sofre.
Essa função do Direito no a j u s t a m e n t o das ações individuais e coletivas aos
parâmetros existentes t a m b é m se exerce em relação às perspectivas de desenvolvi-
m e n t o futuro, perspectivas essas acolhidas ou em vias de acolhimento nas estrutu-
ras e na dinâmica do grupo. Esse fato é significativo para c o m p r e e n d e r m o s as
transformações que, entre a época da primeira edição deste livro é aquela em que
trabalhamos para esta edição revista e a u m e n t a d a , se o p e r a m em escala global.
Vivemos agora dentro da sociedade globalizada, em conseqüência da e n o r m e
expansão dos meios de comunicação em massa e da tecnologia da informação,
com o advento de todos os tipos de m á q u i n a s que a tecnologia criou e desenvolve
p e r m a n e n t e m e n t e , f e n ô m e n o já salientado na referência aos trabalhos agora:su- ^
perados de McLuhan. As distâncias são t r a n s f o r m a d a s na prática, pelos c o m p u t a -
dores, em quase nada. O t e m p o t a m b é m parece ter encurtado. O que foi ditoinão
Realidade Social 63

é de surpreender, pois a ciência d e m o n s t r a hoje que t e m p o e espaço são a m e s m a


coisa neste universo misterioso e m que vivemos.
A tecnologia, portanto, c o m o f e n ô m e n o social conseqüente da expansão do
conhecimento científico, está presente n o advento da c h a m a d a globalização. Uma
conseqüência disso é a m a i o r ação de controle social. Os i n s t r u m e n t o s para esse
controle estão presentes p o r toda parte e p o d e m ser percebidos n i t i d a m e n t e em
qualquer visita q u e façamos aos computadores. A tendência para u m a u n i f o r m i -
zação dos fatos socioculturais foi acrescida em muito nesse q u a d r o de desenvolvi-
mento. Os ideais e valores que n o r t e i a m o ser h u m a n o vão sendo cada vez mais
evidenciados e estimulados em velocidade eletrônica. Não se alterou, entretanto, o
fato salientado neste capítulo, de q u e o Direito é o tipo de n o r m a t i v i d a d e que m a i s
se expande c o m o agente dó controle social.
É interessante salientai, além disso, o caráter dicotômico, das f u n ç õ e s conser-
vadora e t r a n s f o r m a d o r a . Ao m e s m o t e m p o que as n o r m a s jurídicas f u n c i o n a m
no sentido de proteger, preservar e fortalecer a ordem social que elas regulam,
essas n o r m a s t a m b é m a t u a m nas correções de r u m o que pareçam necessárias ou
na adaptação do universo n o r m a t i v o a novas realidades sociais e culturais e de
natureza econômica. Essa dicotomia que se reflete em conflito aparente é f e n ô m e -
no que está sendo mais percebido no q u a d r o da sociedade globalizada. Os estudos
a respeito ainda são poucos, mas p o d e r ã o provocar i m p o r t a n t e s progressos n o
conhecimento da dinâmica social.
и
U N I V E R S I D A D E

W UNBGRANRIO
W Mm do «to dc REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
liltp://publicacoes.unigranrio.edü.br/index.php/rdugr
ISSN: 1934-7920

N O T A S S O B R E O ESTADO E O DIREITO NO PENSAMENTO DE MARX

Prof.Dr.Mne Cunha
fb/IFCH/UFPA Cleber Andrade

RESUMO
A reflexão d e Marx tem p r o f u n d a s implicações á c o m p r e e n s ã o do f e n ô m e n o
jurídico. Contudo, nota-se a p o u c a a t e n ç ã o q u e lhe tem d i s p e n s a d o os
e s t u d i o s o s do direito. Este texto p r e t e n d e contribuir à s u p r e s s ã o d e s s a lacuna
t o m a n d o c o m o objeto a s c o n s i d e r a ç õ e s d e Marx a respeito do E s t a d o e do
1
Direito. Nesse sentido, inicia com u m a breve e x p o s i ç ã o do itinerário intelectual
d e Marx; 2) e m seguida, a p r e s e n t a e c o m e n t a s u a s principais e l a b o r a ç õ e s a
respeito d o E s t a d o e do Direito; 3) conclui c o m um breve balanço da q u e s t ã o
política hoje, evidenciando alguns d o s p o n t o s a o s quais s u a contribuição ainda
é relevante.

P a l a v r a s - c h a v e : Marx; Direito; Estado; Ideologia; Autonomia Relativa.

ABSTRACT

Marx's reflection h a s d e e p implications to t h e understanding of the legal


p h e n o m e n o n . However, it's noticed the little attention that law scholars h a v e
b e s t o w e d to it. This text intends to contribute to the suppression of this gap,
taking a s object Marx's considerations regarding s t a t e and law. To fulfill this
goal it : 1) initiates with a brief exposition of Marx's intellectual itinerary 2)
a f t e r w a r d s , it p r e s e n t s and c o m m e n t s his main elaborations regarding s t a t e and
Law; 3 ) it c o n c l u d e s with a brief b a l a n c e of n o w a d a y s politics subject,
evidencing s o m e of the points to which his contributions a r e still relevant.
Key-words: Marx, Law; State; Ideology; Relative Autonomy.

' Professor de Ciência Política e Sociologia do Curso de Direito da UNIGRANRIO.

Volume 2 - Número 2-2009


: U N I V E R S I D A D E

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ISSN: 1984-7920 ,. , V

INTRODUÇÃO
Nos m e i o s a c a d ê m i c o s , Marx é muito mais c o n h e c i d o por suas
teorias a c e r c a da s o c i e d a d e e d a e c o n o m i a do q u e propriamente por sua
reflexão s o b r e o i f e n ô m e n o jurídico. Isso é razoável já q u e e l e n ã o legou
n e n h u m a teorização sistemátici^ s o b r e o E s t a d o e o Direito, embora sua
f o r m a ç ã o t e n h a sido n e s t a á r e a . O q u e h á s ã o c o n s i d e r a ç õ e s conjunturais,
dispersas pela sua obra nem sempre acessível a um público menos
especializado.

A d e s p e i t o disso, p o d e - s e e n c o n t r a r uma reflexão s o b r e o Estado e


o Direito e m Marx. Isso r e q u e r um e s f o r ç o s e m e l h a n t e a o d e um quebra-
c a b e ç a s , pois implica, primeiro, juntar a s p e ç a s , depois, c o m p a r á - l a s , analisá-
las e por fim, correlacioná-las.

A verdadeira dificuldade consiste em q u e Marx tentou montar


diversos q u e b r a - c a b e ç a s a o m e s m o t e m p o . Muitas p e ç a s s ã o repetidas e
polivalentes, e por isso s e e n c a i x a m e m vários, outras, s ã o muito especificas e
exclusivas. E s t e texto n ã o p r e t e n d e remontá-lo e m s u a totalidade, m a s tão
somente esclarecer ao leitor algumas de suas peças fundamentais á
a p r e c i a ç ã o d o s f e n ô m e n o s político e jurídico.

É importante notar q u e , e m b o r a muitos p o n t o s d e s u a obra figurem


incompletos, n e m por i s s o d e v e m s e r a n a l i s a d o s d e forma e s t a n q u e . Marx era
um p e n s a d o r sistemático, rigoroso, diligente e muito z e l o s o c o m a coerência de
s u a s idéias. Assim, a a d e q u a d a c o m p r e e n s ã o d e s u a reflexão, independente
do objeto, r e q u e r q u e a a n á l i s e d e s t e ou d a q u e l e a s p e c t o p o u c o ou menos
desenvolvido s e j a p e r s c r u t a d o no âmbito geral d a s u a reflexão.

A i m e n s i d ã o e a c o m p l e x i d a d e d e sua obra s ã o evidentes, não


havendo, portanto, espaço para detalhá-la. Mas ignorar a l g u n s de seus
aspectos constitutivos seria suscitar o risco (inaceitável) de tomar a
to
c o m p r e e n s ã o do leitor incompleta e e q u i v o c a d a . Por isso, r e c o r r e r e m o s a eles
na medida e m q u e auxiliarem á c o m p r e e n s ã o d o s objetivos p r o p o s t o s .

2
U N I V E R S I D A D E

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ÍSSN: 1984-7920

N e s s e sentido, o texto a seguir s e estrutura da s e g u i n t e maneira: 1)


inicia-se com u m a breve e x p o s i ç ã o do itinerário intelectual d e Marx c h a m a n d o
a a t e n ç ã o p a r a o s motivos q u e o levaram à c o n s t r u ç ã o d e ú m a nova e radical
teoria social; 2) e m s e g u i d a , percorre-se a l g u n s d e s e u s textos b u s c a n d o s u a s
principais e l a b o r a ç õ e s a respeito do E s t a d o e do Direito; 3) por fim, conclui-se
c o m um b r e v e b a l a n ç o da q u e s t ã o política hoje, t o r n a n d o evidente a l g u n s d o s
p o n t o s a o s q u a i s a contribuição do n o s s o autor ainda é relevante.

I - A Formação do Pensamento de Karl Marx: uma breve


introdução
É d e s e s u s p e i t a r q u e a a p r e c i a ç ã o do f e n ô m e n o jurídico tenha sido
familiar a Marx d e s d e muito c e d o . S e u pai, o s e n h o r Hirschel Marx, era um
importante a d v o g a d o na província r e n a n a d e Trier, o n d e vivera. D e s d e c e d o
e n c o r a j a r a e e n c a m i n h a r a o jovem Karl a seguir s e u s p a s s o s , e n e s s e sentido,
seu primeiro movimento fora o d e proporcionar-lhe a devida educação
1
matriculando-lhe no Gymnasium local .
Note o leitor, q u e o t i p o . d e p e d a g o g i a p r e p o n d e r a n t e à é p o c a é.
m a r c a d a m e n t e humanista, isto é, visava proporcionar o e n c o n t r o com múltiplas
d i m e n s õ e s d o conhecimento, indo da m a t e m á t i c a à literatura, p a s s a n d o pela
retórica, pelo g r e g o e pelo latim. Importa p e r c e b e r t a m b é m a influência
exercida p e l a s idéias ilumin|stas n o s círculos intelectuais - o q u e n ã o deixava
i m u n e n e m m e s m o a e d u c a ç ã o básica. Não é incorreto s u p o r o g r a n d e
i n t e r e s s e d o s e n h o r Hirschel por tais idéias liberais, u m a vez q u e c o m o
a d v o g a d o , judeu e b u r g u ê s d e v e ter sofrido u m a j s é r i e d e preconceitos e

d i s c r i m i n a ç õ e s no âmbito d e um e s t a i j o m o n á r q u i c o c o m o a Prússia d e s u a
i
época - traço evidente é a mudança de seu nome para Heinrich,
definitivamente m a i s g e r m a n i z a d o .

1
Muitas são as biografias disponíveis sobre Marx no vernácula. Dentre estas, sem dúvida, a
melhor é a de Davld McLellan: muitíssimo bem escrita, com dados confiáveis, de excelente
leitura, e sem os excessos hagiográficos. Assim, todas as referências à vida de Marx podem
ser também nela encontradas.
A t -iU N I V E « S I O A D S * '
UNIGRANRIO
Vá Mm «fo do REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://piiblicacoes.unigranrio.edu.br/indcx.nhp/rduEr
ISSN: 1984-7920

Marx seguira naturalmente a trilha do pai, matriculando-se no curso


d e Direito d a Universidade d e Bonn, e m 1835. O intenso e atribulado estilo de
vida por ele a d o t a d o - m a r c a d o por farras, b e b e d e i r a s e a t é m e s m o um duelo -
, impelirá s e u pái a transferi-lo, no a n o seguinte, para Universidade de Berlim-
tida c o m o mais a u s t e r a e, portanto, m e n o s p r o p e n s a a o clima libertino
vivenciado e m Bonn.
De fato, a m u d a n ç a surtiu efeito. P e r c e b e - s e a partir dal, uma maior
motivação pelos t e m a s universitários. C a b e lembrar q u e pairava sobre Bedim
um clima d e intenso d e b a t e intelectual. Hegel - o maior filósofo alemão de
todos o s t e m p o s - n ã o s ó lá lecionara, c o m o t a m b é m e r a o pensador mais
debatido e m toda a A l e m a n h a . Além disso, havia o historicismo de Savigny
rivalizando com o liberalismo de Eduard G a n s - a m b o s p r o f e s s o r e s de Marx.
Diversas a g r e m i a ç õ e s intelectuais, c o n h e c i d a s como Doktorklubs, abrigavam
os jovens universitários, ávidos pela discussão política e filosófica,
proporcionando-lhes o ambiente n e c e s s á r i o para t r a n s c e n d e r o s limites postos
pela rigidez da universidade. Marx mergulhara d e c a b e ç a .

Contudo, para tristeza d e s e u pai, o jovem Karl s e distanciava cada


v e z mais do Direito na medida e m q u e a v a n ç a v a no e s t u d o d a história e da
filosofia. O contato com a apropriação liberal d e Hegel por parte de dois jovens
p r o f e s s o r e s q u e participavam do círculo por ele f r e q ü e n t a d o - o s irmãos Otto e
Bruno B a u e r - fora decisivo para q u e Marx - a p ó s concluir o c u r s o de Direito -
a s p i r a s s e a uma carreira universitária no c a m p o da filosofia. C o m e s s e intuito,
doutorou-se em filosofia, na Universidade d e lena, em abril d e 1841.

O recrudescimento do c o n s e r v a d o r i s m o n ã o lhe permitira o ingresso


na a c a d e m i a . Mas o seu interesse p e s s o a l pelos a s s u n t o s m u n d a n o s ampliara-
i se sensivelmente, levando-lhe a militar na atividade jornalística. Sua
empreitada foi diversas v e z e s frustrada p e l a s p e r s e g u i ç õ e s d a s autoridades
p r u s s i a n a s e pelas inimizades d e c o r r e n t e s do clima tenso e intenso do debate
intelectual e político. Mas s e u p o u c o t e m p o n e s s a carreira fora fundamental

4
^«UNIVERSIDADE
%/UNIGRANRIO
Vi oitoIto30I0 lüb R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I G R A N R I O
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/indcx.Dhp/rdugr
ISSN: 1984-7920

para o q u e s e seguira. N e s s e ínterim, ele tomara contato com a obra d e


F e u e r b a c h , e travara a m i z a d e com Engels.
Ludwig Feuerbach contrapusera ao idealismo hegeliano uma
abordagem sensualista da p r o d u ç ã o do conhecimento, Com isso, abrira
caminho a o tratamento distinto d o s p r o b l e m a s políticos e sociais vividos por
Marx, e p a r a o s quais o tratamento idealista n ã o era c a p a z d e r e s p o n d e r .

O contato com E n g e l s - filho d e um g r a n d e industrial alemão


s e d i a d o e m M a n c h e s t e r (Inglaterra) - o colocara a par tanto d o s p r o b l e m a s
industriais g e r a d o s pelo capitalismo, c o m o da Economia Política Inglesa, c u j o s
objetos e objetivos e r a m m a r c a d a m e n t e materiais. A p e r s e g u i ç ã o política
conduzira-lhe a Paris, o n d e c o n h e c e r a outros intelectuais d e e s q u e r d a exilados
como ele, e t a m b é m a s idéias políticas d e cunho libertário c o m o a s d e Blanqui
e Rousseau.
Assim, a s idéias políticas f r a n c e s a s , a economia política inglesa, e o
idealismo a l e m ã o formaram o s ingredientes d e u m a nova c o n c e p ç ã o da
s o c i e d a d e cuja f e r m e n t a ç ã o transcorrera s o b o intenso e atribulado clima
político d a Europa d a é p o c a . O resultado d e s s e a m á l g a m a p a t e n t e o u - s e na
e l a b o r a ç ã o d e u m a nova e radical teoria geral da s o c i e d a d e e da história,
d e n o m i n a d a , pelo próprio Mao< " C o n c e p ç ã o Materialista da História".

C a b e c o n s i d e r a r que, e m b o r a f o s s e um p e n s a d o r sistemático, n e m
por isso Marx era hermético. Permitia-se a todo o m o m e n t o reelaborar e revisar
s e u s c o n c e i t o s d e m o d o a ajustá-los a o s objetos q u e analisava e a o corpo m ã i s
amplo d e idéias q u e formavam s e u s i s t e m a . E s s a característica d e work in
progress, restará evidente, e s p e r a m o s , com a a p r e c i a ç ã o d a s sucessivas
r e e l a b o r a ç õ e s p e l a s q u a i s p a s s a r a m o E s t a d o e o Direito no âmbito d e s u a
reflexão.

s
A - U N I V E R S I D A D E

fpUNIGRANRIO
Vi a lia, <to «to do Mto REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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ISSN: 1984-7920

II - Estado e Direito no Pensamento de Karí Marx


S o b r e a reflexão marxiana a respeito d o E s t a d o e do Direito é
possível d e s t a c a r quatro m o m e n t o s significativos. A c a d a um d e l e s podemos
a n c o r a r um d e t e r m i n a d o conjunto d e obras. Na primeira, a é p o c a da juventude,
t e m o s , a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e A Questão Judaica. No
s e g u n d o m o m e n t o , A Ideologia Alemã e o c é l e b r e panfleto o Manifesto do
Partido Comunista. No terceiro, o s desenvolvimentos d e O Dezoito Brumário de
Luís Bonaparte e As Lutas de Classe em França. No q u a r t o e último, a Critica
do Programa de Gotha.
Nesse primeiro m o m e n t o , s u a obra n ã o revela propriamente a
c o n c e p ç ã o materialista d a história. O q u e s e p e r c e b e é um certo choque •
cultural m a r c a d o pelo encontro com a economia política, n ã o ultrapassando em
muito o s limites d e u m a crítica filosófica do capitalismo. M a s n e m por isso deixa
d e produzir resultados i m p o r t a n t e s 2 .
A primeira f o r m u l a ç ã o d e Marx sobre o s t e m a s e m tela fora dirigida a
um conjunto d e q u e s t õ e s c u j o s itens principais s ã o : o idealismo d e Hegel e sua
c o n c e p ç ã o d e Estado, por um lado; e a o Estado m o d e r n o e a alienação que lhe
é inerente. S e u ponto d e partida é a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
q u e c o m o o próprio titulo evidencia, trata-se d e u m a tentativa d e resenha critica
do p e n s a m e n t o d e Hegel a c e r c a do E s t a d o e do Direito, tal c o m o plasmado em
Princípios da Filosofia do Direito. Efetivamente, Maoc delimita seu ataque ao
trecho situado entre o s § § 2 6 1 3 313, q u e c o m p r e e n d e a reflexão hegeliana

2
A primeira evidência disso é patenteada na linguagem. Observa-se também um certo tom
raivoso, juvenil, característico de quem ataca um tigre com um punhal. Grande parte da
terminologia empregada por Marx apresenta o colorido peculiar do idealismo alemão. Em
realidade, ele avança, sobre a economia política a partir do ponto de vista de um hegeliano
decepcionado com o idealismo, mas contente com os recursos críticos que a dialética pode lhe
proporcionar, A segunda prova é natureza epistemológica. Sua critica, embora perspicaz 8
inteligente, está limitada por uma abordagem externa, isto é, não demonstra a Incoerência
constitutiva, interna, das categorias da economia clássica, apenas objeta-lhe com uma critica
filosófica. Há, portanto, uma inadequação,, uma vez que os estatutos epistemológicos da
economia são profundamente distintos dos da filosofia, principalmente do idealismo alemão da
matiz hegeliano.

6
As • U N I V E R S I D A D E
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VT MM to V I , * R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I G R A N R I O
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s o b r e o poder do príncipe, o poder do goveitio, e o poder legislativo,


3
respectivamente .

Levando s e u idealismo a o extremo, Hegel d e d u z o s conceitos d e


família e dê s o c i e d a d e civil do d e E s t a d o . Ao invés d e concebê-lo c o m o efeito
do desenvolvimento d a família e d a s o c i e d a d e civil a o longo da história, e l e
inverte e s s a relação a o postular q u e o E s t a d o é a forma racional por s u p e r a r a
a n t í t e s e entre família e s o c i e d a d e civil. C o m o é típico da reflexão hegeliana, a
história n a d a m a i s é do q u e um p r o c e s s o c o m p o s t o d e diversos m o m e n t o s n o s
q u a i s a g e o Espirito impulsionando a Idéia para s u a m a n i f e s t a ç ã o mais
racional, a c a b a d a e final.
Assim, a leitura s e inverte t o m a n d o a história um predicado irracional
m a s n e c e s s á r i o do ponto de partida racional e p u r a m e n t e especulativo. D e s s a
forma, "o m o m e n t o filosófico n ã o é a lógica d a coisa, m a s a coisa da lógica. A
lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve á
d e m o n s t r a ç ã o da lógica" (Marx, 2 0 0 5 ; p. 39).
Marx a c u s a - o d e misticismo filosófico por ter invertido a s r e l a ç õ e s
e n t r e sujeito-objeto e sujeito-predicado (Idem, p.33, 36, 38). A lógica hegeliana
n a v e r d a d e e x p r e s s a o á p i c e d a irracionalidade e da falta d e c o m p r e e n s ã o d o s
e v e n t o s d o s m u n d o real. Contra s u a s a s s e r ç õ e s , s u s t e n t a s e r e m a família e a
s o c i e d a d e civil o s p r e s s u p o s t o s do Estado. E a o fazê-lo, prefigura o núcleo da
c o n c e p ç ã o materialista d a história (Idem, p. 30).
Uma s e g u n d a d i m e n s ã o d e s s a Crítica a t a c a o modelo hegelianò d é
E s t a d o e a s o l u ç ã o a d o t a d a á contradição e n t r e Estado e S o c i e d a d e Civil.
Hegel n ã o partilha com Locke e Montpsquieu a p e r c e p ç ã o d a n e c e s s i d a d e da
s e p a r a ç ã o entre o s p o d e r e s e x e c u t i v i , legislativo e judiciário. Ao contrário,
s u b s u m e t o d o s á rubrica do p o d e r g o v e r n a m e n t a l .

3
Mais especificamente, a Filosofia do Direito, de Hegel é estruturada, além da Introdução e do
Plano da obra (§§1 -33) em trás grandes partes: O Direito Abstrato (§§ 34-104), A Moralidade
Abstrata (§§105-141), e a Moralidade Subjetiva (§§ 142-360), onde as partes aludidas figuram
compondo a terceira seção denominada O Estado. Cf. HEGEL, G. W. Filosofia do Direito. Trad.
Orlando Vitorino. Guimarães Cia. Editores, Lisboa, 1976, 315pp.
A . U N I V E R S I D A D E
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Um príncipe, c u j a s q u a l i d a d e s s ã o d e t e r m i n a d a s exclusivamente
p e l a s consangüinidade, hereditariedade e primogenitura, d e v e estar â testa
| d e s t e p o d e r (Idem, p. 53). Colada a ele, propõe uma c l a s s e d e funcionários, ou
seja, u m a burocracia, c o m p o s t a por r e p r e s e n t a n t e s d o s muitos estamentos ou
corporações profissionais da sociedade civil. A representação desses
s e g m e n t o s na órbita do p o d e r governamental c o n s i s t e / s e g u n d o Hegel, numa
m e d i a ç ã o n e c e s s á r i a á s u p r e s s ã o d a s contradições entre o interesse particular
e o universal.
P e n s a d o d e s s a forma, o e s t a m e n t o instrumentaliza a representação
popular funcionando c o m o uma e s p é c i e d e catalizador, de filtro d a s aspirações
coletivas. (Idem, p. 66). A disciplina e a hierarquia do s a b e r a g e m de forma a
neutralizar seus eventuais desvios em relação ao interesse universal.
Ademais, alçada a este patamar, a burocracia cumpre a função de
d e s e m p e n h a r e r e p r e s e n t a r a soberania popular. Junto dela existiria uma
s o b e r a n i a centrada no príncipe.
No âmbito do p o d e r legislativo, Hegel c o n c e d e a o estamento dos
proprietários d e terra o privilégio d a f u n ç ã o mediadora entre o príncipe e os
demais segmentados sociais. Tal prerrogativa decorre do fato ds os
proprietários de terra e n c e r r a r e m em si e l e m e n t o s d e s o b e r a n i a - típicos do
príncipe - ou seja, "uma vontade q u e s e f u n d e e m si", cujo atributo distintivo é
a independência e m r e l a ç ã o "as circunstâncias exteriores", o que permite
"proceder s e m impedimentos em prol do Estado" (Idem, p. 110).
Dentre outros equívocos, Marx constata q u e Hegel trata a soiSbrania
c o m o um mixtum compositum, ou seja, postula dois polos s o b e r a n o s , trata-os
como equivalentes, e o s s u b m e t e a um m e s m o território e p o d e r . Aprendemos
com Bodin, q u e a s c o n d i ç õ e s da soberania s ã o a indivisibilidade, a unidade, e
a s u p r e m a c i a quanto a o exercício do poder e d a jurisdição; u m a ' v e z que falta
um d e s s e s e l e m e n t o s , n ã o h á s o b e r a n i a . "Certamente: s e a soberania existe
no m o n a r c a , é u m a e s t u p i d e z falar e m u m a s o b e r a n i a o p o s t a existente no
Mx N I V E B S I O A D E
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povo, pois é próprio do conceito d e s o b e r a n i a q u e ela n ã o p o s s a ter uma:


existência dupla, muito m e n o s oposta" (/c/em, 48).

Deriva disso, s e g u n d o Marx, o a b s u r d o d e a simples herança;


° . g e n é t i c a s e r o f u n d a m e n t o d e tal atribuição especial, e assim e s s a "mais
e l e v a d a " tarefa política é produzida por, e reproduz, a g o r a no Estado, a s leis^
patriarcais. Enfim, o privilégio c o n c e d i d o a o s g r a n d e s proprietários d e terra t e m i
o s m e s m o s (inadmissíveis) princípios q u e tornam a l g u é m um rei: n a s c i m e n t o e
patrimônio - s a n g u e e terra (Idem, 110-5).
Marx nota ainda outro problema c o n c e r n e n t e a tal privilégio: e m b o r a
e s t e s e revista do colorido da tradição e da e m p o l a d a linguagem do idealismo
h e g e l i a n o , ele n a d a mais é do q u e um direito c o n c e d i d o à propriedade privada
n u m contexto e m tal q u e direito figura ainda c o m o e x c e ç ã o . As v a n t a g e n s do
E s t a d o m o d e r n o - do tipo f r a n c ê s pós-revolucionário - consistem, por um lado,
e m n ã o atribuir privilégios â propriedade fundiária, por outro, tomar o direito d e
$ p r o p r i e d a d e n ã o mais a e x c e ç ã o , e sim a regra (Ibidem).
S o b r e a s o l u ç ã o hegeliana à antinomia entre E s t a d o e S o c i e d a d e
Civil, p r o j e t a d a como monarquia constitucional corporativista, Marx a t e s t a q u e ,
longe d e p e r s e g u i r e m o i n t e r e s s e universal, a s c o r p o r a ç õ e s r e p r e s e n t a m , no
E s t a d o , s e u s i n t e r e s s e s particulares. Assim, o E s t a d o é d e fato a r e p r o d u ç ã o
do conflito d e i n t e r e s s e s privados d e s e t o r e s e s p e c í f i c o s da sociedade,
r e p r e s e n t a d o e a p r e s e n t a d o c o m o i n t e r e s s e universal - nesse aspecto o
"Estado hegeliano" é s e m e l h a n t e a o E s t a d o b u r g u ê s moderno. Ele t a m b é m
chama a t e n ç ã o para outra contradição: a s a ç õ e s do e s t a d o - enquanto
p r e t e n s a m e n t e orientadas pelo i n t e r e s s e universal - constituem-se a o m e s m o
t e m p o c o m o a ç õ e s contra a s o c i e d a d e civil (Idem, p.68).
N e s s e m e s m o âmbito, Marx problematiza a distinção entre poder
constituinte e poder legislativo. E n t e n d e q u e o p o d e r legislativo, u m a vez
limitado p o r num p o d e r legislativo anterior, cujo produto é a constituição, e s t á
em c o n t r a d i ç ã o com s u a própria n a t u r e z a - q u e é a d e legislar. Ele p a r e c e
sugerir q u e , com a possibilidade de reforma o p o d e r legislativo m u d a d e fato a

9
4 . U N I V E R S I Q A Q E

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constituição, porém de modo tópico, pontual. E . ao fazê-lo, entra em


contradição com o s objetivos centrais da constituição, q u e , em princípio impede
tal p o d e r . Assim, a forma limita o q u e d e fato a prática faz. Portanto, o que há
efetivamente é outra contradição (Idem, 73-4).

Ele p e r c e b e t a m b é m j q u e Hegel c h e g a a o a b s u r d o por supor que os


i n t e r e s s e s do E s t a d o d e v a m s e r t r a t a d o s por c a d a um d e s e u s componentes
c o m o s e u s próprios i n t e r e s s e s , isto é, c o m o i n t e r e s s e particular. Óbvio que
a s s i m , o E s t a d o e n q u a n t o e x p r e s s ã o do universal s e m a n i f e s t a e m contradição
consigo, com s u a própria n a t u r e z a , r e v e l a n d o - s e c o m o u m a farsa, pois o
universal p a r a existir n e c e s s i t a , e n t ã o , s e r particularizado - e o que toma as
a s s e v e r a ç õ e s h e g e l i a n a s ainda m a i s c o n t r o v e r s a s - por um simples ato de
v o n t a d e {Idem, p, 77).

O â m a g o da critica d e Marx, e q u e deriva d o e x p o s t o acima, ancora-


se na proposta d e revelar q u e a universalidade, a liberdade, a
' i
representatividade, e a c a p a c i d a d e d e solucionar conflitos pretendidas pelo
E s t a d o s ã o m e r a m e n t e formais, e e n q u a n t o tais, i m p o s s í v e i s . Mais que isso,
e s t a formalidade e s t á e m contradição com s e u c o n t e ú d o , isto é, com suas

a ç õ e s práticas e efetivas.

A contradição f u n d a m e n t a l q u e Marx visa d e s v e l a r , e que vale para


o E s t a d o m o d e r n o é lapidarmente e x p r e s s a n a citação s e g u i n t e :
"Estado e Governo são sempre colocados do mesmo lado, como
idênticos; do outro lado, ô colocado o povo, dissolvido nas esferas
particulares e nos indivíduos. Os estamentos situam-se como órgão
mediador entre os dois. Os estamentos são o meio em que 'o sentido
e a disposição do Estado e do governo' devem se encontrar e se unir
com 'o sentido e a disposição dos círculos particulares e dos
singulares'. A identidade desses dois 'sentidos e disposições
opostas', identidade na qual deveria propriamente residir o Estado,
recebe uma representação simbólica nos estamentos. A transação
entre Estado e sociedade civil aparece como uma esfera particular,
Os estamentos são a síntese de Estado e Sociedade civil. Não é
demonstrado, porém, por onde os estamentos devem começar a unir,
neles mesmos, duas disposições contraditórias. Os estamentos são a
contradição entre Estado e sociedade civil, posta no Estado. Ao
mesmo tempo, eles são a pretensío da solução dessa contradição'
(Idem, p. 85).

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l
N I V E R S I O A D E r'"

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n Mr, to s,lo dc aulo R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I G R A N R I O
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ISSN: 1984-7920

Enfim, M a r x n o t o u q u e H e g e l c a p t o u tal c o n t r a d i ç ã o 4 , m a s d e u - l h e

u m a s o l u ç ã o a p e n a s a p a r e n t e . Viu t a m b é m q u e o E s t a d o m o d e r n o e v i d e n c i a

c l a r a m e n t e e s t a c o n t r a d i ç ã o (Idem, p . 9 4 ) . E a i n d a p e r c e b e u q u e s u a principal

característica é a alienação.
"A separação da sociedade civil e do; Estado político aparece
necessariamente como uma separação éntre o cidadão político, o
cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua própria realidade
empírica, efetiva, pois, como idealista do Estado, ela é um ser
totalmente diferente de sua realidade, um ser distinto, diverso,
oposto. A sociedade civil realiza, aqui, dentro de si mesma, a relação
entre Estado e sociedade civil, que por outro lado, existe como
burocracia. (...) O cidadão deve abandonar seu estamento, a
sociedade civil, o estamento privado, para alcançar significado e
eficácia políticos, pois precisamente este estamento se encontra
entre o indivíduo e o Estado político" (Idem, p. 94).

E m A Questão Judaica e s s e s t e m a s têm uma c o n d u ç ã o melhor.

N o t e - s e q u e e s s e sim, trata-se d e um texto p r e p a r a d o p a r a publicação. E m b o r a

dirigido a u m a p o l ê m i c a c i r c u n s t a n c i a l s u a s r e p e r c u s s õ e s s ã o p r o f u n d a s . P a r a

c o m p r e e n d ê - l o melhor, c a b e m alguns esclarecimentos históricos5.

B r u n o B a u e r , já e x - a m i g o d e Marx, p r o d u z u m t e x t o a t r i b u i n d o t o d o s

o s p r o b l e m a s s o c i a i s e p o l í t i c o s à religião. S e g u n d o e l e , o p r o b l e m a d o p o d e r

político n a Alemanha é que ele s e c o n d u z d e f o r m a religiosa d i a n t e da

s o c i e d a d e : por c a u s a disso, c o n c e d e t r a t a m e n t o diferenciado a o s indivíduos.

A s s i m , B a u e r p r o p õ e c o m o s o l u ç ã o a a b o l i ç ã o d a religião n a A l e m a n h a . C o m

44
"Não se deve condenar Hegel porque ele descreveu a essência do Estado moderno como
ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do Estado. Que o racional é o real, isso
se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que, por toda parte, é o
contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é. Em vez de demonstrar que o
'assunto universal' existe para si, subjetivamente, e que, com isso, existe realmente como tal, e
que ele também tem a forma universal, Hegel demoiistra apenas que a ausência de forma é a
sua subjetividade, e que uma forma sem conteúdp tem que ser disforme. A forma que o
assunto universal assume em um Estado que não séja o Estado do assunto universal pode ser
apenas,' uma nSo-forma, uma forma que engana a si mesma, que contradiz a si mesma, uma
forma aparente, que se mostrará como uma tal aparência" (Idem, p. 82).
' Ê importante notar que a Alemanha da década da 1840, não é ainda propriamente um
Estado-naclonal. Além de Inúmeras barreiras alfandegárias, o que dificultava em muito a
consumação das relações econômicas, persistia, no âmbito da política, a figura do príncipe
cristão, e a existência de privilégios feudais, com as características vistas acima e criticadas
por Marx. Um dos problemas dal decorrentes residia na discriminação do tratamento dado a
judeus e cristãos, em detrimento dos primeiros, que já sofriam perseguição e a opressão em
função da opção religiosa.

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A j j •• U N I V E R S I D A D E
%/ÜNIGRANRIO
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ares de radicalídade, sustenta que nela deveria haver uma revolução


s e m e l h a n t e a ocorrida e m França, cujo produto é e m a n c i p a ç ã o política, que
traz consigo a instituição d e u m a cidadania laica, com a igualdade e a liberdade
c o m o s e u s pilares.
Mas ainda'persistiria o problema. Com a instituição da liberdade e da
igualdade, a partir da abolição do e s t a d o religioso, sobraria a liberdade política
de | praticar toda e q u a l q u e r religião s e m qualquer restrição. Logo, s e a
e m a n c i p a ç ã o s e restringisse à d i m e n s ã o política, o problema da religião seria
agravado, surtindo efeito inverso a o d e s e j a d o por Bauer. Percebido isso, e!e
a r g u m e n t a q u e , a o e m a n c i p a r - s e d e s u a indumentária religiosa, o Estado
deveria proceder à abolição da religião. De q u e forma? P o r decreto, ou seja,
deveria inscrever constitucionalmente s u a extinção.
B a u e r i n g e n u a m e n t e acreditava q u e o poder d e dissipar a religião do
c o r a ç ã o d o s h o m e n s s e s u c e d e r i a ao efeito d e uma "canetada". Esta conduziria
a h u m a n i d a d e à harmonia já q u e a diferença religiosa - q u e é a c a u s a d e os
h o m e n s n ã o s e p e r c e b e r e m c o m o iguais - estaria eliminada.
Para Marx, B a u e r coloca q u e s t õ e s superficiais, s e move por um
m é t o d o d e investigação superficial, e c o n s e q ü e n t e m e n t e , c h e g a a resultados
superficiais (Marx, QJ, p. 15). S e u erro consiste em partir do ponto que deveria
s e r explicado: a diferença religiosa n ã o é a e s s ê n c i a da d e s i g u a l d a d e política e
social, m a s sim um efeito d e s t a : s ã o a s diferenças históricas - determinadas
pelos tipos diferentes q u e o s h o m e n s contraem em s o c i e d a d e - a s c a u s a s
d e t e r m i n a n t e s d a s diferenças religiosas {Idem, p. 17; 27).
E s t a s diferenças resultam da diversidade d e formas d e integração
entre o s h o m e n s e a propriedade privada. Portanto, a verdadeira e m a n c i p a ç ã o
h u m a n a , a verdadeira liberdade, exige, para s e r a l c a n ç a d a , a eliminação da
propriedade privada. Por isso, a o s e indagar s o b r e a e m a n c i p a ç ã o h u m a n a
d e v e - s e procurar pelos o b s t á c u l o s sociais e políticos colocados diante dela.
Dito d e outra forma, é n e c e s s á r i o s e interrogar sobre o impacto da propriedade
privada n a s r e l a ç õ e s sociais e políticas.

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U N I V E R S I O A D 6

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No piano político - o qual Marx concentra a t e n ç ã o n e s t e texto - o


E s t a d o s e e n c a r r e g a tanto d a estruturação da propriedade privada, c o m o do.
s e u d e s e n v o l v i m e n t o desigual entre o s s e t o r e s da s o c i e d a d e . Originalmente, o
E s t a d o n a s c e para resolver o s conflitos sociais q u e s u r g e m d a s d i f e r e n ç a s d e
religião, cultura, status, p o d e r aquisitivo, influência, etc. De certa forma, o s
r e s o l v e a o determinar q u e tais d i f e r e n ç a s n ã o têm m a i s o poder d e imputar
privilégios sociais e políticos. Frente ao Estado todos são iguais,
i n d e p e n d e n t e m e n t e d e raça, cor, credo e sexo; t o d o s s ã o cidadãos, tendo,
portanto, a s s e g u r a d o s , a livre m a n i f e s t a ç ã o d e tais diferenças e m p é d e
igualdade. Contudo, a o m e s m o tempo em q u e s u p r i m e t o d a s e s s a s d i f e r e n ç a s
no nível político, a s m a n t é m no âmbito da s o c i e d a d e civil por c o n s e r v a r c o m o
f u n d a m e n t o a propriedade privada, a qual consiste na principal fonte d o s
conflitos sociais.

É f u n d a m e n t a l f a z e r agora uma breve d i g r e s s ã o pela c o m p r e e n s ã o


marxiana do cristianismo posto q u e sua a p r e c i a ç ã o critica do Estado m o d e r n o
encerra os m e s m o s postulados.

Em s u a reflexão, a religião é um sintoma d a alienação à qual e s t ã o


o s h o m e n s s u s c e t í v e i s n o s contextos e m q u e s e encontram distanciados da
liberdade. Os homens projetam entidades transcendentais, reputam-lhes
p o d e r e s mágicos, atribui-lhes um sistema d e p u n i ç õ e s e r e c o m p e n s a s , e
submetem-se a eles por s u g e s t ã o ou por i n c a p a c i d a d e própria de se
p e r c e b e r e m c o m o criadores. E s s a situação d e inversão d e p a p é i s entre criador
e criatura e n g e n d r a , por s u a vez, a cisão d a vida h u m a n a e m d u a s d i m e n s õ e s :
a espiritual e a material.

T o d o s o s h o m e n s participam d e u m a c o m u n i d a d e imaginada, u m a
espécie d e família, q u e tem á testa um D e u s onipotente, o n i p r e s e n t e e
onisciente, m a s justo e g e n e r o s o q u e trata a todos c o m o s e u s filhos e,
portanto, iguais. S u b m e t e - o s a um sistema jurídico uniforme de tipo patriarcal,
no qual d e s c o n s i d e r a , e m f u n ç ã o da justiça q u e lhe é inerente, a s i n ú m e r a s
d i f e r e n ç a s reais q u e d e fato o s distinguem entre si. D e u s s ó a g e n e s s e plano,

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v,i além da sala dc aula
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
MDr.Jàm Cunha
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pois no material, deixa o s h o m e n s à m e r c ê do livre-arbitrio, incumbindo-lhes,


portanto, d e obter o s próprios m e i o s d a r e p r o d u ç ã o d a vida a qual D e u s d o a r a -
lhes c o m o G r a ç a . A r e d e n ç ã o n ã o e s t á n e s s e m u n d o . Embora o s e j a s u a
criação, q u a s e n ã o interfere na forma c o m o o s h o m e n s s e organizam para nele
viver. '
A crítica da religião g a n h a sentido para Marx p o r q u e ela é
"autoconsciência e o sentimento d e si do h o m e m , q u e n ã o s e encontrou a i n d a
ou voltou a s e perder" (2005b, 145). O efeito p e r v e r s o d a religião a n c o r a - s e n o
fato dela retirar d o h o m e m s e u papel d e sujeito, invertendo a r e l a ç ã o entre
criatura e criador. Não é D e u s q u e cria o h o m e m , m a s sim e s t e q u e cria D e u s e
a religião. E q u a n d o s e b a s e i a no postulado de q u e s ó na outra vida p o d e s e r
e f e t i v a m e n t e livre, permite-se capitular n e s s a à apatia, á inação, à o p r e s s ã o ,
n u m a palavra, renuncia a o s e u papel d e sujeito, e por i s s o transfere a outros a s
r é d e a s d e s u a própria existência.
No âmbito da modernidade, ganha relevo a expectativa da
emancipação política, porque os homens percebem a possibilidade da
felicidade terrena. N e s s a conjuntura, a s f u n ç õ e s jurídicas d e D e u s , no e n t a n t o ,
s ã o t r a n s f e r i d a s p a r a :o E s t a d o . Originalmente, ele n a s c e para resolver o s
conflitos sociais q u e sijrgem d a s d i f e r e n ç a s d e religião, cultura, status, p o d e r
aquisitivo, influência, etc. De certa forma, o s r e s o l v e a o determinar q u e tais
d i f e r e n ç a s n ã o t ê m maijs a c a p a c i d a d e d e imputar privilégios sociais e políticos
(QJ, 18). F r e n t e a o E s t a d o t o d o s s ã o iguais, i n d e p e n d e n t e m e n t e d e r a ç a , cor,
c r e d o e s e x o ; t o d o s s ã o cidadãos, tendo, portanto, a s s e g u r a d o s , a livre
m a n i f e s t a ç ã o d e tais d i f e r e n ç a s e m p é d e i g u a l d a d e (Idem, 19).
Entretanto, a o m e s m o t e m p o e m q u e s u p r i m e t o d a s e s s a s d i f e r e n ç a s
no nível político,- a s m a n t é m no âmbito d a s o c i e d a d e civil por t e r c o m o
f u n d a m e n t o a p r o p r i e d a d e privada, a principal fonte d o s conflitos sociais [Idem,
19-20). S e n d o a s s i m , o E s t a d o (assim c o m o a religião) n a d a m a i s é do q u e um
sintoma d a f o r m a alienada c o m o o s h o m e n s travam s u a s r e l a ç õ e s e n t r e si e

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c o m o trabalho no m o m e n t o e m q u e a p r o p r i e d a d e privada é p r e p o n d e r a n t e
(Idem, 26-7). Em s í n t e s e :
"Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o
homem leva, não só no plano da consciência, mas também no da
realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a
vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser coletivo,
e a vida na sociedade civil, em que eis atua como particular;
considera outros homens como meios, degrada a si próprio como
meio e converte-se em Joguete de poderes estranhos. O estado
político conduz-se então om relação â sociedade civil de modo tão
espiritualista com o céu em relação à terra, Acha-se com relação a
ela, em contraposição idêntica e a supera do mesmo modo que a
religião, que a limitação do mundo profano, Isto é, reconhecendo-a
também de novo. restaurando-a e deixando-se necessariamente
dominar por ela. O homem, em sua realidade Imediata, na sociedade
civil, é um ser profano. (...) Pelo contrário, no Estado (...) ele é o
membro imaginário de uma soberania imaginária, acha-se despojado
de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal"
(Idem, 20).

E s s a duplicidade constitutiva do E s t a d o m o d e r n o , como n ã o poderia


deixar de ser, reverbera d e c i s i v a m e n t e s o b r e a configuração do Direito, q u e s e
a p r e s e n t a d e s d o b r a d o em Direitos H u m a n o s e Direitos do Cidadão. A crítica d e
Marx a v a n ç a r a no sentido d e d e m o n s t r a r q u e , com relação a o s direitos civis o
q u e e s t á e m jogo é f a z e r valer um conjunto d e m e c a n i s m o s p u r a m e n t e formais
e s t r u t u r a d o s e m t o m o d o s princípios d a igualdade e da isonomia, cujo objetivo
é reforçar n o s m e m b r o s da s o c i e d a d e o r e c o n h e c i m e n t o e o s e n s o de
p e r t e n c i m e n t o a u m a m e s m a o r d e m , universal; e d e forma a b s o l u t a m e n t e
indistinta.
Não m e n o s formais, o s direitos h u m a n o s c o n c e r n e m à vida levada
na e s f e r a d a s o c i e d a d e civil. S e u s f u n d a m e n t o s s ã o a liberdade e a s e g u r a n ç a .
N ã o haveria n a d a d e problemático'plisso, s e n ã o f o s s e a propriedade privada o
pilar e m torno do qual liberdade e s è g u r a n ç a s ã o e s t a b e l e c i d o s .

E n t e n d e r a Marx q u e "a aplicação prática do direito h u m a n o da


liberdade é o direito h u m a n o da propriedade privada" (Idem, 31). Ou s e j a , o
direito de dispor dela c o m o quiser, i n d e p e n d e n t e d o s outros h o m e n s e da
s o c i e d a d e . Em s u m a , "é o direito do i n t e r e s s e p e s s o a l " (Idem, 32). N e s s e
s e n t i d o , "a liberdade individual e e s t a aplicação sua constituem o f u n d a m e n t o

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da s o c i e d a d e b u r g u e s a . S o c i e d a d e q u e f a z com q u e todo homem encontre


noutros h o m e n s n ã o a realização d e s u a liberdade, mas^ pelo contrário, a
limitação desta" (Ibidem).

Assim d e m o n s t r a d a , constatara Marx que, longe d e superar sua


antinomia e m r e l a ç ã o à S o c i e d a d e civil, o Estado, na v e r d a d e , surge dela. A
cisão d o s direitos serve, por um lado (na forma d o s direitos humanos),
e x a t a m e n t e para m a n t e r a distância d o s h o m e n s entre si, e por outro, para
reuni-los (na forma d e direitos políticos) de forma fictícia, a b s t r a t a e ideológica.
A s e g u r a n ç a é c o m p o n e n t e crucial d e s s e sistema, na m e d i d a e m que projeta o
conceito d e polícia, "segundo o qual toda a s o c i e d a d e só existe para garantira
c a d a um de s e u s m e m b r o s a c o n s e r v a ç ã o d e s u a p e s s o a , d e s e u s direitos e de
s u a propriedade (...). O conceito d e s e g u r a n ç a n ã o faz com q u e a sociedade se
s o b r e p o n h a a s e u egoísmo. A s e g u r a n ç a , pelo contrário, é a preservação
deste" (Idem, 33). A p a s s a g e m seguinte demonstra a persistência da
contradição estrutural entre E s t a d o e S o c i e d a d e civil, e o modo como, por
c a u s a dela, o s direitos h u m a n o s e o s direitos civis s e c h o c a m freqüentemente.
"A proclamação da segurança pública como um direito humano
coloca publicamente na ordem do dia a vlolaçSo do direito de
correspondência. Garante-se a liberdade indefinida de Imprensa [para
os nossos dias, poderfamos pensar na inviolabilidade das
comunicações pessoais] (...) como conseqüência do direito humano,
da liberdade individual, mas Isto nâo impede que se suprima
totalmente a liberdade de Imprensa, pois a liberdade de imprensa nâo
deve comprometer a liberdade política (...) isto significa que o direito
humano a liberdade deixa de ser um direito ao colidir com a vida
política, ao passo que, teoricamente, a vida política é tSo somente a
garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual,
devendo, portanto, abandonar-se a estes direitos com a mesma
rapidez com que se contradizem sua finalidade" (Idem, 34).

Em A Ideologia Alemã, escrita conjuntamente c o m Engels, Marx


elaborara pela primeira vez a c o m p r e e n s ã o materialista da história, a qual
aprimorara pelo resto d a vida. No âmbito d e s s a formulação a reflexão sobre o
E s t a d o e o Direito sofrerá profunda m u d a n ç a .

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Analisando a história, n o s s o s a u t o r e s notaram q u e para c a d a um d e


s e u s m o m e n t o s h á u m a forma especifica d e propriedade e um direito q u e lhe
c o r r e s p o n d e , a m b o s r e g u l a d o s por um p o d e r politico e submetidos, d e forma
articulada, a um m o d o d e p r o d u ç ã o típico.
No c a s o do Direito moderno, a m b o s c o n s t a t a m q u e lhe é peculiar a
p r o p r i e d a d e privada m o d e r n a , isto é , a propriedade c o m o capital, d e s p o j a d a
d o s vínculos comunitários, caracterizada pela mobilidade e pela a b s t r a ç ã o . Em
sintonia com dois p o s t u l a d o s b á s i c o s do m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista - a livre
troca e a irrestrita circulação d e m e r c a d o r i a s - o Direito m o d e r n o é constituído
f u n d a m e n t a l m e n t e pela lei a b s t r a t a e i m p e s s o a l e pela vontade do proprietário.
S u a formulação típica a d o s jus utendi et abutendi6.
"O direito privado exprime as relações de propriedade existentes
como resultado de uma vontade geral. O próprio jus utendi et
abutendi exprime, por um lado, o fato de a propriedade de tornar
completamente independente da comunidade e, por outro, a ilusão de
que essa propriedade privada repousa sobre a simples vontade
privada, sobre a livre disposição das coisas" (Marx & Engels, 1980, p.
97, itálicos nossos).

É importante notar q u e p o s t a d e s s a maneira, ilusão, n ã o p r e t e n d e


d e n o t a r propriamente falsificação, m a s enfatizar q u e , no modo d e p r o d u ç ã o
capitalista (e m e s m o em qualquer outro), a r e l a ç ã o jurídica n ã o p o d e d e p e n d e r
e x c l u s i v a m e n t e d e uma v o n t a d e - o q u e seria um absurdo, pois um objeto d e
direito s ó a l c a n ç a sentido n e c e s s a r i a m e n t e numa relação entre agentes
distintos, p o r t a n d o i n t e r e s s e s específicos, balizados por f o r m a s de t r a n s a ç ã o e
limites igualmente característicos. A p r o p r i e d a d e s ó s e constitui e n q u a n t o tal no
contexto d e s s a complexa trama na qual a vontade é condição n e c e s s á r i a , m a s
n ã o suficiente.
N a s palavras d o s próprios a u t o r e s , "no fim d a s contas, a coisa, n a d a
é considerada unicamente nas s u a s r e l a ç õ e s com a vontade, e só se
transforma n u m a coisa, n u m a p r o p r i e d a d e real (numa relação, naquilo a q u e o s
filósofos c h a m a m u m a idéia), a t r a v é s d o comércio e i n d e p e n d e n t e do direito"

° Direito de usar e abusar.


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(Idem, p. 97). N e s s e sentido, o direito n ã o é m a i s q u e um revestimento d a


p r o p r i e d a d e comercial jchamado a interferir nela para regulamentá-la e dirimir
s e u s conflitos..

Outra dimensão a ser enfatizada é que Marx e Engels


estabeleceram, tacitamente, uma .distinção entre propriedade real e
.propriedade formal. A q u e s t ã o d a v o n l ^ d e e do direito d e v e m s e r elucidados à
luz d e s s a diferenciação. Propriedade formal diz respeito aquela p o r ç ã o d e
terra, ou imóvel, ou m e s m o capital-dinheiro q u e f a z jus a a l g u é m o título d e
proprietário. P o r é m , s e n ã o c o r r e s p o n d e r - l h e um efetivo potencial produtivo (ou
s e restar evidente o prejuízo d e s u a m a n u t e n ç ã o ou aquisição), d e n a d a
adiantará a v o n t a d e d e aliená-la, pois n ã o encontrará i n t e r e s s a d o s e m adquiri-
la. O conceito d e propriedade real d á conta do inverso, ou seja, u m a d a d a
propriedade c o m características que despertam efetivamente o interesse
alheio, c o l o c a n d o , portanto, a real possibilidade da uma r e l a ç ã o 7.

E s s a reflexão vai muito além do c a m p o jurídico. Na v e r d a d e , é


projetada u m a p e r c e p ç ã o d e q u e o d e s e j o e o s o b j e t o s do d e s e j o não
constituem algo e m si, m a s s ã o s e m p r e circunscritos por u m conjunto b e m
m a i s amplo d e r e l a ç õ e s sociais. O m e s m o p o d e - s e dizer d o s m o d o s de
s a t i s f a ç ã o do d e s e j o . O contrato, a f o r m a capitalista por excelência de
t r a n s a ç ã o d o d e s e j o , n ã o é u m a s i m p l e s relação entre p a r t e s com finalidades
o p o s t a s e um i n t e r e s s e c o m u m (a t r a n s a ç ã o propriamente dita), m a s sim u m a
r e l a ç ã o q u e , muito longe d e s e r fortuita, e s t á a n t e s d e tudo, b e m m a r c a d a por
8
limites e c o n ô m i c o s . A interpretação lockeana do corpo c o m o propriedade
a t e s t a b e m e s s a reflexão; e o direito p e n a l a ratifica.

7
"Suponhamos, por exemplo, que um terreno deixa de ser rentável devido à concorrência - o.
seu proprietário conservará sem dúvida o titulo jurídico da propriedade, assim, como o seu jus
utendl et ahutendi [direito de usar e abusar], Mas nada poderá fazer com ele nem nada
possuirá de fato se não dispuser de capital suficiente para cultivar o seu terreno'. Cf. A
Ideologia
8
Alemá, p.97.
"Na prática, o abuttl [direito de abusar] tem limitações econômicas bem determinadas para o
proprietário privado se este não quiser que sua propriedade, e com ela seu jus abutendi, passe
para outras mãos", Ibidem.
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0 impacto d o s conceitos articulados e m t o m o do m o d o d e p r o d u ç ã o


na t e o r i z a ç ã o do E s t a d o é profundo. A partir daqui, Marx o c o m p r e e n d e c o m o
instrumento d e controle e h e g e m o n i a , "sendo, portanto, o E s t a d o a forma
a t r a v é s d a qual o s indivíduos d e u m a c l a s s e dominante f a z e m valer o s s e u s
i n t e r e s s e s c o m u n s e na qual s e r e s u m e toda a s o c i e d a d e civil d e u m a é p o c a "
(Idem, p. 95).

S o b a regência d o m o d o d e ^ p r o d u ç ã o capitalista a p r o p r i e d a d e
t r a n s p a r e c e d e s c o l a d a da c o m u n i d a d e ; e o direito predomina s o b a forma d e
lei, d e c a l c a d o d o s c o s t u m e s . Assim, o E s t a d o s ó p o d e figurar c o m o u m a
a b s t r a ç ã o diante d a s o c i e d a d e civil 9 .

E s s a s o c i e d a d e civil n ã o é a simples s o m a d e indivíduos c o m


i n t e r e s s e s isolados. A propriedade é fator p r e p o n d e r a n t e na e s t r u t u r a ç ã o da
teia d a s r e l a ç õ e s sociais. Acerca disso, n o t a m - s e indivíduos proprietários d o s
m e i o s d e p r o d u ç ã o e c i o s o s p a r a mobilizá-los com intuito d o lucro. Em paralelo,
há indivíduos d e s p r o v i d o s d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o e d e q u a l q u e r outro recurso,
e q u e s ã o impelidos a v e n d e r e m - s e a o s proprietários d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o
c o m o força d e trabalho, em troca d e um salário. Assim, é delineada u m a
r e l a ç ã o e n t r e a burguesia e o proletariado e m q u e a primeira explora e s e
apropria c o m p l e t a m e n t e do trabalho d a s e g u n d a . A exploração é o que
e s t a b e l e c e , d e s d e a g ê n e s e , um a b i s m o entre o s i n t e r e s s e s d e s s a s d u a s
c l a s s e s , configurando um conflito indelével, constitutivo d a própria s o c i e d a d e
moderna.

P a r a q u e a burguesia consolide s e u domínio econômico precisa


apropriar-se do aparelho político e imprimir-lhe suas feições, valores e
i n t e r e s s e s c o m o s e f o s s e m o s d e to^la a s o c i e d a d e , ou s e j a , "vendê-los" c o m o

9
"Dado que a propriedade se emancipou da comunidade, O Estado adquiriu uma existência
particular junto da sociedade civil e fora dela; mas esse Estado não é mais do que a forma de
organização que os burgueses constituem pela necessidade de garantirem mutuamente a sua
propriedade e os interesses tanto no exterior como no exterior!'. Idem, p. 95.
N I V E R S I O A O E - "i o

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o interesse natural, universal, e m prol do bem comum . Essa burguesia
penetra no E s t a d o paulatinamente, "através d o s impostos, inteiramente caldo
n a s s u a s m ã o s pelo s i s t e m a da dívida pública e cuja existência depende
exclusivamente, pelo jogo d a alta e d a baixa dos valores do Estado na Bolsa [ej
do crédito comercial q u e lhe c o n c e d e m o s proprietários privados" (Ibidem).

0 problema d e s s a c o n c e p ç ã o d e Marx & E n g e l s é que ela esboça


u m a c o m p r e e n s ã o do E s t a d o c o m o algo do qual simplesmente pode-se
apropriar, ou seja, um Estado-ínstrumento, monopolizado pela classe
dominante. E s s e a r g u m e n t o - d i g a - s e d e p a s s a g e m , b a s t a n t e mecanicista -
trai a própria c o n c e p ç ã o da luta d e c l a s s e s c o m o vetor estrutural das relações
sociais, u m a vez q u e deixa d e c o m p r e e n d e r o E s t a d o c o m o uma relação na
qual a luta d e c l a s s e s e s t á integralmente p r e s e n t e .

Entendimento s e m e l h a n t e é reproduzido de forma ainda mais radical


no Manifesto do Partido Comunista. O mais célebre panfleto político da história
retira da convulsão social d e s u a é p o c a todo o s e u impulso.

O e n t u s i a s m o decorrente d a conjuntura é n o t a d o ao longo de todo o


texto, e m cuja narrativa verifica-se c l a r a m e n t e um tom épico. A destruição do
sistema feudal e d e s u a estrutura simbólica dá lugar a um novo quadro onde a
p e r c e p ç ã o fria d a s r e l a ç õ e s sociais t e n d e a emergir. A c l a s s e dominante, nessa
nova situação, tem intrinsecamente um papel revolucionário; contudo, o tempo
d e s e u desenvolvimento e consolidação é o m e s m o da criação de suas forças
degenerativas.

A a u s ê n c i a da mística feudal permitirá à c l a s s e dominada percebera


exploração á qual é submetida; tomando consciência desta e,
concomitantemente, d e sua força e n q u a n t o sujeito político, empreenderá a
destruição do aviltante m o d e l o societário b u r g u ê s e r g u e n d o em seu lugar uma
s o c i e d a d e v e r d a d e i r a m e n t e livre.

"A burguesia, por ser já uma classe e não uma simples ordem, é constrangida a organizar-se
á escala nacional e já não exclusivamente num plano local, e a dar uma forma universal a seus
Interesses comuns". Ibidem.

20
U N I V E R S I D A D E
%UNIGRANRIO
VÍ Mmtosobto.1to REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://piiblicacocs.unigranrio.cdu.br/indox.php/rdugr
ISSN: 1984-7920

A maneira como é construído, o • argumento ancora o


d e s e n v o l v i m e n t o da consciência política m o d e r n a à c o m p r e e n s ã o da dinâmica
m o d e r n a da economia. A q u e s t ã o d a s m e d i a ç õ e s inerentes à configuração do
imaginário político e o problema a d j a c e n t e d a representação não estão
inteiramente a u s e n t e s , m a s sim s ã o c o m p r e e n d i d o s d e m o d o insuficiente,
parcial.

Os autores atribuem ao partido o- papel propulsor no


desenvolvimento da consciência d e c l a s s e , m a s d e s c o n s i d e r a m o potencial
contra-ofensivo do capital, sobretudo, o aspecto conformador inerente à
instituição do sistema político m o d e r n o cristalizado no parlamento b u r g u ê s .
T a m b é m ignoram o impacto negativo q u e p o d e ter o sentimento nacional na
c o n s t r u ç ã o d e u m a a ç ã o política internacional. Em s u m a , desconsideram a
autonomia que tem a dimensão política na sociedade moderna, aliás,
autonomia constitutiva da própria modernidade. Talvez s e j a isso resultado da
c o m p r e e n s ã o da c l a s s e social num nível p r e d o m i n a n t e m e n t e empírico e, d e s t a
forma, u m a temporalidade indistinta regeria a s r e l a ç õ e s entre e c o n o m i a e
11
política - Althusser taxou e s s e m o m e n t o d e resíduo hegeliano, s u p e r a d o
p o s t e r i o r m e n t e na Contribuição à Crítica da Economia Política e principalmente
e m O Capital.

O b s e r v e m o s a l g u m a s p a s s a g e n s luminosas d e O Manifesto:
0
"A história de toda sociedade até hoje é a história da luta de
classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo,
mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos,
sempre estiveram em constante oposição uns aos outros.
(...)
A moderna sociedade burguesa, surgida da ruína da sociedade
feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas
estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas
formas de luta em lugar das antigas.
(...)
Na mesma proporção em que se desenvolve a burguesia, ou
seja, o capital, desenvolve-se também o proletariado.
(...)
porém, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não
apenas se multiplica (...) Os interesses, as condições de existência no
Interior do proletariado igualam-se cada vez mais à medida que a

" Conforme, Ler o Capital, vol II, pp. 36-50.


ae u n i v e r s i d a d e
f^UNIGRANRIO
w
Prof. Dr. Jaime Cunha Mm
"""dc R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I G R A N R I O
FCS/IFCH/UFPA http://publicacocs.unigranrio.cdu.br/indcx.phD/rdugr .
• • • ISSN: 1984-7920

maquinaria elimina todas as distinções de trabalho"(Marx: 1988;


respectivamente, pp. 66, 67, 72,74).

C o m o bern registrou Hall, h á aqui u m a t r a n s p o s i ç ã o imediata d a luta


d e c l a s s e s no nível e c o n ô m i c o p a r a o político - a luta d e c l a s s e s a m a d u r e c e
q u a s e q u e e s p o n t a n e a m e n t e e m f u n ç ã o d e u m a s ó contradição: a existente
' entre b a s e e superestrutura. Desta ocorre ú m a "simplificação progressiva d o s
a n t a g o n i s m o s d e c l a s s e , articulada, a o longo d e um p r o c e s s o histórico linear, a
b a s i c a m e n t e dois c a m p o s hostis - b u r g u e s e s e proletários e n f r e n t a n d o - s e
m u t u a m e n t e num p r o c e s s o d e d i s s o l u ç ã o d e c a r á t e r violento e notório" (Hall,
'1977;24-5). O r e s t o do a r g u m e n t o é m a i s q u e c o n h e c i d o - é s ó organizar a s
m a s s a s a t r a v é s do partido e e m p r e e n d e r a revolução.

O próprio movimento da história tratou d e levar n o s s o s a u t o r e s à


percepção d a s lacunas existentes em s e u s argumentos: o mesmo quadro de
p e r t u r b a ç ã o social q u e e n g e n d r o u o magnífico panfleto f e z surgir, m e d i a n t e a
o b s e r v a ç ã o do f r a c a s s o sofrido pelo o p e r a r i a d o n o s l e v a n t e s d e 1848, u m a
análise fria e m a i s a d e q u a d a da política m o d e r n a .

No c a s o de Marx, um primeiro p a s s o n e s t a direção é vislumbrado


e m As Lutas de Classe em França. A reflexão g a n h a , posteriormente,
refinamento e m O Dezoito Brumàrío de Luís Bonaparte e em A Comuna de
Paris; P a u l a t i n a m e n t e , o problema da r e p r e s e n t a ç ã o impele-o a s u c e s s i v a s
r e e l a b o r a ç õ e s (e porque n ã o dizer, frustrações).

No primeiro d e s t e s trabalhos, t e n d o c o m o palco o desenvolvimento


do capitalismo na França, Marx toma o devido c u i d a d o d e a s s i n a l a r a
autonomia d e c a d a um d o s níveis, R e s s a l t a o papel d a luta intra-classes; a
n e c e s s i d a d e d e coalizões e a l i a n ç a s p a r a a c o n s e c u ç ã o da h e g e m o n i a ; e a
importância da ideologia no d e l i n e a m e n t o da a ç ã o política, entre o u t r a s c o i s a s .

R e s u m i n d o o a r g u m e n t o : a p e s a r d e já constituída e r e p r e s e n t a d a
e m s u a s múltiplas f r a ç õ e s , a burguesia n ã o d e t é m e f e t i v a m e n t e a h e g e m o n i a
política - fato q u e decorre tanto d a s lutas i n t e r n a s c o m o do confronto c o m
r e s í d u o s do p a s s a d o feudal. S o m e n t e a c o n s o l i d a ç ã o d a b u r g u e s i a industrial

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i
A . :u N t V E R S I O A D S
CyUNIGRANRIO
w №> do Mtotffw/3 REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
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/S5iV> 1984-7920

poderia proporcionar o d e s e n v o l v i m e n t o do proletariado f r a n c ê s . No entanto, a


h e g e m o n i a p e r t e n c e u inicialmente a burguesia financeira q u e s e conduziu na
política d e m o d o aristocrático: e n q u a n t o p e r d u r a s s e tais resquícios f e u d a i s
seria impossível a e x p r e s s ã o clara d o s i n t e r e s s e s d a s c l a s s e s .

A lição q u e decorre daqui p ã r e c é s e r a seguinte: f o r m a s distintas d e


e x p l o r a ç ã o auxiliam a dissimulação, por parte de Uma c l a s s e , d e s e u s reais
interesses; o estado de confusão daí decorrente favorece sempre um
d e t e r m i n a d o setor do capital q u e reivindica p a r a si a c a p a c i d a d e d e r e p r e s e n t a r
o s d e m a i s . O parlamento b u r g u ê s contribui d e c i s i v a m e n t e para tal imposição
a t r a v é s da idéia d e r e p r e s e n t a ç ã o .
Nos contextos em que se detecta um vazio de hegemonia,

d e c o r r e n t e d o conflito entre a s diferentes f r a ç õ e s do capital, p o d e a c o n t e c e r d e


a m a n u t e n ç ã o do capitalismo abolir s u a própria forma política - o parlamento
democrático -, instituindo em seu lugar outros tipos de regime mas,
a s s e g u r a n d o a e x p l o r a ç ã o do capital pelo trabalho. O i n t e r e s s e nacional p a r e c e
s e r a palavra d e o r d e m em tal s i t u a ç ã o .
"A luta contra o capital, desenvolvida sob a forma moderna, em sua
plenitude que é a luta do assalariado industrial contra a burguesia
industrial, foi na França um fato parcial que, após as Jornadas de
fevereiro, podia alimentar o conteúdo nacional da revolução menos
ainda desde que a luta contra as formas de exploração inferiores ao
capital (...), contra a bancarrota, estava naufragada na revolta geral
contra a aristocracia financeira em geral.
(...)
No espirito dos proletários que confundiam sempre a aristocracia
financeira com a burguesia, na imaginação dos bravos republicanos
que negavam mesmo a existência das classes (...) a dominação
burguesa se ac(iava abolida com a Instauração da República. (...)
Negação inofenteiva dos antagonistas de classes, equilíbrio
sentimental entrp interesses de classe contraditórios, exaltação
entusiasta acima' da luta de classes, a fraternidade foi realmente a
divisa da revolução de fevereiro" (Marx: 1986; 22-3).

Embora n ã o e x p r e s s o d e m o d o sistemático, e n c o n t r a - s e aqui já


f o r m u l a d o o problema da i n t e r p e l a ç ã o ideológica. E s t e a v a n ç o a d v é m da
p e r c e p ç ã o d e temporalidades distintas, p o r é m coexistentes, c o n c e r n e n t e s á

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CyUNIGRANRIO
vi Mm do sou do mio REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
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ISSN: 1984-7920

e x p l o r a ç ã o d o t r a b a l h o e a s c o n s e q ü ê n c i a s d i s s o n a ' c o m p r e e n s ã o clara dos

interesses de classe e sua representação.

E m o Dezoito Brumárío de Luis Bonaparte, e s s a s f o r m u l a ç õ e s são

reelaboradas. Basicamente, o impacto da ideologia e a possibilidade, ou

m e l h o r , a n e c e s s i d a d e d e p e r í o d o s d e a p a r e n t e i n d e p e n d ê n c i a d o E s t a d o para

a manutenção do modo de produção capitalista no sentido de uma

reestruturação d a s elites f o r m a m o núcleo do texto.

Q u a n t o a o primeiro a s p e c t o , a passagem s e g u i n t e , q u e relata a

distância e a proximidade entre Legitimistas e Orleanistas, é contundente:


"O partido da ordem parece estar perpetuamente emftènhado em
uma 'reação', dirigida contra a imprensa, o direito de associações e
coisas semelhantes (...) A montanha, por sua vez, está igualmente
ocupada em aparar esses golpes, defendendo assim os 'eternos
direitos dos homens' (...) Quando, porém, se examina mais de perto a
situação e os partidos, desaparece essa aparência superficial que
dissimula a luta de classes e a fisionomia peculiar da época. Os
legitimistas e orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes
facções do partido da ordem. O qua ligava estas facções aos seus
pretendentes e as opunha uma à outra seria apenas as flores-de-líz e
a bandeira tricolorf...) as diferentes matizes do monarqulsmo? 0 que
separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de
princípios, eram suas condições materiais de existência, duas
_ diferentes espécies de propriedade, era o velho contraste enlre a
cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e latifúndio. Que havia
ao mesmo tempo, velhas recordações, inimizades pessoais, temores
e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias, e antipatias,
convicções, questões de fé e de principio que as mantinham ligadas a
uma ou a outra casa real - quem os nega?. Sobre diferentes formas
de propriedade, sobre as condições sociais, maneiras de pensar e
concepções de vida distintas e peculiarmente constituídas* A classe
inteira os cria a os forma sobre a base de suas condições materiais e
de suas relações sociais correspondentes. O indivíduo Isolado que as
adquire através da tradição e da educação, poderá Imaginar que
constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta. (...)
embora cada facção se esforçasse por convencer-se o convencer os
outros de que o que. as separava era sua lealdade ás duas casas
reais, os fatos provaram mais tarde que o que impedia a união de
ambas era mais a divergência de seus interesses. E assim como na
vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz sobra si
mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve se
distinguir mais ainda as frases e fantasias dos partidos de sua
formação real e de seus Interesses reais, o conceito que fazem de si
do que são na realidade.
Os monarquistas coligados intrigavam-se uns contra os outros (...).
Mas diante do público, em suas grandes representações de Estado,
como grande partido parlamentar, iludem suas respectivas casas
reais com simples mesuras e adiam in infinitum arestauraçãoda

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J f U N I V E R S I D A D E ..•>.•;
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ISSN: 1984-7920

monarquia. Exercem suas verdadeiras atividades como partido da


ordem, ou seja, sob um rótulo social, e não sob um rótulo político;
como representantes do regime burguês, e não como paladinos de
princesas errantes; como classe burguesa contra outras classes e
não como monarquistas contra republicanas" (Marx: 1988b; 26-7,
itálicos nossos).

Está a p r e e n d i d a aqui, e m s e u s e l e m e n t o s essenciais, a coreografia

d e q u e o m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista n e c e s s i t a p a r a sobreviver: coreografia a

q u a l e m si m e s m a j á constitui a a u t o n o m i a relativa d a política e m f a c e d a

e c o n o m i a 1 2 . Mais à f r e n t e o a r g u m e n t o é c o m p l e m e n t a d o c o m u m a r e f l e x ã o e m

t o m o daquilo q u e s e convencionou c h a m a r d e bonapartismo.


"Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tomar-se
completamente independente autônomo. A máquina do Estado
consolidou a tal ponto sua posição em face da sociedade civil que lhe
basta terá frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro (...).
E, não obstante, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparfe
representa uma classe, e justamente a classe mais numerosa da
sociedade francesa, os pequenos camponeses.
A paródia do império era necessária para libertar a massa da nação
francesa do peso da tradição e para desenvolver em forma pura a
oposição entre o poder do Estado e a sociedade, com a ruína
progressiva da pequena propriedade desmorona-se a estrutura do
estado erigida sobre ela. A centralização do Estado, de que necessita
a sociedade moderna, só surge das ruínas da máquina
governamental burocrático-militar forjada em oposição ao fsudalismo.
Bonaparte gostaria de aparecer como o benfeitor patriarcal de todas
as classes. Mas não pode dar a uma classe sem tirar de outra.
Como autoridade executiva que se tomou um poder independente,
Bonaparte considera sua missão salvaguardar a 'ordem burguesa'.
Essa tarefa contraditória do homem explica as contradições do seu
1
governo, esse confuso tatear que ora procura conquistar, ora
humilhar primeiro uma cJasse, depois outra, e alinha todas elas
uniformemente contra ele, essa insegurança prática constitui um
contraste altamente cômico com o estilo imperioso e categórico da
seus decretos governamentais, estilo fielmente copiado do tio" (Idem,
respectivamente, pp .74, 79, 81, 80).

C o n t e x t o s e m q u e a s c l a s s e s s e m o s t r a m i n c a p a z e s d e d e t e r p o r si

m e s m a s a s r é d e a s da política.implicam um distanciamento aparentemente

a i n d a m a i o r d o político p e r a n t e o s o c i a l . N o m o m e n t o a n a l i s a d o p o r Marx, tal

situação expressava o domínio d e u m a classe sobre a s demais - classe esta

12
Note-se a freqüência com que Marx recorre à metáfora do teatro quando lida com a dinâmica
política.
25
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Ci/UNJGRANRIO
vi Mn,,fowtoteauto REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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que, incapaz d e conduzir-se e f i c a z m e n t e no teatro, b u s c a v a e realizava s u a


d o m i n a ç ã o a t r a v é s d e um terceiro elemento, c o m a a p a r ê n c i a d e g u a r d a d a
n a ç ã o e d a p r o s p e r i d a d e geral.

O último texto aqui a n a l i s a d o contempla a reflexão d e Marx à é p o c a


d e s u a velhice. T r a t a - s e d a Crítica doPrograma de Gotha, q u e consiste n u m a
avaliação profunda do d o c u m e n t o produzido e m c o n j u n t o pelo Partido Operário
Social-Democrata Alemão e pela Associação Geral dos Trabalhadores
Alemães com vistas à unificação, q u e d e fato s e concretizou na c i d a d e d e
Gotha e m maio d e 1875.

Marx r e b a t e a m a i o r parte d e s e u s pontos, m o s t r a n d o , por um lado,


s u a s inconsistências teóricas, e por outro, s e u c a r á t e r reformistá (decorrente d e
s u a inspiração lassaliana). É um d o s p o u c o s m o m e n t o s d e s u a obra e m q u e
p õ e a p e n s a r s o b r e o s a s p e c t o s tangíveis d a s o c i e d a d e socialista, e n e s s a
linha amplia s u a critica a o s f e n ô m e n o s político e jurídico.
13
S e u ponto d e | p a r t i d a é o § 3 ° d o referido d o c u m e n t o . Seu primeiro
alvo é a imprecisão dai e x p r e s s ã o "produto do trabalho", q u e pode significar
tanto o s objetos criados pelo trabalho, c o m o o s e u valor. S e t o m a d o na
primeira a c e p ç ã o , p r o j e t a - s e um p r o g r a m a sociaiista-revolucionário que, c o m o
tal, exige a demolição c o m p l e t a do m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista, b a s e a d o na
pura g e r a ç ã o d e valor ( c u j a s c o n s e q ü ê n c i a s s ã o a e x p l o r a ç ã o d a força d e
trabalho c o m o mercadoria, o trabalho a b s t r a t o e a troca d e equivalentes). S e ,
contudo, interpretado d a outra forma, o q u e resulta é uma proposta de
conteúdo reformista q u e n ã o suplanta o valor, m a s a p e n a s generaliza a
distribuição do produto social. Ainda q u e d e s a p a r e c e s s e a burguesia e n q u a n t o
c l a s s e persistiria u m a o r d e m b u r g u e s a - u m a e s p é c i e d e capitalismo d e e s t a d o

1
"A libertação do trabalho exige a transformação dos produtos [instrumentos, na tradução aqui
usada] do trabalho em patrimônio comum da sociedade e a regulamentação do trabalho
coletivo pela comunidade, com afetação de uma parte do produto às necessidades gerais e
distribuição equitatlva do restante". Programa de Gotha (Maio de 1875). In, MARX, ENGELS,
LENINE: Crítica do Programa de Gotha; Critica do Programa de Erfurt, Marxismo e
Revlslonlsmo. Porto, Portucalanse editora, 1971, p.91, itálicos nossos, Tradução modificada
de acordo com o sentido da Interpretação de Marx.
;U N I V E R 5 I 0 A D E ....,-.«•

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ISSN: №4-7920

s e m c l a s s e s , no qual o E s t a d o presidiria a e x p l o r a ç ã o do trabalho c o n s e r v a n d o


a s s i m o m e s m o princípio distributivo p a t e n t e a d o no Direito Burguês.

S a b e n d o Marx s e r e s s e último o e n t e n d i m e n t o a q u e o s l a s s a l i a n o s
almejam chegar, dedica-se a esclarecer seu conteúdo retórico e sua
capitulação diante do reformismo. Nessa trilha, destaca e interroga o
significado da e x p r e s s ã o "repartição equitativa" à luz d e s e u significado no
Direito m o d e r n o : "Não afirmam o s burgueses que a repartição atual é
'equitativa'? E realmente, na b a s e do atual m o d o d e produção, n ã o é a única
repartição 'equitativa'?" (MARX: 1971, 17). É importante justificar o c o n t e ú d o
irônico e a p a r e n t e m e n t e controvertido d e s s e q u e s t i o n a m e n t o .

Irônico p o r q u e Marx p a r e c e aceitar q u e pelo m e n o s num a s p e c t o a


s o c i e d a d e capitalista tem algo d e v e r d a d e i r a m e n t e justo, n ã o dissimulado, q u e
c o n t e m p l a . d e fato o interesse universal o qual tanto c o m b a t e r a por qualificá-lo
c o m o efeito ideológico. Controvertido, por q u e s e d e fato c o n c o r d a s s e com o

e x p o s t o na s e g u n d a parte da i n d a g a ç ã o incorreria n u m a contradição abissal:


! i
n ã o haveria porque f a z e r a revolução socialista s e a interação -e a troca
capitalistas t r a n s c o r r e s s e m s o b a égide d e um princípio s e g u n d o o qual c a d a
um retira d a riqueza um quantum proporcional a o q u e contribui p a r a s u a
g e r a ç ã o - o q u e perfaz, portanto, u m a estrutura distributiva s e m e l h a n t e à de
u m a s o c i e d a d e acionária.
Se olhada simplesmente pelo ângulo da circulação, de fato,
c o m p r a d o r e s e v e n d e d o r e s d e força d e trabalho s e confrontam no m e r c a d o
a b e r t o d e f a t o r e s d e p r o d u ç ã o em situação d e igualdade, e com a m e s m a
finalidade Um contrato previampnte a c o r d a d o , q u e implica reciprocamente
p e n a l i d a d e s no c a s o d e d e s c u m p r u t a n t o , s e l a e s s e vinculo correlacionando a
o b r i g a ç ã o d e trabalhar x h o r a s a o e m p e n h o d e um salário y. O inadimplemento
por u m a d a s p a r t e s faculta á outra a s u s p e n s ã o do contrato e a reivindicação

14
Nesse prisma, não há classes, só indivíduos. Há de se notar também que, ao contrário do
que se poderia pensar, não há convergência, mas sim divergência de interesses: o indivlduo-
trabalhador quer vender sua força de trabalho, e o indivtduo-capitalista, comprá-la. É isso o que
estabelece uma finalidade comum, a troca.
27
J < -u N I v e n s l O A D I
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Ml Mm do «,h do mio REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
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ISSN: 1984-7920

da aplicação da punição a c o r d a d a . Marx e s t á ciente disso, s a b e que é real, de


m o d o algum a n e g a .
Porém, ele n ã o limitou s u a análise à e s f e r a da circulação; sua crítica
é a crítica do m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista, e c o m o tal, o abordou desde sua
g ê n e s e : a produção. N e s s a e s f e r a , sim, s e vêem a s c l a s s e s sociais em conflito
m a n i f e s t o ou latente, o sobretrabalho, a extração e apropriação da mais-valia
pelo capitalista e a d o m i n a ç ã o d e s t e s o b r e a q u e l e .
É n e s s a trilha q u e ele a p r e e n d e o Direito c o m o efeito ideológico,
c o m o produto superestrutural da d o m i n a ç ã o d e c l a s s e q u e sela, ratifica e
dissimula o interesse específico t o m a d o c o m o universal à b a s e da principio da
igualdade vigente na circulação.
"Pela sua natureza, o direito não pode deixar de consistir no emprego
de uma mesma unidade ds medida; mas os indivíduos desiguais (e
nSo seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) sá são
mensuráveis por uma unidade comum enquanto forem considerados
de um mesmo ponto de vista, apreendidos por um sô aspecto
determinado, por exemplo, no caso presente, enquanto ferem
considerados como trabalhadores e nada mais, fazendo-se abstração
de todo o resto" (Idem; 20).

Isto exposto, resta claro q u e a crítica d e Marx a o Programa advém


do fato d e q u e e s t e , a ó invés d e Implodir o direito d e igualdade tal como
m o d e l a d o pela e s f e r a d e circulação, radicaliza-o. E s c a p a a o s lassalianos que
"o direito nunca p o d e s e r m a i s elevado q u e o e s t a d o econômico da sociedade '
e o grau d e civilização q u e lhe corresponde" {Idem, 21).
Marx r e c o n h e c e a dificuldade (para n ã o dizer a impossibilidade) de
s e suplantar integralmente a ordem b u r g u e s a n o s primeiros momentos de
transição para o comunismo (Idem, p. 19). Por isso, ele vislumbra alguns
mecanismos extraordinários, porém necessários néssa f a s e intermediária
(Idem, 18; 19).

De m o d o algum ele n e g a o c a r á t e r b u r g u ê s da ordem social nesse


estágio; evidente, pela existência de E s t a d o (que a g e d e forma muito parecida,

28
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ISSN: 1984-7920

m a s n ã o igual, a c l a s s e capitalista 1 5 ) e principalmente por conservar o puro


dispêndio de trabalho, ou seja, trabalho abstrato, como parâmetro da
distribuição d a riqueza (Idem, 18).
Incomoda-lhe s e r e m a s diferenças físicas, mentais, intelectuais e
m o r a i s a b s t r a í d a s s o b o aludido princípio (Idem, 20). No entanto, aceita e s s e s
e f e i t o s p e r v e r s o s c o m o inevitáveis n e s s e contexto (Idem, 21). Não o b s t a n t e ,
j a m a i s p e r d e d e vista q u e s e trata de um direito d e tipo b u r g u ê s - baseado
n u m a igualdade superficial (Idem, 20) - e c o m o tal d e v e dar lugar a outro
sistema, em cuja bandeira deve figurar "De cada um segundo suas
n e c e s s i d a d e s , a c a d a um s e g u n d o a s s u a s c a p a c i d a d e s " (Idem, 2 1 ) 1 S .
Com relação a o E s t a d o , Marx a b o r d a a c o n c e p ç ã o d e s e n h a d a no
referido d o c u m e n t o e a explora em duas direções complementares: na
primeira, problematiza s u a d i m e n s ã o propriamente teórica; na s e g u n d a , a t a c a
s u a f a c e t a prática, p a t e n t e a d a na reivindicação d e ampliação da d e m o c r a c i a . O
p o n t o d e partida é a reivindicação lassaliana d e um "Estado Livre" 1 7 .
Em princípio, todo E s t a d o é s o b e r a n o e m relação a outro; a
s o b e r a n i a é um d o s m a i s p r o f u n d o s f u n d a m e n t o s do Estado. Assim, s ó p o d e
um E s t a d o s e r livre. Contudo, n a d a i m p e d e que, e m f u n ç ã o d e u m a guerra, por
e x e m p l o , um E s t a d o seja invadido e d o m i n a d o por outro poder político externo.
M a s d e s s a forma, deixa d e s e r um E s t a d o p a r a s e r um dominium, uma
s a t r a p i a , u m a colônia ou q u a l q u e r coisa d o g ê n e r o (Idem, 29).

 capitulação do Programa a o s ideais políticos b u r g u e s e s , Marx


assevera s e r o E s t a d o u m a ficção (Ibidem). Sua afirmação contém tfês
significados, relacionados entre si. A ê n f a s e na palavra ficção é importante, por
um lado, para negar-lhe o caráter d e realidade tangível, com f u n d a m e n t a ç ã o
15
Parecida porque o Estado centraliza e regula a produção e a distribuição, tal como uma
empresa capitalista; porém, diferente dessa não se apropria privadamente do seu
sobretrabalho,
16
Segundo Allan Wood, a frase é do revolucionário francês August Blanqui. Cf. Marx and
Equality. In, Roemer, John (org.) Analytlcal Marxlsm. Cambridge University Press, 1961, p.
296.
" O ponto do Programa de Gotha o qual Marx destaca a expressão figura dessa forma:
"Partindo desses princípios, o Partido Operário Socialista da Alemanha esforça-se, por todos
os meios, por fundar um Estado Livre ...". Op. cit p. 92, itálicos nossos.
i 29
U N I V E R S I D A D E

fpUNIGRÂNRIO
ProJ.Dr. Jaime Cunha "Í*"!"'H,,J"" REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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ISSN: 1984-7920

própria, e por outro, tratá-io como u m a a b s t r a ç ã o . O E s t a d o é um efeito d g s .


r e l a ç õ e s sociais c o n c r e t a s , m a s figura c o m o c a u s a d a s o c i e d a d e , e x p r e s s a n d o
assim, m?is do q u e u m a simples inversão, u m a verdadeira alienação, na
m e d i d a em q u e s e d e s t a c a e s e distancia da s o c i e d a d e civil, m a s toma dela a
c a p a c i d a d e d e geri-la. ,•
O E s t a d o n ã o existe. O q i e d e fato h á s ã o indivíduos p o r t a d o r e s d e
i n t e r e s s e s d e c l a s s e , materializando d e c i s õ e s por meio d e a p a r e l h o s e ó r g ã o s
q u e d e s e m p e n h a m f u n ç õ e s em nome do Estado. Por n ã o a p r e s e n t a r e s s e
e n t e n d i m e n t o , o Programa postula a t o m a d a d o E s t a d o c o m o s e ele t i v e s s e
18
existência própria . Para Marx, s e j a qual for a f o r m a e o estágio de
desenvolvimento do E s t a d o capitalista, ele tem q u e visto c o m o u m a d i m e n s ã o
do m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista (Idem, 29-30). Portanto, a luta pelo controle
d o s a p a r e l h o s d e Estado, n u m a perspectiva revolucionária, s ó g a n h a s e n t i d o
s e c o m p r e e n d i d a no âmbito d e uma t r a n s f o r m a ç ã o estrutural.
C o m o visto, p o d e o E s t a d o muito b e m m a n t e r u m a forma p a r e c i d a
c o m a d o E s t a d o capitalista no contexto d e transição p a r a o socialismo - o q u e
d e n o t a o q u ã o importante é o controle d e s e u s a p a r e l h o s p a r a concretizar a
t r a n s f o r m a ç ã o estrutural. M a s a o m e s m o tempo, revela q u e a luta d e v e ir além
disso.

A possibilidade d e reformá-lo s e m d e fato revolucionar a s o c i e d a d e


c o n d u z Marx à análise da forma p a r l a m e n t a r - d e m o c r á t i c a do E s t a d o B u r g u ê s .
S u a p e r c e p ç ã o s o b r e a d e f e s a do rito p a r l a m e n t a r é a d e q u é ele s e b a s e i a na
m e s m a perspectiva q u e s u s t e n t a a igualdade jurídica - a d a circulação - e
c o m o tal, c o n s e r v a p r o b l e m a s s e m e l h a n t e s . A liturgia d e m o c r á t i c a anula a o
s e u m o d o a s d i f e r e n ç a s intelectuais e morais entre o s h o m e n s . Também
c o n c e d e p e s o excessiivo á s p a l a v r a s e à retórica e m detrimento do c a r á t e r e
das ações dos homens.

Note o leitor que essa concepção é semelhante â de Marx no contexto d'0 Manifesto do
Partido Comunista, e que foi superada, desde O Dezoito Brumário, conforme demonstrado
acima.

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A dinâmica política m o d e r n a , a m p a r a d a no jogo d a p r o m e s s a , n a


p r o j e ç ã o e veiculação da i m a g e m d o s c a n d i d a t o s , no distanciamento e n t r e
e s s e s e o s eleitores, entre o u t r a s características, t e m todos o s c o m p o n e n t e s
típicos do m e r c a d o . A d e m a i s , a c l a s s e q u e d e t é m a h e g e m o n i a e c o n ô m i c a
d i s p õ e naturalmente d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o d a a p a r ê n c i a d e virtude t ã o
necessários no contexto de eleitorados gigantescos e distanciados da
c a p a c i d a d e d e a c o m p a n h a r e a n a l i s a r c o t i d i a n a m e n t e s e u s candidatos. P o r
isso m e s m o , está s e m p r e e m c o n d i ç õ e s d e reproduzir s u a ideologia c o m o
i n t e r e s s e universal e p e r p e t u a r o s i s t e m a político moldado à s u a s e m e l h a n ç a .

Ficou evidente na a n á l i s e d ' 0 Dezoito Brumário (e e s t á m a i s do q u e


c o m p r o v a d o pela história d a s ditaduras) q u e q u a n d o a correlação d e f o r ç a s
entre a s c l a s s e s t e n d e a o equilíbrio, a m e a ç a n d o efetivamente a h e g e m o n i a
burguesa, a ordem d e m o c r á t i c a e o Estado^ d e Direito s ã o . s u s p e n s o s ,
s u c e d e n d o - l h e a d o m i n a ç ã o b u r g u e s a na s u a forma m a i s perfeita. Num tal
contexto, sim, instala-se um regime b u r g u ê s puro, e m b o r a s e m o controle
direto d a burguesia - a qual, pela via parlamentar, n ã o fora c a p a z d e conter o
a v a n ç o da r e p r e s e n t a ç ã o n e m d a s d e m a n d a s da c l a s s e trabalhadora.

É obviamente natural q u e o s r e g i m è s discricionários burgueses


tenham uma m a r c a violenta e autoritária, e sejam implementados pelo
s e g m e n t o d a s forças a r m a d a s já que, por um lado, portam a cultura disciplinar
necessária a o r e s t a b e l e c i m e n t o e á m a n u t e n ç ã o d a o r d e m , e por. outro,
d i s p õ e m efri a b u n d â n c i a d o s m e i o s d e violência n e c e s s á r i o s a tal e m p r e s a .

III - Considerações Finais: A Contribuição de Marx à Reflexão


I
sobre o Estado e o Direito Hoje \
Presidiu e s s e trabalho a p r e t e n s ã o de a p r e s e n t a r a o leitor as
d i m e n s õ e s basilares da reflexão marciana a respeito d a política e d o direito.
N u n c a é d e m a i s lembrar q u e s e trata a p e n a s d e mais u m a interpretação no
âmbito d o controvertido espólio d e Marx. Por isso m e s m o vale sugerir a o leitor

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A ) U N I V E R S I D A D E
^UNIGRANRIO ^
Vi MmtosM de « * REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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que, s e possível, recorra a o s textos .do próprio para montar sua própria
reflexão.
Como g r a n d e parte d e s u a obra é d e leitura reconhecidamente
intrincada e s e m p r e referida a e r e f e r e n d a d a e m conceitos e contextos mais
a m p l o s do q u e o s e x p o s t o s no momento, cumprirá c o m êxito e júbilo esse
trabalho s e a j u d a r o leitor em s u a própria leitura d e Marx com esclarecimentos
sobre t e m a s , idéias e e v e n t o s nem s e m p r e evidenciados num dado texto em
apreciação.

Ao leitor m a i s experimentado vale c h a m a r a t e n ç ã o para um conjunto


d e o b r a s cujo c e r n e c o m p õ e - s e d o s o b j e t o s em q u e s t ã o . A teoria marxista do
E s t a d o e do Direito teve seu m o m e n t o glorioso e n t r e o s a n o s 60 e 80 do século
XX. Muitas d o s textos debatidos e/ou produzidos estão disponíveis no
vernáculo - s ó p a r a citar dois d o s mais importantes, Nicos Poulantzas e Ralph
Miliband 19 . No entanto, c o m o todo o marxismo, perdeu muito d e seu prestígio
durante o s a n o s 90, devido á crise e a o o c a s o d o bloco socialista, por um lado,
e a contra-ofensiva da ideologia neoliberal, por.outro.

Deliberadamente, e s s e artigo n ã o enveredou pela seara propositiva


do marxismo. Nisso há um conjunto d e r a z õ e s : 1) o traço predominante do
20
d e b a t e marxista no século XX é a revolução socialista ; n ã o há evidencias de
q u e para efeito d a a p r e c i a ç ã o crítica d o s a t u a i s p r o b l e m a s da política e do
Direito e s s e seja um ponto d e partida válido e n e c e s s á r i o ; 2) o pessimismo de
s e u autor impede-o d e acreditar n u m a a l t e r a ç ã o significativa, em curto ou
médio prazo, do e s t a d o d e c o i s a s vigente, q u e r e s t a b e l e c e s s e minimamente o
sentido d e s s e d e b a t e ; 3) e n t e n d e t a m b é m s e r de u m a completa falta de
modéstia (ou ingenuidade) s u s t e n t a r u m a proposta de r e d e n ç ã o histórica, que
como tal, e m pouco ou n a d a ultrapassaria os limites de s u a compreensão e de

" Do primeiro, temos Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1986,6 0
Estado, O Poder, O Socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1981; do segundo, O Estado na
Sociedade Capitalista, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1972, e Marxismo e Política,
20
Nesse campo a oferta de textos é abundante, figurando Inclusive em diversas coletâneas
temáticas. Para citar só autores os incontornáveis: Lenin, Rosa Luxemburgo, Kaustky e
Bernsteln.
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s u a s a s p i r a ç õ e s p u r a m e n t e p e s s o a i s s o b r e "o melhor d o s m u n d o s possíveis"


(ou seu melhor m u n d o possível); 4) por fim, nunca invulnerável a o princípio do
" p e s s i m i s m o da inteligência e otimismo da vontade", s e u autor c o n c e b e q u e ( s e
f o s s e possível) tal projeto d e m a n d a r i a , a n t e s d e tudo, um profundo esforço d e
reflexão e desenvolvimento da c a p a c i d a d e crítica. Nesse sentido, esse
trabalho p r e t e n d e u , mediante a d e m o n s t r a ç ã o da atitude crítica d e Marx diante
d o s . p r o b l e m a s d e s u a é p o c a (e q u e p a r e c e m s e r ainda g r a n d e parte o s d a
n o s s a ) contribuir a o desenvolvimento da do leitor.

Aliás, n a d a p a r e c e mais urgente hoje, principalmente q u a n d o s e


perscruta o p a n o r a m a da política brasileira e a forma a b s o l u t a m e n t e acritica,
superficial, episódica, ahistórica e sensacionalista c o m o é tratada por muitos
jornalistas e intelectuais.

Q u e o "rei e s t á nu", d e fato a l g u n s n ã o c o n s e g u e m perceber; outros,


s i m p l e s m e n t e n ã o q u e r e m . Diante disso, p a r e c e ainda mais apropriada a
r e t o m a d a d e um p e n s a m e n t o c o m o o d e Marx, d o t a d o da coragem n e c e s s á r i a
- s e m e l h a n t e a d a criança da a n e d o t a - p a r a indicar a o próprio rei e a q u e l e s .
d e olhar igualmente turvado, s u a nudez, e d e s m a s c a r a r a farsa d o s q u e fingem
não-^ê-la.

R E F E R Ê N C I A S BIBLIOGRÁFICAS

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HEGEL, G. W, ( 1976) Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino, G u i m a r ã e s


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McLELLAN, David (1990) Karl Marx: Vida e P e n s a m e n t o . Vozes, Petrópolis.

33
U N I V E R S I D A D E
. . „ , % U N I GHR, ,Ai NMRl i Ii iO -
Pro^Dr. •Jaime imita * "" R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I C R A N R I O
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34
>
CRÍTICA
DO DIREITO
1

L I V R A R I A E D I T O R A CIÊNCIAS HUMANAS
SÃO PAULO
1980
CRÍTICA DO DIREITO

Revista dirigida p o r :
Márcio B. Naves
i
J . M. de Aguiar Barros

© Copyright by
LECH - LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LIDA.
Rua Sete de Abril, 264 - Subsolo B - Sala 5 - CEP 01044
São Paulo - SP
Impresso no Brasil Printed in Brazil
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Sobre o Direito e o Marxismo *


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José Arthur Giannotti

Vale a pena refletir sobre a seguinte passagem d ' 0 Capital:

A natureza peculiar dessa mercadoria específica, q u e é a


força de trabalho, acarreta que, a o ' f e c h a r - s e o c o n t r a t o
entre seu c o m p r a d o r e vendedor, o valor de u s o dela rião
se translada efetivamente para as mãos do p r i m e i r o . C o m o
acontece c o m todas as outras mercadorias, seu_.valor_foi
d e t e r m i n a d o d e l a penetrar na circulação, p o r q u a n t o
uma' d e t e r m i n a d a quantidade de trabalho social f o i gasta
para a p r o d u ç ã o da força de trabalho'; mas seu valor de
uso consiste apenas n u m a exteriorização posterior dessa
força., A alienação' n ã o coincide no t e m p o c o m a exterio-
rização efetiva dessa mesma força, isto é, seu m o d o de
existência c o m o valor de uso. No que respeita a tais merca-
dorias, p o r é m , o n d e a alienação formal d o valor de u s o
mediante a venda separa-se n o t e m p o de sua transferência
efetiva para o lado do comprador, quase sempre o dinheiro
f u n c i o n a c o m o meio de pagamento. E m t o d o s os países
em que t e m vigência o m o d o de p r o d u ç ã o capitalista,
a força de t r a b a l h o s o m e n t e é paga depois de ter f u n c i o -
n a d o d u r a n t e o p r a z o estipulado n o c o n t r a t o de c o m p r a ,
a saber, n o f i m da semana. Desse m o d o , por t o d a parte
o trabalhador está adiantando ao capitalista o valor de

5
uso de sua força de trabalho, deixando que seja consumida
pelo comprador antes que este tenha pago seu preço;
por t o d a parte, portanto, o trabalhador abre u m crédito
para o capitalista. T a n t o isso não é uma ilusão que, por
vezes, em virtude duma falência do capitalista, ele perde
o salário creditado; além do mais o demonstra uma série
de conseqüências mais duradouras. N o entanto, nada se
altera na natureza da mercadoria se o dinheiro funciona
c o m o meio de compra ou de pagamento. 0 preço da
força de trabalho é fixado contratualmente, embora só
se realize posteriormente, tal c o m o o preço de aluguel
duma casa. A força de trabalho é vendida, a despeito de
ser paga mais tarde. Para a pura compreensão do que
acontece é útil todavia, por enquanto, pressupor que o
possuidor da força de trabalho, pela venda, receba logo
a seguir o preço contratual estipulado.

Já sabemos como se determina o valor que o possuidor do


dinheiro paga ao possuidor dessa mercadoria peculiar
que é a força de trabalho. O valor de uso, que o primeiro
por sua parte recebe, pela troca, só se mostra e m seu
gasto efetivo, no processo de consumo dessa força de
trabalho. O possuidor de dinheiro compra n o mercado
de mercadorias, pagando seus preços cabais, todas as
coisas necessárias a esse processo, c o m o matéria-prima
etc. O processo de consumo da força de trabalho é ao
mesmo tempo processo de produção da mercadoria e
da mais-valia. 0 consumo da força de trabalho, assim
c o m o o consumo de qualquer outra mercadoria, efetua-se
fora do mercado, ou da esfera da circulação. Com isso
abandonamos essa Rumorosa esfera, que habita a superfície
à vista de todos, e, seguindo os possuidores do dinheiro
e da força de trabalho, passaremos para os escondidos
sítios de produção, nos umbrais de que se lê: "No admit-
tance except on business". Aqui não só se mostra como
o capital produz, mas t a m b é m c o m o ele próprio, o capital,
é produzido. 0 segredo de fazer a mais deve finalmente
ser desvendado.
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, no
interior de cujas fronteiras se movem a compra c a venda
da força de trabalho, constituía,, na ^verdade, o autêntico
paraíso dos direitos inatos do homemk Nela só prevalece
liberdade;igw^de, propriedade e Bentham. Liberdade!
Pois vendedor e comprador duma mercadoria, por exemplo,
a força de trabalho, se determinam exclusivamente por
sua livre vontade. Firmam ura contrato c o m o pessoas
livres e iguais diante da lei. jO contrato é o resultado final
onde suas vontades. se conferem uma expressão jurídica
comum. Igualdadel Pois se relacionam entre si .unicamente
c o m o possuidores de~mercadorias e xrocam equivalente
por""equivalente"."Propriedade] Pois cada. um dispõe sobre
o que é seu. Bentham! Pois cada u m deles ali está para
tratar de si mesmo. A única força que os reúne e os rela-
ciona é o egoísmo, seu proveito particular, seu interesse
privado. Precisamente porque cada u m cuida a p e n a s . d e
si sem cuidar do o u t r o , graças a uma harmonia pré-eSta-
belecida das coisas ou sob os auspícios duma providência
astuciosíssima, todos eles realizam a obra de suas mútuas
vantagens, dos proveitos comuns e do interesse geral.

A o despedir-se dessa esfera da circulação simples ou da


troca de mercadorias, onde o livre combista vulgaris vai
buscar suas intuições, seus conceitos e os critérios de seu
j u í z o sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado,
é c o m o se algo se transformasse n a fisionomia de nossas
I dramatis personae. O antigo possuidor' de dinheiro avança
como, capitalista, o- possuidor, da força. .de. .trabalho o segue

e atarefado," e s t e , " . t í f t u d o £ r ^ leva


p a i ^ ^ o j n c r c a d d í ^ n ^ p í i ^ p è l è ^ e nada'mais pode esperar
e d . Q j . q i i Q f j o z e s f o l a m é n t õ " . (Marx: Das Kapital, I, 181/184
Dietz Verlag - as notas f o r a m suprimidas).

Antes de t u d o convém nos precaver contra as armadilhas


d o talmudismo; não se trata de extrair a ferros uma teoria do Direito,
d u m t e x t o eminentemente político-econômico, mas tão-só de

7
reflecir sobre as questões j u r í d i c a s que ele coloca. Cabe ter presente
desde o início que n ã o existe u m a teoria do Direito e m Marx, nele
p o d e m o s e n c o n t r a r apenas"~ãlgüns fragmentos, sendo q u í l T m ã i o r ,
as observações aos parágrafos finais da Filosofia do Direito, de
Hegel, deve ser m a n u s e a d o c o m m u i t o cuidado. De f a t o , a despeito
do brilhantismo da polêmica, da análise percuciente sobre a buro-
cracia e a alienação do e s t a d o , estas observações inacabadas se
m o v e m n o interior d u m a lógica feuerbachiana, onde a essência d o
h o m e m f u n c i o n a c o m o m a t r i z da dialética, paradigma a medir o
processo de alienação. Desse m o d o , as teses d o jovem Marx f i c a m
subordinadas a u m a antropologia f u n d a n t e , certa matriz de h u m a -
nioade que foi destruída pela instalação da propriedade privada e que
o c o m u n i s m o teria a missão de restaurar. Daí o caráter moralizante
de suas análises, que chegam a censurar Ricardo por c o n f u n d i r
h o m e n s c o m chapéus. S o m e n t e depois de 1844, graças a uma leitura
mais a p r o f u n d a d a da E c o n o m i a Política clássica, Marx a f i r m a r á :
n ã o é m a i s Ricardo que f a z aquela c o n f u s ã o , sendo esta u m vício
d o p r ó p r i o sistema. Mas e n t ã o n ã o se obriga a encontrar o u t r o
f u n d a m e n t o para sua dialética?

O t e x t o que nos o c u p a , "gran fínale" do quarto c a p í t u l o


do primeiro volume, move-se segundo u m a lógica totalmente diversa;
a antropologia cede lugar para u m a ontologia do social. A crítica,
desse m o d o , ganha sentido s o m e n t e depois duma elaboração teórica
capaz de r e p r o d u z i r as nervuras d o c o n c r e t o ; antes duma denúncia
das mazelas do sistema capitalista, cabe traçar uma teoria do funcio-
n a m e n t o d o capital. Este, c o m o sabemos, se resolve e m mercadoria
e dinheiro, sendo que o ú l t i m o n a d a mais é do que uma mercadoria
especialíssima. Dessa maneira, é preciso iniciar a crítica da E c o n o m i a
Política e x a m i n a n d o de a n t e m ã o a mercadoria, como f o r m a
elementar d o sistema. E m vez de partir duma análise do compor-
tame.ito de troca, Marx m u i t o conscientemente começa e s t u d a n d o
u m objeto que serve para a individualização das condutas e dos
próprios agentes, I

O segredo desse o b j e t o mercadoria está e m seu m o d o de


existência; constitui algo que se dá para o uso ao mesmo tempo
que se apresenta d o t a d o d u m valor, dando-se sob a etiqueta d u m

t
preço. Este valor, porém, parece como se fosse um atributo duma
coisa, no mesmo nível que a cor vermelha ou a extensão, embora,
na verdade, se resolva na relação duma coisa útil que encontra
em muitas outras seu valor de troca. Em suma, o valor nada mais
é do que aquele fugdamento da igualdade que os comportamentos
de troca passam a postular, na medida em que se repetem e os
agentes se apresentam no mercado como produtores independentes
daquilo que vendem — o trabalho social e abstrato constitui o
cerne desse postulado. É nesse sentido que uma análise do compor-
tamento só se torna inteligível depois do exame daquela forma
que serve de p,onto de referência, é\ de aglutinação de condutas
particulares.
O objeto mercadoria se define, pois, como algo determinado
por uma troca equivalente, capaz de reduzir todos os produtos
de trabalhos concretos a parcelas dum trabalho abstrato. Por sua
vez os agentes são especificados tão-só como trocadores, indivíduos
cujas determinações consistem naqueles atributos necessários para
pôr em funcionamento a operação de troca. Quais são eles? E m
primeiro lugar, cada um precisa reconhecer no outro o proprietário
do valor de uso de que carece, senão poderia simplesmente capturá-lo.
Recordemos que as relações num mercado ocorrem sem pressupor
qualquer outro tipo de sociabilidade, os agentes atuando como
estranhos, referindo-se a si mesmos e aos outros unicamente como
proprietários de objetos trocáveis. Possuindo reconhecidamente
um objeto trocável por qualquer outro, o agente vem a ser aquele
que por meio de sua coisa abarca uma parcela de valor, do trabalho
abstrato e social. 0 proprietário duma mercadoria não se confunde,
portanto, com o proprietário duma coisa qualquer, apresenta-se,
como aquele que partilha do comum das coisas, estando de posse
de algo que se dá como manifestação duma entidade abstrata, o
valor. Em conseqüência, determina-se como alguém que pode ter
este ou qualquer objeto diferente do mesmo valor; antès dè possuir
isto ou aquilo tem algo que se converte indiferentemente nisto
ou naquilo. Esta capacidade prática de particularizar-se numa coisa
chama-se, na filosofia do século XIX, vontade. Assim sendo, os
proprietários de mercadorias se reconhecem como vontades autô-
nomas, na medida em que independem do conteúdo que vierem a
abranger. E vontade autônoma é sinônimo de pessoa. A relação
de troca se dá, assim, como ato de vontade entre duas pessoas,
pelo qual elas resolvem restringir sua universalidade abstrata; o
querer qualquer coisa vem a ser o querer algo em detrimento daquilo
que se possuia antes. Desse m o d o , a relação aparece c o m o u m
contrato. No entanto, este aparecer tanto concretiza a relação c o m o
encobre seu f u n d a m e n t o , pois o que se f u n d a numa relação
mercantil - onde u m valor de uso se determina como valor por
encontrar sua medida noutros valores de troca — surge como relação
entre duas pessoas que simplesmente desejam coisas, ao invés de
mercadorias. Para satisfazerem seus carecimentos estão dispostas a
sacrificarem algo de seu. No lugar da relação formal entre coisas que
se dão c o m o aparências dum mesmo f u n d a m e n t o , o valor, surgem
pessoas entabulando contratos. Mas com isso se esquece que tais pes-
soas só podem operar c o m o vontades autônomos, desligadas de qual-
quer sociabilidade prévia, unicamente e n q u a n t o indivíduos que ser-
vem tão-só para realizar a trocabilidade das mercadorias.

No seu primeiro m o m e n t o , uma coisa com valor, a mercadoria


na loja sob a etiqueta do preço, constitui numa capacidade de
conversão. Para que essa capacidade possa efetivar-se 6 mister que
agentes se reportem entre si c o m o pessoas contratantes. Isto é
uma conseqüência todavia que logo assume o estatuto de pressuposto
das ações. O movimento da mercadoria, j á indicado por seu preço,
faz com que os agentes atuem c o m o pessoas contratantes e conti-
n u e m a agir t e n d o essa condição como p o n t o de partida de suas
operações. É nesse sentido que o contrato pode ou não ser desen-
volvido legalmente, p o r q u a n t o tece uma trama inscrita na própria
ação antes do legislador enunciá-la como norma. É t a m b é m nesse
sentido que.uma relação jurídica toma de empréstimo um c o n t e ú d o
que ela própria não é capaz de engendrar, espelhando uma relação
econômica. Sobre isso Marx ^ esplícito:

"Esta relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja desen-


volvido legalmente ou não, é uma relação de vontade,
onde a relação econômica se espelha. O conteúdo dessa
relação jurídica ou voluntária é dada por meio da própria
relação econômica (.Marx, Das Kapital, 1 , 9 0 ) .
1
•i
10
O Direito, antes de ser um sistema de normas enunciadas,
está inscrito na trama das ações, na qualidade de pressupostos
de algumas delas. No entanto, tão-só alguns comportamentos -
precisamente aqueles de compra e venda que ultimam u m processo
de trabalho levado a cabo por produtores autônomos, vale dizer
aqueles que cruzam uma relação do h o m e m com a natureza com
outra de h o m e m a h o m e m - p o d e m gerar u m objeto, o valor,
capaz de emprestar conteúdo a essa relação jurídica implícita.
Antes de vir a ser linguagem o Direito entranha o tecido do logos
prático.
É precisamente esta gênese das categorias jurídicas que PaSu-
kanis tentou descrever. Vale a pena e n t r e t a n t o ter presente o alcance
dela. Mostra como a denotação da palavra pessoa está na depen-
dência duma certa prática; além do mais, como a prática extrapola
seu lugar de nascimento; postas as coisas já constituídas, cada indi-
v í d u o reporta-se a elas como se fossem minhas ou tuas. Com isso
se esconde o f a t o de que os homens p o d e m reportar-se aos objetos
como proprietários desvinculados de qualquer sociabilidade prévia
unicamente n u m sistema mercantil. Se a relação jurídica, na verdade,
espelha uma relação econômica, ela veda seu confinamento histórico.

T o d o o cuidado, porém, é p o u c o para não confundir a gênese


categorial com a explicação científica; ela serve apenas de roteiro,
questionário sutilizado das perguntas a serem propostas. Nesse
sentido, o t e x t o que passamos a comentar é luminoso.
Existe no mercado uma mercadoria m u i t o especial: a força
de trabalho. Notável é que o c o n t r a t o de compra e venda que
realiza seu preço não a translada' efetivamente para as mãos do
comprador, isto ao contrário do que acontece com todas as outras
trocas mercantis, que sempre são simultâneas. Como qualquer
mercadoria, a força de trabalho tem seu valor determinado antes
de sua entrada individual na esfera da circulação, já surge dentro
dela c o m o parcela do trabalho social abstrato. No e n t a n t o , a
alienação (Veráusserung) da força de trabalho, sua venda, não
coincide com sua exteriorização (Ausserung), vale dizer com sua
efetivação. O capitalista contrata certo trabalho por u m lapso «ide
t e m p o , e enquanto o operário trabalha ambos parecem estar

11
vinculados exclusivamente pela promessa contraída. Já n o p r ó p r i o
nível da circulação, o dinheiro, que naturalmente nas trocas v e m
a ser meio de troca, f u n c i o n a c o m o m e i o de pagamento, algo que
procura ressarcir u m a promessa antiga. Com isso o t r a b a l h a d o r ,
durante uma semana o u u m mês, passa a creditar ao capitalista o
trabalho que paulatinamente vai e f e t u a n d o . Tanto é assim que
ele p o d e t u d o perder com a falência da firma. Do p o n t o de vista
da c o m p r a e venda da força de trabalho a operação se efetiva pelo
c o n t r a t o e, finalmente, pelo pagamento posterior; t u d o se passa
c o m o se o comprador alugasse alguém para cumprir u m a tarefa
por u m t e m p o determinado. Se n ã o fosse o c o n t r a t o e o m e d o
de perder o que já foi feito, o operário poderia muito b e m a b a n d o n a r
o emprego quando entendesse que já teria prestado ao p a t r ã o os
serviços equivalentes a seu salário. No m e r c a d o impera e m geral
a desconfiança, ninguém entrega uma mercadoria se a o m e n o s
não tiver em mãos u m p e d a ç o de papel c o m o promessa d u m valor
correspondente. Nos dias de h o j e , c o m a quebra do p a d r ã o o u r o ,
esta promessa é garantida e m tese pelo Estado, que, ainda, se
aproveita desse crédito para regular u m a inflação que diminui
o valor efetivo do salário. N o m e r c a d o da força de t r a b a l h o ,
e n t r e t a n t o , o operário só recebe a promessa contratual de ganhar
u m salário n o fim do m ê s , q u a n d o já pôs em exercício a f o r ç a
alugada, n o sentido de produzir novas mercadorias. Aqui se revela
' o segredo da exploração capitalista; u m empregado d o m é s t i c o
pode ser sugado por seu p a t r ã o até a estafa, como p o r é m n ã o está
produzindo mercadorias f u t u r a s o p r o d u t o de seu t r a b a l h o não
surge c o m o valor mercante. Só aquele que opera para o capitalista
termina f o r n e c e n d o u m c o n j u n t o de objetos que vão adquirir valor,
a saber, penetrar no circuito das trocas equivalentes. Percebemos
assim c o m o o pressuposto da equivalência torna-se a c o n d i ç ã o
para u m relacionamento desigual; já que a entrada e a saída do
processo estão f o r n e c e n d o o b j e t o s que, por princípio, são t r o c a d o s
por seus equivalentes, o m o v i m e n t o que resulta na p r o d u ç ã o d u m
valor excedente, surge na superfície c o m o troca entre iguais. Nesse
sentido, o trabalho do e m p r e g a d o doméstico e o t r a b a l h o do
operário aparecem c o m o se estivessem sendo sido pagos pelo que
p r o d u z e m e n ã o pelo que valem c o m o mercadorias a serem vendidas.
Desse m o d o , a categoria de salário vem encobrir o f a t o da explo-
r a ç ã o de c u n h o capitalista, apresentando-a c o m o u m f e n ô m e n o
p e r t e n c e n t e à esfera da circulação.
N ã o c o n v é m insistir nestas teses ultra-conhecidas; i m p o r t a - n o s " "
apenas frisar c o m o u m a troca de equivalentes converte-se n o seu
c o n t r á r i o graças à pressuposição efetiva d u m c o n t r a t o . Uma relação
j u r í d i c a , i m p l í c i t a n a s operações de venda e c o m p r a da força de
t r a b a l h o e explicitada pelas leis trabalhistas, v e m coonestar uin
f a t o de d o m i n a ç ã o . Graças a u m a espécie de projeção d o f e n ô m e n o _
p r o d u t i v o para o t e c i d o da circularão, o vínculo capital-trabalho
legitima-se c o m o f e n ô m e n o igualitário. Aqui reside o p o d e r expli-
cativo da categoria m a r x i s t a ; n ã o se trata u n i c a m e n t e de desenhar
u m m o d e l o r e d u z i d o do real, mas antes de t u d o e n c o n t r a r sob
a capa de sua s u p e r f í c i e o processo que o engendra c ò m o figura
repetindo-se sistematicamente. O mercado é o t e r r e n o da liberdade,""'
igualdade e segurança da propriedade individual. Mas para q u e
possa f u n c i o n a r c o m o o lugar o n d e se t r o c a m mercadorias q u e ,
p o r sua vez, são p r o d u z i d a s por outras mercadorias, é preciso q u e
u m a desigualdade f u n d a m e n t a l se instaure c o m o f o n t e d u m a
circulação ampliada. Más q u e m percebe apenas a figura c o n s t i t u í d a , _
o f e n ô m e n o n o seu aparecer, n ã o é capaz de ir além da igualdade
e n t r e o t r a b a l h o e o salário. O esforço de seu c o n h e c i m e n t o , sejam
quais f o r e m suas i n t e n ç õ e s , resulta n u m a ideologia, n ã o t a n t o
p o r q u e se deixa c o n t a m i n a r por seus interesses o u pelos interesses
de sua classe, mas antes de t u d o porque estes o c o n d u z e m a detectar
n o real tão-só as figuras da aparência. Uma ideologia n ã o é t a n t o
u m a idéia falsificada por u m a viés qualquer, mas s o b r e t u d o o
e s p e l h a m e n t o d u m objeto que c o m o tal esconde seu processo
de individualização e repetição. Com isso percebemos o lugar da
crítica d o Direito n o interior d u m marxismo vivificado. Se na
verdade participa da super-estrutura duma sociedade, isto n ã o
significa que u m a n o r m a j u r í d i c a deixa de indicar u m a condição
de existência d u m a relação infra-estrutural. A p e n a s o c o n t e ú d o
dessa c o n d i ç ã o só p o d e ter seu lugar de nascimento onde se cruzam
relações de p r o d u ç ã o e relações de circulação, vale dizer, o n d e emerge
aquela imbricação q u e dá origem a relações sociais de p r o d u ç ã o .
Além d o mais, p e r c e b e m o s ainda que uma n o r m a jurídica n ã o se

13
resolve n u m m a n d a m e n t o , n u m dever ser q u a l q u e r , mas ainda
exprime u m a condição existente que se cola e ilma relação social
de p r o d u ç ã o c o m o bastidor que ela m e s m a cria para d e m a r c a r o
terreno de sua atuação. A n o r m a surge assim d e n o t a n d o u m a
existência, reportando-se a u m c o n t e ú d o q u e se expraia além dela.
Decorre d a í uma exigência m u i t o peculiar de q u a l q u e r crítica
dialética do Direito. Torna-se inócua t o d a investida generalizada,
que n ã o se p r o p o n h a a tarefa de esmiuçar, graças a u m a análise
catigorial e histórica, os c o n t e ú d o s sociais q u e p e r m i t e m a n o r m a .
Só agindo levando e m conta o p o r m e n o r será possível d e t e c t a r
o que a n o r m a j u r í d i c a revela e o que ela esconde. É inútil u m a
crítica ao f o r m a l i s m o do direito burguês se n ã o f o r m o s capazes
de a p o n t a r a f o n t e de seus c o n t e ú d o s . A história desses últimos
anos n o s t e m m o s t r a d o a que n ó s leva u m a d e n ú n c i a da liberdade
e da igualdade burguesas que, de u m l a d o , n ã o t r a t a de, t e o r i c a m e n t e ,
estudar o p r i n c í p i o de cada liberdade e de cada igualdade; de o u t r o ,
de promover praticamente u m a m u d a n ç a social o n d e esse f o r m a -
lismo seja p r e e n c h i d o por instituições capazes de assegurar as
liberdades e as igualdades que a revolução burguesa j á l o g r o u . U m a
crítica do Direito passa pela crítica efetiva das figuras da realidade
capitalista que lhe dão origem, p o r isso ela é h o j e m u i t o mais u m a
tarefa teórica e prática do que Ciência feita e Realidade Efetivada.

14
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K z t -
M&rcio Bilharinho Naves \

M A R X I S M O E D I R E I T O
u m estudo sobre Pachukanis

n r t r j H P ^
E D I T O R I A L
:
!

C o p y r i g h t © M á r c i o B i l h a r i n h o N a v e s , 2000

Revisão
Daniela Jinkings
Eloísa d a Silva A r a g ã o
Elzira Arantes

Capa
Ivana Jinkings e Antonio Kehl
(sobre desenho de Steinlen reproduzido de capa da coleção
"Critique du droit", Presses Universitaires de Grenoble / Maspero.)

Diagramação e composição eletrônica


Set-up time Artes Gráficas

Produção gráfica
Sirlei A u g u s t a C h a v e s

Fotolitos
OESP

Impressão e acabamento
Bartira Gráfica e Editora

'ISBN - 8 5 - 8 5 9 3 4 - 6 3 - 8

Esta edição contou com o apoio do Programa de Mestrado em


Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Universidade Estadual de Campinas.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sem a expressa autorização da editora.

Ir e d i ç ã o : n o v e m b r o d e 2000

T o d o s o s d i r e i t o s d e s t a e d i ç ã o r e s e r v a d o s à:

BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda.
A v e n i d a P o m p é i a , 1991 - P e r d i z e s
05023-001 - São P a u l o - SP
T e l e f a x (11) 3 8 6 5 - 6 9 4 7 e 3872-6869
E-mail: boitempo@ensino.net
A Wilson Carripos Naves,
in memoriam
Para Marisa
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2

CIRCULAÇÃO E FORMA JURÍDICA

Relacionar a forma da mercadoria com a forma jurídi-


ca resume, para Pachukanis, o essencial de seu esforço teó-
rico.1 De fato, a elaboração teórica de Pachukanis se diri-
ge no sentido de estabelecer uma relação de determinação
das formas do direito pelas formas da economia mercan-
til. Em várias passagens tal determinação é claramente
enunciada: a "gênese" (genezis)2 da forma do direito se
encontra na relação de troca; a forma jurídica é o "reflexo
inevitável" (neizbejnym otprajeniemf da relação dos pro-
prietários de mercadorias entre si; o princípio da subjetivi-
dade jurídica "decorre com absoluta inevitabilidade"
(vytekaiut s absoliutnoi neizbejnost'iúf das condições da
economia mercantil-monetária; essa economia mer-
cantil é a "condição prévia fundamental" (osnovnoi

1 N o Prefácio à 2J edição de A teoria geral do direito e o marxis-


mo, Pachukanis diz que "o camarada P. I. Stutchka definiu, corre-
tamente, a minha abordagem da teoria geral d o direito, c o m o
uma 'tentativa para aproximar a forma do direito da forma da
mercadoria'". E. Pachukanis, "Obschaia teoriia prava i marksizm",
op. cit., p. 34.
Id., ibid., p. 39, grifo meu, MBN.
Id., ibid., p. 74, grifos meus, MBN.
Id., ibid., p. 38, grifos meus, MBN.

53
Marxismo e direito

predposylkoi),5 o "momento fundamentale determinante"


(osnovnym opredeliaschim momentorrif do direito; a for-
ma jurídica é "gerada" (porojdaef) pela forma mercantil;7
a relação econômica de troca "deve existir" (doljno byt)
para que "surja" (voznikló)8 a relação jurídica; a relação
econômica é a "fonte" (istotchnikoni)9 da relação jurídi-
ca. Todas essas expressões denotam evidente afirmação
do caráter derivado do direito, e de sua específica deter-
minação pelo processo de trocas mercantis. É, portanto, a
esfera da circulação das mercadorias que "produz" as di-
versas figuras do direito, como uma decorrência necessá-
ria de seu próprio movimento. Essa determinação do di-
reito pela esfera da circulação é clafamente sustentada por
Karl Marx em seus comentários sobre o Tratado de econo-
mia política de Wagner, como: lembra Pachukanis:
"Wagner, refletindo sobre um conjunto de elementos fun-
damentais do direito burguês, considera-os pressupostos
da troca. Marx objeta dizendo que isso é um erro; a troca
vem antes, surgindo depois o direito correspondente (Marks
vozràjaet emu i gorovit, chto eto neberno; ran'che byl
obmen, a potom poiavilos' sootbetsbuiuschee pravo). [...]
[Marx] diz que [tais elementos] nascem da troca (vytekaiut
iz obmena)". 10 Assim, Pachukanis pode apresentar a re-
lação jurídica como "o outro lado da relação entre os

26
5
Id., ibid., p. 85, grifos meus, MBN.
6 Id., ibid., p. 86, grifos meus, MBN.
7
Id., ibid., p. 78, grifo meu, MBN.
8
Id., ibid., p. 85, grifos meus, MBN.
9
Id., ibid., p. 85, grifo meu, MBN.
E. Pachukanis, "Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte (K
n e k o t o r y m i t o g a m d i s k u s s i i ) " , in Sovetskoe Gosudarstvo i
Revoliutsiia Prava, n s 10-11, 1930, p. 32-33, grifos meus, MBN.

54
Circulação e forma jurídica

produtos do trabalho tornados mercadorias" (tol'ko drugaia


storona otnochenia mejdu produktami truda, stavchimi
tovarami)n e, da mesma forma que a sociedade capitalis-
ta se apresenta como uma "imensa acumulação de mer-
cadorias",12 ela também se constitui em uma "cadeia inin-
terrupta de relações jurídicas" (beskonetchnoi tsep'iu
iuriditcheskikh otnocbenii).13 Desse modo, a relação jurí-
dica apresenta-se como "a célula central do tecido jurídi-
j co e é unicamente nela que o direito realiza o seu movi-
| mento real" (Iuriditcheskoi otnochenie - eto pervitchnaia
kletotchka pravovoi tkani, i tol'ko v neipravo soverchaet
svoe real'noe dvijenie).u
Assim, Pachukanis pode dizer que Stutchka tem ra-
zão ao considerar o problema do direito uma questão

A citação completa de Marx sobre essa questão, referindo-se a


Wagner, é a seguinte: "Para ele, o direito precede a circulação; na
realidade, ocorre o contrário: a circulação é que vem antes, e é a
partir dela que se desenvolve em seguida uma ordem jurídica. Ao
analisara circulação das mercadorias eu demonstrei que, no comér-
cio de trocas desenvolvido, os indivíduos que trocam se reconhe-
cem tacitamente como pessoas e proprietários iguais dos respecti-
vos bens que eles possuem para trocar; isso ocorre já no momento
e m que eles oferecem seus bens uns para os outros e se põem de
acordo para negociar. É essa relação de fato que surge primeiro,
como resultado da troca enquanto tal, recebendo depois uma for-
ma jurídica no contrato, etc.; porém, essa forma não produz n e m o
seu conteúdo, a troca, nem a recíproca relação entre as pessoas nela
compreendida, mas vice-versa", K. Marx, "Randglossen zu Adolph
Wagners 'Lehrbuch der poíitischen Õkonomie'", in K. Marx & F.
Engels, Werke, v. 19, Berlim, Dietz Verlag,1962, p. 377. Cf. também
o comentário de B. Melkevik, op. cit., p. 176.
11
E. Pachukanis, "Obschaia teoriia prava i marksizm", op. cit., p. 78.
12
Id., ibid., p. 78.
13
Id., ibid., p. 78.
14
Id., ibid., p. 78. .

55
Marxismo e direito

atinente às relações sociais, porém, objeta Pachukarús,


não é suficiente aproximar o fenômeno jurídico das rela-
ções sociais em geral, pois isso impede o conhecimento
da natureza específica da forma jurídica. Como diz
Pachukanis, segundo Stutchka, "[...] o direito já nãp fi-
gura como uma relação social específica, mas como to-
das as relações sociais em geral, como um sistema de re-
lações sociais que corresponde aos interesses da classe
dominante e é garantido por sua força organizada. Por-
tanto, dentro desses limites de classe, o direito enquanto
relação não pode ser separado das relações sociais em
geral", de modo que Stutchka não pode responder à
questão de como as relações sociais se transformam em
relações jurídicas.15 Essa definição exprime o conteúdo
de classe de todo o direito, mas não é capaz de explicar
justamente por que esse conteúdo deve revestir uma de-
terminada forma, precisamente, a forma jurídica. No
limite, tal concepção se confunde com a jurisprudência
burguesa que dota o direito de validade universal e o
faz pairar acima da história.16
Ao contrário desse procedimento, Pachukanis pro-
cura identificar a relação social específica que se exprime
na forma jurídica. Como já observamos, essa relação so-
cial deve ser encontrada na esfera da circulação mercan-
til, ali onde os sujeitos-proprietários estabelecem relações
mútuas de troca de equivalentes. A relação social da qual

15
Id., ibid., p. 75.
16
"Para a filosofia burguesa do direito, que considera a relação jurídica
como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana, tal
questão não chega sequer a ser colocada. Para a teoria marxista, que
se esforça por penetrar nos mistérios das formas sociais e por
reconduzir todas as relações humanas ao próprio homem, essa tare-
fa deve ser colocada em primeiro plano", E. Pachukanis, op. cit., p. 46.

56
Circulação e forma jurídica

a forma jurídica é o "reflexo" é, assim, a relaçao dos pro-


prietários de mercadorias entre si.17
A forma jurídica pode aparecer, então, como o cen-
tro da démarche pachukaniana, como bem salienta
Riccardo Guástini.18
A forma jurídica nasce somente em uma sociedade
na qual impera o princípio da ^ivisão do trabalho, ou
seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só
se tornam trabalho social mediante a intervenção de u m
equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito
das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de tro-
ca das mercadorias só se realiza se uma operação jurídi-
ca - o acordo de vontades equivalentes - for introduzida.
Ao estabelecer um vínculo entre a forma do direito e a
forma da mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é
uma forma que reproduz a equivalência, essa "primeira
idéia puramente jurídica" a que ele se refere.19 A merca-
doria é a forma social que necessariamente deve tomar o
produto quando realizado por trabalhos privados inde-
pendentes entre si, e que só por meio da troca realizam o
seu caráter social. O processo do valor de troca, assim,
demanda, para que se efetive um circuito de trocas mer-
cantis, um equivalente geral, um padrão que permita
"medir" o quantum de trabalho abstrato que está contido

17
Id., ibid., p. 45.
18
Cf., além das considerações feitas no capítulo 1, R. Guastini, "La
teoria generale dei diritto in U.R.S.S. Dalla coscienza giuridica
rivoluzionaria alia legalità socialista", op. cit. Sobre o m e s m o pro-
blema da forma jurídica e, e m especial, sobre a diferença entre a
concepção de Pachukanis e de Stutchka sobre tal tema, pode-se
ver Wolf R o s e n b a u m , " Z u m Rechtsbegriff bei Stucka u n d
Pasukanis", in Kritische J u s t i z , n'- 5,1972.
19
Id., ibid., p. 160.

57
Marxismo e direito
«

na mercadoria. Portanto, o direito está indissocia-


velmente ligado à existência de uma sociedade que exige
a mediação de um equivalente geral para que os diversos
trabalhos privados independentes se tornem trabalho
social. É a idéia de equivalência decorrente do processo
de trocas mercantis que funda a idéia de equivalência
jurídica. "Uma vez dada a forma da relação de equiva-
lentes, então está dada igualmente a forma do direito [...]"
(Raz dana forma ekvivalentnogo otnocheniia, znatchit, dana
forma prava), lembra Pachukanis, e prossegue partindo
da leitura do trabalho de Karl Marx, Crítica do programa
de Gotha: "Marx mostra ao mesmo tempo a condição fun-
damental, enraizada na própria economia, da existência
da forma jurídica, qual seja, a igualação dos dispêndios
de trabalho segundo o princípio da troca de equivalen-
tes, isto é, ele descobre oprofundo vínculo interno que existe
entre a formajurídica e a forma da mercadoria' (on vskryvaet
glubokuiu vnutrenniuiusviaz'formyprava iformytovara).20
A relação de equivalência permite que se compreenda a
especificidade do próprio direito, a sua natureza intrin-
secamente burguesa. Esse aspecto pode ser percebido cla-
ramente se nos voltarmos para o exame das figuras do
direito penal. Como lembra Pachukanis, o direito penal,
nos seus primórdios, vincula-se àj prática da vingança,
que se apresenta como uma sucessão de atos de violência
levando a novos motivas ensejadóres de novos atos de
violência e assim por diante. É somente quando surge u m
sistema de compensação da ofensa em dinheiro que a vin-
gança passa a se transformar: ela surge então como repa-
ração disciplinada pela "lei de talião". A idéia de equiva-

Id., ibid., p. 55, grifos meus, MBN.

58
Circulação e forma jurídica

íência surge, portanto, a partir da forma da mercadoria,


e permite que se considere o delito "como uma variante
particular da circulação na qual a relação de troca, ou
seja, a relação contratual, é estabelecida post factum, isto
é, depois de uma ação arbitrária de uma das partes. A
proporção entre o delito e a reparação se reduz a uma
proporção de troca" (kakosobuiuraznovidnost'oborota, v
kotoroi menovoe, t. e. dogovomoe, otnochenieustanavlivaelsia
post factum, t. e.,poslesvoevol'r\ogo deistviia odnoiizstopon.
Proportsiia mejdu prestupJeniem i vozmezdiem svoditsia k
toi je mcnovoiproportsii).21 A forma jurídica, portanto,
só se constitui quando o princípio da equivalência se tor-
na dominante, tornando possível distinguir o elemento

Id., ibid., p. 160-161. Pachukanis p r o s s e g u e ainda: "Por isso


Aristóteles, ao falar da igualação na troca como uma espécie de
justiça, distingue duas subespécies: a igualação nas ações voluntá-
rias e a igualação nas ações involuntárias, sendo que nas ações
voluntárias ele compreende as relações econômicas, tais como a
compra e venda, o empréstimo, etc., e nas ações involuntárias os
vários tipos de delito que exigem uma pena equivalente. Perten-
ce-lhe também a definição do delito como contrato concluído con-
tra a vontade. A pena surge, então, como u m equivalente que
compensa o dano sofrido pela vítima", ibid., p. 160. Também em
H e g e l pode-se observar essa mesma aproximação entre pena e
equivalência: "O valor, como igualação interna das coisas que, em
sua existência específica, são completamente distintas, é uma de-
terminação que já se apresenta nos contratos e também na ação
civfil contra o delito, e cuja representação é elevada à universalida-
de, superando assim a natureza imediata da coisa", G. Hegel, Prin-
cípios de filosofia do direito, apud Dario Melossi & Massimo
Pavarini, Cárcerey fábrica. Los orfgenes dei sistema penitenciário
(siglos X V I - X I X ) , México, DF, Siglo Veintiuno, 1980, p. 82. Cf.,
além desse trabalho, D. Melossi, "The Penal Question inCapital",
in Crime and Social Justice, n 2 8, 1976; e Georg Rusche & Otto
Kirchheimer, Pena e struttura sociale, Bolonha, 1978, p. 175-176.

59
Marxismo e direito

jurídico do elemento biológico, ritual e religioso. Assimj,


como explica Pachukartis, o ato de legítima defesa deixai
de ser apenas um ato de autodefesa e se torna "uma for-
ma da troca, um modo particular da circulação, que en-
contra seu lugar ao lado da circulação comercial 'nor-
mal'" (Aktsamozaschity takimobrazom,perestaetbyt'tol'ko
aktom samozaschity, po stano vitsia formoi obmena, svoego
roda oborota, kotoryi zanimaet svoe mesto riadom s
"normaVnym ") J22
Se é o princípio da equivalência que permite a consti-
tuição da forma jurídica, e se esse princípio atua nas for-
mações sociais pré-capitalistas, como justificar a assertiva
de que a forma jurídica é a forma particular que as rela-
ções sociais adquirem no capitalismo? Ou melhor, como
sustentar a tese da especificidade burguesa do direito?
Se continuarmos a tomar o direito penal como matéria
de análise, poderemos perceber que a diferença entre o
direito pré-burguês e o direito burguês reside em que só
neste se consagra a idéia de que a pena possa estar rela*
cionada com a privação de certa quantidade de tempo;.
Ora, só em uma sociedade na qual o trabalho humano
medido pelo tempo é a forma social dominante, onde:,
portanto, domina o trabalho abstrato, é que essa idéia
pode triunfar. E nesse momento que surgem as prisões e;,
não por acaso, a sua constituição se dá sob o modelo dá
fábrica, ambas sendo postas em funcionamento sob o

Id., ibid., p. 167. É sob a modalidade de um contrato que os delitos


e as penas adquirem "jurisdicidade". Como diz Pachukanis: "En-
quanto essa forma se conserva, a luta de classes se realiza pela
jurisdição. Inversamente, o próprio termo 'direito penal' perderia
todo o sentido se o princípio da relação de equivalência desapareT
cesse", ibid., p. 167.

60
Circulação e forma jurídica

controle do cronômetro. Pachukanis desenvolve essas


considerações ao afirmar: "Para que surgisse a idéia da
possibilidade de expiar o delito com a privação de uma
quantidade predeterminada de liberdade abstrata, foi ne-
cessário que todas as formas concretas de riqueza social
estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais sim-
ples - o trabalho humano medido em tempo {Dlia togo
tchtobypoiavilas'idéia o vozmojnosti rasplatchivat'sia za
prestuplenie zaranee opredelennym kuskom abstraktnoi
svobody, nujno byio, tchtoby vce konkretnye formy
obscbestvennogo bogatstva byli svedeny k prosteichei i
abstraktneichei forme - tchelovetcheskomu trudu,
izmeriaemomu vremenem). [...] O capitalismo industrial, a
declaração dos direitos do homem e do cidadão, a eco-
nomia política ricardiana e o sistema de prisão com pra-
zo de encarceramento são fenômenos que pertencem a
uma mesma época histórica [...]".23

Cf. E. Pachukanis, op. cit., p. 172. Pachukanis, ao comentar o prin-


cípio da legalidade nullúin crttnen, nullapoena sinelege, explica
o seu significado nos seguintes termos: "O que isto significa? E
necessário que todo criminoso e m potencial saiba com exatidão
quais os métodos de correção que lhe serão aplicados? Não, a
coisa é muito mais simples e rude. Ele deve conhecer a quantidade
de sua liberdade que ele deverá pagar como resultado da transa-
ção judicial. Ele deve conhecer, antecipadamente, as condições nas
quais o pagamento lhe será exigido. Esse é o sentido dos códigos
penais e processuais penais" ( C h t o eto oznatchaet? Trebuetsia l i ,
tchtoby kajdyipotentsiaínyiprestupnik byl v totclmosti osveciomlen o
tekh metodakh ispra vleniia, kotorye k nemu budut primerua t'sia ?Ne t,
delo obstoit gorazdo grubee iprosclie: on doljen znat'to kolitchestvo
svoeisvobody, kotorym on zaplatit vrezul'tatesudebnoisdeiki. On
doljen znat'zaranee te usloviia,príkotorykh u negopotrebuiutraspíatu.
Vetom smysl ugolovnykh ulojeniii ugolovno-protsessual'nykh
kodeksov), ibid., p. 175.

61
Marxismo e direito

Já estamos de posse de elementos suficientes para co-


meçarmos a compreender a assertiva pachukaniana so-
bre a natureza burguesa do direito. Esse é um dos aspec-
tos de sua obra mais suscetíveis de uma interpretação
unilateral. Pachukanis de modo algum interdita a com-
preensão da forma jurídica nas formações sociais pré-bur-
guesas. Ao contrário, como já mencionamos anteriormen-
te, é justamente a natureza capitalista do direito que per-
mite que se compreenda as suas formas "antediluvianas",
para retomar uma expressão de Marx referindo-se ao ca-
pital. Também aqui Pachukanis acompanha o método com
que Marx analisa as figuras da economia. Assim, Marx
pode dizer que a mercadoria é um fenômeno tipicamente
capitalista, muito embora a mercadoria exista muito antes
do surgimento desse modo de produção. É que, não
obstante nas sociedades pré-capitalistas o produto do tra-
balho possa se revestir da forma da mercadoria, só na
sociedade burguesa ocorre essa "mercantilização" uni-
versal, em virtude não só de que praticamente todos os
produtos são mercadoria, mas também em virtude de que
a própria força de trabalho se constitui em mercadoria.
Isto está evidentemente relacionado com a emergência
do trabalho abstrato como trabalho realmente abstrato,
como simples dispêndio devforça de trabalho, indiferente
em relação à "qualidade" do trabalho, isto é, a fatores
como habilidade, destreza, etc., do trabalhador. O domí-
nio do valor de troca só se dá, portanto, em uma socieda-
de cuja organização do processo de trabalho está
estruturada de modo a tornar o operário simples "apên-
dice" da máquina, simples fornecedor de trabalho vivo
"indiferenciado".
Igualmente, o direito como forma do processo de tro-
ca mercantil só desenvolve todas as suas determinações
na sociedade em que predomina o processo do valor de

62
Circulação e forma jurídica

xoca, particularmente porque o direito, como veremos a


i seguir, opera a mediação em uma troca decisiva para a
constituição e reprodução das relações de produção ca-
pitalistas: a troca de força de trabalho por salário. E é
exatamente por só se realizar plenamente na sociedade
burguesa que se pode apreender o modo de funciona-
mento do direito nas sociedades pré-capitalistas, nas quais
não predomina o valor de troca e as formas da abstração
permanecem "contidas" em limites estreitos.24
Passemos à análise da forma sujeito, categoria que
ocupa um lugar central, como já salientamos, no apara-
to conceituai pachukaniano.

Pachukanis retifica algumas das suas formulações sobre essa ques-


tão, desenvolvidas em A teoria geral do direito e o marxismo, em
seu trabalho de 1930, "Polojenie na teoretitcheskom pravovom
fronte (K nekotorym itogam diskussii)", op. cit., p. 33: "O defeito
fundamental de meu primeiro trabalho, defeito que eu já reco-
nheci em meu artigo em Revoliutsiia Pra va, n- 2, de 1927, foi não ter
desenvolvido ali, concreta e historicamente, a questão da transi-
ção de uma formação econômico-social para outra e, particular-
mente, a transição do feudalismo para o capitalismo, questão que
está relacionada com a transição de u m sistema de direito para
outro". Para um exame do direito pré-capitalista e, particular-
mente, do direito romano, podem-se ver, notadamente, os traba-
lhos de Aldo Schiavone: Nàscita delia giurisprudenza. Cultura
arístocratica epensiero giurídiconella Roma tardo-repubblicana, Roma/
Bari, Editori Laterza, 1977; Giurístienobilinella Roma repubblicana.
Usecoio delia rivoluzionesdentifica nelpensiero giuridicoantico, Roma /
Bari, Laterza, 1987; Historiografia y critica dei derecho, Madri,
Editoriales de Derecho Reunidas, 1982; "II caso e la natura.
Un'indagine sul m o n d o di Servio", in Andréa Giardina & Aldo
Schiavone (orgs.), Società romana eproduzioneschiavistica, v. I I I :
"Modelli etíci, diritto e trasformazioni sociali", Roma/Bari, Laterza,
1981. Ver, ainda, Jacques Michel, Marxetla sociétéjuridique, Paris,
Publisud,1983.

63
Marxismo e direito

Se o direito pode aparecer para Pachukanis como uma


relação entre sujeitos, isso implica uma posição teórica
antinormativista que recusa a prevalência da norma so-
bre a relação, isto. é, que recusa a premissa de que é a
norma que gera a relação jurídica. A relação jurídica per*
mite a conexão dos sujeitos privados por meio do contra-
to, revelando-se, assim, como "o outro lado da relação
entre os produtos de trabalho transformados em merca-
dorias".25 Ao contrário, o direito entendido apenas como
um conjunto normativo só adquire "significação real" se
a ele corresponde determinada relação. A norma, ou pro-
vém de uma relação já existente, ou prevê o surgimentc
posterior dessa relação. Como diz Pachukanis: "O méto-
do jurídico-formal que concerne apenas às normas e z
isto que é 'supostamente conforme ao direito' só pode
manter a sua autonomia dentro de estreitos limites e exa-
tamente apenas enquanto a tensão entre o fato e a nor-
ma não ultrapassa um determinado grau máximo. Na
realidade material a relação prevalece sobre a norma. Se
nenhum devedor pagasse as suas dívidas, a regra cor
respondente deveria então ser considerada realmente
inexistente".26

25
E. Pachukanis, "Obschaia Teoriia prava i marksizm", op. cit., p. 78,
E ainda: "Do mesmo m o d o que a riqueza da sociedade capitalista!
assume a forma de uma imensa acumulação de mercadorias, as-!
sim também a sociedade como um todo apresenta-se como uma
cadeia infinita de relações jurídicas [Podobno tomu kak bogatstvc
kapitalistitdieskogo obschestva príniniaetfomiu gmmadnogoskopleniií
to varo v, samo obschestvo predstavliaetsia beskonetchnoi tsep'ii
iuriditcheskikh otnochenii). A troca de mercadorias pressupõe uma
economia atomizada. A conexão entre as unidades econômicas
privadas e isoladas é feita, caso a caso, por meio de contratos".
26 Id., ibid.,p. 79.

64
Circulação e forma jurídica

A concepção teórica de Pachukanis se organiza, por-


tanto, em torno da noção de sujeito de direito: "Toda re-
lação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o
átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples, que
não pode mais ser decomposto" ( Vsiakoe iuriditcheskoe
otnochenie est' otrxochenie mejdu sub'ektami. Sub'ekt - eto
atom iuriditcheskoi teorii, prosieichii, nerazlojimyi daiee
element)}7 O procedimento d è Pachukanis ao procurar
identificar o elemento mais abstrato e mais "puro" do teci-
do jurídico é similar ao de Marx quando este inicia a sua
análise de O capital pelo exame da mercadoria. Em ambos
os casos, trata-se de identificar o elemento que concentra
em si a especificidade de relações sociais determinadas, e
cuja forma permite revelar tal especificidade.
Assim, Pachukanis pode afirmar que só no modo de
produção capitalista é que os indivíduos adquirem o esta-
tuto universal de sujeitos. A forma-sujeito de que se reves-
te o homem surge como condição de existência da liberda-
de e da igualdade que se faz necessária para que se cons-
titua uma esfera geral de trocas mercantis e, conseqüente-
mente, para que se constitua a figura do proprietário pri-
vado desses bens, objeto da circulação. É na esfera da cir-
culação das mercadorias, como um elemento dela deriva-
do que opera para tornar possível a troca mercantil, que
nasce a forma jurídica do sujeito: "[...] a realização do va-
lor no processo de troca pressupõe um ato voluntário cons-
ciente da parte do possuidor de mercadorias [...]" {to
realizatsiia stoimosti v protsesse obmena predpolagaet
soznatel'nyi volevoiaktsostorony vladel'tsa tovara).28 É a
esse ato de vontade, constitutivo da categoria de sujeito

27
Id., ibid., p. 102.
28
Id., ibid., p. 105.

65
Marxismo e direito

de direito, que Marx empresta importância decisiva, pois


é ele que, ao possibilitar as trocas mercantis, estabelece
as premissas do modo de produção capitalista, ao mes-
mo tempo que permite revelar todo o segredo da forma
jurídica. Diz Marx, em O capital. "Às mercadorias não
podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Deve-
mos, portanto, voltar a vista para seus guardiões,' os pos-
suidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e,
conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se
elas não' se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar
de violência, em outras palavras, tomá-las. Para que es-
sas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é
necessário que os seus guardiões se relacionem entre si
como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal
modo que um, somente de acordo com a vontade do ou-
tro, portando cada um apenas mediante um ato de von-
tade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia
enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reco-
nhecer-se reciprocamente como proprietários privados.
Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvol-
vida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em
que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa re-
lação jurídica ou de vontade é dada por meio da relação
econômica mesma. As pessoas aqui só existem, recipro-
camente, como representantes de mercadorias e, por isso,
como possuidores de mercadorias". 29 O homem trans-
forma-se em sujeito por ifeio de um ato volitivo: é a ex-
pressão do seu "querer" que permite a ele estabelecer com
outros homens, portadores de uma vontade igual a sua,
uma relação consensual de reciprocidade. Esse elemento
de "equivalência subjetiva"corresponde ao elemento de

29
K. Marx, O capital, v. 1,1.1, op. cit., p. 79-80.

66
Circulação e forma jurídica

equivalência material, isto é, à troca das mercadoria na


base da lei do valor. Como Marx enfatiza, sem a presen-
ça dessa condição de subjetividade jurídica que permite
a circulação de vontades livres e iguais não se daria a
troca das mercadorias. Ora, se a liberdade, esse atributo
da personalidade, existe por e para a troca, isto é, para
que se constitua um circuito de transações mercantis,
entãoio homem só é livre uma vez inserido na esfera da
circulação. Se, portanto, é a troca que constitui a liberda-
de do homem, podemos dizer que quanto mais se alarga
a sua esfera de comercialização, mais livre então pode
ele ser, de tal modo que a expressão mais "acabada", a
mais completa, a mais absoluta de sua liberdade é a li-
berdade de disposição de si mesmo como mercadoria.
Aqui podemos encontrar o homem reduzido à sua "es-
sência": no ato de troca de si mesmo o homem realiza a
sua liberdade, portanto, a liberdade do homem aparece
no ato de disposição de si como mercadoria, no qual o
homem se torna um proprietário que carrega em si, em
sua "alma", o objeto de seu comércio, um proprietário
que realiza em si mesmo a qualidade de sujeito e de obje-
to de direito: "O direito subjetivo sendo direito da pessoa
e não encontrando a sua eficácia a não ser no consenti-
mento, põe a relação vontade-liberdade do seguinte
modo: a liberdade do homem é o seu livre consentimen-
to. A liberdade sendo feita vontade - de divulgar ou não
minha vida privada, que é minha liberdade - e esta liber-
dade não sendo outra coisa que aquela de contratar - e,
notadamente, sobre mim mesmo -, eu devo, em minhas
relações com o outro, aparecer como proprietário de mim
mesmo, porque eu sou livre de mim mesmo. Com efeito,
se eu não fosse proprietário de mim mesmo, eu seria para
o outro escravo, isto é, incapaz de me vender (res), e se o
outro não fosse também livre, ele não poderia se vender.
Em outras palavras, a livre troca da propriedade de si

67
Marxismo e direito

implica uma livre produção e uma consumação dessa


produção. O direito, para respeitar e tornar real a facul-
dade de alienação de si mesmo, que é reconhecida a toda
pessoa física, deve pôr a pessoa em termos de proprie-
dade. A estrutura mesma do sujeito de direito, na dialé-
tica de vontade-produção-propriedade, não é, definiti-
vamente, mais que a expressão jurídica da comerciali-
zação do homem". 30
Na condição de sujeito-proprietário, o homem faz cir-
cular a si mesmo como objeto de troca, pois em sua exis-
tência, como lembra Bernard Edelman, ele só aparece
como representante dessa mercadoria que ele possui: a si
mesmo, de modo que se pode dizer que o homem tomo
sujeito de direito é constituído para a troca, e é justamen-
te essa condição que realiza a sua liberdade.31
A constituição da forma sujeito de direito está, por-
tanto, ligada ao surgimento de determinadas relações
sociais de produção no âmbito das quais a relação de
troca de mercadorias se generaliza a tal ponto que passa
a abarcar também a força de trabalho humana. Para >
que as relações de produção capitalistas se configurem, j
é necessária a existência, no mercado, dessa mercado-1
ria especial que permite a valorização do capital, a força
de trabalho. Ora, a força de trabalho só pode ser oferecida
no mercado e, assim, penetrar na esfera da circulação,
transfigurada em elemento jurídico, isto é, sob a forma

B. Edelman, "Esquisse d ' u n e théorie du sujet: 1'homme et son


image", in Communications, n e 26,1977, p. 195-196.
Cf. B. Edelman, Le droit saisipar laphotographie (Éléments pour
une théorie marxiste du droit), 2- ed., Paris, Christian Bourgois,
1980; e Márcio Bilharinho Naves, Aproximações à crítica marxista
do direito, dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, 1983.

68
Circulação e forma jurídica

do direito, por meio das categorias jurídicas - sujeito de


direito, contrato, etc. - , enfim, sob a forma de uma sub-
jetividade jurídica. É assim que o indivíduo oferece no
mercado os atributos de sua personalidade: ele é livre
- pois não é constrangido a vender-se (isto é, vender a
mercadoria que ele possui, a sua força de trabalho); ao
contrário, a decisão de se vendar é fruto de um ato de sua
inteira vontade; ele se vende em condição de plena igual-
dade ante o comprador - ambos se relacionam na con-
dição de proprietários que trocam equivalentes: a for-
ça de trabalho por um salário; e, finalmente, ele apare-
ce no mercado como um proprietário que dispõe do
que é seu. A relação de exploração capitalista, como
lembra Pachukanis, é mediada por uma específica ope-
ração jurídica, a fprma de um contrato, ao contrário
da sociedade feudal, em que a completa sujeição do
servo ao senhor feudal, exercida pela coerção direta,
não exigia "uma formulação jurídica particular". 32
A análise da forma sujeito de direito em Pachukanis
permite ver a dependência das formas jurídicas em rela-
ção com as formas mercantis.33 Se o objetivo da media-
ção jurídica,'como lembra Pachukanis, é o de assegurar
o funcionamento de um circuito de trocas mercantis e,
conseqüentemente, o de assegurar, em última instância,
a própria produção mercantil, as formas jurídicas sur-
gem como elementos necessários para a realização dessa
esfera da circulação.

t f . E. Pachukanis, op. cit., p. 104; e também, R. Guastini, op. cit.


Como diz Pachukanis, para Marx "a análise da forma do sujeito
decorre imediatamente da análise da forma da mercadoria" ( A n a l i z
formysub'ekta vytekaet u Marksa neposredstvermoiz analizaformy
tovara), ibid., p. 105.

69
Marxismo e direito

A análise da forma sujeito nos tinha permitido per-


ceber a importância da noção de equivalência, pois o
sujeito de direito é, por definição, um sujeito-equivalen-
te. Pois bem, Marx desenvolve, nos Grundrisse, essa mes-
ma relação entre a equivalência mercantil e a equiva-
lência jurídica, ao revelar a gênese da igualdade e da
liberdade a partir das trocas de mercadorias: "De fato",
diz Marx, "tão logo a mercadoria ou o trabalho são de-
terminados como valores de troca e a relação por meio
da qual as diferentes mercadorias se referem mutuamen-
te como troca desses valores de troca uns com os outros,
sua igualação são os indivíduos, os sujeitos entre os quais
esse processo ocorre, simplesmente determinados como
sujeitos que trocam".34 Entre esses sujeitos, diz Marx,
não há nenhuma diferença, pois cada qual tem com o
outro a mesma relação social. Esses sujeitos sãó sujeitos
que trocam, e, portanto, na condição de sujeito da troca
"sua relação é a da igualdade V5 Da relação de equiva-
lência econômica decorrem as seguintes determinações:
os sujeitos que trocam, os objetos da troca (diz Marx:
"valores de troca", "equivalentes"), e a própria troca, o
ato que põe os sujeitos como sujeitos iguais que trocam
e os objetos como equivalentes. "Os equivalentes são a
objetivação de um sujeito para o outro; isto é, eles próprios
são de igual valore se afirmam no ato da troca como sujeitos
de igual valore ao mesmo tèmpo como mutuamente indife-
ren tes. Os sujeitos são na troca um para o outro apenas por

34
K. Marx, "Troca, igualdade, liberdade", iii Temas de Ciências Hu-
manas, n 2 3,1978, p. 3. (Tradução de u m extrato dos Grundrisse
der Kritik der politischen Õkonomie).
35
Id.,ibid.,p.3.

70
Circulação e forma jurídica

meio do equivalente, como tendo igual valor [...]"l36 A essa


qualificação de sujeitos iguais, isto é, de sujeitos que tro-
cam, vem- se acrescentar, diz Marx, a determinação da
liberdade. De fato, a necessidade de obter a mercadoria
de outro não leva o sujeito da troca a utilizar a violên-
cia, mas, ao contrário, ele reconhece o outro - e este a
ele - como proprietário cuja vontade reside na merca-
doria: "Surge então daí o momento jurídico da pessoa e
da liberdade, na medida em que esta está contida na
primeira".37 Para Marx, é a troca que põe a igualdade,
ao passo que aquilo que leva à troca põe a liberdade,
podendo então concluir que a igualdade e a liberdade
"não são apenas respeitadas na troca que se baseia em
valores de troca, mas a troca de valores de troca é a
base real, produtiva, de toda igualdades liberdade".3S
Pois bem, após termos afirmado e enfatizado a relação
que Pachukanis estabelece entre a forma jurídica e as for-
mas mercantis, podemos admitir que a concepção
pachukaniana se encerra nessa relação? Ao contrário do
que sustentam os seus comentadores, a concepção de
Pachukanis é mais complexa, não se limitando a estabele-
cer uma determinação simples entre o direito e a circula-

36
Id., ibid., p. 4.
37
Id., ibid., p. 5. E Marx prossegue: "Nenhum se apodera da proprie-
dade do outro com violência. Cada um desfaz-se da mesma vo-
luntariamente. Mas isto não é tudo: o indivíduo A serve à necessi-
dade do indivíduo B por meio da mercadoria a, apenas na medida
em que e porque o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo
A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao
outro a fim de servir-se a si próprio; cada um serve-se do outro
reciprocamente como seu meio", ibid., p. 5.
Id., ibid., p. 6. Marx utiliza termos quase idênticos na primeira
versão de Para a crítica da economia política. Cf. nota 130.

71
Marxismo e direito

ção. Já tivemos a oportunidade de ver que só com a cons-


tituição de relações de produção de natureza capitalista
é que o valor de troca se torna dominante e a mercadoria -
generalizando-se e universalizando-se, em virtude de a
própria força de trabalho ter-se constituído em mercado-
ria sob um específico modo de organização do processo
de trabalho - se torna uma forma social típica. Em decor-
rência, o processo do valor de troca não apenas não é .:
"indiferente" a uma dada estruturação das relações de ;
produção, mas, ao contrário, as condições da circulação j
dependem da constituição de um processo de produção ;
determinado. É verdade que há, para Pachukanis, uma ;
relação de determinação imediata entre forma jurídica e ;
forma da mercadoria, como vimos, mas a determinação i
em Pachukanis é, a rigor, uma sobredeterminação.39 A i
esfera da circulação, que determina diretamente as for-
mas do direito, é por sua vez determinada pela esfera da :
produção, no sentido preciso de que só o específico pro-
cesso de organização capitalista do trabalho permite a
produção de mercadorias como tais, isto é, como o resul-
tado de um trabalho que se limita a ser puro dispêndio
de energia laborativa indiferenciada. Ora, se a forma do
direito depende da forma da mercadoria, e se esta só se
realiza no modo de produção capitalista, então a forma
jurídica também depende do modo específico de organi-
zação do processo de trabalho decorrente da instaura-
ção das relações de produção capitalistas. Podemos, en-
tão, dizer que, se o direito "acompanha" o movimento
da circulação, uma vez que esse movimento é "coman-
dado" pelas "exigências" da produção, o direito sofre
também a determinação dessa esfera, ainda que não de

Esse conceito, de origem freudiana, foi utilizada por Louis Althusser


em PourMarx, Paris, Maspero, 1977.

72
Circulação e forma jurídica

modo imediato. Nisto reside um ponto capital para a


devida compreensão do pensamento de Pachukanis, pois
é preciso dar conta de uma problemática que se encontra
"latente" em sua obra, embora inteiramente presente, e
que por vezes "emerge" na superfície do texto, introdu-
zindo os enigmáticos "sintomas" que toda uma tradição
de leitura não soube ver. De fato, como explicar as refe-
rências de Pachukanis sobre a relação de determinação
entre as relações de produção e o direito? Significativa-
mente, essas referências passaram despercebidas pelos
comentadores, que não foram capazes de situá-las no
dispositivo teórico pachukaniano. Encontrar em um texto
que toda uma tradição de leituras generalizadamente con-
sidera prisioneiro de uma problemática "circulacionista"
uma expressa vinculação do direito às relações de pro-
dução introduzia um elemento perturbador, que parecia
ameaçar a quietude da interpretação consagrada. E, no
entanto, lá estavam tais referências a apontar para um
discurso pressuposto, cuja "lógica" comandava a cons-
trução teórica: em várias passagens de A teoria geral do
direito e o marxismo, Pachukanis estabelece tal relação,
afirmando: "[...] a forma jurídica [...] é um produto da
mediação real das relações de produção" [forma prava
est'produkt real'nogo oposredstvovaniia proizvodstvennykh
otnochenii"O poder estatal empresta clareza e estabilida-
de à estrutura jurídica, mas ele não cria os seus pressupos-
tos, os quais se enraízam nas condições materiais, isto é,
nas relações de produção" (Gosudarstvennaia vlast' vnosit
vpra vovuiu strukturu tchetkost'i ustoitchivost', no ona ne
sozdaeteepredposylok, kotoryekoreniatsia vmaterial'niykh,

E. Pachukanis, op. cit., p. 39.

110
Marxismo e direito

t. e. proisvodstvennykh, otnocheniiakh);41 "[...] onde quer


que se encontre uma camada de superestrutura jurídica,
a relação jurídica é diretamente gerada pelas relações
materiais de produção existentes entre os homens" (gde
my imeem pervitehnyi sloi iuriditcheskoi nadstroiki, my
nakhodim, chto iuriditcheskoe otnochenie porojdaetsia
neposiedstvennonatitdmynvmateriali]'nynú
otnocheniiamiHudei)}1 Do mesmo modo, em um texto pos-
terior, Pachukanis refere-se também a essa determinação
ao vincular o direito à específica forma de relação entre o
trabalhador direto e os meios de produção, isto é, às rela-
ções de produção: o capitalismo é, diz Pachukanis, uma
específica formação social, definida "por uma especial e
específica forma de união entre o trabalho e os meios de
produção e, conseqüentemente, por um especial sistema
de direito".43
Se quisermos estabelecer um princípio de inteligência
para essa "contradição" em Pachukanis, devemos come-
çar por pensar essa determinação das relações de produ-
ção sobre o direito como uma relação de determinação
"em última instância" do direito pela esfera da produção,
determinação essa que se realiza por meio das figuras
da circulação mercantil. 44 Aqui também Pachukanis
acompanha rigorosamente a demonstração de Marx em

41
Id., ibid., p. 86.
\
42
Id., ibid., p. 88.
43
Cf. E. Pachukanis, "Polojenie na teoretitcheskom pravovom fron-
te (K nekotorym itogam diskussii)", op. cit., p. 41.
44
Pachukanis chega mesmo a dizer que a determinação do direito
pelas relações de produção é lima determinação direta, mas ele se
refere aqui a uma determinação que se verifica já na presença d o
que ele chama de camada de superestrutura jurídica, o que de-
monstra que essa determinação é de a l g y m m o d o mediada.

74
Circulação e forma jurídica

O capital a propósito da especificidade capitalista das


relações mercantis, à qual já tínhamos nos referido ante-
riormente. No início do primeiro capítulo dessa obra, em
uma passagem conhecida, Marx refere-se à mercadoria
como a forma elementar da sociedade capitalista,45 como,
portanto, um produto específico do capital, como salien-
ta Gianfranco La Grassa.45 É verdade que as formas mer-
cantis existem antes da constituição do modo de produ-
ção capitalista, mas, nas sociedades pré-capitalistas, a
forma de mercadoria não chega a ser dominante, per-
manecendo "contida" em limites estreitos, tendo o valor
de troca uma existência "marginal" ou "acessória" na-
quelas formações sociais.47 Ora, a generalização da tro-
ca mercantil, com a conseqüente dominação do valor de

"A riqueza das sociedades e m que domina o modo de produção


capitalista aparece como uma 'imensa coleção de mercadorias', e a
mercadoria individual como sua forma elementar. N ò s s a investi-
gação começa, portanto, com a análise da mercadoria", K. Marx,
O capital, v. 1,1.1, op. cit., p. 45.
Cf. G. La Grassa, "La teoria dei valore de Marx", in Edoardo de "
Marchi, G. La Grassa & Maria Turchetto, Per una teoria delia società
capitalistica. La crítica deli'economia politica da Marx al marxis-
mo, Roma, La N u o v a Italia Scientifica, 1994; e G. La Grassa, Valore
eformazionesodale, Roma, Riuniti, 1975.
Em Para a crítica da economia política, Marx, referindo-se a Steuart,
nota que este "sabia naturalmente muito bem que nas épocas pré-
burguesas o produto também a s s u m e a forma de mercadoria e a
mercadoria a forma de dinheiro, mas ele demonstra minuciosa-
mente que a mercadoria, c o m o forma fundamental e elementar
da riqueza, e a alienação como forma dominante da apropriação,
pertencem apenas ao período de produção burguesa e que o cará-
ter do trabalho criador de valor de troca é, portanto, especifica-
mente burguês", K. Marx, "Zur Kritik der politischen Òkonomie",
in K. Marx & F. Engels, Gesamtausgabe, II/2, Berlim, Dietz Verlag,
1980, p. 136.

75
Marxismo e direito

troca, exige que uma determinada estrutura de produção


1
se constitua, justamente aquela que supõe o produtor di-
reto separado das condições objetivas da produção e per-
mite a sua utilização para a finalidade de valorização do
valor. Assim, a transformação da capacidade de traba-
lho do homem em mercadoria só ocorre quando se ins-
tauram relações de produção capitalistas, sendo tal trans-
formação condição necessária para a generalização da
produção mercantil. Em O capital, Marx se refere à socie-
dade capitalista como aquela na qual - e isto a distingue
das sociedades pré-capitalistas - a característica prevalente
e determinante do seu produto é aquela de ser mercado-
ria, o que implica o trabalhador se apresentar, ele mes-
mo, como vendedor da mercadoria força de trabalho,
permitindo a La Grassa, comentanto esse texto, concluir:
"[...] para Marx a única sociedade realmente mercantil,
na qual, portanto, a forma de mercadoria do produto do
trabalho se torna a forma geral da riqueza produzida, é
a sociedade capitalista. Nesta última se generaliza a tro-
ca e também a produção de bens enquanto mercadorias.
[...] a generalização da forma de mercadoria tem como
pressuposto a redução a mercadoria da capacidade de
trabalho humana". 48 Pois bem, a partir dessas conside-
rações, podemos estabelecer mais precisamente a rela-
ção de determinação das relações de produção sobre as
formas da circulação mercantil, o que permite desde já
pensar igualmente a relação de determinação das rela-
ções de produção sobre as formas do direito. O direito é
imediatamente determinado pelo processo de troca mer-
cantil, mas, considerando que a esfera da circulação é
estruturada segundo as exigências das relações de produção

G. La Grassa, Valore e formazione sociale, op. cit., p. 71-72.

76
Circulação e forma jurídica

capitalistas, o direito também experimenta essa mesma


determinação, mas de modo "mediado", "em última ins-
tância". Ou seja, a existência da forma jurídica depende
do surgimento de uma esfera de circulação que só o modo
de produção capitalista pode constituir. Se a mercadoria
é um produto típico da sociedade burguesa, isto é, das
relações de produção específicas dessa sociedade, o di-
reito também pode ser entendido como o resultado, em
última instância, dessas mesmas relações de produção.
Outra dificuldade na construção teórica de Pachukanis
diz respeito à aparente contradição entre a afirmação da
determinação da esfera da circulação sobre o direito, e a
afirmação da necessidade das figuras do direito para que
se constituam as relações sociais capitalistas.
Esse problema só pode ser resolvido se identificar-
mos, em Pachukanis, dois níveis ou planos de elabora-
ção conceituai. O primeiro plano é aquele do direito
da produção mercantil simples, que é uma esfera indi-
ferente ao estatuto da força de trabalho. Na circulação
simples de mercadorias, o direito não penetra a esfera
da produção, limitando-se a "ser superficial, a aderir à
superfície ou aos lugares mercantis da sociedade". 49 A
circulação opera a troca de mercadorias existentes pela
mediação do direito, mas sem que o elemento jurídico
possa jogar, aqui, qualquer papel quanto à determinação
da mercadoria.50 Ora, com a emergência das relações de
produção capitalistas, nós ingressamos em outro plano de
análise, que analisa o direito como elemento constituinte
dessas mesmas relações. De fato, para que surja n o

4
J. Michel, Marx et la société juridique, op. cit., p. 195.
50
Cf. id., ibid.

77
I I
Marxismo e direito

mercado o homem livre, objeto de comércio, é neces-


sário que ele seja revestido de uma forma jurídica de-
terminada, a forma sujeito, sem a qual não é possível a
expressão de sua vontade livre. Ocorre, porém, que só
se constituem as formas jurídicas necessárias ao
surgimento das relações de produção capitalistas por-
que as categorias do direito já existem na esfera da cir-
culação pré-burguesa. É isso que explica a "recepção"
do direito romano pela sociedade burguesa, após um
longo trabalho de "retificação" de seus conceitos.
Assim, a construção categorial pachukaniana permi-
te dar conta do conjunto das manifestações do direito, ao
mesmo tempo que reafirma a natureza burguesa desse
mesmo direito.

78
Durkheim e o Fenômeno
Jurídico na Obra
Da Divisão do Trabalho
Social: ensaio crítico
J o ã o
Maurício Martins d e Abreu
Advogado. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF.
Professor de Direito Civil da UNESA (licenciado).

1-INTRODUÇÃO

0 presente ensaio t e m o objetivo de analisar e problematizar u m


dos principais pressupostos teóricos utilizados por Émile Durkheim (1858-
1917) na obra Da divisão do trabalho social,1 notadamente aquele segun-
do, o qual o Direito seria u m símbolo visível da moralidade social. 2 Nesse
livro, o autor defende a tese de que a divisão do trabalho social, além de
sua conhecida função econômica, a maximização dos lucros, t e m t a m b é m
uma função moral. E é no processo de construção argumentativa que a
relação entre Direito e moralidade social é sobejamente desenvolvida.
Durkheim é considerado u m dos fundadores da Sociologia como
disciplina autônoma do conhecimento. Foi ele quem, com maior vigor
dentre seus contemporâneos, reivindicou o caráter científico e específi-
co ao conhecimento sociológico. Para tanto, teve de definir o objeto e o
método particulares da Sociologia, procurando, assim, estabelecer uma
separação objetiva em relação a outros campos do saber, como a filosofia
e a psicologia, e, além disso, eliminar qualquer tipo de influxo de saberes
não científicos em sua disciplina.

1 Tese de doutoramento escrita no último quarto do século XIX, em meio ao processo de masslva Industrialização
capitaneado pela Inglaterra. DURKHEIM. Émile. Da divisão do trabalho social. 2®ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
2 É importante, desde já, pontuar em que sentido é concebida dita moralidade social para o autor: trata-se de um
estado de dependência que liga o indivíduo à sociedade e conforma a conduta daquele às normas provenientes
desta. Op. cit., 2004, p. 420-1.

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Percebem-se nitidamente, no pensamento do autor, influências
d o p o s i t i v i s m o d e A u g u s t C o m t e 3 , t r a ç o s e v o l u c i o n i s t a s 4 , e, o q u e é
m a i s i m p o r t a n t e para sua c o m p r e e n s ã o , m a r c a d a p o s i ç ã o e m f a v o r do
q u e se c o n v e n c i o n o u c h a m a r , p o s t e r i o r m e n t e , d e c o l e t i v i s m o meto-
dológico5.
O coletivismo metodológico e a influência positivista, e m espe-
cial, e s t ã o r e f l e t i d o s na i m p o r t a n t e n o ç ã o d e fato social, cunhada por
D u r k h e i m 6 e m resposta aos anseios d l o b j e t i v i d a d e e de d e p u r a ç ã o do
c o n h e c i m e n t o sociológico, q u e s e m p r e n o r t e a r a m seus trabalhos.

Os fatos sociais r e p r e s e n t a m o o b j e t o específico, particular, d a So-


c i o l o g i a . São c o n s t i t u í d o s p o r m o d o s d e p e n s a r , a g i r e s e n t i r , c u j a s i n g u -
l a r i d a d e r e s i d e e m existirem fora das consciências individuais; são, p o r -
t a n t o , exteriores aos indivíduos, mas, a l é m disso, são t a m b é m coercitivos.
E x t e r i o r e s , n o s e n t i d o d e q u e a t u a m s o b r e as c o n s c i ê n c i a s individuais
i n d e p e n d e n t e m e n t e d e sua v o n t a d e ; c o e r c i t i v o s , n o s e n t i d o d e q u e e x e r -
c e m s o b r e os i n d i v í d u o s u m a t a l f o r ç a , u m a t a l c o n s t r i ç ã o , q u e i m p õ e m a
s u a c o n f o r m a ç ã o c o m as r e g r a s s o c i a i s q u e l h e s t r a n s c e n d e m , s o b p e n a
«s» de sanções das mais variadas n â t u r e j a s .

U m b o m e x e m p l o de f a t o social é a língua p r e d o m i n a n t e e m cada


s o c i e d a d e : ela i n d e p e n d e da v o n t a d e c o n j u n t u r a l d o s i n d i v í d u o s e se l h e s
impõe.

3 Dentre os muitos pontos de contato com os pressupostos do positivismo, destacam-se do pensamento durkhei-
miano os seguintes: a reflexão cientifica deve partir da realidade sensível e o conhecimento científico é neutro. Cf.,
com breve exposição da classificação usual das teorias sociológicas e, em caráter propositivo, com uma perspectiva
classificatória própria, MELLO Marcelo P. "Vertentes do pensamento sociológico empirista e naturalista e algumas
razões para se duvidar delas". In: Sociologia e direito: explorando as Interseções. Niterói: PPGSD, 2007, p. 9-37.
4 Não são raras as referências do autor a graus hierarquizados de sociedade: das simples (ou, como ele mesmo
denomina, primitivas), às complexas. As transformações sociais obedeceriam, portanto, a um processo evolutivo
das sociedades, onde o lugar da mudança não é a revolução, mas a evolução. V. GIDDENS, A. Apud SOUZA, Ricardo
Luiz. "Normas morais, mudanças sociais e individualismo segundo Durkheim". In: Confluêndas. Niterói: PPGSD, nov.
2007, v. 9.2, p. 72.
5 Em oposição ao individualismo metodológico, que tem em Hobbes um de seus mais notórios defensores, Durkheim
postula que a sociedade é uma espécie de sujeito transcendente e sul generis, maior do que a soma dos Indivíduos
que a compõem e modulador de suas relações sociais; para ele, "a sociedade determina tudo: a divisão do traba-
lho, o crime, o suicídio, as formas de classificação, a religião e as demais representações coletivas" (...), que "nada
mais significam em si mesmos; eles encontram as razões de sua existência na capacidade de expressar ou projetar
a existência da própria sociedade" (p. 157). VARGAS, Eduardo V. "Durkheim e o domínio da sociologia". In: Antes
Tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contracapa/FAFICH/UFMG,
2000, p. 129-161.
6 A noção de fato social foi exposta em DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 1963.
Para uma sfntese sobre o tema, cf. DURKHEIM, E. "O que é fato social?" In: Rodrigues, José Albertino (org.). Émile
Durkheim. São Paulo: Ática, 1988, p. 46-52.

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Como garantia da objetividade do conhecimento, os fatos sociais
devem ser tratados como coisas, ou seja, como "objetos que se dão indi-
ferentemente ao olhar neutro e cauteloso do sujeito" 7 .
Durkheim entrelaça, na obra analisada a seguir, dois fatos sociais: o
Direito e a divisão do trabalho social.

2 - 0 DIREITO E A INTENSIFICAÇÃO DO PROCESSO DE DIVISÃO DO


TRABALHO SOCIAL

Influenciado, como tantos outros contemporâneos seus, por estu-


dos de biólogos do fim do século XIX, Durkheim (2004, p.3) identifica a
divisão do trabalho como uma lei natural, reitora não só dos organismos,
como t a m b é m das sociedades, de m o d o que a divisão do trabalho social
é, para ele, apenas u m efeito particular daquele processo geral.
Assim como os organismos mais acabados, as sociedades comple-
xas - como o são, p.ex., as sociedades industriais - verificam, com grande
intensidade, o fracionamento de funções antes reunidas em poucas pes-
soas e grupos. A especialização massiva atinge não só as funções eco-
nômicas como t a m b é m as funções políticas, administrativas, judiciárias,
artísticas, científicas etc.
No entanto, constatado o fato de que existe urh processo geral que
tende para a divisão do trabalho, ainda assim impõe-se a pergunta: deve-
mos resistir ou aderir a esse processo de especialização?

Será nosso dever procurar tornar-nos um ser acabado e com-


pleto, um todo autossuficiente, ou, ao contrário, não ser mais
que a parte de um todo, o órgão de um organismo? Numa
palavra, a divisão do trabalho, ao mesmo tempo que lei da
natureza, também é uma regra moral de conduta humanaP8

0 autor responde afirmativamente à última questão: há, para ele,


um intenso valor moral na máxima que nos manda especializar-nos. E esse
caráter, em síntese apertada, está no fato de que, quanto mais a sociedade
se fragmenta em funções díspares e especializadas, mais ela realiza o ideal
de solidariedade social, o ideal de fraternidade, porque cada um depende
tanto mais da sociedade quanto mais for dividido o trabalho social.

7 GIANNOTT1, apud VARGAS, E. V. Op. c/r., p. 143.


8 DURKHEIM, É. Op. C/t., 2004, p. 4.

| r . EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n . 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l | 179


Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA Eis o que constitui o valor moral da divisão do trabalho. E
que, por ela, o indivíduo retoma consciência de seu estado de
dependência para com a sociedade; é dela que vêm as forças
que o retêm e o contêm. Numa palavra, já que a divisão do
trabalho se torna a fonte eminente de solidariedade social,
ela se torna, ao mesmo tempo, a base da ordem moral.9
A compreensão d o m o d o c o m o o Direito s e inclui, de maneira f u n -
d a m e n t a l , no processo de justificação ijessa tese c o m p õ e o o b j e t o desta
seção d o ensaio.
Pois bem. Para verificar e buscar c o m p r o v a r que a divisão do traba-
lho social é a causa da coesão social nas sociedades complexas, e m que o
processo de especialização é intenso, o a u t o r p r o p õ e uma análise compa-
rativa d o t i p o de vínculo social o r i u n d o dessas sociedades complexas c o m
aquele o r i u n d o d e sociedades m e n o s evoluídas (sociedades simples, pri-
mitivas), o u seja, uma comparação e n t r e diferentes expressões da mora-
lidade social - t e r m o c o m p r e e n d i d o por D u r k h e i m (2004, p.420-1) c o m o
o estado de dependência q u e liga o indivíduo à sociedade, c o n f o r m a n d o
suas condutas.
No entanto, a m o r a l i d a d e social - seja nas sociedades complexas
e m que viveu o autor, seja nas primitivas de que ele cogitou - não se dá
a conhecer d i r e t a m e n t e pelo observador, p o r ser u m fato interno, í n t i m o
e psicológico das relações sociais p r o p r i a m e n t e ditas. Por isso, o a u t o r
p r o p õ e e d e f e n d e inferir a m o r a l i d a d e social p r e p o n d e r a n t e e m cada t i p o
de sociedade a partir de um efeito concreto, seguro e observável que ela
produza; a partir de u m fato social presente e m toda e qualquer socieda-
de, em t o d o e q u a l q u e r t e m p o .
Tal efeito, tal fato social, tal representação da moralidade social,
D u r k h e i m o vai e n c o n t r a r nas regras jurídicas; o símbolo visível da mora-
lidade social é o direito.

[A] vida social, onde quer que exista de maneira duradou-


ra, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a se
organizar, e o direito nada mais é que essa mesma organi-
zação no que ela tem de mais estável e preciso. A vida geral
da sociedade não pode s e estender num ponto sem que a
vida jurídica nele se estenda ao mesmo tempo e na mesma

9 DURKHEIM, É. Op. Cit., 2004, p. 423.

182 4 r . EMERJ, Rio d e Janeiro, v. 14, n. S6, p. 179-192, out.-dez. 2 0 1 l |


proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar re-
fletidas no direito todas as variedades essenciais da solida-
riedade social.10
$
Empreender, e m certa medida, uma análise da sociedade a partir
do Direito em vigor: é o que Durkheim propõe. Propõe, mais especifi-
camente, verificar, a partir das normas jurídicas vigentes e m cada socie-
dade, as variantes da solidariedade social, a fim de responder à questão
que norteia a obra sob análise: há algum t i p o especial de solidariedade
do qual a divisão do trabalho social seja a causa? Já foi d i t o e anteci-
pado: há sim. Apenas não foi individuada a espécie: trata-se da moda-
lidade especial a que Durkheim d e n o m i n a solidariedade orgânica, em
oposição à solidariedade mecânica - essa última típica das sociedades
simples ou primitivas.
A esta altura, para reflexão sociológica e jurídica, já se poderia pro-
por a questão que justifica este ensaio, e que será objeto da próxima se-
ção: é o Direito, como o compreende Durkheim, u m reflexo confiável da
moralidade social vigente?
Dessa questão outras tantas p o d e m advir, inclusive sobre a relevân-
cia atual do tema (cf. Considerações finais), mas não é hora de desenvol-
ver o raciocínio, porque nosso autor t e m mais a dizer sobre a forma como
concebe o Direito e suas normas.
Tenaz em seu rigor científico, Durkheim procura expurgar de sua
a n á l i s e d e s s e símbolo visível da moralidade social - q u e , p a r a e l e , é o Di-
reito - qualquer outra classificação das normas jurídicas que não seja feita
de acordo com a sanção que lhes é correspondente. Isso por duas razoes:
(a) porque todo preceito de direito é correlato a uma regra sancionada e
(b) porque as sanções variam de acordo com a gravidade do preceito, ao
papel que desempenha na sociedade. E conclui: há dois tipos de sanções,
em Direito; de u m lado, apresentam-se as sanções repressivas, que im-
plicam o sofrimento do agente e são típicas das normas de Direito Penal;
de outro, as sanções restítutivas, que visam à reparação das coisas e são
típicas do Direito Civil, Comercial, Administrativo etc.
Assim, a única classificação verdadeiramente científica das nor-
mas jurídicas é aquela que as divide e m normas repressivas e normas
restitutivas.

10 DURKHEIM, É. Op. Cit., 2004, p. 32-3.

|r. emerj, Rio d e Janeiro,M.14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l | 179


Pnf.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA

E é aqui que D u r k h e i m p r o m o v e , e m bases objetivas, o entrelaça-


m e n t o dos dois fatos sociais ora estudados. Para ele, é a p r e p o n d e r â n c i a
numérica de normas repressivas, ou c|e n o r m a s restitutivas, n u m d a d o or-
d e n a m e n t o jurídico, o reflexo m a t e r i a l da m o r a l i d a d e v i g e n t e na respec-
tiva sociedade: se f r u t o de solidariedade mecânica o u d e s o l i d a r i e d a d e
orgânica. E é a p a r t i r dessa premissa, q u e ele conclui se se está d i a n t e , o u
não, de uma sociedade complexa; isto é, se se está diante, o u não, de u m a
sociedade e m q u e a divisão d o trabalh<^ social é intensa.
Q u a n t o mais p r e p o n d e r a r e m norimas restitutivas, mais intensifica-
da estará a divisão d o t r a b a l h o social; q u a n t o mais prevalecentes f o r e m as
repressivas, menos desenvolvida tal divisão.
Explica-se.
A preponderância numérica de normas jurídicas repressivas numa
certa sociedade representa que ali vigora uma solidariedade d o t i p o mecâ-
nica (ou p o r s i m i l i t u d e s ) . Isso p o r q u e tal preponderância representa q u e a
maioria das transgressões, dos desvios c o m p o r t a m e n t a i s , é caracterizada
c o m o crime e, por conta dessa qualidade, imputa-se ao agente u m sofri-
m e n t o , u m castigo. Ora, argumenta Durkheim, se são, na maioria das vezes,
consideradas crimes as transgressões n u m a dada sociedade, assim é por-
q u e elas atingem f r o n t a l m e n t e a sua consciência coletiva, corporificando
atos universalmente reprovados - mais d o que isso, universalmente e forte-
mente reprovados - pela média dos m e m b r o s daquela sociedade.

O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média


dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema
determinado que tem vida própria: podemos chamá-lo de
consciência coletiva ou comum.

(...)
[Os crimes] ríão sõo apenas gravados em todas as consci-
ências: são fortemente gravados. Não são veleidades hesi-
tantes e superficiais, mas emoções e tendências fortemente
arraigadas em nós. O que o prova é a extrema lentidão com
a qual o direito penal evolui

Diz-se q u e se está d i a n t e , e n t ã o , d e u m a s o c i e d a d e simples ( o u


p r i m i t i v a ) u m a vez q u e , aí, na m a i o r p a r t e das vezes, as consciências

11 DURKHEIM, t. Op. Cit,.2004, p. 47-8.

184 |R. E M E R J , Rio d e J a n e i r o , M. 1 4 , n . 56, p, 1 7 9 - 1 9 2 , o u t . - d e z . 2 0 1 l | 179


individuais coincidem com a consciência coletiva, ou seja, o grau de di-
ferenciação entre os m e m b r o s da sociedade é inócuo: as opiniões e os
hábitos são similares; logo, assim t a m b é m o é a intensidade da reprova-
ção às transgressões. Aqui, a solidariedade social se baseia na similitude
dos indivíduos, na "atração do semelhante pelo semelhante", na feliz
expressão do autor (Durkheim: 2004, p. 98).
Por o u t r o lado, o domínio numérico de normas restitutivas numa
certa sociedade exprime uma modalidade mais sutil de moralidade vigente:
t r a t a - s e d a solidariedade orgânica.
Com efeito, as normas restitutivas, como o próprio nome deixa en-
trever, embora haja exceções, não visam a imputar castigo ou sofrimento
ao transgressor, mas sim a restaurar o statu quo ante, ou seja, a recom-
por a situação fática ao seu estado "normal". "Se já há fatos consumados,
o juiz os restabelece tal como deveriam ter sido. Ele enuncia o direito,
não enuncia as penas. As indenizações por perdas e danos não t ê m ca-
ráter penal, são somente u m meio de voltar ao passado para restituí-lo,
na medida do possível, sob sua forma n o r m a l " (Durkheim: 2004, p. 85).
Entretanto, tal reparação não diz respeito, segundo o autor, apenas aos
particulares envolvidos; não concernem, p. ex., apenas aos contratantes
e m litígio pelo c u m p r i m e n t o do acordo celebrado. Embora estranhas à
consciência coletiva - que é c o m u m a todos e que fundamenta as normas
repressivas do Direito Penal - as normas restitutivas t a m b é m represen-
t a m uma ligação, uma dependência, do indivíduo e m relação à sociedade;
elas expressam a presença do valor de cooperação de cada u m para com
o todo; de modo que, ao restaurar o statu quo ante, a norma restítutíva
reintegra o vínculo cooperativo que une a sociedade.
Ressalve-se, n u m parêntesis, que Durkheim põe à parte nesse elo
indivíduo-sociedade as relações oriundas de direitos reais - o u seja, aque-
las que unem as pessoas não entre si, mas dom as coisas - , das quais o di-
reito de propriedade é o exemplo modelar. Não há aí, diz ele, uma "solida-
riedade verdadeira, com uma existência própria e uma natureza especial,
mas antes o lado negativo de toda espécié de solidariedade. A primeira
condição para que u m t o d o seja coeso é que as partes que o c o m p õ e m
não se choquem em movimentos discordantes. Mas esse acordo externo
não faz a sua coesão; ao contrário, a supõe." (Durkheim: 2004, p. 95).
A s i i m é que, exceto q u a n t o às mencionadas relações oriundas de
direitos reais, e m que prevalecem em n ú m e r o as normas de natureza

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restitutiva, está-se em presença de uma sociedade complexa, cujo vín-
culo de solidariedade social, baseado de f o r m a preponderante na co-
operação dos indivíduos, d e r i v a e s p e c i a l m e n t e da divisão do trabalho
social, à moda de um organismo, e m relação a suas células, tecidos e
órgãos: cada um com sua função particular; todos jungidos e dependen-
tes, ao fim e ao cabo, de uma mesma causa-final, que é o b o m funciona-
m e n t o do conjunto.
Em bela síntese, nosso autor an^ta: "[cjooperar, de fato, é dividir
uma tarefa c o m u m " (Durkheim: 2004, p. 100).
Para Durkheim (2004, p. 422-3), é a intensificação da divisão do
trabalho social o motivo determinante da solidariedade orgânica, uma vez
que dela provém o processo correlato de diferenciação das consciências
individuais - entre elas mesmas e, consequentemente, em relação à cons-
ciência coletiva (comum). Na mesma medida em que se especializam as
funções dos indivíduos, formam-se personalidades díspares, grupos espe-
ciais e setorizados, que aos poucos vão perdendo a noção do todo. Não
obstante isso, conscientes ou não, todos estão vinculados por inúmeros
elos de cooperação, sem os quais a sociedade se dissolveria.
O escopo de uma análise sociológica sobre a divisão do trabalho
social, c o m o a feita por Durkheim, seria, então, revelar a solidariedade
cooperativa, orgânica, daí oriunda.
Em resumo: o papel das semelhanças sociais, nas sociedades sim-
ples, é exercido pela divisão do trabalho social, nas sociedades complexas;
naquelas são as similitudes, nestas a divisão do trabalho, a fonte primor-
dial da coesão social. Provam-no, segundo nosso autor, o progressivo en-
colhimento verificado pelas normas jurídicas repressivas, e a conseqüente
ampliação das normas jurídicas restitutivas, à medida que a divisão do
trabalho social avança e as sociedades se t o r n a m mais complexas.

3 - DIREITO E MORALIDADE SOCIAL: ALGUMAS REFLEXÕES

Durkheim buscou no Direito o dado empírico da moral, crendo que,


Isem isso, sem um fato concreto, observável e objetivo que lhe desse su-
porte, suas conclusões perderiam e m cientificidade. A defesa veemente
dessa etapa de seu raciocínio é reveladora de u m positivismo sociológico
hoje ultrapassado. No entanto, seria u m grave erro relegar a um traço

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histórico, datado e pouco importante da obra de Durkheim a judiciosa
premissa que ele sustenta sobre a estreita relação entre Direito e morali-
dade social. Tal premissa merece ser analisada, discutida; e não ignorada.
E é o que se busca fazer a seguir.
É curioso, mas outra não parece ser a realidade: ao eleger as nor-
mas jurídicas como reflexo concreto, observável e seguro da moralidade
social, ou seja, ao elegê-las crendo encontrar nelas u m dado empírico,
Durkheim acaba por idealizar o processo de formação político-jurídica
dessas mesmas normas, especialmente nas ditas sociedades complexas.
Cogitemos, inicialmente, de uma questão preliminar, que já denota
certa idealização. Supondo-se, por hipótese, que o Direito reflita fidedig-
namente a moralidade social, devemos indagar, de qualquer modo, antes
do mais, de que "Direito" estamos falando? Do Direito posto ou do Direi-
t o aplicado pelos juizes? A diferença é tão importante que gerou acesa
controvérsia nos meios jurídicos do Ocidente durante boa parte do século
XX, opondo, de um lado, a corrente do chamado positivismo jurídico, que
define o Direito a partir da norma posta pelo Estado ou pelos costumes,
e, de outro, a corrente do chamado realismo jurídico, que define o Direito
a partir da aplicação dada pelos tribunais às normas positivadas (Bobbio:
2005, p. 58-68).
Durkheim opta claramente pelo Direito posto, e não pelo aplicado,
ao estabelecer sua clivagem metodológica de acordo com a predominância,
numa dada sociedade, de normas jurídicas repressivas ou restitutivas.
Normas, entretanto, não são o mesmo que decisões; e nem sempre
as primeiras estão refletidas fielmente nas segundas.
Essa opção metodológica traz, de início, alguns inconvenientes e
idealizações. Primeiro, o de preferir, como objeto de análise sociológica,
a obra jurídica datada e abstrata de algumas poucas mentes privilegia-
das (os projetistas de códigos) à análise da obra diuturna e concreta de
magistrados e advogados. 12 Segundo, o de supor uma representatividade
política ideal da população no Parlamento, como se os parlamentares que

12 É claro que qualquer opção metodológica traria inconvenientes; no entanto, especialmente para a análise das
sociedades complexas, onde o intercâmbio e a Importação de legislações são uma prática comum, gerando muitas
semelhanças no âmbito do Direito posto, pareceria mais aconselhável, para os fins a que se propõe Durkheim, ana-
lisar o modo como são aplicadas essas mesmas normas jurídicas aos casos concretos, sob pena de se encontrarem
mais similitudes do que realmente existem.

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prvf.Dr. Jaime Cunha
j fcs/ifch/ufpa

votam e deliberam sobre os códigos e as leis a serem promulgados repre-


sentassem, proporcionalmente, cada um dos eleitores; como se não exis-
tissem grupos de pressão; como se não existissem grupos sociais menos
numerosos, porém mais influentes, politicamente, que outros.
Mais do que essa questão preliminar, no mérito mesmo da tese
d u r k h e i m i a n a h á críticas pertinentes provindas, ao menos, de dois ma-
tizes de orientações absolutamente conflitantes sobre Direito. E, neste
caso, vale enfatizar que as críticas complementam-se uma à outra, em vez
de se anular.
Por um lado, a relação estreita que o autor estabelece entre Direi-
to e moralidade social faz lembrar, constantemente, a chamada teoria do
"mínimo ético", apresentada e, em geral, criticada já nos mais tradicionais
manuais de Introdução ao Direito 13 . Essa teoria postula que as normas ju-
rídicas r e p r e s e n t a m o mínimo necessário para que a sociedade sobreviva.
Como as regras morais, em geral, são cumpridas de maneira espontânea, a
eficácia da sanção às suas transgressões não costuma ser contundente; por
isso, quando se trata de preceitos morais mínimos, que garantem a ordem
social, a "paz social", é necessário dotá-los da coerção própria das normas
jurídicas, obrigando, assim, a todos o seu cumprimento; aí, a moral se trans-
forma em direito. Graficamente, a teoria do mínimo ético costuma ser re-
presentada por dois círculos cofitêntricos; um maior, outro menor; sendo
este o campo mais restrito do Direito e aquele, o mais amplo da moral.
Ora, além de muitas normas jurídicas serem moralmente indife-
rentes, como o são as que estipulam prazos processuais, encontram-se
também, especialmente nas sociedades que nosso autor denomina de
complexas, normas jurídicas imorais. Assim, p. ex., atualmente no Brasil
parece legítimo afirmar ser imoral a norma penal que determina que os
apenados que detêm diploma de nível superior fazem jus a cumprir - só
por esse fato, e não por uma questão de saúde ou algo do gênero - suas
penas em prisões especiais, distintas das prisões comuns, para onde vão
os demais (art. 295, VII, do Código de Processo Penal). A um só tempo,
essa norma parece romper com o sentimento da consciência coletiva e
com os elos de cooperação analisados por Durkheim, o que infirma, ca-
balmente, alguns exageros de sua defesa: dizer que é desejável que as
• normas jurídicas reflitam os imperativos morais mais importantes para
que não se dissolva a coesão social - como o fazem, não sem contestação,

13 Por todos, cf. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 6» ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p, 42-44.

188 |r. EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l | 179
Prof.Dr.MmeC
FCS/IFCH/UF^

os juristas preocupados com a m a n u t e n ç ã o da o r d e m social - é diferente


de dizer que elas, de fato, r e f l e t e m , c o m o faz D u r k h e i m (2004, p. 32-3).
Ele confunde, nesse ponto, o ideal c o m o real.
Por o u t r o lado, desde que afastado o equívoco de negar ao Direito
qualquer outra função que não a de ser mero i n s t r u m e n t o de dominação, 1 4
t a m b é m da perspectiva marxista se p o d e m retirar críticas pertinentes,
e incisivas, ao idealismo acima referido. De fato, há inegavelmente u m
grande n ú m e r o de normas jurídicas - talvez aquelas que representem o
núcleo duro do o r d e n a m e n t o jurídico das sociedades complexas (capita-
listas) - q u e a p r e s e n t a fortes elèmentos de dominação de classe, como o
é a sanção penal exageradamente pesada atribuída aos crimes contra o
patrimônio.

Diante da colocação citada de Miguel Reale (a criminalização


da apropriação indébita não atende apenas ao interesse da
vitima, e sim ao interesse social), devemos perguntar-nos -
sem que isso implique incondicional oposição a alguma tute-
la penal da propriedade -se a criminalização da apropriação
indébita atende igualmente ao interesse de proprietários e
de não-proprietários.ls

Nesse contexto, confrontar a realidade é querer ver, refletida no Di-


reito, e m t e r m o s genéricos, a moralidade social: e m vez de revelar limpi-
d a m e n t e qualquer coisa, o que o Direito nos sistemas de produção capita-
lista oculta, e m grande medida, é a desigualdade social.16 Enquanto certas
leituras marxistas sobre o Direito pecam por seu excessivo d e t e r m i n i s m o
e c o n o m i c i s t a , e m Da divisão do trabalho social, D u r k h e i m peca p e l o q u e
se p o d e r i a c h a m a r d e determinismo moral do Direito.
Por fim, façamos uma reflexão local sobre a argumentação durkhei-
miana. Supondo, uma vez mais por hipótese, que o Direito possa espelhar
f i e l m e n t e a moralidade social e m certas sociedades, c o m o na sociedade

14 Essa visão, baseada em escritos da juventude de K. Marx, postula um determinismo puro e simples das re-
lações e instituições Jurídicas pelas relações econômicas que lhes servem de base, negando à Instância jurídica
qualquer valor no processo de emancipação da classe trabalhadora. Contra essa perspectiva, remetendo-se a
escritos da maturidade de Marx e de F. Engels, cí? MARINS, Maurício V. "Sobre a lei, o Direito e o Ideal: em
torno da contribuição de E.P. Thompson aos estudos Jurídicos". In: Sociologia e Direito: explorando as Interseções.
Niterói: PPGSD, 2007, p. 39-71.
15 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4' ed. Rio de Janeiro: Revan, p. 57.
16 Sobre o lugar do Direito na perspectiva marxista, cf. as Interessantes discussões suscitadas em MARTINS, Maurí-
cio V. Op. clt., bem como o texto clássico sobre o tema: MIAILLE, Michel, Introdução crítica dp Direito. 2' ed. Lisboa:
Estampa, 1994, especialmente p. 75-84 e 86-103.

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francesa, ponderemos se essa afirmação é generalizável a todos os orde-
namentos jurídicos de tradição romano-germânica, como o é o francês:
valeriam as reflexões de Durkheim para todos os ordenamentos baseados
na autoridade da lei posta pelo Estado? 17
Certamente, não.
Especialmente em formações sociais recentes e consideradas peri-
féricas ou semlperiféricas, na economia' e na política internacional, como
ainda o é a brasileira, e m que o sentimento de nacionalidade é incipiente,
a influência e às vezes até a submissão a padrões estrangeiro^ de com-
p o r t a m e n t o e de pensamento são uma marca secular. Sérgio Buarque de
Holanda, já no p r i m e i r o parágrafo de seu livro mais conhecido, sen-
tenciava: "somos ainda hoje uns desterrados e m nossa terra" (Holanda:
1995, p. 31). Diferentemente do que ocorre na França, p. ex., que d e t é m
uma tradição jurídica própria e arraigada pela população, a tradição jurí-
dica brasileira ainda está por construir, t e n d o vivenciado durante muitos
anos, e esforçando-se para deixar de vivenciar, a pura e simples importa-
ção de modelos legislativos estrangeiros e sua aplicação às relações jurídi-
cas locais: importações de Portugal, da França, da Alemanha, da Itália, dos
Estados Unidos da América etc.
Um sinal disso, marcado em nossa história, é que, até o ano de
1917, quando passou a viger o primeiro Código Civil brasileiro, após qua-
se 100 (cem) anos de independência, sendo 28 (vinte e oito) dá regime
republicano, permaneciam em vigor, para regular as relações civis, as Or-
denações Filipinas, publicadas no longínquo ano de 1603, durante a do-
minação espanhola sobre Portugal. E, curiosamente, quase 50 (cinqüenta)
anos antes de serem revogadas no Brasil, as Ordenações Filipinas já ha-
viam sido revogadas em Portugal! 18
Ora, será possível defender que nas Ordenações Filipinas de 1603,
uma obra de espanhóis e portugueses, estariam retratados os elos de co-
operação, ou a consciência coletiva, da sociedade brasileira do século XIX,
cujas relações civis elas regiam? Parece certo que não.
Mas n e m mesmo se progredirmos para o Código Civil de 1916, obra
de um grande brasileiro, Clóvis Bevilacqua, elogiada por juristas de t o d o

17 Sobre a distinção entre a tradição romano-germânica e a anglo-saxônlca, baseada na autoridade dos precedentes
judiciais, orientados pelos costumes, cf. DAVI D, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, especialmente p. 31-171 e 351-508.
18 Sobre o tema, cf. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, especialmente p. 1-23.

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o m u n d o , poderíamos imaginar encontrar melhor sorte. De fato, com a
pretensão de revogar não só toda a legislação vigente à sua época, como
t a m b é m os usos e costumes, atinentes ao Direito Civil; 19 com nada menos
que 1.445 artigos oriundos direta ou indiretamente do Direito Romano
(Giordani: 1999, p. XVII), com marcada influência da escola alemã do Di-
reito no século XIX, conhecida como Pandectas (De Cicco: 2006, p. 277-
283); e, ao mesmo tempo, com u m número considerável de transcrições
do Código Napoleão (De Cicco: 2006, p. 275), em vez de refletir qualquer
coisa da sociedade brasileira, nosso primeiro Código Civil parecia ter, mui-
to ao contrário, um propósito "civilizatório" e educador para a sociedade
brasileira, um propósito de, através de sua força normativa, mudar, em
certos aspectos, a cultura vigente, aproximando-a dos padrões europeus.

O Código Civil colocou-se, em conjunto, acima da realidade


brasileira, incorporando idéias e aspirações da camada mais
ilustrada da população. Distanciando-se dessa realidade, o
seu papel seria, em pouco tempo, de grande significação na
evolução cultural do país. Primeiramente, porque exerceu
notável função educativa.20

Quantas leis nossas, a começar pela Constituição, não t ê m seguido


o mesmo espírito e propósito? Quantas leis nossas - pensemos naquelas
que internalizam tratados internacionais de direitos humanos - não t ê m
sido simplesmente negligenciadas em vez de aplicadas pelos tribunais e
pelo Estado brasileiro?
Dizer, nesse contexto comparativo, que, t a n t o o Estado francês
como o Estado brasileiro, seguem a tradição jurídica romano-germânica 2 1
não assegura qualquer semelhança entre as suas sociedades. A lei lá t e m
uma representatividade social m u i t o diferente da que t e m aqui. E se, por
hipótese, as normas jurídicas francesas pudessem representar fielmente
a moralidade social de seu povo, c o m o defende Durkheim, no Brasil, salvo
melhor juízo, isso definitivamente não ocorre: se não por outros argu-
mentos, ao menos pelo fato de ser incipiente, pouco arraigada pela popu-
lação e, ainda hoje, importadora de modelos legislativos e interpretativos
a nossa tradição jurídica.

19 "Art. 1.807. Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes
às matérias de direito civil reguladas neste Código."
20 GOMES, Orlando. Op. cit., p. 45.
21 Sobre a tradição romano-germânica e sobre sua expansão além da Europa, cf. DAVID, René. Op. cit. p. 33-81.

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Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA

4 - C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S : U M A TESE D A T A D A ?

À m o d a d e u m silogismo, poder-se-ia s i m p l e s m e n t e concluir: n ã o


p r o c e d e a t e s e p r e s s u p o s t a d e É m i l e D u r k h e i m s e g u n d o a q u a l o Direito é
um símbolo visível da moralidade social, no mínimo em relação à forma-
ç ã o sócio-jurídica brasileira - l e m b r a n d o q u e a t e s e central p r o p r i a m e n t e
d i t a , n o s e n t i d o d e q u e a c a u s a d e t e r m i n a n t e d a coesão social nas socie-
d a d e s c o m p l e x a s s e r i a a d i v i s ã o d o t r a b a l h o social, n ã o foi d i r e t a m e n t e
e n f r e n t a d a por t r a n s b o r d a r o r e c o r t e cjeste ensaio.

M a s s e r á s ó isso? Talvez u m leitor p e r g u n t e : d e q u e vale chegar


à q u e l a c o n c l u s ã o silogística, p a s s a d o s q u a s e c e m a n o s da m o r t e d o a u t o r
e q u a s e c e n t o e c i n q ü e n t a da e l a b o r a ç ã o da t e s e , d e f e n d i d a na França
d o ú l t i m o q u a r t o d o s é c u l o XIX? E m r e s p o s t a , q u e f i q u e m p a r a r e f l e x ã o
outras questões: será q u e não encontramos, atualmente, especialmente
n o c a m p o jurídico-político, a f i r m a ç õ e s v e e m e n t e s q u e vinculam a m e r a
e d i ç ã o d e n o v a s l e i s a " a v a n ç o s s o c i a i s " ? s e r á q u e n ã o h a v e r á , t a m b é m aí,
a precipitação d e ver n a s n o r m a s jurídicas u m d a d o "empírico" d o social,
n o t a d a m e n t e n u m a s o c i e d a d e , c o m o a b r a s i l e i r a , o n d e o h i a t o e n t r e o Di-
reito p o s t o e o Direito aplicado é e n o r m e ? n ã o s e r ã o essas generalizações
atualizações, ainda q u e parciais e s o b outra r o u p a g e m , d a q u e l a longínqua
^ tese pressuposta de Durkheim?* s

São indagações para futuros d e s d o b r a m e n t o s . •

192 | r . EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l | 179


SOCIOLOGIA
E DIREITO ,v
Textos p á s i c o s para a ^ ^
D i s c i p l i n a de: Sociologia J u r í d i c a ^

Cláudio Souto
e
Joaquim Falcão
(da Universidade Federal de Pernambuco
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(organizadores)

2a Edição Atualizada

THOIVJSOINJ
* i-..

Austrália Brasil Canadá Cingapura Espanha Estados Unidos México Reino Unido
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sociologia e direito: textos básicos para a discipli-


na de sociologia jurídica / Cláudio Souto e Joaquim
Falcão (organizadores). — São Paulo : Pioneira
Thomson Learning, 2002.

3. reimpressão da 2. ed. atual, de 1999.


ISBN 85-221-0181-7

I. Sociologia jurídica I. Souto, Cláudio, 1931-.


II. Falcão, boaquim. III. Titulo. IV. Série.

CDD-371.3 97

índices para catálogo sistemático:

1. Direito e sociologia 34:301


2. Sociologia jurídica 34:301
SOCIOLOGIA
E DIREITO
í *

j
j
j

J
)

)
Divisão do Trabalho Social e Direito 1
Émile Durkheim

Embora a divisão do trabalho não seja de ontem, foi somente no fim do


século passado que as sociedades começaram a tomar consciência desta lei que,
até então, sofreram quase sem saber. Sem dúvida desde a antigüidade vários pensa-
dores aperceberam-se da sua importância 1 ; mas foi Adam Smith o primeiro a
tentar enquadrá-la teoricamente. Foi aliás ele quem criou a expressão, que a
Ciência Social mais tarde emprestou à Biologia.
Hoje este fenômeno generalizou-se a um tal ponto que se torna evidente
para todos. Não há já ilusão possível acerca das tendências da nossa indústria
moderna; ela assenta cada vez mais em potentes mecanismos, em grandes con-
juntos de forças e de capitais e, por conseqüência, na extrema divisão do trabalho.
Não somente no interior das fábricas as ocupações se separaram e se especiali-
zaram infinitamente, como cada manufatura é, ela própria, uma especialidade,
que supõe outras. Adam Smith e Stuart Mill esperavam ainda que pelo menos
a agricultura fosse exceção à regra, e viam nela o último reduto da pequena pro-
priedade. Embora em semelhante matéria seja preciso precavermo-nos contra a
generalização desmedida, parece no entanto difícil contestar hoje que os principais
ramos da indústria agrícola são cada vez mais arrastados no movimento geral 2 .
Enfim, o próprio comércio esforça-se por seguir e por refletir, com todas as suas
gradações, a infinita diversidade das empresa^ industriais, e enquanto esta evolução

1
Oiiyàp èx àio larpCjv yíyveTaixoivuivia, a\\' è(íarpov x«í yeuipyoü X"' 8\u<; èrépojv
5
oux l'au>f (Éthique à Nicomaque, E , 1 1 3 3 o , 16).
Journal des Êconomistes, Nov. 1884, p. 211.
100 SOCIOLOGIA E DIREITO

se realiza com uma espontaneidade irrefletida, os economistas, que lhe prescrutam


as causas e apreciam os resultados, longe de a condenar e de a combater, proclamam
a sua necessidade. Vêem nisso a lei superior das sociedades humanas e a condição
do progresso.
Mas a divisão do trabalho não é específica ao mundo econômico; pode-se
observar a sua influência crescente nas mais diferentes áreas da sociedade. As
funções políticas, administrativas, judiciárias especializam-se cada vez mais. O
mesmo acontece com as funções artísticas e científicas. Estamos longe do tempo
em que a Filosofia era a ciência única; ela fragmentou-se numa quantidade de
disciplinas particulares, tendo cada uma o seu objeto, o seu método, o seu espírito.
"De meio século em meio século os homens que se evidenciam nas ciências são
cada vez mais especialistas 3 ".
Querendo mostrar a natureza dos estudos de que se tinham ocupado os
cientistas mais ilustres desde há dois séculos, de Candolle notou que na época
de Leibnitz e de Newton teria sido preciso fazer menção "quase sempre de duas
ou três designações para cada cientista; por exemplo, astrônomo e físico ou
matemático, astrônomo e físico; ou então utilizar termos genéricos como filósofo
ou naturalista. Mpsmo isto não seria suficiente. Os matemáticos e os naturalistas
eram por vezes eruditos ou poetas. Mesmo no fim do século XVIII, designações
múltiplas teriam sido necessárias para indicar exatamente aquilo que homens como
Wolff, Haller, Charles Bonnet tinham de notável em vários domínios das ciências
e das letras. No século XIX esta dificuldade já não existe ou, pelo menos, é muito
rara" 4 . Não só o cientista não cultiva já simultaneamente ciências diferentes, como
nem sequer abarca mesmo o domínio completo de uma ciência. O âmbito das
suas pesquisas restringe-se a uma ordem determinada de problemas ou mesmo a
um único problema. Ao mesmo tempo, a função científica, que outrora era acumu-
lada quase sempre com outra mais lucrativa, como a de médico, padre, magistrado
ou militar, basta-se cada vez mais a si própria. De Candolle prevê mesmo que
proximamente a profissão de cientista e a de professor, hoje ainda tão intima-
mente ligadas, se dissociarão em definitivo.
As recentes especulações da filosofia biológica acabaram por nos fazer ver
na divisão do trabalho um fato de uina tal generalidade, que os economistas, que
dele falaram pela primeira vez, não teriam suspeitado. Com efeito, sabe-se, depois
dos trabalhos de Wolff, de Von Baer, de Milne-Edwards, que a lei da divisão do
trabalho se aplica tanto aos organismos como às sociedades; pôde-se mesmo dizer
que um organismo ocupa um lugar tanto mais elevado na escala animal quanto
mais nele as funções estão especializadas. Esta descoberta teve por efeito, simul-
taneamente, estender desmedidamente o campo de ação da divisão do trabalho,
e atirar as suas origens para um passado infinitamente longínquo, já que ela é
quase contemporânea do aparecimento da vida no mundo. Não é apenas uma

3
De Candolle, Histoire des Sciences et des Savants, 2? ed. p. 263.
4
Loc. cit.
DIVISÃO DO T R A B A L H O SOCIAL E DIREITO 101

instituição social que tem a sua origem na inteligência e na vontade dos homens;
mas é um fenômeno de biologia geral de que é preciso, parece, ir procurar as
condições nas propriedades essenciais da matéria organizada. A divisão do trabalho
social já não aparece senão como uma forma particular deste ptocessus geral, e
as sociedades, conformando-se a essa lei, parecem ceder a uma corrente nascida
bem antes delas e que arrasta num mesmo sentido o mundo vivo por inteiro. ( . . . )
É nos necessário afastar essas deduções, que são geralmente empregadas
apenas para fazer as vezes de argumento e justificar, de seguida, sentimentos
preconcebidos e impressões pessoais. A única maneira de se chegar a apreciar
objetivamente a divisão do trabalho é estudá-la primeiro em si mesma de uma
forma abstrata, procurar saber para que serve e de que depende, numa palavra,
formar dela uma noção tão adequada quanto possível. Feito isto, estaremos em
condições de a comparar com os outros fenômenos morais e de ver quais as
relações que ela mantém com eles. Se achamos que desempenha um papel similar
a |qualquer outra prática cujo caráter moral e normal é indiscutível, e se em
certos casos ela não desempenha esse papel, isso é conseqüência de desvios anot-
m|ais; e se causas que a determinam são também as condições determinantes de
ostras normas morais, poderemos concluir que ela deve ser classificada entre estas
últimas. E assim, sem querer substituir-nos à consciência moral das sociedades,
m pretender legislar em seu lugar, poderemos trazer-lhe um pouco de luz e
diminuir as suas perplexidades.
O nosso trabalho dividir-se-á, assim, em três partes principais:
Procuraremos, primeiro, saber qual é a função da divisão do trabalho, isto
a que necessidade social corresponde;
Determinaremos, em seguida, as causas e as condições de que depende;
Finalmente, como ela não teria sido objeto de acusações tão graves se
realmente não se tivesse desviado, mais ou menos freqüentemente, do estado
n írmal, procuraremos classificar as principais formas anormais que ela apresenta,
a fim de evitar que sejam confundidas com as outras. Este estudo oferecerá, além
dsso, o interesse seguinte: é que aqui, como em Biologia, o patológico ajudar-
-rios-á a compreender melhor o fisiológico.
De resto, se tanto se discutiu sobre o valor moral da divisão do trabalho, é
niuito menos porque não se está de acordo sobre a fórmula geral da moralidade, do
qüe por se ter negligenciado em demasia as questões de fato que vamos abordar.
Sempre se raciocinou como se elas fossem evidentes; como se, para conhecer a
natureza, o papel, as causas da divisão do trabalho, bastasse analisar a noção que
cada um tem acerca disso. Um tal método não leva a conclusões científicas; por
iiso, depois de Adam Smith, a teoria da divisão do trabalho bem poucos progressos
fez." Os seus continuadores, diz Schmoller 5 , com uma pobreza de idéias notável,
agarraram-se obstinadamente aos seus exemplos e às suas notas até ao dia em que

A divisão do trabalho estudada do ponto de vista histórico, in Rerue d'Écon. Pol, 1889,
p. 567.
102 SOCIOLOGIA Ê DIREITO

os socialistas alargaram o campo das suas observações e contrapuseram a divisãc


do trabalho nas fábricas atuais à das oficinas do século XVIII. Mas, mesmo assim
a teoria não foi desenvolvida de uma forma sistemática e aprofundada; as conside
rações tecnológicas, ou as observações de uma verdade banal de alguns economistas,
também não puderam favorecer particularmente o desenvolvimento dessas idéias",
Para saber o que é objetivamente a divisão do trabalho não basta desenvolver o
conteúdo da idéia que dela fazemos, é preciso tratá-la como um fato objetivo:,
observar, comparar, e veremos que o resultado dessas observações difere freqüen-
temente daquele que o sentido íntimo nos s u g e r e 6 . ( . . . )
Não temos simplesmente que procurar se, neste tipo de sociedade, existe
uma solidariedade social que provém da divisão do trabalho. É uma verdade
evidente, pois a divisão do trabalho está aí muito desenvolvida e produz a solida-
riedade. Mas é preciso sobretudo determinarem que medida a solidariedade que elja
produz contribui para a integração geral da sociedade: pois é somente então que
saberemos até que ponto ela é necessária, se é um fator essencial da coesão social
ou, pelo contrário, se não é senão uma condição acessória e secundária. Para
responder a esta questão, é preciso comparar este laço social aos outros, a fim de
medir a parte que lhe pertence no efeito total, e para isto é indispensável começar
por classificar as diferentes espécies de solidariedade social.
Mas a solidariedade social é um fenômeno completamente moral que, por
si próprio, não se presta à observação exata nem sobretudo à medida. Para proceder,
quer a esta classificação, quer a esta comparação, é preciso portanto substituir
o fato interior, que nos escapa, pelo fato exterior, que o simboliza, e estudar o
primeiro através do segundo.
Este símbolo visível é o direito. Com efeito, onde a solidariedade social
existe, apesar do seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de potência
pura, mas manifesta a sua presença através de efeitos sensíveis. Onde ela é forte,
inclina fortemente os homens uns para os outros, põe-nos freqüentemente em
contato, multiplica as ocasiões de entrarem em relação. Em rigor, no ponto a que
chegamos, é difícil dizer se é ela que produz estes fenômenos ou, pelo contrário,
se deles resulta; se os homens se aproximam porque ela é enérgica, ou se, pelo
contrário, é enérgica porque eles se aproximam uns dos outros. Mas, de momento,
não é necessário elucidar a questão e basta verificar que estas duas ordens de fatos
se encontram ligadas e variam ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Quanto mais
os membros de uma sociedade são solidários, mais eles mantêm relações diversas,
quer uns com os outros, quer com o grupo tomado coletivamente: porque, sé ps

6
Após 1893, duas obras apareceram, ou chegaram ao nosso conhecimento, que interessam à
questão tratada no nosso livro. Foi primeiro a Sociale Differenzierung de Simmel (Leipzig,
V i l - 1 4 7 p.), onde não é abordada em particular a questão da divisão do trabalho, mas,ide
uma forma geral, a do processus de individuação. Depois, o livro de Bücher, Die Entstehung
der Wolkswirtschaft, recentemente traduzido para o francês sob o título deEtudesd'Histoire
et d ' É c o n o m i e Politique (Paris, Alcan, 1901), e o n d e vários capítulos são consagrados à
divisão d o trabalho econômico.
DIVISÃO DO T R A B A L H O SOCIAL E DIREITO 103
i
seus encontros fossem raros, eles não dependeriam uns dos outros senão de uma
maneira intermitente e fraca. Por outro lado, o número destas relações é necessa-
riamente proporcional ao das normas jurídicas que as determinam. Com efeito, a
vida social, por todo o lado onde ela existe de uma maneira durável, tende inevi-
tavelmente a tomar uma forma definida e organizar-se e o direito não é outra coisa
senão esta mesma organização,; naquilo que ela tem de mais estável e de mais
preciso 7 . A vida geral da sociedade não pode estender-se num rei to sentido sem que
a vida jurídica para aí se estendaao mesmo tempo e na mesma proporção. Podemos
assim estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais
da solidariedade social.
Poder-se-ia objetar, é verdade, que as relações sociais podem fixar-se sem
tomarem para isso uma forma jurídica. "Assiiçi é, quando a regulamentação não
atinge um dado grau de consolidação e de precisão; mas nem por isso aquelas
relações ficam indeterminadas; em vez de serem reguladas pelo direito, são-no pelo
costume. O direito não reflete, portanto, senão uma parte da vida social e, por
conseqüência, não nos fornece senão dados incompletos para resolver o problema.
Há mais: acontece freqüentemente que os costumes não estão em concordância
com o direito; diz-se incessantemente que aqueles lhe moderam os rigores, que
lhe corrigem os excessos formalistas, por vezes mesmo que estão animados de
um espírito completamente diferente. Não poderá acontecer que manifestem
espécies de solidariedade social diferentes daquelas que o direito positivo exprime?
Mas esta oposição somente se produz em circunstâncias absolutamente
excepcionais. É preciso para isso que o direito já não corresponda à situação
vigente na sociedade e que, no entanto, êie se mantenha, sem razão de ser, pela
força do hábito. Como efeito, neste caso, e apesar disso, as novfcs relações que
se estabelecem não deixam de se organizar; porque não podem subsistir sem
procurar consolidar-se. Somente, como estão em conflito com o antigo direito
que persiste, não ultrapassam o estádio dos costumes e não chegam a entrar na
vida jurídica propriamente dita. Ê assim que surge o antagonismo. Mas este não
se pode produzir senão em casos raros e patológicos, que não podem prolongar-se
sem perigo. Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, pelo con-
trário, constituem-lhe a base. Pode acontecer, é verdade, que sobre esta base nada se
erga. Pode haver relações sociais que apenas comportem essa regulamentação difusa
que provém dos costumes, mas é porque carecem de importância e continuidade,
exceto, bem entendido, nos casos anormais que acabamos de tratar. Assim, se pode
acontecer que haja tipos de solidariedade social que só os costumes manifestam,
são certamente muito secundários; pelo coritrário, o direito reproduz todos aqueles
que são essenciais e esses são os únicos que temos necessidade de conhecer.
Poder-se-á ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não se encontra
por completo nas suas manifestações sensíveis? Que estas apenas a expressam
em parte e imperfeitamente? Que para além do direito e dos costumes existe o

7
V. infra, liv. Ill, cap. 1? (v. vol. II).
104 SOCIOLOGIA E D I R E I T O

estado interior donde ela deriva e que, para a conhecer verdadeiramente, é preciso
atingi-la em si própria e sem intermediários? Mas não podemos conhecer cientifica-
mente as causas senão através dos efeitos que produzem, e, para melhor determinar
a sua natureza, a ciência não faz senão escolher de entre esses resultados aqueles
que são mais objetivos e que melhor se prestam à medida. Ela estuda o calor através
das variações de volume que as mudanças de temperatura produzem nos corpos, a
eletricidade através dos seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento.
Por que é que a solidariedade social haveria de ser exceção?
Aliás, o que é que subsistiria dela uma vez despojada das suas formas sociais?
O que dá as suas características específicas é a natureza do grupo de que ela
assegura a unidade, é por isso que ela varia consoante os tipos sociais. Ela não é a
mesma no seio da família e nas sociedades políticas; nós não estamos vinculados à
nossa pátria da mesma maneira que o Romano estava à cidade, ou o germano à
sua tribo. Mas porque estas diferenças têm que ver com causas sociais, só podemos
configurá-las através das diferenças que os efeitos sociais da solidariedade apre-
sentam. Assim, se negligenciarmos estas últimas, todas estas variedades se tomam
indiscerníveis e já não nos apercebemos senão do que lhes é comum a todas, a
saber, a tendência geral à sociabilidade, tendência que é sempre e por todo o lado a
mesma, e não está ligada a nenhum tipo social em particular. Mas este resíduo
não é senão uma abstração; pois a sociabilidade em si não se encontra em parte
alguma. O que existe e vive realmente são as formas particulares da solidariedade, a
solidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, a de
ontem, a de hoje, etc. Cada uma tem a sua natureza própria; por conseqüência,
estas generalidades não poderiam em qualquer caso dar do fenômeno senão uma
explicação bem incompleta, pois que deixam necessariamente escapar aquilo que
têm de concreto e de vivo.
O estudo da solidariedade releva assim da Sociologia. É um fato social que
não se pode conhecer bem a não ser por intermédio dos seus efeitos sociais. Se
tantos moralistas e psicólogos puderam tratar da questão sem seguir este método,
foi porque tornearam a dificuldade. Eliminaram do fenômeno tudo o que ele
tem de mais especificamente social para apenas reterem o núcleo psicológico de
que ele é o desenvolvimento. Coii efeito, é certo que a solidariedade, sendo em
primeiro lugar um fato social, depende do nosso organismo individual. Para que
ela possa existir, é preciso que a nossa constituição física e psíquica a comporte.
Em rigor, podemo-nos pois contentar em estudá-la sob este aspecto. Mas, neste
caso, dela não se vê senão a parte mais indistinta e menos específica; não se trata
dela propriamente, mas antes do que a torna possível.
Mesmo este estudo abstrato não poderia ser muito fecundo em resultados.
Porque enquanto permanece no estado de simples predisposição da nossa natureza
psíquica, a solidariedade é qualquer coisa de demasiado indefinido para que se
possa facilmente atingi-la. É uma virtualidade intangível que não se abre à obser-
vação. Para que tome uma forma perceptível, é preciso que algumas conseqüências
sociais a traduzam no exterior. Além disso, mesmo nesse estado de indetermi-
nação, ela depende de condições sociais que a explicam e de que, conseqüente-
DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL E DIREITO 11»?

mente, ela não pode ser desligada. Ê por isso que não é raro que nestas análises de
pura psicologia se encontrem misturados alguns pontos de vista sociológicos. Por
exemplo, dizem-se algumas palavras sobre a influência do estado gi-egário na
formação do sentimento social em geral 3 ; ou então indicam-se rapidamente as
principais relações sociais de que a solidariedade depende de maneira mais apa-
rente 9 . Certamente que estas considerações complementares, introduzidas sem
método, a título de exemplo e sugeridas ao acaso, não poderiam bastar para
elucidar grandemente a natureza social da solidariedade. Elas demonstram, pelo
menos, que o ponto de vista sociológico se impõe mesmo aos psicólogos.
O nosso método está assim completamente traçado. Já que o direito repro-
duz as formas principais da solidariedade social, não temos mais do que classificar
as; diferentes espécies de direito para procurar em seguida quais são as diferentes
espécies de solidariedade social que lhes correspondem. Desde já, é provável que
haja uma que simbolize essa solidariedade especial de que a divisão do trabalho é
a icausa. Feito isto, para medir a importância desta última bastará comparar o
número de normas jurídicas que a exprimem ao volume total do direito.
Para este trabalho, não nos podemos servir das distinções comuns dos juris-
consultos. Criadas pela prática, podem ser muito cômodas desse ponto de vista,
mas a ciência não pode contentar-se com estas classificações empíricas e aproxi-
madas. A mais divulgada é a que divide o direito em direito público e em direito
privado; o primeiro é suposto regular as relações entre o indivíduo e o Estado, o
segundo as relações dos indivíduos entre si. Mas quando se trata de analisar os
termos com mais minúcia, a linha de demarcação, que parecia tão nítida à primeira
vista, esbate-se. Todo o direito é privado no sentido em que são sempre e por todo
o lado os indivíduos que se encontram em presença e que agem;mas principalmente
todo o direito é público, no sentido em que ele é uma função social e que todos
os indivíduos são, embora a diversos títulos, funcionários da sociedade. As funções
maritais, paternais etc., não são delimitadas nem organizadas de maneira diferente
das funções ministeriais e legislativas e não foi sem razão que o direito romano
qualificou a tutela de munus publicum. O que é então o Estado? Onde começa e
onde acaba? Sabe-se quanto é controversa a questão; não é científico fazer
assentar uma classificação fundamental numa noção tão obscura e mal analisada.
Para proceder metodicamente é preciso encontrar alguma característica que
sendo essencial aos fenômenos jurídicos, seja susceptível de variar quando eles
variam. Ora, todo o preceito de direito pode ser definido; uma regra de conduta
sancionada. Por outro lado, é evidente que as sanções mudam conforme a gravidade
atribuída aos preceitos, o lugar que ocupam na consciência pública, o papel que
desempenham na sociedade. É conveniente assim classificar as normas jurídicas
segundo as diferentes sanções que lhes estão adstritas.
J Trata-se de duas espécies. Umas consistem essencialmente numa pena, ou,
pelo menos, numa limitação infligida ao agente; têm por objeto atingi-lo no seu

Bain, Émotions et Volonté,p. 117 e ss.. Paris, F. Alcan.


Spcncer, Príncipes de Psychologie, VIII Parte, cap. V, Paris, F. Alcan.
SOCIOLOGIA E D I R E I T O

pecúlio, ou na sua honra, ou na sua vida, ou na sua liberdade, privá-lo de qualquer


coisa de que goze. Diz-se que são repressivas; é o caso do direito penal. É verdade
que aquelas que estão adstritas às normas puramente morais têm o mesmo caráter:
apenas estão distribuídas de uma maneira difusa por toda a gente indistintamente,
enquanto que as do direito penal não são aplicadas senão por intermédio de um
órgão definido; estão organizadas. Quanto à outra espécie, ela não implica necessa-
riamente um sofrimento do agente, mas consiste somente na reposição das coisas,
no restabelecimento das relações atingidas na sua forma normal, quer o ato incri-
minado seja reconduzido pela força à forma de que se desviou, quer seja anulado,
isto é, privado de qualquer valor social. Deve-se portanto repartir em dois grandes
tipos as normas jurídicas, consoante sejam sanções repressivas organizadas ou
sanções apenas restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal; a segunda,
o direito civil, o direito comercial, o direito processual, o direito administrativo
e constitucional, abstração feita das normas penais que aí se podem encontrar.
Procuremos agora a que espécie de solidariedade social corresponde cada
um destes tipos. ( . . . )
O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele
cuja ruptura constitui o crime; designamos por este nome todo o ato que, num
qualquer grau, determina contra o seu autor essa reação característica a que se
chama a pena. Procurar que laço é este, é portanto perguntar qual é a causa da
pena, ou, mais claramente, em que é que o crime essencialmente consiste.
Há, sem dúvida, crime de espécies diferentes; mas entre todas essas espécies
há, não menos seguramente, qualquer coisa em comum. O que o prova, é que a
reação que determinam por parte da sociedade, ou seja a pena, é, salvo diferenças
de grau, sempre e por todo o lado a mesma. A unidade do efeito revela a unidade
da causa. Não apenas entre todos os crimes previstos pela legislação de uma só
e mesma sociedade, mas entre todos aqueles que foram ou que são reconhecidos
e punidos nos diferentes tipos sociais, existem seguramente semelhanças essenciais.
Por mais diferentes que à primeira vista pareçam os atos assim qualificados, é
impossível que não tenham qualquer fundo comum. Pois afetam por todo o lado
da mesma maneira a consciência moral das nações e por todo o lado produzem as
mesmas conseqüências. Todos eles constituem crimes, isto é, atos reprimidos
através de castigos definidos. Ora, as propriedades essenciais de uma coisa são as
que se observam por todo o lado onde essa coisa existe e que apenas pertencem a
ela.(...)
Resulta deste capítulo que existe uma solidariedade social que provém do
fato de um certo número de estados de consciência serem comuns a todos os
membros da mesma sociedade. E essa solidariedade que o direito repressivo
configura materialmente, pelo menos no que tem de essencial. A parte que tem na
integração geral da sociedade depende evidentemente da amplitude maior ou
menor da vida social que a consciência comum abarca e regulamenta. Quanto mais
relações diversas houver em que esta última faça sentir a sua ação, mais também
ela cria laços que prendem o indivíduo ao grupo; conseqüentemente, mais a
coesão social deriva completamente desta causa e dela traz a marca. Mas, por outro
DIVISÃO DO T R A B A L H O SOCIAL E DIREITO 107

lado, o número destas relações é ele próprio proporcional ao das normas repressivas;
determinando qual a fração do aparelho jurídico que representa o direito penal,
medimos portanto simultaneamente a importância relativa desta solidariedade. É
verdade que ao procedermos desta maneira não levamos em conta certos elementos
da consciência coletiva que, em virtude da sua menor energia, ou da sua indeter-
minação, permanecem estranhos ao direito repressivo, contribuindo sempre para
assegurar a harmonia social; são aqueles que são protegidos por penas simplesmente
difusas. Mas o mesmo se passa com as outras partes do direito. Não há nenhuma
delas que não seja completada pelos costumes, e como não há razão para supor
que a relação entre o direito e os costumes não seja a mesma nessas diferentes
esferas, esta eliminação não corre o risco de altbrar os resultados da nossa compa- R ^
ração. ( . . . ) \ 7] fe-
A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a solidarie- - 5 jg'
dade social, à qual corresponde este direito, é de uma espécie completamente :g c p
>
diferente. g-
0 que distingue esta sanção é que ela não é expiatória, mas reduz-se a uma
simples reposição das coisas. Um sofrimento proporcional ao dano não é infligido
àquele que violou o direito, ou qüe o desconhece; este é simplesmente condenado
a submeter-se-lhe. Se houver já fatos consumados, o juiz repõe-os tal como
deveriam ser. Ele dita o direito, rião dita penas. As perdas e danos não têm caráter
penal; é apenas um meio de voltar ao passado para o restituir tanto quanto possível
à sua forma normal. ( . . . )
Mas, se bem que estas normas estejam mais ou menos fora da consciência
coletiva, elas não dizem respeito somente aos particulares. Se assim fosse, o direito
restitutivo não teria nada em comum com a solidariedade social, porque as relações
que ele regula ligariam os indivíduos uns aos outros sem os vincular à sociedade.
Seriam simples acontecimentos da vida privada como, por exemplo, as relações
de amizade. Mas estamos longe de que a sociedade esteja ausente desta esfera da
vida jurídica. É verdade que, em geral, ela não intervém por si própria e pelo seu
próprio movimento; é preciso que seja solicitada pelos interessados. Mas, sendo
provocada, a sua intervenção nem por isso é menos a engrenagem essencial do
mecanismo, pois que ela o faz funcionar. É ela que dita o direito por intermédio
dos seus representantes. ( . . . )
Já que as normas de sanção restitutiva são estranhas à consciência comum,
as relações que determinam não são das que indistintamente atingem toda a gente;
quer dizer que estas se estabelecem imediatamente, não entre o indivíduo e a
sociedade, mas entre partes restritas e especiais da sociedade, que ligam entre si.
Mas, por outro lado, uma vez que esta não está ausente, é preciso que ela esteja
mais ou menos diretamente interessada, que lhe sinta as incidências. Então,
consoante a vivacidade com a qual as sente, intervirá mais ou menos prontamente
e mais ou menos ativamente por intermédio de órgãos especiais encarregados de
a representar. Estas relações são assim bem diferentes daquelas que o direito
repressivo regula, pois estas ligam diretamente, e sem intermediários, a consciência
particular à consciência coletiva, quer dizer, o indivíduo à sociedade.

1...
108 SOCIOLOGIA E DIREITO

Mas estas relações podem tomar duas formas muito diferentes: umas vezes
são negativas e reduzem-se a uma pt\ra omissão; outras são positivas ou de coope-
ração. Às duas classes de normas que determinam umas e outras, correspondem
duas espe'cies de solidariedade social que é necessário distinguir.

(Versão portuguesa de Maria Inês M a n s i n h o e E d u a r d o Freitas.)

DURKHEIM, Émile, A Divisão do Trabalho Social. 19vol. Tradução de Maria Inês Mansinho
e Eduardo Freitas. Lisboa, Editorial Presença, 1977, pp. 51-3, 58-9, 79-88, 130-31, 133 e
135.
41

I
C^S^fla^DIREITOGV 5 v. 3 14. I 1 p. Ibl • 1(16 I IAN- JUN 2007

M A X WEBER SOBRE DIREITO


E ASCENSÃO DO CAPITALISMO (1972)

David M. Trubek

MAX WE8ER ON LAWAND 7HE RISE QF CAPITAUSM

TRaouçAo José Rúfael Zullo Revisto técnica José Rodrigo Rodrigucz

RESUMO ABSTRACT
A TENDÊNCIA COMUM EM PENSAR "OIRElfO E DESENVOLVIMENTO" THE COMMON TENOENCY TO THINK 'LAV/ANO DEVELOPMENT'
COMO O ESTUDO OE PROBLEMAS EXCLUSIVOS AO SÉCULO XX AS THE STUOY OP PROBLEMS UNIQUE TO THE 20TH CENTURY
RESULTA. GERALMENTE. EM NEGLIGENCIA» TPA0ALH05 OFTEN RESULTS IN OUR NEGLECT OF THE GROUNDWORK
REALIZADOS POR ACA0ÉMIC05 OE ÉPOCAS ANTERIORES SOBRE ALREADY ESTABLISHED BY SCHOLARS OF AN EARLIER AGE

PROBLEMAS .SIMILARES. A CONCISA EXPLICAÇÃO DO PROFESSOR FACING SIMILAR PROBLEMS. PROFESSOR TRLJBEK'S CONCISE

TRUQEK DA CONTRIBUIÇÃO DE MAX WEBER A IE0RIA 00 "DIREITO DISTILLATION OX MAX WEOER'S CONTRIBUTION TO LAY/
AND DEVELOPMENT THEORY DEMONSTRATES THE CONTINUED
E DESENVOLVIMENTO" DEMONSTRA A CONTINUA VIABILIOAOE OA
ANALISE OE WEBER PARA USO ATUAL. VIABILITY OF WEBER'S ANALYSIS FOR CONTEMPORARY USE.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
DIREITO, ECONOMIA. MAX WEBER. CAPITALISMO. DESENVOLVIMENTO LAVT, ECONOMICS. MAX WEBER, CAPITALISM. DEVELOPMENT

os dias de hoje, especialistas no assunto novamente fazem especulações sobre

N a relação e n t r e direito e desenvolvimento. N o século XIX, pensadores c o m o


Maine, Durkheim e Weber, que estudaram a ascensão da civilização indus-
trial, consideravam o direito c o m o u m fator dominante nos processos que investiga-
ram e , por essa razão, contribuíram significativamente para a u m e n t a r nosso conheci-
m e n t o sobre o papel social do direito. N o entanto, até muito r e c e n t e m e n t e , os estu-
dos s o b r e direito e as ciências sociais não levaram adiante esta tradição e pouco foi
acrescentado ao trabalho inicial realizado pelos teóricos sociais clássicos. Durante os
ú l t i m o s anos esta questão foi novamente levantada, dando margem ao aparecimento
de u m a p e q u e n a , mas crescente, literatura contemporânea q u e busca investigar as
relações e n t r e os fenômenos jurídicos e as grandes mudanças sociais, econômicas e
políticas associadas à industrialização a que se costuma referir c o m o modernização 1 .
I I

1 5 2 I M A X W E B E R S O S R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O 119721 DAVID U. WUBCK

A literatura c o n t e m p o r â n e a deve m u i t o ao trabalho de Max Weber. D e n t r e


todos os autores clássicos, W e b e r foi q u e m d e m o n s t r o u maior interesse pelo direi-
to e pela e x p e r i ê n c i a j u r í d i c a . Q u e r r e c o n h e ç a m este fato ou não, os autores d e
ensaios recentes sobre "direito e m o d e r n i z a ç ã o " baseiam-se m u i t o em seus concei-
tos e teorias, assim c o m o e m seus e s t u d o s históricos comparativos sobre o papel
do direito na ascensão do c a p i t a l i s m o 2 . Apesar d e s t e renovado interesse pelo t r a -
balho de W e b e r e do c r e s c i m e n t o geral dos e s t u d o s sobre o autor, não há um tra-
balho q u e recolha e sistematize suas posições s o b r e a relação e n t r e o direito e a
3
organização e c o n ô m i c a capitalista. C o m o r e s u l t a d o , suas posições s o b r e o assun-
to r e c e b e m , g e r a l m e n t e , m e n o s atenção do q u e m e r e c e m ; são m a l - i n t e r p r e t a d a s e
utilizadas i n c o r r e t a m e n t e .
Dada a natureza do trabalho d e W e b e r sobre o direito, isso não chega a ser sur-
p r e e n d e n t e . Embora tivesse posições m u i t o claras sobre a relação e n t r e direito, e
desenvolvimento e c o n ô m i c o , W e b e r nunca as apresentou de f o r m a acessível. Suas
posições sobre o assunto são apresentadas e m diferentes ocasiões no vasto corpo d e
sua obra. M e s m o as extensas análises do direito, embora cheias d e conclusões
impressionantes e sugestivas, são i n c o m p l e t a s e e x t r e m a m e n t e difíceis d e acompa-
nhar. Assim, não é s u r p r e s a o - f a t o d e q u e os acadêmicos d e gerações posteriores
pensassem em W e b e r c o m o u m p o n t o d e partida difícil.
M e s m o assim, a obra de W e b e r é p o n t o d e partida essencial para trabalhos pos-
teriores. N e n h u m o u t r o a u t o r conseguiu igualar ou e x c e d e r a abrangência e a força
de suas análises. Sob sua prosa difícil e sua t e r m i n o l o g i a p o u c o familiar, ^ n c o n t r a m -
se trabalhos tão atuais q u a n t o a l i t e r a t u r a c o n t e m p o r â n e a e, g e r a l m e n t e , mais escla-
recedores. Meu objetivo neste ensaio é íázer c o m q u e o p e n s a m e n t o dc Weber sobre
a relação e n t r e direito e d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o seja mais acessível aos cientis-
tas sociais e àqueles q u e estudam o direito. Para atingir este fim, tentei apresentar
os conceitos que ele empregava, os m é t o d o s q u e usava, as teorias q u e desenvolveu
e as conclusões a q u e chegou sobre o papel das instituições jurídicas na ascensão do
capitalismo. Examinarei | suas opiniões básicas s o b r e o direito na economia e na
sociedade, o papel específico do direito no capitalismo e a maneira pela qual o
desenvolvimento do direito na Europa facilitou a ascensão do sistema capitalista
industrial m o d e r n o . Espero q u e esta análise contribua não apenas para o estudo da
relação e n t r e direito e m o d e r n i z a ç ã o , c o m o t a m b é m para o estudo de sua discipli-
na-mãe, a sociologia gerál do direito.

I. O DIREITO EM ECONOMIA E SOCIEDADE


Max W e b e r d e d i c o u g r a n d e p a r t e d e sua e n e r g i a para explicar p o r q u e o capitalis-
m o industrial a p a r e c e u n o m u n d o o c i d e n t a l , E m b o r a admitisse q u e esta fosse uma
questão histórica, W e b e r não l i m i t o u seu c a m p o aos m é t o d o s h i s t ó r i c o s . Tentou
©2Wf«M)DIREIT0GV 5 3 II. I I o. lül - 104 t JAN• ,'IÍN Zdgv I 1

c o n s t r u i r um e s q u e m a s o c i o l ó g i c o q u e dirigisse a pesquisa histórica.Tal e s q u e m a


identificava as p r i n c i p a i s d i m e n s õ e s analíticas da s o c i e d a d e e as e s t r u t u r a s c o n -
c r e t a s q u e c o r r e s p o n d i a m a elas. W e b e r c o n c e n t r o u - s e na e s t r u t u r a g o v e r n a m e n -
tal, e s t r u t u r a social, e c o n o m i a , religião e d i r e i t o e nas e s t r u t u r a s políticas,
sociais, e c o n ô m i c a s , religiosas e j u r í d i c a s d e d e t e r m i n a d a s s o c i e d a d e s . Ele sentia
q u e estas d i m e n s õ e s e e s t r u t u r a s associadas d e v e r i a m s e r separadas e investiga-
das de tal m a n e i r a q u e suas i n t e r - r e l a ç õ e s históricas p u d e s s e m ser m e l h o r c o m -
p r e e n d i d a s . U s a n d o estes m é t o d o s , a r g u m e n t o u , e v e n t o s h i s t ó r i c o s específicos
p o d e r i a m ser e x p l i c a d o s .
O "evento" q u e ele procurava explicar era o fato d e q u e o sistema m o d e r n o d e
capitalismo Industrial ( o u "burguês") surgiu na Europa e não cm outras partes do
planeta. O direito, ele pensava, tivera participação neste a c o n t e c i m e n t o . O direito
e u r o p e u tinha características únicas q u e o conduziram mais facilmente ao capitalis-
m o do que os sistemas j u r í d i c o s d e outras civilizações. Para d e m o n s t r a r e explicar
o significado destas características em relação ao d e s e n v o l v i m e n t o econômico,
W e b e r incluiu a sociologia do direito em sua teoria sociológica geral. Assim, o tra-
tado m o n u m e n t a l Economia e Sociedade, q u e apresenta uma análise compreensiva d e
seu p e n s a m e n t o sobre sociologia, inclui um d e b a t e detalhado dos tipos de direito,
u m a teoria sobre a relação e n t r e direito e a ascensão: d o capitalismo industrial e
estudos sociológicos comparativos que tentam c o m p r o v a r sua teoria*.
A decisão de W e b e r de incluir o direito e m uma teoria sociológica geral p o d e
ser explicada não apenas p o r seu histórico pessoal de jiirista e historiador do direi-
to, mas t a m b é m pelos m é t o d o s q u e empregava para a c o m p a n h a r o s u r g i m e n t o do
q u e ele chamava de capitalismo burguês, uma f o r m a peculiar de organização e ati-
vidade econômica. A p r e o c u p a ç ã o d e W e b e r era explicar a ascensão do capitalismo
no M u n d o O c i d e n t a l . Isso significava que ele precisava d e s c o b r i r a razão do capita-
lismo t e r surgido na Europa e não em outras p a r t e s do planeta. O melo para con-
segui-lo, i m a g i n o u , era c o n c e n t r a r - s e e m aspectos intrínsecos à sociedade européia
que, p o r t a n t o , talvez pudessem explicar p o r q u e o capitalismo se desenvolvera ali.
Esta técnica p o d e ser c l a r a m e n t e observada em suas sociologia do direito e sociolo-
gia d a religião. Esta última examina a relação e n t r e características peculiares á vida
religiosa ocidental e o "espírito do capitalismo", e n q u a n t o a primeira identifica
características peculiares aos sistemas d e direito ocidentais que foram especialmen-
t e favoráveis à atividade capitalista 5 . !
,
E m b o r a W e b e r acreditasse q u e o cRreito ocidental tivesse características p a r t i -
culares q u e ajudavam a explicar por qiie o capitalismo surgira p r i m e i r o na Europa,
ele n ã o pensava q u e apenas no O c i d e n t e existisse algo c h a m a d o "direito". W e b e r
c o n s t r u i u um c o n c e i t o d e direito a m p l o , q u e abrangia uma vasta gama d e f e n ô m e -
nos em sociedades bastante d i f e r e n t e s . M e s m o assim, traçou agudas distinções
e n t r e os sistemas de d i r e i t o d e d i f e r e n t e s sociedades. A maioria das sociedades
1 5 4 ' WEBER SOBRE DIREITO E ASCENSÃO DO CAPITALISMO l » 7 2 l o avio m. muBiK

organizadas t e m "direito", mas o sistema d e d i r e i t o e u r o p e u é significativamente


d i f e r e n t e dos o u t r o s . Wcber desenvolveu tipologias que lhe p e r m i t i r a m distinguir
o d i r e i t o e u r o p e u do a r r a n j o jurídico de outras civilizações e c o n d u z i r estudos his-
t ó r i c o s q u e visavam a d e m o n s t r a r as origens das peculiaridades do direito europeu.
Ao m e s m o t e m p o , por meio de análises teóricas paralelas, W e b e r descobriu ser
possível m o s t r a r c o m o c e r t o tipo de sistema jurídico se ajustava às necessidades do
capitalismo. Ele voltou à História para d e m o n s t r a r que, de todas as grandes civili-
zações - Europa, índia, Islã, China - apenas a Europa havia desenvolvido esta classe
particular de d i r e i t o 6 . Levando-se em conta q u e o capitalismo surgiu primeiro na
E u r o p a , esta análise sugeria que o direito e u r o p e u havia tido i m p o r t a n t e participa-
ção no s u r g i m e n t o do sistema econômico capitalista.
W e b e r enfatizava sua crença em que os aspectos peculiares ao direito da socie-
dade européia não eram m e r o s resultados ou reflexos de f e n ô m e n o s econômicos.
Explicita e r e p e t i d a m e n t e , ele negava q u e o s u r g i m e n t o destes aspectos peculiares
ao sistema d e direito europeu haviam sido causados pelo capitalismo. Rejeitando o
d e t e r m i n i s m o marxista, que afirmava q u e f e n ô m e n o s jurídicos são causados por
forças econômicas f u n d a m e n t a i s 7 , W e b e r d e m o n s t r o u que a peculiaridade dos siste-
mas de direito e u r o p e u s teria de ser explicada, f o r ç o s a m e n t e , p o r fatores não-eco-
nômicos, tais c o m o as necessidades internas da profissão jurídica e as necessidades
de organização política. Fatores econômicos - especificamente as necessidades eco-
nômicas das classes burguesas - foram i m p o r t a n t e s , mas não determinantes, na for-
mação das instituições de direito particulares à E u r o p a 8 .
Estas instituições e r a m , formal e e s t r u t u r a l m e n t e , diferentes das instituições de
outras civilizações, ou, c o m o define Weber, talvez e n g a n o s a m e n t e , diferentes em
seu g r a u de "racionalidade". As particularidades do direito e u r o p e u - e as afinida-
des e n t r e este sistema e o capitalismo — não se f u n d a m e n t a m apenas n o conteúdo
de proposições normativas substanciais, mas e m formas d e organização do direito e
nas resultantes características formais do p r o c e s s o jurídico. O s contrastes encontra-
dos p o r W e b e r e n t r e os sistemas de direito da Europa e os de outras civilizações
c o m o a China não se concentravam na presença ou na falta d e regras de direito espe-
cíficas, e m b o r a estas não fossem ignoradas 9 . Mais do que isso, ele estava preocupa-
do c o m questões c o m o : a organização d o direito era algo diferenciado ou algo
intTÍnseco à administração política e à religião? O direito era visto c o m o um corpo
de regras criadas p o r mãos humanas ou c o m o u m conjunto d e tradições imutáveis?
As decisões jurídicas e r a m determinadas p o r regras gerais prévias ou no ala de ura
m o m e n t o ? Ainda, as regras e r a m aplicadas universalmente a t o d o s os membros de
uma organização política ou havia diferentes classes de direito para diferentes gru-
pos de pessoas?
O sistema j u r í d i c o europeu era distinto e m todas estas dimensões. Ao contra,
rio dos sistemas jurídicos de outras g r a n d e s civilizações, a organização do direito
0 & K & 3 Q S 3 D I R E I T O GV 5 V. 3 H. t I p. lhl . 186 I JAN.JUN 200/ I 1 55

e u r o p e u era a l t a m e n t e específica, Os estados e u r o p e u s separavam o d i r e i l o d o s j


o u t r o s aspectos da atividade política. Havia g r u p o s d e juristas especializados ou
"privilegiados". As regras d e direito e r a m elaboradas d e maneira deliberada e a
criação destas regras estava relativamente livre da i n t e r f e r ê n c i a direta da religião e
de outras fontes de valores tradicionais. Decisões c o n c r e t a s e r a m baseadas na apli-
cação d e regras universais e a tomada d e decisão não estava sujeita à c o n s t a n t e
i n t e r v e n ç ã o política.
W e b e r acreditava q u e o d i r e i t o e u r o p e u era mais " r a c i o n a l " do q u e os siste-
mas de d i r e i t o de o u t r a s civilizações, ou seja, era a l t a m e n t e d i f e r e n c i a d o , c o n s -
t r u í d o d e m a n e i r a d e l i b e r a d a , geral e universal. Mas ele t a m b é m t e n t o u m o s t r a r
q u e n e n h u m a o u t r a civilização havia sido capaz d e d e s e n v o l v e r este tipo de o r g a -
nização d o d i r e i t o . O d i r e i t o e u r o p e u era o r e s u l t a d o da i n t e r a ç ã o e n t r e várias
f o r ç a s . Sua f o r m a final foi definida n ã o apenas pelas diversas c a r a c t e r í s t i c a s
p e c u l i a r e s da h i s t ó r i a do d i r e i t o o c i d e n t a l - e s p e c i a l m e n t e a tradição do d i r e i t o
r o m a n o e aspectos da o r g a n i z a ç ã o do d i r e i t o m e d i e v a l - mas t a m b é m f o r a m
m o l d a d a s pelas distintas e amplas t e n d ê n c i a s r e l i g i o s a s , e c o n ô m i c a s e políticas
da vida o c i d e n t a l . As o u t r a s civilizações q u e W e b e r e s t u d o u não tinham esta
h e r a n ç a j u r í d i c a p a r t i c u l a r e n ã o p u d e r a m d e s e n v o l v e r as idéias religiosas, as
e s t r u t u r a s políticas e os i n t e r e s s e s e c o n ô m i c o s q u e f a c i l i t a r a m o c r e s c i m e n t o do
d i r e i t o racional na E u r o p a .
A ausência do desenvolvimento de u m direito racional e m outras civilizações
a j u d o u a explicar p o r q u e apenas na Europa o capitalismo m o d e r n o e industrial
p ô d e aparecer, W e b e r acreditava que esta espécie d e capitalismo requeria u m a
organização do direito c o m um grau r e l a t i v a m e n t e alto d e "racionalidade". C o m o
este sistema era peculiar ao O c i d e n t e , o e s t u d o c o m p a r a t i v o de sistemas jurídicos
a j u d o u a r e s p o n d e r à questão básica p r o p o s t a por W e b e r : quais as causas da ascen-
são d o capitalismo na Europa.

II. RECONSTRUINDO A ANÁLISE DE WEBER: O CONCEITO


DE DIREITO E SUA RELAÇÃO COM A DOMINAÇÃO
Para e n t e n d e r c o m o W e b e r chegou a estas conclusões, é necessário reconstruir os
detalhes d e sua argumentação. A posição q u e , acima, afirmei defender, surge da aná-
lise das várias discussões sobre direito c capitalismo e m seu trabalho. C o m o W e b e r
não nos deixou uma obra finalizada e sistemática sobre estes temas, tentarei recons-
truí-la, o q u e nos p e r m i t i r á e n t e n d e r p o r q u e ele escolheu se concentrar na autono-
mia, generalidade e universalidade do sistema jurídico e u r o p e u ; o que o levou a sen-
tir q u e u m sistema c o m o este só poderia ter existido na Europa e por qual razão este
sistema foi necessário, ou ao menos contribuiu i m e n s a m e n t e , para o s u r g i m e n t o do
desenvolvimento e c o n ô m i c o capitalista.

I
Prof.Dr. Jaime Cunho
1 5 6 I MAX W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O 0 0 C A P I T A L I S M O (1972) | DAVI D M. TRUBEK
FCS/IFCH/UFPA

A. O C O N C E I T O W E B E R I A N O DE DIREITO.' C O A Ç Ã O , L E G I T I M I D A D E E R A C I O N A L I D A D E

Apesar d e sua predileção p o r definições cuidadosas, não acredito q u e W e b e r tivesse


uma idéia t o t a l m e n t e clara do q u e fosse "direito". E m b o r a , várias vezes, ele defina
e s p e c i f i c a m e n t e o ique e n t e n d e p o r direito, e m o u t r o s pontos d e seu trabalho o
d e b a t e e x t r a p o l a o«j limites q u e ele m e s m o havia definido. O t e r m o "direito" é usado
para descrever d i f e r e n t e s f e n ô m e n o ^ n o e n t a n t o , é possível identificar os elemen-
tos essenciais d o direito e estabelecerj as áreas nas quais f e n ô m e n o s jurídicos apre-
s e n t a m suas variaçpes mais i m p o r t a n t e s .
A discussão weberiana sobre o direito é m a r c a d a p o r alguns temas centrais. O
direito está associado à coação organizada, à legitimidade e n o r m a t i v i d a d e ; e à
racionalidade. Estes e l e m e n t o s m e r e c e m e x a m e separado.
W e b e r é f r e q ü e n t e m e n t e citado pela famosa definição do Capítulo í d e Economia
e Sociedade, na qual o direito é identificado apenas com p o d e r organizado ou coação
organizada. Ao e s t a b e l e c e r os conceitos f u n d a m e n t a i s d e seu sistema sociológico,
W e b e r a f i r m o u que:

Uma ordem será considerada... direito se for externamente garantida pela


probabilidade de que coação, física ou psicológica, será aplicada por um stajf
de pessoas autorizadas a fazer cumprir a ordem ou castigar sua violação. 1 0

Vista i s o l a d a m e n t e , esta d e f i n i ç ã o p a r e c e a b r a n g e n t e demais e, ao mesmo


t e m p o , r e s t r i t i v a d e m a i s . Por u m l a d o , ela n ã o p e r m i t e distinguir o d i r e i t o de
o r d e n s r e s g u a r d a d a s p o r ameaças e, assim, p a r e c e negar sua relação c o m as regras.
Por o u t r o lado, a f i r m a q u e r e g r a s sem u m m a q u i n á r i o c o e r c i v o o r g a n i z a d o não
p o d e m s e r c h a m a d a s de d i r e i t o . D e s t e m o d o , e s t a a f i r m a ç ã o p o d e s e r atacada
t a n t o p o r a q u e l e s q u e e s p e r a m q u e o d i r e i t o n ã o esteja vinculado a f o r ç a s políti-
cas organizadas, q u a n t o p o r a q u e l e s q u e e s p e r a m q u e o d i r e i t o não e s t e j a vincu-
lado a a ç õ e s r e s g u a r d a d a s p o r coação, sejam estas ações realizadas ou n ã o por
a u t o r i d a d e s políticas.
N ã o há d ú v i d a d e q u e W e b e r enfatizava a q u a l i d a d e c o e r c i t i v a do d i r e i t o .
C o m o d e m o n s t r a r e i , a coação j u r í d i c a é uma das chaves d e seu m o d e l o p a r a uma
e c o n o m i a de m e r c a d o f u n c i o n a l . N o e n t a n t o , analisando m e l h o r , p e r c e b e r e m o s
q u e W e b e r utilizava um c o n c e i t o m u i t o mais c o m p l e x o d e d i r e i t o do q u e o cita-
do a c i m a . D e f a t o , se visto no c o n t e x t o a p r o p r i a d o , a p r ó p r i a d e f i n i ç ã o sugere
q u e a c o a ç ã o era apenas u m d o s pilares da posição d e W e b e r . O o u t r o pilar era o
coriceito d e d i r e i t o c o m o uma f o r m a d e "organização legítima", um t e r m o que
W e b e r usa para se r e f e r i r a q u a l q u e r f o n t e e s t r u t u r a d a d e . r e g r a s g e r a i s para a
conduta c o r r e t a ' 1 .
Assim, no esquema w e b e r i a n o , o direito é uma subclasse d e u m a categoria cha-
mada d e organizações legítimas ou normativas. Todas estas organizações d e v e m ser
D&WÍ/OSlffiDIREITOGV 5 II, I I P. 151 - IBò 1 JAN-JUW 2007 i 1 5 7

( l ) sistemas s o c i a l m e n t e e s t r u t u r a d o s q u e c o n t ê m (2) c o n j u n t o s de proposições


normativas que (3) são, até c e r t o p o n t o , aceitas pelos m e m b r o s de um g r u p o social
c o m o definidos para seu p r ó p r i o b e m , i n d e p e n d e n t e m e n t e de estimativas p u r a m e n -
te Militaristas s o b r e a probabilidade da c o a ç ã o ' 2 ,
"Direito" é distinto d e outras o r d e n s normativas pelo fato de que há o envolvi-
m e n t o adicional d e agentes especializados q u e fazem as n o r m a s serem cumpridas
por meio de sanções coativas. " ' D i r e i t o . . . é s i m p l e s m e n t e uma ' o r d e m ' " , disse ele,
"dotada d e certas garantias específicas da probabilidade d e sua validade empírica".
' 3 A coação é introduzida para q u e Haja distinção e n t r e direito e convenção - dis-
tinção esta que W e b e r e x p l i c i t a m e n t e assinala c o m o p u r a m e n t e arbitrária - mas
t a n t o o direito q u a n t o a convenção devera ser legítimos. Por c o m b i n a r legitimida-
de e coação, o direito é t a n t o p o d e r q u a n t o a u t o r i d a d e : n e n h u m desses conceitos
polares é adequado, isoladamente, para fazer c o m p r e e n d e r a posição d e W e b e r
14
s o b r e o direito.
Assim, não d e v e m o s nos deixar enganar pela ênfase na coação p r e s e n t e na defi-
n i ç ã o original, W e b e r pensava que o direito fosse, assim c o m o os hábitos e as con-
venções, uma das fontes básicas de n o r m a s para a sociedade, um espaço e m q u e os
h o m e n s buscam d e t e r m i n a r c o m o deve ser seu c o m p o r t a m e n t o . As "ordens" dota-
das d e poderes coercitivos foram chamadas d e "direito", mas nem t u d o e m direito
é coação. Preceitos e princípios p o d e m ser definidos pela o r d e m jurídica e, m e s m o <5,
assim, serem aceitos c o m o obrigatórios, sem virtual coação. W e b e r viu que o direi-
to p o d e ser uma f o n t e de autoridade legítima na sociedade e ficou m u i t o interessa-
do nas razões pelas quais o H o m e m p o d e aceitar u m código de obrigações legais
sem s e r especificamente ameaçado por sanções. P o r t a n t o , ao e x p l o r a r a obra d e
W e b e r sobre o direito, não p o d e m o s ignorar seu aspecto n o r m a t i v o .
A f o r m a final d o d i r e i t o , na visão d e Weber, era a "racionalidade". W e b e r fazia
distinção e n t r e vários tipos de direito, hierarquizando-os d e acordo com seu grau
de racionalidade. U m a análise mais próxima nos mostra q u e o conceito w e b e r i a n o
d e racionalidade jurídica m e d e , na verdade, a extensão c o m que um sistema de
d i r e i t o é capaz de f o r m u l a r , promulgar e aplicar regras universais. Assim, e m b o r a
na análise d e W e b e r "direito" não seja necessariamente uma questão de regras (o
t e r m o "direito" r e f e r e - s e a uma categoria mais ampla, genérica), a maior distinção
e n t r e os tipos de d i r e i t o é sua capacidade de desenvolver um sistema de regras uni-
v e r s a l m e n t e aplicáveis. I.
R e c a p i t u l a n d o , os e l e m e n t o s essenciais dii a m p l o c o n c e i t o de " d i r e i t o " webe-
r i a n o são: um sistema de p a d r õ e s , m á x i m a s , p r i n c í p i o s ou regras de c o n d u t a
a c e i t o s , até c e r t o p o n t o , c o m o o b r i g a t ó r i o s pelas pessoas às quais são d i r i g i d o s e
r e s g u a r d a d o s p o r a g e n t e s especializados q u e e m p r e g a m sanções coercivas. C o m o
estas sanções são aplicadas c o n f o r m e u m s i s t e m a d e r e g r a s , o d i r e i t o é c h a m a d o
de "racional".
1 5 8 I MAX W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O 0 0 C A P I T A L I S M O (l?72| DAVIO M. TRUBEK

W e b e r se preocupava com as possíveis variações desta definição em duas d i m e n -


sões. O direito, c o m o W e b e r o enxergava, p o d e variar e m seu grau de racionalidade
e na natureza dc sua legitimidade. Mais do que isso, o grau d e racionalidade do direi-
to está relacionado á natureza d e sua legitimidade. Weber pesquisou variações his-
tóricas nestas dimensões para p o d e r d e t e r m i n a r seu significado em relação à ascen-
são do capitalismo.

I. VARIAÇÕES NA R A C I O N A L I D A D E J U R Í D I C A :
O S T I P O S DE " P E N S A M E N T O " J U R Í D I C O
Para poder explorar o significado histórico dos sistemas jurídicos, Weber construiu
tipos ideais para diferentes ordens jurídicas. Estes tipos eram artifícios metodológicos
que permitiam examinar e comparar os sistemas de direito de sociedades concretas.
Não refletiam um sistema de direito especifico em concreto, mas incluíam complexos
de características típicas, passíveis de serem encontradas e m sistemas reais, e que ilu-
minam os problemas que Weber visava explorar.
A classificação weberiana dos sistemas jurídicos deve ser estudada no c o n t e x t o d e
sua análise geral da "racionalidade". Ela tenta discriminar as dimensões da organização
do direito e da relação direito-sociedade que, segundo Weber, Influenciavam a racio-
nalidade. Estes vários tipos, portanto, evidenciam as diferenças existentes entre o
modo com que os sistemas jurídicos lidam com os problemas pertinentes à formula-
ção de n o r m a s dotadas de autoridade (criar as normas) e à aplicação de tais n o r m a s a
casos concretos (aplicar as normas).
Há várias maneiras possíveis de criar normas ou legislar. Uma sociedade pode, ou
não, ter um c o n j u n t o explícito d e preceitos jurídicos que cada um de seus m e m b r o s
deve aceitar como obrigatório. Se tais preceitos existirem, eles podem ser vistos
c o m o t e n d o sido deliberadamente construídos ou c o m o t e n d o sido entregues por um
legislador primordial que t e m , neste caso, uma qualidade sagrada e imutável. Se estes
preceitos f o r e m reconhecidos c o m o deliberadamente construídos, p o d e m ser vistos
apenas c o m o instrumentos para que um conjunto extrínseco de objetivos concretos
seja atingido, tais c o m o religião ou ideologia política e, portanto, devem ser obedeci-
dos apenas até que tais objetivos se realizem. Por o u t r o lado, este conjunto de precei-
tos p o d e ser visto c o m o independente de um conjunto específico de objetivos sociais
e, portanto, deve ser obedecido pelo seu valor intrínseco.
. Similarmente, a aplicação das normas tem suas variações características. Pode-se
chegar a decisões por meio d e considerações mágicas. Alguns casos podem ser decidi-
dos por indivíduos que, acredita-se, são dotados de alguma espécie de poder extraordi-
nário; e seus Julgamentos são obedecidos devido à crença em seus poderes mágicos. Por
outro lado, as decisões p o d e m ser baseadas em poderes mais mundanos. Do mesmo
modo, em uma orientação mais temporal, há a possibilidade de variações. Assim, a apli-
cação das leis pode ser dirigida à resolução de conflitos específicos e à equidade de uma
OSOfflSSfiSíDDIREITOGV S 3 ll. I I Ibl • IBò I JAU-ItlM 2I)(J7 1 1

situação concreta; também pocle ser dirigida à aplicação mais ou menos estereotipada de
um precedente ou à aplicação de regras gerais por meio de técnicas cognitivas. i
Weber preocupou-se em diferenciar estas variações dos sistemas de direito estudan-
do todo e qualquer sistema no qual as decisões são ( l ) determinadas por regras prévias
de aplicação universal e (2) estabelecidas por diferentes órgãos jurídicos.
Embora fossem estas as maiores preocupações d e Weber, ele mesmo se expressa-
va d e maneira muito diferente. O sistema weberiano é rotulado como uma tipologia
do "pensamento jurídico" e organiza os sistemas jurídicos com o que Weber chamou
d e racionalidade da elaboração e da aplicação das normas. Este aspecto do debate
levou a uma grande confusão sobre o p o n t o a que ele queria chegar. Nas discussões
sobre a obra de Weber, é raro ver as categorias de racionalidade relacionadas a teorias
implícitas d e diferenciação, generalidade e universalidade. Se fizermos tal relação, as
opiniões de Weber se t o r n a m mais claras.
Ò próprio Weber classificou os sistemas jurídicos e m diferentes categorias,
d e p e n d e n d o de c o m o o direito é elaborado e aplicado. O direito p o d e ser elaborado
e aplicado tanto irracionalmente quanto racionalmente. O direito pode ser (1) formal-
m e n t e ou (2) substancialmente irracional, ou (3) substancialmente ou (4) f o r m a l m e n -
te racional. Finalmente, o direito f o r m a l m e n t e racional pode ser formal tanto em sen-
15
tido "extrínseeo" quanto "lógico",
H á , portanto, duas grandes dimensões de comparação: a extensão da formalidade
d e u m sistema e a extensão d e sua racionalidade. Se analisarmos estes termos, percebe-
mos q u e "formalidade" pode ser definida c o m o "empregar critérios de decisão intrínse-
cos ao sistema de direito" e, portanto, a formalidade mede o grau de autonomia do sis-
t e m a . Por outro lado, "racionalidade" significa "seguir alguns critérios de decisão aplicá-
veis a todos os casos" e, portanto, a racionalidade m e d e a generalidade e a universalida-
de das regras empregadas pelo sistema. A relação entre a classificação d e Weber e os
conceitos de diferenciação e generalidade pode ser observada na seguinte tabela:

T A B E L A I: Classificação dos sistemas de direito pela f o r m a l i d a d e e racionalidade


d o p r o c e s s o de tomada d e decisões

GRAU DE GENERALIDADE
DAS N O R M A S J U R Í D I C A S

ALTO BAIXO

ALTO RACIONALIDADE IRRACIONALIDADE


GRAU DE DIFERENCIAÇÃO LÓGICO-FDRMAL FORMAL
DAS N O R M A S JURÍDICAS
BAIXO RACIONALIOAOE IRRACIONALIDADE
SUBSTANCIAL SUBSTANCIAL
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA 1 6 0 i M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O 0 0 C A P I T A L I S M O |I972| DAVID M. TRUBEK

A t o m a d a d e decisões j u r í d i c a s f o r m a l m e n t e i r r a c i o n a i s e s t á relacionada a
d e c i s õ e s ou r e v e l a ç õ e s p r o f é t i c a s . D e c i s õ e s são a n u n c i a d a s s e m q u a l q u e r refe-
r ê n c i a a p a d r õ e s gerais o u , ate m e s m o , às p r e o c u p a ç õ e s dos p a r t i c i p a n t e s da dis-
p u t a . O s c r i t é r i o s para a t o m a d a d e d e c i s õ e s são i n t r í n s e c o s ao s i s t e m a de direi-
to, mas d e s c o n h e c i d o s ; não há m e i q s para q u e um o b s e r v a d o r p r e v e j a a decisão
c o m a n t e c e d ê n c i a j o u e n t e n d a c o m ^ se c h e g o u a tal d e c i s ã o . D e c i s õ e s substan-
c i a l m e n t e irracionais utilizam c r i t é r i o s q u e p o d e m s e r i d e n t i f i c a d o s , mas que
são s e m p r e b a s e a d o s e m c o n s i d e r a ç õ e s éticas e práticas s o b r e os casos em ques-
tão. É possível e n t e n d e r tais d e c i s õ e s d e p o i s d e o c o r r i d o o f a t o , m a s , a não ser
q u e e x i s t a um sistqma d e p r e c e d e n t e s , é difícil g e n e r a l i z a r a p a r t i r de casos con-
c r e t o s . A t o m a d a ;de decisões s u b s t a n c i a l m e n t e r a c i o n a i s utiliza u m a série de
c r i t é r i o s ou políticas, mas tais c r i t é r i o s a d v ê m d e u m c o r p o d e pensamento
e x t e r n o ao s i s t e m a j u r í d i c o , p o r e x e m p l o , a r e l i g i ã o e a i d e o l o g i a política. Será
possível a p r e e n d e r a r a c i o n a l i d a d e d o f u n c i o n a m e n t o desse s i s t e m a até onde se
possam c o m p r e e n d e r os p r i n c í p i o s q u e o r i e n t a m o f u n c i o n a m e n t o do corpo de
p e n s a m e n t o q u e lhe é e x t e r n o . Mas isto é v e r d a d e i r o a p e n a s p a r c i a l m e n t e : pode
variar a m a n e i r a pela qual os p r e c e i t o s d e u m s i s t e m a e x t e r n o s e r ã o transforma-
dos em decisões j u r í d i c a s . A s s i m , e m b o r a e s t e t i p o de d i r e i t o e s t e j a mais aplo a
f o r m u l a r r e g r a s gerais se c o m p a r a d o aos d o i s tipos a n t e r i o r e s , ele se revela
m e n o s a p t o a fazê-lo do q u e o t i p o da r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l . Portanto, em
c o m p a r a ç ã o a esta q u a r t a classificação, estes t r ê s tipos d e s i s t e m a s de direito
a p r e s e n t a m u m b a i x o g r a u d e d i f e r e n c i a ç ã o , u m baixo g r a u d e g e n e r a l i d a d e de
r e g r a s , ou a m b o s . C o m o c o n s e q ü ê n c i a , é difícil p r e v e r a q u e e s p é c i e s de deci-
são s e r ã o capazes de c h e g a r .
Isto não é verdade para o d i r e i t o e u r o p e u , q u e W e b e r i d e n t i f i c o u com o tipo
da r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l . Este tipo d e sistema c o m b i n a u m alto grau de
diferenciação j u r í d i c a com u m a confiança substancial e m r e g r a s gerais pré-exis-
tentes para a t o m a d a de decisões j u r í d i c a s . Essas duas c a r a c t e r í s t i c a s têm uma
relação e s t r e i t a .
O q u e W e b e r q u e r d i z e r c o m " r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l ? " E por que ela
c o n d u z a regras gerais, u n i v e r s a l m e n t e aplicáveis? O p e n s a m e n t o j u r í d i c o é racio-
nal, pois r e m e t e a alguma justificativa q u e t r a n s c e n d e o caso c o n c r e t o e se baseia
em r e g r a s e x i s t e n t e s e c l a r a m e n t e d e f i n i d a s ; é f o r m a l , pois os c r i t é r i o s de decisão
são i n t r í n s e c o s a o sistema d e d i r e i t o ; e lógico, p o i s as r e g r a s e os princípios são
d e l i b e r a d a m e n t e c o n s t r u í d o s p o r f o r m a s especializadas d e p e n s a m e n t o jurídico,
baseados e m uma classificação a l t a m e n t e lógica; t a m b é m p o r q u e as decisões de
casos específicos são t o m a d a s p o r m e i o d e processos l ó g i c o - d e d u t i v o s especializa-
dos q u e p a r t e m de princípios ou regras p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o s . D e s d e que, em
um s i s t e m a c o m o o d e s c r i t o a c i m a , as d e c i s õ e s jurídicas p o s s a m ser baseadas ape-
nas em p r i n c í p i o s legais p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o s ; e d e s d e q u e o sistema exija
IBSWfe/MlDIREITOGV 5 II. I I P. Ibl - 166 I JAN.JUN 2007 i 1 6 1

que tais p r i n c í p i o s sejam c u i d a d o s a m e n t e e l a b o r a d o s , n o r m a l m e n t e , pela criação


de c ó d i g o s , as decisões jurídicas serão baseadas cm regras e tais regras s e r ã o gerais
c d e r i v a d a s d e f o n t e s jurídicas autônomas.
W e b e r citou o sistema de direito alemão d o final d o século XIX c o m o e x e m p l o
c o n c r e t o de um sistema do tipo lógico-formal e racional. Este sistema nasceu devi-
do às teorias da ciência do direito alemã e ao q u e W e b e r chama de "ciência jurídica
do D i r e i t o Civil dos Pandectistas", marcadas, ambas, por cinco postulados básicos:
( l ) toda decisão jurídica concreta é a aplisação de uma proposição jurídica abstrata
a u m a situação d e fato concreta; (2) em t o d o s os casos c o n c r e t o s , deve ser possível
c h e g a r a uma decisão por i n t e r m é d i o d e proposições abstratas com a utilização da
lógica jurídica; (3) o direito é, ou deve ser, t r a t a d o c o m o um sistema infalível; (4)
o q u e não p u d e r ser " i n t e r p r e t a d o " r a c i o n a l m e n t e é j u r i d i c a m e n t e i r r e l e v a n t e ; e (5)
16
toda ação h u m a n a é regida pelo direito.
N e s t e sistema, p r o p o s i ç õ e s jurídicas "abstratas" são organizadas sistematica-
m e n t e Da f o r m a d e um código civil; os juizes devem aplicar o código utilizando
f o r m a s específicas d e lógica profissional; toda ação humana é não apenas "regida
pelo d i r e i t o " c o m o t a m b é m n e n h u m o u t r o f e n ô m e n o social p o d e negar o que o
direito permite.

2. A R E L A Ç Ã O ENTRE E S T R U T U R A P O L Í T I C A E SISTEMA DE D I R E I T O :
OS T I P O S D E D O M I N A Ç Ã O E O S T I P O S D E D I R E I T O
A t e o r i a de W e b e r s o b r e a g ê n e s e da e s t r u t u r a d o d i r e i t o e u r o p e u deve s e r exa-
m i n a d a t e n d o e m m e n t e as características p e c u l i a r e s d e s t e s i s t e m a . Sob quais
c o n d i ç õ e s s u r g i u o d i r e i t o e u r o p e u ? Por q u e e s t e sistema só se d e s e n v o l v e u na
E u r o p a ? As r e s p o s t a s a estas p e r g u n t a s p r e c i s a m da análise da sociologia política
d e W e b e r , pois, nesta p a r t e de sua o b r a , W e b e r d e f e n d e a existência de uma rela-
ção m ú t u a e n t r e e s t r u t u r a s políticas e j u r í d i c a s . O sistema d e d i r e i t o e u r o p e u ou
" m o d e r n o " p o d e r i a e m e r g i r apenas sob c o n d i ç õ e s políticas específicas. Sua exis-
t ê n c i a está i n t i m a m e n t e ligada ao s u r g i m e n t o d o e s t a d o b u r o c r á t i c o m o d e r n o .
A o m e s m o t e m p o , e m c o n t r a p a r t i d a , e s t e tipo d e e s t a d o fazia-se d e p e n d e n t e d e
u m s i s t e m a d e d i r e i t o d o tipo m o d e r n o .
E m sua s o c i o l o g i a p o l í t i c a , W e b e r c o n s t r u i u classes ideais de sistemas polí-
t i c o s o u f o r m a s d e " d o m i n a ç ã o " ( a u t o r i d a d e l e g í t i m a ) . Estas f o r m a s d e d o m i n a -
ção s ã o organizadas d e a c o r d o c o m a t-eivindicação básica feita p o r estes siste-
m a s , o u r e g i m e s , d e q u e suas o r d e n s è : j a m o b e d e c i d a s . A classificação é feita
p o r m e i o d e c o n d i ç õ e s típicas d e l e g i t i m i d a d e ; justificativas p r i m á r i a s o f e r e c i -
das p o r estes r e g i m e s para e x e r c e r p o d e r s o b r e as pessoas. W e b e r e l e g e u este
a s p e c t o dos sistemas p o l í t i c o s c o m o base para a classificação q u e c o n s t r u i u p o r
s e n t i r q u e ele c o n s t i t u í a "a base de d i f e r e n ç a s b a s t a n t e reais na e s t r u t u r a e m p í -
17
rica d a d o m i n a ç ã o " .
1 6 2 I M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O |1?72| DA VIO M. rei/SfK

W c b e r i d e n t i f i c o u trcs f o r m a s ideais ou p u r a s de l e g i t i m i d a d e . São as cha-


madas f o r m a s d e " d o m i n a ç ã o " t r a d i c i o n a l , carismática e legal. M e m b r o s dc uma
o r d e m social t r a t a r ã o o r d e n s c o m o legítimas p o r q u e são e m i t i d a s conforme
hábitos imutáveis, p o r q u e são e m i t i d a s p o r indivíduos c o m características
e x t r a o r d i n á r i a s ou e x e m p l a r e s , ou p o r q u e estão apoiadas em u m a promulgação
18
jurídica consciente.
C o m o as decisões jurídicas são p a r t e da e s t r u t u r a dominação, devem ser legiti-
madas, assim c o m o todas as ações dos governantes. C o m o tais decisões são parle do
padrão d e dominação, sua legitimidade deve ser consistente c o m a reivindicação,
básica feita pelo sistema quanto à lealdade dos h o m e n s . Assim, cm uma análise ideal,
o direito está associado a todos os três tipos de dominação c cada um destes tipos
puros c d o t a d o de uma f o r m a característica d e processo judicial e u m a base carac-
terística para a legitimação de suas decisões jurídicas. Nas formas de dominação tra-
dicionais, a tomada d e decisões é empírica e justificada com base e m tradições Imu-
táveis. Nas formas d e dominação carismáticas, a população aceita o direito que lhe
é i m p o s t o porque ele se origina de um líder extraordinário e toma a f o r m a de toma-
da dc decisões caso-a-caso ou instantâneas.
N e s t e s dois tipos de dominação, o d i r e i t o t o r n a - s e legítimo p o r fatores extrin-
secos. Mas q u a n d o o "direito", d e maneira g e n é r i c a , torna-se d i r e i t o racional, ele
t a m b é m se t o r n a seu p r ó p r i o princípio d e legitimação e a base d e toda dominação
legítima. Esta é a natureza característica d o d i r e i t o " m o d e r n o " e, portanto, do
"estado m o d e r n o " .
W e b e r estabeleceu uma relação m u i t o p r ó x i m a e n t r e os tipos d e dominação e
os tipos d e " p e n s a m e n t o jurídico". A dominação legal é baseada na racionalidade
lógico-formal, que p o d e existir apenas no c o n t e x t o deste tipo de dominação. Mais
d o q u e isso, Weber sugeriu que, c o m o o "direito" (em u m sentido geral) evoluiu
para o direito m o d e r n o , racional, as f o r m a s de dominação evoluíram para o estado^
19
m o d e r n o , criador e criatura deste tipo d e direito.
Este fato se t o r n a claro apenas sob detalhado exame destes dois tipos ideais.
D o m i n a ç ã o legal existe apenas q u a n d o presentes as seguintes condições: ( l ) há nor-
mas de aplicação geral estabelecidas; (2) acredita-se que o c o r p o d o direito é um
sistema consistente d e regras abstratas e q u e a administração do direito consiste na
aplicação destas regras a casos particulares; e é limitada por elas; (3) os "superiores"
t a m b é m estão sujeitos a ordens impessoais; (4) deve-se obediência ao direito e não
a o u t r a f o r m a qualquer d e organização social; e (S) deve-se obediência apenas den-
t r o de uma esfera delimitada racionalmente ( j u r i s d i ç ã o ) . 2 0
Assim, o conceito de "direito" c o n t i d o na noção d e racionalidade lógico-formal
está incluído c o m o um dos elementos essenciais em u m sistema de dominação legal.
Ao m e s m o t e m p o , apenas a racionalidade lógico-formal p o d e m a n t e r o "sistema dc
regras abstratas consistente" necessário para a dominação legal. N e n h u m outro tipo
t t e a t e t ó ® D I R E I T O GV 5

dc p e n s a m e n t o jurídico p o d e criar n o r m a s sistemáticas gerais e garantir que elas, e


apenas elas, d e t e r m i n a r ã o a f o r m a final das decisões jurídicas.
Ao pesquisar outras f o r m a s d e direito, ou de p e n s a m e n t o jurídico, W e b e r dei-
xou claro que elas são diferentes do tipo m o d e r n o o racional p o r q u e n ã o são capa-
zes do criar u m sistema de regras gerais. A irracionalidade forma! (magia e p r o f e -
cias) não trabalha com o conceito d e regras gerais. A Irracionalidade substancial
é o r i e n t a d a c o n f o r m e o caso c o n c r e t o c preocupa-sc apenas com a imparcialidade
de uma situação individual. 2 2 A racionalidade substancial, por outro lado, é, d e
c e r t o m o d o , governada por regras - p o r isso é chamada de "racional" - mas tais
regras são princípios de um c o r p o de p e n s a m e n t o e x t e r n o ao direito, tal c o m o uma
23
religião, uma filosofia ética ou uma ideologia. Este tipo d e direito será constan-
t e m e n t e t e n t a d o a chegar a resultados específicos, ditados pelos valores das premis-
sas deste c o n j u n t o e x t e r n o d e princípios, que não são n e m gerais, nem previsí-
v e i s . 2 4 C o m o não existe um sistema cognitivo que permita a um observador prever
q u a n d o estes resultados específicos irão ocorrer, este tipo d e direito mostra um
baixo grau d e racionalidade.
W e b e r sublinhou a relação e n t r e d o m i n a ç ã o legal e direito europeu ao descre-
ver os o u t r o s tipos de dominação. Assim c o m o o direito f o r m a l m e n t e racional é
necessário para q u e seja criada uma situação na qual a dominação possa ser racio-
n a l m e n t e legitimada, outras formas d e legitimação desencorajam o s u r g i m e n t o do
d i r e i t o racional. "O tradicionalismo coloca sérios obstáculos no caminho da regula-
25
ção f o r m a l m e n t e racional...". Nas sociedades tradicionais, de acordo com Weber,
não há c o m o existir um direito especifico, i n t e n c i o n a l m e n t e p r o m u l g a d o (legisla-
ção), pois um p r o c e d i m e n t o c o m o esse seria inconsistente c o m a reivindicação do
g o v e r n a n t e à legitimidade. As o r d e n s d e v e m ser obedecidas apenas se p u d e r e m ser
relacionadas a princípios e t e r n o s , imutáveis. Mais do q u e isso, o governante tradi-
cional deve basear qualquer regulação da economia e m "valores utilitários, absolu-
26
tos o u d e b e m - e s t a r social". Isto é verdadeiro p o r q u e , e m b o r a sua legitimidade
seja baseada na aderência a princípios tradicionais, para que a dominação seja b e m -
sucedida, o g o v e r n a n t e t a m b é m deve m a n t e r o b e m - e s t a r econômico de seus cida-
dãos. Uma situação c o m o esta, concluiu Weber, "destrói o tipo de racionalidade for-
27
mal originada a p a r t i r de uma o r d e m jurídica técnica". A autoridade carismática
t a m b é m desencoraja o s u r g i m e n t o do direito racional m o d e r n o ; W e b e r o b s e r v o u
q u e a autoridade burocrática (ou jurídica) "é especificamente raciona] no sentido d e
estar ligada a regras i n t e l e c t u a l m e n t e analisáveis, e n q u a n t o a autoridade carismáti-
ca é especificamente irracional no sentido de ser estranha a todas as regras." 2 8
Tal análise deixa evidente q u e o direito europeu difere dc outros tipos de direito
em várias dimensões. Ao contrário de outros tipos d e direito, o direito europeu
desenvolveu corpos de regras aplicadas por m e i o de procedimentos formais, garantin-
d o q u e tais regras serão obedecidas em todos os casos. Por estas razões, ele restringe
Prof. Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA 164 • MÁX W É B E R S O B R E O I R E I T O 6 A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O ÍI972I DAVIOM. TRU8BK

ações arbitrárias dos g r u p o s dominantes e, em p a r t e como resultado disso, torna-se


altamente previsível. Assim, no d i r e i t o e u r o p e u , as regras q u e g o v e r n a m a vida eco-
nômica são facilmente determinadas; este tipo de o r d e m jurídica elimina um elemen-
to da incerteza econômica. A calculabilidade do direito e u r o p e u foi sua maior contri-
buição para a atividade econômica capitalista,
A tabela seguinte mostra a r e l a ç ^ j e n t r e direito e os tipos de estruturas políticas
(dominação), indicando o grau de discnicionariedade (discrecion) conferida pelo sistema
aos governantes e o grau relativo de facilidade na determinação das regras que gover-
nam a vida econômica. A estrutura política determina qual tipo de o r d e m jurídica pode
prevalecer e, assim, tem efeito sobre a função econômica q u e ela p o d e exercer.

T A B E L A I I : Administração, direito e regulamentação e c o n ô m i c a sob


os diferentes tipos p u r o s de dominação

TIPO DE DOMINAÇÃO

TRADICIONAL CAJUSMÁTÍCA LEGAL

A QUEM S E DEVE INDIVÍDUOS D E S I G N A D O S INDIVÍDUOS REGRAS APLICADAS,


OBEDIÊNCIA POR PRÁTICAS CONSIDERADOS F O R M U L A D A S DE
TRADICIONAIS EXTRAORDINÁRIOS ACORDO COM
E DOTADOS D E C R I T É R I O S RACIONAIS
PODERES EXCEPCIONAIS

0 DIREITO É L E G I T I M A D O ORIGEM NA TRADIÇÃO. ORIGEM EM UM LÍDER ORIOEM EM APLICAÇÕES


POR TODO 0 DIREITO É CARISMÁTICO. RACIONAIS. TODO 0 OlftjlTO '
CONSIDERADO COMO TODO 0 D I R E I T O É É DELIBERADAMcNTE
"CONSTRUÍOO" POR
PARTE D E N O R M A S P R E - P R b C L A M A O O PELO
TÉCNICAS LÓGICAS
EXISTENTES L Í D E R E VISTO C O M O
APLICAOAS POR UMA
J U L G A M E N I O OU AUTORIDADE CUJO PODER c
P R O F E C I A DIVINA JURiOICAMENTE RJNDAOO E
CUE AGE DE ACORCO COMAS
R E G R A S JURÍDCA5.

N A T U R E Z A DO P R O C E S S O EMPÍRICA / TRAOICIONAL ORIENTADA PELO CASO/ GERAL /RACIONAL. OS


J U D I C I A L E F O R M A OE TOMADA O E D E C I S Õ E S PROFÍTICA J U L G A M E N T O S C A S O S SÀO DECI0I00S POR
JUSTIFICATIVA D E CASO-A-CASO. CONCRETOS CASO-A- MEIO OE REGRAS FORMAIS E
OECISÕES ( P R E C E D E N T E S POOEM. OU CASO. J U S T I F I C A D O S PniNCÍPlOS ABSTRATOS E
NÃO. S E R C O N S I D E R A D O S ! COMO PROFECIAS JUSTlFICAOOS PELA
RACIONALIDADE 0 0 PROCES-
SO D E TOMADA OE DECISÕES.

E S T R U T U R A OA PATRIARCAL * NÃO HÁ UMA ADMINIS- BUROCRÁTICA.


AOMINISTRAÇÃO PESSOAL RECRUTADO TRAÇÃO ESTRUTURADA. A D M I N I S T R A Ç Ã O ALTA-
POR LAÇOS TRADICIONAIS. SELEÇÃO INSTANTÂNEA M E N T E ESTRUTURADA POR
TAREFAS A L O C A D A S OE P E S S O A L 8 A S E A D A E M P R O F I S S I O N A I S EM UM SIS-
OISCRICIONARIAMENTE QUALIFICAÇÕES CARIS- T E M A HIERÁROUICO COM
POR UM S U P E R I O R MÁTICAS. S E M D I F E R E N C I - J U R I S D I Ç Ã O RACIONAL-
A Ç Ã O OE TAREFAS. M E N T E DELIMITADA

J S R A U DE P O D E R D E ALTO ALTO BAIXO


J U L G A M E N T O DO
GOVERNANTE

FACILIDADE DE BAIXO BAIXO ALTO


DETERMINAÇÃO DAS
R E G R A S QUE GOVERNAM A
ECONOMIA
I I

CBEWGa&SlDIREITOGV 5 ». 3 ... I I r. l i l • 101 I JAN.JUN 200/ I 1 6 5

D . O S U R G I M E N T O DA " L E C A L I S M O "

O q u e surge a p a r t i r d e s t e c o m p l e x o sistema é a imagem d o c r e s c i m e n t o d e um


c e r t o tipo d e s o c i e d a d e . Nesta sociedade, a principal f o n t e d e organização n o r m a -
tiva é um c o n j u n t o d e regras l o g i c a m e n t e c o n s i s t e n t e , e l a b o r a d o d e f o r m a especia-
lizada. Estas regras são criadas pela utilização de f o r m a s a l t a m e n t e especializadas
de p e n s a m e n t o q u e p e r m i t e m a elaboração de um sistema intelectual q u e só p o d e
ser aplicado por profissionais ITeinadós. E m b o r a os valores refletidos neste c o n j u n -
t o d e n o r m a s t e n h a m c o m o f o n t e algo e x t e r n o a esta profissão especializada, eles
t e r ã o reflexo s o b r e tais n o r m a s apenas se f o r e m i n c o r p o r a d o s ao sistema intelec-
tual elaborado p o r estes profissionais. Apenas as n o r m a s jurídicas elaboradas p o r
este m é t o d o p o d e m ser e m p r e g a d a s na resolução de conflitos e n t r e m e m b r o s da
s o c i e d a d e . Q u a l q u e r c o m p o r t a m e n t o q u e não for r e g u l a d o desta maneira c f o r -
m a l m e n t e livre.
Para q u e e s t e sistema f u n c i o n e , deve haver uma clara d i f e r e n c i a ç ã o de o u t r a s
f o n t e s de organização n o r m a t i v a . O d i r e i t o deve t o m a r o lugar d e o u t r o s sisLemas
q u e e x e r ç a m influência sobre a lealdade dos seres h u m a n o s : deve ser t a n t o a u t ô -
n o m o quanto supremo.
O d i r e i t o d e v e s e r s e p a r a d o d o p o d e r e da religião se q u i s e r atingir o o b j e t i -
vo d e f o r m u l a r e c o n s e r v a r r e g r a s gerais não a m b í g u a s . W e b e r enfatizava c o n s -
t a n t e m e n t e o fato d e q u e "o p o d e r t e m razões q u e a p r ó p r i a razão d e s c o n h e c e " ;
que os governantes serão constantemente tentados a ^ c r i f i c a r princípios univer-
29
sais e m favor d e o b j e t i v o s p a r t i c u l a r e s c o n v e n i e n t e s . Ná l i n g u a g e m da t e o r i a
c o n s t i t u c i o n a l n o r t e - a m e r i c a n a , os d e t e n t o r e s d o p o d e r serão "levados a t o m a r
d e c i s õ e s d e a c o r d o c o m os r e s u l t a d o s finais." S i m i l a r m e n t e , o n d e o d i r e i t o se
m i s t u r a à religião, s u r g i r ã o pressões para s a c r i f i c a r a g e n e r a l i d a d e e m favor d e
fins é t i c o s c o n c r e t o s . 5 0
Mas não é s u f i c i e n t e q u e o d i r e i t o seja s e p a r a d o d e o u t r a s f o n t e s d e .controle
social. N ã o é s u f i c i e n t e q u e as regras existam apenas e m sentido abstrato. Elas
d e v e m existir para c o n t r o l a r toda a vida social e o d i r e i t o deve t o m a r o lugar das
31
o u t r a s formas d e organização n o r m a t i v a . Se isto não acontecer, as regras j u r í -
dicas t e r ã o um i m p a c t o social limitado.
A autonomia d o d i r e i t o implica em u m a e s t r u t u r a jurídica d i f e r e n c i a d a .
H a b i l i d a d e s , papéis e tipos d e p e n s a m e n t o c a r a c t e r í s t i c o s são necessários para q u e
u m a s o c i e d a d e e l a b o r e e c o n s e r v e regras utilversais. D e v e haver uma profissão
a l t a m e n t e especializada para f o m e n t a r e m a n t e r tais qualidades. C o m o tipos
c a r a c t e r í s t i c o s d e p e n s a m e n t o são elementos-'essenciais para a e s t r u t u r a social d o
J2
d i r e i t o m o d e r n o , deve haver u m t r e i n a m e n t o a l t a m e n t e especializado.
E s t e m o d e l o p o d e s e r c h a m a d o d e "legalismo", para s u g e r i r uma sociedade
d o m i n a d a por um sistema d e regras a u t ô n o m o , N e s t e m o d e l o , as regras são o b e -
d e c i d a s p o r q u e se acredita q u e sejam utilizadas d e m a n e i r a r a c i o n a l . D a d o o a l t o
1 6 6 1 MAX WEBER SOBRE DIREITO E ASCENSÃO 0 0 CAPlfAUSMO I197ZI O AVIO M. TRUBSK

grau d e diferenciação do m a q u i n á r i o jurídico e o declínio de outras f o r m a s de


c o n t r o l e social, o H o m e m , nesta utopia dos profissionais d o direito, vive em um
universo de valores a l t a m e n t e d e t e r m i n á v e i s . Ele sabe, ou p o d e aprender, quais
são seus devores e d i r e i t o s , pois p o d e prever c o m u m alto grau de certeza quan-
do a coação jurídica será e m p r e g a d a , e, ao m e s m o t e m p o , sabe q u e n e n h u m a o u t r a
f o n t e d e c o n t r o l e social restringirá o c o m p o r t a m e n t o q u e o direito p e r m i t e .
Estas condições, peculiares à história e u r o p é i a , pensava Webcr, levaram ao
s u r g i m e n t o d o legalismò. Fatores religiosos, políticos, e c o n ô m i c o s e jurídicos
c o n t r i b u í r a m para a o c o r r ê n c i a d e tal f e n ô m e n o . N o O c i d e n t e , o direito religio-
so e o direito secular f o r a m separados, p e r m i t i n d o o divórcio e n t r e n o r m a s éticas
e n o r m a s jurídicas. Ao m e s m o t e m p o , a b u r o c r a t i z a ç ã o da Igreja Católica e seu
legado de direito r o m a n o , levaram o d i r e i t o c a n ô n i c o a se t o r n a r significativamen-
te mais racional d o q u e a maioria das o r d e n s teocráticas de direito. Os reis e u r o -
peus, em sua luta por p o d e r c o n t r a o u t r o s g r u p o s políticos, viram c o m o necessá-
rias a criação de q u a d r o s b u r o c r á t i c o s e a f o r m a ç ã o de alianças com a classe b u r -
guesa em ascensão. C o m o f o r m a d e levar adiante seus p r ó p r i o s interesses, t a n t o
os g r u p o s administrativos q u a n t o os g r u p o s m e r c a n t i s r e q u e r e r a m sistemas d e
direito mais racionais e d e t e r m i n á v e i s , requisição esta q u e os g o v e r n a n t e s patriar-
cais t i v e r a m dificuldade d e recusar, e m b o r a o q u e tenha r e s u l t a d o disso fosse, em
p a r t e , uma limitação d e seus p o d e r e s .
Finalmente, desenvolvimentos a u t ô n o m o s da e x p e r i ê n c i a jurídica c o n t r i b u í -
ram com um e l e m e n t o essencial para a concretização d e s t e avanço e m direção à
racionalidade d o direito. U m desses d e s e n v o l v i m e n t o s foi a separação e n t r e elabo-
ração e aplicação das n o r m a s , u m f e n ô m e n o q u e Weber pensava ser especialmente
acentuado no p e r í o d o inicial d o direito alemão. Tal d e s e n v o l v i m e n t o foi condição
necessária para o e s t a b e l e c i m e n t o de u m processo de p r o d u ç ã o normativa cons-
ciente e, p o r t a n t o , para a secularização do direito. Esta diferenciação o c o r r e u , de
maneira mais c o m p l e t a , nos sistemas ocidentais. Além disso, apenas no O c i d e n t e
surgiu a noção de um direito "natural" universal, q u e sugeria a possibilidade d e
regras particulares transcendentais e antigas n o r m a s tradicionais. Além disso, a
influência d o direito R o m a n o , com suas técnicas lógicas especiais, adicionou outra
característica única ao direito e u r o p e u . As universidades da Europa Continental
haviam desenvolvido um e s t u d o sistemático do direito R o m a n o , empregando téc-
nicas lógicas e a l t a m e n t e abstratas. Destas universidades surgiram profissionais
especializados, treinados para pensar no direito c o m o uma ciência. Foi a existência
deste g r u p o d e notáveis, treinados em m é t o d o s d e análise j u r í d i c a , que possibili-
tou a codificação e a racionalização do direito, requerida p o r vários g r u p o s políti-
cos e e c o n ô m i c o s . Uma técnica viável e racional de analisar o direito, combinada a
fortes necessidades econômicas e políticas, fez nascer a m o d e r n a racionalidade do
direito. Tais d e s d o b r a m e n t o s , por sua vez, d e r a m força ao estado b u r o c r á t i c o
®BT9itefta)DIREITO<3V 5 V. STT. I I *. 151 . [06 I M N - J U N 2007 1 1 Ó 7

m o d e r n o , q u e baseia sua reivindicação à obediência na criação c conservação d e


u m sistema dc regras racionais. Assim, o direito racional e a d o m i n a ç ã o legal
d e s e n v o l v e r a m uma relação d e simbiose. E, e n q u a n t o se desenvolviam, t o m a r a m o
l u g a r d e outras Formas de c o n t r o l e social.
U m dos elementos mais i m p o r t a n t e s da história do direito e u r o p e u , c um dos
conceitos-chave para e n t e n d e r o legalismo, é o t r a t a m e n t o q u e Weber dá ao surgi-
m e n t o dc uma profissão jurídica distinta. Este a c o n t e c i m e n t o não foi apenas í m p a r ;
foi a b s o l u t a m e n t e essencial para o s u r g i m e n t o d e uma racionalidade lógico-formal
c s e r v e c o m o base para g r a n d e p a r t e da dinâmica m o d e r n a do legalismo.
W e b e r argumentava que apenas no ocidente os profissionais do direito surgiram
c o m o um " g r u p o de status" distinto. Um g r u p o d e scatus c uma organização fundada
em educação f o r m a l , prestígio o c u p a d o n a l ou estilo d c vida distinto. 5 * Podem ser
f o r m a d o s a p a r t i r de um c o m p a r t i l h a m e n t o d e idéias, tais c o m o crença política ou
fé religiosa. Desde q u e a inclusão e m tais g r u p o s resulte na criação de interesses
c o n c r e t o s , seus participantes se c o m p r o m e t e m c o m as idéias que moldaram a orga-
nização. Assim, estes g r u p o s se t o r n a m os fatores históricos pelos quais interesses
ideais - em oposição a materiais - se t o r n a m a base dos conflitos sociais. G r u p o s dc
-status Influenciam a história p o r q u e o h o m e m s e m p r e lutará para conservar as idéias
55
q u e s e r v e m de base aos g r u p o s a q u e p e r t e n c e .
Idéias sobre a natureza do direito p o d e m estimular a f o r m a ç ã o de grupos c o m o
estes e as necessidades destes g r u p o s p o d e m levar ao desenvolvimento d e distintas
c o n c e p ç õ e s do direito. O s u r g i m e n t o d e uma profissão juridica distinta no O c i d e n t e
n ã o apenas estimulou o c r e s c i m e n t o da idéia de q u e o direito é uma técnica autô-
n o m a de organização social; t a m b é m fez c o m q u e esta idéia se tornasse base d e con-
flitos sociais reais. A racionalidade l ó g i c o - f o r m a l é uma versão e x t r e m a da noção
básica d c q u e o direito é uma técnica a u t ô n o m a d e l i b e r a d a m e n t e moldada que p o d e
ser aplicada na resolução de conflitos sociais. U m a noção c o m o esta só poderá sur-
g i r o n d e a profissão jurídica sc d i f e r e n c i o u , 3 6 e, u m a vez q u e tenha surgido, torna-
se a base da coesão social dos profissionais d o d i r e i t o , c o m p r e e n d i d o s c o m o u m
g r u p o de status. Assim, uma vez estabelecido o legalismo, p o d e m surgir conflitos
e n t r e profissionais do direito c o m p r o m e t i d o s c o m a n o ç ã o d e ura direito elaborado
d e m a n e i r a fixa e f o r m a l , e facções políticas e econômicas q u e d e f e n d e m políticas
substantivas especificas ou resultados e c o n ô m i c o s q u e ameaçam a autonomia jurídi-
37
ca q u e o f o r m a l i s m o tenta conservar.

III. LEGALISMO E CAPITALISMO: RECONSTRUINDO


A TEORIA DE WEBER SOBRE O DIREITO NA VIDA ECONÔMICA
T e m o s agora a maior p a r t e dos e l e m e n t o s q u e precisamos para e n t e n d e r a teoria d e
W e b e r sobre a relação e n t r e o s u r g i m e n t o d o direito m o d e r n o e o capitalismo.
ProíDr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA 1 6 8 I M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O 119721 DAVI D M. TRUBEK

E x a m i n a m o s sua sociologia do d i r e i t o , q u e identifica tipos d i s t i n t o s de sistemas


j u r í d i c o s , e sua sociologia política, q u e m o s t r a q u e a e s t r u t u r a d e p o d e r determi-
na, ate c c r t o p o n t o , o tipo de o r d e m j u r í d i c a q u e p o d e existir. Vimos porque
W c b c r pensava q u e o legalismo se d e s e n v o l v e r a na Europa. A g o r a , devemos nos
c o n c e n t r a r e m sua sociologia e c o n ô m i c a , q u e se d e b r u ç a s o b r e a dinâmica dos
m e r c a d o s . Esta análise m o s t r a r á p o r q u e c a p i t a l i s m o e l e g a l i s m o e s t ã o intimamen-
te r e l a c i o n a d o s . ;
Em sua s o c i o l o g i a e c o n ô m i c a , W e b c r r e s s a l t o u a i m p o r t â n c i a de dois aspec-
tos d o d i r e i t o para o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a : ( I ) s e u r e l a t i v o grau de caleu-
labilldadc e ( 2 ) sua c a p a c i d a d e de d e s e n v o l v e r p r o v i s õ e s substantivas - principal-
m e n t e r e l a c i o n a d a s á l i b e r d a d e d e c o n t r a t o - necessárias ao f u n c i o n a m e n t o do
sistema d e m e r c a d o s .
A p r i m e i r a razão era a mais i m p o r t a n t e das duas. W e b e r a f i r m a v a q u e o capi-
talismo .requer u m a organização n o r m a t i v a a l t a m e n t e calculávcl. Sua pesquisa
sobre tipos d e d i r e i t o indicava q u e apenas o d i r e i t o m o d e r n o e racional, ou a
racionalidade l ó g i c o - f o r m a l , p o d e r i a m p r o v e r a calculabilidade necessária. 0
legalismo auxiliou o d e s e n v o l v i m e n t o do capitalismo a o p r o v e r uma atmosfera
estável e previsível. O capitalismo e n c o r a j o u o legalismo p o r q u e a burguesia tinha
38
consciência da necessidade d e s t e tipo d e e s t r u t u r a g o v e r n a m e n t a l .
O legalismo é o único flieio de p r o v e r o g r a u d e c e r t e z a necessária para a ope-
ração do s i s t e m a capitalista. W e b e r afirmava q u e o capitalismo "não teria continui-
dade se o c o n t r o l e de seus r e c u r s o s n ã o fosse r e s g u a r d a d o pela coação jurídica
estatal; se seus direitos f o r m a l m e n t e ' j u r í d i c o s ' não f o r e m resguardados pela
ameaça d o uso d e f o r ç a " . 3 9 Indo a l é m , W e b e r especificou q u e : "A racionalização e
a sistematização d o d i r e i t o e m geral e ( . . . ) uma c r e s c e n t e calculabilidade do fun-
c i o n a m e n t o do p r o c e s s o j u r í d i c o e m p a r t i c u l a r , c o n s t i t u í r a m u m a das mais impor-
tantes c o n d i ç õ e s para a existência d e ( . . . ) e m p r e e n d i m e n t o s capitalistas, que não
p o d e m passar s e m segurança j u r í d i c a . " + 0
W e b e r j a m a i s c o n s t r u i u u m m o d e l o d e t a l h a d o da p r o d u ç ã o capitalista que
pudesse e x p l i c a r p o r q u e a d e t e r m i n a ç ã o de valores nos p r o c e s s o s j u r í d i c o s era tão
i m p o r t a n t e para o d e s e n v o l v i m e n t o d o c a p i t a l i s m o . Eu d e s e n v o l v i um modelo
41
assim, e c r e i o q u e , e n f a t i z a n d o o r e p e t i d o d e s t a q u e q u e W e b e r conferia à cal-
culabilidade do d i r e i t o , t r a t a - s e de u m a visão similar ao t i p o ideal m o d e r n o .
A essência d e s t e m o d e l o é o c o n f l i t o de v o n t a d e s egoístas; i n e r e n t e ao capita-
lismo c o m p e t i t i v o . N o capitalismo d e m e r c a d o s p u r o s , q u e c o r r e s p o n d e ao tipo
idealizado dos t e x t o s de m i c r o e c o n o m i a , cada p a r t i c i p a n t e é o b r i g a d o a levar seus
interesses a d i a n t e às custas d e t o d o s os o u t r o s participantes do mercado.
T e o r i c a m e n t e , o desejo de o b t e r l u c r o é insaciável e não é r e s t r i t o p o r quaisquer
forças éticas ou m o r a i s . Assim, os p a r t i c i p a n t e s n ã o têm p r e o c u p a ç õ e s quanto aos
d e s d o b r a m e n t o s d e suas ações s o b r e o b e m - e s t a r e c o n ô m i c o dos o u t r o s .
[ESWDsrMIDIREITOGV 5 v. 8II. 11 K l'jt • I6t I JAN.JUN 2IIU7 i

I I
Ao m e s m o t e m p o , no e n t a n t o , os a t o r e s e c o n ô m i c o s d e s t e sistema São neces-
s a r i a m e n t e i n d e p e n d e n t e s . N e n h u m p a r t i c i p a n t e d o m e r c a d o c o n s e g u e atingir
seus objetivos sem o b t e r p o d e r s o b r e as ações dos o u t r o s . N ã o é vantagem, p o r
e x e m p l o , para o p r o p r i e t á r i o d e uma indústria t ê x t i l , agir de m a n e i r a e g o c ê n t r i -
ca d e a c o r d o com seus interesses se, ao m e s m o t e m p o , ele não p o d e t e r a certeza
d e q u e o u t r o s p a r t i c i p a n t e s f o r n e c e r ã o a ele os insumos necessários para a p r o d u -
ção e o c o n s u m o d e seu p r o d u t o . Se os f o r n e c e d o r e s não p r o v i d e n c i a r e m as m a t é -
r i a s - p r i m a s p r o m e t i d a s , se os t r a b a l h a d o r e s se r e c u s a r e m a trabalhar, se os clien-
tes não p u d e r e m pagar pelos b e n s e n t r e g u e s , n e m t o d o o e g o i s m o i m p i e d o s o e
racional d o m u n d o t e r á valor para o p r o d u t o r têxtil em sua busca de lucro.
O r a , se t o d o s os o u t r o s p a r t i c i p a n t e s fossem gentis e c o o p e r a t i v o s , nosso p r o -
d u t o r têxtil não precisaria se p r e o c u p a r . Eles d e s e m p e n h a r i a m seus papéis e t u d o
sairia c o m o planejado. Mas isto, talvez, n e m s e m p r e a c o n t e ç a , p o r q u e os o u t r o s
p a r t i c i p a n t e s são, p o r h i p ó t e s e , tão egoístas q u a n t o o p r o d u t o r t ê x t i l . P o r t a n t o ,
eles t a m b é m farão o q u e for prcciso para o b t e r o m a i o r l u c r o possível e se isto
significar não c u m p r i r algum a c o r d o , q u e assim seja. Se f o r possível p r e s u m i r q u e
haja o p o r t u n i d a d e s f r e q ü e n t e s para q u e os o u t r o s p a r t i c i p a n t e s se saiam melhor,
d e i x a n d o de p r o v e r ao p r o d u t o r têxtil algum serviço ou p r o d u t o necessário ao
sucesso d e seu e m p r e e n d i m e n t o , nosso e m p r e s á r i o h i p o t é t i c o viverá em um
m u n d o d e radical i n c e r t e z a .
M e s m o assim, c o m o W e b e r c o n s t a n t e m e n t e ressaltava, incertezas deste tipo
são s e r i a m e n t e prejudiciais ao t r a n q ü i l o f u n c i o n a m e n t o da e c o n o m i a m o d e r n a .
C o m o p o d e um p a r t i c i p a n t e da e c o n o m i a capitalista, e m u m m u n d o cheio d e
egoístas e m busca d e l u c r o , r e d u z i r o n ú m e r o d e incertezas q u e a m e a ç a m r o u b a r
d o s i s t e m a capitalista seu e v i d e n t e p o d e r p r o d u t i v o ? O q u e p e r m i t e a um partici-
p a n t e da e c o n o m i a p r e v e r c o m relativa c e r t e z a qual será o c o m p o r t a m e n t o das
o u t r a s pessoas ao l o n g o do t e m p o ? O q u e c o n t r o l a a t e n d ê n c i a à instabilidade?
Para r e s p o n d e r a estas p e r g u n t a s , W e b c r d e s l o c o u - s e para a esfera da análise
s o c i o l ó g i c a . O p r o b l e m a do c o n f l i t o e n t r e os i n t e r e s s e s dos Indivíduos e a esta-
b i l i d a d e social - o q u e P a r s o n s c h a m a d e " p r o b l e m a h o b b e s i a n o da o r d e m " 4 2 - é
u m d o s p r o b l e m a s f u n d a m e n t a i s da sociolpgia e, para lidar c o m ele, W e b e r cons-
t r u i u e s q u e m a s básicos d e ação s o c i a l . 4 3 W e b e r ' r e c o n h e c i a q u e as u n i f o r m i d a d e s
previsíveis das atividades sociais p o d e m ser "garantidas" de várias m a n e i r a s e q u ç
t o d o s esses m é t o d o s d e c o n t r o l e social p o d e m i n f l u e n c i a r as atividades e c o n ô m i -
cas. Os participantes podem incorpprar padrões normativos, satisfazendo
" v o l u n t a r i a m e n t e " as e x p e c t a t i v a s sociais. O u p o d e m ser s u b m e t i d o s a a l g u m , t i p o
de " e f e i t o e x t e r n o " se d e s v i a r e m das expectativas sociais. Estas garantias e x t e r -
nas p o d e m d e r i v a r d e u m sistema i n f o r m a l d e sanções ou e n v o l v e r coação orga-
n i z a d a . Todos os tipos d e c o n t r o l e p o d e m e s t a r envolvidos e m g a r a n t i r estabili-
d a d e a o p o d e r s o b r e os r e c u r s o s e c o n ô m i c o s ; u m c o n t r o l e e f e t i v o d e s t e t i p o ,
1 7 0 I M4X WEBER S 0 9 R E DIREITO E ASCENSÃO DO CAPITALISMO I1972I OAVID M. TíiÍBW

W e b c r o b s e r v o u , p o d e a d v i r d e h á b i t o s , d e um j o g o d e i n t e r e s s e s , dc conven-
44
ç õ e s , oti d o d i r e i t o .
C o m o i n d i q u e i , p o r é m , W e b e r a c r e d i t a v a q u e a c o a ç ã o o r g a n i z a d a d o dirclio
era n e c e s s á r i a nas e c o n o m i a s c a p i t a l i s t a s m o d e r n a s . E m b o r a a i n c o r p o r a ç ã o de
p a d r õ e s n o r m a t i v o s e s a n ç õ e s c o n v e n c i o n a i s p o s s a m e l i m i n a r e r e s o l v e r conflitos
e m s o c i e d a d e s m a i s s i m p l e s , são i n c a p a z e s d e s e r v i r a esta f u n ç ã o d e m o d o a satis-
f a z e r as n e c e s s i d a d e s da m o d e r n a e c o n o m i a d e m e r c a d o . Para e s t a f u n ç ã o , o direi-
to, n o s e n t i d o d e c o a ç ã o OTganizada, era n e c e s s á r i o . W e b e r a f i r m o u :

Embora não seja necessariamente verdade para todos os sistemas econômicos,


c e r t a m e n t e a m o d e r n a organização econômica sob condições m o d e r n a s não
poderia continuar se o c o n t r o l e de r e c u r s o s não fosse resguardado pela coação
estatal; ou seja, se seus direitos f o r m a i s "legais" não fossem resguardados pela
45
ameaça d o uso de força.

P o r q u e a c o a ç ã o é n e c e s s á r i a e m u m s i s t e m a d e m e r c a d o ? E p o r q u e a coação
d e v e t e r u m a f o r m a j u r í d i c a ? F i n a l m e n t e , q u a n d o f a l a m o s c m c o a ç ã o jurídica, esta-
m o s falando de p o d e r d o e s t a d o , n ã o i m p o r t a n d o c o m o seja e x e r c i d o , ou estamos
f a l a n d o d e p o d e r r e g u l a d o p o r n o r m a s , o u s e j a , d e l e g a l i s m o ? As respostas de
W e b e r a estas p e r g u n t a s n ã o são t o t a l m e n t e claras. Sua d i s c u s s ã o d o assunto suge-
re r e s p o s t a s , m a s as q u e s t õ e s n ã o são c o m p l e t a m e n t e d e s e n v o l v i d a s p o r ele. A
q u e s t ã o mais c r u c i a l , a r e l a ç ã o e n t r e a n e c e s s i d a d e d e c o a ç ã o e o m o d e l o do lega-
l i s m o , m a l é d i s c u t i d a . N o e n t a n t o , p e n s o q u e s e p o d e r d a r r e s p o s t a a estas per-
g u n t a s , r e s p o s t a s q u e se e n c a i x a m c o e r e n t e m e n t e a o u t r o s a s p e c t o s d e sua análise.
A coação é necessária e m razão do c o n f l i t o egoísta q u e i d e n t i f i q u e i acima. Embora
W e b e r jamais tenha identificado c l a r a m e n t e tal c o n f l i t o , tinha consciência de que ele
existia. E m um sistema d e m e r c a d o é p r e c i s o haver u m p r i n c í p i o c o m p o r t a m e n t a l que
não seja o egoísmo a c u r t o - p r a z o . T r a d i ç õ e s não p o d e m ser responsáveis p o r restrin-
gir c o m p o r t a m e n t o s egoístas p o r q u e o m e r c a d o d e s t r ó i as bases c u l t u r a i s e sociais das
t r a d i ç õ e s . S i m i l a r m e n t e , o s u r g i m e n t o da e c o n o m i a d e m e r c a d o a r r u i n a grupamen-
tos sociais q u e p o d e r i a m s e r v i r d e foco para a aplicação de p a d r õ e s convencionais. De
fato, a m e r a existência d o tipo de c o n f l i t o q u e descrevi é evidência d o declínio das tTa- ,
dições e dos hábitos. Sobra apenas o d i r e i t o para p r e e n c h e r e s t e v á c u o normativo; a
coação j u r í d i c a é essencial p o r q u e não há o u t r a f o r m a disponível d e c o n t r o l e .
U m a s e g u n d a r a z ã o p a r a q u e a c o a ç ã o n e c e s s á r i a ao f u n c i o n a m e n t o d o merca-
d o seja j u r í d i c a e s t á ligada ao r i t m o da a t i v i d a d e e c o n ô m i c a e ao t i p o d e cálculo
r a c i o n a l c a r a c t e r í s t i c o da e c o n o m i a d e m e r c a d o . N ã o é s u f i c i e n t e p a r a os capita-
listas t e r u m a idéia g e r a l d c q u e a l g u é m t e n h a a p o s s i b i l i d a d e d e r e a l i z a r um ser-
v i ç o p a r e c i d o c o m o q u e foi c o m b i n a d o , e m um t e m p o p r ó x i m o ao q u e foi esti-
p u l a d o . Ele p r e c i s a s a b e r e x a t a m e n t e o q u ê e q u a n d o , e p r e c i s a e s t a r bastante
OQBWtKMDIREITOGV 5 V. JII. I I F. ISI • 106 ! JAN-JUN líOUV i

c e r t o d e q u e um c o m p o r t a m e n t o preciso lhe será e n t r e g u e . Ele q u e r s e r capaz d e


p r e v e r com precisão o c o m p o r t a m e n t o das o u t r a s unidades 1 . Mas, d a d o o p o t e n -
cial c o n f l i t o e n t r e os interesses p r ó p r i o s e as o b r i g a ç õ e s dos o u t r o s p a r t i c i p a n t e s ,
ele t a m b é m q u e r prever c o m precisão q u e c o e r ç õ e s serão aplicadas aos recalci-
t r a n t e s . À capacidade de prever c o m p o r t a m e n t o s está i n t i m a m e n t e ligada á c e r t e -
za d e q u e i n s t r u m e n t o s d e coação p o d e m ser invocados na eventualidade de u m
c o m p o r t a m e n t o d i f e r e n t e do esperado.
N e s t e c o n t e x t o , fica claro p o r q u e um sistema jurídico calculável o f e r e c e o
m e i o mais confiável para c o m b i n a r coação e previsibilidade. Aqui, f u n d e m - s e os
m o d e l o s do legalismo e da dinâmica capitalista. Um sistema d e g o v e r n o p o r r e g r a s
p a r e c e s e r i n t r i n s e c a m e n t e mais previsível do q u e q u a l q u e r o u t r o m é t o d o para
e s t r u t u r a r as coerções. Convenções são, p o r natureza, difusas demais, e, c o m o os
h á b i t o s , e r a m h i s t o r i c a m e n t e indisponíveis dada a r u í n a , levada a cabo pelo m e r c a -
d o , d o s g r u p o s e e s t r u t u r a s necessários para uma efetiva restrição ao egoísmo.
Assim c o m o Balzac, W e b e r viu c o m o o declínio da família, das associações m e r c a n -
tis e da Igreja d e s e n c a d e a r a m um e g o í s m o i r r e s t r i t o . O poder p u r o , por o u t r o lado,
está disponível no sentido d e q u e o Estado está cada vez mais a r m a d o c o m i n s t r u -
m e n t o s de coação. Mas o p o d e r i r r e s t r i t o é imprevisível; os d e t e n t o r e s d o poder,
s e m r e s t r i ç õ e s Impostas p o r regras, t e n d e m a agir de m o d o Instável e imprevisível.
O legalismo o f e r e c e a combinação ótima e n t r e coação e previsibilidade.
É neste p o n t o q u e o significado da a u t o n o m i a do direito p o d e ser p e r c e b i d o . A
a u t o n o m i a está i n t i m a m e n t e ligada ao p r o b l e m a da previsibilidade. O sistema d e
d i r e i t o a u t ô n o m o em u m a sociedade legalista é uma instituição c o m p l e x a , organi-
zada para aplicar coação e m concordância a regras gerais, p o r meio d e processos
lógicos ou p u r a m e n t e cognitivos. C o m o esta instituição funciona, c o m o a p r e s e n t a -
da p o r Weber, d e uma m a n e i r a p u r a m e n t e lógica e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , mecânica,
seus r e s u l t a d o s são a l t a m e n t e previsíveis. Se ela for alvo constante da interferência
d e f o r ç a s q u e buscam aplicar coação com p r o p ó s i t o s inconsistentes às r e g r a s , ela
p e r d e e m previsibilidade. Assim, W e b e r o b s e r v o u q u e regras autoritárias (e déspo-
tas d e m o c r á t i c o s ) p o d e m se recusar a ater-se a regras f o r m a i s , já q u e :

São todos confrontados com o inevitável conflito entre o formalismo


abstrato da certeza jurídica e seu desejo de concretizar objetivos essenciais.
O formalismo jurídico torna o sistema jurídico capaz cie operar como uma
máquina tecnicamente racional. Assim, garante aos indivíduos e grupamentos
no interior do sistema um grau relativamente máximo de liberdade e aumenta
sobremaneira a possibilidade de prever as conseqüências legais de suas ações." 46

É claro, a noção de autonomia do direito é muito mais complexa do que este


m o d e l o simplificado sugere. Na obra d e Weber, o s u r g i m e n t o d e uma ordem jurídica
Prof. Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA 1 7 2 1 MAJ< WEBER SOBRE DIREITO E ASCENSÃO 0 0 CAPITALISMO I l 9 7 í l OAVID M. TRUBÍK

a u t ô n o m a está relacionado a o u t r o s i m p o r t a n t e s f e n ô m e n o s . U m a o r d e m jurídica


a u t ô n o m a era essencial para o s u r g i m e n t o d e normas d e um c e r t o tipo. Nem os
governantes teocráticos, nem os governantes patriarcais p e r m i t i r i a m o desenvol-
vimento das n o r m a s substanciais de autonomia econômica contidas na idéia de
liberdade de contrato. Apenas uma e s t r u t u r a i n d e p e n d e n t e da o r d e m normativa
poderia garanti-las, e apenas uma e s w u t u r a universal e s u p r e m a poderia garantir
que estas normas fossem obedecidas. Alssim, o sistema d e d i r e i t o teria de ser autô-
n o m o t a n t o em relação a o u t r a s fontes normativas quanto em relação a fontes de
poder puro e, simultaneamiante, c o n t r o l a r os efeitos adversos destes dois tipos de
fonte para o b e m do capitalismo. Velo menos algumas áreas da vida social teriam
dc ser isentas dos laços d e parentesco, religião e o u t r o s focos de autoridade tra-
dicional, e, ao mesmo t e m p o , i m p e r m e á v e i s às ações a r b i t r á r i a s d o estado. Isto
requeria que o estado, c o m o organização jurídica, fosse f o r t a l e c i d o para que
tomasse o lugar de outras fontes d e c o n t r o l e social e, ao m e s m o t e m p o , que fosse
limitado, para que não invadisse as áreas d e ação e c o n ô m i c a . O estado seria res-
ponsável p o r f o r n e c e r tal o r d e m formal, ou e s t r u t u r a simplificada, na qual os
47
agentes econômicos livres p o d e r i a m operar. Contida ha idéia d e uma ordem
jurídica autônoma estão os paradoxos fundamentais da idéia liberal de estado em
voga no século X I X . 4 3

IV. U M C A S O D E S V I A N T E OS PROBLEMAS
DE VERIFICAÇÃO HISTÓRICA: O LEGALISMO
E O CAPITALISMO NA INGLATERRA
A análise típico-ideal da economia, da política e do direito levou Weber a concluir
que o direito contribuíra com o capitalismo, em grande p a r t e , devido i sua calcula-
bilidade. Além disso, ele ressaltou que apenas a racionalidade lógico-formal e o sis-
tema d e direito a u t ô n o m o , com regras gerais e universais, p o d e r i a m garantir a
necessária certeza jurídica. Q u a n d o tentou verificar esta teoria historicamente, os
dados disponíveis não sustentaram c o m p l e t a m e n t e sua análise. Isto o levou a modi-
ficar, mas nunca realmente a abandonar, sua tese inicial..
Em suas tentativas d e lutar com os dados históricos, W e b e r r e f e r i u - s e repetida-
m e n t e aos aspectos da experiência jurídica importantes p a r a o desenvolvimento do
capitalismo, mas inconsistentes com um alto grau de f o r m a l i s m o lógico. Por exem-
plo, em c e r t o ponto ele reconheceu explicitamente que há um conflito potencial
entre o racionalismo jurídico do tipo lógico-formal e a capacidade criativa de um
sistema jurídico para gerar novos conceitos e instituições substanciais, requeridas
49
por situações econômicas e m processo de mudança. Ele t a m b é m observou o
modo pelo qual a autonomia do direito pode f r u s t r a r expectativas econômicas. 5 0
Mas estas deduções, que talvez possam ter provocado uma reavaliação fundamental
(BíWtfeliiaOlRElrOGV 5 V. 3 LI, I 1 R. 1 5 1 • 1 8 » 1 «IJ.JUN 7007 I 1 7 3

do m o d e l o , não afetaram sua tendência a enfatizar r e p e t i d a m e n t e a importância da


calculabilidade e sua identificação com o f o r m a l i s m o lógico.
C o m o seus m é t o d o s são tão i m p o r t a n t e s q u a n t o suas teorias, é útil examinar-
mos o caso-desvio q u e o p r e o c u p o u nesta área. Trata-se do d e s e n v o l v i m e n t o da
Inglaterra. Em n e n h u m o u t r o lugar de sua sociologia do direito, a luta e n t r e con-
ceito e história, e n t r e teoria e fato, fica tão evidente quanto em suas tentativas d é
lidar com a relação e n t r e o sistema de direito inglês e o desenvolvimento capitalis-
ta na Inglaterra. W e b e r r e t o r n o u a esta questão várias vezes. Podemos dizer que sua
discussão ambígua e c o n t r a d i t ó r i a deste p r o b l e m a apresenta a i m a g e m do historia-
dor travando uma batalha contra o teórico d e sociologia.
Ao analisar as relações e n t r e direito e e c o n o m i a na história da I n g l a t e r r a , o
c r e s c i m e n t o inglês c r i o u dois g r a n d e s p r o b l e m a s para suas teorias. P o r um lado,
parecia faltar à Inglaterra o sistema j u r í d i c o l ó g i c o - f o r m a l calculável que. ele fre-
q ü e n t e m e n t e identificava c o m o necessário para um d e s e n v o l v i m e n t o capitalista
inicial. Por o u t r o lado, o capitalismo, q u a n d o se estabeleceu na I n g l a t e r r a , teve
p o u c o s efeitos perceptíveis s o b r e a racionalização do direito inglês, se é que teve
51
a l g u m efeito.
D a p e r s p e c t i v a w e b e r i a n a , o sistema d e d i r e i t o inglês a p r e s e n t a v a um p r o -
f u n d o c o n t r a s t e c o m os sistemas da E u r o p a c o n t i n e n t a l . " O g r a u d e r a c i o n a l i d a -
de j u r í d i c a é e s s e n c i a l m e n t e m e n o r e d e u m t i p o d i f e r e n t e dos sistemas da
52
Europa continental". E m suas " p a r t i c u l a r i d a d e s f o r m a i s f u n d a m e n t a i s , " o sis-
t e m a inglês d i f e r e d o f o r m a l i s m o judicial d o s i s t e m a c o n t i n e n t a l " t a n t o q u a n t o
é possível em um s i s t e m a s e c u l a r d e j u s t i ç a . . . . " 5 3 M e s m o assim, o c a p i t a l i s m o
havia s u r g i d o p r i m e i r o na I n g l a t e r r a ; e a I n g l a t e r r a p o s s u í a , i n d u b i t a v e l m e n t e ,
u m r e g i m e capitalista f o r m i d á v e l . 5 4
Estas d e s c o b e r t a s a p r e s e n t a v a m várias possibilidades lógicas. Em primeiro
lugar, podiam r e f u t a r a idéia d e q u e havia alguma relação sistemática e n t r e direi-
to e e c o n o m i a . Em s e g u n d o lugar, podiam s u g e r i r q u e o tipo ideal da racionalida-
de l ó g i c o - f o r m a l não incluía as características r e a l m e n t e I m p o r t a n t e s da e x p e -
r i ê n c i a jurídica do d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o . Em t e r c e i r o lugar, podiam indi-
car q u e a Inglaterra e r a , d e algum m o d o , u m a e x c e ç ã o a um c o n j u n t o historica-
mente válido de generalizações. Em sua d i s c u s s ã o s o b r e o " p r o b l e m a da
Inglaterra", W e b e r a d o t o u estas três p o s i ç õ e s , m u t u a m e n t e inconsistentes.
E m u m a série d e passagens, breves e c o n t r a d i t ó r i a s , W e b e r s u g e r i u as
s e g u i n t e s h i p ó t e s e s : ( I ) o sistema d e p i r e i t o inglês oferecia um b a i x o g r a u d e
c a l c u l a b i l i d a d e , mas assistia ao c a p i t a l i s m o ao negar justiça às classes i n f e r i o r e s .
55
( 2 ) A I n g l a t e r r a era u m caso ú n i c o no s e n t i d o d e q u e havia c h e g a d o ao capi-
t a l i s m o "não e m r a z ã o d e , mas apesar d e seu s i s t e m a judicial." As c o n d i ç õ e s q u e
p e r m i t i r a m a o c o r r ê n c i a d e s t e fato, n o e n t a n t o , não p r e v a l e c e r a m e m n e n h u m
o u t r o l u g a r . 5 6 (3) O sistema d e d i r e i t o inglês, e m b o r a d i s t a n t e do m o d e l o d e
1 7 4 ' M A X W E 8 E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O l l ? 7 2 l DAVID to. TRUBEK

racionalidade l ó g i c o - f o r m a l , era s u f i c i e n t e m e n t e calculável p a r a apoiar o capi-


t a l i s m o , já q u e seus juizes favoreciam os capitalistas e t o m a v a m decisões basea-
das e m p r e c e d e n t e s . 5 7
Sc estas p o s i ç õ e s c o n t r a s t a n t e s indicam que W e b e r n ã o tinha u m a imagem
m u i t o clara da história da I n g l a t e r r a , t a m b é m r e f l e t i a m sua p r e o c u p a ç ã o com a
q u e s t ã o da calculabilidade e sua t e n d ê n c i a a e q u i p a r á - l a a um c c r t o tipo de pen-
s a m e n t o jurídico - um p e n s a m e n t o q u e , c l a r a m e n t e , n ã o havia sido b e m desen-
volvido na I n g l a t e r r a . W e b e r era c o n s t a n t e m e n t e t e n t a d o a m a n t e r a importân-
cia da calculabilidade e a lidar c o m a Inglaterra c o m o uma e x c e ç ã o à teoria de
q u e calculabilidade e c a p i t a l i s m o estão r e l a c i o n a d o s ; o u c o m o e x c e ç ã o à idéia de
que racionalidade lógico-formal e calculabilidade são c o n c e i t o s paralelos.
E m b o r a tivesse e v i d e n t e c o n h e c i m e n t o d e o u t r a s possíveis d i m e n s õ e s econômi-
cas relevantes da e x p e r i ê n c i a jurídica inglesa, tais c o m o , por e x e m p l o , contro-
le d e classes e r e g r a s substanciais, W e b e r r e t o r n o u diversas vezes à particulari-
d a d e q u e seu m o d e l o - b a s e lhe dizia ser c r u c i a l . Sua ú l t i m a posição sobre o
a s s u n t o adotava a t e r c e i r a posição e, assim, m a n t i n h a a i m p o r t â n c i a da calcula-
bilidade em d e t r i m e n t o da c e n t r a l i d a d e da r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l cc^n
ênfase cm técnicas lógicas c o m o m e i o de g a r a n t i r a u t o n o m i a . T a l posição é basi-
c a m e n t e c o n s i s t e n t e , de m a n e i r a geral, c o m suas análises, já q u e um sistema
controlado p o r capitalistas será, presumivelmente, bastante previsível, ao
m e n o s d o p o n t o d e vista dos c a p i t a l i s t a s . 5 8 C o m o W e b e r pensava q u e este con-
t r o l e capitalista seria p o u c o p r o v á v e l , ele não via o e x e m p l o da Inglaterra como
u m a ameaça ao m o d e l o básico. Além disso, o sistema j u d i c i á r i o inglês era signi-
f i c a t i v a m e n t e i n d e p e n d e n t e d o e s t a d o e, p o r t a n t o , n e s t e s e n t i d o , sua autonomia
p e r m a n e c e p a r t e do m o d e l o . D e v i d o a este ú l t i m o a s p e c t o da e x p e r i ê n c i a jurí-
dica inglesa, alguns o b s e r v a d o r e s a r g u m e n t a m q u e a I n g l a t e r r a desenvolveu um
sistema d e d i r e i t o v e r d a d e i r a m e n t e "racional" a n t e s da ascensão d o capitalismo
e q u e a maior falha da análise de W e b e r foi a falsa d i s t i n ç ã o que ele t r a ç o u entre
59
o d i r e i t o inglês e o d i r e i t o c o n t i n e n t a l .

V. O LEGALISMO E A LEGITIMIDADE
DA DOMINAÇÃO DE CLASSE
Até este ponto, o "capitalismo" foi apresentado de f o r m a vaga, a b s t r a t a . Embora o
W e b e r pensasse que o capitalismo fosse, em vários sentidos, o sistema econômico
60
mais racional possível, não fazia apologia do capitalismo. Weber podia ser um crí-
tico incisivo dos resultados morais deste sistema.Tais criticas p o d e m ser percebidas
em várias ocasiões; elas s u r g e m claramente e m o u t r a parte da sociologia do direito
em q u e Weber leva adiante uma questão posta por Marx: o papel do legalismo na
legitimidade da dominação capitalista.
BtexfeiSajDiREiTOGv 5

O legalismo serviu ao capitalismo e x e r c e n d o mais d o q u e funções p u r a m e n t e


e c o n ô m i c a s . Weber m o s t r o u c o m o .a idéia de um sistema de direito autônomo» q u e
d i s t r i b u i justiça f o r m a l , legitima a e s t r u t u r a política de uma sociedade capitalista.
O legalismo dá legitimidade à d o m i n a ç ã o dos capitalistas sobre os trabalha-
d o r e s . As relações e n t r e d i r e i t o , estado e m e r c a d o são c o m p l e x a s . O legalismo,
e m b o r a pareça restringir as ações do e s t a d o , na v e r d a d e as r e f o r ç a , e e m b o r a este
s i s t e m a garanta imparcialidade f o r m a l , t a m b é m dá l e g i t i m i d a d e à d o m i n a ç ã o d e
classe. O legalismo r e f o r ç a o estado ao restringir, a p a r e n t e m e n t e , suas ações: ao
s u b m c t é - l o a u m sistema d e regras, a u m e n t a sua l e g i t i m i d a d e e, p o r t a n t o , sua
a u t o r i d a d e ou seu p o d e r efetivo. E á medida q u e o e s t a d o liberal se fortalece,
r e d u z a intensidade de o u t r a s forças s o b r e o d e s e n v o l v i m e n t o do m e r c a d o . Esta
s i t u a ç ã o r e f o r ç a a posição daqueles q u e c o n t r o l a m as p r o p r i e d a d e s , pois a organi-
zação d e u m m e r c a d o a u m e n t a o p o d e r efetivo dos i n d i v í d u o s e organizações q u e
c o n t r o l a m os r e c u r s o s e c o n ô m i c o s . "Em razão do p r i n c í p i o d e Imparcialidade for-
mal d o d i r e i t o . . . as classes p r o p r i e t á r i a s . . . o b t ê m uma c e r t a ' a u t o n o m i a ' real...",
61
o b s e r v o u Weber.
W e b e r acreditava q u e estes r e s u l t a d o s do legalismo d e r i v a s s e m da contradição
f u n d a m e n t a l e n t r e c r i t é r i o s d e justiça f o r m a i s e m a t e r i a i s ; e os aspectos negativos
de u m a administração judicial p u r a m e n t e f o r m a l sob c o n d i ç õ e s m o d e r n a s . A jus-
tiça f o r m a l é vantajosa para aqueles q u e d e t ê m o p o d e r e c o n ô m i c o , pois é calcu-
lável e , além disso, ao ressaltar c r i t é r i o s formais em oposição a critérios substan-
ciais para tomadas d e decisões, d e s e n c o r a j a o uso do d i r e i t o c o m o i n s t r u m e n t o de
j u s t i ç a social. Em uma passagem q u e nos faz l e m b r a r da f a m o s a e irônica frase de
A n a t o l e France, q u e diz q u e o d i r e i t o p r o í b e t a n t o os r i c o s q u a n t o os pobres de
d o r m i r sob as p o n t e s d e Paris, W e b e r o b s e r v o u :

A justiça formal garante liberdade máxima para que as partes envolvidas


defendam seus interesses legais formais. Mas, devido à desigual distribuição
d e poder, legalizada pelo sistema formal de justiça, esta mesma liberdade
produzirá, repetidamente, conseqüências contrárias às... éticas religiosas
62
o u . . . ás conveniências políticas.

A justiça f o r m a l não apenas r e p u d i a p o d e r e s a u t o r i t á r i o s e g o v e r n a n t e s arbi-


t r á r i o s , c o m o t a m b é m se o p õ e aos interesses d e m o c r á t i c o s . A justiça f o r m a l ,
n e c e s s a r i a m e n t e abstrata, não p o d e levar e m c o n s i d e r a ç ã o q u e s t õ e s éticas levan-
tadas p o r tais interesses; tal abstenção, no e n t a n t o , r e d u z a possibilidade de se
c h e g a r a diretrizes substanciais d e f e n d i d a s p o r g r u p o s p o p u l a r e s . Assim, c e r t o s
valores d e m o c r á t i c o s e tipos d e justiça social p o d e r i a m s e r atingidos apenas se o
e s t r i t o legalismo fosse s a c r i f i c a d o . 6 + W e b e r t a m b é m ressaltou q u e o legalismo
f o r m a l p o d e r i a tirar o valor da criatividade jurídica e q u e a a u t o n o m i a do direito
PrOj. Df. JüitUC Cunha 176, M4X W ^ R S O S R E DIREITO E ASCENSÃO DO CAPITALISMO I1972I OAvm M. thubck
fcs/ifch/ufpa
p o d e r i a levar a r e s u l t a d o s o p o s t o s aos valores p o p u l a r e s , iTcm c o m o opostos aos
^ valores capitalistas. ^ ^"

VI. A METODOLOGIA E A PERSPECTIVA DE WEBER


C o m o a p r e s e n t e discussão d e i x o u ^làro, W c b e r tratava o p r o b l e m a do direito na
sociedade e na e c o n o m i a d e u m a p e r s p e c t i v a holística, h i s t ó r i c a e comparativa. A
e s t r u t u r a básica de sua análise i d e n t i f i c o u as p e c u l i a r i d a d e s da s o c i e d a d e e da eco-
nomia e indicou c o m o o d i r e i t o está relacionado a estas distintas e, ao mesmo
t e m p o , c o r r e l a c i o n a d a s esferas da vida social. O s tipos ideais d e d i r e i t o , economia
e política d e r a m a ele f e r r a m e n t a s c o m as quais ele p ô d e e s t u d a r e compreender
os dados h i s t ó r i c o s . O " d i r e i t o " foi d e f i n i d o c o m o r e s u l t a d o da interação entre
muitas forças, c, ao m e s m o t e m p o , c o m o uma e s t r u t u r a distinta q u e contribuiu
de f o r m a i n d e p e n d e n c e para m o l d a r a s o c i e d a d e .
W e b e r usou estes m é t o d o s não a p e n a s para m o s t r a r c o m o o legalismo se
desenvolveu na E u r o p a ; t a m b é m os e m p r e g o u para analisar p o r q u e a forma e a
substância d o d i r e i t o m o d e r n o n ã o s u r g i r a m é m o u t r a s g r a n d e s civilizações. Um
e x e m p l o disto, q u e ilustra v i v i d a m e n t e seu m é t o d o e s u a p e r s p e c t i v a , pode ser
visto em sua discussão sobre p o r q u e o sistema de d i r e i t o chinês n ã o foi capaz de
desenvolver u m a l i b e r d a d e real d e c o n t r a t o s e o c o n c e i t o d e c o r p o r a ç õ e s - dois
e l e m e n t o s relacionados e essenciais ao d i r e i t o m o d e r n o .
W e b e r acreditava q u e o c o n c e i t o j u r í d i c o d e c o r p o r a ç ã o f o r a responsável por
uma i m p o r t a n t e c o n t r i b u i ç ã o ao d e s e n v o l v i m e n t o do c a p i t a l i s m o na Europa.
Análises c o m p a r a t i v a s m o s t r a r a m q u e e s t e c o n c e i t o não havia s u r g i d o na China e
q u e o d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o chinês s o f r e r á , p o r isso, c e r t a s conseqüências.
W e b é r p r o c u r o u e n t ã o explicar p o r q u e a China jamais d e s e n v o l v e r a tal conceito.
O c o n c e i t o d e c o r p o r a ç ã o c o m o e n t e j u r í d i c o t e m d o i s e l e m e n t o s . Primeiro,
uma c o r p o r a ç ã o implica na existência d e relações c o n t r a t u a i s livres e n t r e entes
j u r i d i c a m e n t e r e c o n h e c i d o s . S e g u n d o , estas r e l a ç õ e s c o n t r a t u a i s p o d e m ser esta-
belecidas e n t r e g r u p o s . W e b e r m o s t r o u q u e a o r g a n i z a ç ã o política e a estrutura
social chinesa d e s e n c o r a j a v a m o d e s e n v o l v i m e n t o desta i d é i a .
A e s t r u t u r a social d e s e n c o r a j a v a o s u r g i m e n t o de Telações contratuais. Ao
c o n t r á r i o da E u r o p a , a s o c i e d a d e phinesa era o r g a n i z a d a r i g i d a m e n t e sobre laços
familiares. W e b e r o b s e r v o u q u e o r g a n i z a ç õ e s baseadas e m laços familiares desen-
c o r a j a m a r e s o l u ç ã o d e disputas p o r m e i o d o d i r e i t o , o u seja, p o r m e i o de cor-
pos de r e g r a s a p l i c a d o s p o r a u t o r i d a d e s a u t ô n o m a s , c o m p e t e n t e s para tomar
d e c i s õ e s . O d e c l í n i o das o r g a n i z a ç õ e s baseadas em laços f a m i l i a r e s havia sido um
i m p o r t a n t e f a t o r para o s u r g i m e n t o d e f o r m a s o r g a n i z a c i o n a i s contratuais na
E u r o p a . A força c o n t í n u a q u e estes g r u p o s m a n t i v e r a m n a China d e s e n c o r a j o u o
surgimento de f o r m a s de relacionamento e s p e c i f i c a m e n t e c o n t r a t u a i s . Além
I I

CâSWfeteDIREITOGV 5 ». J II. i I I S I • IS4 l J Í N - J U N O T 7 1 1 7 7

disso, a organização política chinesa desencorajava a f o r m a ç ã o de g r u p o s juridi-


camente reconhecidos. E m b o r a os s i s t e m a s p o l í t i c o s d e R o m a e da Europa
medieval tenham encorajado o desenvolvimento de corporações autônomas, o
e s t a d o p a t r i a r c a l c h i n ê s d e s e n c o r a j a v a e s t e t i p o d e a s s o c i a ç ã o q u e a m e a ç a r i a sua
h e g e m o n i a . P o r e s t a s r a z õ e s , a idéia d e c o r p o r a ç ã o c o m p r e e n d i d a c o m o " e n t e "
j u r í d i c o c o c o n c e i t o d e r e s p o n s a b i l i d a d e j u r í d i c a a ela r e l a c i o n a d o n ã o se d e s e n -
v o l v e r a m na C h i n a .
W e b e r reconhecia o fato-de q u e fatores p u r a m e n t e e c o n ô m i c o s contribuíram
p a r a q u e esta s i t u a ç ã o o c o r r e s s e , p o i s , c o m o r e s u l t a d o d a o r g a n i z a ç ã o e d o c o m -
p o r t a m e n t o e c o n ô m i c o p r e d o m i n a n t e , n ã o havia, na C h i n a , f o r ç a s p r e s s i o n a n d o
p o r a l g u m a f o r m a o r g a n i z a c i o n a l j u r i d i c a m e n t e r e c o n h e c i d a , Mas i s t o e r a signi-
ficativo a p e n a s à luz d e o u t r o s f a t o r e s ; o d e s e n v o l v i m e n t o d o d i r e i t o c h i n ê s - o u ,
a n t e s , a falta d e d e s e n v o l v i m e n t o - n ã o p o d e s e r a t r i b u í d o a a p e n a s u m f a t o r , m a s
d e v e s e r Yisto c o m o o r e s u l t a d o d e u m a i n t e r a ç ã o d e t o d a s e s t a s c a r a c t e r í s t i c a s
6S
da sociedade.
O m e s m o e n f o q u e h o l í s t i c o foi a p l i c a d o ao e s t u d o d o d i r e i t o c o r p o r a t i v o na
E u r o p a . N e n h u m a c a r a c t e r í s t i c a isolada da s o c i e d a d e e u r o p é i a e r a c a p a z d e e x p l i -
car p o r que o direito e u r o p e u resolvera o p r o b l e m a crucial do d e s e n v o l v i m e n t o
d o c o n c e i t o d e p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a . F a t o r e s p o l í t i c o s , sociais e e c o n ô m i c o s ,
a s s i m c o m o d e s e n v o l v i m e n t o s a u t ô n o m o s i n e r e n t e s ao p r ó p r i o d i r e i t o , f o r a m vis-
tos c o m o contribuição para este progresso crucial e e x c l u s i v a m e n t e ocidental. A
p a r t i r d e s t a a n á l i s e , d e v e f i c a r c l a r o q u e até m e s m o as m a i s t é c n i c a s n o ç õ e s d e
d i r e i t o devem ser entendidas no c o n t e x t o de uma perspectiva multidimensional
d o d i r e i t o na s o c i e d a d e , p e r s p e c t i v a e s t a q u e s u r g i u a t r a v é s d e e foi c o n f i r m a d a
por u m cuidadoso estudo comparativo.

s
VII. CONCLUSÃO «
M i n h a análise da o b r a d e W e b e r foi n e c e s s a r i a m e n t e b r e v e e a b s t r a t a . N ã o p u d e
a p r e s e n t a r t o d a a c o m p l e x i d a d e d e sua a r g u m e n t a ç ã o , e a p e n a s e s b o c e i a análise his- !
t ó r i c a p e l a qual W e b e r m o s t r o u c o m o o legalismo s u r g i u na E u r o p a ; e a pesquisa
c o m p a r a t i v a pela qual t e n t o u m o s t r a r p o r q u e o u t r a s g r a n d e s civilizações n ã o c o n -
s e g u i r a m desenvolver o legalismo. (

M e s m o assim, e s p e r o t e r s u g e r i d o q u e analises h i s t ó r i c a s e c o m p a r a t i v a s f o r a m
f u n d a m e n t a i s para W e b e r . C o m o i n d i q u e i n o ç o m e ç o d e s t e ensaio,.a p r i n c i p a l t a r e -
fa d e W e b e r era h i s t ó r i c a . C o m o a f i r m o u R o t h , W e b e r via c o n c e i t o s s o c i o l ó g i c o s
66
c o m o "ajudantes de Clio" ; c o m o f e r r a m e n t a s c o m as quais c o n d u z i r i a pesquisas
h i s t ó r i c a s e c o m p a r a t i v a s . T i p o s ideais e t e o r i a s c o m o as a p r e s e n t a d a s a q u i são
m e c a n i s m o s c o m os q u a i s e v e n t o s h i s t ó r i c o s e s p e c í f i c o s são e x a m i n a d o s . São, a l é m
d i s s o , n e c e s s a r i a m e n t e l i m i t a d o s e m sua u t i l i d a d e p a r a e n f r e n t a r os p r o b l e m a s c o m
178 I MAX WEBER SOBRE DIREITO E ASCENSÃO 0 0 CAPITALISMO I I 9 7 2 I OAVIO M. TRUBÍK

que o pesquisador se depara. O tipo ideal não é uma teoria universal s o b r e a socie-
67
dade, embora.possa ser usado para construí-la. O s tipos ideais legais construídos
por W e b e r lidavam com os problemas q u e estava investigando e talvez não possam
ser e m p r e g a d o s m e c a n i c a m e n t e em o u t r o s c o n t e x t o s .
Se t i v e r m o s em m e n t e e s t e p r i n c í p i o f u n d a m e n t a l da análise w e b e r i a n a , os
autores c o n t e m p o r â n e o s estarão em m e l h o r posição para avaliar sua obra e sua
c o n t r i b u i ç ã o ás pesquisas atuais. Em o u t r a s palavras, será possível usar W e b e r
com propriedade.
N ã o há dúvida de q u e um e n t e n d i m e n t o mais c o m p l e t o das teorias d e W e b e r
a j u d a r á os acadêmicos atuais a levar a d i a n t e a t a r e f a à qual ele m e s m o deu tanta
a t e n ç ã o : a análise d o papel do direito na ascensão do capitalismo. C o m o s u g e r e
minha discussão s o b r e o caso-desvio da I n g l a t e r r a , esta tarefa está l o n g e de ser
c o m p l e t a d a . Sem d ú v i d a , as tipologias d e W e b e r s o b r e d i r e i t o , d o m i n a ç ã o e capi-
talismo a j u d a r ã o a c o n t i n u a r d e s v e n d a n d o estas q u e s t õ e s da história social e j u r í -
dica da E u r o p a e da I n g l a t e r r a . N o e n t a n t o , c o m o indica minha r e c o n s t r u ç ã o , os
c o n c e i t o s p a r t i c u l a r e s q u e usou ao a p r e s e n t a r os "tipos d e p e n s a m e n t o j u r í d i c o "
talvez c r i e m mais c o n f u s ã o do que e s c l a r e c i m e n t o . Talvez seja necessário e m p r e -
gar i n s t r u m e n t o s mais detalhados e precisos para e s t u d o s históricos c o m p a r a t i -
vos do legalismo.
Ainda mais cautela deve s e r adotada ao se aplicar as tipologias weberianas ao
68
m u n d o atual. As condições atuais de d e s e n v o l v i m e n t o ou m o d e r n i z a ç ã o d i f e r e m
substancialmente daquelas p r e d o m i n a n t e s no p e r í o d o estudado por Weber. Muitos
dos e l e m e n t o s de suas tipologias não p o d e m s e r e n c o n t r a d o s nos Estados atual-
m e n t e e m desenvolvimento. Por e x e m p l o , toda a teoria d e W e b e r sobre o papel
e c o n ô m i c o d o Direito estava, c o m o ressaltei, ligada a um m e r c a d o competitivo no
59
qual t o d o s os participantes tinham u m p o d e r e c o n ô m i c o relativamente limitado.
Tais c o n d i ç õ e s são exceção, e não r e g r a , no Terceiro M u n d o . S i m i l a r m e n t e , o
m o d e l o do Estado e seu papel na economia estavam relacionados de maneira muito
p r ó x i m a às idéias de laissez-faire do século X I X . 7 0 N o v a m e n t e , é necessário cau-
tela ao tratar problemas atuais nos t e r m o s em q u e W e b e r pensava serem apropria-
dos para pesquisa histórica.
Além disso, não se p o d e e s q u e c e r d e que, até m e s m o para Weber e para o
p e r í o d o q u e ele estudava, estes tipos-ideais e r a m apenas tipos-ideais, ou seja,
c o n s t r u ç õ e s intelectuais e m p r e g a d a s c o m p r o p ó s i t o s heurísticos. N e n h u m destes
tipos p u r o s p o d e ser e n c o n t r a d o no m u n d o real; n e n h u m sistema d e direito é
p u r a m e n t e lógico, f o r m a l e racional, e n e n h u m Estado baseia sua legitimidade
p u r a m e n t e na racionalidade de sua ação c o n f o r m e o direito. A História escapa
c o n s t a n t e m e n t e das m o l d u r a s nas quais as teorias q u e r e m p r e n d ê - l a .
Finalmente, devemos questionar a ênfase dada por Weber às qualidades f o r m a i s
do direito m o d e r n o , uma perspectiva q u e subestima suas qualidades finalísticas e
В й К Й Й М ! DIREITO GV 5 v.l«, II » 151 • 106 I M H - J U N 200V I 1 7 9

i n s t r u m e n t a i s . 7 ' Talvez i n f l u e n c i a d o pela idéia d e q u e o d i r e i t o fosse u m a " o r g a n i -


z a ç ã o f o r m a l , " e s u p e r e s t i m a n d o a i m p o r t â n c i a da c a l c u l a b i l i d a d e na vida e c o n ô m i -
ca, W e b e r t e n d i a a e n f a t i z a r as c a r a c t e r í s t i c a s f o r m a i s d o d i r e i t o e u r o p e u e, c o m o
m o s t r a o e x e m p l o da I n g l a t e r r a , a d a r u m a ê n f a s e i n d e v i d a ao significado e c o n ô m i -
co d e m e l h o r i a s m a r g i n a i s à c a l c u l a b i l i d a d e .
Mas, devido à continuidade dos estudos históricos weberianos por acadêmicos
m o d e r n o s e à i n v e s t i g a ç ã o da r e l e v â n c i a d o d i r e i t o p a r a c o m p r e e n d e r p r o c e s s o s
a t u a i s d e d e s e n v o l v i m e n t o , a o b r a d e W e b c r ainda s e r á m u i t o utilizada. Em p r i -
m e i r o l u g a r , seu m é t o d o t i p o l ó g i c o a i n d a t e m m u i t o valor, e m b o r a o d e s e n v o l v i -
m e n t o d e novas t i p o l o g i a s ainda se faça n e c e s s á r i o . E m s e g u n d o l u g a r , W e b e r
insistia q u e novas p r o p o s t a s d e v e r i a m s e r t e s t a d a s p o r análises s o c i o l ó g i c a s c o m -
parativas. Finalmente, ele sustentava a opinião de que a relevância d o "direito" em
q u a l q u e r s o c i e d a d e só p o d e ser c o m p r e e n d i d a p o r m e i o d e u m a análise c u i d a d o -
sa d a s i n t e r - r e l a ç õ e s d e suas d i v e r s a s e s f e r a s e e s t r u t u r a s . A c o n t r i b u i ç ã o í m p a r d e
W e b e r foi analisar o d i r e i t o d e u m a p e r s p e c t i v a h o l í s t i c a e social na q u a l f e n ô m e -
n o s j u r í d i c o s n ã o são n e m t o t a l m e n t e i n d e p e n d e n t e s , n e m t o t a l m e n t e d e p e n d e n -
tes d o s o u t r o s a s p e c t o s da vida social. E s t e m é t o d o , q u e s i m u l t a n e a m e n t e r e s p e i -
ta a a u t o n o m i a e a d e p e n d ê n c i a da e x p e r i ê n c i a j u r i d i c a na s o c i e d a d e , talvez seja a
c o n t r i b u i ç ã o mais d u r a d o u r a de W e b e r para a sociologia do direito e para o estu-
do da relação e n t r e "direito e desenvolvimento".

NOTAS

* Jan D e u t s c h , D u n c a n K e n n e d y с H e n r y S t c l n c r f i z e r a m c o m e n t á r i o s s o b r e v e r s õ e s a n t e r i o r e s d e s t e e s t u d o . Sou
e s p e c i a l m e n t e a g r a d e c i d o a R o b e r t o M a n g a b e i r a U n g c r p o r m c e n c o r a j a r e p o r .ilu$ criticas c o n s t r u t i v a s . Este e s t u d o
foi a p o i a d o , cm p a r t e , p o r uma d o a ç ã o da Agência p e l o D e s e n v o l v i m e n t o I n t e r n a c i o n a l (AID) a m e r i c a n a e p e l o
P r o g r a m a d e D i r e i t o e M o d e r n i z a ç ã o da U n i v e r s i d a d e Yale. As I n f o r m a ç õ e s с c o n c l u s õ e s d e s t e e s t u d o n ã o r e f l e t e m n e m
a p o s i ç ã o da AID n e m a d o G o v e r n o .

* * P r o f e s s o r Associado d e D i r e i t o , U n i v e r s i d a d e Yale, b a c h a r e l a d o e m 1 9 5 7 pela U n i v e r s i d a d e d o W i s c o n s i n ;


Bacharel u m D i r e i t o , I 9 6 I , U n i v e r s i d a d e Yale.

t Bibliografia: G a l a n t c r . T h e M o d e r n i z a t i o n оГ Law, in M O D E R N I Z A T I O N : T H E D Y N A M I C S O F G R O W T H
( M . W c i n c r ed, 1 9 6 6 ) ; F r i e d m a n , Legal C u l t u r e a n d Social D e v e l o p m e n t , 4 L A W & S O C ' Y REV. 2 9 f I 9 6 9 ) ; F r i e d m a n ,
O n Legal D e v e l o p m e n t , 24 R U T G E R S L. REV. II ( I 9 6 9 ) ; K a r s l , Law in D e v e l o p i n g C o u n t r i e s , 60 L A W LIB. J. 13
( 1 9 6 7 ) ; K o n z , Legal D e v e l o p m e n t In D e v e l o p i n g C o u n t r i e s , I 9 6 9 P R O C . A M . S O C ' Y I N T ' L L. 9 1 ; M e n d e l s o n , Law
and t h e D e v e l o p m e n t o f - N a t i o n s , 32 J. P O L . 2 2 3 ( 1 9 7 0 ) ; S c i d m a n , Law and D e v e l o p m e n t : A G e n e r a l M o d e l , 6 L A W &
1 8 0 I M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O [19721 DAVID M. TRU8EK

S O C Y REV. 3J I ( 1 9 7 2 ) ; S t e i n b e r g , Law, D e v e l o p m e n t a n d Korean .Society, 3 J. C O M P . A D . 2 IS ( 1 9 7 1 ) ; Stcincr, Legal


E d u c a t i o n and S o c l o - E c o n o m i c C h a n g e : Brazilian P e r s p e c t i v e s , 19 A M . f. C O M I ' . L. 39 ( 1 9 7 1 ) . Para u m a avaliação cri-
tica d e p a r t e d e s t a l i t e r a t u r a veja T r u b e k , T o w a r d s a Social T h e u r y ol' Latv: An Essay ò n l h e S t u d y o f Law and Politic* In
E c o n o m i c D e v c l o p m e n t . Y A L E L . / . (a s e r e d i t a d o ) .

2 Veja-se, c o m o e x e m p l o : o s ensaios d e F r l o d j h a n , C a l a n t c r , S u l d m a n , S t e i n b e r g c S t e l n u r citados na nota dc


r o d a p é I da p a g i n a a n t e r i o r . ^

3 U m a a b o r d a g e m m a i s d e t a l h a d a d a s t e o r i a s <fc W e b e r s o b r e o d i r e i t o p u d e ser e n c o n t r a d a s em Rhcinstcln,


I n t r o d u c t i o n t o M A X W E B E R O N LAW IN E C O N O M Y A N D S O C I E T Y , (M. R h c l n s t c i » c d . 1 9 5 4 ) , e R. BENDIX,
M A X W E B E R , AN I N T E L L E C T U A L P O R T R A I T pp. 3H5 - 4 5 7 ( 1 9 6 2 ) [ d o r a v a n t e c i t a d o c o m o B E N D I X ) . Confio subs-
t a n c i a l m e n t e n e s t a s o b r a s e, a o m e s m o t e m p o , t e n h o m e c o n c e n t r a d o nos a s p e c t o s da r e l a ç ã o e n t r e d i r e i t o c economia
não d i s c u t i d o s p o r R h c i n s t e i n c ü c n d l x .

4 C o m o h i s t o r i a d o r c p e s q u i s a d o r d o d i r e i t o , W c b e r e s c r e v e u s o b r e q u e s t õ e s e s p e c í f i c a * d e história d o direito.
Mas sua tentativa m a i s I m p o r t a n t e d e lidar c o m as l n t c r - r c l a ç õ o s e n t r e o d i r e i t o o o q u e h o j e c h a m a m o s d c "desenvolvi-
m e n f o " ou " m o d e r n i z a ç ã o " eslão c o n t i d a s e m seu e s b o ç o s o b r e sociologia I n l u r p r e l a ü v a , W l r t s c h a l t imd Gesellschifl,
que c o n t é m d i v e r s a s e e x t e n s o s d i s c u s s õ e s s o b r e a p a r t i c i p a ç ã o d o d i r e i t o na e c o n o m i a c na s o c i e d a d e , Incluindo uma
e x t e n s a s e ç ã o e x p l i c i t a m e n t e intitulada "Sociologia d o D i r e i t o " . N e s t a a p r e s e n t a ç ã o , b a s e c l - m c p r i n c i p a l m e n t e na reccn-
te e d i ç ã o e m inglês da o b r a c o m p l e t a , 1 - 3 M . W E B E R , E C O N O M Y A N D S O C I E T Y ( G . R o t h & R . W i t l i c h ed. I96H)
[ d o r a v a n t e citada c o m o E C O N O M I A E S O C I E D A D E ) .

5 O p r o g r a m a d e s t a investigação está e x p l i c i t a m e n t e a p r e s e n t a d o na i n t r o d u ç ã o d c W c b c r h sua sociologia da


religião. Ela foi r e - l m p r e s s a e m M . W E B E R , T H E P R O T E S T A N T ETHIC' A N D T H E S P I R I T O F CAPITALISM, pp. 13-
34 ( 1 9 5 8 ) . Bcndix vê a sociologia d o d i r e i t o c o m o u m a e x t e n s ã o d o p r o g r a m a b á s i c o q u e c o m e ç o u c o m a sociologia da
religião. B E N D 1 X , p . 2 7 9 .

6 M . W E B E R , ver nota 4 da página a n t e r i o r .

7 A . r e l a ç ã o d e W c b e r c o m o M a r x i s m o c c o m p l e x a e seu d i á l o g o c o m Idéias m a r x i s t a * leve g r a n d e influencia em


sua s o c i o l o g i a d o d i r e i t o . W c b c r r e j e i t a v a a filosofia m a r x i s t a da História c a n o ç ã o d e q u e o d l r e l l o era uma "superes-
t r u l u r a " q u e r e f l e t i a u m a " b a s e " e c o n ô m i c a , mas aceitava e l e m e n t o s substanciais da análise m a r x i s t a da sociedade capita-
lista. P a r a u m a d i s c u s s ã o g e r a l da r e l a ç ã o e n t r e W e b e r c o M a r x i s m o , ver A . C I D D E N S , C A P I T A L I S M A N D M O D E R N
S O C I A L T H E O R Y ( 1 9 7 1 ) ; R o t h , T h e H i s t o r i c a l R e l a t i o n s h i p t o M a r x i s m , c m R . B E N D I X 8c C . R O T H . SCHOLARS-
HIP A N D P A R T I S A N S H I P : ESSAYS O N M A X W E B E R p p . 2 2 7 - 5 2 ( 1 9 7 1 ) ; V i n c e n t , R e m a r q u e i S u r Marx c t Weber,
c o m m e t h c b r l c i c n s dl d r o i t e t d e I ' e t a t , 1 9 6 4 A R C H I V E O E LA P H I L O S O P H I E D U D R O I T , p. 2 2 9 .

8 Veja 2 E C O N O M Y A N D S O C I E T Y 8 8 3 ; M. W E B E R . T H E R E L I G I O N O F C H I N A p p . 1 4 9 - 5 0 ( 1 9 S I ) [dora-
vante c i t a d o c o m o A R E L I G I Ã O DA C H I N A | .

9 Veja A R E L I G I Ã O DA C H I N A , p p . 1 0 0 - 0 * e p p . 1 4 7 - 5 0 .

10 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 3 4 .

11 I d e m p p . 3 1 . 3 6 .

12 I d e m .

13 I d e m , p . 3 1 3 .

14 i d e m , p p . 3 4 - 3 5 ; Pelo t e x t o , d e v e r i a ficar c l a r o q u e W c b e r , assim c o m o o u t r o s f u n d a d o r e s da sociologia


m o d e r n a , l u t o u c o m o c o n t r a s t e e n t r e a u t o r i d a d e e p o d e r , q u e se t o r n a r a v i v i d o n o s é c u l o X I X . C e r t o s aspectos de sua
d e f i n i ç ã o d e d i r e i t o e s t ã o r e l a c i o n a d o s a p o d e r ( c o a ç ã o ) ; o u t r o s o localizam dentTO da e s f e r a da a u t o r i d a d e (legitimi-
d a d e ) . E m b o r a e s t a a m b i g ü i d a d e possa c o m p l i c a r a t a r e f a da I n t e r p r e t a ç ã o d o t e x t o , a d e f i n i ç ã o r e s u l t a n t e provavel-
m e n t e m o s t r a m u l t o b e m a d u a l i d a d e c a r a c t e r í s t i c a d o d i r e i t o m o d e r n o . Para uma e x c e l e n t e d i s c u s s ã o s o b r e o contras-
t e e i i t r e p o d e r e a u t o r i d a d e c m W e b e r e o u t r o s a u t o r e s , veja R . N I S B E T . T I I E S O C J O L O G J C A L T R A D I T I O N , p p . 107-
73 (1966).
I

OtofJffiEaDDfRElTOGV 5 V."3 w. I I P. It>l - IBA I JAN-JUN 2UÜ/' » 181

15 2 E C O N O M I A E . S O C I E D A D E , pp. 6 5 3 - 5 8 . R a c i o n a l i d a d e " e x t r i n s e c a " , . j i * n l g n l l k a confia.»,"» ritualistic* c m


colnas c o m o s e l o c o u t r a s f o r m a l i d a d e s legais, n à o é p a r t e c e n t r a l das análises muls gerais d e W c b c r , c n ã o s e r á d i s c u t i -
da na análise s u b s c q O c n t e .

16 I d e m , p p . 6 5 7 - 5 8 . Em u m a d i s c u s s ã o mais e x t e n s a s o b r e o p e n s a m e n t o d e W e b e r , s e r i a I m p o r t a n t e t r a ç a r a s
o r i g e n s da decisão d e e l e v a r o l e g a i l s m o a um m o d e l o tie p e n s a m e n t o j u r í d i c o , e e l e g e r o m o d e l o P a n d e c t l s t a A l e m ã o
c o m o o z c n l t e d o p e n s a m e n t o legalista. Posso a p e n a s s u g e r i r possíveis d i r e ç õ e s para q u e u m a i n v e s t i g a ç ã o c o m o esta seja
r e a l i z a d a . A p r i m e i r a q u e s t ã o a ser e x a m i n a d a s e r i a a razão p e l a qual W c b c r e s c o l h e u e x a m i n a r o a u m e n t o d o s tipos d c
p e n s a m e n t o j u r í d i c o a o invés d e se c o n c e n t r a r d i r e t a m e n t e n o s a s p e c t o s essenciais d e u m s l s t e m n para o qual o p e n s a -
m e n t o j u r í d i c o é, a t é c e r t o p o n t o , u m Indicador. Esta e s t r a t é g i a p o d e s e r e x p l i c a d a se p e n s a r m o s , p a r a l e l a m e n t e , c m sua
s o c i o l o g i a da religião, cin q u e a variável d e p e n d e n t e é u m a classe p a r t i c u l a r d e c r e n ç a r e l i g i o s a ; e, p o r flm, s e p e n s a r -
m o s n o c o m p l e x o d i á l o g o d e W e b e r c o m o m a r x i s m o , q u e o levou a se c o n c e n t r a r n o p a p e l I n d e p e n d e n t e d a s idéias e m
r e l a ç ã o ã H i s t ó r i a . N o t e - s e q u e ele desejava m o s t r a r q u e o p e n s a m e n t o j u r í d i c o contrlí>ulu p a r a a ascensão d o capitalis-
m o , e n ã o o c o n t r á r i o . 3 i d e m , p . 8 9 2 . Para u m a d i s c u s s ã o s o b r e M a r x e W e b e r n e s t e c o n t e x t o , veja A. C I D D E N S , n o t a
3 acima, pp. I 9 0 - 9 5 e p p . 2 0 5 - 2 3 .
Por o u t r o l a d o , t a l v e z as c a r a c t e r í s t i c a s d o p e n s a m e n t o j u r í d i c o a l e m ã o t e n h a m e n c o r a j a d o W e b e r a enfatizar o
m o d o s i s t e m á t i c o e a b s t r a t o d e p e n s a r c o m o p e c u l i a r i d a d e m a r c a n t e d o legailsmo. Franz N e u m a n n r e s s a l t o u q u e as c o n -
d i ç õ e s políticas da A l e m a n h a d o S é c u l o XIX t i v e r a m u m f o r t e I m p a c t o s o b r e o m o d o c o m o os p e n s a d o r e s a l e m ã e s t e n -
t a r a m d e s e n v o l v e r u m c o n c e i t o d a q u i l o a q u e m e r e f e r i c o m o "legailsmo", N e u m a n n vê e s t e s p e n s a d o r e s c o m o r e p r e -
s e n t a n t e s d c unia classe m é d i a e m a s c e n s ã o , q u e t e v e q u e c o n f r o n t a r a r e a l i d a d e d c u m e s t a d o p r a t i c a m e n t e absolutlsta
c o n t r o l a d o p o r o u t r a s c a m a d a s sociais. Esta I m p o t ê n c i a p o l í d c a o s levou a e n f a t i z a r técnicas f o r m a i s e lógicas, e não
s u b s t a n c i a i s , para r e s t r i n g i r a ç õ e s d c e s t a d o a r b i t r á r i a s . Veja, d e m a n e i r a g e r a l , F. N E U M A N N , T H E D E M O C R A T I C .
A N D T H E A U T H O R I T A R I A N STATE, p p . 2 2 - 6 8 ( I 9 5 7 ) . Veja t a m b é m a n o t o 48 abaixo. Para u m a tentativa d e explicar
" r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l " e m r e f e r ê n c i a a c o n c l u s õ e s t i r a d a s a p a r t i r da J u r i s p r u d ê n c i a a n g l o - a m e r i c a n a , veja
R h e l n s t e l n , n o t a 5 a c i m a , p p . Il-lxlii.

17 3 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p . 9 5 3 .

)8 l I d e m , p p . 2 I 5 - I 6 . Para u m e x c e l e n t e r e s u m o d e s t e s t r ê s t i p o s d c d o m i n a ç ã o , veja B E N D I X , p p . 2 9 4 - 9 7 .

19 E m b o r a o c a m p o d c pesquisa d c W e b e r , d e m a n e i r a g e r a l , fosse as t e n d ê n c i a s e v o l u t i v a s d o p e n s a m e n t o social


d o llnal d o século X I X , ele o c a s i o n a l m e n t e postulava p r o c e s s o s e v o l u t i v o s . U m d e s t e s p r o c e s s o s foi u m e s b o ç o d o d e s e n -
v o l v i m e n t o da d o m i n a ç ã o legal n o O c i d e n t e . N e s t e e s b o ç o , são I d e n t i f i c a d o s q u a t r o e s t á g i o s : ( 1 ) R e v o l u ç ã o Jurídica
c a r i s m á t i c a pelos " p r o f e t a s " d o d i r e i t o ; ( 2 ) e l a b o r a ç ã o e aplicação e m p í r i c a d a s leis p e l u s h o n o r a t l o r e s ( n o t á v e i s ) ; ( 3 )
I m p o s i ç ã o do p o d e r p e l o s p o d e r e s s e c u l a r e s o t c o c r á d c o s ; c (4) e l a b o r a ç ã o d c um sistema e s p e c i a l i z a d o , p r o f i s s i o n a l e
l ó g i c o . 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p p . 8 8 2 - 8 3 . Estes e s t á g i p s p a r e c e m p a r a l e l o s a o s q u a t r o p r i n c i p a i s t i p o s d e u p e n -
s a m e n t o j u r í d i c o " . E m b o r a o p r ó p r i o W e b e r não desse relevo a este e s b o ç o e v o l u t i v o , Bendix o c o n s i d e r a essencial para
a s o d o l o g l a d o d i r e i t o , e o r g a n i z o u sua análise d a s idéias d e W e b e r s o b r e o d i r e i t o n o s t e r m o s d e s t e s q u a t r o estágios.
Veja UENDIX pp. 2 1 7 - 1 8 .

2 0 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E , pp. 2 I 7 - I S .

21 3 l d e m , p. 9 7 6 .

22 Isto é o q u e W e b e r c h a m a d c "justiça JCadl", ou " J u l g a m e n t o s i n f o r m a i s d e c i d i d o s p o r ética c o n c r e t a o u o u t r a s


e s t l m a t l v a x práticas". I d e m , p. 9 7 6 . O s e g u i n t e f r a g m e n t o n o s dá u n i v i v i d o retrato da justiça Kadi:
O Juiz c h i n ê s , u m típico j u i z p a t r i a r c a l , c o m a n d a v a o s j u l g a m e n t o s d e f o r m a t i p i c a m e n t e p a t r i a r c a l . O u seja, até
o n d e lhe d a v a m l i b e r d a d e c m r e l a ç ã o ás t r a d i ç õ e s sagradas, ele n ã o arbitrava c o n f o r m e as r e g r a s f o r m a i s o " s e m p r e o c u -
p a ç ã o c o m as pessoas envolvldxs". O c o r r i a e x a t a m e n t e o c o n t r i r l o ; e l e julgava as pessoas d e a c o r d o c o m suas q u a l i d a d e s
c o n c r e t a s e c m relação à s i t u a ç ã o c o n c r e t a o u d e a c o r d o c o m sglmparclalldade e a p r o p r i e d a d e d o r e s u l t a d o c o n c r e t o ;
A R E U C I Â O DA C H I N A , p. 149. E s t e tipo d c leglslaçãq e a p l i c a ç ã o das leis " d e s c o n h e c e r e g r a s racionais d e decl-
s ã o " 3 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 9 7 6 .

23 2 E C O N O M I A E SOCIEDADE, p. 637,

24 W e b e r t r a ç o u u m a d i s t i n ç ã o e n t r e " d i r e i t o " e u a d m l n l s t r a ç ã o M . A d i n l n l s t r a ç ã o é o g o v e r n o a g i n d o c m busca d c


" o b j e t i v o s c o n c r e t o s p o l í t i c o s , é t i c o s ou u t i l i t á r i o s " , ou o u t r o s t i p o s d e o b j e t i v o s c o n c r e t o s . 2 I d e m , p. 6 4 5 . O g o v e r n o
1 8 2 . MAX W E B E R SOBRE DIREITO E ASCENSÃO 0 0 CAPITALISMO h 9 7 2 l DAVID M. TRUOEK

só sc t o r n a " d i r e i t o " q u a n d o p r o m u l g a r e g r a s gerais. I d e m , A justiço s u b s t a n c i a l m e n t e racional e s t i associada c o m admi-


n i s t r a ç ã o c n í o c o m o d i r e i t o c o m o d e f i n i d o p o r e s t e ú l t i m o s e n t i d o . W e b c r diz q u e o s i s t e m a patriarcal d e justiça,
e m b o r a "possa s e r b a s t a n t e racional n o s e n t i d o da a d e r ê n c i a a p r i n c í p i o s f i x o s , nào o é n o s e n t i d o d e u m a racionalidade
lógica c m seu m o d o d e p e n s a r , m a s sim na busca d e p r i n c i p i o » s u b s t a n c i a i s d e justiça s o c i a l . . . " Idem, p. 8 4 4 . Sistemas
d e s t e t i p o " r e c u s a m - s e a s e t r a n s f o r m a r e m u m c o n j u n t o d e r e g r a s f o r m a i s . . , São t o d o s c o n f r o n t a d o s c o m o Inevitável
c o n f l i t o e n t r e f o r m a l l s m o a b s t r a t o e c e r t e z a j u r í d i c a e seu d e s e j o d e a l c a n ç a r o b j e t i v o s substanciais".Idem, p. 8 1 1 .

2 5 I I d e m , p. 8 1 1 .

2 6 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E p. 2 3 9 . Veja t a m b é m A R E L I G I Ã O DA C H I N A , pp. 1 0 0 - 0 4 .

27 Idem.

28 I d e m , p . 2 4 4 .

2 9 Veja, p o r e x e m p l o , 2 I d e m , p . 8 1 1 .

30 W e b c r o b s e r v o u q u e
A r a c i o n a l i d a d e das h i e r a r q u i a s e c l e s i á s t i c a s , assim c o m o a d c s o b e r a n o s p a t r i a r c a i s , t e m c a r á t e r s u b s t a n c i a l e,
p o r t a n t o , s e u o b j e t i v o n ã o é o b t e r o m a i o r g r a u p o s s í v e l d e p r e c i s ã o j u r í d i c a f o r m a l , o q u e m a x i m i z a r i a as m u d a n -
ças na d i r e ç ã o da p r e v i s ã o c o r r e t a d a s c o n s e q ü ê n c i a s j u r í d i c a s c A s l s t e m a t l z a ç â o r a c i o n a l d o d i r e i t o c d e seus p r o -
c e d i m e n t o s . A I n t e n ç ã o c , na v e r d a d e , e n c o n t r a r o t i p o d e d i r e i t o mais a p r o p r i a d o p a r a q u e s c a t i n j a m o s o b j e t i v o s
é t i c o s e e x p e d i e n t e s das a u t o r i d a d e s e m q u e s t ã o . Para e s t e s p o r t a d o r e s d o d e s e n v o l v i m e n t o d o d i r e i t o , o t r a t a m e n -
t o c o m p a r t i r a c n t a d o e e s p e c i a l i z a d o ( j u r í d i c o ) d a s q u e s t õ e s d e d i r e i t o é u m a idéia i n c o n c e b í v e l . Eles n3o e s t ã o Inte-
r e s s a d o s e m q u a l q u e r s e p a r a ç ã o e n t r e d i r e i t o c é t i c a . Isto c p a r t i c u l a r m e n t e v e r d a d e i r o , d c m o d o g e r a l , c m siste-
mas jurídicos q u e sofrem algum tipo d e influencia teórica c que sSo caracterizados p o r uma combinação de regras
legais e r e q u i s i t o s é t i c o s .
Idem, p. 810.

31 A p e r s p e c t i v a w e b e r l a n a fica b a s t a n t e e v i d e n t e nas d i s c u s s õ e s « o b r e a relação e n t r e d i r e i t o e " d e s e n v o l v i m e n -


to", a p r e s e n t a d a s e m T. P A R S O N S , S O C I E T I E S : E V O L U T I O N A R Y A N D C O M P A R A T I V E P E R S P E C T I V E S ( 1 9 6 6 ) .
Parsons laz distinção e n t r e " n o r m a s " e "valores", e dir. q u e " n o r m a s . . . são, p r i m a r i a m e n t e , sociais. T ê m u m significado
r e g u l a d o r para os processos e r e l a ç õ e s sociais, mas n ã o I n c o r p o r a m ' p r i n c í p i o s ' q u e s e r ã o aplicados além da organização
social... E m s o c i e d a d e s m a i s avançadas, o l o c o e s t r u t u r a l das n o r m x s é o s i s t e m a d e d l r e i t o . " l d e m , p. 18. Parsons p a r c e l
c c e s t a r d i z e n d o : ( I ) Temos n o r m a s a p e n a s q u a n d o s e p a r a m o s o d i r e i t o ( o b r i g a ç õ e s e x t e r n a s ) da ética; (2) sociedades*
avançadas " r e m e t e m a o d i r e i t o , e m p r i m e i r o lugar, para e l a b o r a r u m a o r g a n i z a ç ã o n o r m a t i v a ; (3) d i r e i t o e ética estão
s e p a r a d o s na s o c i e d a d e m o d e r n a c a força social s a i tenta a p e n a s o d i r e i t o . P a r s o n s s u g e r e q u e as sociedades e v o l u e m um
crês estágios: p r i m i t i v o , I n t e r m e d i á r i o e m o d e r n o . Ele vê o s u r g i m e n t o do " l e g a l l s m o " c o m o a característica principal
q u e marca a evolução d a s sociedades d e " I n t e r m e d i á r i a s " para " m o d e r n a s " . I d e m , p . 2 6 . Sua explicação para este f a t o é
d e inspiração w e b e r l a n a e c a r a c t e r l s t i c a m e n t e p a r s o n l a n a e m sua c a p a c i d a d e d c s e r a b s t r a t a :
O D i r e i t o , q u a n d o d e s e n v o l v i d o c m u m nivel s u b s t a n c i a l , p r o m o v e a I n d e p e n d ê n c i a d o s c o m p o n e n t e s n o r m a t i v o s
da e s t r u t u r a social d u exigências d e interesses políticos e e c o n ô m i c o s c dos f a t o r e s pessoais, orgânicos e fisico-nmbien-
tais q u e a t u a m atravéx deles.
Idem, p. 27.
A o r g a n i z a ç ã o deste d i r e i t o d e v e s e r " a l t a m e n t e g e n e r a l i z a d a , d e a c o r d a c o m p r i n c í p i o s universo Is". Isto r e q u e r ,
acima d e t u d o , " r a c i o n a l i d a d e f o r m a l " . I d e m . Parsons s e g u i u , c m um nível b a s t a n t e s u p e r f i c i a l , a análise d e W e b c r , m a s
a g e n e r a l i z o u p a r a todas as s o c i e d a d e s , f a z e n d o c o m q u e o d e s e n v o l v i m e n t o d e u m a r a c i o n a l i d a d e l ó g l c o - f o r m a l seja u m a
característica d e " m o d e r n i d a d e " . D e a c o r d o c o m esta c a r a c t e r í s t i c a , p o d e r i a p a r e c e r q u e a I n g l a t e r r a jamais s e t o r n o u
" m o d e r n a " Já q u e nunca d e s e n v o l v e u u m a r a c i o n a l i d a d e f o r m a l Esta o p i n i ã o t a m b é m u n e o c o n c e i t o de m o d e r n i d a d e às
s o c i e d a d e s q u e d e s e n v o l v e m o r d e n s d c d i r e i t o a u t ô n o m a s , e assim e x c l u e m a p o s s i b i l i d a d e d e " m o d e r n i z a ç ã o " « m "lega-
llsmo". U n g e r d e m o n s t r o u d e m a n e i r a conclusiva a q u a l i d a d e e l n o c ê n t r l c a deLsta o p i n i ã o . R. U N G E R . T H E PLACE O F
L A W IN " M O D E R N " S O C I E T Y (a s e r e d i t a d o ) .

3 2 A r a c i o n a l i d a d e f o r m a l 6 o p r o d u t o de uma f o r m a específica d e especialização e e d u c a ç ã o jurídica e n c o n t r a d a


n o C o n t i n e n t e . Esta especialização p r o m o v e a a u t o n o m i a d a s n o r m a s J u r í d i c a s c m relaçüo i s outras n o r m a s . A qualida-
d e geral e a b s t r a t a da racionalidade l ó g i c o - f o r m a l t o r n o u possível a c r e s c e n t e d i f e r e n c i a ç ã o d a e x p e r i ê n c i a Jurídica c m
relação às o u t r a s forças soclal« W » h - r / r c f v e u :
OãMrtSafeDinEiTOGv °5 „O •N., l ,i ,n. „ISI, •.t f l i | JAN. JUM Z007 1 1
*
1 8 4 T M A X W E B E R P O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O 0 0 C A P I T A L I S M O M972I
OtVIOU. TRUBEK
O., conccllos Jurídico» p r o d u z i d o , p e l „ ensino a c . d é m l c n do direi,,, t e m caracter!,Ilea, d e „ „ „ „ „ . b M r a t a , iiuc
ao m u n o , em principio, ,ão f o r m a d a , « distingui,la, u m a , d a , o u t r a s p o r m e l o do rlgoresa, i n . o r p r . o p 1 o . l ú o i c » for-' Penso que Weber estava t e n t a n d o chegar a idéias que podem s e r e n c o n t r a d a na distinção atuai entra a alccação .»•
m . , , o raciona». Sou carater „ c l o n a l e „ « e n t i t l e , u>ira c o m „ «„ grJU re|sll„mc„tt bj , , „ de c o n c e t u d c resultam c i e n t e e a distribuição imparcial d e recursos. Voja. c o m o e x e m p l o . It. D O R P M A N , PRICES A N D MAI1KFTS (1967)
om uma e m a n c i p a i , , d* largo alcance d o p e n s a m e n t o jurídico c m relação às necessidade» cotidiana, d o , cidadão» " 7 ' n n t
™ • l c *l"° u n
" do organização econômica levaria á m a i , "racional" alocação de recu™
2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 789.
m a , reconhecia q u e nao há, necessariamente, uma relação e n t r e tal coisa e u m . "justa"distribuição de beneficio, ccnnô.'
miens. Ele deixou claro q u u a o x l . t é n c l , de uma "racionalidade f o r m a l . . . n ã o n , „ dir. nada s o b r e sail.façio rc.l d e d e * .
33 Idem p p HS2-SÕI fcra oma cuidadosa r e c o n s t r u ç ã o da descrição d e Weber sobre o s u r g i m e n t o d o d i r e i t o | o s , a nao ser <,ue esteja associada a uma análise d e distribuição dc r e c e i t a , - . I E C O N O M I A E SOCIEDADE p 109
racional f o r m a l , veja BENDIX, p. 3 9 1 . 4 1 6 .
A lorma mai, racional de o r j . n t e . ç W p a r c c e reiletlr a Idéia atuai do., economista, «obre competição uelfclla Est,
interpretação e apoiada pela cspeclllcação l e Weber par, a, "condições essencial,''ncccsarla, para L , J om.nbarin
34 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E , pp. 303-07.
economic, seja formalmente racinnal: ( I ) íompetlçãu entre u n i d a d e de mercado atl.Snnm,,: (2) aurinet, d A u a U c r
forma de monopoIka, (3) resultado, p r o d u t o , determinado, por deimnda d o , consumidores; (4) mercado d , l a l W h n
35 BENDIX, pp. 8 5 - 8 7 . C
II . " C o 1 " L d c « ^ • " l . m d o m : (5) .„.éncla do ^ualtiuer regulação essencial ao c o n ^ m o , pmduçi, „ „
determinaçao de preço, ,"liberdade substancial d . contra,„•): (6) tecnologia racionai e cujo, valore. p o , „ m « r deter-
36 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , pp. 7 7 5 . 7 6 .
minados; 7) administração puhlica e organização jurídica totalmente transparente,, e garantias conflável. -puramente
o ma , de todo, o , contratos leito, pela, organizações política, ("administração e direito formalmente J L | , > c
37 Voja, do motlo geral, idem, p p . 865-95.
(8) diiervnclaçao entre cmpre.sa c família. Idem, pp. 161-64.
E m b o r a falte á dlKuxsão de W e b e r a elegância d c o p i n l i k s m o d e r n a , sobre teoria de p r e ç o , e ele tenha Incluído
e l e m e n t o s Implícito, ao p e n s a m e n t o e c o n ô m i c o neoclásslco. p o d e - s e p e r c e b e r e m s u a , a n i l l . c , a , p e c o , atualmente dl,,
. i " , ! J t ' , ü ' P ; ' 4 7 , ° d l r e " ° ™ c l o n j l fenMl n i ° " " S 1 " " P " " » p o r a l c o d e r i , neccssid.de, b u r g u e u , de um direi-
cutidos c m m i c r o c c o n o m i a c na e c o n n m i a do Welfare State. .
to calculate! . Idem, p 8 5 5 . N , verdade, , 1 , , u r g c como f o l i a d o d e . ® n e c e , , i d a d e cm conexão ás n e c « i d a d e , da
a d m i n i s t r a d o patriarcal de uma organização r a c l o n . l . T a m b é m e p r o d u t o da p r e . r f o e x e r c i d . p o r uma forma c p e e M c , N o interior deste m o d e l o t e o r i c a m e n t e p u r o . o direito a.«ume o papel d e uma "organização formai", um conceito
d e educação Jundlca p o r , u . vez. é r e , u l , a d o d e oma f o r m a específica do organização profissional. Uma ela.se capi- teórico cjuc Weber Identificava ao e , t a d , d o laissez-faire, i d e m . pp. 7 4 - 7 5 . " O estado l . ü L - f a i r e puro",disse,"dei,.ri,
1
" « " « ' I a , ma, nãn suficiente, para o s u r g i m e n t o da racionalidade Jurídica. as atividades e c o n o m i c ! , d e a r c c e m p r e e n d i m e n t o , indlvlduai, inteiramente livres e confinaria sua rcgulaçãoi função
f o r m a d e resolver d l . p u t z , ligadas i saüsfação de n b r l g a ç ô e , c o n t r a t u a l , l i v r c s M d c m , p. 7 ! . S o b um t a l s i s L ,
39 I Idem, p. 6 5 .
a, l o n t o . n , „ - h u m a n a s d , u U l i d . d e tío c o m p l e t a m e n t e a p r o p r l . , 1 , , p a r , q u e Indivíduo, p c a m utilizá-la. livremente
p a r d e u a r m e n t e pela ^ c . . . . " , d e m . O estado se r c s l r l n g c a iizer valer e l u , apropriações ( p r o p r i e d a d e , n u ^
40 2 idem, p. 883.
c n « ela, ( c o n t r a t o , . E m b o r a , t e o r i c a m e n t e , g a r a n t i a , legal, de c o n t r o l e s o b r e r e c u r s o , não s e j a m estritamente ncccs.

41 T r u b e k , nota I acima.

1 COn
42 T. PARSONS. T H E S T R U C T U R E O F S O C I A L A C T I O N , p p . 89-94 11963). dn J í " " " ""™° 0 l " ° J " Ç 5 ° s ™ autônomo, d . economia. O » „ .
dn nao rcgul, , atividade e c o n o m i c . Weber não acreditava , u e tai situação fosse empirlczmentc p,»,i,el; ei. pcm,.
beu que o dlreiu, de,e. por necessidade, afeta, substancialmente a atividade econômica, e , , c o estado m o d e m o l a .
43 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 68.

dc c o m p e t i ç ã o p e r f e i t o é o c o n c e i t o t e o r i e n que c o n e c t a . I g u m a s da, linha» I n c o n g r u e n t e , de sua a n i l b e d„ direito


44 Idem, pp. 6 3 - 6 9 .
P d
v e n j . r t L Z a " T , 7 r i ° "dl™"°" * m
" m P
°"i,Cl 5
-«cia Ei.,' n .
4 5 Idem, p. 65. P a r s o n , ressaltou que uma das principal, linha» d e diferença entre Weber . o , economistas c l i » i - verdade, re,elb,a possibilidade de uma organização econômica racional sob o socialismo, Já que não pndia imagina,
c o s era sua preocupação com a Importância da coação na rida econômica. T. PARSONS, nota 31 acima, pp. 6 5 6 . 5 8 . eotnu estado, „ d a l , , , . , desenvolveriam . I s t e m a , d e alocação sem p r e ç o , e m e r c a d o s ; ele p n J m l . que u m . economl,
, c l l s t a wria de utii zar "cálculo, , m espécie", e não poderia resolver p r o b l e m a s de alocação já que^não have". S
46 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p, 8 ( 1 . r os para a avaliação d e cu.,to, d e o p o r t u n i d a d e " de u s o , específico, d e capital, i d e m , pp. 100-13. T.lvez p o r . e e n ã .
P
" r " " " ""'!<k " " UI"°U " " m ° d d 0 « P 1 " ™ " " " ÚeaIJo um

4 7 Em sua definição d a , condições sociológica, n o c c i r l a » para o capitalismo, Webec c b o ç o u um m o d e l o de


l u c i l o c o m o organiaaçio i o r m a l que facilita, m a . não Inlloencia a, a t i v i d a d e , econômica,. Veja. de maneira geral I
I d e m , p p . 6 3 - 2 1 1 . O que ele c h a m o u de Upo p u r o do racionalidade capitalista p o d e , e r vis,o como um modelo L l o l ó - l i b e r s U l e m l d o " " d T i ' , y T " ; f i n l 5 [ 5 ' ", e i í N E U M
*NN' 18
« i ™ > . PP 2 2 - 6 8 . N e u m a n n apresenta a vi»u
g i c o para o f u n c i o n a m e n t o de um ideal e c o n ô m i c o d e c o m p e t i ç ã o perfeila. Neste modelo, veem-se e l e m e n t o , d , Idéia ' li 'len,Í d° X X
' » lmPir,° 111
> " " 1 " = W ' b o r compartilha d . modo significativo. E,,c como
de p e n s a m e n t o preocupava-se e m garantir liberdade econômica , e m n c c e s „ r l a m e n t e buscar garantias dc libenl.de poli-
d e W . b . r d o d i r e t o como u m . e s t r u t u r a e c o n o m i c a m e n t e neutra de atividade estatal necessária para o efetivo funcio-
tlca. C o m o resultado pensadores desta tradição p r o c u r a r a m criar enclave, c o n c e i t u a i , n o Interior d o , qual, a advid.de
n a m e n t o d e u m sistema de m e r c a d o .
econômica p u d e „ e funcionar » - r e de ioíerferénclas a r b i t r a r i a , . A , a t i v i d a d e , e c o n ô m i c a , f . r a m « p . r . d U d , outros
ó l - s m í t . f w T T ? Í T - " 6 ° * r " l ™ a l l J l d = " ° " S ' » l c a . Empregando uma terminologia que agora n o ,
o lamillar, Weber fazia dlstlnçãu e n t r e d o l , t i p o , d e racionalidade e c o n ô m i c a : formal o substancial. Sua primeira n r e o . o, c a b e l e d d o p a r . a atividade e c o n ô m i c a , que d e v e r l . ser regul.da apenas p e l o "direi,o", e não pelo e»ado E l«a.
c u p a ç ã o era c o m o conccilo d e -racionalidade formal", que ele definiu c o m o "a extensão do cálculo q u a l i t « l « - L é li.mo, expresso em c o d l g o , d . l , c u l d a d o ^ m e n t e « l . b o r . d o , , « r i , limitado, f u n d a m e n t a l m e n i e . i a d m l n í , « ç ã o d a l
t e c n i c a m e n t e possível e e m p r e g a d o em u m sistema econômico, I d e m , p. 85. A racionalidade sob,tanc!al, por o u t r o lado vldade e c o n o m i c , A , i d . econômica poderia , e r . d m i n i , , r a d a a p e n a , p o r m e l o do Império d» lei o o Império da Id scrl,
r e f e r e - s e a capacidade d . oma dada e c o n o m i a em satlslizer necos,idade,. l , , o é avaliado p o r um conJunVo q u a l o u e , d^ re o„.ávol p o r administrar apenas a vida e c o n ô m i c a . O postulado bi»lco da regulação da atividade ecnnómlcacra cen
c r i t é r i o , , escolhido d e n t r e vário, c o n j u n t o , poietivel,. I d e m . pp. 8 5 - 8 6 . A racionalidade "formal", para Weber, parece t e r , rvar o ma or c p a ç o de l l b e r d . d e p o „ í v e l a o , p a r t i c i p a n t e , d e . s a , atividades. O es.ado deveria Intervir .pena, o " .
s i d o om t e r m o c c n t f f l c o livre He vaior, pois , presença desta qualidade poderia ser verificada objetivamente, no c n o n - elaboração de uma c s t r u t u r a g c r a l e neutra con.lda e m código, c u i d . J o s a m c n . e e l a b o r a d o , c o n í o r m e o sistcLa "dín
to r e c o n h e c e r a exlslencla da r a c i o n d l d . d e sub.tancial é uma f u n ^ o p u r a m e n t e restrita a o , . a l o r e , especifico» de u m cia do direi,o . para q u e p u d e s s e ser aplicado p e l o , m é t o d o s , u . W e b e r chamava de "racionalidade I n g i c W no
o b s e r v a d o r . Esta terminologia p e r m i t i r i a u m a a f i r m a ç ã o cientifica tal c o m o " O slstcma econômico de X í mais íormai- qu a o papel do Juiz e r e d u z i d o a tarefas p u r a m e m e cognitiva, e. p o r t a n t o , previsíveis. O . p o s t u l . d o , b L o , d . „ « ^
m e n t e racional d o que o de Y , m a , apenas p e r m i t e que se diga , u c X é m a l . -substancialmente racional" que 1 d e açor- do livre loram i n c o r p o r a d o , . o m e c . n i s m o c o n s t r u í d o p o r j u r i , , a s que compartilhavam d e s t a , opiniões. A e l l i „ i „ . ( i „ d e
ü o c o m o p o n t o de vista de u m dado c o n j u n t o de valores d e um g r u p o social. qualquer d l . c r i c o n a r i e d a d e judicial e a supressão de q u a i . q u e r c o o , í d e r , ç 6 e , d . valore, a d v i n d o , d , aplicai.Til
garantiria que este m e c a n i s m o a u t ô n o m o p e r m a n e c e s s e a u t ô n o m o .
DS®tsf®TMiDiReiTosv 5 Э H. I I P. 1 5 1 - 1 0 4 I J A N - J U N 2007 T

4 9 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 6 8 a .

5 0 Idem.

51 Idem, p. 892.

5 2 Idem, p. 890,

5 3 Idem, p. 891.

5 4 J I d e m , p. 9 7 7 .

5 5 2 Idem, p. 814; 3 Idem, p. 9 7 7 .

56 2 Idem, p. 814.
5 7 1 I d e m , p. I J 9 S . Veji a m b i m A R E U C l A o OA C H I N A , p. 102.

SB Veja С и Ь е п Л Ъ е "England P r o b l e m * and the T h e o r y оГ Economic D e v e l o p m e n t , Yale Law School P r o g r a m In


U w a n d Modernization, Working Paper N o 9 ( 1 9 7 2 ) .

59 Idem.
6 0 Veja, nota 47 acima.

6 1 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 699.

6 2 Idem, p. í 12. „

6 3 3 Idem, pp. 9 7 9 - 8 0 .

6 4 Idem, p. 980.

6 5 2 Idem, p p . 7 2 6 - 2 7 .

66 Hath, I n t r o d u ç ã o a I idem, p. xxxl.

6 7 Veja Weber, Objectivity In Social Science and Social Policy, e m T H E M E T H O D O L O G Y O F T H E SOCIAL


S C I E N C E S , pp. SO-112 (E. SHILS íc H. F I N C H e d . 1949).

6 8 Para uma dLscuisão detalhada d e s t e , problema», veJaTrubek, nota 3 acima.

6 9 Veja п о и 49 acima.

7 0 Vc|a nota.. 4 7 - 4 9 acima.

7 1 luto 1Ы m c n e i n n a d n p o r R o b e r t o Mangabelra l i n g e r e m uma palestra sobre W c b c r na Faculdade de Direito de


Harvarti e m 1972. Veja t a m b é m II. U N G E R , nota 31 acima. Para uma discussão sobre a relevância dos I n s t r u m e n t o s

David M. Trubek
VOSS-8ASCOM PROFESSOR OF LAW & SENIOR FELLOW,
CENTER FOR WORLD AFFAIRS ANO IHE GLOBAL ECOHOMT
(WAGEL DA UNTVEFLSIFMOH OE WISCONSIN-MAOISON
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SOCIOLOGIA
E DIREITO í

Textos Básicos ^para a


Disciplina de Sociologia Jurídica

Cláudio Souto
e "«sãs*
Joaquim Falcão
(da Universidade Federal de Pernambuco
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(organizadores)

2a Edição Atualizada

THOMSON
*

ália Brasil Canadá Cingapura Espanha Estados Unidos México Reino Unido
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sociologia e direito: textos básicos para a discipli-


na de sociologia jurídica / Cláudio Souto e Joaquim
Falcão (organizadores). -- São Paulo : Pioneira
Thomson Learning. 2002.

3. reimpressão da 2. ed. atual, de 1999.


ISBN 85-221-0181-7

I. Sociologia jurídica I. Souto, Cláudio, 1931-.


II. Faleão, ^Joaquim. III. Título. IV. Série.

CDD-371. 397

índices para catálogo sistemáticos

1. Direito e sociologia 34t}01


2. Sociologia jurídica 34:301
OCIOLO
E DIREITO
)
Ordem Jurídica e Ordem Econômica,
Direito Estatal e Extra-Estatal 1 3

Max Weber

Quando se fala de "direito", "ordem jurídica", "preceitos jurídicos", deve-se


ter em conta de um modo particularmente rigoroso a distinção entre a consideração
jurídica e a sociológica. À primeira se pergunta o que idealmente vale como direito.
Isto é: que significado, ou, o que é o mesmo, que sentido normativo logicamente
correto deve corresponder a uma formação verbal que se apresenta como norma
jurídica. Pelo contrário, à última se pergunta o que de fato ocorre em uma comu-
nidade em razão de que existe a probabilidade de que os homens que participam na
atividade comunitária, sobretudo aqueles que podem influir consideravelmente
nessa atividade, considerem subjetivamente como válida uma determinada ordem
e orientem por ela sua conduta prática.^ De acordo com isso se define também a
relação de princípio entre o direito e a economia.
A tarefa da ciência jurídica (de um modo mais preciso, a jurídico-dogmática)
consiste em investigar o reto sentido dos preceitos cujo conteúdo se apresenta
como uma ordem determinante da conduta de um círculo de homens, demarcado
de alguma maneira, isto é, em investigar as situações de fato subsumidas nesses
preceitos e o modo de subsumi-las. Procede de tal sorte nessa tarefa que, partindo
de sua indiscutível validez empírica, trata de determinar o sentido lógico dos
preceitos singulares de todas as classes, para ordená-los em um sistema lógico sem
contradição. Este sistema constitui a "ordem jurídica" no sentido jurídico da
palavra. Pelo contrário, a ciência econômico-soçial considera aquelas ações huma-
nas, que estão condicionadas pela necessidade de orientar-se na realidade
econômica, em suas conexões efetivas. Chamamos "ordem econômica" à distri-
buição do poder de disposição efetivo sobre bens e serviços econômicos que se
118 SOCIOLOGIA E DIREITO

produz consensualmente - consensus* — segundo o modo de equilíbrio dos


interesses, e à maneira como esses bens e serviços se empregam segundo o sentido
desse poder fático de disposição que descansa sobre o consenso.
É evidente que ambos os modos de considerar os fenômenos planteiam
problemas totalmente heterogêneos e que seus "objetos" não podem entrar em
contato de um modo imediato; a "ordem jurídica" ideal da teoria jurídica nada
tem que ver diretamente com o cosmo do atuar econômico real, porque ambas
as coisas estão colocadas em planos distintos: uma na esfera ideal do dever ser;
a outra na dos acontecimentos reais.
Ora pois, se, apesar disto, a ordem econômica e a jurídica se encontram
mutuamente na mais íntima relação, tal significa que esta última não se entende
no sentido jurídico, senão sociológico: como validez empírica. Neste caso, o
sentido da expressão "ordem jurídica" muda totalmente. Então não significa
um cosmo lógico de normas "corretamente" inferidas, senão um complexo de
motivações efetivas do atuar humano real. Isto necessita uma maior explicação.
O fato de que alguns homens se conduzam de um determinado modo porque
consideram que assim está prescrito por normas jurídicas constitui, sem dúvida,
um componente essencial para o nascimento empírico, real, de uma "ordem
jurídica" e também para sua perduração. Porém — como resulta do que foi dito
anteriormente sobre o sentido da "existência" das ordens sociais — não significa
isto, de modo algum, que todos e nem sequer a maioria dos participantes naquela
conduta atuem em virtude de tal motivo. Isto não ocorre nunca. As amplas camadas
dos partícipes se conduzem de acordo com a ordem jurídica, seja porque o mundo
circundante o aprova e reprova o contrário, seja por um novo hábito rotineiro
às regularidades da vida arraigadas na qualidáde de costumes, porém não por
obediência "sentida" como obrigação jurídida. Se esta última atitude fosse
universal, o direito então perderia por inteiro|seu caráter subjetivo de direito e
teria que ser considerado melhor como mero costume. Por pequena que possa ser
objetivamente a probabilidade de que o mecanismo coativo force em um caso
dado ao cumprimento daquelas normas, para nós hão de continuar valendo como
"direito". Ao teor do que se disse mais acima 1 , tampouco faz falta que todos
os que, em virtude de um preceito^urídico, estão convencidos do caráter normativo
de uma determinada conduta, vivam sempre de acordo com èste preceito. Também
isto nunca ocorre e - pois que, segundo nossa definição geral, o que decide sobre
a "validez"' de uma ordem é o fato da "orientação" da ação por essa ordem, porém
não seu "resultado" — tampouco é necessário. Para nós o "direito" é uma "ordem"
com certas garantias específicas referentes à probabilidade de sua validez empírica.
E se entenderá por "direito objetivo garantido" o caso em que as garantias consis-

* Tenha-se presente o sentido sociológico de consensus - consensus gentium - que acarreta


o adjetivo "consensual" - einverstandnismàssig - e não o de pacto. Implica certa cons-
ciência de obrigatoriedade de determinadas formas habituais do atuar. IE.)
1
Ver Parte I, cap. I, § 5.
ORDEM JURÍDICA E ORDEM ECONÔMICA • 119

tara na existência de um "aparelho coativo" segundo o sentido que já definimos 2 ,


isto é, que se compõe de uma ou muitas pessoas dispostas de modo permanente
a impor a ordem por meio de medidas coativas, especialmente previstas para isso
(coação jurídica).
Os meios coativos podem ser psíquicos ou físicos, atuar direta ou indireta-
mente, e dirigir-se, segundo os casos, contra os partícipes em uma comunidade
consensual ou em uma sociedade, em uma associação ou em um instituto para
os que a ordem vale (empiricamente), ou também podem dirigir-se para fora.
Constituem as "ordens jurídicas" da comunidade dada. Além disso, nem todas as
ordens que em forma consensual valem para uma comunidade são, como veremos
mais adiante, ordens jurídicas. Tampouco toda a ação das pessoas que formam o
aparato coativo de uma comunidade — ação do órgão — se reduz à coação jurídica,
e só daremos este nome àquela atividade que, por seu sentido válido, se encaminha
a impor a obediência a uma ordem enquanto tal, por conseguinte de modo pura-
mente formal e em razão do mesmo, porque se pretende sua validez obrigatória,
e não — na perspectiva dessa validez — por razões de conveniência ou por outras
condições materiais. É evidente que a validez efetiva de uma ordem pode estar
condicionada de fato, no caso particular, pelos mais variados motivos: falaremos
de "direito garantido" só quando existe a probabilidade de que, chegado o caso,
intervirá a coação "por si mesma", a "coação jurídica". Nem todo "direito"
(objetivo) é — como veremos - direito "garantido". Falaremos também de direito
- "garantido indiretamente" ou "não garantido" - quando o sentido da validez
de uma norma consiste em que o modo de orientar a ação por ela tem em geral
alguma "conseqüência jurídica". Isto é: quando regem outras normas quaisquer
que vinculam ao "cumprimento" ou "infração" das primeiras determinadas
probabilidades, garantidas pela coação jurídica, de uma ação consensual. Ocasio-
nalmente teremos que ilustrar mediante exemplos este caso, que se aplica a um
domínio muito amplo da vida jurídica; contudo, para simplificar pensamos a
posteriori, quando falamos de "direito",em normas garantidas diretamente mediante
a coação jurídica. Nem de longe todo direito (objetivo) garantido o está pela
"força" (perspectiva de coação física). Nem este tipo de garantia, nem o modo de
fazer valer as pretensões de direito privado, próprio da técnica processual moderna,
a "demanda" ante o "tribunal", com a conseqüente execução forçosa, constitui
para nós a nota sociológica decisiva do direito ou, sequer, do "direito garantido".
O campo do que hoje se chama direito "público", isto é, das normas que afetam
a ação dos órgãos ou a atividade institucional do Estado, oferece hoje numerosos
direitos subjetivos e normas jurídicas objetivas contra cuja infração só se pode pôr
em movimento o aparato coativo — ao que muitas vezes lhe falta todo meio de
coação física — por via de "queixa" ou protesto do grupo de pessoas com
atribuições para isso. A questão de se se dá então um direito "garantido" sc decide

2
Ver § 6. Ver também Gesammelte Aufsàtze zur Wissenschaftlehre, 2? cd., p. 445 Anm. 1,
447 ss. (passlm).
120 SOCIOLOGIA E DIREITO

para a Sociologia no caso em que se ache "ordenado" o uso do aparato coativo


para o exercício não violento desta coação jurídica e que possua de fato um peso
tal que, por termo médio, exista em grau praticamente importante a probabilidade
de que uma norma válida seja observada em conseqüência da existência daquela
coação jurídica. Hoje a coação jurídica violenta é um monopólio do Estado. Em|
relação com a coação jurídica violenta todas as outras comunidades que a praticam!
são heterônomas e quase sempre também heterocéfalas. Isto é, todavia, uma!
peculiaridade de determinadas etapas de desenvolvimento. Falaremos de direito
"estatal", isto é, de direito garantido pelo Estado, quando e na medida em que a
garantia, a coação jurídica, se estabelece mediante os meios coativos específicos,
isto é, diretamente físicos no caso normal, da comunidade política. No sentido
de "direito estatal", a existência empírica de uma "norma jurídica" significa:
que no caso de que se apresentem determinados acontecimentos se poderá contar,
em virtude de um consensus, com a probabilidade de que se produza uma atuação
dos órgãos da associação política, atuação que, pelo simples fato de estar em
perspectiva, é adequada para procurar atenção aos preceitos que se derivam dessa
norma segundo o modo habitual de interpretá-la, ou, se isto é já impossível, para
procurar "reparação" e "indenização". Todo acontecimento a que se ligue esta con-
seqüência — a coação jurídica estatal — pode consistir em uma conduta humana
determinada (celebração de um contrato, violação do contrato, delito). Porém
não é mais que um caso particular. Por exemplo, o caso da enchente de um rio
sobre um determinado nível 'pode dar lugar, em virtude de normas jurídicas
empiricamente válidas, à aplicação de meios coativos específicos da autoridade
política contra pessoas e coisas. Não pertence em absoluto ao conceito de validez
de uma "norma jurídica", neste sentido normal, que aqueles que se submetem à
ordem que contém o façam predominantemente ou em geral por causa da exis-
tência de um aparato coativo no sentido já estabelecido. Como logo veremos,
não se trata disto. Pelo contrário, os motivos de submissão ao preceito jurídico
podem ser os mais distintos que alguém pode imaginar. Na sua maioria adotam,
segundo o caso, um caráter mais utilitário ou mais ético ou mais "convencional",
no sentido subjetivo, temendo a desaprovação do meio ambiente. A classe de
motivos dominantes em um dado momento tem a maior importância para a classe
de validez e para as probabilidades de vigência do direito mesmo. Porém para seu
conceito sociológico formal, como nós queremos empregá-los, estes fatos psico-
lógicos são insignificantes; se trata antes, no caso do direito garantido, de que
exista também uma probabilidade suficiente de intervenção de um grupo de
pessoas, estabelecidas para isso, nos casos em que somente se oferece o puro fato
da infração da norma, isto é, que essa intervenção se apóie neste mero motivo
formal.
Os interesses dos indivíduos são afetados de vários modos pela "validez"
empírica de uma ordem como "norma jurídica". Em especial, podem originar-se
para pessoas particulares probabilidades calculàveis de manter à sua disposição
bens econômicos ou adquirir em um futuro, com determinadas condições prévias,
a disposição sobre eles. Dar origem a semelhantes probabilidades, ou assegurá-las,
ORDEM JURÍDICA E ORDEM ECONÔMICA 121

é a finalidade que, no caso do direito estatuído, perseguem os que, por "pacto" ou


por "outorgamento", vinculam a essas probabilidades uma norma jurídica.
A forma de procurar essas probabilidades pode oferecer duplo caráter. Pode
tratar-se do mero '"efeito reflexo" da validez empírica da norma: quando, segundo
seu sentido consensual válido, não se dirige a garantir ao indivíduo as probabi-
lidades que de fato possam caber-lhe por sorte. Ou, pelo contrário, esse sentido
da norma outorga ao indivíduo uma tal garantia: um direito "subjetivo". O fato
de que alguém, graças a uma ordem jurídica estatal, tem um "direito" (subjetivo)
significa, portanto, no caso normal - o que nós temos em conta agora - , para a
consideração sociológica: que possui uma probabilidade, garantida efetivamente
mediante o sentido consensual válido de uma porrna, de pedir a ajuda de um
"mecanismo coativo" preparado com tal fim em ifavor de determinados interesses
(ideais ou materiais). No caso normal, pelo menos, a ajuda consiste em que
determinadas pessoas estejam dispostas a prestá-la caso alguém a elas se dirija nas
formas usuais e faça valer que existe uma "norma jurídica" que lhe garanta essa
"ajuda". E, por certo, puramente como conseqüência daquela 'Validez", sem
consideração a se há razões de conveniência, e tampouco por graça ou arbítrio.
Existe a vigência do direito, quando funciona a ajuda jurídica, neste sentido da
palavra, em uma medida relevante, ainda que seja sem meios físicos ou outros meios
drásticos de coação. Ou quando — direito não garantido — sua não-observância
(por exemplo, não atender aos direitos eleitorais nas eleições) acarreta conseqüên-
cias jurídicas em virtude de uma norma empiricamente válida (por exemplo,
nulidade da eleição), para cuja execução existe uma instância correspondente com
coação jurídica. Não nos ocuparemos, por causa de sua simplicidade, das proba-
bilidades procuradas no caso de "efeitos reflexos". Um direito subjetivo, no
sentido "estatal" da palavra, está sob a garantia dos meios de poder da autoridade
política. Quando entram em jogo outros meios coativos que os da autoridade
política - por exemplo uma autoridade hierocrática — e constituem a garantia de
um "direito",'deve falar-se de direito "extra-estatal", cujas distintas categorias não
podem ser tratadas aqui. Deve recordar^e que também há meios não violentos de
coação que atuariam com a mesma força ou,"'em certas circunstâncias, com maior
força que os estatais. A ameaça de exclusão de uma associação, de um boicote
ou de meios análogos, e igualmente a promessa de vantagens òu desvantagens neste
mundo, condicionadas magicamente, ou a remuneração ou castigo no outro, para
o caso de uma conduta determinada, atuam com freqüência - em domínios
extensos: regularmente - sob certas condições culturais de um modo muito mais
seguro que o aparato coativo político, nem sempre calculável nas suas funções. A
coação jurídica violenta mediante o aparato coativo da comunidade política
freqüentemente ocupa o segundo lugar em relação aos meios coativos de outros
poderes, por exemplo, os religiosos, e em geral depende em absoluto do caso
particular de que se trata até que ponto se estende sua importância real. Estes
outros meios continuam sendo na sua realidade sociológica "coação jurídica" na
medida em que suas forças exercem uma ação social relevante. A Sociologia ignora
isso de que o "Estado" só existe quando e ali onde os meios de coação da comu-
I

122 SOCIOLOGIA E DIREITO

nidade política são de fato os mais fortes frente aos demais poderes. O "direito
canônico" é também direito quando entra em conflito com o direito "estatal", o
que sempre tem ocorrido e ocorrerá inevitavelmente entre a Igreja Católica — e
também as outras - e o Estado moderno. A zadruga eslava na Áustria não só
carecia da garantia jurídica estatal, mas inclusive seus ordenamentos eram em
parte contrários ao direito oficial. Como o atuar consensual que a constitui possui
para seus ordenamentos um aparato coativo próprio; estes ordenamentos represen-
tavam um "direito" que só no caso de haver sido invocado o aparato coativo
estatal não foi reconhecido por este, senão violado. Por outro lado, não é coisa
rara, sobretudo fora do círculo jurídico europeu-continental, que o direito esta-
tal moderno trate como "válidas" as normas de outras associações e examine
as decisões concretas destas. Assim protege numerosas vezes o direito norte-ameri-
cano o "label" dos sindicatos, regula as condições sob as quais um candidato
de um partido será considerado como candidato "válido"; o juiz inglês intervém,
quando se lhe chama, na jurisdição de um clube; o juiz alemão investiga nos
processos por injúrias "se tem lugar", conforme às convenções estamentais, a
recusa de uma provocação de duelo, apesar de que este esteja proibido pela lei
etc. Não entramos aqui na casuística de até que ponto se convertem deste modo
em "direito estatll" tais ordenamentos. Por todos estes motivos e, demais pela
terminologia aqui mantida, recusamos como coisa evidente que se fale só de
"direito" quando, graças à garantia da autoridade política, se disponha de coação
jurídica. Não existe para nós nenhum"'motiyo prático para isso. Falaremos de
"ordem jurídica", quando existir a perspectiva de aplicar qualquer meio coativo,
físico ou psíquico, exercido por um aparelho coativo, isto é, por uma ou várias
pessoas que estejam dispostas a manejá-lo, caso se apresente a situação; quando,
portanto, existe uma forma específica de socialização para fins da "coação jurí-
dica". Nem sempre foi um monopólio da comunidade política a possessão de um
aparelho semelhante para o emprego da coação física. Tampouco existe hoje
monopólio semelhante, como o mostra a significação do direito garantido só
por via eclesiástica, no referente à coação psíquica. Ademais, já dissemos que a
existência de uma garantia direta do direito objetivo e subjetivo mediante um
aparato coativo só constitui um caso pa existência do "direito" e de "direitos".
Inclusive dentro deste estreito campo,1 o aparato coativo pode ser estruturado de
uma maneira muito diversa. No caso limite pode consistir na probabilidade,
existente por consenso, da ajuda forçosa de todo membro de uma comunidade
quando está ameaçada a ordem vigente. Pode valer como "aparato coativo" se
a forma de vinculação a esta ajuda forçosa está firmemente ordenada. O aparato
coativo e a forma da coação em direitos que garanta a instituição política por
meio de seus órgãos pode fortalecer-se, além disso, mediante o meio coativo de
associações de "interessados": as medidas coativas agudas das associações de
credores e de proprietários de imóveis urbanos: boicote organizado do crédito
ou da habitação (listas negras) contra devedores pouco solventes atuam com
freqüência de um modo mais forte que a probabilidade da demanda judicial. E,
naturalmente, esta coação pode estender-se a pretensões não garantidas pelo
i

ORDEM JURÍDICA E ORDEM ECONÔMICA 123

Estado: continuam sendo direito subjetivo, só que com outros poderes. Não raras
vezes o direito do instituto estatal interfere com os meios coativos de outras
psociações: assim, o tíbel act inglês impossibilita as listas negras ao excluir a
jiemonstração de verdade. Porém nem sempre com êxito. As associações e grupos
que se baseiam no "código de honra" do duelo como meio de dirimir as questões
pessoais, por natureza quase sempe de caráter estamental, com seus meios coativos,
em sua essência tribunais de honra e boicote, são em geral os mais firmes e forçam
com rigor específico (como "dívidas de honra") ao cumprimento de obrigações
não protegidas ou proibidas estatalmente, porém imprescindíveis para os fins de
sua comunidade (dívidas de jogo, obrigação de encontros em duelo). Em parte,
Ó Estado tem recolhido as velas diante disso. É um erro, do ponto de vista jurídico,
pretender que um delito criado especificamente, como o duelo, seja tratado como
um intento de "homicídio" ou como um delito de "lesões", visto que não tem as
características destes delitos; porém o fato continua de pé: que apesar do código
penal o duelo é, na Alemanha, para os oficiais, uma obrigação exigida pelo Estado,
porque com o seu não cumprimento vão unidas conseqüências jurídicas estatais.
Outra coisa ocorre fora do estamento de oficiais do exército. 0 típico meio de
coação jurídica das comunidades "privadas" contra seus membros desobedientes
é excluí-los da associação e de suas vantagens materiais ou ideais. Nas associações
profissionais de médicos e advogados, assim como em clubes sociais o políticos,
é a ultima ratio. A associação política moderna tem usurpado muitas vezes a
aplicação deste método coativo. Assim, entre nós se nega a médicos e advogados
esSe meio mais extremo; na Inglaterra está atribuído aos tribunais estatais, a
questão de exclusão de um clube; na América do Norte, inclusive para os partidos
políticos, além do exame da legitimidade do "label", a petição de parte. Esta luta
entre os meios coativos de diferentes associações é tão antiga como o direito.
Com freqüência, no passado não tem terminado com a vitória do meio coativo
da associação política e tampouco hoje é sempre este o caso. Assim, não há
possibilidade de impedir o uso da concorrência desleal frente a um violador de
contrato*. Tampouco se podem tocar as listas negras dos corretores de bolsa
contra aqueles que utilizam exceções indevidas. Na Idade Média temos que as
disposições estatuídas pelos comerciantes contra a apelação aos tribunais ecle-
siásticos eram nulas pelo direito canônico; porém, contudo, subsistiram. E também
deve tolerar hoje amplamente o direito estatal o poder coativo das associações
quando se dirige não só contra os membros, mas também ou, precisamente, contra
os alheios a elas, e a associação trata de que cumpram suas normas (cartéis não
só contra os membros, senão contra aqueles cujo ingresso se pretende forçar,
associações de credores contra devedores e inquilinos).
Apresenta-se um caso limite importante do conceito sociológico do "direito"
garantido coativamente, quando aqueles que o garantem não possuem — como é
comum nas modernas comunidades políticas (bem como nas religiosas que aplicam

* Escrito antes da Revolução de 1918. IE.1


l
124 SOCIOLOGIA E D I R E I T O

seu próprio "direito") - o caráter de "juiz" ou de outro "órgão" - isto é, sem


nenhuma classe de relação "pessoal" com o titular do direito subjetivo, antes com
o caráter de "terceiro" imparcial e pessoalmente "desinteressado" —, senão quç,
pelo contrário, se trata de companheiros unidos de perto ao titular por laços
pessoais, por exemplo, os de "clã", que põem a sua disposição os meios coativoi,
sendo, por conseguinte, neste caso a "vingança" e a "guerra privada" do interessadb
e de seus irmãos de sangue a forma única ou normal de fazer valer coativamenfe
um direito, do mesmo modo que a guerra no direito internacional moderno. Neste
caso perdura o "direito" subjetivo do ou dos indivíduos, do ponto de vista socio-
lógico, unicamente graças à probabilidade de que os companheiros de clã cumpraih
sua obrigação de ajudar a guerra e a vingança (garantida originariamente por meio
do temor à cólera de autoridades supra-sensíveis)' e que possuam também o poder
para exercer pressão a favor de seu pretendido direito, se é que não o fazem
triunfar definitivamente. Chamamos existência de uma "relação jurídica" entíe
as pessoas correspondentes à situação em que as "relações", isto é, a ação atual
ou potencial de pessoas concretas ou que se possam determinar concretamente,
constituem o conteúdo de direitos subjetivos. Seu conteúdo em direitos subje-
tivos pode mudar segundo a ação que ocorra. Neste sentido, também um "Estado"
concreto pode designar-se como "relação jurídica", inclusive quando (no caso
limite teórico) só o senhor possui direitos subjetivos — a mandar — e as probabi-
lidades de todos os demais indivíduos existam só como reflexos de suas "regula-
mentações".

(Versão portuguesa de Maria de Fátima Yasbeck Asfóra, confrontada com o original


alemão.)
WEBER, Max, Economia y Sociedad, Esbozo de Sociologia Comprensiva, I. Edição preparada
por Johannes Winckeimann, trad. de José Medina Echavarría, Juan Roura Parella, Eduardo
Garcia Máynez, Eugênio ímaz e José F. Mora. México, Fondo de Cultura Econômica,
1969, pp. 251-58.
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PIERRE BOURDIEU A ^

O PODER SIMBÓLICO

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3I
EDIÇÃO

Tradução de
Fernando Tomaz

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BERTRAND BRASIL
Copyright © 1989, Pierre Bourdieu

Capa: Tânia Couto

2000
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livfos, RJ

Bourdieu, Pierre, 1930


B778p O poder simbólico / Pierre Bourdieu; tradução Fernando Tomaz
3' ed. (português de Portugal) - 3' ed. - Rio de Janeiro; Bertrand Brasil,
2000.
322p.

Tradução de: Le pouvoir symbolique


ISBN 85-286-9963-3

1. Sociologia. 2. Poder (Ciências sociais). I. Título.

CDD-301
97-2015 CDU-301

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BCD UNIÃO DE EDITORAS S.A.
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CAPÍTULO VIII

A força do direito
Elementos para uma sociologia \jo campo jurídico

Da mihi factum, dabo tibi jus

U m a ciência rigorosa do direito distingue-se daquilo a que


se c h a m a g e r a l m e n t e «a ciência jurídica» pela razão de tomar
esta ú l t i m a como objecto. Ao fazê-lo, ela evita, desde logo, a
a l t e r n a t i v a q u e d o m i n a o debate científico a respeito do direito,
a d o formalismo, que afirma a autonomia absoluta da forma
jurídica e m relação ao m u n d o social, e do instrumentalismo, que
concebe o direito como u m reflexo ou u m utensílio ao serviço dos
d o m i n a n t e s . A «ciência jurídica tal c o m o a concebem os
juristas e, sobretudo, os historiadores do direito,, que identifi-
cam a história do direito com a história do desenvolvimento
i n t e r n o dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o
d i r e i t o c o m o u m sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvi-
m e n t o só pode ser compreendido segundo a sua «dinâmica
interna» A reivindicaçãj) da autonomia absoluta do pensa-
m e n t o e d a acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria
d e u m m o d o de pensamento específico, totalmente liberto do
peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma «teoria pura
d o d i r e i t o » não passa do limite ultra-consequente do esforço de
t o d o o corpo dos juristas para construir u m corpo de doutrinas
e de regras completamente independentes dos constrangimen-
tos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio
fundamento2.
1
Cf., por exemplo, J. Bonnecase, La pensée juridique française, de
1804 et les traits essentiels, 2 vols., Bordéus,
à 1'heure presente, les variatiom
Delmas, 1933-
2
A tentativa de Kelsen, firmada no postulado da autolimitação da
pesquisa cão-só no enunciado das normas jurídicas, com exclusão de qual-
I

210 A FORÇA DO DIREITO

Q u a n d o se toma a direcção oposta a este espécie de ideologia


profissional d o corpo dos doutores constituída em corpo de
« d o u t r i n a » , é para se ver no direito e na jurisprudência um
reflexo directo das relações de força existentes, em que se expri-
m e m as determinações econômicas e, em particular, os interesses
dos d o m i n a n t e s , ou então, um instrumento de dominação, como
b e m o diz a l i n g u a g e m do Aparelho, reactivada por Louis
A l t h u s s e r 1 . V í t i m a s de uma tradição que julga ter explicado as
«ideologias» pela designação das suas funções («o ópio do
p o v o » ) , os marxistas ditos estruturalistas ignoraram paradoxal-
m e n t e a estrutura dos sistemas simbólicos e, neste caso parti-
c u l a r , a forma específica d o discurso jurídico. Isto porque, tendo
reiterado a afirmação ritual da autonomia relativa das «ideolo-
g i a s » , eles passaram em claro a questão dos fundamentos sociais
desta a u t o n o m i a , quer dizer, mais precisamente, a questão das
condições históricas que se devem verificar para poder emergir,
m e d i a n t e lutas no seio do campo do poder, um universo social
a u t ô n o m o , capaz de produzir e cje reproduzir, pela lógica do seu s
f u n c i o n a m e n t o específico, u m corpus jurídico relativamente
i n d e p e n d e n t e dos constrangimentos externos. Deste modo, absti-
veram-se de determinar a contribuição específica que, pela própria
eficácia da sua forma, o direito pode dar ao cumprimento das suas
presumidas funções. E a metáfora arquitectural da infra-estrutura
e da superestrutura, que sustenta os usos comuns da noção de
a u t o n o m i a relativa, continua a guiar os que, como Edward
P . T h o m p s o n , julgam romper com o economismo quando, para
r e s t i t u i r e m ao direito t ç d a a sua eficácia histórica, se conten-
t a m c o m afirmar que elp está «profundamente imbricado na

quer dado histórico, psicológico ou social e de qualquer referência às funções


sociais que a aplicação prática destas normas pode garantir, é perfeitamente
semelhante à de Saussure que .fundamenta a sua teoria pura da língua na
distinção entre a lingüística interna e a lingüística externa, quer dizer, na
exclusão de qualquer referência às condições históricas, geográficas e socioló-
gicas do funcionamento da língua ou das suas transformações.
3
Encontra-se uma visão de conjunto dos trabalhos marxistas em
matéria de sociologia do direito e uma excelente bibliografia in S. Spitzer,
«Marxisc Perspectives in the Sociology of Law», Annual Review of Sociology,
9, 1983, pp. 103-124.
CAPÍTULO VIII 211

própria base das relações produtivas» 4 : a preocupação de situar


o direito no lugar profundo das forças históricas impede, mais
u m a vez, que se apreenda na sua especificidade o universo
social específico em que ele se produz e se exerce.
Para romper com a ideologia da independência do direito e
do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em
linha de conta aquilo que as duas visões antagonisras, internalis-
ta e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência
de um universo social relativamente independente em relação às
pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a
autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica
legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode
combinar com o exercício da força física. As práticas e os
discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento
de um campo cuja lógica específica está duplamente determina-
da: por u m lado, pelas relações de força específicas que lhe
conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência
ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm
lugar e, por outro lado, pela lógica interna dos obras jurídicas
que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste
m o d o , o universo das soluções propriamente jurídicas.

Seria preciso examinar aqui tudo o que separa a noção de campo jurídico
como espaço social da noção de sistema tal como a desenvolve Luhmann, por
exemplo: em nome da recusa, perfeitamente legítima, do reducionismo, a
teoria dos sistemas põe «a auto-refetência» das «estruturas legais», confun-
dindo neste conceito as estruturas simbólicas (o direito propriamente dito) e
as instituições sociais que as produzem; compreende-se que, na medida em
que a teoria dos sistemas apresenta com um nome novo a velha teoria do
sistema jurídico que se transforma segundo as suas próprias leis, ela forreça
hoje um quadro ideal à representação formal e abstracta do sistema
jurídico 5 . Por se não distinguir a ordem propriamente simbólica das normas
e das doutrinas — (quer dizer, o campo das tomadas de posição ou espaço dos
possíveis), a qual, como sugerem Nonet e Selznick, encerra potencialidades
objectivas de desenvolvimento e até mesmo de direcções de mudança, mas

4
E. P. Thompson, Whigs and Hunters, The Origin of the Black Act,
Nova Iorque, 1 9 7 5 , p. 2 6 1 .
5
N . Luhmann, Soziale Systeme, Grundriss einer allgemeinen Theorie,
Francforte, 1984; «Die Einheit des Rechtssystems» ii> Rechtstheorie, 14,
1 9 8 3 , pp, 1 2 9 - 1 5 4 .
212 /1 FORÇA DO DIREITO

que não contém nela mesma o princípio da sua própria dinâmica — e a


ordem das relações objectivas entre os agentes e as instituições em concor-
rência pelo monopólio do direito de dizer o direito, não se pode compreen-
der que o campo jurídico, embora receba do espaço das tomadas de posição
a linguagem em que os seus conflitos se exprimem, encontre nele mesmo,
quer dizer, nas lutas- ligadas aos interesses associados às diferentes posições,
o princípio da sua transformação.

A divisão do trabalho jurídico

O c a m p o jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio


d o direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição
(nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investi-
dos de competência ao mesmo t e m p o social e técnica q u e
° consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar
(de maneira mais ou menos livre ou autorizada) u m corpus de
textos q u e consagram a visão legítima, j u s t a * , do m u n d o
social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da
a u t o n o m i a relativa do direito, quer do efeito propriamente
s i m b ó l i c o de desconhecimento**, que resulta da ilusão da sua
a u t o n o m i a absoluta em relação às pressões externas.
A concorrência pelo monopólio do acesso aos meios jurídi-
cos herdados do passado contribui para fundamentar a cisão
. social e n t r e os profanos e os profissionais favorecendo u m
trabalho c o n t í n u o de racionalização próprio para aumentar cada
vez mais o desvio entre os veredictos armados do direito e as
intuições ingênuas da equidade e para fazer com que o sistema
fa das normas jurídicas apareça aos que o i m p õ e m e mesmo, eni
m a i o r ou menor medida, aos que a ele estão sujeitos, como
totalmente independente das relações de força que ele sanciona
e consagra.

É claro que, como mostra bem a história do direito social, o corpus


jurídico regista em cada momento um estado de relação de forças, e
sanciona as conquistas dos dominados convertidas deste modo em saber

* «droite» (recta, justa) no texto; parece haver jogo de palavras com


«droit» (direito).
* * «méconnaissance» (ignorância, não reconhecimento), no texto ori-
ginal. (N. T.).
M D r . J é m Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIU 213

adquirido 1 e reconhecido (o que tem o efeito de inscrever na sua estrutura


uma ambigüidade que contribui sem dúvida para a sua eficácia simbólica).
J á se mostrou, por exemplo, como os sindicatos americanos têm visto o seu
estatuto legal evoluir à medida que ganham em poder: enquanto que, em
começos do século X I X , a acção colectiva dos assalariados era condenada
como «criminal conspiracy» em nome da protecção do mercado livre, os
sindicatos foram pouco a pouco tendo acesso ao reconhecimento legal 5 *.
I.
A l ó g i c a paradoxal de u m a divisão do trabalho que se
d e t e r m i n a , fora d e q u a l q u e r concertação conscience, na concor-
rência e s t r u t u r a l m e n t e regulada e n t r e os agentes e as institui-
ções envolvidas no c a m p o , constitui o verdadeiro princípio de
u m s i s t e m a de normas e de práticas q u e aparece como funda-
m e n t o a priori na equidade dos seus princípios, na coerência das
suas formulações e no rigor das suas aplicações, quer dizer,
c o m o p a r t i c i p a n d o ao m e s m o t e m p o da lógica positiva da
ciência e da lógica normativa da m o r a l , portanto, como poden-
d o i m p ô r - s e universalmente ao reconhecimento por uma neces-
s i d a d e s i m u l t a n e a m e n t e lógica e ética.
D e m o d o diferente da hermenêutica literária ou filosófica, a
p r á t i c a teórica de interpretação de textos jurídicos não tem nela
p r ó p r i a a sua f i n a l i d a d e ; d i r e c t a m e n t e o r i e n t a d a para fins
p r á t i c o s , e adequada à determinação de efeitos práticos, ela
m a n t é m a sua eficácia à custa de u m a restrição da sua autono-
m i a . A s s i m as divergências entre os «intérpretes autorizados»
são necessariamente limitadas e a coexistência de uma plurali-
d a d e d e n o r m a s jurídicas concorrentes está excluída por defini-
ção d a o r d e m jurídica 6 . C o m o no texto religioso, filosófico ou
l i t e r á r i o , n o texto jurídico estão e m jogo lutas, pois a leitura é
u m a maneira de apropriação da força simbólica que nele se
e n c o n t r a era estado potencial. Mas, por mais que os juristas
p o s s a m o p o r - s e a respeito de textos cujo sentido nunca se
i m p õ e d e maneira absolutamente imperativa, eles permanecem

A . W . Blumrosen, «Legal Process and Labor Law», in W . M.


Evan, ed., Law amlSocio/ogy, New York, The Free Press of Glencoe, 1962,
pp. 1 8 5 - 2 2 5 .
" A . - J , Arnaud, Critique de la raison juridique, Paris, L G D J , 1981,
pp. 2 8 - 2 9 ; e J . - M Scholz, «La raison juridique à l'oeuvre: les krausistes
espagnols», Historiscbe Sozin/ngie der Rechtswissensehaft, hrsg. von Erk
Volkmar Heyen, Francforte, Klosterman, 1986, pp. 3 7 - 7 7 .
214 /1 FORÇA DO DIREITO

inseridos n u m corpo fortemente integrado de instâncias hierar-


q u i z a d a s q u e estão à altura de resolver os conflitos entre os__
i n t é r p r e t e s e as interpretações. E a concorrência e n t r e os >•
i n t é r p r e t e s está limitada pelo facto de as decisões judiciais só
p o d e r e m distinguir-se de simples actos de força políticos na
m e d i d a e m q u e se apresentem como resultado necessário de uma
interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos:
c o m o a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita
h i e r a r q u i a não só as instâncias judiciais e os seus poderes,
p o r t a n t o , as suas decisões e as interpretações em que elas se
a p o i a m , mas t a m b é m as normas e as fontes que conferem a sua
autoridade a essas decisões 7 . É pois um campo que, pelo menos_)
e m período de equilíbrio, tende a funcionar como u m aparelho na
m e d i d a e m q u e a coesão dos habitus espontaneamente orquestra-
dos dos intérpretes é aumentada pela disciplina de um corpo
hierarquizado o qual p õ e ^ m prática procedimentos codificados de
resolução de conflitos entre os profissionais da resolução regulada
d o s conflitos. E tanto menos difícil ao corpo de juristas convencer-
-se d e q u e o direito tem o seu fundamento nele próprio, quer
dizer, n u m a norma fundamental tal como a Constituição como
norma normarum de que se deduzem todas as normas de ordem
inferior, q u a n t o a communis opinio doctorum, com raízes na coesão
social do, corpo dos intérpretes, tenda a conferir a aparência de u m
f u n d a m e n t o transcendental às formas históricas da razão jurídica e
à crença na visão ordenada da ordem social por eles produzida 8 .

A tendência para apreender como experiência universal de um sujeito


transcendental a visão comum de ,uma comunidade histórica observa-se em
todos os campos de produção cultural, que são assim postos à prova como
lugar de actualização de uma razão universal que nada deve às condições

7
A autoridade neste domínio reconhece-se, entre outras coisas, pela
arte de respeitar a ordem reconhecida como legítima na enumeração das
autoridades (cf. J . M. Scholz, loc. cit.).
* Segundo Andrew Fraser, a moralidade cívica do corpo judicial
assentava não em um código de regras expressas mas sim num «sentido da
honra tradicional», quer dizer num sistema de atitudes para o qual o
essencial daquilo que contava na aquisição das virtudes associadas ao
exercício da profissão era tido como evidente. (A. Fraser, Te/os, 60, Verão,
1 9 8 4 , pp. 1 5 - 5 2 ) .
CAPÍTULO VIII 215

sociais em que se manifesta. Mas, no caso das «faculdades superiores»,


teologia, direito ou medicina que, como nota Kant em 0 Conflito das
Faculdades, estão claramente investidas de uma função social, é preciso uma
crise relativamente grave deste contrato de delegação para que a questão do
fundamento, que certos autores, como Kelsen, transferindo para o direito,
uma questão tradicional da filosofia, tinham posto, mas de maneira muito
teórica, venha a tomar a forma de uma questão real da prática social, como é
hoje o caso. Pelo contrário, a questão do fundamento do conhecimento
científico acha-se posta, na própria realidade da existência social, a partir do
momento em que a «faculdade inferior» (filosofia, matemática, história,
etc.) se constitui como tal, sem outro suporte que não seja «a razão do povo
instruído»*; e é a recusa em aceitar (com Wittgenstein ou Bachelard, por
exemplo) que a constituição do «povo instruído», quer dizer, a estrutura
histórica do campo científico, constitua o único fundamento possível da
razão científica, que condena tantos filósofos a estratégias autofundadoras
dignas do Barão de Münchhausen ou a contestações niilistas da ciência
inspiradas numa nostalgia propriamente metafísica do «fundamento», prin-
cípio não des-construído da «des-construção».

O está inscrito na lógica do


f u n c i o n a m e n t o do camp.cuurídi-co, revela-se com toda a clareza
na língua jurídica que, combinando elementos directamente
r e t i r a d o s d a l í n g u a c o m u m e e l e m e n t o s estranhos ao seu
s i s t e m a , acusa todos os sinais de uma retórica da jmpersonali-
d a d e le da neutralidade. A maior parte dos processos linguísti-
cos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito
p a r a produzir dois efeitos maiores. O efeito dejm/Jralização. é
o b t i d o p o r u m conjunto de características sintáticas tais como o
p r e d o m í n i o das construções passivas e das frases, impessoais,
próprias para marcar a jmpersonalidade_iÍQ_£nundadcLiiQimati-
vo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao
m e s m o t e m p o imparcial e objectivo. O efeito de universalização
é o b t i d o por meio de vários processos convergentes: o recurso
sistemático ao indicativo para enunciar normas 9 , o emprego,
9
Os filósofos do direito da tendência jusnaturalista apoiaram-se nesta
característica há muito observada para sustentarem que os textos jurídicos não
enunciam normas, mas sim «atestações», e que o legislador é alguém que
enuncia o ser e não o dever-ser, que diz o justo ou a justa proporção inscrita
nas próprias coisas a título de propriedade objectiva: «O legislador prefere
descrever as instituições jurídicas do que pôr directamente as regras» (G.
Kalinowski, Introduction à la logique juridique, Paris, L G D J , 1964, p. 55).
* «peuple savant» no texto original ( N . T . ) .
216 /1 FORÇA DO DIREITO

p r ó p r i o d a retórica d a atestação oficial e d o auto, de verbos


atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do
passado composto que exprimem o aspecto realizado («aceita»,
« c o n f e s s a » , « c o m p r o m e t e - s e » , «declarou», etc.); o uso de
i n d e f i n i d o s («todo o condenado») e do presente intemporal —
ou d o f u t u r o jurídico — próprios para exprimirem a generali-
d a d e e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a
valores transubjectivos que pressupõem a existência de u m
consenso ético (por exemplo, «como b o m pai de família»); o
recurso a fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco
l u g a r às variações individuais 1 0 .
Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universali-
d a d e , q u e pode ser o princípio de u m a autonomia real dos
p e n s a m e n t o s e das práticas, está longe de ser uma simples
m á s c a r a ideológica. Ela é a p r ó p r i a expressão de todo o
fiincionamento do campo jurídico e, e m especial, do trabalho
d e racionalização, no duplo sentido de Freud e de Weber, a
q u e o sistema das'normas jurídicas está continuamente sujeito,
e isto desde há séculos. Com efeito, aquilo a que se chama
j<o espírito jurídico» ou «o sentido jurídico» e que constitui o
verdadeiro direito de entrada no campo (evidentemente, com
u m a mestria mínima dos meios jurídicos acumulados pelas
sucessivas gerações, quer dizer, do corpus de textos canónicos e
d o m o d o d e pensamento, de expressão e de acção, em que ele
se r e p r o d u z e que o reproduz) consiste precisamente nesta
postura univtrsalizante. Esta pretensão estatutária a uma forma
específica de juízo, irredutível às intuições freqüentemente
inconstantes do sentido da equidade, pois que se baseia na
d e d u ç ã o conseqüente a partir de u m corpo de regras sustentado
pela sua coerência interna, é um dos fundamentos da cumplici-
d a d e , geradora de convergência e de cumulatividade, que une,
na concorrência pelas coisas em jogo e por meio dessa concor-
rência, o conjunto, todavia m u i t o diferenciado, dos agentes
q u e v i v e m da produção e da venda de bens e de serviços
jurídicos.
A elaboração de u m corpo de regras e de procedimentos

10
Cf. J . L . Souriaux e P. Lerat, Le langage du droit, Paris, PUF, 1975.
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA CAPITULO VIII 217

c o m pretensão universal é p r o d u t o de u m a divisão do trabalho ]


q u e resulta da lógica espontânea da concorrência entre diferen-
tes formas de competência ao m e s m o t e m p o antagonistas e
c o m p l e m e n t a r e s que funcionam c o m o outras tantas espécies de
capital específico e que estão! associadas a posições diferentes no
c a m p o . N ã o há dúvida de q u e a história* comparada do d i r e i t o j
p e r m i t e observar que, confoirme as tradições jurídicas e confor-
m e as c o n j u n t u r a s no seio d a m e s m a tradição, as hierarquias
variam e n t r e as grandes classes de agentes jurídicos — as quais
variam elas próprias consideravelmente segundo as épocas e as
tradições nacionais e ainda s e g u n d o a especialidade: direito
p ú b l i c o ou direito privado, por exemplo. Mas não é menos
certo q u e o antagonismo estrutural que, nos majs_dijg£entes_
s i s t e m a s , opõe as _posições_de.._«teórico» condenadas à pura
construção doutrinai, e as posições de «prático», limitadas à
aplicação, está na origem de u m a l u t a s i m b ó l i c a j e j m a n e n t e na
q u a l se defrontam definições j i f e r e n t e s _do_ trabalho jurídiçp_
e n q u a n t o interpretação _autorÍ2^da„dos textos canónicos. As '
diferentes categorias de intérpretes autorizados tendem sempre
a d i s t r i b u i r - s e e n t r e dois p ó l o s e x t r e m o s : de u m l a d o , a ,
interpretação voltada para a elaboração p u r a m e n t e teórica da &
d o u t r i n a , monopólio dos professores que estão encarregados de
ensinar, e m forma normalizada e formalizada, as regras em
vigor; d o outro lado, a interpretação voltada para a avaliação
prática de u m caso particular, apanágio d e magistrados que
realizam actos de jurisprudência e q u e p o d e m , deste m o d o , —
pelo menos alguns deles — c o n t r i b u i r t a m b é m para a constru-
ção jurídica. facto^ os produtores de leis, de regras e de_J
r e g u l a m e n t o s devem_contar s e m p r e com as reaccões e. por
vezes, com as resistências, de toda a corporação jurídica,^.,
s o b r e t u d o , de todos.os peritos judiciais, (advogados, notários,
etc.) os quais, como bem se_ vê. p<?r exemplo, no caso do
direitcTcfa sucessões,_podem pôr a sua competência jurídica ao
serviço dos interesses de a l g u m a s c a t e g o r i a s da sua clientela_.e
tecer as inúmeras estratégias graças às quais as famílias ou as
empresas p o d e m anular os efeitos da .leL_A_significação prática 1
d a lei não se determina realmente senão na confrontação entre
diferentes corpos animados de interesses específicos divergentes
218 /1 FORÇA DO DIREITO

/"(magistrados, advogados, notários, etc.), eles próprios divididos


em grupos diferentes animados de interesses divergentes, e até
m e s m o opostos, em função sobretudo da sua posição na hierar-
q u i a interna do corpo, que corresponde sempre de maneira
^ b a s t a n t e estrita à posição da sua clientela na hierarquia social.
Segue-se d a q u i q u e u m a história social comparada da
produção jurídica e do discurso jurídico sobre esta produção
deveria esforçar-se por pôr metodicamente em relação as toma-
das de posição nesta luta simbólica e as posições na divisão do
t r a b a l h o jurídico: t u d o leva a supor que a tendência para
insistir na sintaxe do direito é mais própria dos teóricos e dos
professores, e n q u a n t o q u e a atenção à pragmática é,_pelo
contrário, mais provável entre os juizes. Tal história deveria
t a m b é m considerar a relação entre as variações, segundo o lugar
e o m o m e n t o , da força relativa das tomadas de posição a favor
d e u m a ou outra das orientações do trabalho jurídico e as
variações da força relativa dos dois campos nas relações de força
q u e constituem a estrutura d o campo.

f* A_própria forma do corpus jurídico, sobretudo o seu grau de formalização


e de normalização, depende sem dúvida muito estreitamente "da força
relativa dos «teóricos>;_e_ dos «práticos», jlos professores e dos juizes, dos
exegetas e dos peritos, nas_reiações_de força características de um estado do
campo (em dado momento numa tradição determinada) e da capacidade
reTpectiva de imporem a sua visão.do ,direjtp_e da_sua_interpretação.
Podem-se compreender assim as diferenças sistemáticas que separam as
tradições nacionais e, sobretudo, a grande divisão entre a tradição dita
romano-germânica e a tradição anglo-americana. Na tradição alemã e
francesa, o direito (sobretudo o privado), verdadeiro «direito de professores»
{Professorenrecht), ligado ao priríiado da Wissenschaft, da doutrina,
sobre o procedimento e tudo o que .Uiz respeito à prova ou à execução da
decisão, retraduz e reforça o domínio da alta magistratura, intimamente
ligada aos professores, sobre os juizes que, por terem passado pela universi-
dade, são mais dados a reconhecer a legitimidade das suas construções do
que os laivyers formados de certo modo na «tarimba». Na tradição anglo-
-americana, pelo contrário, o direito é um direito jurisprudencial (case-law),
assente quase exclusivamente nos acórdãos' dos tribunais e na regra do
precedente e fracamente codificado; ele dá o primado aos procedimentos,
que devem ser leais (fair triat) e cuja mestria se adquire sobretudo pela
prática ou por técnicas pedagógicas que têm em vista aproximarem-se ao
máximo da prática profissional — por exemplo, com o «método dos casos»
em uso nessas verdadeiras escolas profissionais que são as escolas de direito:
CAPÍTULO VIII 219

o estatuto da regra de direito, que não se afirma fundado numa teoria moral
ou numa ciência racional e que, tendo em mira apenas dar uma solução a
um litígio, se situa deliberadamente ao nível da casuística das aplicações
particulares, compreende-se se se souber que neste caso o grande jurista é o
juiz saído da fila dos práticos.
De facto, a força relativa das diferentes espécies de capital jurídico nas
diferentes tradições tem, sem dúvida, que ser posta em relação com a posição
global do campo jurt'4ico no campo do poder que, por meio do peso relativo
que cabe ao «reino da lei» (the rule of law) ou à regulamentação burocrática,
determina os seus limites estruturais pela eficácia da acção propriamente
jurídica. N o caso da França, a acção jurídica acha-se hoje limitada pela
dominação que o Estado e os tecnocratas saídos da Escola Nacional de
Administração exercem em vastos sectores da administração pública e
privada. Nos E U A , pelo contrário, os lawyers saídos das escolas superiores de
direito (Harvard, Yale, Chicago, Stanford) podem ocupar posições paráalém
dos limites do campo propriamente dito, na política, na administração, na
finança ou na indústria. Daqui resultam diferenças sistemáticas, freqüente-
mente evocadas depois de Tocqueville, nos usos sociais do direito e, mais
precisamente, no lugar que cabe ao recurso jurídico no universo das acçôes
possíveis, sobretudo em matéria de lutas reivindicativas.
í

^ Q a h t a g o n i s m o entre os detentores de espécies diferentes de


("capital jurídico, que investem interesses e visões do m u n d o
m u i t o diferentes no seu trabalho específico de interpretação,
não exclui a complementaridade das funções e serve, de facto,
de base a uma forma subtil de divisão do trabalho de dominação
simbólica na qual os adversários, objectivamente cúmplices, se
s e r v e m u n s aos outros, O cânone jurídico é como que o
"reservatório de autoridade que garante, à maneira de um banco
central, a autoridade dos actos jurídicos singulares. É isto que
explica a fraca inclinação do habitus jurídico para as posturas
proféticas e, pelo contrário, a propensão,..visível-sobretudo nos
juizes, para o papel de lector. de intérprete que se refugia na
aparência ao menos de uma simples aplicação da lei e que,
q u a n d o faz obra_de criação jurídica, tende a dissimulá-la " . Da
: m e s m a forma que o economista mais directamente envolvido
:
nos p r o b l e m a s práticos de gestão, permanece ligado, como
; n u m a «grande cadeia do Ser» à Lovejoy, ao teórico puro que

" C f . Travaux de I'Association Henri Capitant, Tomo V , 1949,


pp. 7 4 - 7 6 , citado por R. David, Les grands courants du droit contemporain,
\ 5 . a ed., Paris, Dalloz, 1 9 7 3 pp. 1 2 4 - 1 3 2 .
220 /1 FORÇA DO DIREITO

p r o d u z alguns teoremas matemáticos pouco mais ou menos


desprovidos de referente no m u n d o econômico real mas que se
d i s t i n g u e ele m e s m o de u m p u r o matemático pelo reconheci-
s m e n t o q u e economistas mais impuros são obrigados a conceder
às suas construções, t a m b é m o simples juiz de instância (ou,
p a r a ir até aos ú l t i m o s elos da corrente, o polícia ou o guarda
p r i j i o n ã l ) e s t á l i g a d o ao teóriccrdo'direito puro e ao especialista
do. d i r e i t o constitucional j 3 0 r _ u m a cadeia de legitimidade que
s u b t r a i os seus actos ao estatuto de violência arbitrária 1 2 .
É difícil, com efeito, não ver o princípio de uma comple-
m e n t a r i d a d e funcional dinâmica no conflito permanente entre
as pretensões concorrentes ao monopólio do exercício legítimo
d a c o m p e t ê n c i a jurídica: os juristas e outros teóricos do direito
t e n d e m a puxar o direito no sentido da teoria pura, quer dizer,
o r d e n a d a e m sistema autônomo e auto-suficiente, e expurgado,
p o r u m a reflexão firmada em considerações de coerência e de
justiça, de todas as incertezas ou lacunas ligadas à sua gênese
prática; os juizes ordinários e outros práticos, mais atentos às~j
aplicações que dele podem ser feitas em situações concretas,
o r i e n t a m - n o para u m a espécie de casuística das situações con-
cretas e o p õ e m , aos tratados teóricos do direito puro instru-
m e n t o s d e trabalho adaptados às exigências e à urgência da
prática, repertórios de jurisprudência, formulários de actos,
dicionários de direito (e amanhã, bancos de dados) 1 3 . É claro
q u e os m a g i s t r a d o s , por meio da sua prática, que os põe
d i r e c t a m e n t e perante a gestão dos conflitos e uma procura
jurídica incessantemente renovada, tendem a assegurar a funçjão
de adaptação ao real n u m sistema que, entregue só ã professo-J

12
Achar-se-ia uma cadeia da mesma forma, entre os teóricos e os
«homens do terreno», nos aparelhos políticos ou, pelo menos, nos que por
tradição invocam a caução de uma teoria econômica ou política.
13
E um belo exemplo de trabalho jurídico de codificação que produz o
jurídico a partir do judicial, a edição das decisões da «C-our de Cassation» e
0 processo de selecção, de normalização e de difusão que, a partir de um
conjunto de decisões seleccionadas pelos Presidentes de Câmara pelo seu
interesse jurídico, produz um corpo de regras racionalizadas e normalizadas
(cf. E. Serverin, «Une production communautaire de la jurisprudence:
1 édition juridique des arrêts», Annales de Vaiaresson, 23, 2 . ° semestre,
1985, pp. 73-89.
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 221

res, correria o risco de se fechar na rigidez de u m rigorismo"^


racional: por m e i o d a liberdade maior ou menor de apreciação
q u e lhes é p e r m i t i d a na aplicação das regras, eles introduzem as
m u d a n ç a s e ás inovações indispensáveis à sobrevivência do
sistema que os teóricos deverão integrar no sistema. Por seu
lado, os juristas, pelo trabalho de racionalização e de formaliza-
ção a q u e s u b m e t e m o corpo de regias, representam a função de
assimilação, própria para assegurar a 'coerência e a constância ao
l o n g o d o t e m p o d e u m c o n j u n t o sistemático de princípios e de
regras irredutíveis à série por vezes contraditória, complexa e, a
l o n g o prazo, impossível de d o m i n a r dos actos de jurisprudência
sucessivos; e ao m e s m o t e m p o , oferecem aos juizes — sempre
inclinados, pela sua posição e pelas suas atitudes, a confiar
apenas no seu sentido jurídico — o meio de subtraírem os seus
veredictos ao arbitrário demasiado visível de u m a Kadijustiz.
Pertence aos juristas, pelo menos na tradição dita romano- j
- g e r m â n i c a , não o descrever das prática existentes ou das
condições de aplicação prática das regras declaradas conformes,
mas s i m o põr-em-forma dos princípios e das regras envolvidas
nessas práticas, elaborando u m corpo sistemático de regras
assente em princípios racionais e destinado a ter u m a aplicação
universal. P a r t i c i p a n d o ao m e s m o t e m p o de u m modo de
p e n s a m e n t o teológico^— pois procuram a revelação do_ justo na
letra d a lei, e do m o d o de pensamento lógico pois pretendem
pôr e m prática o m é t o d o dedutivo para produzirem as aplica-
ções da__lei ao caso p a r t i c u l a r — , eles desejam criar u m a
• «ciência nomológica» que enuncie o dever-ser cientificamente;
c o m o se quisessem reunir os dois sentidos separados da idéia de
«lei natural», eles praticam u m a exegese que tem por fim racio-
nalizar o direito positivo por meio de trabalho de controle lógico
necessário para garantir a coerência do corpo jurídico e para
d e d u z i r dos textos e das suas combinações conseqüências não
previstas, preenchendo assim as famosas «lacunas» do direito.

Se é preciso evidentemente ter cuidado em não subestimar


a eficácia h i s t ó r i c a d e s t e t r a b a l h o d e codificação q u e , ao
incorporar-se no seu objecto, se torna n u m dos factores princi-
pais da sua transformação, é preciso também não se deixar levar
pela representação exaltada da actividade jurídica que os teóri-
222 /1 FORÇA DO DIREITO

cos nativos* propõem — como Motulsky que procura mostrar


ser a «c_i_ência_jurídica»_definida_ por um método—DrÓBiÍQ~g.
propriamente dedutivo de. tratamento dos. dados,..o_«siiogisjiiQ.
jurídico», que permite subsumir o caso particular numa regra
geral u . Para q u e m não participe da adesão imediata aos
pressupostos inscritos no próprio fundamento do funcionamen-
to d o campo que a pertença ao campo implica (illuúo), é difícil
crer que as construções mais puras do jurista, sem mesmo falar
dos actos de jurisprudência do juiz ordinário, obedeçam à
lógica dedutivista que é o «ponto de honra espiritualista» do
jurista profissional. Como os «realistas» bem mostraram, é l
completamente vão procurar isolar uma metodologia jurídica
perfeitamente racional: a aplicação necessária de uma regra de
direito a u m caso particular é na realidade u m a confrontação de
direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve escolher; a
«regra» tirada de um caso precedente nunca pode ser pura e
simplesmente aplicada a um novo caso, porque não há nunca
dois casos perfeitamente idênticos, devendo o juiz determinar
se a regra aplicada ao primeiro caso pode ou não ser estendida
de maneira a incluir o novo caso , 5 . Em resumo, o juiz, ao /
invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei
as conclusões directamente aplicáveis ao caso particular, dispõe i
antes d e u m a parte de autonomia que constitui sem dúvida a
m e l h o r medida da sua posição na estrutura da distribuição do
capital específico de autoridade jurídica f 6 ; os seus juízos, que se

* «indigènes» no texto original. (N. T.).


14
H . Motulsky, Príncipes d'une réalisation mithodique du droit prive, La
théorie dcs êléments générateurs de vroits subjectifi, tese, Paris, Sirey, 1948,
sobretudo pp. 47-48 à maneira destes epistemólogos que dão para a prática
real do investigador uma reconstrução ex post do procedimento científico tal
como ele deveria ser, Motulsky reconstrói o que seria (ou deveria ser) o
«método de realização» conveniente do direito, distinguindo uma fase de
pesquisa da «regra possível»; espécie de exploração metódica do universo
das regras do direito, e uma fase de aplicação, com a passagem à regra
directamente aplicada ao caso considerado.
15
F. Cohen, «Transcendental Nonsense and the Functional Approach»,
Columbia Law Review, vol. 3 5 , 1 9 3 5 , pp. 808-819.
16
A liberdade de interpretação varia consideravelmente quando se
passa da «Cour de Cassation» (que pode anular a «força da lei», por
CAPÍTULO VIII 223

i n s p i r a m n u m a lógica e em valores m u i t o próximos dos que


estão nos textos s u b m e t i d o s à sua interpretação, têm uma
verdadeira função de invenção. Se a existência de regras escritas
t e n d e sem qualquer dúvida a reduzir a variabilidade comporta-
m e n t a l , não há dúvida t a m b é m de que as condutas dos agentes
jurídicos podem referir-se e sujeitar-se mais ou menos estrita-
m e n t e às exigências da lei, ficando sempre uma parte de
a r b i t r á r i o , i m p u t á v e l a variáveis organizacionais c o m o a
composição d o g r u p o de decisão ou os atributos dos que estão
s u j e i t o s a u m a jurisdição, nas decisões judiciais — há também
u m a parte de arbitrário no conjunto dos actos que os precedem
e os p r e d e t e r m i n a m , caso das decisões da política que dizem
respeito à prisão.
A interpretação opera a historicização da norma, adaptando
as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilida-
des inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que
é caduco. Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão
p o r vezes até à indeterminação ou ao equívoco, a operação
h e r m e n ê u t i c a de declaratio dispõe de uma imensa liberdade.
N ã o é raro, decerto, que o direito, instrumento dócil, adaptá-

exemplo ao propor uma interpretação estreita dela — como foi o caso com a
lei de 5 de Abril de 1910 sobre «as reformas de operários e camponeses») aos
juizes dos tribunais de instância, os quais, pela sua formação escolar e pela sua
«deformação» profissional, são dados a abdicar da liberdade de interpretação
de que dispõem teoricamente e a aplicar a situações codificadas, interpreta-
ções codificadas (exposições dos motivos da lei, doutrina e comentários dos
juristas, professores ou juizes doutos, e decisões da «Cour de Cassation»),
Pode-se citar, a partir das observações de Rémi Lenoir, o exemplo de um
tribunal de um bairro de Paris onde, todas as sextas-feiras de manhã, a sessão
é especialmente consagrada a um contencioso, sempre o mesmo, sobre a
ruptpra de contratos de venda ou aluguer, que é designado pelo nome de uma
empresa de aluguer e de venda a crédito de aparelhos domésticos e de tele-
visão: os julgamentos, completamente predeterminados, são muito breves, e
nem mesmo os advogados, quando os há — o que é raro — neles tomam a
palavra. (Se a presença de um advogado se mostra útil, provando deste modo
que há, mesmo a este nível, um poder de interpretação, é sem dúvida porque
é percebida como uma manifestação de reverência para com o juiz e a institui-
ção que, a este título, merece alguma consideração— a lei não é aplicada com
todo o seu rigor — ; e é também porque ela constitui uma indicação acerca dn
importância dada ao julgamento e sobre a possibilidade de apelação).
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> *
^ 224 A FORÇA DO DIREITO
1
•V

\ V vel, flexível, polimorfo, seja de facto c h a m a d o a contribuir para


. racionalizar ex post decisões em que não teve qualquer participa-
íj ção. O s juristas e os juizes dispõem todos, embora em graus
... m u i t o d i f e r e n t e s , d o p o d e r d e explorar a polissemia o u a
anfibologia das fórmulas jurídicas recorrendo quer à restrictio,
processo necessário para se não aplicar u m a lei que, entendida
literalmente, o deveria ser, quer à extensio, processo que p e r m i -
te q u e se aplique u m a lei que, tomada à letra, não o deveria
ser, q u e r ainda a todas as técnicas q u e , como a analogia,
t e n d e m a tirar o m á x i m o p a r t i d o da elasticidade da lei e
m e s m o das suas contradições, das suas ambigüidades ou das
suas lacunas n . De facto, a interpretação da lei nunca é o acto
solitário de u m magistrado ocupado e m fundamentar na razão
jurídica u m a decisão mais ou menos estranha, pelo menos na
sua gênese, à razão e ao direito, e que agiria como hermeneuta
preocupado em produzir u m a aplicação fiel da regra, como
julga G a d a m e r , ou que actuaria como lógico agarrado ao rigor
d e d u t i v o do seu «método de realização», como queria Motul-
sky. C o m efeito, o conteúdo prático da lei que se revela n õ ]
veredicto é o resultado de u m a luta simbólica entre profissio-
1
nais d o t a d o s de c o m p e t ê n c i a s técnicas e sociais desiguais,
portanco, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os
meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das
«regras possíveis», e de os utilizar eficazmente, quer dizer,
c o m o armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o {
efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real,
determina-se na relação de força específica entre os.,profissio-

17
Mario Sbriccoli propõe um inventário dos processos codificados que
permitiam aos juristas (advogados, magistrados, peritos, conselheiros políti-
cos, etc.) das pequenas comunidades italianas da Idade Média, «manipula-
rem» o corpus jurídico: por exemplo, a declaratio pode apoiar-se na rubrica,
na matéria da norma, no uso e na significação corrente dos termos, na sua
etimologia, instrumentos que por sua vez se subdividem, e pode jogar com
« as contradições entre a rubrica e o texto, partindo de uma para compreender
°0 outro ou vice-versa. (cf. M. Sbriccoli, L'interpretazzione dello statuto,
Contributo alio studio delia funzione dei giuristi nell'età communale, Milano, A.
Giuffrè, 1969, e «Politique et interprétation juridiques dans les villes
italiennes du Moyen-Âge», Archim de Philosopbie du Droit, XVII, 1 9 7 2 ;
pp. 99-113).
Prof.Dr. Jaime Cunha
1
FCS/IFCH/UFPA ,
CAPITULO VIII 225

nais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder


( t u d o o m a i s s e n d o igual d o p o n t o de vista d o valor na
e q u i d a d e p u r a das causas em questão) à relação de força entre os
q u e estão sujeitos à jurisdição respectiva.
O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de
v e r e d i c t o u m a decisão judicial que deve, sem dúvida, mais às
a t i t u d e s éticas dos agentes do que às^normas puxas do direito,
confere-lhe a eficácia simbólica exercida por toda a acção quando,
i g n o r a d a no q u e têm de arbitrário, é reconhecida como legíti-
m a . O princípio desta eficácia reside, pelo menos em parte, em
q u e , salvo vigilância especial, a impressão de necessidade lógica
s u g e r i d a pela forma t e n d e a contaminar o conteúdo. O forma-
l i s m o racional ou racionalizante do direito racional, que se
t e n d e a opor, com W e b e r , ao formalismo mágico dos rituais e
dos procedimentos arcaicos de julgamento (como o juramento
i n d i v i d u a l ou colectivo), participa na eficácia simbólica do
d i r e i t o mais r a c i o n a l I 8 . E o ritual destinado a enaltecer a""*
a u t o r i d a d e d o acto de interpretação — leitura dos textos,
análise e proclamação das conclusões, etc. — ao qual, desde
Pascal, a análise se agarra, não faz mais do que acompanhar
t o d o o trabalho colectivo de sublimação destinado a atestar que
a decisão exprime não a vontade e a visão do m u n d o do juiz
mas s i m a voluntas legis ou legislatoris.

A instituição do monopólio

N a realidade, a instituição de u m «espaço judicial» implica


a imposição de u m a fronteira entre os q u e estão preparados para
e n t r a r no jogo e os q u e , q u a n d o nele se acham lançados,
p e r m a n e c e m de facto dele excluídos, por não poderem operar a
conversão de todo o espaço m e n t a l — e, em particular, de toda
a p o s t u r a lingüística — q u e supõe a entrada neste espaço
social. A constituição de u m a competência propriamente jurí-

18
Cf. P. Bourdieu, Ce que parler veut dire, Paris, Fayard, 1982, sobre o
efeito de «pôr-em-forma», pp. 2 0 - 2 1 , e sobre o efeito de instituição,
pp. 1 2 5 e segs.
226 /1 FORÇA DO DIREITO

dica, mestria técnica de u m saber ciintífico freqüentemente


a n t i n ó m i c o das simples recomendações do senso c o m u m , leva
à desqualificação do sentido de equidade dos não-especialistas
e à revogação da sua construção espontânea dos factos, da sua
«visão do caso». O desvio entre a visão vulgar daquele que se
vai tornar n u m «justiciável», quer dizer, n u m cliente, e a visão
científica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurídico, etc.,
nada t e m de acidental; ele é constitutivo de u m a relação de
p o d e r , que f u n d a m e n t a dois sistemas diferentes de pressupos-
tos, d e intenções expressivas, n u m a palavra, duas visões do
m u n d o . Este desvio, que é o f u n d a m e n t o de u m desapossamen-
t o , resulta do facto de, através da própria estrutura do campo e
d o sistema de princípios de visão e de divisão que está inscrito
na sua lei f u n d a m e n t a l , na sua constituição, se impor u m sistema
d e exigências cujo coração é a adopção de u m a postura global,
visível sobretudo em matçria de linguagem.,
Se há acordo para notar que, como toda a linguagem douta
(a l i n g u a g e m filosófica por exemplo), a linguagem jurídica
consiste n u m uso particular da linguagem vulgar, os analistas
t ê m m u i t a dificuldade em descobrir o verdadeiro princípio
d e s t a « m i s t u r a de d e p e n d ê n c i a e d e i n d e p e n d ê n c i a » l 9 .
É possível, com efeito, contentar-se com invocar o efeito de
c o n t e x t o ou de «rede», no s e n t i d o d e W i t t g e n s t e í n , que
s u b t r a i as palavras e as locuções v u l g a r e s ao seu s e n t i d o
corrente. A transmutação que afecta o conjunto das caracterís-
ticas lingüísticas está ligada à adopção de uma postura glo-
bal q u e não passa da forma incorporada do sistema de prin-
cípios d e visão e de divisão, constitutivo de u m campo ele
p r ó p r i o caracterizado pela independência na dependência e
p o r ela. A u s t i n admirava-se de q u e n u n c a se t e n h a seria-
m e n t e p e r g u n t a d o por que razão nós «nomeamos coisas dife-
rentes com o mesmo nome»; e por que razão, poderíamos
nós acrescentar, não há grande inconveniente em fazê-lo. Se
a l i n g u a g e m jurídica pode consentir a si mesma o emprego
d e u m a palavra para nomear coisas completamente diferentes

19
Ph. Vissert Hooft, «La philosophie du langage ordinaire et le
droit», Archives de Philosophie du Droit, XVII, 1 9 7 2 , pp. 2 6 1 - 2 8 4 .
CAPÍTULO VIII 227

d a q u i l o por si designado no uso vulgar, é que os dois usos estão


associados a posturas lingüísticas que são tão radicalmente
exclusivas uma, da outra como a consciência perceptiva e a
consciência imaginária segundo a fenomenologia, de tal- modo
q u e a «colisão homonímica» (ou o mal-entendido) resultante
d o encontro no m e s m o espaço dos dois significados é perfeita-
m e n t e improvável. O princípio do desvio entre os dois signifi- Ar-
cados, que é geralmente procurado num efeito de contexto, não
é mais do que a dualidade dos espaços mentais, solidários de
espaços sociais diferentes, que os sustentam. Esta discordância
postural é o f u n d a m e n t o estrutural de todos os mal-entendidos
q u e p o d e m produzir-se entre os utilizadores de u m código
e r u d i t o (médicos, juizes, etc.) e os simples profanos, tanto ao
nível s i n t á t i c o c o m o ao nível lexicológico, sendo os mais
significativos os que surgem quando as palavras da linguagem
I v u l g a r , desviadas d o seu sentido c o m u m pelo uso erudito?
f u n c i o n a m para o profano como «falsos amigos» 2 0 .
A situação judicial funciona como lugar neutro, que opera
u m a verdadeira neutralização das coisas em jogo por meio da
«des-realização» e da distanciação implicadas na transformação
d a defrontação directa dos interessados em diálogo entre media-
dores. Os agentes especializados, enquanto terceiros — indife-
rentes ao que está directamente em jogo (o que não quer dizer
desinteressados) e preparados para apreenderem as realidades
escaldantes do presente atendo-se a textos antigos e a preceden-
tes confirmados — i n t r o d u z e m , mesmo sem querer nem saber,
u m a distância neutralizante a qual, no caso dos magistrados
pelo menos, é u m a espécie de imperativo da função que está,
inscrita no âmago dos habitus-. as atitudes ao mesmo tempc
ascéticas e aristocráticas que são a realização incorporada do
dever de reserva são constantemente lembradas e reforçadas
pelo g r u p o dos pares, sempre pronto a condenar e a censurar os
q u e se c o m p r o m e t e r i a m de m o d o demasiado aberto com ques-
tões d e dinheiro, ou de política. E m resumo, a transformação

20
É o caso, por exemplo, da palavra causa que não tem, de forma
alguma, no uso comum, o sentido que lhe dá o direito (cf. Ph. Vissert
Hooft, art. cit.).
228 /1 FORÇA DO DIREITO

dos conflitos inconciliáveis de interesses e m permutas reguladas


d e a r g u m e n t o s racionais entre sujeitos iguais está inscrita na
p r ó p r i a existência de u m pessoal especializado, independente
dos g r u p o s sociais em conflito e encarregado de organizar,
^ s e g u n d o formas codificadas, a manifestação pública dos conflitos
sociais e de lhes dar soluções socialmente reconhecidas como
imparciais, pois que são definidas segundo as regras formais e
l o g i c a m e n t e coerentes de uma doutrina percebida como inde-
p e n d e n t e dos antagonismos i m e d i a t o s 2 1 . N e s t e sentido, a
representação nativa* que descreve o tribunal como um espaço
separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo
d e peritos e o processo, como u m progresso ordenado com vista
à v e r d a d e 2 2 , é u m a boa evocação de u m a das dimensões do
efeito simbólico do acto jurídico como aplicação prática, livre
e racional de uma norma universal e cientificamente fundamen-
t a d a 2 3 . O veredicto judicial, compromisso político entre exi-
gências inconciliáveis que se apresenta como uma síntese lógica
e n t r e teses antagonistas, condensa toda a a m b i g ü i d a d e d o
c a m p o jurídico. Ele deve a sua eficácia específica ao facto de
participar ao m e s m o tempo da lógica do campo político, que se
organiza em torno da oposição entre os amigos ou os aliados e
os i n i m i g o s e que tende a excluir a intervenção arbitrai de u m
terceiro, e da lógica do campo científico que, logo que chega a
u m alto g r a u . d e autonomia, tende a conferir um primado

O recurso legal implica, em muitos casos, o reconhecimento de uma


definição das formas de reivindicação ou de luta que privilegia lutas
individuais (e legais) em detrimento de outras formas de luta.
31
«Assim, o direito nasce do processo, diálogo regulado cujo métido
é a dialéctica» (M. Villey, Pbi/osopbie du Droit, II, Paris, Dalloz, 1979,
P. 53).
23
Tudo nas representações da prática jurídica (concebida como decisão
racional ou como aplicação dedutiva de uma regra de direito) e na própria
doutrina jurídica que tende 'a conceber o mundo social como simples
agregado de acções realizadas por sujeitos de direito racionais, iguais e livres,
predispunha os juristas, em outros tempos fascinados por Kant ou Gada-
mer, a procurarem na Rational Action Theory os instrumentos de um
aggiornamento das justificações tradicionais do direito (eterna renovação das
técnicas de eternização...)
* «indigènes», no texto original (N. T.).
Prof.Dr. M m Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 229

p r á t i c o à oposição entre o verdadeiro e o falso, conferindo u m


p o d e r a r b i t r a i d e facto à concorrência entre os pares 2 4 .
O c a m p o judicial é o espaço social organizado no qual e
p e l o q u a l se opera a transmutação de u m conflito directo entre
p a r t e s d i r e c t a m e n t e interessadas no debate juridicamente regu-
l a d o e n t r e profissionais q u e actuam, por procuração e que têm
d e c o m u m o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico,
q u e r dizer, as leis escritas e não esc'ritas do campo — mesmo
q u a n d o se trata daquelas q u e é preciso conhecer para vencer
a letra d a lei (em K a f k a , o advogado é tão inquietante como
o juiz). N a definição que f r e q ü e n t e m e n t e tem sido dada, de
Aristóteles a K o j è v e , do jurista como «terceiro mediador», o
essencial está na idéia d e mediação (e não de arbitragem) e no
q u e ela implica, q u e r dizer, a perda da relação de apropriação
d i r e c t a e i m e d i a t a d a sua própria causa: perante o pleiteante
ergue-se u m p o d e r transcendente, irredutível à defrontação das
visões d o m u n d o p r i v a d a s , q u e não é o u t r a coisa senão a
e s t r u t u r a e o f u n c i o n a m e n t o d o espaço socialmente instituído
d e s t a defrontação.
A entrada no universo jurídico, por implicar a aceitação
tácita da lei f u n d a m e n t a l do c a m p o jurídico, tautologia consti-
t u t i v a q u e quer q u e os conflitos só possam nele ser resolvidos
j u r i d i c a m e n t e — quer dizer, segundo as regras e as convenções
d o c a m p o jurídico — , é a c o m p a n h a d a de u m a redefinição
c o m p l e t a da experiência corrente e da própria situação que está
e m jogo no litígio. A constituição do campo jurídico é u m
p r i n c í p i o d e constituição d a realidade (isto é, verdadeiro em
relação a todo o campo). E n t r a r no jogo, conformar-se com o
d i r e i t o para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção
d e u m m o d o de expressão e de discussão que implica a renúncia
à violência física e às formas elementares da violência simbóli-
ca, c o m o a i n j ú r i a . E t a m b é m , e sobretudo, reconhecer as
exigências específicas da construção jurídica do objecto: dado
24
A tradição filosóficji — e sobretudo Aristóteles nos Tópicos — evoca
de maneira quase explicitada constituição do campo social que é o princípio
da constituição da permutà verbal como discussão heurísttica explicitamente
orientada, em oposição ao debate erístico, para a procura de proposições
válidas para um auditório universal.
230 /1 FORÇA DO DIREITO

q u e os factos jurídicos são p r o d u t o da construção jurídica (e não


o inverso), u m a verdadeira rerradução de todos os aspectos do
«caso» é necessária para pmere causam, como diziam os Roma-
nos, para constituir o objecto de controvérsia enquanto causa,
q u e r dizer, e n q u a n t o problema jurídico próprio para ser objecto
d e debates juridicamente regulados e para reter tudo o que, do
p o n t o de vista de u m princípio de pertinência jurídica, mereça
ser f o r m u l a d o , e apenas isso, c o m o t u d o o que pode valer como
f a c t o , c o m o a r g u m e n t o favorável ou desfavorável, etc.
E n t r e as exigências que estão implicitamente inscritas no
c o n t r a t o q u e define a entrada no campo jurídico, podem-se,
s e g u i n d o A u s t i n , mencionar três: a primeira, é o facto de se
dever chegar a u m a decisão, e a uma decisão «relativamente
. branca ou preta, culpado ou não culpado, para o queixoso ou
p a r a o acusado»*; a segunda, é o facto de a acusação e a defesa
d e v e r e m ordenar-se n u m a das categorias reconhecidas do proce-
d i m e n t o q u e se i m p u s e r a m no decurso da história e que, não
o b s t a n t e o seu n ú m e r o , permanecem m u i t o limitadas e m u i t o
e s t e r e o t i p a d a s e m relação às acusações e às defesas da vida
q u o t i d i a n a — o que faz com que conflitos e argumentos de
t o d a a espécie p e r m a n e ç a m a q u é m da lei como demasiado
triviais, o u fora da lei c o m o exclusivamente morais — ; a tercei-
ra, é o facto de se dever recorrer a precedentes e de se confor-
m a r c o m eles, o que pode levar a distorções das crenças e das
expressões correntes 2 S .
A regra que i m p e d e ir-se para além das decisões jurídicas
anteriores, stare decisis, para se decidir juridicamente é para
o p e n s a m e n t o jurídico-, o q u e o preceito d u r k h e i m i a n o de
«explicar o social pelo social» é para o pensamento socioló-
gico: apenas u m m o d o diferente de afirmar a autonomia e a

* «defenseur» no texto original. (N. T.).


25
Deste conjunto de exigências constitutivas da visão do mundo
jurídico deriva, segundo Austin, o facto de os juristas não darem às
expressões correntes o seu sentido corrente e de, além de inventarem termos
técnicos ou sentidos técnicos para termos correntes, manterem uma relação
especial com a linguagem que os leva a procederem a extensões e restriçõe$
de sentido insólitas (cf. J . - L . Austin, Philosophical Papers, Oxford, Claren-
don Press, 1 9 6 1 , p. 136).
CAPÍTULO VIII 231

especificidade do raciocínio e do juízo jurídicos. A referência a


u m corptts de precedentes reconhecidos, que funcionam como um
espaço de possíveis em cujo interior a solução pode ser procura-
da, é o que f u n d a m e n t a racionalmente uma decisão que pode
inspirar-se, na realidade, em princípios diversos, mas que ela faz
aparecer como p r o d u t o de uma aplicação neutra e objectiva de
u m a competência especificamente jurídica. Todavia, porque,
entre outras coisas, os precedentes são, pelo menos, utilizados
ora como instrumentos de racionalização ora como razões determi-
nantes e porque o mesmo precedente, construído de maneiras
diferences, pode ser invocado para justificar teses opostas e ainda
porque a tradição jurídica oferece uma grande diversidade de
precedentes e de interpretações em que se pode escolher os que
melhor se adaptam ao caso em questão" 6 , é preciso evidentemente
ter cuidado em não fazer do stare decisis uma espécie de postulado
racional próprio para garantir a constância e a previsibilidade, e
ainda a objectividade das decisões judiciais (enquanto limitação
posta ao arbitrário das decisões subjectivas). A previsibilidade e a
calculabilidade que W e b e r empresta ao «direito racional» assen-
t a m , sem dúvida, antes de mais, na constância e na homogeneida-
de dos habitus jurídicos: as atitudes comuns, afeiçoadas, na base de
experiências familiares semelhantes, por meio de escudos de
direito e da prática das profissões jurídicas, funcionam como
categorias de percepção e de apreciação que estruturam a percep-
ção e a apreciação dos conflitos correntes e que orientam o
trabalho destinado a transformá-los em confrontações jurídicas ' 7 .

Podemos apoiar-nos na tradição dita da «dispute theory» (sem lhe


aceitar todos os pressupostos) para fazermos uma descrição do trabalho
colectivo de «categorização» que tende a transformar um agravo percebido,
e até mesmo despercebido, em agravo explicitamente imputado, e a
transformar uma simples disputa em processo. Nada é menos natural do que
a «necessidade jurídica» ou, o que significa o mesmo, o sentimento de
injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de um profissional: é sabido,

Cf. D. Kayris, «Legal Reasoning» in D. Kayris (ed.), The Po/itics of


Late, Nova Iorque, Pantheon Books, 1982, pp. 1 1 - 1 7 .
•' Alguns legal realists, recusando à regra toda a eficácia específica,
chegaram a reduzir o direito à simples regularidade estatística, garante da
previsibilidade do funcionamento das instâncias jurídicas.
232 /1 FORÇA DO DIREITO

com efeito, que a sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma


experiência como injusta não está uniformemente espalhada e que depende
estreitamente da posição ocupada no espaço social. Quer isto dizer que a
passagem do agravo despercebido ao agravo percebido e nomeado, e sobre-
tudo imputado, supõe um trabalho de construção da realidade social que
incumbe, em grande parte, aos profissionais: a descoberta da injustiça como
tal assenta no sentimento de ter direitos (entitlement) e o poder específico dos
profissionais consiste na capacidade de revelar os direitos e, simultaneamente,
as injustiças ou, pelo contrário, de condenar o sentimento de injustiça firma-
do apenas no sentido da equidade e, deste modo, de dissuadir da defesa judi-
cial dos direitos subjectivos, em resumo, de manipular as aspirações jurídicas,
de as criar em certos casos, de as aumentar ou de as deduzir em outros casos.
(Um dos poderes mais significativos dos tawyers é constituído pelo trabalho de
expansão, de amplificação das disputas: este trabalho propriamente político
consiste em transformar as definições admitidas transformando as palavras ou
os rótulos atribuídos às pessoas ou às coisas, quer dizer, freqüentemente,
recorrendo às categorias da linguagem legal, para fazer entrar a pessoa, a
acção, a relação de que se trata numa classe mais l a r g a ) S ã o também os pro-
fissionais quem produz a necessidade dos seus próprios serviços ao constituí-
rem em problemas jurídicos, traduzindo-os na linguagem do direito, proble-
mas que se exprimem na linguagem vulgar e ao proporem uma avaliação
antecipada das probabilidades de êxito e das conseqüências das diferentes
estratégias; e não há dúvida de que eles são guiados no seu trabalho de cons-
trução das disputas pelos seus interesses financeiros, e também pelas suas
atitudes éticas ou políticas, princípio de afinidades socialmente fundamenta-
das com os seus clientes (sabe-se, por exemplo, que inúmeros lawyers desacon-
selham as reivindicações legítimas dos clientes contra as grandes empresas,
principalmente em matéria de consumo) c, enfim e sobretudo, pelos seus inte-
resses mais específicos, aqueles que se definem nas suas relações objectivas com
os outros especialistas e que se actualizam, por exemplo, no próprio recinto do
tribunal (dando lugar a negociações explícitas ou implícitas). O efeito de her-
metismo* que o próprio funcionamento do campo tende a exercer manifesta-se
no facto de as instituições judiciais tenderem a produzir verdadeiras tradições
específicas e, em particular, categorias de percepção e de apreciação perfeita-
mente irredutíveis às dos não-especialistas, gerando os seus problemas e as suas
soluções segundo uma lógica totalmente hermética e inacessível aos profanos

Sobre este trabalho de expansão ver L. Mather e B. Yngvesson,


"Language, Audience and the Transformation of Disputes», Law and Society
Review, • 1 5 , 3-4, 1 9 8 0 - 8 1 , pp. 7 7 6 - 8 2 1 .
"" Cf. sobre todos estes pontos, W . L. Felstiner, R. L. Abel, A. Sarat,
«The Emergence and Transformation of Disputes: Names, Blaming, Clai-
ming», Law and Society Review vol. 1 5 , 3 - 4 , 1980-81, pp. 6 3 1 - 6 5 4 ;
* "I'effet de fermeture» no texto original ( N . T.).
Prof. Dr. Jáne Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 233

A mudança de espaço mental que está lógica e praticamente associada à


mudança de espaço social garante o domínio da situação aos detentores da
competência jurídica, os únicos capazes de adoptar a postura que permite
constituir esta situação em conformidade com a lei fundamenta! do campo.
O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele, renunciam
tacitamente a gerir eles próprios o seu conflito (pelo recurso à força ou a um
árbitro não oficial ou pela procura directa de uma solução amigável), ao
estado dc clientes dos profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos
dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que
garante o domínio dos meios e recursos jurídicos exigidos pela lógica do
campo.
A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do
monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta
categoria particular de produtos que são os serviços jurídicos. A competên-
cia jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao
campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar nele e a
forma específica de que se devem revestir para se constituirem em debates
propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para
fazer o trabalho de construção que, mediante uma selecção das propriedades
pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção
eficaz. O corpo dos profissionais define-se pelo monopólio dos instrumentos
necessários à construção jurídica^que ç, por si, apropriação; a importância
dos ganhos que o monopólio do mercado dos serviços jurídicos assegura a
cada um dos seus membros depende do grau em que ele pode controlar a
produção dos produtores, quer dizer, a formação e, sobretudo, a consagração
pela instituição escolar dos agences juridicamente autorizados a vender
serviços jurídicos e, deste modo, a oferta dos serviços jurídicos.
A melhor verificação destas proposições é constituída pelos efeitos
determinados, tanto na Europa como nos Estados Unidos, pela crise do
modo de acesso tradicional às profissões judiciais — assim como aos corpos
de médicos, de arquitectos e de outros detentores de diferentes espécies de
capital cultural. Tais efeitos são, por exemplo, os esforços para limitar a
oferta e os efeitos da intensificação da concorrência (a baixa nos rendimen-
tos, por exemplo) por medidas que têm em vista reforçar as barreiras postas
à entrada na profissão (numeras clausus); ou ainda os esforços para
aumentar a procura, pelas vias mais diversas, que vão da publicidade —
mais freqüente nos E U A — até às acções militantes que têm o efeito (o que
não quer dizer o fim) de abrir aos serviços jurídicos novos mercados,
promovendo os direitos das minorias desfavorecidas ou incitando as minorias
a fazerem valer os seus direitos e, de modo mais lato, procurando levar os
poderes públicos a contribuírem de maneira directa ou indirecta para

D. Coates, S. Penrod, «Social Psychology and the Emergence of Disputes»,


id., pp 654-680; L. Mather, B. Yngvesson, artigo citado.
234 A FORÇA DO DIREITO

sustentar a procura jurídica H \ É assim que a evolução recente do campo


jurídico permite que se observe directamente o processo de constituição
apropriativa — acompanhado do desapossamento correlativo dos simples
profanos — que tende a criar uma procura ao fazer entrar na ordem jurídica
um domínio da prática até então deixado a formas pré-jurídicas de solução
dos conflitos: a justiça «prud'homale»* que oferecia até então um asilo a
uma espécie de arbitragem firmada no sentido da equidade e exercida por
homens de experiência, segundo procedimentos simples, foi objecto de tal
processo de anexação M . Como efeito de uma cumplicidade objectiva entre
representantes sindicais culturalmente mais ptovidos e certos juristas que,
graças a uma solicitude generosa pelos interesses dos mais desfavorecidos,
alargam o mercado que se abre ao serviço delci, esta ilhota de autoconsumo
jurídico achou-se pouco a pouco integrada no mercado controlado pelos
profissionais: os conselheiros são cada vez mais obrigados a apelar ao direito
para produzirem e para justificarem as suas decisões, sobretudo porque os
litigantes e os demandados tendem cada vez'mais a colocar-se no terreno
jurídico e a recorrer aos serviços de advogados, e também porque a
multiplicação das apelações obriga os «prud'hornmes» a recorrerem às
decisões do Tribunal de Alta Justiça — efeito de que tiram proveito as
revistas de jurisprudência e os profissionais que são cada vez mais consulta-
dos pelos patrões ou pelos sindicatos " . Em resumo, à medida que um
campo (neste caso, um subcampo) se constitui, um processo de reforço
circular põe-se em movimento: cada «progresso» no sentido da «jurisdiciza-
ção» de uma dimensão da prática gera novas «necessidades jurídicas»,
portanto, novos interesses jurídicos entre aqueles que, estando de posse da
competência especificamente exigida (na ocorrência, o direito do trabalho),
encontram aí um novo mercado; estes, pela sua intervenção, determinam
um aumento do formalismo jurídico dos procedimentos e contribuem assim
para reforçar a necessidade dos seus próprios serviços e dos seus próprios
produtos e para determinar a exlusão de facto dos simples profanos, forçados

* cf. supra nota * * da p. 104.


Sobre os efeitos do aumento da população dos lawyers nos E U A , ver
R. L. Abel, «Toward a Political Economy of Lawyers», Wisconsin Law
Review, vol. 5, 1 9 8 1 , pp. 1 1 Í 7 - 1 1 8 7 .
•" Cf. P. Cam, «Juges rouges et droit du travail», Actes de la recherche
en sciences sociales, 19, Janeiro 1 9 7 8 , pp. 2 - 2 7 e Les Prud'hommes, juges et
arbitres, Paris, F N S P , 1 9 8 1 , e sobretudo, J . - P . Bonafé-Schmitt, «Pour une
sociologie du juge prud'homal», Anna les de Vaucresson, n.° 2 3 , 2 . ° semestre
de 1 9 8 5 , pp. 2 7 - 5 0 .
C f . Y . Dezalay, «De la médiation au droit pur: pratiques et
représentations savantes dans le champ du droit», Annales de Vaucresson,
n . ° 2 1 , Outubro de 1984, pp. 1 1 8 - 1 4 8 .

i
CAPÍTULO VIII 235

a recorrer aos conselhos de profissionais, que acabarão pouco a pouco por


tomar o lugar dos litigantes e dos demandados, convertidos deste modo em
simples «justiciátris» n .
Dentro da mesma lógica, já se pôde mostrar que a vulgarização
militante do direito do trabalho, que assegura a um número importante dp
não-profissionais um bom conhecimento das regras e dos procedimenros
jurídicos, não produz o efeito de garantir uma reapropriação do direito pelos
utilizadores em detrimento do monopólio dos profissionais, nem tão pouco
o efeito de determinar uma deslocação da fronteira entre os profanos e os
profissionais os quais, impelidos pela lógica da concorrência no seio do
campo, têm de aumentar em cientificidade para conservarem p monopólio
da interpretação legítima e escaparem à desvalorização associada a uma
disciplina que ocupa uma posição inferior no campo jurídico.Observam-
-se muitas outras manifestações desta tensão entre a procura do alargamento
do mercado pela conquista de um sector entregue ao autoconsumo jurídico
(procura que pode ser talvez tanto mais eficaz, como no caso dos «prud'-
hommes», quanto mais inconsciente ou inocente é) e o reforço da autono-
p i a , quer dizer, a separação entre os profissionais e os profanos: no quadro,
por exemplo, do funcionamento das jurisdições disciplinares no seio das
empresas privadas, a preocupação de manter, em relação aos profanos, a
distância que define a pertença ao campo e que impede uma defesa
demasiado directa dos interesses dos mandantes leva os mediadores semi-
-profissionais a aumentar a tecnicidade das suas intervenções para melhor
marcarem a separação daqueles cujos interesses eles defendem e darem assim
mais autoridade e neutralidade à sua defesa, embora com o perigo de
desmentirem com isso aquilo que constitui a própria lógica da situação de
negociação amigável. " * *

*•* Temos aí um exemplo típico de um desses processos que, quando


não são descritos na linguagem ingênua da «recuperação», são feitos para
predispor ao funcionalismo de má qualidade, incitando a pensar que toda a
forma de oposição aos interesses preenche uma função útil para a perpetua-
ção da ordem constitutiva do campo, e que a heresia tende a reforçar a
própria ordem que, ao combatê-la, a acolhe e a absorve, saindo reforçada
desta confrontação.
" * Cf. R. Dhoquois, «La vulgarisation dudroit du travail. Réappropria-
tion par les intéressés ou développement d'un nouveau marché pour les
professionels?» Anna/es de Vaucrcsson, n.° 2 3 , 2 . ° semestre, 1985, pp. 15-26.
" * * Cf. Y . Dezaley, «Des affaires disciplinaires au droit disciplinaire:
la juridictionalisation des affaires disciplinaires comme enjeu social et
professionnel», Annates de Vaucresson, ib., id., pp. 5 1 - 7 1 . Ij
236 /1 FORÇA DO DIREITO

O poder de nomeação

C o n f r o n t a ç ã o d e pontos de vista singulares, ao mesmo


t e m p o cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto
s o l e n e m e n t e e n u n c i a d o d e u m a «autoridade» socialmente
, m a n d a t a d a , o pleito representa u m a encenação paradigmática
da l u t a simbólica que tem lugar no m u n d o social: nesta luta
e m q u e se defrontam visões do m u n d o diferentes, e até mesmo
a n t a g o n i s t a s , que, à m e d i d a da sua autoridade, pretendem
impor-se ao reconhecimento e, deste modo, realizar-se, está em
jogo o monopólio do poder de impor o princípio universal-
m e n t e reconhecido de conhecimento d o m u n d o social, o nomos
como princípio universal de visão e de divisão (nemo significa
separar, dividir, distribuir), portanto, de distribuição legíti-
m a 3 4 . N e s t a luta, o poder judicial, por meio dos veredictos
acompanhados de sanções que p o d e m consistir em actos de
coerção física, tais c o m o retirar a vida, a liberdade ou a
propriedade, manifesta esse p o n t o de vista transcendente às
„ perspectivas particulares que é a visão soberana do Estado,
d e t e n t o r d o monopólio da violência simbólica legítima.
O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negocia-
ções a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publica-
m e n t e o que elas são na verdade, em última instância, pertence
à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim
do insulto lançado por u m simples particular que, enquanto
discurso privado — idios Jogos — , que só compromete o seu
a u t o r , não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a
forma p o r excelência da palavra autorizada, palavra pública,
oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes
e n u n c i a d o s p e r f o r m a t i v o s , e n q u a n t o juízos de atribuição
formulados publicamente por agentes que actuam como man-
datários autorizados de uma colectividade e constituídos assim
ém modelos de todos os actos de categorização (katègorein como

O rex arcaico detém o poder de marcar os limites (regere fines), de


34

«fixar as regras, de determinar, no sentido próprio, o que é direito». (E.


Benveniste, Le vocabulaire cies institutions indo-européennes, II, Paris, Minuit,
1969, p. 15.
Prof.Dr.Jake Cunha
FCS/IFCH/UFPA CAPÍTULO VIII
237

se sabe, significa acusar publicamente)*, são actos mágicos que


são b e m sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhe-
cer universalmente, portanto, de conseguir que n i n g u é m possa
recusar ou ignorar o p o n t o de vista, a visão, que eles i m p õ e m .
O direito consagra a ordem estabelecida ao consagrar u m a
visão desta ordem que é u m a visão do Estado, garantida pelo
Estado. Ele atribui aos agentes^ u m a identidade garantida, um
estado civil, e sobretudo poderes (óu capacidades) socialmente
reconhecidos, portanto, produtivos, mediante a distribuição
dos direitos de utilizar esses poderes, títulos (escolares, profis-
sionais, etc.), certificados (de aptidão, de doença, de invalidez,
etc.), e sanciona todos os processos ligados à aquisição, ao
a u m e n t o , à transferência ou à retirada desses poderes. Os
veredictos por meio dos quais ele distribui diferentes volumes
d e diferentes espécies de capital aos diferentes agentes (ou
instituições) põem u m t e r m o ou, pelo menos, u m l i m i t e à
l u t a , ao regateio ou à negociação acerca das qualidades das
pessoas ou dos g r u p o s , acerca d a pertença das pessoas aos
g r u p o s , portanto, acerca da justa atribuição dos nomes, pró-
prios ou c o m u n s , c o m o os t í t u l o s , acerca da união ou da
s e p a r a ç ã o , e m r e s u m o , s o b r e t o d o o t r a b a l h o p r á t i c o de
tvorldmaking, casamentos, divórcios, cooptações, associações,
r dissoluções, e t c . , q u e está na o r i g e m da c o n s t i t u i ç ã o dos
í g r u p o s . O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do
poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em
particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das
suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas,
q u e u m a instituição histórica é capaz de conferir a instituições
históricas.
O direito é a forma por excelência do discurso actuante,
capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. N ã o é demais
' dizer q u e ele faz\0 m u n d o social, mas com a condição de se não
esquecer que ele é feito por este. Convém, com efeito, q u e nos
I interroguemos acerca das condições sociais — e dos limites —
desta eficácia quase mágica, sob pena de cairmos no nominalis-
m o radical (que certas análises de Michel Foucault sugerem) e

* cf. supra p. 142.


238 /1 FORÇA DO DIREITO

' d e estabelecermos que produzimos as categorias segundo as


l q u a i s c o n s t r u í m o s o m u n d o social e q u e estas categorias
• p r o d u z e m este m u n d o . D e facto, os esquemas de percepção e
d e apreciação q u e estão na origem da nossa construção do
m u n d o social são produzidos por u m trabalho histórico colecti-
v o , m a s a partir das próprias estruturas deste mundo: estrutu-
ras e s t r u t u r a d a s , historicamente construídas, as nossas catego-
rias de p e n s a m e n t o contribuem para produzir o mundo, mas
d e n t r o dos l i m i t e s da sua correspondência com estruturas
preexistentes. É na medida e só na medida em que os actos
s i m b ó l i c o s de nomeação propõem princípios de visão e de
d i v i s ã o o b j e c t i v a m e n t e a j u s t a d o s às divisões preexistentes
d e q u e são p r o d u t o , que tais actos têm toda a sua eficácia de
enunciação criadora q u e , ao consagrar aquilo que enuncia, o
coloca n u m grau de existência superior, plenamente realizado,
q u e é -o da instituição instituída. Por outras palavras, o efeito
p r ó p r i o , quer dizer, propriamente simbólico, das representa-
ções geradas s e g u n d o esquemas adequados às estruturas do
m u n d o de q u e são p r o d u t o , é o de consagrar a ordem estabele-
cida: a representação justa* sanciona e santifica a visão dóxica
das divisões, manifestando-a na objectividade de uma ortodoxia
p o r u m verdadeiro acto de criação que, proclamando-a à vista
d e t o d o s e e m nome de todos, lhe confere a universalidade
p r á t i c a d o oficial.
O imperativo do a j u s t a m e n t o realista às estruturas objecti-
vas não se i m p õ e menos ao poder simbólico na s u a . f o r m a
p r o f é t i c a , herética, anti-institucional, subversiva. Se o poder
criador da representação 1 nunca se manifesta tão claramente, em
ciência, em arte ou em, política, como nos períodos de crise
revolucionária, e não é menos verdade que a vontade de trans-
f o r m a r o m u n d o transformando as palavras para o nomear, ao
p r o d u z i r novas categorias de percepção e de apreciação e ao
i m p o r u m a nova visão das divisões e das distribuições, só tem
p r o b a b i l i d a d e s de êxito se as profecias, evocações criadoras,
f o r e m t a m b é m , pelo menos em parte, previsões bem funda-
m e n t a d a s , descrições antecipadas: elas só fazem advir aquilo

* «droite» no texto original (N.T.).


CAPÍTULO VIII 239

q u e anunciam, novas práticas, novos costumes e, sobretudo,


novos grupos, porque elas anunciam aquilo que está em vias de
advir, o que se anuncia; elas são mais oficiais do registo civil do
q u e parceiras da história. Ao concederem às realidades e às
virtualidades históricas o pleno reconhecimento que a procla-
mação profética encerra, oferecem-lhes, pelo efeito de licitação,
e a t é m e s m o de consagração, associado à publicação e à
oficialização, a possibilidade real de aceder à existência plena,
quer dizer, conhecida e reconhecida, oficial — por oposição à
existência ignominiosa, bastarda, oficiosa. Assim, só u m nomi-
nalismo realista (ou firmado na realidade) permite explicar o^
efeito mágico da nomeação, acto de força simbólico que só é
bem sucedido porque está bem fundado na realidade. A eficácia
de todos os actos da magia social cuja forma canónica está
represencada pela sanção jurídica só pode operar na medida em
que a força propriamente simbólica de legitimação ou, melhor,
de naturalização (o natural é o que não põe a questão da sua
legitimidade) recobre e aumenta a força histórica imanente que
a sua autoridade e a sua autorização reforçam ou libertam.
Estas análises, q u e p o d e m parecer m u i t o afastadas da
realidade da prática jurídica, são indispensáveis para se com-
preender de maneira exacta o princípio deste poder simbólico.
Se está na própria vocação da sociologia lembrar que, segundo
o d i t o de Montesquieu, não se transforma a sociedade p o r
decreto, também é verdade que a consciência das condições
sociais da eficácia dos actos jurídicos não deve levar a ignorar
ou negar a q u i l o q u e faz a eficácia própria da r e g r a , do
regulamento e da lei: a justa reacção contra o juridismo, que
leva a restituir ao seu lugar, na explicação das práticas, as
disposições constitutivas do habitus, não implica de forma
a l g u m a pôr entre parênteses o efeito próprio da regra explicita-
m e n t e enunciada, sobretudo quando, como é o caso da regra
jurídica, ela está associada a sanções. E inversamente, se não há
dúvida de que o direito exerce u m a eficácia específica, imputá-
vel sobretudo ao trabalho de codificação, de pôr em forma e em
fórmula, de neutralização e de sistematização, que os profissio-
nais do trabalho simbólico realizam segundo as leis próprias do
seu universo, t a m b é m não há dúvida de que esta eficácia,
240 /1 FORÇA DO DIREITO

d e f i n i d a pela oposição à inaplicação p u r a e simples ou à


aplicação firmada no constrangimento puro, se exerce na medi-
• da e só na medida em que o direito é socialmente reconhecido e
depara com u m acordo, mesmo tácito e parcial, porque respon-
de, pelo menos na aparência, a necessidades e interesses reais 35 .

A força da forma

C o m o a prática religiosa, a prática jurídica define-se na


relação e n t r e o campo jurídico, princípio da oferta jurídica que
se gera na concorrência entre os profissionais, e a procura dos
profanos que são sempre em parte determinados pelo efeito da
oferta. H á confrontação constante entre as normas jurídicas
oferecidas as quais, pelo menos na sua forma, têm a aparência
. da universalidade e a procura social, necessariamente diversa, e
"até m e s m o conflitual e contraditória, que está objectivamente
inscrita nas próprias práticas, e m estado actual ou em estado
potencial (em forma de transgressão ou de inovação da vanguar-
da ética ou política). A legitimidade, que se acha praticamente
conferida ao direito e aos agentes jurídicos pela rotina dos usos
que dela se fazem, não pode ser compreendida nem como efeito
do reconhecimento universalmente concedido pelos «justiciá-
veis» a u m a jurisdição que, como quer a ideologia profissional
do corpo dos juristas, seria o enunciado de valores universais e
eternos, portanto, transcendentes aos interesses particulares,
n e m , pelo contrário, como efeito da adesão inevitavelmente
obtida por aquilo que não passaria de u m registo do estado dos
^costumes, das relações de força ou, mais precisamente, dos
i n t e r e s s e s d o s d o m i n a n t e s 3 6 . D e i x a n d o d e se p e r g u n t a r

3S
A relação dos habitus com a regra ou a doutrina é a mesma no caso
da religião em que é tão falso imputar as práticas ao efeito da liturgia ou do
dogma (por meio de sobreavaliação do juridismo) como ignorar este efeito
imputando-as completamente ao efeito das atitudes e ignorando ao mesmo
tempo a eficácia própria da acção do corpo de clérigos.
3t>
A propensão para apreender sistemas de relações complexas de
maneira unilateral (à maneira dos lingüistas que procuram neste ou naquele
sector do espaço social o princípio da mudança lingüística) conduz alguns a
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 241

se o p o d e r vem de cima ou de baixo, se a elaboração do direito e a


sua transformação são p r o d u t o de u m «movimento» dos costu-
m e s e m direcção à regra, das práticas colectivas e m direcção às
codificações jurídicas o u , i n v e ^ a m e n t e , das formas e das f ó r m u -
las jurídicas e m direcção às práticas"que elas informam, é preciso
t e r e m linha de conta o conjunto das relações objectivas entre o
c a m p o jurídico, lugar de relações coiAplexas que obedece a u m a
lógica relativamente autônoma, e o campo do poder e, por meio
dele, o campo social no seu c o n j u n t o . E no interior deste
universo de relações que se definem os meios, os fins e os efeitos
específicos q u e são atribuídos à acção jurídica.
Para explicar o que é o direito, na sua estrutura e no seu
efeito social, será preciso retomar, além do estado da procura
social, actual ou potencial, e das condições sociais de possibili-
d a d e — essencialmente negativas — q u e ela oferece à «criação
jurídica», a lógica própria do trabalho jurídico no q u e ele tem
d e mais específico, quer dizer, a actividade de formalização, e
os interesses sociais dos agentes formalizadores, tal como se
d e f i n e m na concorrência no seio d o campo jurídico e na relação
e n t r e este campo e o campo do poder no seu c o n j u n t o 3 7 .
E certo q u e a prática dos agentes encarregados de produzir
o direito ou de o aplicar deve m u i t o às afinidades que u n e m os

inverterem pura e simplesmente, em nome da sociologia, o velho modelo


idealista da criação jurídica pura (que pôde ser, simultânea ou sucessiva-
mente situada, no decurso das lutas no interior do campo, na acção dos
legisladores ou dos juristas ou, com os publicistas e os civilistas, nas
decisões da jurisprudência): «O centro de gravidade do desenvolvimento do
direito, na nossa éjx>ca (...), como em todo o tempo, não deve ser procurado
nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas sim na
sociedade ela própria» (Eugen Ehrlich), citado por J . Carbonnier, Flexible
droit, Textes pour une sociologie du droit sans rigueur, 5. a edição, Paris, L G D J ,
1 9 8 3 , p. 2 1 .
•17 Max Webér que via nas propriedades de lógica forma! do direito
racional o verdadeiro fundamento da sua eficácia (por meio sobretudo da sua
capacidade de generalização, princípio da sua aplicabilidade universal)
ligava ao desenvolvimento das burocracias e das relações impessoais que elas
favorecem o desenvolvimento de corpos de especialistas do direito e de uma
pesquisa jurídica própria para fazer do direito um discurso abstracto e
logicamente coerente.
242 /1 FORÇA DO DIREITO

d e t e n t o r e s p o r excelência da f o r m a do poder simbólico aos


d e t e n t o r e s do poder temporal, político ou econômico, e isto não
o b s t a n t e os conflitos de competência que os podem opor. A pro-
x i m i d a d e dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus,
l i g a d a a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem
o p a r e n t e s c o das visões do m u n d o . Segue-se daqui que as
escolhas q u e o corpo deve fazer, em cada m o m e n t o , entre
interesses, valores e visões do m u n d o diferentes ou antagonistas
t ê m p o u c a s probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal
m o d o o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a
lógica i m a n e n t e dos textos jurídicos ;que são invocados tanto
p a r a os justificar como para os inspirar estão adequados aos
interesses, aos valores e à visão do m u n d o dos dominantes.
i
A pertença dos magistrados à classe dominante está atestada em toda a
parte. Assim, Mario Sbriccoli mostra que nas pequenas comunidades da
Itália da Idade Média, a posse desta espécie particularmente rara de capital
cultural que é o capital jurídico bastava para garantir posições de poder. Do
mesmó modo, em França, durante o Antigo Regime, a nobreza de toga,
embora menos prestigiosa do que a nobreza de espada, pertencia, freqüente-
mente por nascimento, à aristocracia. Do mesmo modo ainda, o inquérito
de Sauvageot sobre a origem social dos magistrados que entraram para o
corpo antes de 1959 estabelece que os magistrados, em forte proporção,
saíram das profissões judiciais e, de modo mais lato, da burguesia. Como
mostra bem Jean-Pierre Mounier J "*, o facto de, pelo menos até um período
recente, a fortuna garantida por uma origem rica ser a condição da
independência econômica e mesmo do elos ascético que são constituídos, de
certo modo, pelos atributos estatutários de uma profissão consagrada ao
serviço do Estado, contribui para explicar, com os efeitos próprios da
formação profissional, que a neutralidade proclamada e a aversão altamente
professada a respeito da política não excluam, pelo contrário, a adesão à
ordem estabelecida. (Pode-se ver um bom índice dos valores do corpo de
magistrados no facto de terem sido eles, ainda que pouco inclinados a
intervir nos negócios políticos, entre todas as profissões jurídicas — e
sobretudo os advogados — os mais numerosos, relativamente, a assinarem
as petições contra a lei de liberalização do aborto). Mas nunca se mede, sem

A
" Estas afinidades foram sem dúvida reforçadas, no caso da França, com a
criação da E N A , que assegura um mínimo de formaçáo jurídica aos altos fun-
cionários e a uma boa parte dos dirigentes das empresas públicas ou privadas.
Jean-Pierre Mounier, La définition judiciaire de la politique, tese,
Paris I, 1 9 7 5 .
CAPÍTULO VIII 243

dúvida, melhor a amplitude e os efeitos desta unanimidade na cumplicidade


tácita, do que quando, através de uma crise econômica e social do corpo,
ligada à redefinição do modo de reprodução das posições dominantes, cia
chega a romper-se. As lutas travadas por alguns dos recém-chegados, cuja
posição e cujas atitudes não lhes permitem aceitar os pressupostos da
definição tradicional do posto, fazem vir à luz do dia uma parte do
fundamento recalcado do corpo, quer dizer, o pacto de não-agressão que unia
o corpo aos dominantes. A diferenciação interna que conduz um corpo, até
então integrado numa hierarquização e por uma hierarquização de todos
aceite e num consenso total sobre a missão, a funcionar como campo de lutas,
leva alguns a enunciarem este pacto, atacando mais ou menos abertamente
aqueles que continuam a tê-lo por norma absoluta da sua prática1".

Mas a eficácia do direito tem a particularidade de se cxerccr


p a r a a l é m do círculo daqueles que estão antecipadamente
convertidos, em conseqüência da afinidade prática que os liga
aos interesses e aos valores inscritos nos textos jurídicos e nas
aqitudes éticas e políticas dos que estão encarregados de os
a p l i c a r . E não há d ú v i d a de que a pretensão da doutrina
jurídica e do procedimento judicial à universalidade, que se
realiza no trabalho de formalização, contribui para fundamentar
a sua «universalidade» prática. E próprio da eficácia simbólica,
c o m o se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade
— t a n t o mais certa quanto mais inconsciente, e até mesmo
m a i s s u b t i l m e n t e extorquida — daqueles que a suportam.
F o r m a por excelência do discurso legítimo, o direito só pode
exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o
r e c o n h e c i m e n t o , quer dizer, na medida em que permanece
d e s c o n h e c i d a * a parte maior ou menor de arbitrário que está na
o r i g e m d o seu f u n c i o n a m e n t o . A crença que é tacitamente
concedida à ordem jurídica deve ser reproduzida sem interrup-

•w O resultado das eleições profissionais (realizadas por correspondência


de 12 a 2 1 de Maio de 1986) mostra uma polarização política muito
marcada do corpo dos magistrados que, até o aparecimento do Sindicato da
Magistratuta, em 1968, estavam todos reunidos (pelo menos, quando
sindicalizados) numa única associação — a Union Fédérale des Magistrats,
antepassado da USM: Union Syndicale des Magistrats, moderada, que
declina de maneira ac'entuada, enquanto que o Syndicat de la Magistrature,
mais propriamente à esquerda, progride e a Association Professionnelle des
Magistrats, mais à direita e recentemente constituída, afirma a sua exis-
tência (mais de 10% dos votos).
#
«méconnue» (ignorada, não reconhecida) (N. T.).
$
244 /1 FORÇA DO DIREITO

ção e u m a das funções do trabalho propriamente jurídico de


codificação das representações e das práticas éticas é a de
contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios
fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a
saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dcps
juristas 4 ". «A emergência do direito, escreve Jacques Ellul,
situa-se no ponto em que o imperativo formulado por um dos
grupos que compõem a sociedade global tende a tomar um valor
universal pela sua formalização jurídica» J | . E preciso com efeito
ligar a universalização e a prática de pôr em forma e em fórmula.

Se a regra de direito supõe a conjunção da adesão a valores comuns


(marcada, ao nível do costume, pela presença de sanções espontâneas
colectivas como a reprovação moral) e da existência de regras e de sanções
explícitas e de procedimentos regularizados, é certo que este último foctor,
'inseparável da escrita, desempenha um papel decisivo: com o escrito aparece
á possibilidade do comentário universalizante que põe em evidência as
regras e sobretudo os princípios «universais», da transmissão objectiva (por
meio de uma aprendizagem metódica) e generalizada, para além das
fronteiras espaciais (entre os territórios) e temporais (entre as gerações)42.
Enquanto a tradição oral impede a elaboração científica, na medida em que
se prende à experiência singular de um lugar e de um meio, o direito escrito
favorece a autonomização do texto, que se comenta e que se interpõe entre
os fomentadores e a realidade; desde logo, torna-se possível aquilo que a
ideologia nativa* descreve como «ciência jurídica», quer dizer, uma forma
particular de conhecimento científico, dotada das suas normas e da sua
lógica próprias, e que pode produzir todos os sinais exteriores da coerência
racional, essa racionalidade «formal» que Weber tem o cuidado de distin-
guir sempre da racionalidade «substancial», e que diz respeito aos próprios
fins da prática deste modo formalmente racionalizada.

4
" Alain Bancaud e Yves Dezaly mostram bem que mesmo os mais heré-
ticos dos juristas críticos, que invocam a caução da sociologia e do marxismo para
fazerem avançar os direitos dos detentores de formas dominadas da competência
jurídica, como o direito social, continuam a reivindicar o monopólio da «ciência
jurídica» (cf. A. Bancaud e Y . Dezalay, L'economic clu droit. Impérialisme des
economists et resurgence dun juridisme, Comunicação ao «Coiloque sur le Modèle
Economique dans les Sciences», Dezembro de 1980, p. 19 em especial).
41
J . Ellul, «Le problème de I'émergence du droit», Annates de
Bordeaux, I, 1, 1976, pp. 6 - 1 5 .
4J
Cf. J . Ellul, «Deux Problèmes Préalables», Annates de Bordeaux, I,
2, 1 9 7 8 , pp. 6 1 - 7 0 .
* "indigène» no texto original (N.T.).
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA CAPÍTULO VIII 245

O trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos: pela própria


força da codificação, q u e subtrai as normas à contingência de
u m a ocasião particular, ao fixar uma decisão exemplar (um
decreto, por exemplo) n u m a forma destinada, ela própria, a
servir d e modelo a decisões ulteriores, e que autoriza e favorece
ao m e s m o t e m p o a lógica do precedente, fundamento do modo
d e p e n s a m e n t o e d e acção p r o p r i a m e n t e jurídico, ele liga
c o n t i n u a m e n t e o presente ao passado 'e dá a garantia de que,
salvo revolução capaz d e pôr em causa os próprios fundamentos
d a o r d e m jurídica, o porvir será à imagem do passado e de que
as transformações e as adaptações inevitáveis serão pensadas e
ditas na l i n g u a g e m da conformidade com o passado. O traba-
lho jurídico, assim inscrito na lógica da conservação, constitui
u m dos f u n d a m e n t o s maiores da manutenção da ordem simbó-
lica t a m b é m por outra característica do seu funcionamento 4 3 :
pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as
decisões jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou
as justificar, ele confere o selo da universalidade, factor por
excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o
m u n d o social que, como se viu, em nada de decisivo se opõe ao
p o n t o d e vista dos dominantes. E, deste modo, ele pode conduzir
à universalização prática, quer dizer, à generalização nas práticas,
de u m m o d o de acção e de expressão até então próprio de uma
região d o espaço geográfico ou do espaço social. E certo com efeito
q u e , c o m o indica Jacques Ellul, «as leis, inicialmente alheias e
aplicadas do exterior, p o d e m , pouco a pouco, ser reconhecidas
c o m o úteis pelo uso e, a longo prazo, acabam por-fazer parte do
p a t r i m ô n i o da colectividade: esta foi progressivamente informada
pelo d i r e i t o e aquelas só se tornaram verdadeiramente em
«direito» q u a n d o a sociedade consentiu em deixar-se informar
( . . . ) . M e s m o um conjunto de regras aplicadas por coerção um
certo t e m p o nunca deixa o corpo social intacto, pois que criou u m
certo n ú m e r o de hábitos jurídicos ou morais»" 14 .

Compreende-se assim que o liame entre a pertença às faculdades de


Direito e a orientação política para a direita, verificado empiricamente, nada
tem de acidental. Cf. P. Bourdieu, Hnmo academias, Paris, Minuit, 1984,
po. 9 3 - 9 6 .
^
•li J . Ellul, «Le Problème de f*3TEmêrgence
' du Droit», art. cn.
246 /1 FORÇA DO DIREITO

Compreende-se que, n u m a sociedade diferenciada, o efeito


d e universalização é u m dos mecanismos, e sem dúvida dos
m a i s poderosos, por meio dos quais se exerce a dominação
simbólica ou, se se prefere, a imposição da legitimidade de
u m a o r d e m social. A norma jurídica, quando consagra em
f o r m a d e u m conjunto formalmente coerente regras oficiais e,
p o r definição, sociais, «universais», os princípios práticos do
estilo d e vida simbolicamente d o m i n a n t e , tende a informar
r e a l m e n t e as práticas do c o n j u n t o dos agentes, para além das
diferenças de condição e de estilo de vida: o efeito de universa-
lização, a que se poderia t a m b é m chamar efeito de normalização,
v e m a u m e n t a r o efeito da autoridade social que a cultura
l e g í t i m a e os seus detentores já exercem para dar toda a sua
eficácia prática à coerção jurídica 4 5 . Pela promoção ontológica
q u e ela opera ao transformar a regularidade (aquilo que se faz
r e g u l a r m e n t e ) em regra (aquilo que é de regra fazer), a norma-

45
Entre os efeitos propriamente simbólicos do direito, há que dar um
lugar especial ao efeito de oficialização como reconhecimento público de
normalidade que torna dizível, pensável, confessável, uma conduta até então
considerada tabu (é o caso, por exemplo, das medidas que dizem respeito à
homossexualidade). E também ao efeito de imposição simbólica que a regra
explicitamente publicada e as possibilidades que ela designa, pode exercer,
ao abrir o espaço dos possíveis (ou, mais simplesmente, ao «dar idéias»),
É assim que os camponeses mais agarrados ao morgadio, na longa resistência
que opuseram ao Código Civil, adquiriram' o conhecimento dos procedi-
mentos, violentamente recusados, que a imaginação jurídica lhes oferecia. E
se muitas destas medidas (freqüentemente registadas nas escrituras dos tabe-
liães em que os historiadores do Direito se apoiam para reconstituírem o
«costume») são totalmente desprovidas de realidade, como a restituição do
dote em caso de divórcio — quando, de facto, o divórcio está excluído —
não é menos verdade que a oferta jurídica não deixa de exercer efeitos reais
sobre as representações e, neste universo como em outros (em matéria de
direito do trabalho, por exemplo), as representações constitutivas daquilo a
que se poderia chamar o «direito vivido» devem muito ao efeito, mais ou
menos deformado, do direito codificado: o universo dos possíveis que este
faz existir, no próprio trabalho que é necessário para os neutralizar, tende,
verosimilmente, a preparar os espíritos para as mudanças aparentemente
brutais que surgirão quando forem dadas as condições de realização desses
possíveis teóricos (pode-se supor que há aí um efeito muito geral da
imaginação jurídica, o qual, por exemplo, ao prever, por uma espécie de
pessimismo metódico, todos os casos de transgressão à regra, contribui para
os fazer existir, numa fracção maior ou menor do espaço social).
CAPÍTULO VIU

l i d a d e d e facto e m normalidade d e direito, a simples fides


familiar, que assenta em todo u m trabalho de manutenção do
reconhecimento e d o sentimento, e m direito da família, provi-
d o d e u m arsenal de instituições e de constrangimentos,
segurança social, abonos de família, etc., a instituição jurídica
c o n t r i b u i , sem d ú v i d a , universalmente para impor uma represen-
t a ç ã o d a n o r m a l i d a d e em relação à qual todas as práticas
diferentes t e n d e m a aparecer como desviantes, anómicas, e até
m e s m o anormais, patológicas (especialmente quando a «medi-
calização» vem justificar a «jurisdicização»). E assim que o
d i r e i t o de família — ao ratificar e ao canonizar em forma de
n o r m a s «universais» às práticas familiares que pouco a pouco se
f o r a m inventando, sob o impulso da vanguarda ética da classe
d o m i n a n t e , no seio de u m c o n j u n t o de instituições socialmente
m a n d a t a d a s para g e r i r e m as relações sociais no interior da
u n i d a d e doméstica, e em particular as relações entre as gera-
ções — c o n t r i b u i u sem dúvida m u i t o , como mostrou Remi
Lenoir, para fazer avançar a generalização de um modelo da
u n i d a d e familiar e da sua reprodução que, em certas regiões do
espaço social — e geográfico — e, em particular, entre os
camponeses e os artífices, esbarrava em obstáculos econômicos e
sociais ligados s o b r e t u d o à lógica específica da pequena empre-
sa e da sua reprodução 4 6 .
Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo
d e vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, o
q u a l é u m dos efeitos d o e t n o c e n t r i s m o dos dominantes,
f u n d a m e n t a d o r da crença na universalidade do direito, está
t a m b é m na origem da ideologia que tende a fazer do direito
u m i n s t r u m e n t o de transformação das relações sociais e de que
as análises precedentes p e r m i t e m compreender que ela encontre
a aparência de u m f u n d a m e n t o na realidade: não é em qualquer
região do espaço social que emergem os princípios práticos ou
as reivindicações éticas submetidas pelos juristas à formalização
e à generalização. D o m e s m o m o d o que o verdadeiro responsá-
vel pela aplicação d o direito não é este ou aquele magistrado

46
R. Lenoir, Lá Securité Sociale et 1'Evolutm des Formes de Codification
des Structures familiales, tese, Paris, 1985.
248 /1 FORÇA DO DIREITO

singular, mas todo o c o n j u n t o dos agentes, freqüentemente


postos e m concorrência que procedem à detecção e à marcação
do delinqüente e do delito, assim t a m b é m o verdadeiro legisla-
dor não é o redactor da lei mas sim o c o n j u n t o dos agentes que,
determinados pelos interesses e os constrangimentos específicos
associados às suas posições em campos diferentes (campo jurídi-
co, e t a m b é m campo religioso, c a m p o político, etc.), elaboram
aspirações ou reivindicações privadas e oficiosas, as fazem
aceder ao estado de «problemas sociais», organizam as expres-
sões (artigos de imprensa, obras, plataformas de associações ou
de partidos, etc.) e as pressões (manifestações, petições, dili-
gências e t c . ) destinadas a «fazê-las avançar». É todo este
trabalho de construção e de formulação das representações que
o trabalho jurídico consagra, juntando-lhe o efeito de generali-
zação e de universalização contido na técnica jurídica e nos
meios de coerção cuja mobilização esta permite.
H á pois u m efeito próprio da oferta jurídica, quer dizer, da
«criação jurídica», relativamente a u t ô n o m o que torna possível
a existência de um campo de produção especializado e que
consagra o esforço dos grupos dominantes ou em ascensão para
i m p o r e m , sobretudo graças a situações críticas ou revolucioná-
rias, u m a representação oficial do m u n d o social que esteja em
conformidade com a sua visão do m u n d o e seja favorável aos
seus interesses 4 7 . E é de surpreender que a reflexão acerca das
47
A análise dos «livros de costumes» e dos registos de deliberação
comunais de um certo número de «comunidades» bearnesas (Arudy, Bescat,
Denguin, Lacommande, Lasseube) permitiu-me ver como normas «univer-
sais» respeitantes aos procedimentos de tomadas de decisão colectivas, como
o voto em maioria, se puderam impor, durante a Revolução, em detrimento
do costume antigo que exigia a unanimidade dos «chefes de família», em
virtude da autoridade que lhes conferia o próprio facto da sua objectivação,
próprio para dissipar, como a luz dissipa as trevas, as obscuridades do «isso
é evidente» (é sabido, com efeito, que uma das propriedades essenciais dos
«costumes», na Cabila como no Béatn, e em muitas outras partes, está em
que os princípios mais fundamentais nunca são enunciados e que a análise
deve destacar estas «leis não escritas» da enumeração das sanções associadas
aos casos de transgressão prática desses princípios). Tudo permite, efectiva-
mente, supor que a regra explícita, escrita, codificada, dotada de evidência
social que a sua aplicação translocal lhe confere, venceu pouco a pouco as
resistências, porque ela apareceu, por um efeito de alodoxia, como a justa
Prof.Dr. Jaime Cunha « _
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 249

relações entre o normal e o patológico dê tão escasso lugar ao efeito


p r ó p r i o d o direito: instrumento de normalização por excelência,
o d i r e i t o , e n q u a n t o discurso intrinsecamente poderoso e provido
dos meios físicos com q u e se faz respeitar, acha-se em condições
d e passar, com o tempo, do estado de ortodoxia, crença correcta*
e x p l i c i t a m e n t e enunciada como deve-ser, ao estado de doxa,
adesão imediata ao que é evidente, aç normal, como realização
d a n o r m a q u e se anula e n q u a n t o tal na sua realização.
Mas não se explicaria completamente este efeito de naturali-
zação se se não levasse a análise por diante até ao efeito mais
específico do acto de pôr em forma jurídica, essa vis formae, força
d a f o r m a , de que falavam os antigos. Com efeito, se é verdade que
a informação das práticas pelo acto de pôr em forma jurídica só
pode ser b e m sucedida na medida e m que a organização jurídica
d ê u m a forma explícita a u m a tendência imanente das práticas e
q u e as regras bem sucedidas sejam aquelas que, como se diz,
regularizam situações de facto conformes com a regra, a passagem
d a regularidade estatística à regra jurídica representa uma verda-
deira m u d a n ç a de natureza social: ao fazer desaparecer as excep-
ções e o carácter vago dos conjuntos nebulosos, ao impor
descontinuidades nítidas e fronteiras estreitas no continuam dos
limites estatísticos, a codificação introduz nas relações sociais uma
nitidez, u m a previsibilidade e, por este modo, uma racionalidade
q u e nunca é completamente garantida pelos princípios práticos do
habitas ou pelas sanções do costume que são produto da aplicação
directa ao caso particular desses princípios não formulados.
H á que conceder uma realidade social à eficácia simbólica

formulação, ainda mais econômica e rigorosa, dos princípios que regulavam


na prática as condutas — e isto, quando era, sem dúvida, a negação destas:
c o m efeito, um princípio como o da unanimidade das decisões tendia a
excluir o reconhecimento institucional da possibilidade da divisão («ibretu-
d o duradoira) em campos antagonistas e também, mais profundamente, a
delegação da decisão num corpo de eleitos. (E, de resto, de notar que a
instituição de um «conselho municipal» é acompanhado do desaparecimento
de toda a participação do conjunto dos agentes interessados na elaboração
das decisões e que o papel dos próprios eleitos se limita, durante todo o
século XIX, a ratificar propostas das autoridades prefeitorais).
* «droite» no texto original (N.T.).
250 i A FORÇA DO DIREITO

q u e o direito «formalmente racional», para falar como W e b e r ,


deve ao efeito próprio da formalização — sem por isso cairmos
na concessão à idéia verdadeira da «força intrínseca» que lhe
conferia o filósofo. A codificação — ao instituir na objectivida-
d e d e u m a regra ou de u m regulamento escrito, expressamente
a p r e s e n t a d o , os esquemas q u e governavam as condutas no
e s t a d o prático e aquém do discurso — permite que se exerça
a q u i l o a q u e se pode chamar u m efeito de homologação (homolo-
gein significa dizer a mesma coisa ou falar a mesma linguagem):
à m a n e i r a da objectivação em forma de u m código explícito do
c ó d i g o prático que permite aos diferentes locutores associar o
m e s m o sentido ao mesmo som percebido e o mesmo som ao
m e s m o sentido concebido, a explicitação dos princípios toma
possível a verificação explícita d o consenso acerca dos princípios
d o consenso (ou do «dissenso»). E m b o r a o trabalho de codifica-
ção não possa ser assimilado a u m a axiomatização por o direito
encerrar zonas de obscuridade que dão a sua razão de ser ao
c o m e n t á r i o jurídico, a homologação torna possível uma forma
d e racionalização, entendida, segundo Max W e b e r , como pre-
visibilidade e calculabilidade: de m o d o diferente do de dois
jogadores q u e , por não terem discutido a regra do jogo, estão
c o n d e n a d o s a acusarem-se reciprocamente de batota sempre que
u m a discordância surgir na idéia que dela fazem, os agentes
envolvidos n u m trabalho codificado sabem que podem contar
com u m a norma coerente e sem escapatória, logo que podem
calcular e prever tanto as conseqüências da obediência à regra
c o m o os efeitos da transgressão. Mas os poderes da homologa-
ção só são exercidos p l e n a m e n t e p o r aqueles' que estão ao
m e s m o nível no universo règulado do formalismo jurídico: as
l u t a s a l t a m e n t e racionalizadas que ela consente estão reserva-
das, d e facto, aos detentores de uma forte competência jurídi-
ca, à qual está associada — sobretudo entre os advogados —
u m a competência específica de profissionais da luta jurídica,
e x e r c i t a d o s na utilização das f o r m a s e das fórmulas como
a r m a s . Q u a n t o aos outros, estão condenados a suportar a força
d a f o r m a , quer dizer, a violência simbólica que conseguem
exercer aqueles que — graças à sua arte de pôr em forma e de
pôr formas — sabem, como se diz, pôr o direito do seu lado e,
CAPÍTULO VIII 251

d a d o o caso, pôr o mais completo rigor formal, summum jus, ao


serviço dos fins menos irrepreensíveis, sumiria injuria.

Os efeitos da homologia

M a s não se p o d e r i a explicar c o m p l e t a m e n t e a eficácia


simbólica d o direito sem tomar em linha de conta os efeitos do
a j u s t a m e n t o da oferta jurídica à procura jurídica que deve ser
i m p u t a d a menos a transações conscientes do que a mecanismos
e s t r u t u r a i s tais c o m o a homologia entre as diferentes categorias
d e p r o d u t o r e s ou de vendedores de serviços jurídicos e as
d i f e r e n t e s categorias de clientes: os ocupantes das posições
d o m i n a d a s no c a m p o (como o direito social) tendem a ser mais
p r o p r i a m e n t e destinados às clientelas de dominados que contri-
b u e m para a u m e n t a r a inferioridade dessas posições (o que
explica t e r e m os seus manejos subversivos menos probabilida-
des d e inverter as relações de força no seio do campo do que de
c o n t r i b u i r para a adaptação do corpus jurídico e, deste modo,
para a perpetuação da estrutura do campo). g
O c a m p o jurídico, e m conseqüência do papel determinante
q u e d e s e m p e n h a na reprodução social, dispõe de uma autono-
m i a m e n o r d o q u e certos campos que, como o campo artístico
o u literário ou m e s m o o campo científico, contribuem também
p a r a a m a n u t e n ç ã o da o r d e m simbólica e, deste modo, para a
m a n u t e n ç ã o da o r d e m social. Quer isto dizer que as mudanças
externas nele se retraduzem mais directamente e que os confli-
tos internos nele são rhàis directamente resolvidos pelas forças
externas. A s s i m , a hierarquia na divisão do trabalho jurídico
tal c o m o se apresenta m e d i a n t e a hierarquia dos especialistas
v a r i a n o d e c u r s o d o t e m p o , ainda q u e em medida m u i t o
l i m i t a d a (como é disso t e s t e m u n h o o estatuto de excelência que
é s e m p r e d a d o ao d i r e i t o civil), e m f u n ç ã o sobretudo das"
variações das relações de força no seio do campo social, como se
a p o s i ç ã o dos d i f e r e n t e s especialistas nas relações de força
i n t e r n a s d o c a m p o dependesse d o lugar ocupado no campo
político pelos g r u p o s cujos interesses estão mais directamente
ligados às formas de direito correspondentes.
252 /1 FORÇA DO DIREITO

É claro, por exemplo, que, à medida que aumenta a força


dos dominados no campo social e a dos seus representantes
(partidos ou sindicatos) no campo jurídico, a diferenciação do
c a m p o jurídico tende a aumentar, como sucedeu, por exemplo,
na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento do
direito comercial, e também com o do direito do trabalho e,
mais geralmente, com o do direito 'social. As lutas internas,
entre os privatistas e os publicistas sobretudo, devem a sua
ambigüidade ao facto de ser como guardiães do direito de
propriedade e do respeito pela liberdade das convenções que os
primeiros se tornam os defensores da autonomia do direito e
dos juristas contra todas as intrusões do político e dos grupos
de pressão econômicos e sociais e, em particular, contra o
desenvolvimento do direito administrativo, contra as reformas
penais e contra todas as inovações em matéria social, comercial
ou na legislação do trabalho. Estas lutas, nas quais estão
f r e q ü e n t e m e n t e em jogo coisas bem definidas nos próprios
l i m i t e s do campo jurídico — e universitário — , como a
definição dos programas, a abertura de títulos nas revistas
especializadas ou a criação de cadeiras e, deste modo, o poder
sobre o corpo de especialistas e sobre a sua reprodução,
respeitantes a todos os aspectos da prática jurídica, são ao
mesmo tempo sobredeterminadas e ambíguas na medida em
que os defensores da'autonomia e da lei como entidade abstrac-
ta e transcendente são, de facto, os defensores de uma ortodoxia-.
o culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, qufer
dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado, caminham a par
da recusa em reconhecer à jurisprudência o menor valor cria-
dor, portanto, a par de uma denegação prática da realidade
e c o n ô m i c a e social e de u m a recusa de toda a apreensão
científica desta realidade.

Compreende-se que, segundo uma lógica observada em


todos os campos, os dominados só possam encontrar no exte-
rior, nos campos científico e político, os princípios de uma
argumentação crítica que tem em vista fazer do direito uma
«ciência» dotada da sua metodologia própria e firmada na
realidade histórica, por intermédio, entre outras coisas, da
análise da jurisprudência. Assim, segundo uma divisão que
Prof.Dr. Jaime Cunk
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 253

se encontra e m todos os^ debates teológicos, filosóficos ou


literários a respeito da interpretação dos textos sagrados, os
partidários da m u d a n ç a situam-se do lado da ciência, da
historicização da leitura (segundo o modelo desenvolvido algu-
res por Schleiermacher) e da atenção à jurisprudência, quer
dizer, aos novos problemas e às jnovas formas do direito que
estes problemas exigem (direito comercial, direito do trabalho,
direito penal). Q u a n t o à sociologia, indissoluvelmente ligada,
na percepção dos guardiães da ordem jurídica, ao socialismo,
ela encarna a reconciliação maléfica da ciência e da realidade
social contra a qual a exegese da teoria pura representava a
melhor protecção.
Paradoxalmente, neste caso, a autonomização passa, não
por u m reforço do fechar-se em si de um corpo exclusivamente
devotado à leitura interna dos textos sagrados, mas sim por
u m a intensificação da confrontação dos textos e dos procedi-
mentos com as realidades sociais de que tais procedimentos são
tidos por expressão e regulação. É o regresso às realidades que
favorecem o a u m e n t o da diferenciação do campo e a intensifica-
ção da concorrência interna ao mesmo tempo que o reforço dos
d o m i n a d o s no seio do c a m p o jurídico, em ligação com o
reforço dos seus homólogos no seio do campo social (ou dos
seus representantes). N ã o é por acaso que as tomadas de posição
acerca da exegese e da jurisprudência, acerca da fidelidade à
doutrina e acerca da adaptação necessária às realidades, parecem
corresponder 1 de maneira bastante estrita às posições ocupadas
no campo, tendo, de um lado, actualmente, o direito privado
e, especialmente, o direito civil, que a tradição neoliberal,
apoiada na economia, vem reactivar e, do outro lado, discipli-
nas como o direito público ou o direito do trabalho, que se
constituíram contra o direito civil, por meio do desenvolvi-
m e n t o das burocracias e do reforço dos movimentos de emanci-
pação política, ou ainda o direito social, definido pelos seus
defensores como a «ciência» que, ao apoiar-se na sociologia,
permite adaptar o direito à evolução social.
O facto de a produção jurídica, como as outras formas de
produção cultural, se realizar n u m campo está na origem de
254 /1 FORÇA DO DIREITO

u m efeito ideológico de desconhecimento * que os analistas em


g e r a l , ao relacionarem directamente as «ideologias» com fun-
ções colectivas, e até mesmo com intenções individuais, deixam
i n e v i t a v e l m e n t e escapar. O s efeitos que se geram no seio dos
c a m p o s não são n e m a soma p u r a m e n t e aditiva d e acções
a n á r q u i c a s , nem o p r o d u t o integrado de u m plano concreto. A
concorrência de que eles são produto exerce-se no seio de u m
espaço q u e pode imprimir-lhe tendências gerais, ligadas aos
p r e s s u p o s t o s inscritos na própria estrutura do jogo de que eles
c o n s t i t u e m a lei f u n d a m e n t a l , como, neste caso particular, a
relação e n t r e o campo jurídico e o campo do poder. A função
d e m a n u t e n ç ã o da ordem simbólica que é assegurada pela
c o n t r i b u i ç ã o d o campo jurídico é — como a função de reprodu-
ção d o p r ó p r i o campo jurídico, das suas divisões e das suas
h i e r a r q u i a s , e do princípio de visão e de divisão que está no seu
f u n d a m e n t o — p r o d u t o de inúmeras acções que não têm como
f i m a realização desta função e que podem mesmo inspirar-se
e m i n t e n ç õ e s o p o s t a s , c o m o os trabalhos subversivos das
v a n g u a r d a s , os quais c o n t r i b u e m , definitivamente, para deter-
m i n a r a adaptação do direito e do campo jurídico ao novo
e s t a d o das relações sociais e para garantir assim a legitimação
d a f o r m a estabelecida dessas relações. É a estrutura do jogo e
não u m simples efeito de agregação mecânica, que está na origem
d a transcendência, revelada pelos casos de inversão das institui-
ções, d o efeito objectivo e colectivo das acções acumuladas.

• «méconnaissance» (N. T.),


L u m e n çí; J u r i s \ ( £ à itora
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JÜRGEN HABERMAS, 8 0 ANOS


DIREITO E DEMOCRACIA

i
E D I T O R A L U M E N JURIS
Rio de Janeiro
2009
I

•Copyright © 2009 Livraria e Editora Lumen Júris Ltda.

Categoria: Direito Constitucional

PRODUÇÃO EDITORIAL
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ia

Tradução:
Geraldo de Carvalho
Eliana Valadares Santos

Revisão
Amadeu Moreira Fontenele Neto

Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Júris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos
Individuais e Direitos Coletivos em Habermas
^ , - .
Gisele Cittadino*
Prof.Dr.Jow Cunha
FCS/IFCH/UFPA
t
A relação entre identidade pessoal e ^agrupamento coletivo ou, de outra
forma, entre mecanismos de individualização e processos de socialização, é
tema central no pensamento habermasiano. Ao analisar a maneira através da
qual cada u m de nós se constitui como sujeito, Habermas nos descreve como
seres inicialmente imaturos para quem a figura do outro é condição de sobre-
vivência. Não conseguimos nos desenvolver como pessoas senão na qualidade
de membros de uma comunidade cultural. Fora de uma rede de significados e
práticas intersubjetivamente compartilhadas, ou seja, fora de algum padrão de
socialização, não há como se falar em processo de individualização. Nossa
identidade pessoal é constituída, portanto, através da internalização e da ado-
ção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valo-
res e tradições concretas. Se tal constatação pode atualmente parecer por
demais óbvia, é preciso lembrar que Habermas, com a idéia de intersubjetivi-
dade, supera o modelo dos primeiros representantes da Teoria Crítica para
quem os indivíduos eram capazes de refletir criticamente sobre o seu lugar no
mundo, mas o faziam através de uma razão subjetiva individual. 1 Habermas
rompe com essa filosofia do sujeito, apelando para um pragmatismo que toma
o indivíduo como um ser ontologicamente social que, através da palavra e da
linguagem, atua e conforma culturalmente o mundo da vida.

Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio


de janeiro.
1 Os primeiros frankfurtianos, diante da barbárie nazista, não abandonaram seu compromisso com
o poder transformador da reflexão, ainda que, evidentemente, o mesmo não se possa dizer sobre
sua confiança no devir do processo histórico. A idéia moderna - e progressista - da história como
marcha triunfal da civilização se esvazia inteiramente tanto quanto a confiança na possibilidade
de uma ação libertadora por parte de algum sujeito coletivo. Nada disso, no entanto, significa
paralisia ou mera contemplação, pois o compromisso frankfurtiano com a emancipação desloca-
se agora para a esfera das consciências individuais. Para Adorno, por exemplo, a idéia de eman-
cipação transfere-se de um sujeito Coletivo da razão histórica para uma razão subjetiva individual.
Todos - e cada um - são capazes de refletir criticamente sobre a capacidade humana de manipu-
lar e criar significações e realidades. Ver Theodor Adorno. Mínima Moralia. Reflexões a partir da
vida danificada. São Paulo: Ática, 1993.

169
Gisele Cittadino - Autodeterminação e identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Habermas

Os processos de socialização, teoricamente considerados, permitem que


Habermas nos fale daquilo que considera a essência do humano, isto é, a capa-
cidade que todos temos de estabelecer relações de interação com os nossos
semelhantes. Aqui Habermas recupera os compromissos • humanistas da
modernidade e insiste não apenas na importância da comunicação e do deba-
te, mas especialmente na necessidade de constituição de arenas públicas de
discussão e no respeito absoluto pela integridade do outro. Com essa idéia de
intersubjetividade, Habermas associa ação comunicativa e entendimento,
ainda que isso não represente nem a eliminação do dissenso, nem o desconhe-
cimento do poder constitutivo dos enganos, das falsas consciências ou dos
múltiplos dogmatismos inscritos nos mundos da vida. É preciso lembrar -
especialmente em face dos críticos pouco atentos - que só há comunicação
lingüística diante da possibilidade de contradição, pois do contrário o enten-
dimento é fruto de algum tipo de processo de comunhão que prescinde da lin-
guagem. 2 O consenso, modelo contrafático, utopia não realizável, situa-se, por
sua própria natureza, no futuro; é através da integração do dissenso, inscrito
no presente, que a ação comunicativa estabelece sentidos e significados no
interior do mundo da vida.
Ao dar centralidade à intersubjetividade como chave interpretativa da
convivência Inumana, Habermas reúne o modelo iluminista de um sujeito cuja
capacidade de autodeterminação o torna responsável pelo seu próprio destino
à matriz psicanalista segundo a qual temos de nos apropriar reflexivamente
daquilo que somos para que possamos projetar para o futuro aquilo que que-
remos ser. A combinação entre autodeterminação e capacidade de reflexão e
crítica é eficaz, portanto, para descrever esse sujeito habermasiano autônomo,
em busca de emancipação como controle consciente de sua própria história.
Isso não significa, todavia, que Habermas ignore o peso dos legados culturais
sobre as consciências individuais ou a extraordinária inércia que caracteriza os
mundos da vida. Tampouco se trat^a de u m autor cujo trabalho seja marcado
pela inocência ou pelo cinismo. Habermas, como integrante da Escola de
Frankfurt, tem insistentemente enfrentado o tema do holocausto e sua misé-
ria moral. Recorrer, portanto, a experiências históricas concretas como forma
de tentar desmentir os pressupostos da ética discursiva representa, na verda-
de, um duplo descuido. De um lado, ignora-se que a descrição do sujeito autô-
nomo, capaz de auto-reflexão e crítica, é resultado de uma opção política; de

2 Ver, a respeito, Marta R. Fouz. Jiirgen Habermas y la Memória dei Guemica. Madrid: ClS/Siglo
XXI, 2004, p. 14 e segs.

170
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira

outro, igualmente se ignora que provas fáticas não são relevantes diante de
modelos teóricos contrafáticos.
A modernidade é o território que torna possível essa autodeterminação
humana. Mesmo que não possa garanti-la, é no interior do projeto moderno
que se configura o modelo do sujeito autônomo. Em face das múltiplas redes
da interação, esse indivíduo capaz de auto-reflexão e crítica, constitui sua
identidade no interior de uma forma de vida compartilhada. Ao associar inter-
subjetividade e sujeito autônomo, Habermas descarta qualquer interpretação
do imundo da vida como lógica de aprisionamento, pois cada um de nós tem a
capacidade de se comportar reflexivamente em relação à própria subjetivida-
de,! endossando valores ou se libertando de compromissos, ilusões ou fantasias.
Evidentemente, não há dúvida de que só podemos questionar as normas do
miindo em que vivemos a partir de convicções que integram o nosso próprio
coiitexto cultural. Ainda que isso possa nos levar a imaginar que estamos colo-
cando em questão a nossa própria existência quando criticamos as formas de
vida nas quais nossa identidade foi constituída, não devemos dramatizar os
lirrites que a eticidade do mundo da vida nos apresenta. Ter a capacidade de
refletir criticamente sobre a faticidade das instituições e normas presentes no
rrnindo da'vida certamente não se traduz no questionamento da própria exis-
tência. Em outras palavras, uma ação reflexiva sobre a própria subjetividade
pode simplesmente significar autonomia.
I Para garantir a autonomia desse sujeito capaz de auto-reflexão e crítica,
Habermas recorre àquela idéia que é central no pensamento de Rousseau e
Kant, ou seja, a de que o ordenamento normativo é resultado da autonomia de
sujeitos de direito associados. Em outras palavras, estamos diante de um
mojdelo que supõe um debate público no qual pessoas livres e iguais definem
quáis direitos devem mutuamente reconhecer se pretendem legitimamente
regular sua vida em comum através do direito. Dessa idéia de que os cidadãos
se associam por sua própria vontade para formar uma comunidade de sujeitos
de direito livres e iguais resulta uma concepção de Estado de Direito que é
inseparável dos conceitos de direito subjetivo e de indivíduo como sujeito por-
tador de direitos. Há, portanto, na origem das Constituições modernas, uma
teoria do direito formulada em termos individualistas. De outra parte, a histó-
ria da universalização dos direitos - a luta por uma cidadania igualitária - foi
escrita, como sabemos, no interior dos próprios procedimentos do Estado de
Direito. Nem mesmo os direitos sociais - cuja função é compensar condições
sociais desiguais - são incompatíveis com essa teoria dos direitos formulada
em termos individualistas, pois os bens sociais podem ser ou individualmente
distribuídos ou individualmente desfrutados. Nesta perspectiva, portanto, já
Gisele Cittadino - Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Habermas

podemos perceber que o apelo à direitos coletivos que venham a exceder DS


limites de uma teoria dos direitos concebida em termos individualistas sigr i-
fica "quebrar em pedaços nossa tradicional autocompreensão do Estado demp-
crático de direito, que está definida com base em um modelo de direitos indi-
viduais e é, neste sentido, liberal'.3
Se não há incompatibilidade entre direitos sociais e uma teoria dos direi-
tos formulada em termos individualistas, não tem sido tarefa fácil discutir esse
mesmo tema diante dos chamados direitos culturais. Nas democracias con-
temporâneas, de cultura liberal, nos habituamos a identificar conflitos juric.i-
cos entre sujeitos individuais ou entre o cidadão e o poder público que ultra-
passa os limites legais da interferência. Com o aparecimento dos direitos cul-
turais, novos modelos de conflito irrompem: a) quando distintos grupos dis-
putam direitos ou privilégios (caso da inclusão de determinadas disciplinas na
rede pública de ensino); b) quando um grupo demanda um tratamento iguali-
tário em relação a outro grupo (caso de grupo religioso minoritário qiie
demanda a exibição de símbolo sagrado em repartição pública); c) quando não
membros sentem-se em posição de desvantagem em relação a outro grupo
(caso das pessoas brancas em relação às quotas destinadas para negros); ou c)
quando direito fundamental do membro do grupo é violado com base no argu-
mento de que é necessário garantir a estabilidade da identidade coletiva (caso
dos cidadãos franceses de Quebec, no Canadá, que estão legalmente impedi-
dos dc matricular seus filhos em escolas de língua inglesa). 4
Ao enfrentar o tema do multiculturalismo - que define como modelo de
sociabilidade em que há mútuo reconhecimento de seus membros acerca do
igual status de todos - Habermas tem insistido na necessidade de que os direi-
tos culturais não podem entrar em conflito com os direitos fundamentais dos
indivíduos que são membros dos diversos grupos precisamente porque os
direitos dos grupos só são legítimos se forem compreendidos como direitos
derivados dos direitos culturais do indivíduo integrante do grupo. Nesse sen-
tido, os direitos coletivos derivam dos direitos individuais porque só há mul-
ticulturalismo - como configuração de um espaço transcultural que abriga a
diferença - se formos capazes de entender que a garantia de acesso às tradi-
ções, cultura e redes de reconhecimento necessárias ao desenvolvimento da

3 Cf. Jürgen Habermas. La Lucha por el Reconocimiento en el Estado Democrático de Derechoj w


La IncJusión dei Otro. Barcelona: Paidós, 1999, p. 191.
4 Ver Jürgen Habermas. Equal Treatment of Cultures and the Limits of Postmodern Liberalism.
The Journal of Political Philosophy, Vol. 13, n« 1, 2005, p. 18.
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira

identidade pessoal deriva do princípio da inviolabilidade da igual proteção da


integridade da pessoa.
É precisamente por isso que Habermas enfatiza a necessidade de alarga-
mento do conceito de sujeito de direitos que originariamente foi proposto para
assegurar o duplo papel do cidadão como agente econômico e como membro
de u m grupo religioso. Hoje, especialmente em face do pluralismo que carac-
teriza as democracias contemporâneas, com suas múltiplas e diversas expe-
riências multiculturais, o conceito de sujeito de direitos precisa incorporar a
garantia de iguais liberdades éticas para á j d os.
Ressalte-se, em primeiiro lugar, que diferentemente dos direitos sociais,
os direitos culturais - sem os quais não há como se garantir as liberdades éti-
cas - não estão vinculados a o modelo do Estado de Bem Estar. Os direitos
sociais estão na origem das políticas distríbutivas e pretendem combater as
desigualdades decorrentes de sociedades verticalmente estratificadas. Os
direitos culturais, por sua vez, estão na raiz das políticas de reconhecimento e
voltam-se contra a desigual inclusão horizontal dos integrantes de uma socie-
dade. 5 Em outras palavras, discriminação e desrespeito sinalizam uma inclu-
são desigual de cidadãos que não têm reconhecido o seu papel de membros de
uma comunidade política. Como assinala Habermas, é um equívoco supor que
os cidadãos gozam de iguais liberdades éticas apenas porque têm a possibilida-
de de selecionar suas preferências e fazer escolhas a partir de valores culturais
estabelecidos. As liberdades éticas não devem ser instrumentalmente justifi-
cadas, pois não se trata de apelar para uma racionalidade instrumental que
seleciona opções de acordo com modelos culturalmente definidos. É apenas
como membro de uma comunidade política, crescendo no interior de um uni-
verso de significados e práticas intersubjetivamente compartilhadas, que cada
um de nós adquire suas características individuais distintivas. Isso significa
dizer que a "constituição cultural da mente humana desenvolve-se com base
em uma relação de dependência contínua entre o indivíduo e as formas de
comunicação e relações interpessoais que, por sua vez, se ancoram em uma
rede de reconhecimento recíproco e tradições".6
A insistência de Habermas na necessidade de alargamento do conceito de
sujeito de direitos de forma a incluir a garantia de iguais liberdades éticas para
todos vincula-se precisamente à recusa dessa clássica justificativa liberal, que

5 Sobre a diferença e n t r e políticas de distribuição e políticas de reconhecimento, ver Nancy Fraser


e Axel H o n n e t h , Redistribución o Reconocimiento?Madrid: Ediciones Morata, 2006.
6 Cf. Jürgen Habermas, Equal Treatment of Cultures and the Limits of Postmodern Liberalism, op.
tit., p. 17.
Gisele Cittadino - Autodeterminação e Identidade. Sobre Difeitos Individuais
e Direitos Coletivos em Habermas

é, sem dúvida, instrumental. Ao invés de tomá-las apenas como capacidade de


escolher uma dentre várias concepções de bem disponíveis, para Habermas as
liberdades éticas vão além desse objetivo, pois asseguram que todo cidadão
tenha o mesmo acesso "aospadrões de comunicação, relações sociais, tradições
e relações de reconhecimento que são necessários para o desenvolvimento,
reprodução e renovação de sua identidade pessoal'.7 Ao mesmo tempo, essa
recusa da justificativa liberal, instrumental, não representa qualquer compro-
misso de Habermas com os defensores de um multiculturalismo forte (strong
multiculturalism), cuja política de sobrevivência de comunidades religiosas,
étnicas ou lingüísticas justifica a existência de direitos coletivos que potencial-
mente possam violar ou restringir direitos individuais. Para Habermas, ainda
que estejamos diante de tradições ancestrais, "os direitos legítimos dos grupos
não podem entrarem conflito com os direitos básicos dos indivíduos membros
dos grupos".8 Os mundos culturais, segundo Habermas, apenas sobrevivem
quando os indivíduos que os compartilham, ainda que obrigados a confrontar-
se com culturas distintas, optam por regenerar a força de suas identidades cul-
turais. Isso significa dizer que não podemos aplicar às culturas o mesmo trata-
mento dispensado pela ecologia à preservação das espécies. Nem os legados
culturais podem ser impostos, nem protegidos de avaliações críticas, especial-
mente porque nas sociedades democráticas contemporâneas a relação com o
estranho é inevitável. 9
É o compromisso de Habermas com o ideal moderno de emancipação -
como autodeterminação e autorreflexão - que sustenta o modelo de um sujei-
to que, pela via da reflexão e da crítica, tem a possibilidade de romper com a
validade intuitiva de seus valores. Estamos, portanto, diante da idéia de que
todos os seres humanos têm autonomia e o mesmo valor moral. Ao mesmo
tempo, esse ideal não está baseado em nenhuma visão de mundo particular,
pois esse sujeito moral autônomo tem a capacidade de formular essa ética por
sua própria conta. Em outras palavras, Habermas nos fala de um sujeito moral-
mente autônomo, que tem o direito de pular fora,™ sem que isso represente a

7 Idem, p. 18.
8 Idem, p. 20.
9 Ver, a respeito, Jürgen Habermas. Struggles for Recognition in the Democratic Constitutional
State, in Multiculturalism, Amy Gutman (ed ), Princeton University Press, 1994.
10 Utilizei anteriormente a expressão direito de pular fora no texto Liberdade, Identidade e Direito.
Sobre a indelével marca humana em Philip Roth (Direito e Literatura, André K. Trindade.
Roberta M. Gubert e Alfredo Copetti Neto (orgs.), Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2008). No romance A Marca Humana, de Philip Roth, o protagonista rompe com os valores que
unem coletivamente os membros de sua própria comunidade de origem e acredita que pode rein-
ventar a si mesmo como um simples membro - sem filiações - da raça humana.
*
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg St Luiz Moreira

violação de um ideal de autenticidade, pois a nossa identidade não é apenas


algo com que inevitavelmente nos defrontamos, mas também é nosso próprio
projeto. 11 Para muitos, no entanto, o direito de pular fora, especialmente
quando estamos diante de alguém que integra um grupo historicamente mar-
ginalizado, representa uma espécie de ação de infidelidade em relação a si
mesmo. Não haveria como pular fora sem que isso deixasse de representar um
ataque à dimensão original da própria identidade. Para os defensores do mul-
ticulturalismo forte é fundamental manter nossa identidade intacta,12 pois o
compromisso com a autenticidade é também um compromisso com nossa
herança cultural.
Para Habermas, não há como falar em autodeterminação como possibili-
dade de redesenhar nossa própria existência se acreditamos que as identidades
culturais estão delimitadas por nítidas fronteiras. Isso impediria qualquer
movimento emancipatório voltado para a remoção de barreiras ao exercício de
escolhas autônomas. É exatamente por não acreditar que o processo histórico
conforma inteiramente as individualidades - pois os sujeitos não são apenas
seres concretamente situados em uma tradição particular - que Habermas
toma os direitos individuais como garantia daquilo que designa como filtro
hermenêutico, 1 3 ou seja, as condições a partir das quais os indivíduos que têm
a possibilidade de dizer sim às alternativas oferecidas optam por reafirmar seu
compromisso com suas heranças culturais. Para Habermas, portanto, os indi-
víduos devem poder se apropriar criticamente de suas próprias tradições para
renová-las, revisá-las ou rejeitá-las.
São claras as conseqüências normativas desse compromisso com uma
autonomia moral que nos garanta o direito de pular fora. Necessitamos, sem
dúvida, de uma teoria da justiça ancorada em um ponto de vista deontológico
que nos assegure um sistema de direitos capaz de transformar esse indivíduo
moral autônomo em autor e sujeito de direito. Esse processo de atribuição de
direitos não pode estar simplesmente ancorado em uma herança cultural
comum. É preciso esclarecer que o processo de atribuição de direitos não é
posterior ao sentimento de pertencimento a uma comunidade, porque o siste-
ma de direitos não pode ser considerado apenas uma expressão valorativa de
um sistema cultural específico. Ainda que tenha surgido, como ideal normati-
vo, em um mundo particular de cultura, isto não significa que não possa ser

11 Ver, a respeito, Jürgen Habermas. La Necessidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Editorial


Tecnos, 1996.
12 Ver, a respeito, Nancy Fraser e Axel Honneth, Redistribudón o Reconocimiento?, op. cit.
13 Ver, a respeito, Jürgen Habermas, Equal Treatment of Cultures and the Limits of Postmodern
Liberalism, op. cit., p. 22.

175
i
Gisele Cittadino - Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Haberraas

visto como o resultado de um processo reflexivo a partir do qual os indivíduos


podem tomar certa distância em relação às suas próprias tradições e aprender
a entender o próximo a partir de sua própria perspectiva. Se estamos falanclo
de sociedades democráticas em que os cidadãos asseguram a todos, como legis-
ladores, esferas de liberdade em face da autodeterminação moral de cada um,
não há dúvidas de que ninguém encontrará obstáculo normativo à realização
de seus projetos pessoais de vida. O sistema de direitos que assegura os direi-
tos culturais para aqueles que pretendem dar continuidade ao que receberam
de seus antepassados é o mesmo sistema de direitos que permite a qualquer
outro a possibilidade de pulai fora.
Sabemos, de outra parte, que não há como assegurar o livre e integral
acesso ao mundo de cultura a partir do qual os grupos identitários se consti-
tuem sem que os direitos culturais sejam integralmente garantidos. De um
lado, os direitos culturais conferem poder para as organizações que se encar-
regam de lutar pela sobrevivência de culturas ameaçadas; de outro, esses
direitos coletivos permitem que os grupos igualmente lutem para assegurar
os meios e os recursos através dos quais os seus membros conformam suas
identidades. Nada disso, no entanto, pode nos levar a configurar a cultura
como uma espécie de entidade à qual direitos são atribuídos. Com efeito, não
podemos compreender as culturas como sujeitos de direitos. Elas só se repró-
duzem se seus intérpretes forem capazes de assegurar suas condições
reprodução. Em outras palavras, "por razões empíricas, a sobrevivência de
grupos identitários e a continuidade de seus mundos culturais não podefn
ser de modo algum asseguradas por direitos coletivos. Uma tradição tem a
capacidade de desenvolver seu potencial cognitivo quando os seus destina-
tários estão convencidos que esta tradição é realmente valiosa; e as condi-
ções hermenêuticas para a manutenção das tradições só podem ser garan j-
das por direitos individuais".14
As mesmas razões que levam Habermas a recusar a possibilidade <jle
atribuirmos direitos às culturas estão na origem da sua recusa em ancorar as
políticas de reconhecimento no conceito de raça. Se considerarmos seus
argumentos de que os cidadãos se associam por sua própria vontade para for-
mar uma comunidade de sujeitos de direito livres e iguais, não podemos, evi-
dentemente, deixar de reconhecer que, em sociedades multiculturais, serão
estabelecidas normas que irão assegurar um igual tratamento para grupss
homogêneos, tanto quanto um tratamento diferenciado para grupos diver-

14 idem.

176
Jiirgen Habermas, 8 0 anos. Direito e Democracia. Org. Günter F r a n k e n b e r g & Luiz M o r e i r a

sos. Como o ordenamento normativo não pode ser visto como u m mero dis-
tribuidor de liberdades de ação de tipo privado, a distribuição dos direitos
subjetivos só pode ser igualitária se os cidadãos - como legisladores - esta-
belecem u m consenso acerca dos " c r i t é r i o s conforme os quais o igual vai
receber um tratamento igual, enquanto que o desigual, um tratamento desi-
gual'^. No entanto, a defesa, em Habermas, das múltiplas formas de ação
afirmativa não representa qualquer compromisso com direitos coletivos que
venham a exceder os limites de uma teoria do direito formulada em termos
individualistas, ou seja, a partir da noçãol de sujeito de direitos. Em outras
palavras, se o compromisso com o ideal de igualdade não é incompatível
com a garantia de direitos culturais demandados e introduzidos sob o signo
das políticas de reconhecimento, isso não significa dizer que estamos trans-
formando a raça em fundamento da cidadania. Os direitos coletivos derivam
dos direitos individuais precisamente porque a identidade política do sujei-
to de direito - e não a raça ou a inserção em um m u n d o de cultura - é o f u n -
damento da cidadania nas democracias contemporâneas.

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Jürgen Habermas:
Facticidade e Validade*
Rainer Forst"

1. O emprego público da razão

No panorama teórico atual, a obra completa de Jürgen Habermas se


sobressai como única. Na era da diferenciação entre as perspectivas científi-
cas, é fato singular que uma teoria complexa consiga, ao mesmo tempo, res-
peitar e transcender tais diferenças, abarcando não apenas a filosofia e as ciên-
cias sociais em geral. A teoria contém evoluções seminais em áreas tão distin-
tas quanto a teoria do conhecimento, a filosofia da linguagem, a filosofia da
história, a filosofia moral e a filosofia política, apenas para citar algumas - res-
pectivamente informada pelos conhecimentos e teorias de cada ciência. i
Habermas logra este trabalho sintético ao perseguir, em todos estes âmbi-
tos, um único grande tema (Habermas, 2005, p. 16), ou seja, a pergunta como
pode ser conceptualmente reconstruído, por um lado, de um modo "pós-meta-
físico" o que Kant denomina o emprego público e crítico da razão e, por outro,
qual o lugar social que esta forma da razão possui - e deveria possuir.
A resposta dada por Habermas a estas questões - que a capacidade para o
entendimento lingüístico contém um potencial de razão próprio ao gênero
humano, o qual pode ser realizado unicamente na prática do discurso - o con-
duz a análises abrangentes da intersubjetividade, resumida por ele em sua
monumental Teoria da Ação Comunicativa (1981). Aí se encontra a extensa
tentativa de uma nova justificação da teoria crítica que não se assegura apenas
de suas bases normativas, mas também de sua possibilidade social devido a , j
vjma concepção dialética da modernidade. Esta acarreta, simultaneamente, o
potencial comunicativo de racionalidade que a ameaça sob o aspecto social
pelo desenvolvimento de sistemas de ação não comunicativamente integrados \
(mercado e administração estatal).
Já em sua primeira grande publicação, o livro sobre a Mudança estrucu-
rbl da esfera pública (1962), em que analisa a ascensão e o declinio de um tipo

Este antigo, cujo título original é "Jürgen Habermas, Faktizitat u n d Geltung", foi traduzido do ale-
m ã o por Geraldo de Carvalho e revisado por Amadeu Moreira Fontenele Neto.
Professor de Ciência Política da Universidade de Frankfurt, Alemanha.

179
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade

ideal de esfera pública crítica, Habermas pergunta pelo lugar político do


emprego público da razão. Isto também se mantém após a inclusão da análise
da relação entre "sistema" (administrativo e econômico) e "mundo da vida"
(comunicativamente estruturado) - especialmente em Problemas de legitima-
ção do capitalismo tardio (1973), mesmo se, neste caso, Habermas se despede
a olhos vistos de um "conceito de totalidade de sociedade e auto-organização
social" (1990, p. 35); tal fato traz conseqüências importantes para a questão -
mantida - da possibilidade de uma "democracia radical" (1992, p. 13).
Segundo Habermas, a clássica pergunta do pensamento político pela
ordem política legítima não pode obter outra resposta a não ser por intermé-
dio de um "conceito discursivo de democracia"; no entanto, esta resposta há
de estar consciente da complexidade das sociedades modernas. Sua principal
obra teórico-política, Facticidade e validade, tem a tarefa de mostrar como
seria o aspecto de tal resposta. Assim, o livro segue a grande tradição do direi-
to racional, cunhada por Rousseau e Kant, ao se perguntar pela possibilidade
da democracia como prática de uma autodeterminação racional; mas, neste
ponto, possui também um Componente hegeliano quando esta prática precisa
estar conectada às instituições da modernidade - e à infra-estrutura de sbcie-
dades complexas.
No sentido de uma localização sistemática da obra dentro da tradição da
filosofia política, a obra de Habermas não pretende apenas unir imanente-
mente uma perspectiva científico-social e uma normativo-filosófica à relação
entre direito, democracia e Estado social; sua função é, antes, superar o tradi-
cional antagonismo entre concepções liberais e republicanas da ordem políti-
ca legítima ao indicar, com meios teórico-discursivos, o nexo indissolúvel
entre "direitos humanos" e "soberania popular" (Habermas, 1996, cap. 10).

2. Direito entre facticidade e validade

Com o título "Facticidade e validade", Habermas desenvolve a idéia fun-


damental de sua teoria da ordem política constituída como Estado de Dirçito,
a qual não apenas contém e defende manobras de liberdades comunicativas,
como também faz valer em seu cerne uma "razão comunicativa", sem deixar
de ver a facticidade de instituições constituídas como direito positivo. O pró-
prio direito se desloca para o centro da análise, pois, como um prisma, mostra
a relação entre validade fática e normativa. Ele pode ser descrito como um sis-
tema social de normas injuntivas, consideradas por alguns como restrições
fáticas de sua "arbitrariedade" (ao modo kantiano), com as quais são capazes
de lidar estrategicamente; mas pode também ser descrito como um sistema de
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira

normas que reivindica uma legitimidade normativa, vinculando, assim, a


"livre vontade".
Segundo Habermas, este último já se refere à decisiva condição da legiti-
midade em um sentido pós-tradicional e pós-metafísico: que o direito resultou
de um processo legiferante, o qual "fundamenta a suposição da aceitabilidade
racional das normas estatuídas" (Habermas, 1992, p. 51). Com isto, o processo
democrático legislativo se transforma no "verdadeiro lugar da integração
social" (p. 50), o que significa que aqueles indivíduos sujeitos ao direito têm
que ter, ao mesmo tempo, a possibilidade'p serem exortados a se verem como
autores do direito e, assim, como participantes em uma prática política do
entendimento. O direito se distingue de todos os meios sociais pelo fato de
estar ligado a todas as três importantes "fontes da integração social" (p. 59): à
solidariedade social pela prática comunicativa da autodeterminação política,
assim como aos sistemas dirigidos pelo dinheiro e pelo poder administrativo.
Assim, o direito é uma espécie de meio geral que abrange todas as bases do sis-
tema e da,sociedade, transformando a comunicação do mundo da vida e a for-
mação de vontade social em uma linguagem capaz de ser compreendida em
sistemas diferenciados (p. 108). * »
Com base em tal conceito do direito, Habermas tenta escapar da alterna-
tiva entre um "desencantamento" sociológico e, em especial, teórico-sistêmi-
co do direito (Luhmann) e uma teoria puramente normativa de justiça
(Rawls). Uma análise do direito, normativamente desprovida, como "auto-
poiético", como uma unidade que não mais se comunica com outros sistemas,
parece insuficiente, pois deixa de ver a função da comunicação social no direi-
to. E uma concepção de justiça, mesmo que contenha um momento de valida-
de normativa que transcenda o contexto (p. 86), não tem que seguir somente
uma análise de reconhecimento simétrico de sujeitos agindo comunicativa-
mente, mas sim a realidade institucional do Estado de Direito - no qual está
inscrita a tensão entre validade jurídica positiva e normativa.
A pretensão de racionalidade comunicativa não é apresentada ao direito
como proveniente de fora; ela é reconstruída como imanente. Mas, com isto,
resulta - como mostra a "briga de família" (Habermas, 1996, p. 65/66) entre
Rawls (1997) e Habermas - como conseqüência a noção de uma teoria refle-
xiva e procedimental de justiça democrática, baseada no princípio de que
merecem validade apenas as normas que provêm de um processo discursivo de
argumentação e entendimento livres e iguais (Forst, 1999). Contudo,
Habermas não fundamenta a estrutura de semelhante ordem justa unicamen-
te com a ajuda deste princípio, mas com base em uma específica "reconstru-
ção do direito".
Rainer Forsc - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade

3. Direitos humanos e soberania popular

O cerne da argumentação político-filosófica encontra-se no terceiro


capítulo do livro. Na tradição (e na atualidade) da moderna filosofia política -
particularmente na controvérsia entre teorias liberais e republicanas - sempre
ressurge a concorrência entre abordagens que fundamentam os direitos huma-
nos como independentes e os prescrevem como limites ao exercício da sobe-
rania popular, e aquelas que apostam na prioridade da autodeterminação
democrática.
Assim, o livro tem por objetivo mostrar por que esta concorrência se
baseia em uma compreensão insuficiente da "origem comum" de autonomia
"privada" e "pública". Os direitos que devem proteger a liberdade subjetiva e
individual dos indivíduos e os direitos à participação, em igualdade de direi-
tos, no processo de formação de vontade democrática devem ser explicados a
partir de uma só raiz, devendo ser indicada sua relação de interdependência.
Isto se dá nos seguintes passos.
Primeiramente há de se notar que a questão fundamental levantada por
Habermas tem em vista a socialização horizontal de indivíduos livres e iguais:
"Quais direitos os cidadãos têm que se atribuir utis aos outros, caso queiram se
constituir como associação espontânea de comjjartícipes do direito e regula-
mentar legitimamente sua convivência com jmeios do direito positivo?"
(Habermas, 1994, p. 668). Porém, esta clássica questão da fundamentação esta-
tal não deve ser respondida com o auxílio de uma experiência mental contra-
tualística; pelo contrário, deve-se mostrar, guiando-se através das dificuldades
do direito natural e do positivismo jurídico, como tal projeto há de ser enten-
dido como prática discursiva conduzida normativamente, sem derivar direito
e democracia diretamente de princípios morais.
A diretriz decisiva é a do próprio princípio do discurso, que é ainda
unicamente capaz de justificar a validade normativa na modernidade, na
qual fundamentações tradicionais, ou metafísicas da normatividade não mais
são universalmente aceitáveis: "Somente são válidas as normas de ação que
possam merecer a aceitação de todos os possíveis implicados como partici-
pantes nos discursos racionais" (Habermas, 1992, p. 138). Este princípio,
reconstruído e fundamentado em trabalhos anteriores no contexto filosófi-
co-moral de uma "ética discursiva" (Habermas, 1983; 1991), é agora inter-
pretado como um princípio que permanece neutro diante da questão: se nor-
mas são de natureza moral ou jurídica. Normas do primeiro tipo são justifi-
cadas por meio de um "princípio moral" discursivo que leva a imperativos
categóricos, enquanto normas jurídicas são justificadas com o auxílio de um

182
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r Frankenberg & Luiz Moreira

"princípio democrático" que, diferentemente do princípio moral, não resul-


ta diretamente do princípio do discurso.
Embora as normas jurídicas tenham, por um lado, a função de comple-
mentar a moral em uma sociedade pós-tradicional (Habermas, 1992, p.
145/146) e, destarte, tenham que estar, em substância, conforme a princípios
morais (p. 137), elas possuem uma forma própria: não são universalmente váli-
das como as normas morais, provêm de processos discursivos, nos quais
entram também, mas não apenas, fundamentos morais, e se referem ao com-
portamento externo entre as pessoas umas com as outras e, por isso, indepen-
dem da motivação a partir da qual são seguidas (p. 136 e segs.). O princípio
democrático decisivo para responder à pergunta inicial colocada acima - a
pergunta pelas implicações e condições de uma prática da institucionalização
de discursos políticos, nos quais "a soberania popular assume forma jurídica"
(p. il35) - resulta, assim, de uma combinação entre princípio do discurso e
forma jurídica. Esta última não é justificada (por exemplo, moralmente), e sim
"encontrada" como resultado irredutível da evolução social (p. 142-143; cf.
Habermas, 1994, p. 677).
Esta idéia da combinação permite a completa argumentação pelo "siste-
ma dos direitos" que constitui a base de legitimidade de um Estado de Direito
Democrático capaz de superar o antagonismo entre liberalismo e republica-
nismo, pois o entendimento de que a prática discursiva da autodeterminação
poltica tem que ser institucionalizado juridicamente, pressupõe não apenas o
staéus jurídico de cidadãos ativos como autores do direito, mas também o de
pessoas jurídicas como destinatários do direito. Assim, combinando-se esta
argumentação, justificam-se "como equitativamente originárias" as autono-
mias "pública" e "privada", sem que ocorra a primazia de um lado: "Nem o
âmbito da autonomia política dos cidadãos é restringido por direitos naturais
ou morais que apenas aguardam sua entrada em vigor, nem a autonomia pri-
vada do indivíduo é meramente instrumentalizada para fins de uma legislação
soberana" (Habermas, 1992, p. 161).
Esta relação é evidenciada em uma "gênese lógica" de cinco categorias
bás cas de direitos (p. 154 e segs.). Cidadãos que querem regulamentar legiti-
mamente sua convivência com meios do direito positivo, têm que considerar,
primeiramente, três tipos de direitos fundamentais que constituem o status de
pesáoas jurídicas: direitos à maior medida possível de liberdades subjetivas de
ação, direitos à concretização da condição de membro em uma comunidade
jurí üca e direitos à reclamação de direitos através de ação judicial.
No entanto, a forma do direito não basta para a justificação desses direi-
tos, pois somente através do princípio do discurso pode ser justificado norma-

183
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade

tivarnente por que "qualquer um" tem direito a liberdades "iguais" e "as maio-
res possíveis" (p. 157); assim, a explicação é normativa, e não puramente con-
ceituai. Mas para que estes direitos fundamentais possam ser politicamente
realizados e desenvolvidos de forma legítima, faz-se necessário um quarto tipp
de direitos fundamentais que garantam a participação igualitária em processes
de formação de opinião e vontade. Segundo Habermas, estes quatro tipos de
direitos fundamentais podem ser justificados "de forma absoluta", enquanto
um quinto tipo só o é de forma relativa, a saber, os direitos sociais, os quais
asseguram materialmente a possibilidade de utilização dos quatro primeiros.
Segundo Habermas, a gênese destes direitos mostra a relação interna
entre direitos humanos compreendidos liberalmente e a idéia da soberania
popular: Estado de Direito e Democracia remetem, do ponto de vista teóricd-
discursivo, um ao outro. Assim, os direitos para o exercício da liberdade
comunicativa são justificados da mesma forma que direito» de se retirar de
comunicações e relações de justificação (p. 164; cf. Günther, 1991).
O pensamento mais importante desta abordagem reside indubitavelmen-
te em interpretar, de forma abrangente e a partir de uma perspectiva horizon-
tal do reconhecimento recíproco, como partícipes em uma prática de autode-
terminação política o duplo papel de cidadãs e cidadãos como autores e desti-
natários do direito, não apenas normativamente, mas também sob o aspecto
teórico-juridico e teórico-institucional. Tomando isto como base, Habermas
fomece, a seguir, uma teoria discursiva do Estado Democrático de Direito.

4. Estado de Direito, poder, fundamentos

Habermas reconstrói os princípios do Estado de Direito ao longo do sis-


tema dos direitos e da idéia central de que só é válido como legítimo o direi-
to "que, cm uma formação discursiva de opinião e vontade, poderia ser racio-
nalmente aceito por todos os compartícipes do direito" (Habermas, 1992, p.
169). Com isto, o ponto central é colocado, de antemão, na questão da reali-
zação da participação democrática, mas em um sentido nitidamente cogniti-
vista, pois a legitimidade é definida pela "aceitabilidade racional" (p. 187-188).
Correspondentemente, tornam-se compreensíveis os princípios do Estado de
Direito não apenas no sentido de uma lógica do poder, mas, especialmente, no
sentido de uma lógica dos fundamentos que devem entrar em processos demo-
cráticos legiferantes ou dos fundamentos que estão à disposição de órgãos esta-
tais em seu agir.
A análise do poder, apresentada por Habermas, diferencia entre poder
comunicativo, político, administrativo e social. Poder comunicativo, apoian-
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r F r a n k e n b e r g & Luiz Moreira

do-se em Arendt (1970), designa a vontade política comum formada por


intermédio de comunicação não coativa, ou seja, o poder legitimador do
direito em sentido próprio, a "fonte de justiça" do direito (Habermas, 1992,
p. 183). Este poder só pode se formar em "esferas públicas não deformadas"
(p. 184), nas quais o emprego público da razão tem um lugar. Este poder se
baseia em uma concordância ai respeito dos fundamentos, designando unica-
mente o momento do surgimento do poder político, enquanto este último
também abrange outros momentos, por exemplo, o da concorrência pelo
acesso ao sistema político. Poder administrativo, por fim, é a designação para
os poderes que instituições estatais da administração possuem, enquanto o
poder social é entendido como a "força de imposição fática de interesses pri-
vilegiados" (p. 187; cf. p. 215), por exemplo, interesses de associações econô-
micas. O direito deve ser, neste caso, o meio, "através do qual o poder comu-
nicativo se converte em administrativo" (p. 187), sem que este processo possa
ser influenciado de forma ilegítima por fatores sociais de poder. A fim de se
ter isto assegurado, são necessárias as instituições do Estado de Direito, cuja
idéia total consiste em servir à "auto-organização autônoma politicamente"
(p. 217) de uma comunidade jurídica.
Como a democracia, analogamente, deve ser entendida como a "sobera-
nia dos fundamentos" (cf. Forst, 2001) que geram aceitabilidade racional a par-
tir de procedimentos discursivos, interessa abrir processos políticos para o tipo
correto de fundamentos. Só assim, segundo Habermas, ainda se pode pensar em
"soberania popular": ela se retira da idéia - que pode ser encontrada, por exem-
plo, em Rousseau - do corpo do povo reunido e manifesta sua vontade unifor-
me "para os círculos de comunicação de foros e corporações, como que desti-
tuídos de sujeito", adotando uma forma "anônima" (Habermas, 1992, p. 170).
Habermas analisa o leque de justificações da produção de poder comuni-
cativo por meio da diferenciação entre questões ou aspectos pragmáticos,
ético-políticos è morais, os quais incorrem em discursos políticos. (No posfá-
cio à quarta edição, Habermas corrige a representação de que se trata, aí, de
diversos tipos de discurso: Habermas, 1994, p. 667, nota 3; cf, a respeito,
McCarthy, 1998). Questões pragmáticas tangem à conveniência de meios polí-
ticos; questões ético-políticas, à autocompreensão de uma comunidade jurídi-
ca situada historicamente; questões morais a normas válidas universalmente.
Normas jurídicas podem ser justificadas com vários destes fundamentos, mas
as morais desempenham um papel superior: normas jurídicas não podem
infringir normas morais, de modo que pontos de vista morais - por exemplo,
questões fundamentais de justiça social - sobrepujam outras (Habermas, 1992,
p. 193, 204 e segs.). Ademais, normas jurídicas podem ser legitimadas também
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade

por meio de compromissos e não apenas através de acordos consensuais, desde


que os procedimentos de formação do compromisso sejam corretos.
Nesta base, podem-se distinguir quatro princípios do Estado de Direito: o
princípio da soberania popular, a independência da justiça, a legalidade da
administração, a separação entre Estado e sociedade. O primeiro reza que os
procedimentos políticos - assim como as formas da representação - devem ser
instituídos de tal modo que sejam criados os pressupostos ótimos de comunica-
ção para discursos, para os quais possam ser trazidos os fundamentos acima; isto
se refere tanto a questões da concorrência partidária quanto à "garantia de esfe-
ras públicas autônomas" (p. 211) a nível social. Por fim, a qualidade democrá-
tica de processos políticos não se mede por sua abertura a influências discursi-
vas destas esferas públicas (p. 221 e segs.). O segundo princípio significa que a
justiça está vinculada apenas à lei, sendo independente, em seus "discursos de
aplicação" (Günther, 1988), de influenciação política. O terceiro, por sua vez,
remete ao sentido da divisão dos poderes, cuja função é impedir que o poder
administrativo se desligue de sua vinculação ao direito: "Do ponto de vista teó-
rico-discursivo, as funções da legislação, justiça e administração podem ser
diferenciadas por formas de comunicação e respectivos potenciais de funda-
mentos. Leis regulamentam a comutação de pçder comunicativo em adminis-
trativo ao surgirem após um processo democrático, ao fundamentarem uma
proteção jurídica garantida por tribunais imparciais e ao privarem a adminis-
tração implementadora daquele tipo de fundamentos normativos, portadores
das resoluções legislativas e das decisões judiciais" (Habermas, 1992, p. 235).
Só o legislador pode ter acesso a toda a gama de fundamentos normati-
vos; em contrapartida, as outras instâncias não. Analogamente, o quarto prin-
cípio do Estado de Direito prescreve que procedimentos políticos devem estar
abertos às influências da parte da "sociedade civil", mas têm que, neste aspec-
to, repelir influências ilegítimas de poder social.

5. Democracia deliberativa} sociedade civil e paradigmas do


direito

Seguindo o modelo da reconstrução dos princípios do Estado de Direito,


Facticidade e Validade desenvolve u m a teoria discursiva do direito e da demo-
cracia. A primeira trata da elaboração de um paradigma procedimental do
direito, dentro do qual, por exemplo, a jurisdição de um tribunal constitucio-
nal é medida pela tarefa em manter para uma "política deliberativa" as condi-
ções de comunicação jurídico-políticas (p. 334) (na qual, a seguir, não será
possível o aprofundamento). A segunda tem a função de nomear os conceitos
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira

fundamentais e as instituições de tal política. De acordo com Habermas, isto


só pode ser explicado por meio de um conceito procedimental de democracia
- uma " intersubjetividade em nível superior de processos de entendimento
que se realizam por meio de procedimentos democráticos ou na rede comuni-
cacional de esferas políticas públicas" (p. 362). A concepção procedimental de
democracia distingue-se tanto de modelos liberais quanto de republicanos,
contanto que a formação de vontade democrática não seja compreendida nem
primariamente como concorrência entre agentes atuando estrategicamente
pela obtenção ou aquisição de poder político, nem como forma de auto-enten-
dimento ético-coletivo de cidadãos virtuosos (cf. Habermas, 1996, cap. 9).
Como o.persõnàg^em central da legitimação da teoria democrática haber-
masiana éia "qualidade" (Habermas, 1992, p. 369), produzida discursivamen-
te, dos resultados-da"formação política de opinião e vontade, que fundamenta
a "suposição de racionalidade" (p. 368), o conceito de deliberação se desloca
j para seu centro. Este conceito, por sua vez, é interpretado procedimentalmen-
j te, no contexto de uma "sociedade descentrada" (p. 365), a qual apresenta uma
; pluralidade de foros comunicativos e argumentativos, de - como chamadas
com referência a Fraser (2001, cap. 3) - estruturas de esferas públicas "fracas"
e subculturais até formas "fortes" de corporações que tomam deliberações.
Assim, o ideal da deliberação democrática consiste no fato de que, dentro des-
tes foros, áreas problemáticas e perspectivas socialmente relevantes são detec-
tadas, ligadas e discutidas de tal forma a considerar seus diversos aspectos, tor-
nando-se estes - não sem conflitos - objeto de decisões políticas.
A qualidade deliberativa destas resoluções é medida pela abertura e
inclusão do decurso desses procedimentos e por quais pontos de vista ou fun-
damentos se impuseram nestes processos e, em especial, de que modo se
logrou fazer valer interesses até então marginalizados no modo de discussão
pública, filtrar interesses generalizáveis (Habermas, 1992, p. 378) e separá-los
de pretensões e argumentos injustificáveis (p. 413-414). Assim, democracia é
entendida como forma reflexiva da política que acolhe em sua própria estru-
tura institucional o princípio da crítica pública (p. 390).
A fim de marcar o lugar para semelhante noção de política, há a neces-
sidade, por um lado, de uma concepção do sistema político e, por outro, de
uma teoria da "sociedade civil" como o contexto abrangente e politicamente
sensível deste sistema. Tomando-se como referência Peters (1993), faz-se uma
diferenciação entre um centro político de formação de vontade e, em contra-
posição a ele, organizações, associações e grupos político-sociais periféricos,
iporém essenciais ao processo democrático, desde sindicatos até grupos de inte-
resses espontâneos e instituições culturais. Segundo Habermas, "decisões vin-
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192
Jiirgen H a b e r m a s , 80 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r F r a n k e n b e r g & Luiz Moreira

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Habermas's "Between Facts and Norms". Albany, N.Y., 2002, p. 61-87.

Prof. Dr. Joke Cunha


FCS/IFCH/UFPA
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade
!
t

culantes, para serem legítimas", têm "que ser dirigidas por fluxos comunica-
cionais que partem da periferia" e transpõem "as eclusas dos processos demo-
cráticos e de Estado de Direito" (Habermas, 1992, p. 432). Só assim, de acord9
com esta concepção, pode ser gerado dentro do sistema político poder comu-
nicativo suficiente a fim de reagir contra uma autonomização de poder sócia;
ou administrativo. Com isto, desloca-se o ponto principal da argumentação
teórico-democrática para a produtividade e abertura de foros não institucio -
nalizados da comunicação pública e suas possibilidades em passar atravéü
daquelas eclusas institucionais posições produzidas discursivamente e enji
exercer influência.
Para tanto, faz-se mister uma esfera pública crítica atuante - não "domi-
nada" (438) ou manipulada - (com o que Habermas retoma seu antigo tema);
ela forma um espaço social de intercâmbio de opiniões contraditórias entre si,
no qual estas podem se reunir em "opiniões públicas", desenvolvendo, assim,
força comunicativa. Analogamente, é necessária uma certa infra-estrutura
deste espaço (por exemplo, no que se refere à disposição sobre o poder da
mídia), em especial uma ancoragem social nas associações e movimentos autô-
nomos, reunidos sob o termo "sociedade civil" (cf. Cohen/Arato, 1992).
Relações associativas em sociedade civil não são parte formal do sistema polí-
tico, mas necessitam, por um lado, de uma proteção jurídico-fundamental de
sua autonomia e, por outro, constituem um lugar irrenunciável de discussão
de questões sociais e possíveis respostas, a partir do qual o sistema político
pode ser influenciado, por exemplo, com referência ao que cabe à pauta polí-
tica, como e em qual local isto ocorre (Habermas, 1992, p. 458).
No último capítulo do livro, Habermas combina suas teorias discursivas
do direito e da democracia em uma discussão dos três diferentes "paradigmas
do direito". Enquanto o paradigma liberal do direito enfatiza a garantia formal
da autonomia privada, mas não levando suficientemente em consideração
desigualdades e não-liberdades fáticas, o paradigma do Estado social tenta
compensar este fato por intermédio de um enriquecimento material do con-
ceito de autonomia (e respectivos direitos a prestações positivas), mas perma-
nece vinculado igualmente à noção de autonomia privada, abrigando o perigo
de uma fixação juridicizante e paternalista deste status. Por meio de uma aná-
lise de discussões feministas de políticas de equiparação, Habermas mostra
como um paradigma procedimental e reflexivo do direito - tendo presenteia
origem comum de autonomia privada e pública - consegue conceber direitos
individuais (ou coletivos) não como resultados de atribuições estatais, e sim de
forma relacionai: discussões acerca de equiparação, por exemplo, hão de ter
um viés reflexivo, de modo que os interessados sejam colocados primeiramen-
Jürgen H a b e r m a s , 8 0 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r F r a n k e n b e r g & Luiz M o r e i r a

te em posição para conduzir publicamente estas discussões de forma autôno-


ma e formar seus interesses e opiniões, inserindo-os efetivamente no proces-
so político (p. 506).
Assim se revela o sentido emancipacionista deste paradigma do direito
que confere à soberania interpretativa sobre identidades, interesses e preten-
sões a serem justificadas não sèm os indivíduos ou para eles, mas os incentiva j
a se tornarem autores do direito (p. 513). Tal fato implica reorientação para a
questão das possibilidades de participação i}ão apenas nas arenas da sociedade
civil, mas também da legislação institucional, mesmo ainda dentro do sistema jj
administrativo (p. 531). Isto confirma mais uma vez a idéia central do livro "de iil
que, numa época de política totalmente secularizada, não se pode ter nem
manter o Estado de Direito sem uma democracia radical" (p. 13).

6. Controvérsias
"3 ^
Subentende-se que uma obra com tal abundância de temas, teses e argu- o ^
mentos, que reúne diversos discursos científicos, formando a partir deles uma "£
T> ^
moderna síntese, está exposta a uma série de críticas. Far-se-á aqui uma breve >
alusão às mais importantes dentre elas. i -
Sob o aspecto político-filosófico, a questão central é se Habermas logrou
apresentar com a tese da "origem comum" de autonomia privada e pública o
nexo interno e não antagonista entre direitos humanos e soberania popular.
Isto foi colocado em dúvida por diversas partes. Do ponto de vista liberal, falta
uma fundamentação moral autônoma dos direitos humanos, os quais estariam
sempre antepostos ao exercício do poder democrático (cf. Hõffe, 1993;
Larmore, 1993), enquanto, por outro lado, nota-se que Habermas freou moral-
mente a radicalidade de uma idéia procedimental de soberania popular (cf.
Maus, 1995). Rawls (1997, p. 230-231), em contrapartida, é da opinião de que
Habermas não pode evitar uma construção dos direitos "em dois níveis",
segundo a qual estes podem ser fundamentados normativamente em u m pri-
meiro passo e, só posteriormente, institucionalizados político-juridicamente.
Em suma, estas críticas remetem aô fato de que Habermas, por u m lado,
não duvida de que direitos humanos sejam de natureza moral e de que tam-
bém assim podem ser fundamentados (cf. Habermas, 1994, p. 670; 1992, p.
118, 136, 137); por outro, porém, a fundamentação favorecida por ele em
Facticidade e Validade não esgota este conteúdo, a fim de evitar que direitos
basilares (como na tradição do direito natural) "sejam paternalisticamente
impostos" a u m legislador soberano (Habermas, 1994, p. 670). Mas isto tam-
bém seria evitado se fosse eleita uma via de fundamentação que reconstrua de

189
i
I
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade

forma diferente o nexo entre moral, direito e democracia (cf. Forst, 1999).
Com base em u m princípio da justificação, de fundamentação teórico-discur-
siva e de autoentendimento normativo, segundo o qual normas reivindicado-
ras de validade universal e recíproca têm que ser justificadas de modo discur-
sivamente universal e recíproco, resulta a possibilidade de uma construção
moral "autônoma" de direitos humanos (como pretensões mutuamente não
rejeitáveis); estes constituem o conteúdo central de uma construção, constru-
ção esta de característica discursiva, política e a ser institucionalizada juridi-
camente, de direitos fundamentais e respectivas normas de uma estrutura
política básica. Estes direitos fundamentais são, assim, implicações necessárias
de uma soberania política exercida legitimamente e nos moldes do Estado de
Direito, o que Habermas salienta, da mesma forma que são, conforme sua
essência e seu próprio vigor, direitos morais que são configurados dentro de
instituições políticas pelos próprios interessados, conferindo-lhes aí validade.
A realidade jurídico-política não se defronta com normas morais "exter-
nas", e sim tão-somente com aquelas que uma estrutura política básica teria que
poder apresentar ela mesma a fim de reivindicar legitimidade. Assim, tal pro-
grama respeita a diferença entre direito e moral, deixando aos direitos funda-
mentais, todavia, sua pretensão crítica e transcendente, a qual, por sua vez, é
transformada na exigência por uma forma mais adequada de justificação demo-
crática, especialmente frente a minorias. Seu "direito à justificação" é violado
quando são excluídas de processos políticos ou, porém, quando, em processos,
sua reclamação é preterida por justificações ou deformada ideologicamente.
Assim, o "valor intrínseco" (Habermas, 1996, p. 300) de direitos subjeti-
vos de liberdade pode ser salientado, sem o colocar em uma falsa oposição à
idéia da soberania popular, pois a esta interessa, por fim, o estabelecimento
autônomo de u m a estrutura básica da sociedade justificada recíproca e univer-
salmente. Dessa maneira, pode também ser reformulada, finalmente, a tese da
origem comum, pois agora não é oiprincípio do discurso combinado com uma
forma do direito de fundamentação^ não continuada que constitui a(s) fonte(s)
- heterogênea(s) na teoria de Habermas - do sistema dos direitos, e sim uni-
camente o princípio da justificação diferenciado por contextos (cf. Forst,
1994). Só então existe uma origem da diversificação e do nexo entre autono-
mia moral, jurídica e política.
A partir de semelhante atalaia, a questão da justiça social pode também
ser incluída no programa de uma estrutura básica abrangentemente justifica-
da, mais intensamente do que ocorre na teoria habermasiana, na qual "direi-
tos sociais" possuem u m status apenas derivado, o que é criticado por
Frankenberg (1996). O princípio da justificação permite até uma reformula-
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira

ção do princípio da diferença de Rawls, segundo o qual as cidadãs e os cida-


dãos em posição social desfavorecida têm um "direito de veto" (Rawls, 1975,
p. 175-176) contra divisões de bens justificadas de forma insuficiente para tais
desfavorecidos.
Tal fato levanta a questão pela adequação da localização sociológica da
azão discursiva empreendida por Habermas. Trata-se, por fim, de diferentes
teorias da complexidade das sociedades modernas, entre as quais Habermas
procura trilhar um meio-termo que, por um lado, conduzem à dúvida se o
direito democraticamente estatuído é capaz de servir como meio da transfor-
mação de poder comunicativo em administrativo, de modo que sua linguagem
possa impressionar a lógica de sistemas sociais autônomos (cf. Luhmann,
1993); por outro, as concessões que Habermas faz à obstinação de sistemas
administrativos e econômicos são consideradas como por demais amplas -
supondo-se a diretriz da "democracia radical" (cf. Scheuermann, 2002).
Todavia, há de se notar que as avaliações das possibilidades de democratização
social e política, encontradas em Habermas, não limitam a priori sua extensão
nem levam a decisões conceituais básicas que excluam semelhante democra-
tização (cf., p.ex., Habermas, 1992, p. 530 e segs.). tf
Um último e importante ponto de vista: na era da globalização, nenhu-
irta teoria política do Estado de Direito pode evitar tomar posição a respeito da
qüestão da expansão transnacional de estruturas políticas - ou do estreitamen-
to de possibilidades políticas de ação por parte dos Estados nacionais. Em
Facticidade e Validade, isto não desempenha papel importante (Habermas,
1992, p. 535), mas, na seqüência, levou Habermas a análises minuciosas das
"Circunstâncias pós-nacionais" (1998) e das possibilidades de uma constituição
política da sociedade mundial (2004; 2005, cap. 11). É no fato se semelhante
pfojeto tem chances de êxito e de como as tem que se decide, segundo
Hjabermas, até que ponto é mais justificada a subordinação, necessária a uma
teoria democrática, à possibilidade de "autoatuação" social (2005, p. 344).

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r
uris\(£clitora

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L ü c i o A N T Ô N I O C H A M O N JUNIOR

n1

FILOSOFIA DO DIREITO
NA ALTA MODERNIDADE
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

3 3 edição revista e
c o m Estudo C o m e m o r a t i v o
±4,.

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2010
Copyright© 2010 by Lúcio Antônio Chamon Junior

2i edição - 2007
1a edição - 2005

Categoria: Filosofia

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Imagem da cajja:
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Todos os direitos desta edição reservados à


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Impresso no Brasil
Printed in Brazil

i

;
Capítulo 2
Do Direito como Sistema Social de Função:
contribuições (e limites) à observação
do Direito através da Teoria da Sociedade
de Niklas Luhmann

1. Do "construtivismo operacional"i de N. Luhmann Ъ


ou da Teoria dos Sistemas: o Direito como sistema
social autopoiético

Discorrer sobre a teoria de NIKLAS LUHMANN é discorrer sobre sistemas


sociais, sobre sistemas autopoiéticos e que, apesar da estranheza que o nome pode
imprimir naqueles que com ele primeiramente tomam contato, vale afirmar que
talvez a base deste conceito seja algo de uma'simplicidade sem fim: o sistema é
aquilo que o próprio sistema produz e reproduz.
O projeto luhmanniano se faz central a partir do momento em que aqui se
pretende reconstruir traços do caminho que a Teoria do Direito, e da legitimi-
dade do Direito, trilhou de KELSEN a HABERMAS. Afinal, LUHMANN fora um autor
que, de maneira monumental, conseguiu realizar um diagnóstico sociológico, a
partir de uma postura objetivante, como nenhum outro autor à sua época. Suas
críticas a KELSEN - ainda que cegamente re-entrantes em sua própria teoria - ,
bem como suas contribuições à construção do projeto habermasiano, nos per-
mitem localizá-lo como um autor central na observação da sociedade contem-
porânea.

1 A expressão "construtivismo operacional" é cunhada por Luhmann. Em seu último livro sobre o Direito -
Das Rechc der Geseltschafc- LUHMANN traz a expressão no segundo capitulo. Interessante ressaltar é que
г exposição que vai se seguir acerca da Teoria da Sociedade de N. LUHMANN toma como ponto central esta
obra que, em sendo de 1993, fora editada após o livro fundamental de J. HABERMAS para as questões aqui
tratadas (Faktizitãt und Gelcung). Isto permitiu a LUHMANN, falecido em 1998, estabelecer um diálogo com
as proposições habermasianas de modo que aqui serão apontadas somente as que entendemos mais rele-
vantes para O desenvolvimento do tema proposto; todavia, continua sendo necessário um estudo sério que,
partindo de PARSONS, permita um enfoque tanto da Teoria dos Sistemas de LUHMANN quanto da Teoria do
Discurso de HABERMAS. Por fim, vale ressalta que utilizaremos a tradução ao castelhano coordenada por
TORRES NAFARETTE no México E que, apesar de não editada, À época em que escrevemos este texto, nos
foram gentilmente cedidos seus manuscritos pela Professora JULIANA NEUENSCHWANDER MAGALHÃES. Em
frente à indicação da tradução castelhana, seguem as indicações no original alemão.

89
Lúcio Antônio Chamon Júnior

LUHMANN expõe que o Direito moderno descreve a si mesmo, isto é, se auto-


descreve como sendo direito positivo. A posiüvidade do Direito moderno, por-
tanto, marcaria as observações e descrições que poderiam ser referidas ao Direito
enquanto sistema social. Isto implica que a superação de uma concepção que
entendia estar o Direito positivo fundado em um direito natural imutável mar-
caria a percepção do Direito enquanto modernamente referido, eqüivale dizer,
enquanto fruto de decisões contingentes. A contingência, a possibilidade de
mudança, enfim, a não-necessidade do Direito moderno marca uma nova com-
preensão: a compreensão do Direito como um sistema que reproduz a si próprio
na medida, sobretudo, que terá agora as possibilidades de regulação de sua pró-
pria mudança. 2
A superação de uma distinção entre imutável/mutável, enfim, entre direito
natural/direito positivo põe em realce uma perspectiva fulcral: o Direito é fruto
de decisões e que, enquanto decisões temporalmente fixadas, são contingentes,
isto é, poderiam ter ocorrido noutro*sentido.
Muito embora KELSEN também reconheça a contingência no campo do
Direito, na medida em que estabelece a diferença entre a norma enquanto ato
subjetivo de vontade dotado de um sentido objetivo e um "mero" ato subjetivo
de vontade (não dotado de sentido objetivo) LUHMANN, não pretendendo incor-
rer no mesmo equívoco a que KELSEN acabou se deixando levar, afirma, preten-
samente, que esta sua particular noção não implicaria um "decisionismo". 3 Não
podem ser suas colocações entendidas no sentido de que o Direito estaria à "deri-
va da arbitrariedade" 4 - embora os positivistas afirmem uma discricionariedade
ainda que implicitamente. Com isto, LUHMANN afirma entender o Direito como
sendo fruto de decisões que nos permitem falar em sua positividade. Embora se
trate de um ponto fundamental para a compreensão do Direito, a noção de posi-
tividade é incapaz de permitir uma compreensão mais precisa do que venha a ser
o Direito enquanto sistema social. A referência estrita à positividade levaria,
como já insinuado, à "arbitrariedade de um decisionismo".

2 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Manuscritos. LUHMANN,
Niklas. Das Recht der GesellschaR. Frankfurt: Suhrkamp, 1993, p. 39.
3 Acerca do decisionismo a que chega a teoria kelsenina cf.: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria
Constitucional do Direito Penai contribuições a uma reconstrução da Dogmática penal 100 depois, cit.,
p. 89 et seq.\ Carvalho NETTO, Menelick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica
do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis
no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, v. 01,
março, 2 0 0 1 , pp. 1 9 - 2 0 ; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucionaL Belo
Horizonte: Mandamentos, 2001, pp. 31ss; NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação
jurídica. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 03, pp. 4 2 9 - 4 5 0 , 1 9 9 8 .
4 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gcsellschaft, CÍL, p. 39.

90
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas era Kelsen, Luhmann e Habermas

Assim é que LUHMANN parte de uma distinção para proceder a uma observa-
ção do Direito. Entende que devamos compreender o Direito como um sistema,
não como um sistema coerente de regras, não como uma ordem de normas orien-
tadas por uma superior (KELSEN), mas antes como uma rede de operações fáticas;
operações estas que, sendo sociais, são comunicações. Ora, se o sistema é esta
rede de operações sociais e que, enquanto tais, são comunicações que se verifi-
cam através do meio que é a linguagem, temos um ponto de partida estabeleci-
do, qual seja, a diferença entre sistema e seu ambiente. A crítica de LUHMANN se
dirige às teorias do Direito que determinam o Direito a partir de estruturas jurí-
dicas - regras, normas - como a "regra do reconhecimento" de H A R T ou a "norma
fundamental" de KELSEN.
A proposta do autor é de inovar superando este pensamento e partindo do
entendimento de que o que determina o que é Direito são operações sociais, ope-
rações do próprio sistema jurídico que, assim, visam determinar o que é Direito
e o que não é Direito, i.e., determinar o sistema e o seu ambiente. Embora o
Direito tenha estruturas que lhe são indispensáveis, não são estas mesmas estru-
turas estáveis - "idealidade estável" como a norma fundamental de KELSEN -
aquilo que permite determinar o Direito. Enquanto as estruturas são indispensá-
veis para a própria operacionalidade do sistema, elas não têm o condão de, por si,
por seu conteúdo (ainda que "neutro"), determinar o que venha a ser observado
como Direito. Este, enquanto sistema, é determinado pelas operações que se dão
no seu interior e que, todavia, não se confundem com as estruturas das quais
depende - normas, regras, etc. 5
E é assim que parte LUHMANN rumo à construção de sua teoria, diferencian-
do inicialmente sistema e ambiente. O fato de se afirmar que o Direito seja um
sistema diferenciado de seu ambiente, isto é, que tenha operações referidas a si
mesmo e que não se confundem com eventuais operações do seu ambiente,
implica afirmar que o sistema é operacionalmente fechadofi isto eqüivale afirmar
que este fechamento operacional implica uma recursividade das operações do
sistema no interior ao próprio sistema. Isto nos permite entender que as opera-
ções de um sistema social de função - no caso o Direito - se orientam por dire-
ções construídas internamente ao próprio sistema que, assim, se apresenta como
fechado frente a um ambiente altamente complexo.
Mas este fechamento operacional, enfim, esta clausura das operações não
deve ser entendida enquanto isolamento. Existe uma dependência entre o siste-
j ma e o seu ambiente que pode, inclusive, ser observada através da relação entre
i
5 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., p. 41.
6 LUHMANN. Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geseüschift, cit., p. 42.

91
Lúcio Antônio Chamon Junior

causa e conseqüência - ainda que a Teoria dos Sistemas reoriente esta distinção
em termos bem "próprios", ainda que absorvendo todas as contribuições da Físi
desde HEISENBERG. O que vale ressaltar é que por sistema aqui se tem entendido
um sistema operacionalmente fechado que, para a produção de suas operações -
o que implica uma reprodução do próprio sistema se remete a toda rede de suas
próprias operações havendo, portanto, uma reprodução do sistema por qle
mesmo. A referência às próprias operações não implica uma vinculação de uma
operação com todas as demais, mesmo porque pode haver operações simultâneas.
E é nesse sentido, enfim, de que o sistema recorre a si mesmo para efetuar suas
operações, que podemos afirmar que esta recursividade, além do corolário do fecha-
mento operacional, é aquilo que nos permite concluir que é o próprio sistema quem
determina o que pertence a si mesmo e o que pertence ao ambiente, enfim, àquilo que
não pertence ao sistema. Assim é que se afirma que o sistema é autopoiético: ele não
somente se auto-organiza; o sistema se auto-reproduz, isto é, produz a si mesmo a par-
tir daquilo por ele mesmo já produzido, o que, na verdade, tem um impacto na obser-
vação da relação entre estrutura e seu processo de produção (operação).7 A autopoiesis
surge como algo a ser pressuposto como invariável, no sentido de que não afirma qual-
quer ponto no que se refere ao conteúdo das estruturas, ou ainda sequer sobre os efei-
tos a serem observados como decorrentes do acoplamento entre sistema e ambiente.
A autopoiesis, e sua semântica, é a mesma para todo e qualquer sistema social
de função, pois seu sentido é de que tão-somente se pode falar em elementos e
estruturas de um sistema na medida em que este mesmo sistema continue existin-
do, isto é, operando-se autopoieticamente. O fato de o Direito ser um sistema par-
ticular - autopoiético e fechado operacionalmente - tem referência a seu próprio
código (licitude/ilicitude). Mas, como o próprio LUHMANN esclarece, a noção de
autopoiesis não serve para esclarecer quais serão os programas que constituirão, ou
constituem, o sistema.8
Assim, temos que a distinção entre sistema e ambiente se dá no presente na
exata medida em que as operações do sistema ocorrem somente no presente -+ o
que implica uma simultaneidade na determinação do passado e do futuro que,
enquanto tais, somente podem ser conjuntamente assim definidos no presente.
Isto implica a constatação de que o sistema também se move, operacionalmente,
somente no presente, ainda que assim marque simultaneamente o passado q o
futuro. A "segurança" na reprodução do sistema por si próprio se dá na insegu-
rança: em um cenário altamente complexo em que o nível de tolerância das inse-
guranças deve ser referido ao próprio processo de produção - operação - do

7 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sodedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht dei Gesellschaft, CÍL, pp. 44-;45.
8 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, dt., p.;45.

92
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Direito. Estas assertivas têm a ver com o fato de que o que ocorre no sistema se
dá na atualidade, no presente, eqüivale dizer, a distinção entre sistema e ambien-
te é determinada no presente e também de maneira simultânea, 9 co-implicada.
Mas se já afirmamos que o Direito, enquanto sistema social autopoiético,
reproduz a si mesmo através de operações sistêmicas, como devem ser entendi-
das, ou melhor, como devem ser inicialmente enfocadas referidas operações?
r~Não devemos supor que sejam as consciências individuais aquelas que permitam
a operação, ou melhor, que realizam a operação através da qual o sistema jurídi-
1
co reproduz a si mesmo. Enquanto sistepas psíquicos, as consciências individuais
não têm este condão. Assim é que estas'consciências não podem ser - e não são
efetivamente - consideradas como elementos ou estruturas do sistema do
| Direito. Na verdade nada impede que os sistemas psíquicos observem o Direito;
mas esta afirmação será bem distinta da que se referir à capacidade de produção
do próprio sistema jurídico. 10
Os sistemas autopoiéticos devem ser encarados enquanto vinculados ao seu
próprio tipo de operação tanto no que tange a) à própria produção de operações
como b) no concernente à construção de estruturas. Assim conclui LUHMANN que
não há uma diferença material entre operação e estrutura. Esta afirmação somen-
te pode ser compreendida na medida em que o Direito opera comunicativamente.
Em sendo a operação através da qual o Direito opera, a comunicação não permite
compreender as próprias normas - enquanto estruturas - como não sendo, tam-
bém, comunicações. As comunicações no campo do Direito sempre apresentam,
para LUHMANN, uma dupla função: a) ser fator de produção e b) ser conservador das
estruturas. É assim que podemos afirmar que se trata de um sistema histórico: ope- j
racionalmente o Direito, enquanto sistema, parte de uma definição, um quadro sis-
têmico imediatamente anterior àquele novo por ele mesmo criado. As comunica-
ções referidas ao sistema do Direito que, enquanto tais, permitem fazer a diferen-
ça entre sistema e ambiente estabelecem condições de enlace para as operações i
subseqüentes, seja confirmando ou modificando as estruturas já dadas.11 ——
Como já apontado, portanto, a» comunicação é a operação através da qual o
sistema jurídico reproduz a si mesmo de maneira enclausurada, isto é, estabele-
cendo a distinção entre sistema/ambiente. Enquanto comunicação devemos,
todavia, entender que não se trata de uma operação exclusiva do sistema jurídi-
co. Se é através da comunicação que o Direito opera, é verdade que a Sociedade,

9 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., pp.
46-47.
10 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., pp.
47-48. Afinal, os sistemas psíquicos operam a si mesmos a partir de sua operação "pensamento" e não a
partir da operação do Direito e da Sociedade, qual seja, "comunicação".
11 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., p. 48.

93
Lúcio Antônio Chamon Júnior

para empregar termo bastante elucidativo em campo da própria Teoria dos


Sistemas, é um sistema "oniabarcador" de todas as comunicações que se podem
verificar. Assim é que se entende a assertiva segundo a qual "Sociedade é comu-
nicação", pois no ambiente do sistema da Sociedade não há que se falar em comu-
nicação, enfim, em operação do próprio sistema da sociedade - sistema social.
Afirmar, portanto, que o Direito - bem como a Política, a Ciência, a
Economia, etc. - opera comunicativamente implica, para a Teoria dos Sistemas,
que o Direito é um sistema que pertence a Sociedade e também a realiza. Noções
muito difundidas em que se pretende contrapor o Direito à Sociedade nada mais
deixam de perceber que se é certo que o Direito, enquanto sistema social, possui
um ambiente marcado por uma complexidade social, também não é sem propó-
sito afirmar qui/o Direito é parte da Sociedade e a realiza na exata medida em
que opera comunicativamente. A Sociedade também "inclui" todas as operações
do Direito. 12
Isto, todavia, não impede que o Direito faça referências, enfim, que ao
Direito sejam relevantes fenômenos capazes de serem re-conduzidos ao ambien-
te da própria Sociedade. O Direito pode, muito bem, fazer referência a realida-
des físicas e mentais dos seres humanos, bem como a fenômenos físicos, dentre
outros, tomados como relevantes para o próprio sistema jurídico. 13
Mas se aqui estamos afirmando que o Direito reproduz a si mesmo em razão
de que as suas operações - comunicações - são recursivamente enlaçadas às ope-
rações que anteriormente se verificaram no próprio sistema, isto implica, como
também já apontado, o entendimento de que o Direito se trata de um sistema his-
tórico. E isto ganha relevância na exata medida em que a praxis atual sempre
opera dentro de um quadro historicamente dado: do contrário não seria sequer
possível diferenciar o Direito de outros sistemas e de seu próprio ambiente. Mas
isto não implica, por parte da Teoria do Sistemas, uma preocupação ou um retor-
no àquilo que possa ser considerado o "princípio (início) histórico" do Direito,
mesmo porque entende-se que não sé^pode falar em tal compço, mas antes tão-
somente em situações em que se pode> reconhecer, desde a antigüidade, a orien-
tação normativa. 14 O aspecto histórico do Direito está, antes, atrelado à sua
movimentação contínua, dia a dia, operação a operação, em que sempre ressur-
ge enquanto um sistema modificado, sendo que a configuração no momento pos-
terior é sempre diferente daquela anterior.

12 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., p. 55.
13 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rncht der Gesellscbaft, cit., p. 55.
14 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., pp.
57-58.

94
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Já que estamos nos referindo a um aspecto temporal, vale ressaltar que para
LUHMANN as operações, enquanto amalizações de possibilidades de sentido - em
úm contexto complexo e contingente - , não têm qualquer duração (permanên-
cia) enquanto acontecimento; e na medida em que não têm duração não podem
áer alteradas, isto é, não podem sofrer qualquer mudança. A estrutura, enquanto
algo que sistemicamente tem uma duração, bem como sua condensação e sua
confirmação, através de operações do sistema, somente pode ser entendida
enquanto referida a operações que não têm duração dilatada no tempo. Isto não
significa que a operação não possa ser observada; e que para tal observação seja
necessária uma mínima duração: como exemplo o próprio autor se refere à obser-
vação de operação cuja duração mínima seria o tempo que se leva para procla-
mar uma sentença.' 5
Faz-se, então, necessária a diferenciação entre operação e observação. A
observação também é uma operação do sistema, mas que, enquanto operação
Beste, produz um novo estado no próprio sistema observador. As próprias opera-
ções de base do sistema pressupõem uma observação, pois se não houver uma
;'auto-observação" simultânea o sistema não é capaz de operar a si mesmo auto-
jpoieticamente. Assim é que podemos entender os sistemas autopoicticos como
jsendo sistemas auto-referenciais. E enquanto sistemas auto-referenciais esta
jcaracterisitica "referencial" deve ser entendida em termos de "descrição", i.e.,
como uma descrição capaz de ser levada adiante em um dado contexto frente a
p W t r a s possibilidades. É desta forma que o sistema constrói a si mesmo: se distin-
' guindo dos demais, enfim, descrevendo a si mesmo como algo diferenciado do
ambiente. Dessa maneira é que o sistema leva adiante a observação com a ajuda
da auto-referência e, também, portanto, da hetero-referência. Isto porque obser-
vação e auto-referência se implicam mutuamente, pois somente se pode falar em
V i observação e observador na medida em que este seja, e se enxergue, como algo
diferente e distinto de um ambiente observado. O sistema somente se torna
observável na medida em que descreve a si mesmo. 16 tf
l
A operação do sistema jurídico está intimamente ligada à auto-observação: /
o sistema que se observa como diferente do ambiente acaba se reproduzindo, jus-
tamente, a partir desta observação que, aliás, possibilita a autopoiesis. A observa-
ção somente pode ocorrer na medida em que também se pode vislumbrar uma
auto e uma hetero-referência. E esta auto-referência - enquanto autodescrição -
se dá na medida em que o Direito se descreve como algo que se auto-realiza. A

15 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit„ p. 50.
16 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 52.

95
Lúcio Antônio Chamon Junior

auto-referência se reflete em todas as operações sistêmicas: das mais simples


àquelas que pretendem à auto-descrição do sistema no sistema. 17
Mas o que nos permite afirmar que o Direito é um sistema diferenciado e
enclausurado operacionalmente? Partindo de uma crítica às propostas funciona-
listas anteriores que seriam orientadas pela noção de divisão do trabalho - e aqui
DURKHEIM teria toda uma importância para a discussão - , entende LUHMANN ser
incapaz continuar afirmando que somente a especificação funcional do sistema é
que garante sua diferenciação; antes se refere a a) uma função específica, isto é,
à orientação a u m problema social específico e b) a uma codificação binaria do
sistema em que temos envolvidos um valor positivo e um valor negativo. Referir-
se à função do Direito não desempenharia, segundo LUHMANN, qualquer papel
dotado de relevância na argumentação jurídica. 18 Mais adiante retomaremos à
questão do código, da função, da programação e da observação de segunda ordem
a serem tomadas em conta no interior do sistema jurídico.
Porém, na medida em que o Direito opera comunicativamente, isto é, a
comunicação é a operação que marca o seu funcionamento, como diferenciar o
Direito do seu próprio ambiente social? De outra forma: o que nos permite afir-
mar a especificidade da comunicação jurídica da Sociedade? |
LUHMANN parte da crítica àqueles que pretendem enxergar o sistema jurídi-
co como composto por pessoas e seus respectivos papéis, quando se faria nítida a
referência a um corpo de especialistas capaz de determinar a operacionalização
do sistema do Direito. Criticando essa orientação para as pessoas, conseqüente-
mente o que deveria ser tomado como relevante seriam os comportamentos das
pessoas. Como o autor esclarece, todos os comportamentos ou são proibidos, ou
são permitidos, sem que com isto haja a consideração necessária de que todos os
comportamentos sao operações referidas internamente ao sistema jurídico,19 Isto
porque as operações dos sistemas não podem ser compreendidas como meros
comportamentos, mas antes como comunicações que, em razão da clausura ope-j
racional, referem-se de maneira recursiva a outras comunicações do próprio sis-
tema, permitindo, assim, a construção do sentido e estabelecimento de uma
capacidade de conexão. Mas referida comunicação há que ser especificada sob
pena de se confundir com a totalidade da Sociedade, com o universo de comuni-
cações constitutivas da Sociedade. E é aqui que desponta a relevância do código
do sistema: somente comunicações que adjudiquem, imprimam os valores licitu-
de/ilicitude - Recht/Unrecht - é que poderão ser consideradas como comunica-
ções estabelecidas no sistema do Direito.

17 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.: LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, rit., p. 53.
18 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, cit., p. 60.
19 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LumtANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, cit., p. 65.

%
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

E neste sentido é que se deve perceber que as comunicações jurídicas podem


estar ligadas aos mais diversos motivos, sem que com isto deixe de haver a pró-
pria operação do sistema do Direito.
Aliás, compreendendo as operações sistêmicas como comunicações orienta-
das por um código específico, conclui LUHMANN que, desde uma perspectiva
investigativa, há que ser ressaltado o fato de que quantitativamente o sistema
jurídico opera para muito além daquele núcleo profissional organizado - ainda
que isto se mostre complicado dentro da própria teoria de LUHMANN, como será
a frente melhor explicitado - , eqüivalendo dizer que há também a imposição do
código licitude/ilicitude em comunicações que cotidianamente se podem verifi-
car em condições bastante diversas.
E neste sentido é que se pode afirmar que há uma clausura operacional: na
medida em que as comunicações se orientam por um dado código - cuja relevân-
cia das motivações não se toma em conta - , se referindo ao sistema do Direito,
isto implica a inexistência de outra instância na Sociedade capaz de determinar
aquilo conforme, ou discordante, ao Direito. 20
O que se pode concluir é que a unidade do sistema vem dáda pela codi-
ficação que permite, do ponto de vista sistêmico, distinguir aquilo que é
Direito e aquilo que não é Direito. O acento de LUHMANN à questão da u n i -
dade do sistema jurídico na pluralidade das comunicações se deve ao fato de
pretender rechaçar qualquer referência a uma norma superior capaz de
"explicar" a unidade do sistema jurídico - ainda que isto se mostre bem pro-
blemático na medida em que, como será ainda tratado, o autor lança mão da
igualdade enquanto um programa normativo indispensável - de um ponto
de vista funcional - p a r a o piróprio sistema. A crítica de LUHMANN se refere
antes à norma fundamental de KELSEN, OU à regra de reconhecimento de
HART, que, enquanto estruturas idealizadas, não permitiriam a constatação
do porquê uma operação jurídica poderia, em variados contextos, ser consi-
derada como jurídica - isto, em KELSEN, ao menos, leva a complicações do
ponto de vista de sua teoria da "interpretação" e ao seu giro decisionista-
funcional firmado em 1960.
O código para LUHMANN não é qualquer norma, enfim, não há que ser enten-
dido enquanto norma, mas, antes, a estrutura de um mecanismo de reconheci-
mento e atribuição da autopoiesis da Sociedade: pode-se afirmar que a comunica-
ção é jurídica quando se orienta pelo código licitude/ilicitude. O código, portan-
to, aparece como "neutro", uma vez que manipulável de maneira universal, com
independência do conteúdo de cada comunicação, e nos permitindo começar a

20 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Cesellschafi, cit., p. 67.

97
Lúcio Antônio Chamon Júnior

vislumbrar a possibilidade de entender a clausura do sistema enquanto unidade de


uma diferença, 21 da diferença sistema/ambiente - Direito/não-Direito. Isto, repi-
ta-se, não pode ser definido somente em termos da função sistêmica.
A função do Direito não é capaz de ser aquilo a explicar a diferenciação do
Direito, isto é, não permite, por si, delimitar quais operações hão que ser tomadas
como jurídicas pelo fato de se diferenciarem de outras comunicações. A grande
referência que LUHMANN faz diz respeito ao código do Direito: somente este códi-
go é capaz de permitir a unidade e conseqüente clausura operacional do sistema,
l' Em outras palavras, o que se pretende afirmar é que o sistema somente ganha em
operacionalidade quando se pode pensá-lo como atrelado a um código binário e
j universal e que, em assim sendo, pode ser "excitado" por qualquer comunicação
. independentemente dos motivos que tenha o observador primário22
E é assim que podemos entender o sentido de clausura a que o autor mesmo
se refere: a clausura, quando percebe que o código pode ser manipulado univer-
salmente - independentemente dos motivos das pessoas - e excitado, portanto,
por qualquer comunicação, refere-se justamente ao fato de que o Direito deter-
mina não somente o que é conforme ao Direito, mas também o contrário ao
mesmo, além de marcar em quais condições isto há que ser reconhecido. É assim
que podemos compreender que a referência a qualquer comunicação, capaz de
ser enfocada sob o código binário do Direito, somente pode ser entendida como
uma comunicação jurídica, isto é, que ocorre internamente ao própriojistema 2 3
- ainda que para tanto devamos ainda tomar em conta a figurado"re-entry. )
Temos que a unidade do sistema só pode ser observada ^cümo-unidaíle na
medida em que ela é reproduzida em qualquer - e em todas - as operações do sis-
tema. Isto somente pode ser compreendido quando percebemos que as comuni-
cações que se orientam pelo código licitude/ilicitude unicamente podem ocorrer
internamente ao sistema e, segundo tal bivalência, de maneira que a unidade do
Direito, frente ao seu ambiente, se mantenha reproduzida em toda operação do
próprio sistema. Assim é que LUHMANN critica KELSEN quando este propõe uma
norma fundamental para se pensar a uhidade da ordem jurídica. A conclusão a
que LUHMANN chega é que a norma fundamental, enquanto norma pará o próprio
KELSEN, ainda que pressuposta, é incapaz de explicar a unidade do sistema em
razão de que a pfópria unidade estaria encarnada em uma operação do sistema 24

21 LUHMANN, Niklas. ElDeiecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rccht der Geselkchaft, cit., p. 70.
22 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 72.
23 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 72.
Isto não impede que um mesmo comportamento possa ser "valorado" pelo código de outro sistema ainda
que simultaneamente.
24 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 73.

98
i Filosofia do Direito na Alta'Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas

- o que levaria a um regresso infinito ou a um paradoxo: 25 a unidade, enfim, para


a Teoria dos Sistemas não há que ser introduzida, como a norma fundamental;
ela mesma é o resultado da clausura operacional do sistema que, assim sendo,
pode ser observada, mas não introduzida.
A unidade do sistema - que, enquanto resultado das operações sistêmicas,
não pode ser entendida como componente das próprias operações, ou ainda
como sendo capaz de ser introduzida por uma norma hierarquicamente superior
e pressuposta - , ao ser observada, o será por um outro sistema autopoietico - ou
ainda pelo próprio Direito. Aqui temos a relevância da distinção entre auto-refe-
rência e hetero-referência. Mas o que vale ressaltar ainda é o fato de que a uni-
dade não há que ser observada do ponto de vista a partir do qual, simultanea-
mente, todas as operações, elementos e relações possam ser observados: isto
somente se pode dar de maneira simplificada seja na auto ou na hetero-referên-
cia; não é possível observar a completude do sistema. 26
Todavia, afirmar esta unidade - em razão da possibilidade de observação
da mesma - não implica afirmar que a clausura operacional, que permite esta
própria unidade, se revela como um isolamento do sistema frente ao seu recí-
proco ambiente. Se o sistema se apresenta como unidade de uma diferença,
temos, justamente, uma recíproca distinção entre sistema e ambiente e que, em
assim sendo, é capaz de permitir a observação de um intercâmbio entre ambos.
jO sistema não é isolado do seu ambiente. A clausura, ou fechamento opej-acio-
|nal, somente é capaz de ser entendida na medida em que se refere à rede de
joperações internas recursivas e que, justamente por assim serem, permitem a
jafirmação de se tratar de um sistema que se auto-reproduz, enfim, que é auto-
jpípoiético. E o sistema se apresenta como sendo aberto ao seu ambiente, sem que
listo implique uma desnaturação de suas próprias operações (internas). Isto por-
que o sistema do Direito - como qualquer sistema autopoiético - é operacio-
nalmente fechado, embora seja cognitivamente aberto. A abertura cognitiva se
s dá, todavia, em termos internamente definidos pelo próprio sistema do Direito:
aqui ganha relevância a distinção entre auto-referência e hetero-referência -
enfim, ja abertura do sistema, enquanto abertura cognitiva, tem a ver com a
hetero-referência referida ao próprio sistema, isto é, levada adiante pelo pró-
U prio sistema. 27
A afirmação da clausura operacional tem antes a ver com a necessidade,
segundo LUHMANN, de se distinguir o Direito da Moral. Aqui toma o autor "Moral"
em sentido diferenciado de HABERMAS: enquanto a Moral para este pode ser

46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.

99
í I
Lúcio Antônio Chamon Júnior

entendida, em síntese, como sistema de saber de normas válidas com base no prin •
cípio da universalização, para LUHMANN a Moral se apresenta como sendo algo
particular, embora ambos reconheçam - ainda que de pontos de vista diferencia -
dos - que na Modernidade a Moral não é capaz de cobrar cumprimento imediata
- e LUHMANN vai afirmar que esta impossibilidade se dá, justamente, dentro do sisj-
tema do Direito como maneira de forçar o reconhecimento da clausura operacioj-
nal: o Direito deve consistentemente decidir juridicamente e não moralmente.].
Somente quando se toma o Direito, como funcionalmente diferenciado, enfim,
enquanto sistema dotado de unidade e fechamento operacional é que se pode perj-
mitir levar adiante uma delimitação entre Direito e seu ambiente.
E aqui cabe ressaltar que a diferença entre clausura operacional e abertura
cognitiva tem a ver com a diferença com que são esperadas as expectatival
Desde um ponto de vista da observação de primeira ordem o sistema jurídico
somente pode esperar a expectativa normativamente, enfim, de maneira contra-
fática, pois do contrário haveria uma abertura operacional do próprio sistemE,
Mas desde uma observação de segunda ordem, que será melhor esclarecida
adiante, pode-se perceber - em razão da auto e da hetero-referência - uma dis-
tinção entre expectativas normativas e cognitivas, respectivamente.
A clausura operacional não significa somente que se deve manter estáveis zs
normas jurídicas frente a decepções (expectativa normativa) - isto, enfim,
somente pode ser explicado em termos de seqüência de operações que gera a prc-
pria estabilidade marcada por uma determinada praxis. Aqui podemos também
1
ressaltar que, em sentido mais amplo, e também abrangente do anteriormente
exposto, a clausura consiste no fato de que a auto-observação se orienta pelp
código do próprio sistema, enfim, que no caso do Direito a auto-observaçãjo
segue o esquema licitude/ilicitude. Com isto, em razão da hetero-referêncià,
pode-se observar através de suas próprias operações um contexto cognitivo qüe
possibilite a modificação de normas - como, por exemplo, quando já não mais
sejam aceitáveis determinadas conseqüências jurídicas, ou ainda mesmo em
razão de valorações acerca das normas específicas. 28 Mas a percepção desta aber-
tura cognitiva somente pode ser compreendida enquanto hetero-referência: para
tanto isto não implica uma clausura neste mesmo contexto cognitivo originário
da própria observação, mas há a necessidade da criação de um contexto norma-
tivo: a abertura cognitiva se dá em um sistema fechado operacionalmente
somente sob a condição de se integrar, v.g., a norma modificada e que, assim, fora
fruto de uma irritação pelo ambiente, à própria praxis.

28 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cie.: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaír, cit., p. 81.

100
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

A clausura operacional implica que o Direito deve continuar operando juri-~J|


dicamente, não obstante a possibilidade da criação de u m contexto cognitivo que
pode ser interessante para se levar adiante as próprias modificações internas do
sistema. O que não se pode verificar é a intromissão constante do ambiente no
sistema: do contrário, este entraria em corrupção, deixando de operar com seu
próprio código, simplesmente '^simulando juridlcTdadej, quando na verdade o
Direito se apresentaria como ocasionalmente funcionando como sistema.
Interessante é que LUHMANN, quando déste ponto, cita a obra de MARCELO N E V E S J
Verfassung und Positivitàt des Rechts in\derperípheren Modeme: Eine theorís-'
che Betrachtung und eine Darstellung des Falls Brasilien.29
Mas retomando a questão das prestações entre clausura normativa ou ope-
racional e abertura cognitiva - somente possível em termos de auto-referência e
hetero-referência - , entende LUHMANN - e aqui isto é muito relevante para a
Dogmática jurídica - que a forma típica de combinação da clausura e da abertu-
ra é oferecida pela noção de programa condicional.30 Como o próprio nome já
nos indica, este programa exige que as regras normativas sejam formuladas de
modo a permitir uma possível dedução a partir dos fatos: se ocorre a, então a
decisão b é conforme o Direito. A questão é que os fatos são determinados cog-
nitivamente; para a norma em si não há qualquer alteração se a realidade nela
especificada existe, ou não: o que importa é o fato de aquela realidade ser deci-
dida como presente, ou não, de maneira cognitiva; mas, obviamente, esta i n f o r _
mação há que ser considerada somente do ponto de vista interno. A abertura i
cognitiva, por fim, implica que o sistema gera informações que atribui ao
ambiente, embora isto somejnte se possa determinar internamente ao próprio sis-
tema. Isto, nitidamente, significa que os fatos não podem modificar as normas:
do contrário o Direito não poderia_estar referida A_§?g3ectativas que se^speram
normativamente. Mas é justamente em razão de uma clausura operacional que o
Direito pode abrir-se cognitivamente a inúmeros fatos e estados de seu ambien- ^
te. O fato de o Direito aprender que determinados sintomas implicam não-higi- /
dez psíquica - enfim, esta abertura cognitiva - é re-orientado internamente
como inimputabildiade - desde uma perspectiva que leve em conta a própria
clausura operacional. 31
A distinção estabelecida pelo autor entre fatos/normas na verdade represen-
ta, dentro do sistema, a distinção entre hetero/auto-referência, o que já, embora
muito bem lembre o próprio KELSEN quando, neste momento, tomamos contato •
com um dos pontos talvez mais "kelsenianos" da teoria luhmanniana. A partir do

29 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 81.
30 Mais adiante explicitaremos o que venha a ser programa condicional.
31 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 86.

101
Lúcio Antônio Chamon Júnior

momento em que LUHMANN explicitou que não somente os comportamentos


referidos aos experts são capazes de serem reconhecidos como referidos ao
Direito - justamente pelo fato de se deslocar a questão do ponto de vista pessoal-
profissional, em clara alusão indireta a WEBER, para uma consideração comuni-
cativa afirma que no cotidiano temos um número quantitativamente bem
maior de comunicações orientadas pelo código do Direito. Assim, o contrato
seria uma comunicação interna ao sistema. Mas e se perguntássemos pelo "cos-
tume"? Se deslocássemos a questão para indagar se é juridicamente possível falar
em "cheque pré(pós!)-datado", v.g., no Direito brasileiro?
LUHMANN afirma que desde que haja um procedimento segundo o qual seja
possível decidir se se conforma, ou não, ao Direito, o "direito consuetudinário",
isto acabaria, para o próprio autor e de maneira ejcplícita, sendo um reconheci-
mento e uma referência interna ao próprio sistema jurídico - reconhecimento em
termos de uma possível decisão dependente da existência de um procedimento. E
afirma: o direito consuetudinário somente é capaz de ser atualmente considerado
como válido na exata medida em que os juizes se apoiam neste tipo de decisão..?2
Mas se perguntássemos por que ao juiz é dada a possibilidade de decidir
conforme estes costumes? A proposta de LUHMANN recai no perigo que a teoria
kelseniana caiu, qual seja, de migrar rumo a um "decisionismo-funcional" que,
em situações como a ilustrada, não permite uma racionalidade da decisão - em
termos comunicativos e que pressupõe uma dimensão pragmática. 33
O problema é que LUHMANN, pretendendo negar uma herança weberiana de
vinculação pessoal e referente a papéis daqueles que se poderia considerar como
experts - por entender o Direito como um sistema de comunicações e não de pes-
soas - , acaba contradizendo o que se propunha ao concluir que as "práticas con-
suetudinárias" - enquanto "normas externas" ao sistema jurídico - somente pas-
sariam a ser consideradas normas jurídicas através de um reconhecimento neces-
sariamente dependente de uma decisão institucional: mas se se pergunta por que
esta específica decisão é capaz de ser considerada legítima a teoria se perde... Se
LUHMANN pretende enxergar que norjnas jurídicas só alcançam estabilidade em
seara institucional, parece mesmo que sua teoria se abre à possibilidade de inú-
meras críticas - mesmo porque a questão da legitimidade, em termos fortes, não
lhe interessa, como se verá mais a frente.
Ainda devemos continuar, em outro sentido, esclarecendo que para
LUHMANN não se deve proceder a uma equivalência entre a distinção normati-

32 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der Gesellschaft, cit., p. 88.
33 Sobre nossas considerações a essa temática, igualmente cf. CHAMON JÚNIOR; Lúcio Antônio. Teoria da
Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes no Direito
moderno. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009, cap. 05.

102
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

vo/cognitivo e a distinção sistema/ambiente. O próprio sistema pode reconhecer


como fatos, isto é, cognitivamente, a existência de determinadas normas que não
sejam jurídicas e que estejam referidas ao ambiente. Por outro lado o sistema do
Direito pode também aprender, isto é, processar internamente, informações que
llhe foram cognitivamente acessíveis: o importante é, todavia, ressaltar'que a
Estabilidade contrafárica permanece refletindo não só a auto-referência como
tlambém a clausura operacional. E na medida em que sistema e ambiente coexis-
tem simultaneamente é possível ao sistema se refirir à auto-referência ou à hete-
ro-referência pelo fato de, justamente, haver internalizado sua forma através do
te-entry. Neste sentido , como propõe o autor, pode ser que o problema a ser
zpresentado em uma decisão consista ora na determinação dos fatos (hetero-refe-
tência), ora na interpretação das normas (auto-referência). Tudo isto se daria sem
que se ultrapasse a própria diferença sistema/ambiente, na exata medida em que
se procederia à observação que lança mão do código do próprio sistema.3-1

"L Do Direito como sistema funcion

A partir do momento em que LUHMANN estabelece o Direito como um sistema


sbcial de função que, portanto, opera comunicativamente de maneira enclausurada,
ele afirma que este mesmo sistema possui uma função específica, própria, e que não
á capaz de ser cumprida por qualquer outro sistema. Isto significa que, embora a
referência simplesmente à função não permita, para o autor, e rompendo com a tra-
cição durkheimiana, afirmar que o sistema tenha uma rede operacional recursiva e,
assim, fechada, por outro lado reconhece que a função do Direito somente pode ser
Cumprida na medida em que o observamos enquanto um sistema diferenciado dos
^demais. Isto significa que o Direito é tun sistema funcionalmente diferenciado,
embora a função, por si só, não seja capaz de lograr esta mesma diferenciação - há
i aj dependência da codificação (e da programação) para tanto.
Mas quando o autor indaga pela função do Direito procura, na verdade, res-
ponder qual problema da Sociedade é resolvido através do processo de diferen-
ciação do sistema jurídico e, por conseguinte, de diferenciação das normas jurí-
dicas. Assim é que propõe que o Direito resolve um problema temporal que se
fiz na comunicação. Pode a comunicação se bastar - como expressão, ou como
prática - , mas também pode ocorrer que não se baste, tendo que orientar e
expressar expectativas que implicam tempo?5 LUHMANN não aprofunda quando
- e por que - a comunicação "basta a si mesma" e quando seja - e por que - neces-

34 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHJÍIANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/t, cit., p. 92.
3? LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 124.

103
Lúcio Antônio Chamon Junior

sário o estabelecimento de expectativas. Apenas afirma que a função do Direito


tem a ver com expectativas e estas hão que ser entendidas não somente enquan-
to estado psíquico individual - enquanto ambiente do Direito mas antes tam-
bém no sentido de que se trata de uma dimensão temporal da comunicação.
Se contrapondo a leituras sociológicas que afirmam ser a função do Direitc
a de possibilitar uma "integração social" - e aqui o autor se refere explicitamen-
te a HABERMAS em nota - , LUHMANN pretende ressaltar uma "dimensão tempo-
ral", uma vez que integração social ou controle social seriam conceitos antes;
referidos à compreensão dos sistemas sociais, sendo que ao enfocá-los corre-se c
risco de não perceber as "singularidades do Direito", o que leva o autor a coloca:1
em dúvida a própria função de integração do Direito, não obstante reconheça sua
inegável relevância social enquanto sistema social. Mas esta relevância é enten -
dida não enquanto pretenso papel de "integração", mas antes enquanto referên -
cias à estabilização de expectativas temporais.36
E aqui entramos em um ponto fundamental para a compreensão da propos -
ta de LUHMANN: todas as operações sociais empregam tempo, i.e., todas as comu-
nicações - ainda que enquanto operações não tenham duração, porque instanta-
neamente desaparecem - dependem de uma rede de operações já realizadas nó
passado além de possíveis enlaces a. serem levados a diante no futuro. Mas há um
ponto importante: naquele instante a comunicação fixa o tempo, no sentido de
que determina o estado do sistema a partir do qual, enquanto máquina históricá,
deverá passar a operar. Diferentemente é a fixação do sentido que se dá através
de repetições: esta fixação há que ser entendida como semântica, enquanto fixa-
ção do sentido de palavras, conceitos, etc. 37 A reutilização de sentido, enquanto
um sentido que se estabelece fixamente na linguagem, requer a) uma condensa-
ção, no sentido de se produzir invariâncias capazes de serem identificadas em
contextos diversos - o que permite a reutilização do sentido em outros contex-
tos; além de b) haver uma confirmação, na medida em que somente quando nas
operações futuras haja uma seleção, somente quando o sentido em questão é con-
firmado. enfim, selecionado, é que podemos afirmar que pode haver reutilização
do sentido de maneira que haja uma redução do espectro da arbitrariedade da
relação entre signo e significante. Isto somente pode ser alcançado, do ponto de
vista do tratamento adequado da linguagem, se se aceitam determinadas normas
aceirca da forma correta de falar - embora possa ser reconhecido que isto se dê
de outra maneira. Com isto, esta normatividade fundante - para usar a própria

36 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchafi, cit., p. 125.
37 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GesellschaJi, cit., pp.
126-127.

104
i Filosofia do Direito na Alta'Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas

expressão de LUHMANN! - reduz a contingência e, conseqüentemente, a possibi-


lidade da anomia com a diminuição da arbitrariedade - este é justamente o
ponto a partir do qual HABERMAS, levando a sério e noutros termos, parte, de uma
pragmática-universal, para sua teoria filosófica acerca do Direito e que o próprio
LUHMANN não leva tão em conta, o que lhe causa sérias dificuldades em termos
operacionais e legitimatórios do Direito.
Tomando em conta estas construções, que nos serão, como indicado, muito
úteis quando de uma crítica à própria teoria luhmanniana, o autor se refere ao
fato de que tanto o Direito quanto o não-D^reito - enquanto formas do sistema,
e não do código - são distinções estabelecidas no interior do sistema social
(Sociedade); o que, enfim, implica uma determinação comunicativa. O lado
negativo - não-Direito, enquanto ambiente - também permite verificar que
neste pode haver o estabelecimento de comunicações. No sistema jurídico não
somente temos uma valoraçãq da comunicação ambiental, enquanto tal, senão
também da comunicação referente a todos os modos de comportamento que o
Direito tanto abarca, quanto normatiza,39 Para tanto, reconhece LUHMANN que
somente se pode pensar isto incluindo as condições de desautorização dos signos,
além de considerar não só a fixação de sentido, mas também a fixação do tempo:
e isto unicamente pode ser alcançado se se introduz expectativas que, uma vez
tomadas em conta, faz com que a liberdade do comportamento seja reduzida. ísto
não impediria que se atuasse contrariamente às expectativas, mas tão-somente
que tal comportamento já estaria prejudicado em razão do referido enlace tem-
poral projetado ao futuro, embora determinado anteriormente.
E aqui devemos ressaltar que para a Teoria dos Sistemas somente se pode
falar nestes enlaces temporais marcados pelas expectativas porque se quer, em
um futuro incerto, ter uma certa "segurança" frente a uma incerteza. Somente
podemos entender a função do Direito na medida em que observamos esta rela-
ção do mesmo com o futuro, razão pela qual surge a necessidade de uma simbo-
lização: as normas jurídicas são expectativas simbolicamente generalizadas. A
simbolização diz antes respeito ao fato de se referirem ao futuro. E quando
LUHMANN realça este aspecto temporal do Direito ele não se preocupa com a
questão da vigência, mas antes se atém à questão referente à função das normas:
o projeto de se preparar, de se precaver, ao menos em nível de expectativas, fren-
te a um futuro totalmente incerto. 40
Mas o estabelecimento de uma segurança na insegurança que representa o
futuro produz uma tensão na sociedade. Esta tensão se estabelece na medida em

46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.

105
Lúcio Antônio Chamon Júnior

que o aumento - "intensificação" e "extensificação" - destes enlaces temporais


não se obtém sem um custo social. Isto porque um aumento desta "intensifica-
ção" de enlaces normativos temporalmente caracterizados produzem sempre
novas oportunidades de consenso e dissenso - e é justamente esta forma que cria
uma tensão. Os enlaces temporais acabam por gerar também desvios e conformi-
dades com a expectativa. Quando LUHMANN afirma que há uma tensão social, ele
a afirma entre a dimensão temporal e a dimensão social - e por dimensão social
o autor afirma a dimensão do sentido - , razão pela qual, inclusive, procedeu
anteriormente a uma diferenciação entre fixação no tempo e fixação do sentido.
Embora o autor reconheça que analiticamente trata-se de uma possibilidade
plausível proceder a esta distinção, o mesmo reconhece que empirícamente não
é possível isolá-las na medida em que as dimensões de sentido estariam implíci-
tas'em toda a vivência... O próprio LUHMANN afirma que tal tensão deve encon-
trar determinados limites, 41 porém sua teoria apresentará ainda muitos proble-
mas conectados a esta "tensão" quando referirmos à validade do Direito.
Interessante notar que o autor vai se referir aos programas como sendo res-
ponsáveis - caso a caso - a proceder à adjudicação dos valores licitude/ilicitude a
fim de manter os enlaces temporais e a capacidade de consenso/dissenso em uma
zona de compatibilidade mútua, enfim, como dotados de uma certa função
j*~'"equilibradora". E com isto evita LUHMANN afirmar que o Direito se apresenta
como sendo dotado tão-somente de uma função objetual - de equilíbrio e com-
>, patibilidade mútua - para compreendê-lo como sistema: certamente em crítica a
uma certa interpretação da obra de HABERMAS em que o Direito, repita-se, é
tomado como forma de mediação social da tensão estabelecida entre faticidade e
! validade.
De toda forma, o autor entende que a função do Direito é uma função de
estabilização das expectativas normativas mediante a reguláção de sua generali-
zação temporal, social e objetual. Mas isto ainda deixa obscura a assertiva do pró-
, prio autor no sentido de que o Direito permite saber quais expectativas tem um
í respaldo social, e quais não... |
A segurança que é buscada nas expectativas normativas - a partir do
momento que enlaçam o futuro - implica uma certa confiança42 quando se pode
confiar no próprio Direito. De qualquer maneira o Direito se apresenta como
dotado de uma só função na medida em que o enfoque está corretamente orien-
tado à questão do processo de diferenciação de um sistema social.

41 LUHMANN, Niklas, El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recbt der Gesellscbaã, rit., p. 131.
42 Acerca das noções de confiança e risco na Teoria dos Sistemas, cf. nosso: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio.
Imputaçio objetiva e risco no Direito Penal: do funcionalismo à teoria discursiva do delito. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005.

106
I

Filosofia do Direito na Alta Modernidade


Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Dentro de todo o quadro delineado podemos, então, introduzir que a com-


preensão da norma para a Teoria dos Sistemas não deve ser buscada em termos
dogmáticos, mas em uma definição funcional e que tenha a ver com o modo nor-
mativo das expectativas. Isto significa que a norma, enquanto expectativa, deve
ser entendida estritamente como uma expectativa que se estabiliza contrafatica-
mente, isto é, ainda que os fatos a contrariem - diferentemente da expectativa
cognitiva que, enquanto tal, uma vez frustrada, não é capaz de se manter frente
à decepção - , ela se mantém em pé.
Assim, é que ainda é marcante para a noção funcional de norma a referên-
cia ao fato de que as motivações são descartadas para analisar se houve, ou não,
seu cumprimento. Do contrário, se a noção de motivação tivesse que ser tomada
para a verificação do cumprimento, ou não, da norma, esta não poderia já cum-
prir sua função 43 - a questão estaria deslocada de um plano comunicativo para a
dependência psíquica de quem a cumpriu, ou não. A função da norma não é, em
momento algum, orientar motivações, mas antes estabilizar-se: estabilizar-se
frente aos fatos que podem decepcionar as expectativas. Assim, também é por
demais equivocado afirmar que a norma, enquanto expectativa generalizada,
jassegura um determinado comportamento conforme a mesma; como esclarece o
jautor, ela protege quem tem a expectativa que fora decepcionada. 44
Mas o fato de a expectativa ser afirmada como normativa não implica sua
juridicidade: a norma adquire a característica jurídica em razão de uma distinção
que se dá internamente ao próprio Direito. Isto porque não são somente as nor-
mas jurídicas expectativas normativas: existem milhares de normas que, não obs-
tante, não podem ser consideradas como jurídicas.
Entende LUHMANN que se um sistema há que ser observado enquanto funcio-
nalmente diferenciado, e na medida em que a função se liga a um problema a ser
resolvido, a formação de um sistema leva a uma extração da vida social cotidiana
de somente determinadas expectativas consideradas um tanto problemáticas.
Enfim, o sistema, em razão de sua função, somente procede a uma reação tendo
em vista a improbabilidade do êxito comunicativo - algo também central, ainda
que trabalhado noutros termos, para HABERMAS - que, com a evolução social, é
sempre aumentada.
Na medida em que temos um aumento da complexidade e crescimento
quantitativo das expectativas normativas - "normas consuetudinárias", normas
morais, etc. - , ao Direito cabe estabilizar as expectativas normativas e isto

43 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rccht der Gesellschaã, cit., pp.
132-133.
44 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der GeseUschaft, cit., pp.
134-135.

107
Lúcio Antônio Chamon Júnior

somente alcança quando há uma seleção daquelas expectativas cuja decepção


merecem uma sanção. A Moral não permite a verificação de êxito nem a proce-
dência de estabilização de normas capazes de gerar uma segurança. Por outro
lado, a juridicidade da norma somente pode ser compreendida se observarmos a
operacionalização recursiva da qual a norma fora estabilizada: é no sistema que
| a norma é capaz de se cristalizar como expectativa estivei. 45
Importante ressaltar aqui é que LUHMANN não deixa de criticar a visão kel-
seniana de que a norma se define em termos de sanção, mas, em outra perspec-
tiva, acaba se socorrendo a esta, embora em nível funcional: o sistema do Direito
somente é capaz de manter as expectativas de comportamento estabilizadas na
medida em que, para sua violação, estejam previstas certas conseqüências^
Embora a sanção não caracterize a norma ou defina o que é a norma jurídica, ela
ganha importância em uma perspectiva funcional - e neste sentido HABERMAS
também concordaria. O mais interessante é que LUHMANN vai se referir à seleção
de determinadas expectativas consideradas problemáticas, justamente no marco
de uma improbabilidade de êxito comunicativo em razão do incremento de com-
plexidade social.
Ainda que HABERMAS também se oriente em sentido convergente, o que
devemos aqui ressaltar é que LUHMANN não estabelece a adequada conexão entre
esta questão e a referida tensão que o mesmo reconhece e edifica entre a "dimen-
são temporal" e a "dimensão social". É claro que tendo em conta a "dimensão
social", enquanto referida a uma dimensão de sentido, é que se deve prétender
observar a improbabilidade de êxito comunicativo. Mas quando é estabelecida
pelo autor a tensão com a dimensão temporal, ele deixa de explicar como é possí-
vel, desde uma ótica legitimamente defensável, a própria decisão no sistema, isto
é, como se procede à "extração da vida social cotidiana" de umas, mas não de
outras, expectativas. Se o autor dissolvesse este nó, veria que a tensão refletiria
nova luz cm sua própria teoria.
Mas entendendo que, diferentemente de KELSEN, a sanção para a Teoria dos
Sistemas de LUHMANN somente ganha explicação, e sentido, em nível funcional,]
ainda,vale ressaltar um ponto fulcral: como se pode verificar a projeção para o!
futuro de uma expectativa e sua manutenção em caso de esta mesma expectativa;
não se realizar, i.e., frustrar-se?
O autor parte para a explicação desta pergunta por ele mesmo sugerida afir-
mando que o primeiro ponto a ser tomado é que devemos enxergar o sistema
como sendo diferenciado do ambiente em razão de suas próprias operações, o
que, por sua vez, implica a afirmação de que o próprio sistema se mantém somen-

45 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
136-137.

108
i Filosofia do Direito na Alta'Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas

te no marco de suas operações internas. Disto conclui o autor - sem muito expli-
citar as justificativas para tanto - que, na medida em que temos u m sistema auto-
poiético, este se vê estimulado a garantir sua função, e isto implicaria uma capa-
cidade de prever internamente a continuidade das operações que garantam a sua
função. Pode-se perceber, então, a presença de uma tautologia - reconhecida
pelo autor enquanto tal: o Direito é aquilo que o Direito diz que é Direito.
O que LUHMANN, neste sentido, pretende é explicitar que, se deslocarmos
esta tautologia para a consideração das expectativas normativas, teríamos a
observação de uma relação reflexiva e que as próprias expectativas normativas
seriam esperadas normativamente pelo sistema do Direito. Entender este ponto
reflexivo, enfim, uma operacionalização reflexiva implica, para o autor, uma
não-indiferença do Direito frente a si mesmo, eqüivalendo afirmar que isto
somente é possível na medida em que o modo da expectativa acaba já sendo pre-
determinado no sistema do Direito mesmo, o que garante, inclusive, a diferen-
ciação frente a outros sistemas. 46
E é assim que, frente à Política, LUHMANN defende que o Direito não se afir-
ma em razão de uma prestação ou um "poderoso apoio político", mas, antes, é
dependente da própria maneira com que se aguardam as expectativas normati-
vas: o Direito será "mais Direito" quando mais ainda puder esperar que a própria
expectativa normativa possa ser esperada normativamente. 47 1

Deixando de lado aqui a questão que o autor trabalha em termos de decisão


de órgãos específicos - parlamento, tribunais esta reflexividade, no que diz
respeito ao cotidiano, pode ser observada no exato sentido de que são tomadas
em conta expectativas de expectativas: aquele que teve um direito afetado tam-
bém espera de maneira normativa que as demais pessoas possam reconhecer e
apoiar a sua demanda; ou, ainda,: quando os sujeitos se mostram indiferentes à
afetação do Direito entende o afetado que elas "deveriam" - como LUHMANN
mesmo explicita - tomar partido no sentido de se posicionar de acordo com
aquele que se encontra no seu dirteito de reclamar. 48
Esta reflexividade - bastante nítida nos termos acima referidos - , segundo
LUHMANN, é algo que também permite ao sistema se diferenciar no que diz respei-
to à tomada de decisões no campo específico de certos órgãos, mas, como já expli-
citado, não entraremos aqui nesta questão - carente, todavia, de maiores proble-
matizações.
O fato de o Direito ser entendido como um sistema reflexivo, enfim, que
normativamente permite esperar as expectativas, não implica que o Direito não

46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.

109
Lúcio Antônio Chamon Junior

dependa da Política. Antes, o que fora afiignado é que o Direito, enquanto um


sistema enclausurado operacionalmente, somente pode ser considerado Direito
na medida em que delimita a si mesmo. A tautologia representada por este pen-
samento implica que a Política não é capaz de estabelecer, reflexivamente, quais_
expectativas normativas podem ser esperadas normativamente e, na medida em (í|
que o Direito possui no normas jurídicas como estruturas, somente a ele cabe
determiná-las. Por outro lado, isto não implica uma independência do Direito
frente à Política. Se operacionalmente, e desde uma perspectiva que leva em
conta a diferenciação dos sistemas, o Direito é que determina o próprio Direito,
isto não significa que - em um plano de relevância para a função do Direito - não
haja qualquer dependência daquele frente à Política - e vice-versa.
Ora, e agora se atendo ao próprio pensamento explicitado por LUHMANN,
para a aplicação do Direito há uma dependência da Política na medida exata em
que sem a possibilidade desta imposição não se poderia falar, em qualquer
momento, na existência de uma estabilidade normativa que seja convincente e
atribuível a todos. Mas, por outro lado, a dependência da Política frente ao
Direito implica a utilização deste para a disciplina, enfim, para a normatização
das formas de acesso ao poder político. 49 E as considerações neste sentido têm
toda uma relevância no que se refere à questão da imposição jurídica: o Direito
não tem como função assegurar determinado comportamento.
A construção do Direito, para a Teoria dos Sistemas, levando em conta sua
função, diz respeito ao asseguramento de expectativas, o que implica um deslo-
camento da questão em termos de comportamento para o plano das expectativas.
| A função do Direito é possibilitar a "segurança" de expectativas em um contexto
que se abre para o futuro e que, enquanto tal, é totalmente incerto. Mas, uma vez
frustrada esta expectativa, o Direito tem que continuar mantendo esta expecta-
tiva como sendo uma expectativa normativa, enfim, o Direito tem que continuar
j possibilitando a segurança da expectativa.
Justamente, então, o Direito oferece "substitutos para o cumprimento do
exigido" - multas, penas, indenizações - que somente podem ser impostos com a
ajuda do poder político - o que HXBERMAS vai trabalhar em termos de poder
administrativo. Embora o Direito determine e delimite a si próprio através de
suas próprias operações, isto significa que, não no plano operacional, mas no
plano funcional, o Direito dependa da Política: a dependência é estabelecida em
termos da conservação da função do Direito e não de sua própria operacionaliza-
ção - do contrário haveria corrupção do Direito. Esta dependência, em razão da
função a ser desenvolvida pelo Direito, somente faz sentido quando enfocarmos

49 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der Gesellschaft, cit., p. 150.

110
i Filosofia do Direito na Alta'Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas

sob esta ótica: aliás, nem mesmo o uso da força é, muitas vezes, capaz de impor
o comportamento - que sequer é função do Direito - que seria de se esperar:
basta pensarmos no próprio exemplo de insolvência que o autor explicita.
Mas, para além da específica relação do Direito com a Política, vale ainda
ressaltar que outros sistemas dependem do Direito na medida em que este estabe-
lece uma subvenção, segundo LUHMANN. Então é necessária a distinção fun-
p ção/prestação. A função do Direito é uma só, qual seja, manter a segurança das
expectativas que se constroem normativamente. Mas as prestações que o Direito
pode oferecer têm a ver com a questão dos equivalentes funcionais: nesta hipóte-
se o Direito surge como uma possibilidade, no sentido de segurança última para a
"-"t liberdade. 50 Um determinado sistema, nestes termos, pode procurar solucionar
um conflito de inúmeras formas: no campo familiar os conflitos podem ser resol-
vidos de variadas maneiras, mas a saída jurídica encontra um certo limite na
I medida em que a "juridicização" destes conflitos pode ter conseqüências desastro-
I sas para aqueles que, porventura, pretendam continuar mantendo suas relações.51
Neste sentido é que se afirma que o Direito pode prestar aos demais siste-
mas subvenções-, na exata medida em que sua função se mantém inalterada, o
Direito é capaz de oferecer um equivalente funcional para a solução do conflito
pelo fato de que pode ser considerado como "segurança última" para a liberdade.
Destarte, ao tomar, conjuntamente, a função do Direito com as suas possibi-
lidades de prestações a outros sistemas, podemos considerá-lo como uma espécie
de sistema imunológico, 52 isto é, de sistema que, em assim operando - desde uma
| perspectiva interna, mas possibilitando a outros sistemas determinadas prestações - ,
| imuniza a sociedade. Aqui, em um ponto importante e que HABERMAS também se
preocupa - embora de outra maneira - , LUHMANN entende que a evolução social, e
seu conseqüente aumento de complexidade, nos leva, inevitavelmente, a também
ficarmos atentos ao aumento das divergências no que se refere às projeções das
| normas/- o que o autor deveria ter melhor conectado frente à questão da tensão
que ele edifica frente às dimensões temporal e social. Uma solução "pacífica" -
segundo o autor - haveria que estar apontada para um desenvolvimento do Direito
- a isto regressaremos adiante.

3. A yalidade do Direito em face de seu caráter autopoiético

Muito mais relevante, neste momento - inclusive na busca de uma melhor


articulação das construções teóricas aqui reconstruídas - , é indagar acerca da vali-

46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.

111
Lúcio Antônio Chamon Júnior

dade deste sistema que, enquanto funcionalmente diferenciado e operacionalmen-


te enclausurado, há também que ser entendido como capaz de responder à ques-
tão da validade. Todavia, e aqui, muito antes como maneira de instigar a constru-
ção dos argumentos, do que propriamente já oferecê-los, poderemos perceber que
a teoria luhmanniana não articula adequadamente pontos por ela mesma levanta-
dos como a não-possibilidade de decisões arbitrárias, além da "tensão" que se esta-
belece em um mundo que ela mesma reconhece como completamente permeado
de sentido. A solução para a questão da validade aparece como algo vazio se par-
tirmos na esperança de que o autor solucionará - ou apresentará, ao menos - o
"como" decidir de maneira não arbitrária, superando a tensão - ainda que, ao
mesmo tempo, a estimulando - e cumprindo com a função do Direito.
Referindo-se a RONALD DWORKIN, LUHMANN entende que determinados auto-
res - incluindo, então, DWORKIN - teriam uma necessidade de procurar o sentido
dos textos constitucionais em standards "mais altos" - de cunho "ético-moral" -
sem os quais entenderiam não ser possível alcançar o sentido do próprio texto
constitucional 53 - o que acabaria levando, em última conseqüência, a uma subor-
dinação do Direito à Moral o que, de fundo, teria a ver com a própria questão da
validade do Direito; que assim estaria transferida para especulações morais.
Por outro lado, LUHMANN entende que a Constituição aceita diferentes con-
cepções de mundo, o que não implica, em um nível textual, qualquer preferên-
cia axiológica.54 Argumentando com HABERMAS, poderíamos dizer que esta asser-
tiva se torna adequada quando entendemos a Constituição como "guardiã" de
direitos fundamentais e que, implicando autonomia, no campo do Direito, nos
permite reconhecer uma autonomia privada - e os respectivos direitos que nos
abre a possibilidade de falar em tais liberdades subjetivas. Mas LUHMANN - sur-

53 A teoria luhmanniana, em linhas gerais, entende que DWORKIN estabelece uma des-diferenciação entre
Direito e Moral. Neste sentido interpretativo temos outros teóricos da Teoria dos Sistemas como DE'
GIORCI, Raffaclc. Semântica da idéia de direito subjetivo. Trad. Juliana Neuenschwander Magalhães.
Direito, Democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1 9 9 8 ; NEUENSCHWANDER
MAOAI.HÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios Gerais do Direito
pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-observação: percursos
da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997;
NEUENSCHWANDER MACALHAES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.
Ambos teóricos, se orientando pelas conclusões de LUHMANN, oferecem uma leitura que entendemos ina-
1
dequada da teoria de DWORKIN. Por uma leitura que entendemos mais consistente da obra deste, na medi-
da em que tomo a sério a dimensão deontológica, cf.: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el
dorecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria dei discurso, cit., p. 263; CARVALHO
NEITO. Menclick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para
uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis no Brasil: um pequeno
exercício de Teoria da Constituição. Fórum Administrativo, cit.
54 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaíi, cit., pp.
95-96.

112
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

preendentemente marcado pela perspectiva do Estado de Bem-Estar Social -


afirma que - e não confundamos esta afirmação com a assertiva do próprio autor
acima relatada como sendo complementares, porque na verdade se mostram
incompatíveis! - , no texto constitucional, se pode perceber uma diversidade de
valores, uma pluralidade de valores que, em seu pluralismo, não encontra qual-
quer regra capaz de resolvê-la.
A conclusão a que chega o autor é que a inexistência de uma "super-regra"
para dirimir qualquer conflito destes valores levaria à conseqüência sistêmica de
que a Constituição pressuporia, portanto, u m sistema jurídico operante que fosse,
portanto, e no marco daquilo constitucionaliriente estabelecido, capaz de decidir
- não arbitrariamente, lembremos - estes conflitos... 55 E isto não levaria a uma
confusão entre operações políticas e operações jurídicas: ambas, segundo
LUHMANN, sempre, e continuamente, decidem sobre valores; à diferença do sis-
tema político, o sistema jurídico segue sendo referido a pretensões de consistên-
cia, consistência interna ao próprio sistema - que poderíamos conectar com a
questão da "não-arbitrariedade", embora não seja adequadamente possível esta-
belecer, no marco da Teoria dos Sistemas, qual decisão seria aquela capaz de não
ser considerada como arbitrária...
Mas esta consistência somente pode ser tomada em conta em um sistema
capaz de ser tomado como dotado de unidade. Assim, o sistema do Direito teria
um símbolo, um símbolo que geraria a unidade do sistema. Este símbolo, justa-
mente por gerar a unidade do, sistema, tem o papel de realizar um enlace entre
as operações que são estabelecidas internamente no próprio sistema, sem o qual
não seria possível se referir aojmesmo como dotado de uma recursividade opera-
cional, i.e., não seria possível falar no sistema como uma unidade. LUHMANN
explica a escolha do conceito ''símbolo" na medida em que este - dentro da ótica
interna ao próprio sistema - tem a função de conservar e reproduzir a unidade
sistêmica 56 e, no sistema do Direito, segundo o autor é a validade jurídica que
alcança este papel. Somente a validade jurídica - o que em termos kelsenianos
não se mostraria inadequado, embora sob perspectiva bem diferente porque
escalonada, piramidal e pressupondo uma norma que seria o fundamento último
de validade - seria capaz de garantir a conservação e reprodução da unidade do
sistema na pluralidade de operações deste mesmo sistema - KELSEN falaria da plu-
ralidade de normas...
Assim, a "validade" não é dotada de qualquer gradação, não sendo possível
falar em um sistema "mais" ou "menos" válido. A validade implica a simples acei-

55 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cie.; LUHMANN, Niklas. Das Rechi der GesellschaA, cit., pp.
96-97.
56 LUHMANN. Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafi, cit., p. 98.

113
Lúcio Antônio Chamon Júnior

|
tação da comunicação do ponto de vista interno ao sistema, isto é, a noção de vali-
dade implica a própria autopoiesis do Direito. Neste sentido, não haveria, para
LUHMANN, qualquer impropriedade em afirmar que uma lei inconstitucional seria
válida porque a questão não deve ser enfocada, nos termos expostos, desde uma
visão que leve em conta a qualidade "intrínseca" da norma, mas antes tão-somen-
te deve fazer referência a quais condições o Direito prescreve aquilo que pode ser
qualificado como validade jurídica. 57 O "símbolo da validade" é algo interno, por-
tanto, ao próprio Direito, um símbolo que circula internamente;58 e esta noção de
circulação somente pode ser entendida no sentido de que ela se transfere às opera-
ções seguintes do próprio sistema.
Absorvendo contribuições de PARSONS - segundo o próprio LUHMANN 5 9 - , o
símbolo não é algo estático e que se encontra fora, mas antes é algo interno que,
H"*~no sentido de ser o Direito uma máquina histórica, implica sua transferência às
operações seguintes: a validade, enquanto símbolo da unidade do sistema, será
transferida pelo fato de que as operações subseqüentes, enlaçadas às anteriores
2> (máquina histórica), cumprem as condições de validade estabelecidas pelo pró-
prio Direito. Com isto, alcança a teoria a possibilidade de, em razão desta simbo-
lização da unidade do sistema, qual seja, a diferença Direito válido/Direito invá-
lido, 60 afirmar que uma norma é válida exaltando a conectividade no e ao siste-
| ma jurídico.
Estabelecendo uma crítica a HABERMAS, LUHMANN diz que entender a ques-
tão como referida à "legitimidade da validade", introduzindo uma necessidade de
referência a "qualificações normativàs", bem como o estàbelecimento de uma
"premissa fundamental" - princípio do discurso que, todavia, LUHMANN diz ser
trabalhada em uma "ética do discurso" por HABERMAS, não observando a modifi-
cação no pensamento deste - , não poderia ser capaz de estabelecer a comprova-
ção da não-validade em sede jurisdicional 61 - certamente porque, para LUHMANN,
isto refletiria uma não-conectividade ao sistema, o que, portanto, não caberia ao
próprio sistema jurídico decidir acerca da validade ou não-validade.
Esta postura sistêmica somentè pode ser assumida se se parte de um ponto
de vista de uma descrição ohjetivaiite do Direito e que indaga somente as condi-
ções "formais" de validade do Direito - ainda que com altos custos teórico-ope-
racionais. Não nega o autor que, do ponto de vista de uma descrição interna,

57 LUHMANN, Niklas. H Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GesellschaJt, cit, p. 98.
58 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GeseUschaA, cit., p. 101.
59 LUHMANN, Niklas. B Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchaft, cit, p. 107.
60 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Trad. Héctor Fix Fierro. Teoria de los sistemas sociales: artícu-
los. México: Universidad Iberoamericana, 1998, p. 161.
61 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaít, cit., p. 100.

114
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
I
possa haver a necessidade de se ressaltar outras condições sem as quais não se
poderia aceitar a própria validade.62 Mas, se a proposta é entender a validade
como aquilo que nos possibilita vislumbrar a unidade do sistema, esta mesma
unidade somente se pode perfazer, nestes termos, quando observado o siste-
ma/ambiente de uma proposta objetivante e alheia a uma dimensão normativa.
LUHMANN entende que a validade, apesar de descrita de um ponto de vista
externo, necessariamente está implicada internamente ao próprio sistema, pois,
do contrário, não seria possível imaginá-lo como uma rede recursiva de opera-
ções. Se referindo ao positivismo de KEISEN e HART, LUHMANN entende que estes
autores tiveram a equivocada necessidade de, todavia, remeter ao "exterior" a
questão da validade postulando metanormas como a "norma fundamental" ou a
j "regra do reconhecimento" 63 respectivamente.64
R A validade para LUHMANN há que ser compreendida em termos tão-somen-
te internos e operacionais: a validade é simplesmente a forma através da qual se
pode afirmar que as operações aparecem como conectadas ao sistema, isto é, às
operações anteriores; enfim, a forma com que as operações fazem referência à
sua participação no sistema jurídico na medida em que se encontram adjudica-
das em um contexto possibilitado por operações anteriores e do mesmo sistema.
Implica, enfim, conectividade e recursividade interna das operações, represen-
tando, por fim, a unidade do sistema. A validade, portanto, não pode ser "perso-
nificada" em uma norma fundamental - a validade não é norma, mas um símbo-
lo que, como já explicitado, circula de operação em operação.
* | Devemos, antes, entender, segundo o autor, a validade não como n^rma, ou
conseguinte a uma norma, mas como uma distinção, como uma forma que, em
sendo uma forma no sentido que LUHMANN toma de SPENCER BROWN, marca dois
lados; um positivo e outro negativo. Assim é que a validade é o lado intemo da
forma enquanto a não-validade é o lado externo; esses lados somente podem
cumprir o papel enquanto referidos à operacionalidade do sistema: são asj>ró-
rias-operações internas ao sistema que resultam na distinção entre valida;_,
de/mvalidaidfi^Isto somente pode ser adequadamente concatenado à teoria do
autor na medida em que o Direito, enquanto sistema social de função, é que
determina as suas condições de validade do Direito.66 Isto implica a necessidade
de referência a um símbolo que "gera", enfim, "simboliza" mesmo, a própria uni-

62 L u h m a n n , Nildas. La validei dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 1 5 6 .
63 Acerca das posições de KELSEN e HART, cf. nosso: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Gcral.do Direito
Moderna por uma reconstrução crítico-discursiva na Alta Modernidade, cíl, cap. 02.
64 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 1 5 9 ; LUHMANN,
Nildas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recht der Gesellscllaft, cit., p. 101.
65 LUHMANN, Nildas. El Derecho dc la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 101.
66 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit, p. 161.

115
Lúcio Antônio Chamon Junior

dade na diferença - somente quando surge a possibilidade de o sistema se modi-


ficar em outras palavras, quando surge uma unidade distinguida.
Na medida_em que a validade simboliza a unidade de um sistema que regro -
duz a si mesmo enquanto unidade diferenciada do ambiente, nitidamente pode-
mos perceber que o símbolo da validade passa a ser anexado às próprias expecta-
tivas normativas que são produzidas internamente ao sistema. As normas p a s - j
sam, portanto, a ser qualificadas como válidas, ou não, mas no sentido de u m j
dimensão temporal, e não em um sentido de legitimidade trabalhado por
HABERMAS. A validade surge, portanto, como sendo um símbolo - o símbolo da
unidade - que vai anexado não somente em todas as normas, mas em todas a$_
operações do sistema - e por isto tambémàquelas. Á validade, assim, é trabalha!
da em termos de limitação temporal, como sendo capaz de ser retratável:6?
somente assim se pode compreender a afirmação do autor no sentido de que u m j
modificação do Direito - por legislação, ou contrato - somente se pode efetuar,
enfim, somente pode ser considerada como válida, quando se tem em linha dè
consideração que um certo "direito" não tem mais validade.68
Assim, é que o autor vai entender que a validade, e a própria "validação" d^
operação, é incapaz de ser estabelecida pontualmente e sem referência às opera-
ções que se determinam internamente ao próprio sistema. A validade, _enquantp
símbolo_da unidade, somente pode ser pensada em termos de recursividade, jus-
tamente pelo fato de o Direito, enquanto sistema autopoiético^se apresentar
como uma máquina histórica. O símbolo da unidade pode ser pensado enquanto
vinculado ao efeito de produzir enlaces dentro do sistema jurídico,69 enfim,
designando uma conectividade do e ao sistema. Isto só se torna possível pelo fado
de que a própria validade, simbolizando a unidade, implica, em razão da tomada
em consideração desta unidade, a continuidade na descontinuidade, i.e., a c o n t -
inuidade do Direito enquanto unidade, em sua descontinuidade operacional: o
1
Direito está sempre operando a si mesmo e com isto modificando a si próprio, lí,
na medida em que o Direito é uma máquina histórica que continua operando a
partir do estado imediatamente anterior, temos que a validade é o que permi e
simbolizar, então, esta continuidade.7"
j

67 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., p. 104.
68 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíc. cit.,ip.
101. As aspas o autor não as utiliza no texto e aqui referimos a direito com "d" minúsculo somente no sen-
tido de que não o Direito, enquanto sistema, mas somente um determinado direito "subjetivo" - ainda que
seja problemática esta noção para a Teoria dos Sistemas - é que pode não ser válido em razão de uma
modificação que, enquanto tal, se liga a uma operação do próprio sistema.
69 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., pp.
104-105.
70 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los siscemas sociales: artículos, cit., p. 164.

116
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Se a validade de uma norma há que ser tomada em termos temporais, pois


somente assim é que' se pode entender a referência à contingência de toda vali-
dade, 71 com isto concluímos que quando LUHMANN se refere à impossibilidade de
se trabalhar com normas não válidas já há, na verdade, a implicação de que estas
jeriam, na verdade, normas não-vigentes.
! E é assim que o autor vai afirmar que com normas não-vigentes não se pode
fazer nada no sistema jurídico, não se pode pretender afirmar que alguém pode obter
Idireitos em razão de uma norma não-vigent^.72 O deslocamento da validade para
uma questão sobretudo temporal e que permitira explicitar a unidade construída
temporalmente em razão de operações conectadas recursivamente peimite o autor
entender que a não-validade tem um simples valor de reflexão, no sentido de possi-
bilitar - em função de sua própria indeterminação - uma reflexão acerca da contin-
gência do Direito; mas, para além disto, a não-validade não implica mais nada pelo
fato de a uma norma inválida não ser mais capaz de ser estabelecida qualquer conec-
tividade operacional no próprio sistema.73
Já se pode perceber que a questão referente à não-arbitrariedade das deci-
sões não pode ser solucionada no campo da validade em razão da proposta que o
autor oferece. Assim, a validade antes vem realçar a tensão que se pode consta-
tar entre a "dimensão temporal" e a "dimensão social" sem, contudo, oferecer
qualquer resposta imediata para o alívio ou superação desta mesma tensão. Além
disso não se deve pretender estabelecer uma relação entre validade/não-valida-
de e licitude/ilicitude: não são formas, no sentido de SPENCER B R O W N , coinciden-
tes, inclusive porque a determinação da licitude e da ilicitude somente é possível
de se estabelecer validamente - isto é, de acordo com aquilo tido como Direito
válido (vigente).74
Destarte, LUHMANN acaba por enfatizar que, na medida em que a validade é j
entendida em termos formai^ de indagação acerca das condições de validade do
próprio Direito e que, por circular pelo sistema, permite estar ameaçada em toda .
e qualquer operação do sistema, temos uma superação da noção tradicional de
validade como ligada à questão dos fundamentos e da fonte do Direito rumo a j
uma concepção que nos permite abarcar inúmeras outras operações.75

71 Referencia feita em LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos,
cie., p. 165.
72 LUHMVJN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 106.
73 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaít, cit., p.
106; LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 165.
74 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 106.
75 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 166.

117
Lúcio Antônio Chamon Junior

4. O Direito como máquina histórica entre "disposição" .


e "argumentação": a igualdade como chave-funcional
Interessante é que, para L U H M A N N , a descrição do sistema jurídico podeje
pautar em uma distinção ainda não apresentada: disposição/argumentação. Antes,
vale ressaltar que tanto a disposição, quanto a argumentação - que devem ser
entendidas nos termos adiante esclarecidos - são operações que ocorrem interna-
mente ao sistema e não em seu ambiente. A disposição se dá quando há uma
mudança no quadro de validade do sistema. Eqüivale dizer que somente se pode
falar em disposição quando operações do sistema alteram a própria situação de
validade do Direito que, em sendo máquina histórica, mostrar-se-ia anteriormen-
te configurado noutro sentido. E aqui é interessante explicitar os exemplos do
autor no sentido de que não somente os atos do legislativo e disposições contra-
tuais, mas também decisões judiciais e atos unilaterais, são capazes de mudar o
estado do sistema, o que implica uma movimentação diária e constante em escala
i muito grande, pois, a todo momento, o sistema é mudado em razão destas dispo-
\ sições.76 Isto, por outro lado, não significa que fatos ocorridos no ambiente não
sejam relevantes para o sistema: basta pensarmos que a este é possível observar o
ambiente e reagir a isto autopoieticamente. Assim é que podemos dizer que uma
atividade criminosa, enquanto ação referida ao ambiente, pode sofrer reações do
próprio sistema jurídico, sendo que estas se dão não em um plano externo, mas
antes mediante operações dispositivas e, enquanto operações válidas, geradas no
sistema e conectadas à rede de operações sistêmicas anteriores.77
Mas L U H M A N N ressalta que o fato de as disposições alterarem a mudança
intema no sistema não implica que estas mesmas disposições sejam as únicas ope-
rações do sistema. Devemos também tomar em conta a argumentação que,
enquanto um gênero operativo, se refere a uma operação de auto-observação do
sistema. Entende o autor ser a argumentação uma operação de observação que,
todavia, se dá no plano de observação de segunda ordem; e, neste sentido, por ser
uma observação de segunda ordem,i há a pressuposição de uma primeira ordem a
ser observada. Nestes termos, o autor vai se referir à disposição: esta seria aque-
la operação referente ao primeiro nível e que seria observada, desde o plano de
segunda ordèm, pela argumentação. A preocupação da argumentação é indagar
se, no sistema, há razões plausíveis e capazes de serem tidas como suficientes
para as atribuições dos valores licitude/ilicitude no plano de primeira ordem 78

76 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 167.
77 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 167.
78 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 168.

118
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Aqui já se percebe que se não faz, ao menos nestes termos, pretender inse-
rir uma distinção como a esclarecida por KLAUS GÜNTHER - e assumida por
HABERMAS - entre justificação/aplicação porque, indistintamente, e sem qualquer
preocupação de especificação das situações, LUHMANN simplesmente se refere à
disposição como algo a ser observado na argumentação.
Enquanto observação de segunda ordem, a argumentação também é algo
que se percebe no interior do sistema. Na medida em que a disposição é capaz de
modificar o que venha a ser Direito válido, isto não implica que o símbolo da
validade deixe de circular no campo da argumentação: a conectividade da argu-
mentação ao sistema somente pode ser aceita quando esta mesma argumentação
se oriente pelo Direito válido, enfim, apresentando argumentos que se refiram ao
Direito vigente e não a questões "ético-morais".79
Muito interessante notar é que o autor, afirmando que a argumentação não í
realiza qualquer modificação no sistema, entende que, por outro lado, pode ser
excepcionalmente incorporada a determinadas condições de validade no sentido /
de que, somente tomando a argumentação em conta - excepcionalmente! - , é
que se poderia referir à disposição como sendo válida, ou não - e exemplifica ,
com a hipótese da fundamentação e motivação das sentenças judiciais. 80 J
Adiantando algumas construções da Teoria do Discurso, poderíamos, todavia,
afirmar que somente se pode falar em "validade" se se considera, sempre, uma
atividade argumentativa que se conforma a determinados procedimentos garan-
jtidores da autonomia jurídica - pública e privada - e que nos permitiriam falar
iem legitimidade - na verdade, para a Teoria do Discurso há uma tensão entre o
jDireito vigente e o que pode ser considerado como legítimo;_o Direito vigente, ^ ^
enquanto tal, permitir-nos-ia sustentar pretensões de coercibiíidade que podem, ^
ou n ã o ^ s e r legítirnasj aquilo faticamente vejificávej^ n ã o necessariamente é, ^
então, considerado racionalmente válido.
Mas retomando uma discussão com o positivismo, LUHMANN afirma que
entender a validade em termos temporais, como ele mesmo procede, implica
afirmar que a validade é, ela mesma, um produto do sistema que se dá na recur-
sividade de suas operações capazes de, somente assim, permitir vislumbrar a uni-
dade dq sistema. Afirmando que a única base de validade se encontra no tempo,
se recusa a entendê-la como referida a uma norma superior pressuposta. Isto
implica a inexistência de uma razão última e superior, mas antes uma limitação
do modo de produção da validade que se dá circularmente - e não piramidal-
mente - no próprio sistema.81

79 LUHMANN, Niklas. La valide? dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 169.
80 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 169.
81 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., pp.
108-109.

119
Lúcio Antônio Chamon Junior

Havíamos enfocado, páginas atrás, que a unidade do sistema jurídico, para


LUHMANN, seria simbolizada através da noção de validade: esta, enquanto símt o-
lo, circularia no sistema de maneira a permitir o enlace das operações que se
sucedem à rede recursiva no sistema - a unidade poderia, portanto, ficar paten-
teada. Mas, surpreendentemente, o autor nos demonstra que há outra possibili-
dade de se expressar aquilo que venha a ser a unidade operacional do sistema
Esta possibilidade a encontraremos sob a forma do princípio da igualdade.8,2
É marcante a ausência - que HABERMAS, por seu turno, altera das Tanner Lectures
para Faktizitãt und Geltung - de qualquer referência à Moral ou ao próprio
Direito: não se faz referência à igualdade como sendo um princípio moral e quç o
Direto incorpora - pois seria uma contradição com a própria teoria. - ou como
sendo um princípio necessariamente jurídico. Antes se socorre na noção de
forma: a igualdade é o lado da forma - o lado interno - cujo outro lado é a desi-
gualdade. Somente se pode pensar em igualdade quando se tem também dado o
valor negativo da desigualdade.83
Mas desta distinção o autor saca um conceito normativo de igualdade em
que, se referindo explicitamente à tradição aristotélica, vai afirmar que "o igual
deve ser tratado como igual e o desigual de maneira desigual"; este "esquema de
observação" permite à Teoria dos Sistemas, segundo LUHMANN, observar que há
a sugestão do desenvolvimento de normas no sentido de que quanto mais sinto-
nizássemos a igualdade cada vez mais estaríamos contrastando a desigualdade.
Esta assertiva, todavia, não deixa de ser intrigante sobretudo em uma teoria q^ie
segundo seus próprios teóricos, não tem pretensões normativas.84
De onde o autor extrai o conteúdo normativo do princípio da igualdade? Se
a resposta fosse: do próprio Direito, teríamos o grave inconveniente, do ponto de
vista interno à própria teoria, de que a unidade do Direito estaria, todavia, gan
tida por uma norma do próprio sistema. Por outro lado, nada - inclusive em
razão do reconhecimento da contingência da própria operacionalização do
Direito - permitir-nos-ia, desde uma ótica de observador, afirmar que tal prin
pio normativo deva continuar existindo, além de que o Direito poderia passa r a
trabalhar questões iguais de maneira diferente e vice-versa.
Mas retomando a idéia do autor - que apresenta este nó inicial - , o mesmo
vai entender que ajirecisão das desigualdades permite ao sistema obter um t • a -

82 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafc, cie., pp.
1 lOss.
83 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaít, cit., p. 10.
84 Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHAES, Juliana. Women and Human rights. Human Righcs, Minority rights,
women s rights: proceedings of the 19th World Congress of the International Association of Philoso jhy
of Law and Social Philosophy (IVR). New York; Franz Steiner, 2001, p. 78; "Even though the Systems
Theory does not have a normative purpose, that does not mean it cannot change reality." (itálicos nosios)

120
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

tamento igual em situações de desigualdade Já percebidas. A partir desta idéia,


quê leva em conta o artifício de "comparação" entre igual/desigual - marcando
sempre novas desigualdades que posteriormente podem ser entendidas como
novas igualdades -, entende L U H M A N N que a forma pode transformar a igualda-
de em norma, em que o tratamento do igual servirá como regra que no então
assumido esquema de regra/exceção é capaz de garantir, quando da ocorrência de
uma exceção, a constatação da desigualdade!
Surge, portanto, um "teorema da igualdade" que deve ser aplicado em todas
as situações do próprio sistema:85 mas se^perguntarmos por que isto deve ser
assim, não há qualquer resposta imediata e suficientemente capaz de explicar a
concessão da qualidade normativa à igualdade, a não ser em termos funcionais
como se verá mais a frente.
Assim procede o autor à assertiva de que é a forma, e não a norma, que per-
mite a clausura do sistema: isto é compreensível na medida em que não é uma
estrutura como as demais do sistema aquilo capaz de garantir sua própria auto-
poiesis, mas a orientação de suas operações no sentido da forma. Mas, se indagar-
mos pela qualidade normativa da igualdade, a questão não apresenta uma respos- ^
ta satisfatória. E se, por outro lado, afirmarmos que o sistema jurídico, para ^«-sL,
adquirir coerência e disposições consistentes, deve se submeter ao princípio nor- ta ? ?
mativo da igualdade, temos que, por outro lado, nem todas as normas deste sis- § js?
tema são capazes de serem entendidas como contingentes, o que rompe com a ^ —j
própria noção basal da Teoria dos Sistemas. Mas, por seu turno, se se admite que > §
o sistema deixa de seguir a regra/exceção da igualdade/desigualdade, teríamos
um sistema operando de maneira não capaz de permitir vislumbrar a unidade e
- por sua vez - a validade - enquanto símbolo daquela - também não poderia
conviver sem maiores problemas. Uma tese que aqui queremos lançar é a de que
nem tudo no sistema há que ser considerado como contingente se se pretende
enxergá-lo como, inclusive, capaz de apresentar uma certa "racionalidade": para
L U H M A N N o princípio ou o "teorema" da igualdade, desde uma leitura normativa,
é um ponto essencial e embora a teoria reconheça isto, não é a mesma capaz de
- em termos adequados frente àquela tensão entre as dimensões temporal e social
- explicar esta questão. i
L U H M A N N ainda diferencia o uso poHtico do uso jurídico do princípio da
igualdade: enquanto na seara política-entende-se que os seres humanos devam
ser tratados como iguais, no campo jurídico o deslocamento se dá em nível dos
casos; devem estes ser a métrica da igualdade. Mas isto somente se pode verificar
internamente ao sistema: a identificação de desigualdades gera mais igualdades;

101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.

121
Lúcio Antônio Chamon Junior

assim como a identificação de novas igualdades gera novas desigualdades: aquilo


que se possa reconhecer como casos antes não verificados, e que agora são tidos
como desiguais, podem ser convertidos em uma seqüência de atos iguais. Isto
leva o autor a afirmar que a forma igual/desigual se reproduz dentro de si
mesma: 86 as desigualdades podem, em suas repetições, ser consideradas como
novas igualdades que, por sua vez - e no interior do sistema permitem a cons-
tatação de outras - e diferentes — desigualdades.
A unidade do sistema poderia ser percebida pela forma da igualdade/desi-
gualdade na medida em que as operações do sistema - de acordo com os critérios
estabelecidos pelo próprio sistema - , e em se submetendo ao esquema
regra/exceção, garantiria a integração recursivà entre decisões anteriores e pos-
teriores: decisões estas que sempre designam ai igualdade e a desigualdade com
base naquilo internamente decidido pelo próprio sistema. Mas a indagação acer-
ca do valor normativo da igualdade resta ainda a ser respondida pela teoria...

5. Do Direito como um sistema codificado e programado: observa-


ções de primeira e segunda ordem

O fato de o sistema jurídico possuir uma função - de estabilização de expec-


tativas normativas de comportamento de maneira a gerar uma "segurança" frente
a um futuro incerto - não nos permite, como conseqüência, estabelecer a sua
clausura operacional. Isto significa que a noção de função é insuficiente para que
se proceda à conclusão de que o sistema é operacionalmente fechado. E necessá-
rio que, para além da função do sistema, tenhamos que nos socorrer nas estrutu-
ras produzidas por este mesmo sistema: temos, então, a necessidade de nos referir
código e programas - já que ambos são estruturas do sistema,
a a Teoria dos Sistemas aqui problematizada, seria uma produ-
ção dãlunçãcTdo Direito - sem o qual o próprio Direito seria incapaz de manter-
se como funcionalmente diferenciado, na medida em que não seria capaz de con-
_tinuar a estabilizar as expectativas normativas.
! Diferentemente de uma observação de primeira ordem, em que se observa
se a expectativa particular fora cumprida ou fora decepcionada, o Direito é capaz
de sobrepor uma outra observação que, enquanto tal, se apresenta como sendo
uma observação de segunda ordem, de acordo com a qual se pode observar se a
conduta decepcionante da expectativa particular está, ou não, em conformidade
com o Direito.87 Um aspecto é observar que determinada conduta decepciona

103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., 190-pp.
191.

122
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

certa expectativa (observação de primeira ordem); outra questão é indagar se esta


decepção pode ser, pelo Direito, tida como conforme ou discrepante ao sistema.
f C o m o o próprio LUHMANN trata de ressaltar, de um ponto de vista lógico o códi-
go há que ser tomado em conta de maneira preeminente, e de início, se se quer
identificar, inclusive, a diferença entre sistema e ambiente. Mas de um ponto de
vista histórico - na medida em que o código "pressupõe" o próprio Direito - há
i que se tomar a prévia existência de normas segundo as quais os valores licitu-
i de/ilicitude possam ser atribuídos.88 Melhor seria, assim entendemos, falar em
jjuma coexistência do código e do sistema do Direito.
O relevante é ressaltar que a observação de segunda ordem observa a obser-H
vação de primeira ordem. As expectativas frustradas, em um plano de observa- l
ção mais raso, podem ser observadas de acordo com a distinção cumprimen-
to/frustração. A expectativa questionada em um determinado caso pode ser
observada como cumprida ou frustrada desde esta ótica de primeira ordem. Mas
isto não implica já uma observação definitivamente alcançada para o sistema
jurídico: este, e ainda de um plano superior (segunda ordem), é capaz de obser-
var se esta frustração, ou cumprimento, levantado é, ou não, conforme o, ou dis-
crepatite ao, Direito. A observação de segunda ordem é ^stabelçcida, portanto, j
enquanto observação da observação.
Neste sentido, a Teoria dos Sistemas pressupõe que o_ sistema sempre opera
desde uma observação de segunda ordem, na medida em que somente assim.se
pode alcançar a idéia de que aquilo que não se encaixa no esquema do código liei- \
tude/ilicitude há que estar referido ao ambiente - e não ao sistema.89 Somente i
em um nível de observação dos observadores é que se pode alcançar a própria
clausura do sistema: isto não implica quaJquerjvinculação entre a observação de
primeira ordem - referente à distinção^mprimento/friistraçaí) - e a observação
de segunda ordem - orientada pela distmçãõiitíttrde/ilicitíde: isto se deve, jus-
tamente, ao caráter universal que o código-passuLSO—

88 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 166.
89 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
60-61.
90 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 70:
"El código - conforme con el derecho/no conforme con el derecho -, solamente puede ser manejado en el
plano de la observación de segundo orden, es decir, en el nivel de la observación de los observadores. Esta
observación es indiferente respccto al hecho de si los observadores de primer orden - actores o víctimas - ,
clasifican su relación con el mundo de acuerdo al derecho o en desacuerdo a él. Si se imaginan que a ellos
les asiste la justicia o que son vlctimas, el observador de segundo orden puede juzgar eso mismo de otra
manera. Y si en absoluto han pensado una referencia al derecho, el observador de segundo orden puede apli-
car para ellos los valores: conforme a derecho/no conforme a derecho. A diferencia de la normatividad de
Ias expectativas (indiscutiblememe indispensable en la operación) y a diferencia de Ias estrueturas histórica-
mente existentes, interpretables como derecho, el código tienc dos particularidades: es universalmente
manipulable independientemente dei contenido presente de cada comunicación, y posibilita la clausura dei
sistema por medio de la reformulación de su unidad como diferencia."

I 1
123
Lúcio Antônio Chamon Junior

Mas o impasse histórico - plenamente resolvido no plano lógico - há que


ser dissolvido na medida em que se procede a uma caracterização da evolução do
Direito como desdobramento de uma tautologia ou como, ainda, a dissolução dó.
paradoxo do próprio Direito. Este processo de interrupção da tautologia e dq
paradoxo é esquematizado pelo autor em cinco passos:91

I) aquilo que sempre se foi construindo como licitude no sistema dc


Direito ("was immer schon ais Recht in die Welt gesetzt'92), assim
somente foi possível na medida em que:
II) podemos compreender que de sua reprodução aparece a tautologii
"licitude é (porque) licitude";
III) a partir do momento em que introduzimos uma negação, há o surgi-
mento de um paradoxo que, então, substitui a tautologia pela noçãcl
de que "licitude é (porque) ilicitude" - no sentido de que o sistem.i
do Direito ao determinar o que considera licitude também co-deter -
mina a ilicitude; o que eqüivale afirmar que licitude e ilicitude sur-
gem, como o autor mesmo enfatiza, em uma correlação inevitável --
o que, inclusive para nós, explica a simetria da forma do código;
IV) mediante a introdução de outra negação, o paradoxo é dssumidò
como um antagonismo que desponta como "licitude não é ilicitude',
de maneira que, desde um desenvolvimento e raciocínio lógico;,
acaba por nos permitir a conclusão de que o que se interpreta como
licitude não pode, simultaneamente, também ser interpretado como
ilicitude - enquanto lados da forma;
V) a exclusão deste antagonismo, o desdobramento da tautologia e a dis-
solução do paradoxo se dão em razão de condicionamentos que estãp
indicados nos programas do próprio sistema jurídico: o que é licittj-
, de - licitude é licitude - ou o que é ilicitude - licitude não é ilicitu-
de - estará verificado quando se cumprem condições programatica-
mente levadas adiante no interior do próprio sistema: isto significa
que, na verdade, na seara do código é que o paradoxo não só é tam-
bém refletido, mas, antes de mais nada, superado.

L U H M A N N ressalta que esta reconstrução da própria autopoiesis do sistema


não é uma reconstrução histórica - a refletir um desenvolvimento empírico
constatável - , mas antes uma reconstrução lógica. Assim, o código do Direito_

91 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der CesellschaJi. cit„ p. 168.
92 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. cit., p. 169.

124
I

Filosofia do Direito na Alta Modernidade


Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

(licitude/ilicitude) é sempre tido como_ii^spensáyel para a£0£er^ções_dg_siste-


ma na medida em que, a cada novo caso, haverá cjue je_realiza£esta observação
degegunda ordem para que haja a_deternünação_acerca de qual lado da forma há
que ser atribuído.
Isto impede a decisão acerca do próprio código: não podemos decidir, do
ponto de vista interno do sistema, se o código é, ele mesmo, conforme ou discre-
pante ao Direito. Decidir se licitude/ilicitude é conforme ao próprio Direito (líci-
to), ou não (ilícito), seria a recondução ao paradoxo e à tautologia, na medida em
que esta questão haveria que ser respondida termos de que o Direito, a par-
tir de condicionamentos programáticos, vem a determinar o lícito e o ilícito,
determinando, concomitantemente, a si mesmo (Direito) e a seu ambiente (não-
Direito). Neste sentido a teoria acaba concluindo que a unidade do sistema
somente pode ser entendida, ou melhor, somente se pode descrevê-la na forma
de um paradoxo: desde um ponto de vista operacional o Direito reproduz sem-
pre - e permanentemente - o paradoxo que, todavia, não pode ser observado
pelo próprio sistema - afinal, também não há que se falar da "qualidade" lícita ou S^»
ilícita na determinação do não-Direito pelo Direito! Como ressalta o autor, o fato ^F
de o paradoxo não poder ser observado pelo sistema se deve ao fato de que o § {C
paradoxo teria que se submeter à aplicação do código - decidindo se este é con- ^
forme, ou não, ao Direito: o paradoxo é, para o sistema, invisível na medida em >
que surge como um ponto ceg<j>.93 j
Mas o fato de ser o códigp de simples "manejamento", não implica que ele I
não se dê quando de um reingresso da forma em si mesma, ou em outras pala-
vras, que haja um duplo reingresso da forma dentro da forma. Isto é algo extre- I
mamente relevante parada Dogmática jurídica e que aqui trataremos, tal como '
LUHMANN, com o termo re-entry.^y •
O primeiro pontcuTserréssaltado é que as formas (dos sistemas), em casos
normais, somente admitem o re-entryem um dos seus lados e, neste sentido, isto
se dá no lado interno da forma - o lado de valor positivo ou, ainda, caso do sis-
tema jurídico, no lado "Direito" (Recht) - na medida em que o não-Direito
(Unrecht) é um espaço que existe como forma de implicar um "espaço não-mar-
cado" (unmarked space). Assim, por exemplo, uma vez identificada uma comu-
nicação referente ao lado negativo do código (ilicitude) - enquanto lado negati-
vo da forma do código - , ela também há que ser tratada em termos dé Direito
enquanto sistema (lado positivo da forma Direito/não-Direito), e não ser deixa-
da à deriva, pois trata-se de algo construído internamente ao sistema.

93 LUHMANN, Niklas, EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 176.

125

J 1
Lúcio Antônio Chamon Junior

A licitude - mas algo que ocorre também com a ilicitude - há que ser com-
preendida como "valor contrário do valor contrário". Antes pretendemos é res-
saltar que o estabelecimento da distinção entre licitude/ilicitude em nível do
código somente é levada adiante no lado interno da forma do sistema; do ponto
de vista do código, a questão há que ser enfocada tomando em conta uma sime-
tria sem a qual não poderíamos entender o crossing e o tratamento da ilicitude
no próprio Direito enquanto sistema.
Enquanto o sistema - em sua clausura operacional - pode ser enfocado como
unidade que, para tanto, lança mão de uma assimetria, o código, por outro lado,
na medida em que dissolve o paradoxo, somente pode ser entendido simetrica-
mente, isto é, deve ser praticado não como unidade - que representa o sistema -,
mas sim como distinção de dois valores opostos - que permite desenvolver o para-
doxo que somente volta de maneira problematizante quando o código o submete
a si próprio. Os códigos surgem, então, como estruturas possíveis somente em um
nível de segunda ordem, tendo em vista que podem ser simplificados em uma dis-
tinção bivalente na medida em que alcançam uma bi-estabilidade.94
E aqui devemos tomar todo cuidado, pois estas assertivas podem ser extre-
mamente úteis para uma reconstrução da Dogmática jurídica95 - ainda que sob
uma orientação teorética fundamentalmente diversa. Mediante este código ofe-
recido enquanto uma simetria, enquanto algo bivalente e esquematizado em ter-
mos de licitude/ilicitude, podemos vislumbrar uni valor positivo (licitude) e um
valor negativo (ilicitude). O valor positivo é aplicado - obviamente pelo sistema
- quando haja tuna coincidência com as normas do próprio sistema. Por outro
lado, o valor negativo "ilicitude" é atribuído, também pelo sistema, quando se
infringe as normas do sistema jurídico.
Como ressalta o próprio autor, o que venha a ser tomado como "assunto", além
das condições para que ao mesmo sejam referidos valores positivos ou negativos, são
questões a serem, todas elas, trabalhadas pelo próprio sistema. A atribuição do valor
positivo ou negativo somente se podei dar em termos internos e quando se toma em
conta a recursividade das próprias operações conectadas do e ao sistema.96
Mas uma questão há que ser ressaltada: por que não houve qualquer referên-
cia ao "indiferente jurídico" no plano do "Unrecht" enquanto lado negativo da
forma do código - e não da forma do sistema? A questão há que ser explicitada no
seguinte sentido: para o código, enquanto estabelecimento simétrico, não faz qual-

94 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 176.
95 Sobre nosso esforço em propor e levar adiante uma reconstrução da Teoria Geral do Direito, cf. CHAMON
JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: por uma reconstrução crftico-discursiva na Alta
Modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.
96 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 178.

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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

quer sentido falar em "assuntos indiferentes ao Direito"; isto, embora ultrapasse a


questão do código, tem antes a ver com os limites do sistema jurídico e, neste sen-
tido, se refere à unidade dele e à assimetria que, enquanto tal, marca a forma do
sistema, deixando o ambiente enquanto espaço não marcado como sendo não-
Direito (Unrecht), em sentido totalmente diverso do "Ünrecht" do código.
Assim, o sistema é um sistema sem finalidade: não há que ser entendido
como orientado teleologicamente a uma meta que, uma vez cumprida, implicaria
o desmantelamento do sistema, mas antes como um sistema que, ao produzir a si
mesmo, abre a possibilidade para outras reproduções; qualquer operação do siste-
ma que opte por um valor, ou outro, permite que, subseqüentemente, o código
possa servir para diferentes "valorações". E afirmar que o código forma uma uni-
dade, somente possível de ser tomada em conta desde uma simetria, implica, jus-
tamente, que não se pode decidir acerca de um dos valores se não se toma em
conta o outro valor: decidir pela licitude implica, necessariamente, a negativa da
ilicitude que, enquanto possibilidade, se abre e é rechaçada - e vice-versa.
Assim, se pode compreender que o código é algo que permite, incessantemen-
jte, o desenvolvimento do paradoxo e se refere ao fato de que a unidade do sistema
[somente pode ser pensada em termos de combinação de valores que são infcompa-
tíveis, porque antagônicos; enfim, há uma distinção entre valores (positivo e nega-
tivo) estabelecida no sistema e que, embora incapazes de serem usados simultanea-
mente, são relevantes desde uma perspectiva temporal, porque ainda lógica. É
claro que a atribuição de um valor, ou outro, nos permite concluir que se trata
antes de decisões contingentes a serem sempre tomadas em conta no próprio inte-
rior do sistema. L U H M A N N retrata a questão explicitando que a ilicitude, enquanto
"segundo valor", é algo que surge enquanto um valor negativo e de controle, sem
o qual não seria possível imaginar as operações do sistema como contingentes.97
Para observarmos o fechamento operacional do sistema, temos antes que nos
referir a tuna observação de segunda ordem. Somente observando os observadores
de primeira ordem - que não realizam afirmações reflexivas, nem acerca do con-
forme, ou do contrastante, ao Direito - é que se pode vislumbrar a clausura do sis-
tema. Na medida em que a clausura, para ser verificada e constatada, deve ser
oriunda de uma observação de segunda ordem, que observa todas as operações do
sistema, e na medida em que estas operações são sempre contingentes - e que, por-
tanto, podem sempre mudar - , é necessário se referir à possibilidade de se cruzar
a fronteira entre licitude/ilicitude. Este crossing há que ser entendido como uma
tecnificação do código, no sentido de que, para cruzarmos do valor positivo ao
valor negativo, hão que ser tomadas em conta algumas poucas condições estabele-

101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.

127
Lúcio Antônio Chamon Junior

cidas no sistema e que, por este mesmo, são entendidas como decisivas: daí, basta
tomá-las em conta a fim de permitir tuna dada "atuação" no mundo. O interessan
te de ser bem marcado é que o autor esclarece o código como algo capaz de ser esta-
belecido como condição e também como estímulo à decisão racional, o qué,
enquanto codificação bivalente, reduz as pretensões de racionalidade - segundo ás
expressões do autor — mediante a forma do código: haveria, portanto, no campo
específico do Direito, uma dada "racionalidade jurídica".98
O código, e aqui a teoria se faz importante para um enlaçamento dogmá-
tico da questão, pode ser entendido, primeiramente, como uma divisão ein
duas metades, enfim, como estabelecimento de uma indicação que implicà,
simultaneamente, uma distinção que se traduz no estabelecimento da mareja
entre licitude/ilicítude, isto é: entre o conforme e o discrepante ao Direito
(quando tomamos a forma referente ao código).
Isto somente pode ser entendido em termos de que há, assim, uma especifi-
cação do lado positivo da forma do sistema: o lado interno, ou o lado positivo 4a
forma do sistema é, antes, especificado como maneira de marcar a distinção c.o
"mundo" em duas metades, já que o lado externo da forma do sistema - o não-
Direito, enquanto ambiente - surge como sendo algo residual, como o "unmar-
ked space" de SPENCER BROWN, pelo fato de que é o lado positivo que especifi
assimetricamente o próprio Direito e, consequentemente - ou residualmente
também o não-Direito.
Mas isto permite ainda um outro raciocínio: o lado interior da forma do s.
tema (o sistema, na forma sistema/ambiente, ou o Direito na forma Direito/nã
Direito, enquanto referente ao Direito como unidade da diferença), em razão do
re-entry da forma do código na forma do sistema no lado positivo desta, opera,
enquanto sistema, com os valores licitude e ilicitude (RechtAJnrecht) uma v e z
que são valores do código (conforme/discrepante ao Direito). Por sua vez, o lado
exterior permanece enquanto lado negativo e restante: isto_somente pode ser
compreendido se alcançarmos o entendimento adequado d<3 re-entry.
Mas, a determinação daquilo que possa, em~õcõírén3õ, ser atribuído coijio
"conforme" ou "discrepante" ao Direito, depende de uma variação de condiçpes
estabelecidas pelos sistemas em termos programáticos, i.e., através de programas
do sistema. Isto leva o autor a uma conclusão - que ele mesmo reconhece como
simplista - de que os programas podem estabelecer, enfim, basear suas determi-

98 "Con ello se vuelve problemático el uso dei término 'razón' en este contexto. Lo que s( se puede lograr
es la posibilidad de determinar al inte-rior de zonas borrosas de tolerancia, si se ha come- tido un error
(o no) ai asignar los valores derecho/no-derecho. Y esto es, a su vez, la condición de posibilidad de que
tenga sentido organizar dentro dei sistema una jerarquía dei control de los errores, es decir, una instancia
especializada." LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der
Gesellschafi, cit., p. 184.

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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

nações mais de um lado do código que de outro: enquanto condicionamentos do


lado Recht referir-se-iam antes ao sentido do Direito Civil; por outro lado, con-
dicionamentos tocantes ao lado negativo tratar-se-iam de condicionamentos
estabelecidos no marco do Direito Penal."
Na medida em que o código serve simplesmente como oferta de valores de
orientação do sistema que determina o que é conforme ao Direito, e o que não é
conforme, ao Direito, o código, enquanto estrutura, serve tão-somente para per-
mitir, em nível de segunda ordem, a observação do sistema como algo enclausu-
rado: o código, portanto, não oferece quaíquer elemento capaz de nos permitir
entender determinado assunto como conforme ou contrário ao Direito. A con-
clusão a que a teoria chega é que o sistema jurídico não tem como se orientar
exclusivamente pelo código. Este aparece, portanto, como algo que nos permite
perceber que o próprio sistema produz e reproduz sua unidade.100 Mas afirmar
isto não nos permite entender como o Direito é capaz de concretamente operar;
não nos permite concluir com base em quais critérios o próprio sistema determi-
na aquilo que está de acordo, ou contrário, ao Direito, por fim, não oferece ao sis-
tema uma estrutura - melhor seria se referir a estruturas - capaz de por si mesma
levar adiante qualquer operação do sistema.
Assim é que surge a necessidade de se distinguir entre codificação e progra-
mação. Surge, portanto, uma diferenciação intema ao sistema que marca uma
diferença entre o código e os programas enquanto estruturas. Se é certo que o
código pode ser visto como uma forma - e que, enquanto formà, tem dois lados
- capaz de permitir a contínua reprodução da tautologia e a superação do para-
doxo, devemos entendê-lo em um sentido aqui bastante específico: enquanto
condição de inúmeros condicionamentos estabelecidos pelo sistema. O código
surge, em sua bivalência, como condição de inúmeras possibilidades de condicio-
namentos, segundo os quais estará determinado quando, e qual, dos dois valores
há que ser adequadamente aplicado,101 Se através do código podemos vislumbrar
a possibilidade de verificação da unidade do sistema, resta a este estabelecer em
que condições teremos que atribuir um, ou outro, valor - os valores surgem, por-
tanto, enquanto condições a condicionamentos de atribuições pelo sistema.
A licitude e a ilicitude não surgem, enquanto tais, como critérios capazes de
determinar acerca da conformidade ou desconformidade; o código é indispensá-
vel na medida em que universalmente, no plano das próprias comunicações do

99 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchaft, cit., pp.
185-186.
10Ò LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., pp.
187-188.
101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.

129
Lúcio Antônio Chamon Junior

sistema, é referente a toda operação interna. Mas da constatação do código surge


uma necessidade complementar, isto é, uma necessidade de instruções claras
capazes de permitir ao sistema determinar acerca do valor adequado àquele caso
- a questão se refere, portanto, ao como se deve referir a um ou a outro valor ade-
quadamente.102
Disto se pode concluir - e são exatamente estas as conclusões que a Teoria
dos Sistemas alcança - que somente se pode falar em código e em sua aplicação
na medida em que são determinadas as condições para tanto; em outras palavras,
não se pode pretender afirmar que o código existe por si e independentemente
de qualquer outra estrutura do sistema - e aqui vale trazer o pensamento de
LUHMANN no sentido de que só quando da definição, no próprio sistema, de pro-
gramas bem elaborados é que se pode proceder a uma discussão acerca da possi-
bilidade de se aceitar, ou recusar, a atribuição dos valores,103 Por isso afirma que
a noção de código somente pode ser entendida de maneira produtiva se se toma
em conta o outro lado da forma, isto é, os programas que, enquanto tais, são capa-
zes de permitir o estabelecimento de quais condições nos permitem referir ao
conforme, ou ao discrepante, ao Direito. Disto se pode concluir que a autopoie-
sis do sistema somente pode ser finalmente entendida enquanto produzida em
razão da diferença entre codificação e programação.104
Afinal, entende o autor os valores do código; como meio: um meio capaz de
tomar moldes diversos, isto é, capaz de ser empregado em uma infinidade de pos-
sibilidades, razão pela qual se fala em sua universalidade enquanto tão-somente
referida ao próprio sistema do Direito. Tais possibilidades são oferecidas através
das diferentes manifestações do sistema através dos programas. Mas o mais inte-
ressante é a etema preocupação da Teoria dos Sistemas em não deixar estas possi-
bilidades abertas ao arbítrio: afirma-se que qualquer modificação a ser levada
adiante pelos programas deve se dar no quadro de um sistema compreendido
enquanto pertencente a uma história específica; em outras palavras, deve ser leva-
do em conta - acerca da positividade - uma determinada situação original histó-
rica como maneira, justamente, de ?e evitar a reprodução arbitrária do sistema:
trata-se, antes, de um retorno à discussão entre positividade e arbitrariedade...
Mas, se o código há que ser entendido como esta forma de dois lados dotada
de um valor positivo e outro negativo - que, no plano da observação de segunda
ordem, permite observar a própria clausura operacional - , por outro lado o siste-

102 LUHMANN, Niklas. £7 Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht dei Gesellscbaft, cit., pp.
189-190.
103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
190-191.

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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

ma tem que ganhar em operacionalidade, isto é, não obstante ser meio, o código há
também, justamente por isto, poder ser operacionalmente articulado. E é justa-
mente neste ponto que se faz imprescindível a referência aos programas do siste-
ma. Enquanto sumplementos da codificação - e L U H M A N N diz que emprega o termo
"suplemento" no mesmo sentido que J. DERRIDA - , afirma a teoria que os progra-
mas têm o papel de oferecer uma direção, uma direcionalidade ò semântico que
vem submetida, porque condicionada, a um código:105 o código licitude/ilicitude.
Na medida em que o código é dotado de dois valores, podemos também per-
ceber que é exatamente nisto que está erradicada a contingência sistêmica; mas o
sentido de correção - no plano operacional e de atribuição de um ou outro valor
- somente pode ser buscado com os programas que, enquanto tais, fixam qual
valor há que ser atribuído. E é no próprio nível dos programas que devemos bus-
car solucionar a questão da compatibilidade de programas: entender que novos
programas se sobrepõem aos antigos e que o Direito Constitucional tem primazia
sobre os demais não eqüivale a qualquer solução para além dos programas, mas
antes uma referência aos próprios programas do Direito enquanto sistema.106
E interessante é a conjugação que o autor estabelece entre código e progra-
ma: apesar do sistema constantemente estar em movimento, enfim, se apresen-
tar como contingente e variável, esta capacidade de adequação sistêmica - sua
variabilidade - é perfeitamente compatível com sua invariabiliade. O sistema,
apesar das mudanças, permanece, enquanto sistema do Direito, em razão da
manutenção do código; este permanece invariável, o que, todavia, não impede
que o^ diversos programas que, em se referindo a um nível programático, podem
oferecer inúmeras possibilidades de mudança na atribuição dos valores. As modi-
ficações programáticas, no campo do Direito - enquanto modificações normati-
vas - , não retiram do sistema sua unidade e identidade. Assim é que a invariabi-
lidade e incondicionabilidade sistêmica tem a ver com o código - sempre o
mesmo: licitude/ilicitude - enquanto a metamorfose e a variabilidade estão refe-
ridas ao nível dos programas.107
Assim é que o código e os programas hão que ser entendidos como, de certa
forma, co-dependentes. Isto somente pode ser entendido na medida em que são
os programas que complementam, suplementam, o código pelo fato de que o per-
mite ser atribuído através de uma densidade semântica viabilizada e oferecida
pelos programas.
Mas qual é o tipo de programa é ao Direito referido? L U H M A N N explica que,
superado - e não obstante - todo o entusiasmo do período de Bem-Estar Social,

105 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 192.
106 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 192.
107 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 193.

131
Lúcio Antônio Chamon Junior

devemos entender que os programas - enquanto normas do sistema jurídico -


hão que ser compreendidos enquanto programas condicionais. Esta afirmação faz
referência, portanto, à própria existência normativa para a Teoria dos Sistemas:
norma há que ser, uma vez que programa do sistema, entendida como referida a
tuna compreensão condicional. Inclusive este estabelecimento condicional é que
permitirá, àquilo apreendido cognitivamente do entorno, ser valorizado - sob o
código - de forma dedutiva no próprio sistema.
A opção feita pela Teoria dos Sistemas, quanto à programação do Direito
enquanto condicional, se justifica pelo fato de entender-se que a programação
finalística - programas orientados a fins - não permitiria uma adequada opera-
cionalização do Direito. Este não pode ser entendido como sendo programado
teleologicamente, mas antes, tão-somente, de forma condicional - o que não!
impede que programas orientados a fins sejam incluídos no Direito sob o esque-j
ma de um programa condicional: quando alguém tem direito de buscar determiH
nados íins há, para tanto, que se portar sob determinadas condições juridicamen-i
te estabelecidas.108
O mais surpreendente - e quiçá problemático - é a forma rígida com a qual
L U H M A N N pretende enquadrar o nível programático do sistema jurídico. Apesar
de sempre se apresentarem como contingentes e, assim, sujeitos a mudanças, os
programas, em um mundo que em grande velocidade se modifica, podem ser
imaginados como estruturas fixas justamente em razão de sua orientação condi-
cional - o que inevitavelmente mantém um ponto de contato com a "proposição
jurídica" de KELSEN - , e não orientado a fins109 - pois, se orientado a fins fosse,
obviamente que a toda e qualquer modificação do mundo deveria o sistema estar
sempre de prontidão para restabelecer a operação seguinte no sentido de que,
para alcançar o fim proposto, sempre e qualquer alteração haveria que ser toma-
da em conta. A preocupação em garantir a continuidade do Direito nos mais
diversos contextos tem a ver não só com o código - sempre o mesmo - , mas tam-
bém pela possibilidade somente capaz de ser tomada em conta em razão do tipo
de programa: a programação condicional, como já insinuado, é que permitiria
esta manutenção; aqui a questão nos conecta não ao código, mas à função, pois
somente assim é que a teoria poderia justificar a função do Direito enquanto esta-
bilização de expectativas.
Então, enquanto condicional, o programa há que ser entendido sob uma
fórmula que estabelece "se isto/então isto". Assim é que o programa condicional
estabelece condições (se isto) como maneira de proceder à atribuição dos valores

103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 190-191.

132
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

do código. Mas é claro que entender os programas como condicionais, e seguin-


do a fórmula "se isto/então isto", somente pode ser aceito enquanto referência a
fatos passados, na exata medida em que o sistema opera sempre como um siste-
ma "pós-concatenado", sendo que a decisão presente, justamente pelo fato de ter
que se enlaçar com as demais, deve tomar em conta o que, naquele momento, há
que se ter como passado do sistema.110 A relevância destes entendimentos se cen-
tra no fato de que o sistema não poderia decidir tendo em conta certos fins e que
deveria, tão-somente, decidir çom base em suas construções passadas, na medida
em que o futuro sempre se apresenta como incerto; mas veremos como a própria
teoria, quando percebe-se enclausurada, opta por solução contraditória a estes
enunciados.
As normas permissivas também seriam programas condicionais na medida
em que o sistema determinaria em que condições o comportamento há que ser
vislumbrado como juridicamente aceitável - o que, para LUHMANN, não desvir-
tuaria a lógica condicional do "se/então". Mas o fato de todos os programas esta-
rem conectados a decisões passadas não implica uma orientação pelas tradições,
mas, antes, uma abertura ao futuro pelo fato de que são programas que se proje-
tam ao futuro, embora construídos no passado.111
Isto não significa que o Direito não leve em conta programas finalísticos: o
Direito toma contato com os mesmos, embora isto se dê de maneira extrema-
mente reservada; programas finalísticos de outros sistemas podem, inclusive, se
valer de prestações - de imunizações - do sistema jurídico na medida em que este
- de maneira condicional - estabelece programas condicionais que devem ser
levados em conta na busca do fim.
A crítica de LUHMANN tão-somente aponta, no capítulo sobre programação,
à noção de "fim" dizendo respeito ao feto de que, para o autor, entender fim
como referente à intencionalidade é algo que deve ser talvez melhor colocado
em termos teleológicos para entendê-lo enquanto estado final de um movimen-
to; fim enquanto futuro. A diferença é que se entendermos fim desde uma pers-
pectiva intencionalista, tomaríamos em conta tão-somente aquilo que no presen-
te se coloca como "o fim", o que, em grande medida, deixa de lado a diferença
entre futuro-presente - sempre pressuposto - e presentes-futuros - sempre inde-
terminados. Assim é que quando se fala em programas orientados a fins se enco-
bre esta distinção pelo fato de somente ser entendido o fim enquanto uma sele-
ção contingente realizada no presente e que, enquanto tal, se apresenta como um
"futuro-presente", Na medida em que o fim - entendido enquanto movimento -
é sempre indeterminado, a escolha presente de fins - no sentido intencional -

110 LUHMANN, Niklas. ElDerecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 197.
111 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 198.

133
Lúcio Antônio Chamon Júnior

implica a impossibilidade de se decidir sem riscos: isto somente porque os pro-


gramas finalísticos estabelecem uma seleção bastante arriscada porque aquilo que
se supõe como futuro - o futuro-presente, i.e., o futuro no presente tomado em
conta - pode definitivamente não coincidir com os presentes-futuros - sempre
indeterminados.112
A justificativa referente aos programas condicionais no campo do Direito
tem a ver, segundo o autor, com a própria função do Direito: na medida em que
este deve proceder a uma estabilização das expectativas contrafáticas, isto não
pode depender do futuro; elas hão que ser estabilizadas no presente, independen-
temente daquilo que no futuro possa ocorrer: não é o futuro que dirá aquilo que
é, ou não, conforme ao Direito, mas, antes, isto tem que ser determinado no pre-
sente. Isto não implica que o juiz, quando vá decidir, não deva levar em conta o
futuro: é claro que em "determinadas situações" haverá que levar em conta o futu-
ro para tanto. Isto é, deve levar em consideração tão-somente aquilo que se apre-
senta como futuro-presente - estabelecido com "sumo cuidado" por eie113 - inte-
ressante é o enorme acento e importância que a Teoria dos Sistemas dá ao juiz.
Mas aquilo que, após a decisão, venha a se configurar como presente-futu-
ro não tem o condão de modificar aquela decisão, considerando o que o sistema
oferece, enquanto pós-conectado, e tomando em conta tão-somente aspectos do
futuro como maneira de sustentar sua decisão. O que é conforme, ou não confor-
me, ao Direito é determinado no presente e não aberto a um futuro incerto que
teria o poder de decidir sobre isto.
Mas interessante pontuar ainda é a preocupação do autor em se referir às
formulações legislativas inflamadas no período do Estado de Bem-Estar Social
que determinariam formulações orientadas a fins. Se desde um plano político,
afirma LUHMANN, tal se mostra adequado, já do ponto de vista do sistema jurídi-
co há que se ter o cuidado de ressaltar não só os inconvenientes levantados, mas
ainda que tais programas, se entendidos de maneira finalística, se mostram como
extremamente imprecisos desde um ponto de vista técnico-jurídico. E aqui, reto-
mando àquilo já explicitado, se referir a "um fim" do ponto de vista jurídico antes
implica considerar tão-somente conSdições como juridicamente corretas, enfim,
que as medidas tomadas na busca dó fim estão de acordo com os critérios juridi-
camente estabelecidos. Do ponto de vista jurídico, há que se ter em conta se
aquilo selecionado, ainda que para determinado fim, é, ou não, conforme ao
Direito - a consideração da finalidade em si não deve ser tomada em conta,
inclusive porque, sendo o futuro indeterminado, as considerações sobre o fim

112 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
198-199.
113 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 201.

134
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

expõem quem decide a uma crítica empírica, mas que, todavia, em ocorrendo,
tão-sÁmente a autoridade de cargo do juiz e a obrigatoriedade de tomar uma
decisão validariam a sentença. J 1 4 - retomaremos a este aspecto mais à frente.
Não obstante esta assertiva - que somente se enquadra no coipo aqui recons-
truído na medida em que o autor se propôs a uma teoria descritiva, enfim, se pro-
pôs a uma observação, largando mão de uma dimensão normativa -, afirma-se que
o marco a partir do qual se deve julgar é sempre um programa condiciona] que
leve em conta o esquema "se isto/então isto" - e nem é preciso muito esforço para
ressaltar as semelhanças com a proposição kelseniana "se é A, deve ser B"...
Já adiantando uma questão que será melhor articulada posteriormente,
quando se apresentarem problemas na interpretação do "texto autorizado", refe-
rido ao programa condicional, o juiz pode indagar acerca de finalidades, o que
abre a possibilidade de se decidir a questão com base naquilo que se apresenta
como um futuro incerto. O autor, absurdamente, acaba por afirmar que, em casos
extremos, o estabelecimento de condições se reduz a uma norma de competên-
cia: o Direito é aquilo que o juiz, em razão de seu cargo, e como instância deter-
minante, considera, toma em conta, como sendo um meio adequado para um
fim!! Mas, surpreendentemente, afirma o autor - em uma concessão a um, diría-
mos, decisionismo-funcionalista, ou até mesmo a uma discricionariedade - que
se seguimos tal enlace finalístico como programa condicional, isto se dá porque
a decisão só é "Direito" se ele, juiz, a realiza enquanto juiz. A autopoiesis do sis-
tema estaria garantida pelo fato de que, mesmo esta decisão judicial, se orienta-
ria pelo código licitude/ilicitude.115
Aqui, encontramos a impotência teórica da proposta luhmanniana.
Enquanto KELSEN tentou delimitar a questão se recorrendo ao fundamento de
validade da norma - norma hierarquicamente superior - , tal limitação em
LUHMANN não se justifica em termos escalonados, mas antes em termos de recur-
sividade. Mas esta saída não oferece qualquer limitação, pois a recursividade é
usada pelo autor para justificar a decisão do juiz, simplesmente por ser juiz, como
sendo válida - como sendo conectada ao sistema. A justiça para LUHMANN é que
poderia oferecer uma possibilidade de delimitação do poder discricionário do
juiz - e aqui estamos utilizando "discricionariedade" nos termos empregados por
DWORKIN.116 A ela referiremos somente depois de adequadamente enfocar não só
a problemática que é entender o Direito como um "sistema de regras" - descon-

114 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 203.
115 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.,- LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesells/!hafi, cit., pp.
203-204.
116 Cf., especialmente a partir do segundo capítulo em diante: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Trad.
Marta Guastavino. Barcelona: Ariel, 1999.

135
Lúcio Antônio Chamon Junior

siderando a força normativa dos princípios - e suas conseqüências - uma discri


cionariedade funcionalista no campo jurisdicional.

6. Os princípios jurídicos em face de um funcionalismo


radical: da "invenção jurisdicional" à incompreensão
do caráter normativo do Direito Moderno

Para tanto, articularemos não só argumentos oferecidos pela Teoria dos


Sistemas, como desenvolvida diretamente por L U H M A N N , mas também, neste
específico ponto, lançaremos mão ainda dos estudos de J U L I A N A
NEUENSCHWANDER M A G A L H Ã E S que, a partir da teoria em foco, pretende analisa
a questão dos princípios jurídicos e sua aplicação pelos tribunais.
Só para relembrarmos dois pontos já apontados, e que aqui poderão se
constatados de maneira mais nítida, devemos dizer que a) a Teoria dos Sistemas
concede ao juiz um poder muito grande sob o pretexto de que a autopoiesis dj>
sistema tem que continuar, mesmo quando o sistema tromba com seus própriojs
limites e que b) se desconsidera os "costumes" como normas, a não ser quandp
este ,"Direito consuetudinário" passa a ser reconhecido por determinado órgão
jurisdicional.
Aliás, este é um ponto marcante na teoria: a vinculação ao texto normativc|,
ao "texto autorizado", é tão forte que chega a não considerar, de maneira séria, je
levando em conta todas as contribuições possíveis de serem tomadas desde o giijo
hermenêutico, as práticas sociais reiteradas como possibilitadoras de reinterpró-
. tações de normas jurídicas, porque, simplesmente, poderiam entrar no sisterr\a
pela chancela do juiz. Neste sentido podemos mencionar a frase de L U H M A N N
segundo a qual "o Direito vigente é suposto sob a forma de textos". Se é certo qiie
os casos que concretamente se apresentam é que vão indicar quais textos tembs
que utilizar para solucioná-los, por outro lado entende que há hipóteses em que
não há espaço para qualquer argumentação no que se refere a estes mesmos ten-
tos: na medida em que a argumentação só é possível quando os textos possam ser
interpretados de diferentes maneiras, existiriam hipóteses, todavia, em que is
textos não admitiriam mais de uma interpretação! 117 O mais interessante é quejo
autor é incapaz de perceber que interpretações, ou interpretações concorrentes,
somente podem se dar em face de um caso concreto, e afirmar que determinadas
normas, como "o limite de velocidade para os automóveis na estrada é de 100

117 LUHMANN, Niklas. La argumentación jurídica. Un análisis de su forma. Trad. Héctor Fix Fierro. Teoria de
los sistemas sociales: artículos. México: Universidad Iberoamericana, 1998, p. 179.

136
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

km/h", não admitem várias interpretações é não enxergar a estxeiteza do próprio


ponto de partida.
Mas conectando ao aspecto textual do qual o Direito seria caracterizado,
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES vai afirmar que autores como DWORKIN e ALEXY têm
necessidade de se socorrer em construções como princípios do Direito como uma
alternativa para a rigidez intensa que marca o Direito enquanto um sistema cons-
tituído de ieis.118 Para a autora, e para a Teoria dos Sistemas, os princípios jurídi-
cos são criações. Analisando jurisprudências da Corte de Justiça Européia,
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES concluiu qAe ali poderíamos ter um enfoque supos-
tamente interessante para percebermos como os princípios jurídicos são "criados".
Assim, a Corte, bem como quaisquer tribunais, criaria uma gama de princípios.
Estes princípios criados pela Corte teriam, no contexto da União Européia, o papel
de servir de guia para o desenvolvimento do Direito - na medida em que garanti-
riam que o paradoxo se desenrolasse e o sistema continuasse a se reproduzir auto-
poieticamente. A Corte, bem como qualquer tribunal, deve fazer referência, para
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, ao Direito - o Direito serve, então, como ponto de
apoio para a decisão que, enquanto tal, seria uma decisão interna ao próprio siste-
ma. Ao mesmo tempo em que o Direito não fornece os princípios, ele dota o juiz de
poder para solucionar um determinado caso antes não previsto pelo próprio siste-
ma. E é assim, concedendo o poder para decidir, que há uma referência ao sistema
e às estruturas que, compondo o sistema e sendo anteriores ao decidido pelo juiz,
mantém aquilo que, não explicitado pela autora nestes termos, sèriam as "referên-
cias gerais fixadas no Direito"- enfim, a própria noção de recursividade. Isto permi-
tiria à Corte, especificamente - mas, repita-se, a qualquer juízo genericamente - ,
acrescentar, substituir, enfim, criar disposições normativas textualmente não pre-
vistas. 119 E aqui os princípio^ teriam um papel de garantir um desenvolvimento coe-
rente (!?) do Direito inclusive porque marcam os programas como abertos para o
futuro. A conclusão, no míriimo intrigante, é que ao aplicador do Direito seria dada
a possibilidade de, independentemente de suas motivações, criar o Direito, na medi-
da em que criaria e aplicaria os próprios princípios que "criara".120

118 Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado.


NEUENSCHWANDER M A G A L H A E S . ' J u l i a n a .
Belo Horizonte, v.03, 1998. p. 444. A referência ao Direito como um sistema de leis não vem, todavia,
explicitado em trecho bastante similar ao indicado e reproduzido noutro local: NEUENSCHWANDER
MAGM.HAES, Juliana. Interpretando o Direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico
da ciência jurídica. In: BOCCAULT, Carlos Eduardo de Abreu: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica plu-
ral: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 149.
119 NEUENSCHWANDER MAGALHAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Cone de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997, p. 272.
120 NEUENSCHWANDER MAGAUUES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273.

137
Lúcio Antônio Chamon Junior

A interpretação que é dada à questão da igualdade somente pode ser enten-


dida se está marcada aquela vinculação aos textos que a teoria escolheu: a partir
do momento em que "nenhum tratado indica" - no âmbito da União Européia -
um "princípio da igualdade" no campo do Direito Comunitário, à Corte séria da-
da a "faculdade" de reconhecer-significando, para a Teoria dos Sistemas, "criar"
- este princípio da igualdade, inclusive na medida em que certas normas dos tra-
tados refeririam, de fundo, a este princípio de maneira esparsa. Entendem-se os
princípios como critérios de legitimação das decisões, justamente pelo fato de
que se refeririam ao "Direito jurisprudencial" - frente ao Direito de tipo conti-
nental-europeu - como sendo marcado por um desenvolvimento e criação do
Direito pelos tribunais-121 Pouco importariam, então, as discussões, na visão da
autora, acerca da aplicabilidade de princípios, já que somente ganham densidade
na medida em que os tribunais os criam, enfim, estão os aplicando, portanto. 122
Este desenvolvimento somente pode chegar a uma conclusão: a partir do
momento em que os princípios não são elementos do sistema, pelo fato de os tri-
bunais criarem estes mesmos princípios, estes não são normas jurídicas referen-
tes ao sistema, embora possam ser úteis ao mesmo no desenvolvimento do para-
doxo na construção jurisprudencial.123 É extremamente interessante que isto se
^ deva ao fato de que L U H M A N N , bem como seus discípulos, entenda a norma
enquanto vinculada a uma compreensão de regra capaz de reger suas hipóteses

( de aplicação. Esta é a mesma falha da teoria kelseniana em termos argumentati-


vos e que levou KELSEN a abrir a porta à discricionariedade na medida em que o
juiz poderia decidir fora do quadro das interpretações possíveis e, assim, fora do
Direito. O fato de o princípio não se encaixar na noção de norma para KELSEN -

121 A leitura que a Teoria dos Sistemas optou do Direito da Common iawchoca, definitivamente, com a com-
preensão mais adequada, ao nosso ver, que DWORJÜN desenvolveu e mais tarde é resgatada por HABERMAS
numa tentativa - bem diferente da funcionalista - de buscar a integração das tradições da Common Law
com a tradição européia-continental.
122 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Euiopéia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 277. Desconsidera, assim, todo o aporte
filosófico e constitucional desenvolvido descíe DWORKIN até HABERMAS e que, no marco de uma Teoria da
Constituição, implica os esforços para uma superação das chamadas "normas programáticas" como preten-
dida em CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Modemo: por uma reconstrução criti-
co-discursiva na Alta Modernidade, cit.; CHAMO!1) JUNIQF, Lúcio Antônio. Teoria Constitucional do Direito
Penai contribuições a uma reconstrução da Dogmática pena] 100 anos depois, cit.; CATTONI DE O U V E I R A ,
Marcelo Andrade. Direito processual constitucionaL Belo Horizonte: Mandamentos, 2001; CATTONI DE
OUVEIRA, Marcelo Andrade. Direito ConstitucionaL Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. Cf. ainda os
importantes escritos: CARVALHO Nrrro, Menelick de. Teoria da constituição: os marcos de uma doutrina
constitucional adequada ao constitucionalismo. In: MAGALHÃES, José Luiz Quadros, et ai. Direitos huma-
nos e direitos dos cidadãos. Belo Horizonte: PUC Minas, 2001.
123 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observaçâo: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 277.

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* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

que deveria, enquanto norma, ser descrita pela fórmula geral "Se é A, deve ser B"
- é relevante também aqui: os princípios não são entendidos como elementos do
sistema pelo fato de não se encaixarem na perspectiva adotada de programa con-
dicional (norma): "se isto/então isto".
A isto retornaremos outras vezes, mas aqui vale ainda indicar um ponto que
também será relevante: os princípios, apesar de não serem estruturas do sistema,
são, como já dito, úteis ao mesmo na superação do paradoxo ao qual o Direito está
preso e que, enquanto paradoxo, é pelo sistema ocultado. Como já referido, para
a Teoria dos Sistemas os princípios surgiriam como dispositivos que permitiriam
a superação da dificuldade aparecida no sistema por supostamente serem criados
pelo juiz. Antes, tais princípios não existiriam no sistema, mas, uma vez que o
juiz os "cria" e os utiliza, passariam a ter relevância/existência no sistema no qua-
dro daquela decisão - o que não impediria que estes princípios voltassem a ser
utilizados.124
Essas afirmações são melhor compreendidas quando entendemos, em prin-
cípio, o papel que os tribunais têm no Direito, e na Sociedade, para a Teoria dos
Sistemas. Coerente com seu entendimento de que os programas são condicionais,
LUHMANN afirma que estes mesmos programas são incapazes de determinar com-
pletamente as decisões a serem tomadas no campo jurisdicional. Se os programas
hão que ser operacionalizados mediante uma lógica dedutiva - como outrora já
explicitado - , e em razão dos programas serem insuficientes, entende o autor que
o sistema, em assim percebendo, não pode operar exclusivamente com üma lógi-
ca dedutiva - embora esta tenha um grande papel no contexto de aplicação.125
Isto leva o autor a propor que, na inexistência de "jurisprudência mecâni-
ca", deveriam os tribunais constituir novas decisões, diferenciar casos que devem
ser diferenciados - e aqui entraria a forma igual/desigual - enfim, o tribunal
assim criaria um "Direito judicial" que deveria, todavia - algo também afirmado
por N E U E N S C H W A N D E R MAGALHÃES - , ser testado quanto à sua consistência e coe-
rência frente ao Direito vigente. Os casos, pela impossibilidade de previsão legis-
lativa - diríamos, através da programação "se/então" - , devem permitir aos jui-
zes que criem o Direito ali onde o próprio Direito não ofereceria qualquer solu-
ção. Em razão de não se poder denegar a decisão, haveria que se reconhecer, con-
juntamente, ao juiz, uma liberdade na construção/criação do Direito126 - ainda
que a métrica da diferença não seja explicitada...

124 NEUENSCHWANDER MAGALHAES, Juliana. Interpretando o Direito como um paradoxo: observações sobre o giro
hermenêudco da ciência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo.
Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas cm contextos imperfeitos, cit„ p. 154.
125 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Ajuris. Porto AlegTe, v. 48, pp. 149-168,
1990, p. 162.
126 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico, cit., p. 163.

139
Lúcio Antônio Chamon Junior

A redefinição da relação entre Legislativo e Judiciário deve superar, segun


do o autor, o entendimento de que o Legislativo representa-se como superior à
jurisdição: se é claro que leis genéricas são indispensáveis ao sistema - enquanto
"acomodação" da irritação do sistema político antes há que se entender o
Judiciário como sendo o centro em razão de que - além de também criar o Direito,
- decide, em última análise, o que é conforme ou discrepante ao Direito - ainda
que o juiz esteja vinculado à lei como maneira de "excluir os excessos" nas deci
127
L sões;
i excessos no processamento das irritações do ambiente no caso concreto.
O autor não se refere, assim, explicitamente à questão dos princípios: mas;
originalidade dos escritos de NEUENSCHWANDER MAGALHÃES está, justamente, nc
fato de ter percebido - e desenvolvido às últimas conseqüências, em uma radica
lização funcional evidente - que a atividade jurisdicional e seu produto - a deci
são - têm um papel central na Teoria dos Sistemas, já que é aqui uma das vias em
que mais nitidamente o paradoxo tem que ser superado através - e paradoxal -
mente - do seu desenvolvimento.
Mas um ponto há que ser ressaltado: a Teoria dos Sistemas parece se entre -
gar a um certo derrotismo, na medida em que afirma que haveria uma impossi-
bilidade de operacionalização racional do sistema jurídico. Tal impossibilidade s :
centraria no fato de que o sistema não conseguiria totalmente operar a si mesmo
de maneira racional: frente a esta impossibilidade, a teoria - e seus teóricos - s)e
satisfaz com uma "racionalidade limitada", indispensável para o funcionamento
do sistema e que seria, portanto, a busca da já referida consistência das decj
sões,128 e que mais adiante enfrentaremos.
No campo, destas discussões, devemos partir ainda rumo a um outro racicj
cínio elucidativo: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, realizando sua interpretação de
DWORKIN,129 afirma que deveria, para este autor, a questão dos princípios, sér
solucionada levando-se em conta uma interpretação do Direito orientada a fins.
Independentemente da leitura realizada por D W O R K I N neste momento, o qde
mais nos interessa é reconstruir a análise que a autora faz da possibilidade, qu
não, do sistema jurídico suportar um tipo de interpretação orientada a fins.

127 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico, cit., pp. 164-165.
128 NEUENSCHWANDER MACAI.HAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princíp:
Gerais do Direito pela Cone de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da aui
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273, especificamente referindo i "rac
nalidade limitada".
129 Cf. também em seu artigo: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Interpretando o Direito como lim
paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica. ÍN: BOUCAULT, Carlos Eduardo de
Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em con|extos imp
feitos, cit., p. 149.

140
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

A indagação central é se o Direito poderia, então, ser orientado por suas


conseqüências. As preocupações da autora passam, portanto, no campo da codi-
ficação bivalente e da própria possibilidade de se manter os sistemas sociais dife-
renciados; i.e., a principal indagação é se a orientação do Direito - quando de sua
aplicação - às suas conseqüências poderia levar à corrupção do código e à des-
diferenciação funcional do Direito. Na verdade, a questão de fundo é se o pro-
grama finalístico pode ser tomado como útil de uma perspectiva operacional para
o Direito..."o
Já vimos com LUHMANN que o Legislativo não é capaz de determinar todos
os programas, ou imaginar todas as hipóteses aplicativas, razão pela qual os jui-
zes têm que se mostrar como capazes de decidir aquilo que a legislação não se
mostra como capaz. Na medida em que se tem como pressuposto o Direito vigen-
te (válido) como referido a textos, afirma a autora que tanto a Dogmática, quan-
to a praxis, vão se socorrer na orientação pelas conseqüências como critério para
a aplicação do Direito. O interessante é que a teoria inverte o raciocínio para
explicar que, em determinadas situações, e sobretudo sob o pretexto de "supera-
ção do paradoxo", as conseqüências seriam tomadas em conta. Isto porque a con-
seqüência deveria ser indicada em princípio, estabelecida a príori, como manei-
ra de determinar qual princípio haveria que ser aplicado. Todavia, e aqui está a
inversão, entende-se que a conseqüência não pode ser estabelecida a priori jus-
tamente pelo fato de que ela surge enquanto indicação de um princípio... 131
Logo adiante retomaremos a questão de se tomar a conseqüência em conta
para a operacionalização e decisão do Direito. O que já podemos introduzir é a
seguinte indagação: o Direito deve levar em conta os efeitos do próprio Direito
como critério para a sua operacionalização? Na medida em que o futuro é incer-
to, ressalta a autora, e caso a conseqüência esperada pela aplicação de um princí-
pio - enquanto tal criado pelo juiz - não se verifique, a decisão, todavia, conti-
nuaria válida sem que o efeito então efetivamente ocorrido - o que eqüivale
dizer "a não-ocorrência do efeito esperado" - não sirva, nestes termos, para a
determinação do Direito. 132
A preocupação de NEUESCHWANDER MAGALHÃES - embora demonstrada, mas
não solucionada, para nós, desde uma perspectiva adequada - diz respeito ao
risco que uma aplicação do Direito, orientada às conseqüências, pode significar
para um uso político-parasitário do sistema jurídico. Isto se instaura na medida

130 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.,
p. 444.
131 Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista dç Direito Comparado, cit.,
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES,
p. 446.
132 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.,
p. 448.

141
Lúcio Antônio Chamon Junior

em que os códigos dos sistemas hão que se manter diferenciados, bem como os
próprios sistemas. Os princípios, assim, tomados em conta pela decisão - na
medida em que entram no sistema tão-somente para superar o paradoxo - , ao
serem politicamente instrumentalizados - , podem representar um risco para a
própria operatividade do Direito, ainda que se demonstrem como de alto poten-
cial operacional,133
Este risco, de des-diferenciação funcional, é apontado por LUHMANN desde
seu Ausdifferenzierung des Rechts, quando afirmou que uma orientação às con-
seqüências poderia acabar por dissolver a jurisdição em uma espécie de social
engineering aos moldes do Estado Social.134 Mais adiante - e agora já no plano
de Das Recht der Gesellschaft - veremos que, apesar da sinalização dos riscos, a
Teoria dos Sistemas, ao encontrar com seus próprios limites, não fornece uma via
capaz de superar esta dificuldade de orientação às conseqüências; muito antes,
afirma esta alternativa como uma saída para a confrontação com o paradoxo,
ainda que, incessantemente, reclame a necessidade de submissão a uma "coerên-
cia" que precisa ser melhor problematizada, todavia. 135
Nestes termos é que se faz extremamente relevante delinear aqui a preocu-
pação que LUHMANN demonstra no que dfe respeito ao non liquet. Em KELSEN a
questão da "lacuna do Direito" é superada através da referência à aplicação do
Direito: quando nenhuma norma particular oferece solução, o Direito, negativa-
mente, permitiria uma dada conduta. LUHMANN vai afirmar - em uma constru-
ção bastante inspirada na teoria da interpretação kelseniana - que, uma vez veri-
ficada a falta de programas capazes de serem tomados em conta - certamente do
ponto de vista de uma lógica dedutiva e que leva em conta o conteúdo destes
mesmos programas ao juiz não é permitido deixar de tomar a decisão: o siste-
ma solucionaria este impasse - de superação do paradoxo - em razão de uma pre-
visão institucional que tornaria o juiz como universalmente competente e capaz
de decidir a questão.
Isto estaria articulado com a impossibilidade de "denegação de justiça",136 e
que teria, diretamente, a ver com'.uma certa insinuação que o autor faz da ade-
quada formação que a um juiz é, requerida para que possa cumprir com esta

133 NEUENSCHWANDER MACALHAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos
Princípios Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos
da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273; p. 275; p. 277.
134 LUHMANN, Niklas. La diõerenziazione dei diritto: contributí alia sociologia e alia teoria dei diritto. Trad.
Raffaele de Giorgi. Bologna: II Mulino, 1990, p. 75.
135 Sempre indicando a necessidade de "coerência", cf., exemplificadamente, NEUENSCHWANDER
MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios Gerais do
Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-observa-
ção: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273; p. 277.
136 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 312.

142
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

mesma obrigação de decidir - inevitavelmente mantendo o juiz como um sujei-


to dotado de melhor formação e investido em um poder em razão da profissio-
nalização e organização do Direito, o que, em grande parte, vem a restringir, em
muito, propostas democráticas como a de P . H À B E R L E . 1 3 7
É muito importante, na medida em que conecta toda esta discussão, inclu-
sive, com a proposta desenvolvida por NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, tomar em
conta a afirmação do autor no sentido de que se poderia ir mais longe, no desen-
volvimento da questão, e concluir que toda a discussão moderna que se refere aos
"princípios jurídicos"teria a ver com o "produto secundário"desta problemática
do non liqueOM
E se referindo aos hard cases - como maneira de oferecer uma outra saída,
bem irônica, àquilo proposto por DWORKIN LUHMANN os entende como casos
em que as normas jurídicas existentes e vigentes - a serem aplicadas através de
"métodos dedutivos corretos" - não forneceriam uma "decisão clara", pois não
bastaria o conhecimento do Direito vigente para concluir e determinar quem
estaria em seu "direito". E aqui, encontrando os confins de uma teoria que opta
por uma leitura extremamente estreita da noção de norma - enquanto programa
eminentemente condicional -, a saída oferecida seria permitir criar e pressupor
este Direito, na medida em que os tribunais nãó poderiam mais encontrar solu-
ção apoiando-se no Direito então vigente. E , surpreendentemente, LUHMANN
conclui que, para além da força jurídica da decisão, não teria o tribunal como
defender sua posição enquanto programa do sistema jurídico.!39
A solução de LUHMANN é tão kelseniana que temos dúvidas, realmente, se a
Teoria dos Sistemas - no campo do Direito - não seria tuna observação do Direito
a partir da observação que a teoria positivista de KELSEN, por exemplo, faz do
Direito. E o paralelo aqui é fácil de ser traçado: LUHMANN, ao dizer que no Direito
vigente não há norma capaz de solucionar o caso de maneira a determinar a
questão como conforme/contrária ao Direito, procura superar esta "lacuna" -
somente "existente" pelo fato de que se argumenta com base em um modelo de
regras remetendo a questão à possibilidade institucionalizada e garantida de
decisão competente aos juizes que, uma vez "melhor preparados" - em razão da
organização (e todo o aparato que dela decorre) e da profissionalização ("que per-
mite uma formação diferenciada") -, confeririam validade à decisão a partir de

137 Cf.: HAíEJtLE, Peter. Henienêutica constitucional: a sociedade aberta dos intéripr<-tes da constituição: con-
tribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre, Safe, 1997.
110 LUHMANN, Niklas. ElDerecho de Ia sociedad,cIT.;LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 197.
111 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 198.

143
Lúcio Antônio Chamon Jonior

programas assim considerados tão-somente em função de sua força jurídica a ser


estabelecida através da coisa julgada...140
LUHMANN vai explicar esta dificuldade, de ser o juiz forçado a decidir e a ofe-
recer decisões convincentes, através da necessária consideração da força do
Direito - quando deveria trazer de volta a questão da tensão por ele mesmo per-
cebida': o convencimento viria, em sua perspectiva, garantido pela força do
Direito, que viria a exonerar a decisão, por mais questionável que fosse, de um
contínuo e repetitivo questionamento 141 - algo somente imaginável em uma teo-
ria que não tem qualquer pretensão normativa e, antes, procede a uma descrição
do Direito a partir da observação que realiza.
Isto somente se justifica - para a Teoria dos Sistemas, mas não para a
Teoria do Discurso - porque, afinal, os tribunais têm, nestas hipóteses, que
"decidir ali especificamente onde não podem decidir" - justamente em razão
da inexistência de programas condicionais aos quais se pudesse fazer referên-
cias. Isto é o que permitiria aos tribunais tomar decisões fora dos padrões acei-
táveis de racionalidade142 - o que, inclusive, de um ponto de vista teórico, se
mostra coerente com a afirmação de NEUENSCHWANDER MAGALHÃES de que se
deve buscar uma "racionalidade limitada" em termos de consistência das deci-
sões. ^justificativa para isto está no fato de que a decisão, ou melhor, o Direito
que não pode ser "encontrado", haverá que ser inventado.1*3
E muita atenção agora: neste ponto crucial, em que a teoria encontra seu
limite, ela propõe - e categoricamente afirma - que uma argumentação refe-
rente às conseqüências que, enquanto tais, se projetam como futuras e não-
acessíveis, se mostra como saída para esta questão144 - o que, inclusive, é ade-
quado à proposta de NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, enquanto nenhum de
seus defensores sejam capazes de oferecer uma solução racional para a teoria
nos termos da própria teoria.
Assim é que a força do Direito se tornaria importante, na medida em que
funcionalmente exoneraria a decisão de um contínuo questionamento.
Implicaria a garantia de que uma decisão tomada levando-se em conta as conse-
qüências se mostraria como incapaz de ser alterada em razão daquelas mesmas
conseqüências que, embora previstas, porventura, não tivessem se realizado.145

140 Em um paralelo funcional surpreendente com KELSEN, cf. KOSEN. Hans. Teoria Pura do Direito, cit., cap. VIII
141 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Nildas. Das Recht der CesellschaA, cit., p. 316
142 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Niklas. Das Recht der CesellschaA, cit., p. 316
143 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., pp,
316-317.
144 LUHMANN, Nildas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., p. 317.
145 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., Ç.
316; "Esto hace que la inclusión de consecuencias en la búsqueda y fundamentación de la decisión sea ino-

144
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

A decisão rumo às conseqüências, expõe LUHMANN, pode ser definitivamen-


te criticada desde uma perspectiva empírica, mas, por outro lado, como já afir-
mado acima, ao mesmo se apresenta como saída quando deve o Direito decidir
quando "não pode" decidir. Assim é que continua afirmando, no oitavo capítulo
de Das Recht der Gesellschafc, que seria difícil a qualquer juiz provar uma lei
valendo-se do esquema interpretativo meio/fim, ainda que para tanto fosse assim
interpretá-la (como se a lei tivesse um fim, tuna finalidade). Mas deste ponto o
autor desvia afirmando que, não obstante existir esta dificuldade, os tribunais,
em sua prática cotidiana - e aqui mais uma^vez a perspectiva de observação, e
não normativa, faz a diferença - , tendem a realizar, em suas sentenças, exata-
mente isto, ou melhor, se orientam, definitivamente, pelas conseqüências, o que,
de modo algum, tornaria discutível a competência deste mesmo tribunal em
dotar de validade suas suposições - segundo expressões do próprio L U H M A N N .
Se de um ponto de vista crítico-empírico, continua o autor, isto seria dotar
de força jurídica a imaginação - na medida em que o futuro e as conseqüências
são incertos e não determináveis no presente; para tanto basta lembrarmos a
diferença entre futuro-presente e presentes-futuros - , por outro lado, e toman-
do em conta a validade do Direito como símbolo, a decisão seria válida não em
razão dos argumentos ou de uma correção, mas pela mera necessidade de supe-
ração da "impossibilidade de decisão" que conferiria ao Judiciário poder para
dotar de validade - eqüivale dizer, vigência - , como já explicitado, suas próprias
suposições. Isto tudo, concatenado pelo autor, nos permite conectar não só com
os desenvolvimentos de NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, mas também com uma
certa perspectiva kelseniana também já insinuada. Aliás, esta decisão, que toma
em conta as conseqüências, poderia ser interessante ao sistema na medida em
que introduz variedade no mesmo. 146
Importante anotar é que a referência à necessidade de consistência sempre
se faz presente, sendo que, para a teoria, são os tribunais que têm a tarefa de veri-
ficar - enquanto supervisores - a consistência de quaisquer decisões jurídicas em
termos de observação de segunda ordem. 147 E na exata medida em que os juizes
têm que decidir, não poderiam esperar uma "iluminação", ou uma "segurança" -
quanto à decisão - , para solucionar o caso: isto leva à assertiva de que formal-
mente, segundo o próprio LUHMANN, OS tribunais fazem com que suas decisões

fensiva y, a la vez, riesgosa -inofensiva porque en el momento de la decisión válida Ias consecuencias están
todavia en un futuro desconocido; riesgosa, precisamente por eso. Las consecuencias que se llevan a cabo
(o no) en contra de las expectativas, ya no pueden cambiar la decisión. Puede que ésta posteriormente se
evidencie como especulación errônea, sin embargo es válida y, distinto a lo que pasa con las leyes, ya no
se puede cambiar en vistas a una nueva mezcla de consecuencias".
146 LUHMANN, Niklas. El Derecho de ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 379.
147 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit.. p. 326.

145
Lúcio Antônio Chamon Junior

sejam referentes ao Direito vigent^. Assim é que a força jurídica estabelece um


limite à questionabilidade da decisão jurisdicional pelo fato de que o tribunal -
segundo o autor, "protegido pela organização e profissionalização" no âmbito de
uma análise sociológica das organizações - , apresenta a sua sentença como inter-
pretação e aplicação do Direito que, inclusive, pode causar variabilidade no sis-
tema 148 - basta pensarmos nas decisões orientadas às conseqüências.
Mas aqui a Teoria dos Sistemas se faz insuficiente, em razão de que, reco-
nhecendo, de fundo, a existência de "lacunas" - justamente pelo fato de que a
noção de programa (norma) a partir da qual constrói todo o pensamento permi-
te tal constatação - , concede ao juiz, que deveria basear suas decisões em textos
normativos, um "poder" extremamente arriscado para o próprio sistema, além de
descompromissado com a noção contemporânea de democracia deliberativa. É
certo que LUHMANN se preocupa, como no capítulo quarto de seu livro, acerca de
quais conseqüências estruturais para o Direito poderia decorrer da substituição
dos programas condicionais por programas orientados a fins. 149 Preocupação
também marcada por NEUENSCHWANDER MAGALHÃES quando observa que o prin-
cípio da igualdade poderia levar a uma certa des-diferenciação funcional no
âmbito da União Européia, na medida em que a Corte o emprega orientado-se
pelas conseqüências politicamente proveitosas. 150
Isto tudo se dá em meio à consideração da igualdade como dotada de um
sentido normativo que surge, na teoria, sem qualquer justificativa plausível -
justamente porque falta, em sua análise, uma dimensão normativa. Mas a
necessidade de superar o obstáculo que significa a ausência de qualquer regra
oferecida pelo Direito para a solução de um dado caso concreto faz com que logo
se esqueçam os riscos de uma decisão orientada pelas conseqüências, sendo que,
imediatamente, é ao juiz "concedido" um "poder-criar" normas o que, inclusi-
ve, o permitiria determinar como Direito o que considerasse - em sua interpre-
tação - como um meio adequado para um iim. 151 Toda esta falta de coerência
teórica é justificada em termos de consistência sistêmica, como maneira de rea-
lizar uma racionalidade limitada\Como os próprios teóricos reconhecem. Resta-

148 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 332.
149 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p.
205.
150 NEUENSCHWANDER MAGAUIAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit.
151 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaSt, cit., p. 205;
"En el caso extremo, el establecimiento de condiciones se reduce, entones, a una norma de competencia.
Derecho es lo que el juez considera, como instancia determinante, un médio adectiado para el fui. Pero aun
eso sigue siendo un programa condicional, porque sólo es derecho si el juez realiza su competencia dentro
dei derecho, es decir, sólo en tanto juez." (itálicos nossos)

146
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^ \ Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

\ ;
; nos, portanto, investigar se dita "consistência" é capaz de superar a discriciona-
X riedade até então reconhecida ao juiz.
t
Л
7. O problema da justiça em Luhmann: mais uma reverência a Kelsen?
.

<5 .
- • O problema da justiça na teoria luhmanniana se faz central não de uma
j perspectiva moral, nem a partir de um enfoque valorativo - mesmo porque para
i o autor a justiça é um valor que não goza de qualquer status superior. Л centra-
lidade do tema da justiça se faz na exata medida em que os tribunais também
gozam"d<Tiírq.a centralidade no sistema do Direito: a partir do momento em que
о пол liquet não pode ser declarado pelos tribunais - em razão de, mesmo quan-
do "não seja possível" decidir, serem obrigados a decidir -, isto leva a uma neces-
sidade de se "criar" uma alternativa que não será continuamente questionada em
razão da "força do Direito"- por mais questionável, todavia, que seja dita criação
jurisprudencial.
O tema da justiça, e seu delineamento oferecido por LUHMANN, é tratado
em termos funcionais, sendo uma decisão justa não aquela que se rende a
valores ou a padrões morais, mas antes uma decisão consistente. A consistên-
cia, enquanto algo a ser verificado internamente como referente ao próprio
sistema, permitiria um certo grau de racionalidade que, no sentido de
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, e do próprio L U H M A N N , se apresentaria como
limitada em determinadas situações como estas em que se teria uma defini-
I ção e criação - de princípios - por parte dos tribunais.
Neste sentido, vale trazer aqui um ponto que, embora já ressaltado anterior-
mente, deve se fazer ainda vivo neste momento: a diferença entre igualda-
de/desigualdade. Como já visto, LUHMANN - superando A tautologia de que o igual
é igual ao igual - pretende envolver tal distinção em um manto normativo, res-
gatando o "princípio" da igualdade como dotado de normatividade: os iguais
devem ser tratados igualmente e assim por diante. A insuficiência desta argu-
mentação se faz presente novamente neste ponto quando da problematização
em torno da "justiça": enquanto programa normativo, ela se vale diretamente do
conteúdo normativo sacado da diferença igual/desigual. ^
| Todavia, e aqui entrando na discussão travada no quinto capítulo de Das j
Recht der Gesellschaft, LUHMANN resgata uma construção oferecida no início
do livro e que se faz frutífera neste ponto: a noção de generalização. A noção
de generalização tem a ver com os sistemas: o próprio sistema social de fun-
ção é capaz de reconhecer suas próprias operações reiteradamente realizadas,
identificando-as - não somente em contextos idênticos - nas mais diferentes
situações, razão pela qual deve apresentar, assim, uma capacidade de genera-

147
Lúcio Antônio Chamon Junior

lização, enquanto unidade. O fato de o sistema permitir uma generalização -


no que se refere à capacidade de identificação de suas operações em diferen-
tes contextos - surge enquanto unidade de condensação e confirmação das
operações recorrentes no, e referentes ao, sistema - e aqui L U H M A N N constrói
sua argumentação baseando-se em S P E N C E R BROWN. 152 Resgatando estas
noções, devemos esclarecer que, se a condensação permite a "sedimentação",
enfim, o estabelecimento de identidades, estas condensações somente poderão
ser generalizadas se se toma em conta uma possibilidade de confirmação em
outras situações diversas - em cada situação sempre específica. L U H M A N N
recorre, assim, à noção de identidade em um horizonte sempre contingente e
que, enquanto algo estabelecido no sistema, permitiria a este mesmo genera-
lizar suas operações.
E neste sentido que o autor, no capítulo oitavo, vai se referir à possibilida-
de de decisão no campo jurisdicional mediante uma atividade argumentativa. O
caso individual, ainda que com características irrepetíveis, somente poderia ser
decidido na medida em que houvesse decisões anteriores e decisões futuras a
serem, todas elas, tomadas em conta; afinal, o Direito é uma máquina histórica.
Os exemplos- no plano da argumentação - surgem, para o autor, como um apor-
te a ser tomado em consideração de maneira frutífera para a operacionalização
sistêmica; o fato de haver repetições, explica o autor, não significa que há cópia
das decisões passadas e uma abertura meramente idêntica ao futuro.
A repetição envolvida na autopoiesis somente pode ser compreendida
enquanto mecanismo de generalização do sistema que, tomando em conta as
especificidades do caso, permite, justamente, ou não, a confirmação de determi-
nada norma que, enquanto operação do sistema, fora neste condensada. Os casos
jurídicos se tornam, então, plenamente comparáveis e, nesta possibilidade, devem
pautar-se pelo princípio de igualdade, enfim, há uma exigência de justiça, que
deve ser trabalhada no sentido de que casos iguais devam ser tratados em um
mesmo sentido - até que se introduza uma diferença nesta igualdade. Na medida
em que nenhum caso é circunstancialmente idêntico a outros - e isto assumela
Teoria dos Sistemas - , a justiça se estabelece em uma realização da capacidade de
generalização do sistema capaz de, nesta diversidade, identificar e condensar
regras - enquanto manutenção de uma identidade. Por conseguinte, surge a pos-
sibilidade dc confirmar estas mesmas regras em contextos mutantes, garantindo,
assim,"a autopoiesis do sistema, sua recursividade e sua própria justiça.153

175 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 237.:
176 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc derGesellschaã,cit.,pp.:
374-375.

148
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

A partir do momento em que se toma o sistema jurídico como orientado por


um código capaz de permitir uma unidade - enquanto esta se apresenta como
unidade que representa um paradoxo somente nos será possível pensar neste
código se estabelecermos uma marca que diferencie o código de programas que
o sumplementam e que permitem, pois, desenvolver o paradoxo. Isto porque este
mesmo código, enquanto tal, está referido às operações que se verificam no lado
interno da forma sistema/ambiente (Direito/não-Direito). E a distinção entre
valor positivo e negativo, também um resquício teórico-jurídico da teoria kelse-
niana,154 aqui ganha em densidade e complelddade a partir do momento em que
os programas oferecem, dentro de uma dimensão técnica, quais são os critérios
materiais que permitem a referência a um, ou a outro, valor codificado - crité-
rios estes dos quais a teoria jurídica irá se ocupar. 155
A questionabilidade de um conceito de justiça nestes termos - de teoria do
Direito - pareceria sem sentido somente se - ao entendermos o Direito como um
sistema autopoiético - enfocássemos a justiça enquanto matéria referente a con-
teúdos e leituras morais em função de uma possível fundamentação do Direito na
Moral156 - o que levaria à posição, diríamos, "do" HABERMAS da Theorie des kom-
munikativen Handelns ou "do" HABERMAS das Tanner Lectures. Mas o importan-
te aqui é ressaltar ò esforço de LUHMANN em entender a justiça não como uma
questão a ser considerada sob um enfoque ético ou moral, mas proceder a uma
análise que satisfaça ao próprio Direito enquanto sistema diferenciado. A partir
do momento em que a Teoria do Direito se refere a questões atinentes a descri-
ções de "programas normativos" por exemplo, a justiça, sob um enfoque ético,
não poderia servir para os propósitos desta mesma Teoria, pois, do contrário,
estaríamos descrevendo outra coisa que não o Direito e "re" programando o
Direito segundo outro código que não o seu próprio.
O mais interessante a ser levado em conta é que para a Teoria dos Sistemas
o fato de a justiça não poder ser juridicamente articulada em termos morais -
pois já a proposta seria um contra-senso! - não significa que internamente a
questão não possa ser realçada de maneira teoricamente mais adequada. E é inte-
ressante - sobretudo de um ponto de vista crítico - observar como o autor vai
proceder a esta redefinição interna da concepção de justiça. Esta se apresenta
como uma a uto-observação e autodescrição do sistema. Se uma auto-observação

154 KOSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., 19: " 0 juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser,
de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor posi-
tivo. Significa que a conduta real é 'boa'. O juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como de acor-
do com uma norma válida, deveria ser, por que é o contrário de uma conduta que corresponde à norma, é
um juízo de valor negativo. Significa que a conduta real é 'má'."
155 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cit.; LUHMANN. Niklas. Das Recht der Gesellschaã, cit., p. 216.
156 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 216.

149
Lúcio Antônio Chamon Junior

e autodescrição no plano do código do Direito leva a um paradoxo, propõe o


autor uma alternativa: indaga se há uma unidade capaz de ser projetada não no
plano do código, mas no que se refere aos programas.157
E é assim, se referindo a um plano normativo - plano dos programas - , que•
LUHMANN pretende enfocar o problema sacando o valor normativo da justiça
enquanto qualidade que deve, e somente pode, ser aferida em termos sistêmicos
— a justiça não é simples autodescrição teórica do sistema, mas antes se estabelece
enquanto programa do próprio sistema jurídico. A justiça vem responder a uma
necessidade meramente funcional - e certamente de onde se retira seu caráter
normativo, de uma necessidade de autocontrole do sistema,158 o que, inevitavel-
mente, leva a uma necessidade sistêmica de garantir a generalização de suas ope-
rações, ainda que com isto pouco, ou nada, diga a respeito do conteúdo das pró-
prias operações que são referidas ao emaranhado rècursivo das operações fáticas.
O problema da justiça (das Problem der Gerethtigkeit)159 pode aqui ser tra-
balhado porque entendido em termos de auto-refèrência, mas não como opera-
ção, mas, antes, como observação que se dá no plano dos programas (e não do
código) sob a forma de norma (e não meramente teorias capazes de serem discu-
tidas) sujeita, como todas as normas, a decepçõés. O conteúdo normativo da
igualdade, antes suspenso, somente adquire "densidade" - se é que se pode falar
nisto - na medida em que há uma exigência operacional: para o sistema jurídico
' operar a si meçmo de maneira autocontrolada e permitindo repetições e genera-
| lizações há que fazer referência a uma norma de justiça, à consubstanciação de
um princípio da igualdade, sem que isto implique que a autopoiesis, em si, seja

( justa ou que o próprio código seja justo:160 antes, a justiça somente se pode dar
em contextos autopoiéticos e codificados...
Enquanto observação, podemos proceder à análise da justiça, ou não, de
determinada decisão tomada em conta no interior do sistema jurídico. O justo
não mais pode ser entendido, segundo a Teoria dos Sistemas e como LUHMANN
expressamente ressalta, como uma "justa medida" ou "virtude", pois, do contrá-
rio, estaríamos caindo em uma discussão moral. Na medida em que já ressalta-
, mos que os casos jurídicos podem ser comparados no marco de uma generaliza-
ção, temos que a métrica desta comparação, no que interessa à justiça, é o fato de
determinados casos no sistema terem sido tratados como iguais ou desiguais. Isto
somente pode ser levado em conta se, naquela situação, há uma delimitação do
caso frente a diferentes outras hipóteses que, para tanto, para tal delimitação, há

157 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de h sodedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit, p. 217.
158 LUHMANN, Niklas. ElDerechode lasodedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 217.
159 LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 216.
160 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 218.

150
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

que ser levado em conta, enfim, aquilo relevante para a própria delimitação do
caso.161
A justiça aparece, então, como um ponto fundamental no sistema que nos
permite afirmar acerca da consistência por se relacionar à forma da igualdade,
dando pois, um matiz normativo à igualdade e também à desigualdade.
Isto permite uma superação da noção de justiça - em termos operacionais e
transferidos em termos teóricos - enquanto valor (em uma dimensão moral) para
sua compreensão enquanto fórmula de contingência (em termos jurídico-norma-
tivos). Enquanto somente um observador externo pode observar a justiça
ènquanto "fórmula de contingência", o sistema, no seu operar, tem necessidade
de se vislumbrar como justo, ou melhor, de se auto-organizar e de se autocontro-
lar a fim de possibilitar, através desta possibilitada capacidade de generalização,
a autopoiesis do sistema. Isto leva à afirmação de que, internamente, a fórmula
ia contingência hájjue ser entendida, apmo "canonizada", irrefutável. 162
à função daá fórmulas de contingência^ presentes também noutros siste- j
mas sob diferentes designações"- é a estabelecer limites que permitam uma pon- j
tualização entre a determinabilidade e a indeterminabilidade do sistema. O
rebaixamento deste limite somente se pode dar se se toma em conta, segundo o
autor, fatores historicamente dados, algo que será adiante retomado. O fato de se >
afirmar uma dimensão de determinabilidade/indeterminabilidade não se refere ;
ao passado, mas antes se abre ao futuro que, vinculado ao presente, pode ser .
determinado de outra maneira: daí o nome "fórmula de contingência", na medi-
da em que o sistema, no seu operar, leva em conta sempre outras e variadas pos-
sibilidades. Mas esta função, de gerar a operacionalização do sistema no marco
dos programas estabelecidos e frente a uma dupla possibilidade de determinabi-
lidade/indeterminabilidade, se cumpre de maneira latente, pois, do contrário, a
resposta é um retorno ao paradoxo "Recht ist Unrecht",163
Isto leva à compreensão da justiça como referente a uma dimensão norma_-
tiva. AJustiçajjeve ser entendida enquanto norma, mas não como uma norma
capaz' de oferecer um^critério de seleção - enquanto programa determinado
ipois se isto acontecesse a norma se colocaria "junto a outros critérios de seleção
|do sistema e perderia sua função de representação do sistema e no sistema".164
|~ Não deixa, no mínimo, de ser intrigante - sobretudo quando lembramos
KELSEN - o estabelecimento de tuna norma diferenciada e que^não se coloca ao

161 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit„ pp.
227-228.
162 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaã, cit., p. 215.
163 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 220.
164 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/i, cit.. p. 221.

4
Lúcio Antônio Chamon Junior

lado das demais, ainda mais em uma teoria como a luhmanniana, que não esta-
belece hierarquia entre normas. Anorma da justiça não estabelece qualquer cori-
dicionamento; deve ser aceita somente enquanto funcionalmente irrefutável,
sem quecom isto haJà~quãlqueFprevisão ou estabelecimento^ futuro de decisões;
norma esta que permite a observacão_de justiça ou injustiça de certas detisões. 1 >5
Tudo deve ser entendido, ressalta-se, em termos funcionais, o que leva a
uma necessária a) separação entre "fórmula de contingência" (justiça em termos
luhmannianos) e o próprio critério normativo de seleção estabelecido. A fórmu-
la de contingência - enquanto densidade normativa da igualdade - b) afasta
qualquer orientação "desejável" ao sistema, o que confirma uma diferenciação
ética frente a uma busca em termos operacionais do sistema. Enquanto norma, a
justiça, assim entendida, c) pode estar sujeita a decepções: todas as normas (estrji-
turas) e operações do sistema devem ser pretendidas como justas. Isto porquej a
justiça surge d) como um princípio que funda a si mesmo - obviamente em tejr-
mos funcionais, ainda que não explicitado - e se evidencia enquanto igualdade,
enquanto princípio formal da igualdade que nada diz acerca acerca da validade
do sistema - antes entendida como conectividade das operações - , muito menos
acerca do conteúdo do Direito. 166
Mas esta formalidade.e aparência abstrata da justiça, enquanto fórmula de
contingência, há que ser tomada na operacionalização recursiva do Direito
enquanto sistema faticamente verificado. Isto leva à consideração das circuns-
tâncias históricas no manejamento da fórmula de contingência. Mas como há
uma relatividade histórica - o que inclusive leva a uma re-especificação do
igual/desigual, enfim, da pauta de justiça - , e em um contexto de alta complexi-
dade, - tanto do sistema e ainda mais do ambiente - , enfim, em um contexto de
sistemas diferenciados, temos que o sistema não consegue responder a toda esta
complexidade. O sistema, portanto, realiza uma redução interna de complexida-
de que, em assim ocorrendo, demarca um ambiente através de "altos muros de
indiferença" - claramente o autor se refere ao Unrecht como ambiente do siste-
ma, como "unmarked space", i.e., como aquilo "fora" do sistema do Direito. Mas,
retomando a questão em termos já delineados, a redução desta complexidade
interna tem que levar em conta o fato de que somente haverá justiça se houver
consistência na decisão,}67
Na medida em que se refere à "indiferença", e no marco de uma discussão
acerca da igualdade, se faz oportuno uma abertura para a discussão entre varia-
bilidade/redundância tomada pelo autor no capítulo oitavo de sua obra aqui

165 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/t, cit„ p, 221.
166 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p, 222.
167 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 226.

152
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen. Luhmann e Habermas

enfocada. Sobretudo quando levamos em consideração o fato de que LUHMANN


reconhece que decisões jurisidicionãis poderiam ser relevantes inclusive na
medida em que possibilitassem a introdução de variações no sistema.
Há, aqui, um retorno à questão da condensação e da confirmação. As fór-
mulas jurídicas, em razão de suas repetições, condensam um núcleo capaz de ser
percebido como idêntico, ao mesmo tempo em que, em um horizonte de signifi-
cado, podem ser, noutras circunstâncias, novamente retomadas e empregadas. Se
entendermos informações còmo novidade?— em termos de possibilidades — apre-
sentadas no e ao sistema, podemos, quando há um rechaço da necessidade de
mais - e novas - informações, falar em Redundância. Enfim, poderíamos fazer
referência à possibilidade que o sistema tem de permitir indiferenças frente às
próprias operações do sistema e de todas estas frente ao ambiente. A redundân-
cia somente surge como operações circulares no sistema que, selecionando deter-
minadas informações, caracterizam quais hão que ser tomadas em conta na
seqüência operacional e quais se apresentam como indiferentes: há, nisto, uma
especificação do sistema, na medida em que aumenta sua sensibilidade àquilo já
processado e apresentado como redundante. 168 Obviamente que tudo isto
somente é possível de se pensar se se leva em conta a capacidade de generaliza-
ção do sistema.
Mas interessante notar é que, embora o sistema se construa como indiferen-
te ao ambiente, há determinadas, ainda que poucas, comunicações ambientais
que podem adquirir um valor de informação para o sistema jurídico: mas mesmo
esta seleção, daquilo que há que ser considerado como novidade para o sistema,
depende do próprio sistema jurídico; destarte, da redundância. Somente através
de um sistema redundante é que uma informação, enquanto novidade, adquire
relevância, o que permitiria um processamento de informações. Isto implica, e
conseqüentemente significa, um movimento permanente de transformação de
informações em outras informações para que adiante sirvam para outras opera-
ções: a informação - e aqui se referindo a BATESTON - é uma diferença (desigual-
dade, diríamos) que realiza uma diferença no sistema (re-entrar do igual/desigual
no igual) e que muda o estado do sistema.169 Ou, em outro sentido: a generaliza-
ção permite, em termos operativos e recursivos, a verificação de redundância
enquanto estabelecimento de critérios para a seleção a serem tomados em conta
na decisão. A informação, enquanto novidade, somente pode ser percebida e
processada se tomarmos em conta a idéia de redundância, implicando a entrada
da informação uma diferença que faz diferença no interior do sistema.

to
H

168 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafi, cit., pp.
352-353.
174 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.

153
Lúcio Antônio Chamon Junior

O que vale ressaltar é que, neste sentido, uma percepção ou uma concepção
teórica de justiça não pode ser alcançada desde um ponto de vista isolado, pois a
partir do momento em que se pretende superar uma perspectiva ético-moral de
justiça, esta, ao serconcebida como consistência das decisões do sistema, somen-
te se pode apresentar como prevenção de erros, o que implicaria uma prevenção
frente a inconsistências reconhecíveis. A injustiça, como valor contrário, signifi-
caria, portanto, a própria inconsistência. É desde uma observação de segunda
ordem que se pode indagar acerca das condições que permitem a verificação
daquilo que, em um nível de primeira ofdem, se observa como erro; no segundo
nível é que está a possibilidade de se perguntar acerca da redundância, e sua
manutenção, enquanto condição básica de verificação da justiça.' 70 .
Mas a consistência depende ainda de outra condição da autopoiesis sistêmi-
ca^a variedade. Enquanto a redundância se apresenta enquanto informação que
já sè~possui para processar informações ulteriores - o que implica, para o autor, a
possibilidade de se partir de um caso concreto para se alcançar ò dispositivo legal
("parágrafo') correspondente171 - , por outro lado a variedadè)se apresenta como
a informação que faz falta exatamente para isto, enfíüirpara processar outras
informações. Isto não significa a impossibilidade de a redundância e a variedade
aumentarem simultaneamente. Para tanto, o emprego da analogia serve, segundo
LUHMANN, não somente para que haja uma generalização das regras já incluídas e
existentes no sistema (redundância), como também serve para a criação de regras
em situações aparecidas como novas e ainda não incluídas (variedade). Isto
somente se pode dar simultaneamente no sistema a partir do momento em que
cada operação decisional se apresenta como indiferente às outras do ponto de
vista do presente, o que, todavia, não impede uma conectividade destas com
outras - mas não com todas! - operações do sistema.
A relevância da variedade está, justamente, no fato de o sistema jurídico
poder organizar sua memória não somente a partir de casos tipo, mas também a
partir de princípios- e então cheganços ao ponto central - como maneira de pos-
sibilitar repetições ulteriores - em ní\jel jurisdicional - , o que implicaria, no caso
dos princípios, uma participação da variedade na manutenção de consistência do
sistema:172 uma regra criada para uma situação nova implica a busca de supera-
ção e desenrolar do paradoxo, mas m o uma injustiça, a partir do momento em
que se nratando de..uma jituação nova não poderia a mesma ser_comparada à
nenhuma outra informação do sistema; embora, todavia, possa ser incluída e pro-

170 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklks. Das Rechcder Gesellschaít, cit., p. 357.
171 LUHMANN, Niklas. La ciência de la sociedad. Trad. Silvia Pappe; Brunhilde Erker; Luis Felipe Segura.
México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 313.
172 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 360.

154
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen. Luhmann e Habermas

cessada pelo sistema a partir de decisões^ e princípios criados para tanto!! Isto
desembocaria no fato de que o Direito "criado" pelos tribunais viria a adquirir
status de variabilidade quando fossem os "princípios" sacados em razão de um
contexto novo.
Mas nada impede que uma reutilização dos princípios então "inventados"
possa ser generalizada e aplicada em outras situações. O próprio LUHMANN reco-
nhece tais condensações e confirmações como princípios. Estes princípios, trazi-
dos a partir de razões sacadas quando da decisão de um caso em que o juiz não
•pôde decretar o non liquet, são entendidos como definitivo para tais decisões,
ajnda que para amadurecerem careceria tempo e experiência de inúmeros
:casos...i73 Afinal, somente em razão da redundância/variedade é que se poderia
alcançar uma constante adaptação do sistema a um ambiente sempre altamente
complexo a sempre irritar o sistema.174
Podemos, então, observar que, a partir da concepção de que os princípios
não são programas normativos condicionais, não significa, para a Teoria dos
Sistemas, que os mesmos não sejam relevantes para o sistema: permitiriam a solu-
ção de determinados casos quando, na qualidade de catalizadores de variações,
fossem introduzidos para permitir a operacionalização do sistema e a manuten-
ção da latência do paradoxo. Mas, a partir do momento em que fossem introdu-
zidos, poderiam ser úteis em situações posteriores: para tanto o sistema deveria
deles se "lembrar" quando já se apresentassem como condensados e confirmados
em situações sempre distintas.
O mais interessante é que LUHMANN afirma que esta generalização desem-
bocaria na concepção dos princípios como úteis na solução de casos novos, desde
uma perspectiva também funcional, o que permitiria a superação da dificuldade
de julgamento através de uma criação jurisprudencial - ainda que estes princí-
pios não fossem considerados como normas! Embora pudessem ter relevância na
busca da consistência das decisões...
A partir do momento em que a justiça se atrela à forma igual/desigual, isto
não significa que uma repetição contínua - e típica de períodos tradicionais
i historicamente precedentes - das soluções venha a gerar uma corrupção das
! decisões: se a redundância gera indiferenças, ela também é capaz de garantir
| um aumento de sensibilidade do sistema a fim de permitir uma distinção entre
situações similares, e capazes de serem resolvidas por uma regra já incluída - a
partir do momento em que o recorte normativo é sempre pontual a fim de per-

173 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.
174 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.

155
Lúcio Antônio Chamon Junior

mitir tal generalização e novas situações que, para tanto, exigiriam do siste-
ma uma capacidade para processar esta novidade, superando-a em termos sis-
têmicos, oferecendo ao juiz a possibilidade de, perante tal novidade, introdu-
zir novas decisões que, inclusive pelo uso reiterado, pudesse significar uma
aplicação justa disto que fora condensado sob o molde de "princípios". A fór-
mula de contingência serve não para reconstruir o Direito e o caso concreto
perante um juízo, mas para garantir uma correção comparativa através da
forma igual/desigual, sendo, então, possível, a verificação de repetições.175
Isto não implica que o sistema tenha que se "enclausurar internamente" no
sentido de sempre pretender repetir decisões já tomadas: a complexidade moder-
na exige que, em determinadas situações, o sistema introduza variedade, o que,
inclusive, é possível em razão do lado desigual da forma. E aqui, pretendendo
resgatar algo que já fora anteriormente apontado, somente quando se indica algo
como desigual é que se permite formar novas igualdades e desigualdades. O re-
entrar da forma na forma permite, assim, o estabelecimento de novas redundân-
cias ao mesmo tempo em que abre espaço e possibilidades para novas variações, j
Ná medida em que a justiça implica consistência sob a batuta da forma i
igual/desigual, podemos, então, com L U H M A N N compreender justiça como redun- 1
dância. A variedade apareceria não como algo funcionalmente incapaz de operar
sistemicamente, mas antes se apresentaria como aquilo que, em certo sentido,
impede o "império da justiça". Como diz o autor, a variedade chama nossa aten-
ção para o fato de que há "um outro lado da questão": a variedade existe não em
razão de decisões sem fundamento, mas antes de uma exigência funcional que
toma em conta a alta complexidade da Sociedade, o que, todavia, poderá poste-
riormente ser transformado em redundância, enfim, em possibilidade de justiça
- cm novas igualdades. A variedade surge como que para permitir que o sistema
aprenda, em diferentes situações, diferentes alternativas.176
E, assim, e no que aqui interessa, oferece L U H M A N N uma concepção de jus_-
tiça funcionalmente estabelecida como maneira de garantir ao Direito seu fecha-
mento operacional. Embora haja uma surpreendente sofisticação frente às teo-
rias tradicionalmente tidas como positivistas, é inevitável introduzir algumas crí-
ticas que, apesar de não atacarem todos os pontos necessários, levam, justamen-
te, a uma aproximação entre a Teoria dos Sistemas e a Teoria Pura de KELSEN.
Além dos pontos já delineados anteriormente, devemos pretender agora
enfocar a questão da justiça.

175 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 237.:
176 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., pp.:
374-375.

156
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas

Com o mesmo intento de redefinir a justiça, não em termos éticos, mas


supostamente em termos jurídicos - que levasse em conta uma "ordem jurídica
determinada" - , KELSEN pretendeu superar uma concepção "subjetiva" para
firmá-la em um campo pretensamente seguro. Para tanto, vai desenvolver a con-
cepção de que justiça é legalidade, sendo que o justo se dá quando uma regra
geral é indistintamente aplicada em todos aqueles casos em que seu conteúdo
indica que deva ser aplicada... A "injustiça", e isto é plenamente consoante à teo-^j
ria luhmanniana, se verificaria quando tal regra fosse aplicada em um caso, mas
não em outros similares e que, portanto, também deveria nestes ser aplicada. E
assim é que KELSEN abstrai da justiça qualquer juízo de valor, possibilitando, por-
tanto, referir ao problema da justiça como um problema de "aplicação escrupu-^J
losa"do Direito. 177
E se L U H M A N N pretende trabalhar a justiça manipulando a forma igual/desi-
gual, não nos causa nenhuma estranheza que tal "forma" possa ser entendida
como embutida ou pressuposta no desenvolvimento kelseniano: justo é aquilo
decidido de maneira escrupulosa em que se aplica uma norma que fora anterior-
mente aplicada também a outro caso igual.f^a medida em que KELSEN afirma que
o sentido de justiça, nestes termos, é o único a ser pertencente à Ciência do
Direito,178/ L U H M A N N complementa que à Teoria do Direito não interessa,"
enquanto autodescrição do sistema, um concepção moral de justiça , mas antes
enquanto programa normativo distinto - fundamental? - dos demais, porque /
articulador da forma igual/desigual. —— J
Por agora, ainda vale ressaltar que, embora L U H M A N N tenha sempre critica-
do o estabelecimento de normas diferenciadas e "superiores" por parte do positi-
vismo - norma fundamental em KELSEN; regra do reconhecimento em H A R T - ,
ele mesmo, em certo sentido, acaba por também estabelecer uma "supernorma"
- porque funcionalmente indispensável -, qual seja, a fórmula de contingência.
Enquanto norma "canonizada", insuperável de um ponto de vista interno ao sis-
tema, por supostamente não ser dotada de qualquer conteúdo, não se localizaria
ao lado dos demais programas normativos, mas antes se diferenciaria por servir
à observação das operações do sistema. No mínimo instigante é verificarmos que
também a norma fundamental possuía uma "natureza" distinta, i.e., uma norma
que se diferenciaria das outras não só em função de sua hierarquia, mas também
por ser pressuposta.
Mas o fato de a Teoria dos Sistemas apresentar falhas não significa que a
mesma não ofereça qualquer desenvolvimento ou possibilidades interpretativas

177 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes.
1998, p. 21.
178 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, cit., p. 22.
R

s
Lúcio Antônio Chamon Júnior

úteis e indispensáveis para a compreensão do Direito moderno. Como se verá


adiante, a Teoria do Discurso muito deve às contribuições da Teoria dos Sistemas
- sobretudo quando H A B E R M A S supera a perspectiva contida nas Tanner Lectures.

158
ntviiu CriUa dl Oindu Socilii 65. M«]o 3003; 3 - 7 6

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Poderá o direito ser emancipatório? 1

Depois de definido o pano de fundo hlstórico-polítlco da pergunta que adopta como


titulo, o texto começa por analisar a situação presente, debruçando-se, em seguida,
sobre as condições que tornam viável uma resposta prudentemente afirmativa a essa
pergunta e concluindo por uma especificação de algumas das áreas em que uma
: relaçSo entre o direito e a emancipação social se afigura mais urgentemente necessária
e possível.

1. Introdução
Vivemos n u m período avassalado pela questão da sua própria relatividade.
0 ritmo, a escaJa, a natureza e o alcance das transformações sociais são de
tal ordem que os momentos de destruição e os m o m e n t o s de criação se
s u c e d e m uns aos outros numa cadência frenética, sem deixai t e m p o nem
e s p a ç o para momentos de estabilização e de consolidação. É precisamente
p o r isso que caracterizo o período acrual como sendo um período de transição.
A natureza da transição define-se pelo facto de as questões complexas
p o r ela suscitadas não encontrarem um ambiente sócio-cultural conducente
às respectivas respostas. De um lado, aqueles que lideram as seqüências de
destruição e criação social - normalmente pequenos g r u p o s sociais domi-
n a n t e s - estão tão absorvidos no automatismo da seqüência q u e a pergunta
p e l o que fazem será, na melhor das hipóteses, irrelevante e, no pior dos
casos, ameaçadora e perigosa. D o outro lado, a esmagadora maioria da
p o p u l a ç ã o que sofre as conseqüências da intensa destruição e da intensa
criação social está demasiado ocupada ou atarefada com adaptar-se, resistir
ou simplesmente subsistir, para sequer ser capaz de perguntar, q u a n t o mais
de responder a questões complexas acerca d o que fazem e porquê. A o con-
trário d o q u e pretendem alguns autores (Beck, G i d d e n s e Lash, 1994), este
n ã o é u m t e m p o propício à auto-refiexão. É provável que esta seja exclu-
sivo dos que gozam do privilégio de a delegar nos outros.

1
O presente texto reproduz no esiencial, com algumas adaptações, o capitulo nono da minha
obra Touiird i New Legal Common Senie. Law, GlobaliiMion, jtiJ Emtncipatian. London:
Butterwonh» LexitNexis, 2002.
4 | B o a v e n t u r a i;9 S o u s a S a n t o s

Trata-se dc um p e r í o d o complexo de analisar. Paradoxnlmcnte, c o n t u d o ,


não será através dc p e r g u n t a s complexas, mas sim dp perguntas simples,
q u e encontraremos o significado dessa c o m p l e x i d a d e e n q u a n t o orientação
para a acção. U m a p e r g u n t a simples e elementar é aquela que logra atingir,
com a transparência técnica de uma f u n d a , o magma mais p r o f u n d o da
nossa p e r p l e x i d a d e individual e c o l e c t i v a - q u e não é mais do que a nossa
complexidade p o r explorar. N u m p e r í o d o não m u i t o diferente d o nosso,
RousseauJ no seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750), formulou u m a
pergunta ftiuito simples, que, em seu entender, resumia a c o m p l e x i d a d e da
transição em curso, e deu-lhe resposta. A p e r g u n t a era esta: será q u e o
progresso jdns ciências e das artes contribui para a pureza ou para a cor-
r u p ç ã o dos costumes? O u , n u m a f o r m u l a ç ã o ainda mais simples: haverá
u m a relação entre a ciência e a virtude? Após u m a argumentação c o m p l e x a ,
Rousseau ácoba p o r r e s p o n d e r de u m a maneira igualmente simples: c o m
um r e t u m b a n t e " n ã o " . N o presente artigo, p r o c u r a r e i responder a u m a
pergunta igualmente simples: p o d e r á o direito ser emancipatório? O u : será
q u e existe u m a relação e n t r e o direito e a d e m a n d a por u m a s o c i e d a d e
b o a ? Ao invés de Rousseau, p o r é m , não creio ser capaz de r e s p o n d e r com
um simples não ou c o m um m e r o sim.

N a primeira secção d o artigo fornecerei o p a n o de f u n d o histórico-político


da questão a q u e m e p r o p o n h o dar resposta. Na segunda jecção, analisarei
a situação em q u e nos e n c o n t r a m o s presentemente. Finalmente, na terceira
e quarta secções, deter-me-ei nas condições em que se torna possível res-
p o n d e r à pergunta formulada com um sim bastante relativado. Especificarei
então algumas da áreas em q u e u m a relação entre o direito e a e m a n c i p a ç ã o
social se afigura mais u r g e n t e m e n t e necessária e possível.

a, A questão no seu contexto


Assim que o Estado liberal assumiu o m o n o p ó l i o da criação e d a adjudica-
ção d o direito - e este ficou, assim, reduzido ao direito estatal - , a tensão
entre a regulação social e a emancipação social passou a ser um o b j e c t o
mais da regulação jurídica. N o s termos da distinção encre emancipação social
lega] e ilegal - desde então, u m a categoria política e jurídica essencial - , só
seriam permitidos os objcctivos e práticas emancipatórios sancionados pelo
E s t a d o e, por conseguinte, conformes aos interesses dos grupos sociais q u e
lhes estivessem, p o r assim dizer, p o r trás. Esta dialéctica regulada transfor-
mou-se gradualmente n u m a não-dialéctica regulada, em que a e m a n c i p a ç ã o
social deixou de ser o o u t r o da regulação social para passar a ser o seu
duplo. Por outras palavras, em vez dc ser u m a alternativa radical à regu-
lação social tal c o m o existe hoje, a emancipação social passou a ser o n o m e
da regulação social n o processo dc auto-revisão ou d e a u t o t r a n s f o r m a ç ã o .

to
Poderá o direito ser emsncipatòrío? | 5

Com o triunfo do liberalismo em 1848, a preocupação primeira do Estado


liberal deixou de ser lutar contra o Ancien Regime para passar a ser opor-se
às reivindicações emancipatórias das "classes perigosas", as quais, apesar
d e derrotadas na Revolução de 1848, continuaram a pressionar o novo
regime político com exigências crescentes de democracia (Walierstein,
1999:90). A partir de então, os combates pela emancipação social passaram
a exprimir-se na linguagem do contrato social, como combates contra a
exclusão do contrato social e pela inclusão nele. As estratégias diferiram,
havendo, p o r um lado, os que procuraram combater dentro dos limites do
Estado libera] - os demoliberais e, mais tarde, os demo-socialistas - e, por
outro lado, aqueles para quem tais limites pareciam frustrar qualquer com-
bate e m a n d p a t ó r i o digno desse nome e tinham, portanto, que ser elimina-
dos - o que foi o caso de vários tipos de socialistas radicais.
Esta dualidade viria a caracterizar a política da esquerda ao longo dos
últimos cento e cinqüenta anos: de um lado, urçia política emancipatória
obtida por meios parlamentares legais através de um reformismo gradual;
d o outro, uma política emancipatória conduzida por meios extraparlamen-
tares ilegais conducentes a rupturas revolucionárias. A primeira estratégia,
q u e viria a ser dominante na Europa Ocidental e no Atlântico Norte, assumiu
a forma do Estado de direito e traduziu-se num vasto programa de con-
cessões liberais com vista a expandir tanto o alcance como a qualidade da
inclusão do contrato social, sem com isso ameaçar a estrutura basilar do
sistema político-econômico vigente - quer dizer, do capitalismo e da demo-
cracia liberal. Esta estratégia teve como resultado o alargamento da cidada-
nia política - sufrágio universal, direitos cívicos e políticos - e da cidadania
social - Estado-providência, direitos sociais e econômicos. A segunda estra-
tégia, inspirada na Revolução Russa, e que viria a ser dominante na perife-
ria do sistema-mundo, assumiu a forma de confrontação ilegal, violenta ou
não, com o Estado liberal, com o Estado colonial ou pós-colonial e com a
economia capitalista, conduzindo à criação de Estados socialistas de dife-
rentes tipos. A Revolução Russa foi a primeira revolução moderna levada a
efeito, não contra o direito, mas em nome do qireito.
Ambas as estratégias apresentavam, internamente, uma grande diversi-
dade. Já referi que a estratégia revolucionária, apesar de predominante-
mente presa a uma determinada teoria política, o marxismo, abrangia dife-
rentes políticas portadoras de diferentes significados e objectivos, sendo a
competição entre estas muitas vezes feroz e mesmo abertamente violenta.
De igual modo, o campo legal-reformista dividia-se entre os que punham a
liberdade acima da igualdade e eram a favor do mínimo de concessões
possível (o demoliberaJismo) e os que recusavam estabelecer uma hierar-
6 ] Boaventura de S o u s a Santos

quia entre liberdade e igualdade e eram a favor do máximo dc concessões


possível (demo-socialismo). Ambas as modalidades dc política legítima luta-
vam contra o conservadorismo, que mantinha uma oposição inflexível a
quaisquer concessões aos excluídos do contrato social. Apesar de estriba-
das, todas elas, no quadro do Estado liberal, estas diferentes estratégias
políticas acabaram por conduzir a diferentes políticas do direito, que, por
sua vez, estiveram na origem de transformações do Estado liberal em diver-
sas direcções - Estados-providência fortes na Europa, Estados-providência
fracos na América do Norte e, em particular, nos E.U.A., etc.
Nos últimos vinte anos, este paradigma político entrou numa crise que
teve impactos ranto sobre a estratégia reformista como sobre a estratégia
revolucionária. A crise do reformismo, que, nos países centrais, assumiu a
forma de crise do Estado-providência c, nos países periféricos c semipe-
riféricos, tomou a forma de crise do Estado desenvolvimentista - através
de ajustamentos estruturais e de cortes drásticos nas já de si incipientes
despesas sociais do E s t a d o - , significou, em termos políticos, o ressurgi-
mento do conservadorismo e o levantamento de uma maré ideológica con-
tra a agenda da inclusão gradua] e crescente no contrato sócia], a qual,
embora de modos diversos, era comum ao demoliberalismo e ao demo-
-socialismo. Deste modo, parecia (e parece) bloqueada a via legal para a
emancipação social. Apesar de estruturalmente limitada, essa v i a - u m a
promessa emancipatória regulada pelo Estado capitalista e, por conseguinte,
conciliáve] com as necessidades incessantes e intrinsecamcntc polarizadoras
de acumulação do capitalismo - foi, nos países centrais, a explicação, ao
longo de muitas décadas, para a compatibilidade existente entre o capita-
l i s m o - s e m p r e hostil à redistribuição social - e a democracia, fosse ela
baseada em políticas de redistribuição demoliberais ou demo-socialistas,
O colapso desta estratégia levou à desintegração da tensão, já muito ate-
nuada, entre a regulação social e a emancipação social. Mas, uma vez que a
tensão habitava o modelo político no seu todo, a desintegração dn emanci-
pação social acarretou consigo a desintegração da regulação social. Daí a
dupla crise de regulação e de emancipação em q u e h o s encontramos hoje,
uma crise em que o conservadorismo floresce sob o nome engnnador de
neoliberalismo. O neoliberalismo não c uma versão nova do liberalismo,
mas antes uma versão velha do conservadorismo. Mas o que é intrigante é o
facto de o colapso das estratégias políticas que no passado asseguravam a
compatibilidade entre o capitalismo e a democracia, longe de conduzir à
incompatibilidade entre ambos, parece ter reforçado essa compatibilidade,
alargando-a, inclusivamente, para além dos países centrais a que nn passado
ela se confinava no fundamental.
Poder! o direito ser emanclpatório? | 7

A via revolucionária para a emancipação social entrou, mais ou menos


p d a mesma altura, numa crise igualmente séria, à medida q u e foram ruindo
os Estados-nação saídos do êxito das lutas contra o colonialismo e o capi-
talismo, É claro que, a exemplo do que sucedera com a estratégia reformista,
a "qualidade" da emancipação social gerada pela estratégia revolucionária
h á muiro já q u e havia sido posta em.causa, N ã o obstante as diferenças cru-
ciais entre uns e outros, tanto os Estados liberais como os Estados socialis-
tas haviam p r o j e c t a d o uma t e n s ã o - u m a tensão p r o m o v i d a pelo p r ó p r i o
E s t a d o e f o r t e m e n t e regulada - entre a emancipação social e a regulação
social através da qual as exclusões estruturais (de tipo político, econômico
o u social) cristalizavam ou inclusivamente se cavavam ainda mais.
Este m o d o de pensar a transformação social - quer dizer, nos termos de
u m a tensão entre a regulação social e a emancipação social - é algo de mo-
d e r n o . N u m a situação como a nossa, em q u e vivemos simultaneamente uma
crise da regulação social e da emancipação social, p o d e m o s perguntar-nos
se não devemos simplesmente a b a n d o n a r essa formulação, já q u e ela não
consegue captar em termos positivos n e n h u m aspecto da nossa experiência
d e vida. Se nem t u d o está errado com as nossas experiências de vida, algo
está errado com uma concepção que as veicula em termos incondicional-
m e n t e negativos. D a mesma maneira, se as duas grandes estratégias para a
criação da m o d e r n a transformação social - o reformismo jurídico e a revo-
l u ç ã o - se encontram em crise - o direito a b u n d a , mas, pelos vistos, não
p a r a fins de reforma social, enquanto a revolução pura e simplesmente desa-
p a r e c e u - , é legítimo perguntar se não devemos p r o c u r a r novas concepções
p a r a que a transformação social faça sentido, se é que esta vai continuar a
servir-nos c o m o m o d o de descrever as grandes m u d a n ç a s da nossa vivência
individual e colectiva.
C o m o tenho v i n d o a afirmar, encontramo-nos n u m período de transição
q u e p o d e ser descrito da seguinte maneira; vivemos n u m período em que
enfrentamos problemas modernos para os quais não existem soluções moder-
nas. C o n t i n u a m o s obcecados pelas idéias de u m a ordem e de u m a socie-
d a d e boas, q u a n t o mais não seja devido à natureza da (des)ordem que reina
nestas nossas sociedades em q u e são cada vez maiores a desigualdade e a
exclusão - e x a c t a m e n t e n u m m o m e n t o d a história em q u e pareceria q u e os
avanços tecnológicos existem para q u e as nossas sociedades sejam de outro
m o d o . O a b a n d o n o completo da tensão entre a regulação social e a eman-
cipação social, ou d a própria idéia de transformação social - que é a pro-
p o s t a dos q u e t e n h o designado p o r pós-modernistas celebratórios - , parece
ser, p o r conseguinte, u m a proposta politicamente arriscada, não só p o r q u e
coincide com a agenda conservadora, mas t a m b é m p o r q u e não se perfilam
360]Boaventura de Sousa Santos

no horizonte concepções novas com potencial p a r a capinr as aspirações


políticas condensadas nos conceitos modernos. Reinventnr a tensão entre
regulação social e emancipação social afigura-se, p o r isso, uma proposta
melhor, ou mais prudente, do que atirá-la simplesmente para o caixote do
lixo da história.
O mesmo se aplica às estratégias políticas que, no pasiado, corporiza-
ram a tensão entre a regulação social e a emancipação social: o direito e a
revolução. Reinventar, neste caso, revela-se tarefa especialmente complexa,
porquanto, se a revolução parece uma possibilidade definitivamente des-
cartada, já o direito se acha mais difuso <lo que nunca, preenchendo mesmo
os espaços sociais e políticos abertos pelo colapso da revolução. Para os
conservadores, não há aqui nada a reinventar, exceptuantlo talvez modos
cada vez mais lubtis (e não tão subtis como isso) d e desmantelar os meca-
nismos através dos quais liberais e demo'socialistas transformaram o direito
em instrumento da mudança social. A tarefa cientítica e política que se nos
coloca pela frente pode ser formulada da seguinte tnaneira:romo reinventar
o direito para lá do modelo libera] e demo-socialista c sem cair na agenda
conservadora — e, mais ainda, como fazê-lo de m o d o a combater esta última
de uma maneira mais eficaz.

3. O prisma ocidental e a plausibilidade da q u e s t ã o


Antes de tentar responder a esta questão, impõe-se que perguntemos se ela
equaciona correctamente os problemas que se colocam a uma política pro-
gressista e a uma prática jurídica no início do novo milênio. Porque, se a
resposta for negativa, a questão da reinvenção d o direito terá que ser refor-
mulada antes de prossseguirmos. A narrativa atrás esboçada é uma narrativa
ocidental que começou com uma questão quintessencialmente ocidental:
poderá o direito ser emancipatório? Esta questão, aparentemente abran-
gente, parte de um conjunto de pressupostos que são próprios da cultura e
da política ocidentais. Pressupõe que existe uma entidade social chamada
direito, susceptível de ser definida nos seus próprios termos e de funcionar
de uma maneira autônoma. Parte também do princípio de que existe u m
conceito genérico de emancipação social, diferente e à parte daquilo que é
a emancipação individual e de projectos emancipatórios particulares de
grupos sociais diferentes, ocorridos em contextos históricos diferentes. Além
disso, dá por adquirido que existem expectativas sociais que estão acima e
para lá das actuais experiências sociais, e que o fosso entre as experiências
e as expectativas pode e deve ser vencido.
Todos estes pressupostos se afiguram bastante problemáticos q u a n d o
encarados a partir de fora das fronteiras da modernidade ocidental. Ao
P o d e r ! o direito ser emanclpatório? | 9

cabo de quinhentos anos de expansão europeia e de uma geografia de zonas


d e contacto extremamente diversificada, onde houve lugar a uma miríade
d e formas de hibridação e de crioulização, continua a ser problemático, em
muitas culturas e sociedades não-europeias, identificar o direito como um
c a m p o social distinto e, mais ainda, como um campo social autônomo e
homogêneo. Em vez disso, para além do direito estatal - que tem algumas
afinidades formais com o conceito liberal de direito do Ocidente - existe
u m vasto leque d e estruturas normativas ancoradas em entidades e agen-
ciamentos não estatais. Estas estruturas acham-se incrustadas em conjun-
tos de práticas sociais que, em rigor, não podem ser descritas como consti-
tuindo campos jurídicos, políticos, econômicos ou religiosos, uma vez que
parecem ser t u d o isso ao mesmo tempo. Além disso, apesar de nestas socie-
dades as elites político-culturais entenderem o fosso entre as experiências
sociais e as expectativas sociais como um problçma a ser superado através
d a emancipação social, a verdade é que não há uma memória colectiva de
luta ou de movimentos empreendidos em nome da "emancipação social".
As mais das vezes, a única memória colectiva que se aproxima desta idéia
prende-se com as lutas anticoloniais. A idéia da boa ordem e da boa socie-
d a d e reveste muitas vezes formas religiosas, tendo mais a ver com o direito
religioso do que com o direito secular, ou seja, mais com a revelação do que
c o m a revolução.

Se a questão que coloco é, na formulação acima deixada, uma questão


distintamente ocidental, o mesmo pode dizer-se a propósito da narrativa
histórica do destino da tensão entre a regulação social e o papel nela desem-
p e n h a d o pelo direito. A recepção do direito romano no século XII assinala
a primeira presença moderna do direito na tensão entre a regulação social e
a emancipação social, o desenvolvimento de uma forma jurídica adequada
aos interesses progressistas da classe mercantil emergente. Temos aqui, como
é óbvio, uma narratíva ocidental. No século XII e, de facto, muito antes
disso, havia já prósperos mercadores a percorrer as rotas comerciais que
u n i a m a China e a índia ao Mediterrâneo, e muitas outras ao longo da
África Orienta] e Ocidental e da África do Norte, mas a sua história jurídica
n a d a tem a ver com a história das classes mercantis urbanas que na Europa
medieval combatiam os senhores feudais com ás armas intelectuais forneci-
d a s pelo direito romano. Acresce que, a seguir a 1848, o m u n d o ficou muito
m a i o r do que o limitado espaço geográfico ocupado pelos estados liberais
da Europa Ocidental. Havia estados antigos, que iam desde o Egipto e da
Etiópia até à China e ao Japão, passando pela África Central e pela Pérsia.
H a v i a colônias europeias na África e na Ásia, estando prestes a começar a
segunda vaga colonialista. Havia, na América Latina, Estados pós-coloniais
362 ] Boaventura de SOUsa Santos

servidos por constituições liberais mas com práticas políticas que, entre
outras coisas, apoiavam a escravatura e intensificavam o genocídio dos povos
nativos. Ao longo do século XIX e do século XX, estes Estados oscilaram
entre períodos de governação minimamente democrática e períodos de
ditadura, como foi cfectivamcnte o caso de alguns Estados da Europa Oci-
dental como, por exemplo, Portugal, Espanha e Grécia. A compntibilidade
entre democracia e capitalismo, tentada tanto pelo demoliberalismo como
pelo demo-socialismo, foi de facto exclusivo de alguns países apenas -
e, mesmo na Europa, teve que ceder: cedeu ao fascismo na Itália, ao nazis-
mo na Alemanha, ao franquismo na Espanha, ao salazarismo em Portugal,
etc. As formas indusivas de cidadania político-social (os Estados-providên-
cia) têm sido mais a excepção do que a regra. Do mesmo modo, e a uma
escala global, o direito, entendido como direito estatal, desempenhou um
papel mínimo na gestão da tensão entre regulação e emancipação, rosse
como estratégia política de oposição ou como forma de um Estado não-
•liberal, a revolução desempenharia, ao longo de t o d o o século XX, um
papel bem mais importante.
A peculiaridade histórica da minha pergunta - uma pergunta e uma inda-
gação aparentemente tão exaustiva - já deve, neste momento, ter-se tornado
clara. Porquê, então, prosseguir? E, a fazê-lo, como o devo fazer? Primeiro,
o porquê. Penso que a história da minha pergunta é talvez mais ocidental
do que o seu futuro. Nos últimos vinte anos, e cada qual a seu modo, a
globalização hegemônica neoliberal e o desabamento do bloco socialista
vieram interromper as histórias político-jurídicas tanto ocidentais como não-
-ocidentais, criando desse modo um vazio institucional hoje em vias de ser
globalmente preenchido por uma versão específica da política ocidental
- o conservadorismo. Quer o reformismo legal quer a revolução social se
viram desacreditados, o mesmo sucedendo com outras formas político-legais
exteriores à Europa Ocidental e à região do Atlântico Norte. Além disso,
todas as tentativas de articular alternativas ao consenso hegemônico foram
rápida e eficazmente suprimidas. Tal consenso é, d e facto, composto por
quatro consensos sectoriais relacionados entre si: o consenso econômico
neoliberal, o consenso do Estado fraco, o consenso dcmocrático-libcral, e o
consenso do Estado de direito e da reforma judicial.
Para poder desenvolver aqui a meu argumentação - ou seja, para respon-
der à questão de porquê prosseguir com a presente pergunta sobre se o
direito é emancipatório - , e importante ter em mente que a globalização
jurídica neoliberal em curso está a substituir a tensão altamente politizada
entre regulação e emancipação por uma concepção despolitizada da mu-
dança social cujo único critério é o Estado de direito e a adjudicação judicial
Pcótri o direito ser emandpatório? f 11

a um sistema judicial honesto, independente, previsível e eficaz. O direito


que vigora neste modelo não é o direito reformista, seja em versão demo-
liberal, seja cm versão demo-socialista. O direito conservador neoliberal
não faz mais do que fixar o quadro em que uma sociedade civil baseada no
mercado funciona e floresce, cabendo ao poder judiciário garantir que o
Estado de direito é amplamente aceite e aplicado com eficácia. Afinal, as
necessidades jurídicas e judiciais do modelo de desenvolvimento assente
n o mercado são bastante.simples: há que baixar os custos das transacções,
definir com clareza e defender os direitos de propriedade, fazer aplicar as
obrigações contratuais, e instituir um quadro jurídico minimalista.
Em resumo, a globalização hegemônica neoliberal atingiu um paradigma
jurídico e político que tem um âmbito global. Inspirado numa visão alta-
mente selectiva da tradição ocidental, este está em vias de ser imposto em
t o d o o sistema-mundo. Isso quer dizer que a questão da relação entre o
direito e a emancipação social, não obstante ser, historicamente, uma questão
ocidental,- p o d e agora vir a transformar-se numa questão global - uma
questão, enfim, que encaixa bem na agenda política e científica quer dos
países ocidentais, quer dos países não-ocidentais, quer ainda dos países
centrais, semiperifericos c periféricos.
É claro que, para tal acontecer, nos é necessário sair dos confins da glo-
balização neoliberal. Enquanto o Estado de direito e a reforma judicial são,
hoje em dia, tópicos de debate em todo o sistema-mundo, já toda e qualquer
discussão acerca da emancipação social se vê suprimida pela globalização
neoliberal, uma vez que, segundo esta, a ordem e a sociedade boas já estão
connosco, carecendo apenas de consolidação. A questão do papel do direito
na busca da emancipação social é, actualmente, uma questão contra-hegemó-
nica que deve preocupar todos quantos, um pouco por todo o sistema-
•mundo, lutam contra a globalização hegemônica neoliberal. Com efeito,
se é certo que esta propagou por todo o globo o mesmo sistema de domi-
nação e de exclusão, não é menos verdade que criou as condições para que
forças, organizações e movimentos contra-hegemónicos localizados nas mais
diversas partes do m u n d o se apercebessem da existência de interesses
comuns nas próprias diferenças e para além das diferenças que há a separá-
•los, e que convergissem cm combates contra-hegemónicos consubstan-
ciadores de projectos sociais emancipatórios distintos mas relacionados
entre si.

Uma vez que a minha indagação tem por premissa exactamenre a distin-
ção entre, p o r u m lado, uma globalização neoliberal hegemônica, ou globali-
zação a partir de cima, e por outro lado uma globalização contra-hegemónica,
ou globalização a partir de baixo, creio que a questão do potencial emanei-
364 | Boaventura de Sousa Santos

p a t ó r í o d o direito p o d e r á ser correctarnente tratada olhando para a d i m e n -


são jurídica dessas lutas globais de tipo contra-hegemônico. É essa a tarefa
q u e levarei a cabo na última parte deste artigo. A questão é, portanto, plausí-
vel, e a resposta a ela p o d e revelar-se uma f o r m a promissora de r e p e n s a r o
potencial emancipatório do'direito sob as c o n d i ç õ e s da globalização.
Resta ver, contudo, c o m á s e h á - d e r e s p o n d e r à p e r g u n t a . Neste p o n t o , é
t a m b é m crucial para o m e u a r g u m e n t o distinguir e n t r e formas h e g e m ô n i c a s
e contra-hegemónicas de globalização jurídica. P a r a formular a q u e s t ã o de
maneira a ela não frustrar a possibilidade de u m a globalização jurídica con-
tra-hegemónica, impõe-se desocidentalizsr a c o n c e p ç ã o de d i r e i t o q u e
conduzirá a nossa indagação. Isso implica o radica] "des-pensar" d o direito
- q u e r dizer, o re-inventar d o direito p o r f o r m a a adequar-se às reivindica-
ções normativas dos g r u p o s sociais subalternos e dos seus movimentos, b e m
como dasorgitnizações q u e lutam poralternativasà globalização neolibcral.
C o m o mostrarei adiante, essa reinvenção d o direito implica q u e se pro-
ceda a u m a busca d e concepções e de práticas subalternas, d e q u e distingo
três tipos: 1) concepções e práticas que, não obstante pertencerem à tradição
ocidental e terem-se desenvolvido nos países d o O c i d e n t e , foram suprimi-
das ou marginalizadas pelas concepções liberais q u e s e tomaram dominantes;
>2) concepções que se desenvolveram fora do O c i d e n t e , principalmente nas
colônias e, mais tarde, nos Estados pós-coloniais; 3) concepções e práticas
hoje em dias propostas p o r organizações c m o v i m e n t o s especialmente acti-
vos no esforço de p r o p o r formas de globalização contra-he^emónica. N u m
período, em suma, de transição paradigmática que n o s afaita da m o d e r n i -
d a d e dominante, a m o d e r n i d a d e subalterna fornece-nos alguns dos instru-
mentos q u e nos hão-de permitir fazer a passagem r u m o a um f u t u r o progres-
sista, q u e o m e s m o é dizer, na direcção d e uma o r d e m e de uma s o c i e d a d e
boas, q u e aindn estão para vir.
P a r a aquilatar c a b a l m e n t e d o potencial dessas práticas c o s m o p o l i t a s
subalternas e dos obstáculos q u e se deparam à sua consolidação, é necessário
considerar sucintamente o c o n t e x t o social, político e econômico q u e a glo-
balização neoliberal gera e em q u e as práticas subalternas têm q u e ser desen-
volvidas. Essa é uma análise de q u e me ocuparei n a secção q u e se segue.

4, A morte do contrato social e a ascensão do fascismo social

4.1. A exclusão social e a crise do moderno contrato social


O contrato social - com os seus critérios de inclusão e exclusão e os seus
princípios metacontraruais - presidiu à o r g a n i z a ç ã o da vida e c o n ô m i c a ,
política e cultural das sociedades m o d e r n a s . Nestes ú l t i m o s vinte anos, esse
Poder! o direito ser emanclpatório? | 13

paradigma sócia], político e cultural tem vindo a sofrer um período de grande


t u r b u l ê n c i a q u e afecta não só os seus dispositivos operativos como t a m b é m
o s pressupostos em q u e assenta. De facto, essa turbulência é tão intensa
q u e gerou uma verdadeira crise do contrato social. Essa crise, por sua vez,
constitui um dos traços mais característicos da transição paradigmática.
C o n f o r m e sustento n o u t r o lugar (Santos, 1998a), o contrato social assenta
c m três pressupostos: u m regime geral de valores, um sistema gera] de medi-
d a s e um tempo-espaço privilegiado. O r a , a crise d o contrato sócia! é detec-
tável em cada u m destes pressupostos. 0 regime geral de valores baseia-se
n a idéia de bem c o m u m e d e vontade geral, q u e são princípios segundo os
quais se processa a agregação das sociabilidades individuais e das práticas
sociais. D e s t e m o d o , torna-se possível chamar "sociedade" ao universo de
interacções autônomas e contratuais entre sujeitos livres e iguais.
Este regime p a r e c e ser hoje incapaz de resistir à crescente fragmentação
d a sociedade, dividida como está em muitos apartheids e polarizada segundo
eixos econômicos, sociais, políticos e culturais. A luta pelo bem c o m u m
p a r e c e estar a p e r d e r sentido, o m e s m o s u c e d e n d o , consequentemente, à
l u t a p o r definições alternativas de bem c o m u m . A vontade gefal parece
i ter-se t o r n a d o uma p r o p o s t a absurda. Nestas circunstâncias, alguns autores
falam m e s m o do fim d a sociedade. Vivemos n u m m u n d o pós-foucauldiano
e , olhando para trás, damo-nos conta, de repente, de q u ã o organizado era o
m u n d o de Foucault. S e g u n d o Foucault, coexistem nas sociedades moder-
n a s dois modos principais d e p o d e r soda]: p o r u m lado, o p o d e r discipli-
nar, dominante, c e n t r a d o nas ciências, e, p o r o u t r o lado, o p o d e r jurídico,
c e n t r a d o n o E s t a d o e n o direito, e a conhecer um processo de d e d í n i o .
P r e s e n t e m e n t e , estes poderes coexistem com muitos outros, os quais se
e n c o n t r a m eles próprios fragmentados e desorganizados. O poder disciplinar
é, cada vez mais, um p o d e r não-disciplinar, a p o n t o de as ciências estarem a
p e r d e r a sua confiança epistemológica e verem-se obrigadas a partilhar o
c a m p o do c o n h e c i m e n t o com saberes rivais - como sejam os saberes indí-
genas, n o caso das lutas contemporâneas em torno da b i o d i v e r s i d a d e - ,
p o r sua vez capazes, eles também, de produzir tipos diferentes de p o d e r e
' d e resistência. P o r o u t r o lado, à medida que o Eslado vai p e r d e n d o a cen-
tra]idade c o m o regulador da sociedade, o seu direito torna-se labiríntico.
O direito estatal desorganiza-se, ao ser obrigado a coexistir com o direito
não-oficia] dos múltiplos legisladores não-estatais de facto, os quais, por
f o r ç a d o p o d e r político que detêm, transformam a facticidade em norma,
c o m p e t i n d o com o E s t a d o pelo m o n o p ó l i o da violência e do direito.
A proliferação a p a r e n t e m e n t e caótica de poderes dificulta a identificação
d o s inimigos, q u a n d o n ã o mesmo a identificação das próprias vítimas.
14 | Boaventura de Sousa Santos

AJém disso, os valores da modernidade - liberdade, igualdade, autono-


mia, subjectividade, justiça, solidariedade - e as antinomias neles contidas
mantêm-se, mas estão sujeitos a uma crescente sobrecarga simbólica, na
medida em que significam coisas cada vez mais díspares para diferentes
pessoas ou diferentes grupos sociais, com o resultado de que o excesso de
significado gera trivialização e, consequentemente, naturalização.
A turbulência actunl é especialmente notória n o segundo pressuposto
do contrato social, o sistema comum de medidas. O sistema comum de medi-
das baseia-se numa concepção de tempo e espaço como sendo entidades
homogêneas, neutras e lineares que funcionam como menores denomi-
nadores comuns para a definição do que sejnm diferenças relevantes.
Partindo desta concepção, é possível, por um lado, separar o natural do
social e, por outro lado, estabelecer um meio quantitativo de comparação
entre interacções sociais gerais e interações altamente diferenciadas. As dife-
renças qualitativas entre umas e outras ou são ignoradas ou reduzidas aos
indicadores quantitativos que conseguem explicá-las de forma aproximada.
O dinheiro e as mercadorias são as concretizações mais puras do sistema
comum de medidas. Através deles, o trabalho, os salários, os riscos e os
danos tornam-se facilmente mensuráveis e comparáveis,
Mas o sistema comum de medidas vai muito para além do dinheiro e das
mercadorias. Devido às homogeneidades que gera, o sistema comum de
medidas permite até estabelecer correspondências entre valores aniinómi-
cns. Entre a liberdade c a igualdade, por exemplo, é possível definir critérios
de justiça social, de retribuição e de solidariedade. O pressuposto, aqui,
consiste em fazer com que as medidas sejam comuns c funcionem por corres-
pondência e por homogeneidade. É por isso que a solidariedade só é possível
entre iguais, sendo a solidariedade entre trabalhadores a sua concretização
mais perfeita.
H á muito que o tempo e o espaço neutros, lineares e homogêneos desa-
pareceram das ciências, mas só agora é que o seu desaparecimento começou
a fazer notar-se no quotidiano e nas relações sociais. É nítida a turbulência
que hoje afecta as escalas cm que estamos habituados a ver e a identificar os
íenómenos, os conflitos e as relações. Dado que cada um deles é produto
tia escala em que os observamos, a turbulência das escalas produz estra-
nheza, desfamiliarização, surpresa, perplexidade, e invisibilidade. Exemplo
claro da turbulência das escalas, a meu ver, é o fenômeno da violência urbana
no Brasil, de resto presente também noutras partes do mundo (Santos,
1998b). Quando um menino da rua vai à procura d e abrigo para passar a
noite e, em conseqüência disso, é morto por um polícia, ou quando alguém
que é abordado na rua por um pedinte recusa dar-lhe esmola e em conse-
Poderí o direito ser e m a n d p í t ó r l o ? 1 1 5

quência disso é morto pelo pedinte, o que aí temos é uma explosão impre-
vista da escala do conflito: um fenômeno aparentemente trivial sofre uma
escalada repentina, passando a um outro nível e assumindo contornos de
fenômeno dramático com conseqüências fatais. Esta mudança de escala
dos fenômenos, abrupta e imprevisível, verifica-se hoje em dia nos domínios
mais diversos da prática social. Concordo com Prigogine (Prigogine e
Stengers, 1979; Prigogine, 1980) quando este afirma que as nossas socie-
dades estão a viver um período de bifurcação, quer dizer, uma situação de
instabilidade sistêmica em que uma mudança menor pode, de uma maneira
imprevisível e caótica, dar origem a transformações qualitativas. A turbulên-
cia das escalas destrói seqüências c meios de comparação, reduzindo assim
as alternativas, criando impotência e promovendo a passividade.
A estabilidade das escalas parece confinada ao mercado e ao consumo
- e mesmo aí, com radicais mutações de ritmo e de âmbito que impõem aos
actos de comércio constantes mudanças de perspectiva. A hipervisibilidade
e a grande velocidade que caracterizam as mercadorias, por norma já inten-
samente publicitadas, transformam a intersubjectividade exigida aos con-
sumidores em interobjectualidade entre actos de consumo, Dizendo de outro
modo, os consumidores transformam-se em apoios nômadas das mercado-
rias. Idêntica transformação constante da perspectiva está a ocorrer na
informação e nas tecnologias de telecomunicações, onde, de facto, a tur- .
bulência da escala é simultaneamente acto gerador e condição da funcio-
nalidade. Neste caso, a crescente interactividade das tecnologias dispensa
cada vez mais a inventiva dos utentes, o que leva a que a interactividade vá
subrepticiamente dando lugar à passividade. O zapping é talvez um exemplo
eloqüente de passividade disfarçada de interactividade.
Por fim, o tempo-espaço do Estado nacional está a perder o seu primado
devido à importância crescente dos tempo-espaços globais e locais, que
com ele agora competem. Esta desestruturação do tempo-espaço do Estado
nacional dá-se também relativamente aos ritmos, às durações e às tem-
poralidades. O tempo-espaço do Estado nacional é feito de quadros tempo-
rais diferentes mas compatíveis e articulados entre si; o quadro temporal
das eleições, o quadro temporal da negociação colectiva, o quadro tempo-
ral dos tribunais, o quadro temporal da burocracia da segurança social, o
quadro temporal da memória histórica nacional, etc. É a coerência entre
escas temporalidades que dá ao tempo-espaço do Estado nacional a sua
configuração própria. Acontece que esta coerência se está a tornar cada vez
mais problemática, uma vez que o impacto gerado pelo tempo-espaço glo-
bal e local varia de u m quadro temporal para outro. Assim, por exemplo, o
quadro temporal dos tribunais tende a ser menos afectado pelo' tempo-
368]Boaventura de Sousa Santos

-espaço global do que o quadro temporal da negociação colectiva, Por outro


lado, nos E.U.A.;- devido à recente "devolução" d a s funções de segurança
social aos estados e às comunidades locais o tempo-espaço IocaJ está a
afectar mais o quadro temporal com que o sistema de segurança social fun-
ciona do que o da política eleitoral, enquanto na Europa se está a dar o
inverso - como se VÊ pelas novas^iniciativas de democracia local levadas a
cabo na Espanhâ, França ou Alemanha.
Além disso, quadros temporais ou ritmos totalmente incompatíveis
com a temporalidade do Estado nacional no seu t o d o estão a tornar-se cada
vez mais importantes. Dois deles m e r e c e m u m a referência especial.
O tempo-instante do ciber-espaço, por um lado, e, p o r outro, o tempo gla-
ciai da degradação ecológica, da questão indígena e d a biodiversidnde. Cada
uma destas temporalidades colide frontalmente com a temporalidade política
e burocrática do Estado. O tempo-instante dos mercados financeiros elimi-
na à partida qualquer deliberação ou regulação d a p a r t e do Estado, O abran-
damento desta temporalidade só se consegue ao nível da escala em que
ocorre, a escala global, e, portanto, só através d e acções de âmbito interna-
cional. 2 Por outro Indo, o tempo glacial é demasiado lento para poder ser
compatível com qualquer um dos quadros temporais do Estado nacional e,
em especial, com os dos tribunais e da política deitoral. Na verdade, as
recentes sobreposições entre o tempo do Estado e o tempo glacial não têm
sido mais do que tentativas, da parte do tempo do E s t a d o , de canibalizar e
descaracterizar o tempo glacial. Basta ver o m o d o c o m o a questão indígena
tem sido tratada em muitos países ou a recente onda d e leis nacionais sobre
patentes e sobre o direito à propriedade intelectual c o m impacto na questão
da diversidade,
Por ter sido, até agora, o tempo-espaço hegemônico, o tempo-espaço do
Estado nacional configura, não apenas a acção do E s t a d o , mas também as
p r á t i c a s sociais em g e r a l , o n d e se r e f l e c t e a c o m p e t i ç ã o e n t r e o
tempo-instante e o tempo glacial. Assim, por exemplo, a volatilidade dos
mercados finanedros e o aquecimento global deram origem a crises que
produzem impacto sobre a política e a legitimidade d o Estado exactamente
devido à inadequação das respostas dadas por este. Tal como sucede no
caso da turbulência das escalas, o tempo-instante e o tempo glacial conver-
gem, de várias formas, d e maneira a reduzir as alternativas/gerar impotên-
cia, e produzir passividade, O tempo-instante faz colapsar as seqüências e

fia '
' C o m vista ao objecrivo específico de abrandar o tempo-instante d o s mercados financeiros de
maneira a dar t e m p o para as deliberações democráticas, é que os movimentos sociais da globaliza-
ção contra-hegemónica têm vindo a p r o p o r a a d o p ç i o d l taxa Tobin.
Poderi o direito ser emancipatórlo? 117

redu-las a um presente infinito que trivializa as alternativas por via da


sua multiplicação tecnolúdica, fundindo-as em variações do sempre igual.
O tempo glacial, pelo contrário, cria uma tal distância entre as alternativas
reais - desde modelos alternativos de desenvolvimento a alternativas ao
desenvolvimento - que estas deixam de ser comensuráveis e susceptíveis
d e ser contrabalançadas e acabam por se perder em sistemas de referência
incomensuráveis.' A mesma confrontação entre tempo glacial e tempo do
Estado nacional cria a necessidade urgente de uma alternativa global ao
desenvolvimento capitalista do mesmo passo que torna impossível conce-
ber essa alternativa, e muito menos adoptá-la.
É, no entanto, em relação aos dispositivos funcionais do contrato social
que os sinais da crise deste paradigma são mais visíveis. Não obstante esse
facto, à primeira vista a situação actual, longe de prefigurar uma crise do
«5»
contratualismo social, caracteriza-se antes por uma consolidação inaudita
deste. Nunca se falou tanto da contratualização das relações sociais, das
relações laborais, das relações no âmbito da segurança social, e da parceria
: n t r e o Estado e as organizações sociais. Mas esta nova contratualização j ^ f f)r í
'ro.ur.Ji
3ouco
j y u t u tem
i c u a
a ver
v c i tcom
u u i a
a lcontratualização
u u i i a i u a j u a ç a u fundada
i u u u a u a 1na
1 a idéia
l u c i a nmoderna
i u u c j . u a udo con-
u L Ull- - , , T r / ^ u / 1 1 C D A

:rato social. Em primeiro lugar, ao contrário do contrato social, os novos rCo/in- /


ráculos contratuais não possuem qualquer estabilidade, podendo ser que-
irados em qualquer altura e por qualquer uma das partes. Não se trata
3e uma opção radical, mas sim de uma opção trivial. O "bloco histórico"
lutrora necessário para servir de base às condições e aos objectivos do con-
rato social vê-se, agora, posto de parte, substituído por uma profusão de
ontratos cujas condições e objectivos permanecem matéria privada. Em
e g u n d o lugar, a contratualização neoliberal não reconhece o conflito e a
uta como elementos estruturais do pacto social. Pelo contrário, fá-lossubs-
ituir pelo assentimento passivo a condições supostamente universais e incon-
ornáveis. Veja-se o chamado consenso de Washington, Se é, de facto, de
m contrato social que se trata, ele existe apenas entre os países centrais.
'ara todas as restantes sociedades nacionais, ele surge como um conjunto
e condições inexoráveis, destinadas a uma aceitação acrítica sob pena de
m a exclusão implacável. O que depois fica a servit de base aos contratos
idividuais do direito civil são, precisamente, estas condições globais insu-
eráveis e não contratualizadas.
P o r todos estes motivos, a nova contratualização é um falso contrato,
ma mera aparência de um compromisso constituído por condições tão

Sobre este tema em gera], e sobre as possibilidades de imaginar um desenvolvimento alternativo


iltemativas ao desenvolvimento, ver Santos e Rodrfguea, 2002.

08
i » | Boaventura de Sousa S a n i o i

cuitosas quanto inescapnveis, e impostas sem discussão à parte mais fraca.


Sob a capa de um contrato, a nova contratualização prefigura o ressurgi-
mento do status, isto é, dos princípios da ordem hierárquica pré-moderna,
em que as condições dos relações sociais estavam directamentc ligadas à
posição das partes na hierarquia social. Mas o retorno ao passado esui fora
de causa. Com efeito, o status é hoje em dia simples conseqüência da tre-
menda desigualdade de poder econômico existente entre as partes - «cjam
elns Estados ou indivíduos - no contrato individual, bem como a faculdade
que essa desigualdade atribui à p a n e mais f o n e - na ausência da regulação
correctiva do Estado - de impor sem discussão as condições que lhe sejam
mais favoráveis. O novo contratualismo reproduz-se, assim, atravís de
termos contratuais profundamente injustos.
A crise da contratualização moderna consiste no predomínio estrutural
dos processos de exclusão sobre os processos de inclusão. Estes últimos
continuam em vigor, assumindo mesmo formas avançadas que vão permi-
tindo a reconciliação do» valores da modernidade, contudo confinam-se a
grupos cada vez mais restritos, que impõem formas abismais de exclusão a
grupos muito mais vastos. O predomínio dos processos de exclusão assume
duas formas aparentemente contraditórias: o pós-contratualismo e o
pré-contrarualismo. O pós-contrarualismo é o processo por meio do qual
gnipos e interesses sociais até aqui incluídos no contrato social se vêem
excluídos deste sem qualquer perspectiva d e regresso. Os direitos de cida-
dania, até agora considerados inalienáveis, são confiscados e, sem ele», os
excluídos passam de cidadãos a servos. É esse o caso, por exemplo, dos
excluídos dos sistemas de segurança social - hoje em vias de retracçío -
dos países centrais. Quanto ao pré-contratualismo, consiste em impedir o
acesso à cidadania a grupos que anteriormente se consideravam candidatos
à cidadania e tinham razoáveis expectativas de a ela aceder. É esse o cnso,
por exemplo, das classes populares da semiperiferia e da periferia.
As exdusões assim geradas pelo pós-contratualismo epelo pré-contraiua-
lismo são indissociáveis, n ponto de aqueles que as sofrem, não obstante
serem cidadãos do ponto de vista formal, se verem efectivamente excluídos
da sociedade civil e atirados para um novo estado natural. Na sociednde
pós-modema e neste início de século, o estado natural traduz-se numa per-
manente angústia relativamente ao presente e ao f u m r o , na perda iminente
do controlo sobre as expectativas, e no permanente caos no que se refere
aos mais simples actos de sobrevivência e de convivialidade.
Seja pela via do pós-contratualismo ou dopre-contratualismo, o aprofun-
damento da lógica da exclusão cria novos estados naturais. É a precaridnde
da vida e a servidão geradas pela permanente angústia dos trabalhadores
Poderá o direito ser emancipatório? 119

n o que toca à quantidade e continuidade do trabalho; pela angústia dos


desempregados à procura de emprego, ou pela daqueles que nem sequer
reúnem condições para procurar emprego; pela angústia dos trabalhadores
p o r conta própria no que toca à continuidade do mercado - que eles mesmos
têm que gerar diariamente, para garantirem a continuidade do rendimento;
e, finalmente, pela angústia dos trabalhadores migrantes indocumentados,
desprovidos de quaisquer direitos sociais. A estabilidade referida pelo con-
senso neoliberal é sempre a estabilidade das expectativas do mercado e dos
investimentos, nunca a das expectativas do povo trabalhador. Com efeito, a
estabilidade dos mercados e dos investimentos só é possível à custa da insta-
bilidade das expectativas das pessoas.
Por todos estes motivos, cada vez mais o trabalho vai deixando de servir
d e suporte à cidadania, e vice-versa, ou seja, cada vez mais a cidadania vai
deixando de servir de suporte ao trabalho. Ao perder o estatuto político
que detinha enquanto produto e produtor de cidadania, o trabalho fica
. reduzido à dor da existência, quer quando o há - sob a forma de trabalho
desgastante - , quer quando o não há - sob a forma de desemprego, e não
menos desgastante. É por isso que o trabalho, apesar de dominar cada vez
mais as vidas das pessoas, está a desaparecer das referências éticas que dão
suporte à autonomia e à auto-estíma dos sujeitos.
Em termos sociais, o efeito cumulativo do pré-contratualismo e do
pós-contratualismo é o surgimento de uma subdasse de excluídos, que será
m e n o p o u maior consoante a posição central ou periférica de uma dada
sociedade no contexto do sistema-mundo. Esta subdasse é constituída, quer
p o r grupos sociais apanhados numa mobilidade social descendente - tra-
balhadores não qualificados, operários migrantes, minorias étnicas - , quer
p o r grupos sodais para os quais a possiblidade de trabalho deixou de ser
uma expectativa realista, se é que alguma vez o foi - p o r exemplo, os desem-
pregados crônicos, os jovens que não conseguem entrar no mercado de
trabalho, os deficientes, bem como um grande número de agricultores
pobres da América Latina, África e Ásia.
N o s países centrais, esta classe de excluídos assume a forma de um Ter-
ceiro Mundo interior. É o chamado terço inferior da sociedade dos dois
terços. Na Europa existem 18 milhões de desempregados e mais de 52 mi-
lhões de pessoas a viver abaixo da linha de pobreza; 10% da população
possui incapacidade física ou mental, o que toma a sua integração social
muito difícil. Nos Estados Unidos da América, a tese dasubclasse tem vindo
a ser utilizada por William Julíus Wilson para caracterizar os afro-america-
nos dos Jactos urbanos, afectados pelo declínio da indústria e p d a deserti-
ficação econômica dos centros das cidades (Wilson, 1987). Wilson define a
372 | Boaventura de Sousa Santos

s u b d a s s e através dc seis traços principais: residência em espnços social-


m e n t e isolados das outras dasses; f d t a de u m e m p r e g o d e longo prazo;
famílias monoparentais encabeçadas p o r mulheres; falta de qualificação ou
de aprendizagem profissional; períodos prolongados de pobreza e de depen-
dência da segurança social; e tendência para cair n a actividade criminosa,
como, p o r exemplo, crimes de f rua. Esta classe c o n h e c e u umn e x p a n s ã o
considerável até aos anos oitenta, e o que é trágico é q u e ela é, cada vez
mais, constituída p o r gente nova. A percentagem d e pobres com menos de
18 anos subiu de l 5 0 4 , e m 1970 para 2 0 % em 1987, s e n d o especialmente
d r a m á t i c o o a u m e n t o d o nflmero de crianças em situação dc p o b r e z a .
O caracter estrutural d a exclusão - e, portanto, dos obstáculos à inclusão -
a q u e esta classe é sujeita p o d e ser avaliado p d o facto de, não o b s t a n t e os
afro-americanos revelarem uma notável melhoria intergeracional no q u e
respeita à instrução, tal conquista não se ter t r a d u z i d o cm empregos regu-
lares e a t e m p o inteiro. Segundo Lash e Urry, são três os factores principais
responsáveis por esta situação: o d e d í n i o dos e m p r e g o s industriais no con-
j u n t o da economia; a fuga dos empregos sobejantes d o s centros das cidades
para os subúrbios; e a redistribuição dos e m p r e g o s de acordo com dife-
rentes tipos de áreas metropolitanas (Lash e Urry, 1996: 151). Na periferia
e na semiperiferia, a classe dos excluídos ascende a mais de m e t a d e da
p o p u l a ç ã o dos países, s e n d o as causas da e x d u s a o a i n d a mais persistentes:
t i r a n d o uma p e q u e n a elite com raízes cada vez mais débeis a prendê-la aos
respectivos países, os únicos que são p o u p a d o s à q u e b r a das expectativas
são aqueles n ã o têm expectativas nenhumas.
O crescimento estrutural da exclusão social - seja p o r via pré-contratua-
lista ou pós-contratualista - e o conseqüente alastramento do estado natu-
ral, q u e i m p e d e a demissão tanto individual c o m o colectiva, sinalizam uma
crise paradigmática e epocal a q u e alguns c h a m a m desmodernização ou
c o n t r a m o d e m i z a ç ã o . A situação encerra, p o r isso, m u i t o s riscos. Foi esse
f e n ô m e n o , efectivamente, que Beck designou como ascensão da "sociedade
do risco" (Beck, 1999) ou "brasilização d o m u n d o " (Beck, 2000). A questão
está em saber se tal situação oferece a o p o r t u n i d a d e dc substituir o velho
contrato social da m o d e r n i d a d e p o t u m outro, m e n o s vulnerável à prolife-
ração da lógica da e x d u s ã o .

4.2. A emergência do fascismo social


Consideremos primeiramente os riscos. Em verdade, p e n s o que estes p o d e m
ser resumidos a u m só: a emergência do fascismo social. N ã o q u e r o dizer
com isto um regresso ao fascismo das décadas de 1930 e 1940, Ao contrário
d a q u d e q u e o p r e c e d e u , o f a s d s m o d e hoje não é um regime político, mas
Poderá o direito ser emandpatórto? | 21

a m e s um regime social e civilizacional. E m vez de sacrificar a democracia às


exigências d o capitalismo, ele trivializa a democracia a p o n t o de se tornar
desnecessário, ou sequer vantajoso, sacrificá-la para promover o capitalismo.
É um tipo de fascismo pluralista, p r o d u z i d o pela sociedade e não pelo
E s t a d o . Este comporta-se, aqui, c o m o mera testemunha complacente, se
n ã o mesmo como culpado activo. Estamos a entrar n u m período cm q u e os
E s t a d o s democráticos coexistem com sociedades fascizantes. Trata-se, por
conseguinte, de u m a forma inaudita de fascismo.
Existem, a meu ver, quatro formas principais de fascismo social. A pri-
meira é o fascismo do apartbeid social. Q u e r o com isto significar a segre-
gação social dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selva-
gens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado natural
hobbesiano. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, encon-
trando-se sob a ameaça p e r m a n e n t e das zonas selvagens. Para se defende-
rem, as zonas civilizadas transformam-se em castelos neofeudais, enclaves
fortificados característicos das novas formas de segregação urbana - cidades
privadas, condomínios fechados, comunidades muradas. A divisão em zonas
selvagens e zonas civilizadas observável em cidades u m p o u c o p o r t o d o o
m u n d o - inclusivamente em " c i d a d e s globais" c o m o Nova I o r q u e ou
L o n d r e s , que, como mostra Saskia Sassen (1991), são os nódulos da econo-
mia global - está a tornar-se u m critério geral de sociabilidade, um novo
tempo-espaço hegemônico que atravessa todas as relações sociais, econômi-
cas, políticas e culturais e que é, p o r isso mesmo, c o m u m à acção estatal e
não-estaral. N o que ao Estado diz respeito, a divisão consubstancia-se n u m
d u p l o padrão da acção estatal nas zonas selvagens e civilizadas. Nas zonas
civilizadas, o Estado actua de forma democrática, comportando-se c o m o
u m Estado prorector, ainda que muitas vezes ineficaz e não fiável. Nas zonas
selvagens, ele acrua de u m a forma fascizante, c o m p o r t a n d o - s e como um
E s t a d o predador, sem a menor consideração, nem sequer na aparência, pelo
E s t a d o de direito.'

A segunda forma de fascismo social é o fascismo para-estatal. Tem a


ver com a usurpação das prerrogativas estatais (como sejam a coerção e
a regulação social) p o r parte de actores s o c i a i s i a s t a n t e poderosos, os quais
- freqüentemente com a cumplicidade d o p r ó p j i o E s t a d o - ora neutralizam,
ora complementam o controlo social p r o d u z i d o pelo Estado. O fascismo
para-estatal c o m p o r t a duas dimensões: o fascismo contratual e o fascis-
m o territorial.

* Uma boa ilustração desta dinâmica é o estudo de Caldeira sobre as clivagens geográficas e sociais
existentes em São Paulo (Caldeira, 2000). t
I

2 2 1 Boaventura de Sousa Santos

O fascismo contratual verifica-se em situações (já descritas) em que a


discrepância de poderes entre as partes envolvidas no contrato civil é de tal
ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada pela circunstância de não
dispor de alternativas, aceita as condições impostas pela parte mais forte,
por mais duras e despóticas que elas sejam. O projecto neolibernl de trans-
formar o contrato de trabalho num contrato de direito civil igual a qualquer
outro prenuncia uma situação de fascismo contratual. Esta forma de fas-
cismo ocorre hoje em dia com muita freqüência nas políticas que visam a
"flexibilização" dos mercados de trabalho ou a privatização dos serviços
públicos. Nesses casos, o contrato social que no Estado-providêncjjt e no
Estado desenvolvimentista presidia à produção de serviços públicos fica
reduzido ao contrato individual entre consumidores e prestadores de
serviços privatizados. Tal redução implica que sejam eliminados do âmbito
contratual aspectos decisivos da protecção aos consumidores, que, por essa
razão, passam a ser extracontratuais. Estas são as situações em que a conivên-
cia entre o Estado democrático e o fascismo para-estatal se torna mais clara.
Ao reivindicarem prerrogativas extracontratuais, as agência» fascistas
para-estatais chamam a si funções de regulação social antes desempenha-
das pelo Estado. De forma implícita ou explícita, o Estado subcontrata as
agências para-estatais para o desempenho dessas funções e, ao fuzê-lo sem
participação ou controlo dos cidadãos, torna-se cúmplice da produção de
fascismo social paru-estatal.

Asegunda dimensão do fascismo para-cstaial é o fascismo territorial. Este


ocorre sempre que actores sociais dotados de quantias de capital extrema-
mente avuJtadas disputam o controlo do Estado sobre os territórios em que
actuam ou neutralizam esse controlo cooptando ou coagindo os institui-
ções estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes desse ter-
ritório, sem a sua participação e contra os seus interesses. Trata-se de novos
territórios coloniaia, situados dentro de Estados que são, muitas vezes,
Estados pós-coloniais. Alguns desses territórios são rtinvenções do velho
fenômeno do coronelismo e do caciquismo, enquanto outros jão novos
enclaves territoriais fechados a uma intervenção estatal autônoma e gover-
nados p o r pactos firmados entre actores sociais armados. 1
A terceira forma de fascismo social é o fascismo da insegurança. Consiste
na manipulação discricionária do sentimento de insegurança das pessoas e
dos grupos sociais vulijerabilizados pela precaridade de emprego ou por

' É esse o caso, por exemplo, das milícias populares de Medellín. ne Colômbia, t dos grupos
de mineiros de esmeraldas n i região ocidental de Boyací, também naquele país (Gullírrcn e Jara-
mülo, 200)1.
a Poderá o direito ser emancipstório? | 23

acidentes ou acontecimentos desestabilizadores, Daqui advém uma angústia


crônica cm relação ao presente e ao futuro para um grande número de
pessoas, que assim reduzem radicalmente as suas expectativas e se dispõem
a suportar fardos enormes em troca da obtenção de um decréscimo mínimo
d o risco e da insegurança, N o que a esta forma de fascismo diz respeito, o
Lebensraum - o "espaço vital" reclamado por Hider para o povo alemão e
que seria a justificação das suas anexações - dos novos Fiihrerséz intimidade
das pessoas e a sua angústia e incerteza relativamente ao presente e ao futuro.
Funciona colocando em acção o jogo duplo das ilusões retrospectivas e
prospectivas, e é hoje em dia especialmente óbvio no domínio da privatiza-
ção dos serviços sociais, como sejam os sectores da saúde, segurança social,
educação e habitação. As ilusões retrospectivas consistem em salientar a
memória da insegurança neste domínio e a ineficiência da burocracia esta-
tal no que toca à prestação de serviços de segurança social, Por seu turno,
as expectativas prospectivas visam criar expectativas de segurança e bem-
•estar produzidas no âmbito do sector privado e inflacionadas p o r via da
ocultação de alguns dos riscos e das condições inerentes à prestação desse
tipo de serviços. As ilusões prospectivas em causa proliferam, hoje em dia,
s o b a forma de seguros de saúde e de fundos de pensões privados.
A quarta forma de fascismo social é o fascismo financeiro. É, provavel-
• mente, a forma mais pérfida de sociabilidade fasdsta, exigindo por isso
uma análise mais pormenorizada. É o tipo de fascismo que controla os
mercados financeiros e a sua economia de casino. É o mais pluralista de
todos, na medida em que os fluxos de capital resultam das decisões de
investidores individuais ou institucionais espalhados pelo mundo inteiro,
q u e nada têm em comum para além do desejo de maximizar os seus activos.
Justamente por ser a mais pluralista, esta é também a forma mais pérfida de
fasdsmo, porquanto o seu tempo-espaço é, de todos, o mais adverso a
qualquer tipo de ddiberação e de intervenção democrática. Muito signifi-
cativa, a este propósito, é a réplica do corretor a quem perguntaram o que
considerava ser o longo prazo: "para mim, o longo prazo são os próximos
dez minutos". Este tempo-espaço global e virtualmente instantâneo, aliado
à subjacente lógica especulativa do lucro, confere ao capital financeiro um
poder discricionário imenso, suficientemente forte para ser capaz de, em
segundos apenas, abalar a economia real ou a estabilidade política de
qualquer pais. O exercício do poder financeiro é totalmente discricionário,
e a s conseqüências para quem é afectado - às vezes, nações inteiras - podem
ser avassaladoras.
A perfídia do fascismo financeiro reside em que este se tomou o m o d d o
e critério operativo das instituições da regulação global. Referirei apenas
376 | íloaventura de Sousa Santos

uma: as agendas de rating, internadonalmente credenciadas para proce-


derem à avaliação da situação financeira dos diferentes Estados e os riscos
e oportunidades que estes podem oferecer aos investidores estrangeiros.
As classificações atribuídas - que, no caso da Moody's, podem ir de Aaa
até C, com dezanove níveis de permeio - são decisivas para definir as con-
dições sob as quais um dado paiVou uma empresa desse país ficam habili-
tados a receber credito internacional. Quanto mais alta a classificação atri-
buída, m d h o r e s as condições. Estas empresas detêm um poder extraor-
dinário, Segundo Thorns Friedman, "o m u n d o pós-Guerra Fria tem duas
superpotências, os Estados Unidos e a Moody's". ' F r i e d m a n justifica a sua
afirmação acrescentando: "se é certo que os Estados Unidos da América
conseguem aniquilar u m seu inimigo utilizando o arsenal militar de que
dispõem, também é verdade que a agência de rating financeiro Moody's
dispõe do poder de estrangular financeiramente u m país conferindo-lhe-
uma dassificação baixa" (Warde, 1997:10-11). O p o d e r discricionário des-
tas agências é tanto maior quanto elas detêm a prerrogativa de proceder a
avaliações não solicitadas p d o s países ou empresas em questão.

Em q u d q u e r uma das formas de que se reveste, o fascismo social é um


regime caracterizado p o r rdações sociais e experiências de vida vividos
debaixo de relações de poder e de troca extremamente desiguais, que con-
duzem a formas de exclusão particularmente severas e potencialmente irre-
versívds. As formas de exdusão referidas existem tanto no interior das
sociedades nacionais (o Sul interior) como nas relações entre paínes (o Sul
global). A q u d i d a d e das sociabilidades que as sociedades permitem aos
seus membros depende do peso relativo do fancismiti social na constdação
dos diferentes regimes sociais nelas presentes, o mesmo podendo dizer-se
das relações entre países,

4.3. O fascismo social e a produção de uma sociedade civil estratifleada


Como enfrentar o fascismo socid? Quais as estratégias político jurídicas
mais eficazes para a sua eliminação? Antes de me debruçar sobre estas
questões, irei caracterizar brevemente o impacto do fascismo social sobre a
dicotomia liberal que opõe o Estado à sociedade civil, uma vez-que, como
resultará d a r o mais adiante, essa dicotomia esiá subjacente aos problemas
dos fascismos sociais e às potenciais soluções para eles. Noutro local (San-
tos, 2002a: cap. 7), avancei com a proposta de uma alternativa conceptual

1
A Moody's e uma das seis agendas de rating credenciados peja Securities and Exchange Commisuon;
is ouiras sso: Standard and Poor's, Fitch Investors Services, Duff and P h e l p s , Thomas HanJc Watch,
«[BCA.
Poderá o direito seremancipatório?|377

abrangente e de longo prazo para a dicotomia Estado/sociedade civil. No


presente artigo, em que a minha argumentação tem um enfoque mais res-
trito e de mais curto prazo, e visa fornecer orientações políticas concretas,
recorrerei por momentos ao quadro conceptual dominante, 1 dele me des-
viando, no entanto, de modos significativos. Distinguirei três tipos de socie-
dade civil: a sociedade civil íntima, a sociedade civil estranha e a sociedade
civil incivil. Se, meramente a título de ilustração gráfica, localizarmos o
Estado no centro de uma dada sociedade, a sociedade civil íntima será o
círculo interior feito à volta do Estado, Consiste em indivíduos e grupos
sociais caracterizados pela hiper-inclusão, ou seja, que gozam de um nível
elevado de inclusão social. Partindo do principio de que está correcta a
idéia das três gerações de direitos humanos - direitos político-civis, direi-
tos sócio-económicos e direitos culturais - , aqueles que estão incluídos na
sociedade civil íntima desfrutam do leque completo de direitos. Eles per-
tencem à comunidade dominante que mantém vínculos estreitos com o
mercado e com as forças econômicas que o governam. De facto, o seu grau
d e inrimidade com o Estado é tal que os membros pertencentes a esta camada
d a sociedade civil têm acesso a recursos estatais ou públicos muito para . n írrÍTMP CUTUW
além d o que será possível obter por qualquer política de direitos. Pode
descrever-se esta relação da sociedade civil com o Estado como uma priva- pCS/^-'
tização do Estado.
A sociedade civil estranha é o círculo intermédio em redor do Estado. As
experiências de vida das classes ou grupos sociais nela incluídos são um
misto de inclusão e exclusão social. A inclusão social tem uma qualidade
baixa ou moderada, da mesma forma que a exdusão é atenuada por algumas
redes de segurança e não é considerada irreversívd. Em termos das três
gerações de dirdtos humanos, pode afirmar-se que quem integra a sociedade
civil estranha pode exercer de uma maneira mais ou menos livre os seus
d i r d t o s cívicos e políticos, mas tem um acesso escasso aos direitos sociais e
econômicos, para já não falar dos direitos culturais ou "pós-materialistas".
Por fim, a sociedade civil incivil corresponde ao círculo exterior habitado
pelos totalmente excluídos. Socialmente, sãoi quase por completo invisíveis.
E s t e é o círculo do fascismo social e, em rig^r, os que o habitam não per-
tencem à sociedade civil, uma vez que são atirados para o novo estado natu-
ral. N ã o possuem expectativas estabilizadas, já que, na prática, não têm
quaisquer direitos.
Esta estrarificação múltipla da sociedade civil sempre caracterizou as
sociedades modernas. Estas distinguiram-se sempre (e distinguem-se ainda)
pelo tamanho rdativo dos diferentes círculos das sociedades civis. Enquanto
n o s países centrais a tendência é no sentido de que o círculo mais largo seja

12
26 | íloaventura de Sousa Santos

o círculo intermédio (a sociedade civil estranha), que tem sido ocupado


pelas classes média e média-baixa, nos países periféricos a tendência é no
sentido de que o círculo exterior (a sociedade civil incivil) abranja a maio-
ria da população. Nos últimos vinte anos, a globalização hegemônica
neoliberal produziu um duplo impacto decisivo ná dinâmica da sociedade
civil com todos os estratos que a compõem. Por um lado, o círculo intermé-
dio - a sociedade civil estranha - tem vindo a estreitar-se cada vez mais em
todo o sistema-mundo, dado que alguns dos que diele viviam ascenderam
ao círculo interior, enquanto a grande maioriu desceu ou considera encon-
trar-se no processo de passagem do círculo intermédio para o círculo exte-
rior, isto é, para a sociedade civil incivil. Em resultado dessa evolução, tanto
os países centrais como os periféricos e scmiperiféricos, independentemente
das muitas diferenças existentes entre si, se foram polarizando cada vez
mais, com formas de hiper-inclusão social a coexistir com formiu de hiper-
-exclusão. Por outro lado, à medida que o modelo neoliberal de desen-
volvimento vai sendo imposto em todo o sistema-mundo, a dinâmica subja-
cente à hiper-inclusão e à hiper-exdusão vai-se impondo, cada vez mais,
como uma dinâmica global. A exclusão dos dias d e hoje está litlvez mais
directamente ligada a políticas originárias dos países centrais do Ocidente
(assim como a políticas por estes cerceadas) do que sucedeu no tempo do
colonialismo e do imperialismo. A intervenção operada pela globalização
neoliberal sobre as economias e sobre os sistemas políticos dos países peri-
féricos e semiperiféricos não tem qualquer precedente no que «e refere à
escala e à intensidade a que ocorre e também no que concerne à ampla
coligação hegemônica que a controla. Este facto explica por que motivo é
quea visão de raiz ocidental da realidade sócio-política - uma visão nascida
no Ocidente e exportada como localismo globalizado para todo o globo -
surge como uma visão cada vez mais "correcta" das estruturas de poder
dominantes nos diferentes países. No entanto, e como sustemo adiante,
isso significa que é mais fácil ao Ocidente subalterno aliar-se ao "resto". Só
com alianças desse ripo será possível superar a hierarquia "Ocidente/resto".

A tipologia das sociedades civis atrás referida permite mostrar que, não
obstante a retórica ideológica de sinal inverso, os discursos e as práticas
político-jurídicas permitidos pela globalização neoliberal revelam-se inca-
pazes de enfrentar o fascismo social e, por conseguinte, de dar rcsppsta à
"questão social" que é o crescimento dramático da sociedade civil incivil.
Com efeito, e como demonstrei na primeira secção, o ressurgimento agres-
sivo do conservadorismo tem tido um impacto decisivo nas duas outras
ideologias sancionadas pelo Estado liberal: o liberalismo e o dcmo-socia-
lismo. Essa evolução levou à fusão dos dois, sob a égide do liberalismo.
Poderá o direito ser emanclpatórto? | 2 7

A doutrina que expressa essa hibridação política é aquilo q u e designo p o r


demoliberalismo. A.expressão mais cabal de um híbrido desse tipo é a cha-
m a d a Terceira Via, tal como é propugnada pelo Partido Trabalhista Britânico
e teorizada p o r Anthony Giddens (1998). D e facto, e m b o r a apresentada
c o m o sendo a renovação da social-democracia, a Terceira Via vem recuperar
a maior p a n e da agenda liberal,- a b a n d o n a n d o a maior parte da agenda
demo-socialista.
Tal como d e f e n d o na secção seguinte, para confrontar com êxito o fas-
cismo social e dar resposta às necessidades da sociedade civil incivil é preciso
u m outro direito e uma outra política: o direito e a política da globalização
contra-hegemónica e d o cosmopolitismo subalterno.

' 5. Do cosmopolitismo subalterno


Apesar de ser a forma hegemônica de globalização, a globalização neoliberal
n ã o é a única q u e existe. P o r t o d o o m u n d o se assiste a g r u p o s sociais,
redes, iniciativas, organizações e movimentos de tipo local, nacional e trans-
nacional, q u e se têm mostrado activos n o esforço de enfrentar a globaliza-
ç ã o neoliberal e de lhe contrapor alternativas. P o n d o de parte combates
q u e o r i g i n a r i a m e n t e j á são de âmbito transnacional, i n d u o neste vasto con-
j u n t o de políticas de tipo confrontacíonal lutas sociais que, não obstante
terem uma incidência local ou nacional, revelam estar conectadas de dife-
rentes modos com lutas paralelas travadas noutros lugares. E m conjunto,
elas constituem aquilo a q u e chamo globalização contra-hegemónica.
São c o n t r a - h e g e m ó n i c a s não a p e n a s p o r q u e c o m b a t e m as seqüelas
econômicas, sociais e políticas da globalização hegemônica, mas também
p o r q u e desafiam a concepção de interesse geral que lhe esta subjacente e
p r o p õ e m u m a concepção alternativa. P a r a a globalização hegemônica, a
e x p a n s ã o desenfreada d o capitalismo global c o interesse geral, estando,
c o m o tal, legitimada para produzir formas de exclusão social amplas, inevi-
táveis e, em última análise, positivas (porque visam promover o crescimento).
P e l o contrário, os movimentos e as organizações contra-hegemónicos defen-
d e m que uma e x d u s ã o maciça a esse p o n t o é a prova d a r a de q u e os inte-
resses do capital, longe de serem o interesse geral, são na v e r d a d e inimigos
deste, p o r q u a n t o a e x d u s ã o social - e, em particular, o fascismo social, que
é a sua forma mais extrema - negam a dignidade humana básica e o respeito
a u m a grande parte da população mundial. A h u m a n i d a d e - e alguns defen-
d e m que a natureza t a m b é m - merecem ser tratadas com dignidade e res-
peito. C o m o tal, a ideia dc interesse geral implica a i n d u s ã o social, não
p o d e n d o pactuar com processos de transformação social assentes na pre-
missa da inevitabilidade da exclusão.
380 | íloaventura de S o u s a Santos

A globalização contra-hegemónica centra-se, p o r isso, no combate con-


tra a exclusão social, um combate que, nos seus termos mais latos, inclui
não só as populações excluídas mas também a natureza, A erradicação do
fascismo social constitui, desse modo, o objectivo n ú m e r o um, e daí que a
sociedade civil incivil surja como a base social privilegiada dos combates
contra-hegemónicos. A parjir daí, estes visam estender-se àquilo que designei
por sociedade civil estranha, o n d e vigoram f o r m a s de exclusão menos
extremas.
A exclusão é sempre produto de relações de poder desiguais, que o mesmo
é dizer, de trocas desiguais. E uma vez que na sociedade circulam formas
várias de poder, será tão inviável produzir uma teoria da exclusão social
única e monolítica como o será acolher sob uma só bandeira todas as lutas
que se lhe opõem. A globalização contra-hegemónica é, por isso, um pro-
jecto plural, nisso residindo simultaneamente a sua força e a sua fraqueza.
Tal pluralidade e diversidade não eliminam a possibilidade de comunicação,
de compreensão mútua e de cooperação entre as diferentes lutas. D e facto,
o potencial e o viabilidade da globalização contra-hegemónica giram, exacta-
mente, à volta dessa possibilidade, No entanto, t u d o o que for conseguido
graças à colaboração entre movimentos e organizações progressistas será
menos o resultado de um ponto de partida comum do que de um comum
ponto de chegada. A este feixe de projectos e lutas chamo cosmopolitismo
subalterncj ou cosmopolitismo dos oprimidos.
Os debatei actuais em torno do cosmopolitismo n ã o me interessam neste
momento.: Ao longo da sua história, a palavra já significou universalismo,
tolerância,' patriotismo, o estatuto de cidadão do m u n d o , comunidade dos
seres humanos à escala mundial, etc., etc. As mais das vezes, sempre que
o conceito foi utilizado - quer como ferramenta científica para descrever
a realidade, quer como instrumento dos combates políticos - , o incondi-
cional carácter inclusivo da sua formulação abstracta foi usado para de-
fender os interesses exclusivistas de um qualquer g r u p o específico. Em certo
sentido, o cosmopolitismo foi sempre um privilégio apenas ao alcance de
alguns.
H á duas maneiras de revisitar o conceito: uma é perguntar quem é que
pode dar-se ao, luxo de o ter, outra é perguntar q u e m é que dele precisa.
A primeira pergunta prende-se com a prática social, e leva-nos a destacar
aqueles grupos sociais que lograram reproduzir a sua hegemonia usando
em proveito próprio conceitos que, como o cosmopolitismo, poderiam
parecer ir contra a própria idéia de proveito grupai. Esta pergunta assume,
portanto, uma atitude crítica, desconstrutiva. Q u a n t o à segunda pergunta,
prende-se com expectativas sociais e implica a identificação de grupos cujas
Poderá o direito seremancipatório?|381

aspirações são negadas ou tornadas invisíveis pelo uso hegemônico do con-


ceito e podem ser servidas por um uso alternativo deste. É essa a pergunta
q u e eu, aqui, formulo.
Parafraseando Stuart Hall, que formulou uma pergunta semelhante em
relação ao conceito de identidade (Hall, 1996), eu pergunto: mas quem é
q u e precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: quem quer que seja
vítima de intolerância e de discriminação precisa de tolerância; quem quer
q u e veja ser-lhe negada a dignidade humana essencial precisa de uma comu-
n i d a d e de seres humanos; quem quer que seja não-cidadão precisa de cida-
dania mundial, seja em que comunidade ou nação for. Em suma, os social-
m e n t e excluídos, vítimas da concepção hegemônica de cosmopolirismo,
precisam de um novo tipo de cosmopolitismo. O cosmopolitismo subalterno
é, portanto, uma variedade opositiva. D o mesmo modo que a globalização
neoliberal não reconhece qualquer forma alternativa de globalização, assim
também o cosmopolitismo sem adjectívos nega o seu próprio partícularismo.
O cosmopolitismo subalterno de oposição é a forma político-cultural de
globalização contra-hegemónica. É, numa palavra, o nome dos projectos
emancipatórios cujas reivindicações e critérios de inclusão social se pro-
jectam para além dos horizontes do capitalismo global.
Dado que a todos estes projectos não subjaz uma teoria unificada, e muito
m e n o s uma estratégia una, a melhor maneira de expressar o que é o cosmo-
polirismo subalterno será através da referência àqueles projectos que nos
fornecem ilustrações espeaalmente convincentes e exemplares da luta contra
a exclusão social em nome da globalização alternativa. Penso que o movi-
m e n t o zapatista é bem um desses projectos. Passo, assim, a identificar os
traços principais do cosmopolitismo subalterno com basenuma reconstrução
teórica do movimento zapatista. A reconstrução teórica que proponhoj trans-
cende em muito os próprios zapatistas, e julgo que a sua relevância resistirá
ls vicissitudes que sobrevierem aos seus protagonistas de hoje.
O que mais impressiona, no caso dos zapatistas, é a sua proposta de
basear a luta contra a exclusão num novo horizonte social. Ao centrarjem-se
i a s idéias de humanidade, dignidade e respeito, estão a ir para além do
e g a d o político progressista que herdámos dos séculos XIX e XX. O seu
:ontributo para o pensamento e para as lutas subalternas traz consigo, a
n e u ver, uma quádrupla novidade,
A primeira novidade diz respeito ao conceito de poder c de opressão,
víais do que uma versão particular do modo de produção capitalista, o
teoliberalismo é um modelo civilizacional assente no aumenro dramático
Ia desigualdade nas relações sociais. Essa desigualdade, por sua vez, assume
íúltiplas formas, que não passam de outras tantas faces da opressão.
382 | íloaventura de Sousa Santos

A opressio dos trabalhadores é uma delas, porém existem muitas outras


espécies de opressão, como, por exemplo, as que afectam as mulheres, as
minorias, os povos indígenas, os agricultores, os imigrantes, os homossexuais
e as lésbicas, os jovens e as crianças.
Todos estes tipos de opressão geram exclusão, e por isso é que no cerne
do combate zapatista estão, não os explorados, mas os excluídos; não a
classe, mas sim a humanidade: "Atrás dos nossos 'pasamontaüas' [...] está
a gente simples e comum, todos os homens e mulheres sem importância,
invisíveis, sem nome, sem futuro" (Ana Maria, 1996: 102). A natureza eman-
cipntória dos combates sociais reside em todos eles no seu conjunto e não
em qualquer um cm particular. A prioridade a atribuir a um ou a outro não
deriva de uma qualquer teoria, mas antes das condições concretas de cada
país ou região num dado momento histórico. O combate a que, em tais
condições, é dada prioridade, assume a tarefa de abrir espaço político para
os combates restantes. Assim, por exemplo, as condições concretas do
México neste momento dão a precedência à luta indígena. Mas não foi
coincidência que o membro da direcção zapatista que se dirigiu ao Con-
gresso mexicano em 28 de março de2001 fosse a comandante Esther. Graças
ao discurso impressionante desta dirigente, o movimento zapatista selou a
sua aliança com o movimento de libertação das mulheres.
A segunda novidade diz respeito à equivalência entre òs princípios da
igunldadee da diferença, Vivemos hoje em sociedades obscenamente tlesi- ,
gunls e, no entanto, a igualdade não se impõe como ide^J emancipatóriò. i
A Igualdade, entendida como equivalência entre iguais, acaba por excluir o'
que é diferente. Tudo o que é homogêneo à partida tende a transformnr-se
em violência exclusivista. Daí que as diferenças, p o r carregarem consigo
visões alternativas de emancipação social, dcvfcm ser respeitadas. Compete
àqueles que as reivindicam decidir até que ponto *e desejam hibridai ou
indiferenciar. Esta articulação entre o princípio da igualdade e o principio
da diferença exige um novo radicalismo rjas lutas pelos direitos humanos.
Não obstante as concessões que fez aos trabalhadores e, posteriormeme, a
outros excluídos do contrato social, o liberalismo político neutralizou o
potencial radicalmente democrático dos direitos humanos ao impor a lodo
o mundo uma realidade histórica europeia de tipo muito restritivo. Em
termos político-juridicos, este facto é consubstanciado no conceito de dife-
rentes gerações de direitos huhianos e na idéia de que a primeira gertição
(direitos cívicos) tem prevalência sobre a segunda (direitos políticos) e que
ambns prevalecem sobre a terceira (direitos sociais e direitos econômicos).
A novidade radical da proposta zapatista a este respeito está em formular
as suns reivindicações - que, no geral, têm a ver com os direitos humanos -
( Poderá o direito ser emançlpatàrlo? 131

.ern termos tais q u e evitam a armadilha das gerações. Consideradas sepa-


radamente, as onze reivindicações Zapatistas estão longe de ser desbrava-
doras ou revolucionárias: trabalho, terra, habitação, alimentação, saúde,
educação, independência, liberdade, democracia, justiça, paz. Juntas, for-
m a m um " m u n d o novo", um projecto civilizador que oferece u m a alterna-
tiva .relativamente ao liberalismo.
A terceira.novidade diz respeito à democracia e à conquista d o poder. Se
as formas do p o d e r são muitas, e se a sociedade n ã o é globalmente transfor-
m a d a no sentido da protecção da dignidade e d o respeito, é inútil tomar o
poden

A tomada do poder? Não, apenas algo muito mais difícil: um inundo novo.'

A tônica não vai para a destruição daquilo q u e existe, mas sim para a
criação de alternativas. Tal como são muitos os rostos da opressão, assim
t a m b é m são variadas as lutas e as propostas de resistência. T ã o variadas
elas são, de facto, q u e n e n h u m a vanguarda as unificará:

N ã o d e s e j a m o s n e m p o d e m o s o c u p a r o lugar q u e m u i t o s e s p e r a m q u e o c u p e m o s , o
l u g a r d e o n d e e m a n a m t o d a s as opiniões, todas as respostas e todas as verdades.
Não o faremos.'

A rebelião tem d e encontrar-se a si própria a partir de baixo, d a partici-


p a ç ã o de todos. A violência não é alternativa - na verdade, a violência orga-
nizada é "prerrogativa" das classes ou grupos sociais dominantes - e a demo-
cracia representativa só fracassa p o r q u e é corrupta e p o r q u e se recusa a
aceitar os desafios d a democracia participativa.
O q u e e s t á em c a u s a é a c o n s t i t u i ç ã o de uma globalização
contra-hegemónica capaz de incluir vários m u n d o s , vários tipos d e organi-
zações e d e movimentos sociais, e várias concepções de emancipação social.
A obrigação política que há-de unir toda essa diversidade há-de ser uma
obrigação política horizontal com suporte na substituição das relações de
p o d e r por relações de a u t o r i d a d e partilhada. Mas a existência de u m a
obrigação assim é tão fundamental nas relações entre organizações ou movi-
m e n t o s como o é no interior de cada um destes. A regra de ouro é a demo-
cracia interna, a n ã o confundir com o centralismo democrático d e feição
leninista, o qual apenas teve justificação, se é q u e a teve, no contexto das

7
Subcomandante Insurgente Marcos, apud Cecena, 1999: 103.
' Subcqmandante Insurgente Marcos, apud Cecena, 1998: 145.
384|íloaventurade Sousa Santos

lutas clandestinas contra as ditaduras - podendo apontar-se, entre os exem-


plos mais recentes, o caso da luta do ANC contra o apartheid, na África
do Sul,-
As democracias de baixa intensidade em que presentemente vivemos
acham-se tolhidas pelos espaços de acção política que abrem e que não
conseguem preencher. Preencher esses espaços é tarefa para as forças contra-
-hegemónicas.-Estas têm aqui a oportunidade de mostrar que a democracia,
quando levada a sério, tem pouco que ver com a caricatura em que que o
liberalismo - já para não falar do neoliberalismo - a transformou. O que é
essencial é compreender que, ao contrário do que pretendiam as vanguardas
modernistas, "temos que caminhar ao lado dos que andam mais devagar"
(Cecena, 2001:28). Uma vez que não há um fim, mas antes um horizonte, o
que importa é que caminhemos juntos. O papel estratégico da comunicação
e d a informação consiste em mostrar que não se está sozinho nente combate.
A quarta novidade do contributo dos zapatistas p a r a o cosmopolitismo
subalterno é que a questão crucial passa a ser a rebelião e não a revolução.
Uma vez que conquistar o poder do Estado não constitui um objectivo
imediato, as acções rebeldes têm um amplo campo social para o p e r a r - o
vasto conjunto de interacções sociais estruturado pelas desigualdades de
• poder. Movimentos diferentes ou diferentes combates podem ter interesse
cm bater-se com diferentes interacções sociais, s e n d o então a luta condu-
zida à luz das condições concretas verificadas nesse c a m p o social específico
e nessa particular conjuntura histórica. Isso significa q u e uma velha máxima
canónica do marxismo revolucionário do século XX, a que Althusser deu a
expressão mais eloqüente - "os marxistas sabem q u e não há táctica que
não assente numa estratégia,, nem estratégia que não assente numa teoria" -
se vê, assim, abandonada ou completamente subvertida (Debray, 1967:27).
N o zapatismo, aquilo que é táctica para um movimento pode ser estra-
tégia para outro, além de que os próprios termos p o d e m bem significar
coisas diferentes para lutas diferentes travadas em diferentes partes do
mundo, e nalgumos podem até não ter significado absolutamente nenhum.
Acresce que nenhuma teoria unificada poderá alguma vez traduzir, de uma
maneira coerente, o imenso mosaico de movimentos, lutas e iniciativas.
A luz do paradigma revolucionário moderno, a crença n u m a teoria unificada
entranhou-se de tal modo que os diversos movimentos revolucionários se
viram obrigados a perfilhar as descrições mais simplistas da respectiva reali-
dade empírica por forma a que estas coubessem nos requisitos da teoria.'

' A m a n i f e s t a d o de maior d e s t a q u e - e nem por isso menos b r i l h e n t e - d e todo esie trabalho


teórico foi a análise da revolução social de vários países da América Latina feita por Régis D e b r a y
na década de 1960 (Debray, 1967).
Poderá o direito ser emancipatórlo? | 33

D o ponto de vista do cosmopolitismo subalterno, um tal esforço não é


só risível como também perigoso. Qualquer que seja o seu valor, a teoria
virá sempre por último, não em primeiro lugar. Em vez de uma teoria que
unifique a variedade imensa de lutas e movimentos, do que precisamos é de
uma teoria da tradução - ou seja, uma teoria que, mais do que tentar criar
outra realidade (teórica) por sobre os movimentos e à margem deles, pro-
cure promover entre eles uma compreensão mútua, uma inteligibilidade
mútua, para que todos eles possam beneficiar das experiências dos demais
e com eles colaborar. Os procedimentos da tradução dispensam as nossas
descrições rarefeitas, baseando-se antes em descrições espessas. Na verdade,
a especificidade dos relatos de dois ou mais movimentos ou lutas nunca é
tanta que garanta uma tradução não-problemática entre elas.
Outra velha idéia da política revolucionária do século XX aqui posta de
parte é a idéia dos estádios da luta - quer dizer, a idéia da passagem da fase
das coligações com as forças democráticas à fase da assunção socialista - ,
q u e tanto tempo e energias consumiu da parte dos revolucionários e que
tanta responsabilidade teve nas suas cisões e embates fratricidos. Atendendo
ao mosaico de movimentos cosmopolitas subalternos a ocorrer em con-
dições tão diversas por todo o planeta, não faz qualquer sentido falar de
estádios, não só porque não há uma meta ou uma fase derradeira, mas tam-
b é m porque não existe um definição geral do que seriam as condições ini-
ciais responsáveis pelo primeiro estádio. Em vez de seguirem o paradigma
modernista de tipo evolucionista, as lutas cosmopÔlitas -r,de que o zapansmo
serve de ilustração - guiam-se por um princípio pragmático baseado num
conhecimento que não vem da teoria mas sim do senso comum: tornar o
m u n d o um lugar cada vez menos cômodo para o capital global. A idéia de
estádio dá, assim, lugar à idéia de potencial desestabilizador, um potencial
que, independentemente da escala dos movimentos, se reforça quando estes
se articulam entre si e operam em rede. Um determinado combate de inci-
dência local pode bem ser o "motorzinho" que vai ajudar ao arranque do
motor maior de um movimento global. Da mesma maneira, um movimento
global pode também vir a ser o pequeno motor que ajuda o motor grande
de u m combate local a arrancar. \

Finalmente, há que dizer que no cosmopofitismo subalterno a questão


da compatibilidade de uma dada luta ou movimento com o capitalismo
global - questão que no passado conduziu a acaloradas discussões - não se
p õ e . Uma vez que a conquista do poder não constitui um objectivo privile-
giado e que não existe uma organização que unifique sob a mesma bandeira
o vasto mosaico de movimentos contra-hegemónicos, permite-se que todas
as iniciativas cosmopolitas se defrontem, sem justificações nem cerimônia,
34 | íloaventura de Sousa Santos

com as suas raízes concretas c com a sua realidade empírica própria. Vivendo,
como vivem, num mundo largamente governado pelo capital global, eles
são, por definição, compatíveis com este, e sempre que representarem um
corte mais radica] com um dado estado de coisas poderão facilmente ser
minimizados como sendo uma iJha de diferença, como um microcosmo de
inovação social, igualmente fácil de "encaixar" no quadro globnl da gover-
nação hegemônica. A questão da compatibilidade resume-se, por,conse-
guirite, a saber se o mundo vai ficando cada vez menos cômodo psra o
capitalismo global por força das práticas subalternas rebeldes, ou se, pelo
contrário, o capitalismo global conseguiu cooptar aquelas práticas e trans-
formá-las em meios da sua própria reprodução.
A questão da compatibilidade é substituída, na prática, pela questão da
direcção política dos processos cumulativos de mútua aprendizagem e de
recíproca adaptação e transformação entre práticas sociais hegemônicas
dominantes e práticas subalternas. Trata-se, efectivamente, de uma questão
crucia], uma vez que da resposta a ela depende o futuro das globalizações
em disputa. A forma de globalização que conseguir aprender mais e mais
depressa, conseguirá vantagem no confronto. Se a história se repetisse, seria
mais de prever uma situação em que a globalização hegemônica iria pro-
vavelmente aprender mais e mais rapidamente d o que a globalização
contra-hegemónica do que o cenário inverso. Com efeito, não obstante a
diferença de contextos, de épocas e dos interesses em presença, será útil
recordar o aviso feito por Debray quando afirmou que os E.U.A. e a sua
estratégia contra-revolucionária na América Latina aprenderam mais'de-
pressa com a Revolução Cubana do que os outros grupos revolucionários
então activos noutras partes do continente - Venezuela, Brasil, Bolívia,
Argentina, Peru, etc. (Debray, 1967).
As características do novo paradigma de um cosmopolitismo subalterno
tal como aqui se reconstrói teoricamente com base no movimento zapatista
abrem caminho a um manancial de criatividade política por parte de movi-
mentos e organizações. A avaliação dessa criatividade deverá orientar-se
pelo mesmo princípio pragmático que veio substicuir-se à idéia dos estádios
da luta. A pergunta a fazer, portanto, é se uma tal criatividade tornou o
mundo menos cômodo para o capitalismo global ou não. Como sucede
com qualquer outro paradigma, os traços do novo paradigma político não
são inteiramente novos. Eles são, acima de tudo, bastante vagos. Por isso,
terão queserobjecto de reflexão, de ponderação minuciosa, e de uma even-
tual adaptação às realidades históricas de cada país Íju lugar por parte das
diferentes organizações e movimentos interessados. Só assim poderão con-
tribuir efectivamente para alargar as vias da globalização comra-hegrmónica.
Poderá o direito ser emancipatório?|387

6. O cosmopolitismo subalterno e o direito: condições para a legalidade


cosmopolita
Ta] como é entendido aqui, o cosmopolitismo subalterno é um projecto
cultural, político e social de que apenas existem manifestações embrionárias.
E m conformidade com isto, qualquer indagação sobre o lugar d o direito
n o cosmopolitismo subalterno e sobre as práticas nascentes q u e podem
consubstanciar u m a legalidade cosmopolita subalterna terá que ser empreen-
dida num espírito prospectivo e prescritivo. É esse o espírito q u e anima o
resto do presente artigo, que visa delinear - e não tanto particularizar -
u m a agenda de investigação sobre a teoria e a prática jurídica d o cosmo-
politismo subalterno, e cartografar alguns dos lugares-chave em que essa
teoria e essa prática vêm hoje sendo ensaiadas. 1 0
Para tanto, a abordagem que aqui a d o p t o consiste - como refiro noutro
local (Santos, 2001) - n u m a sociologia das emergências, o que implica inter-
pretar d e maneira expansiva as iniciativas, movimentos ou organizações
q u e se mostram resistentes à globalização neoliberal e à exclusão social e
q u ç lhe contrapõem alternativas. As características das lutas são ampliadas
e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito
ou escondido p o r detrás das acções contra-hegemónicas concretas. O alar-
g a m e n t o simbólico gerado pela sociologia das emergências visa analisar as
tendências ou possibilidades inscritas n u m a d a d a prática, experiência ou
f o r m a de conhecimento. Acrua ao m e s m o t e m p o sobre as possibilidades e
s o b r e as capacidades. Identifica sinais, pistas, ou rastos de possibilidades
f u t u r a s naquilo q u e existe. U m a tal a b o r d a g e m permite-nos identificar
qualidades e entidades emergentes n u m a altura e n u m contexto em que
estas se arriscam a ser facilmente descartadas c o m o sendo desprovidas de
u m devir, insignificantes, ou ate retrógradas. A abordagem corresponde,
na análise prospectiva, ao método de caso alargado utilizado pela análise
sociológica.

T e n d o em vista a minha preocupação com o direito no presente traba-


lho, não me debruçarei sobre t o d o o espectro de iniciativas ou movimen-
tos, mas apenas sobre aqueles cujas práticas jurídicas se afiguram mais pro-
eminentes. Irei, mais propriamente, debruçar-me sobre as estratégias legais

19
P a r a a apresentação da agenda de investigação e do mapa d o s lugares da legalidade cosmopolita
subalterna, baseio-me cm grande p a n e nos resultados de u m projecto d e investigação colcctivo
t e c é m - c o n d u í d o , o qual - sob a minha direcção e com a participação de mais de sessenta acadê-
micos e activistas da índia, Brasü, Portugal, Áiricfl do Sul, Moçambique e Colômbia analisou
ai formas de globalização contra-hcgcmónica do Sul. O s estudos de caso e 01 resultados gerais
do projecto encontram-se publicados em português [Santos (org.) 2002a, 2002b, 200)», 2003b,
2003c] e irão estar disponíveis também em inglês e espanhol. Ver também o website do projecto,
em http://www.ce3.fc.uc.pt/cmancipa/.
388 | íloaventura de Sousa Santos

- quer dizer, sobre o cosmopolitismo subalterno (a legalidade cosmopolita,


em suma). A legalidade cosmopolita aprofunda a globalizàçfio contra-hege-
mónica. E uma ve&que, nas nossas condições actuais, esta é uma condição
necessária para a emancipação social, a reflexão e m torno da. legalidade
cosmopolita é o meu modo de responder à questão com que comecei: poderá
o direito ser emancipatôrio?
Começarei por a p r e s e n t a t f p b a forma de teses acompanhadas por breves
notas explicativas, as condições ou pressupostos da legalidade cosmopolita
subalterna ". Trata-se, em versão condensada, dos resultados principais da
sociologia das emergências, No seu conjunto, formam umn imagem típica
ideal do que é a legalidade cosmopolita. Passarei então, na secção seguinte,
a oferecer alguns exemplos de casos de luta contra a globalização neoliberal
em que o direito foi uma componente significativa. Deverá resultar claro
que as ilustrações concretas representam graus diferentes de aproximação
à legalidade cosmopolita.
N o que diz respeito às condições da legalidade cosmopolíia, estas podem
resumir-se nas oito teses seguintes:

1. Uma coisa é utilizar um instrumento hegemônico num dado combate


político. Outra coisa é utilizá-lo de uma maneira hegemônica.
Isto aplica-se tanto ao direito como à política dos direitos. De acordo
com o cosmopolitismo subalterno, e como demonstrarei adiante, nem o
direito se resume ao direito estatal, nem os direitos se resumem aos direitos
individuais. Isso não significa, contudo, que o direito estatal e os direitos
individuais devam ser excluídos' das práticas jurídicas cosmopolitas. Pelo
contrário, eles podem ser usados, ainda que integrados em lutas mais vastas,
que os retirem do molde hegemônico. Esse molde, em essênda, e a idéia de
autonomia e a idéia de que os direitos são, ao mesmo tempo, meios e fins da
prática social. Desta perspectiva, o direito e os direitos são autônomos
porque a sua vdidade não depende das condições da respectiva eficácia
social. São autônomos também porque operam através de conjuntos espe-
cíficos de instituições estatais criadas para esse efeito - tribunais, legislatu-
ras, etc. Além disso, acha-ie que o direito e os direitos esvaziam, à partida,
o uso de qualquer outra ferramenta social. As leis são padrões normativos
de acção social dotados de autoridade e produzidos pelo Estado, ao passo

11
Há décadas que estudiosos dos E.U.A. vêm discutindo a questão d e saber se as estratégias dos
direitos Facilitam a "mudança social de sentido progressista" ou se legitimam e reforçam as desi-
gualdades sociais. Para um balanço geral desse debate, ver Levúslcy,2001. N o s termos estreitos em
que tem sido tratada - como um debate no interior d o demoliberalismo a questão não é passível
d e resposta. N o presente artigo, avanço com uma alternativa analítica e político.
Poderá o direito ser emancipatório? | 37

que os direitos são regalias individuais dotadas de autoridade, garantidas


pelo Estado e criadas a partir das leis. Concebidos desta maneira, o direito
e os direitos determinam os seus próprios limites, para além dos quais nada
pode ser reivindicado nem como lei nem como um direito, Por ser quem
produz e garante, o Estado detém o monopólio sobre a declaração de lega-
lidade ou ilegalidade, do certo (direito) ou do errado (não-direito),
Em contraposição a esta concepção, o cosmopolitismo faz duas asserções:
primeiro, é possível utilizar estas ferramentas hegemônicas para objectivos
não-hegemónicos; e, segundo, há concepções não-hegemónicas e alternati-
vas destas ferramentas, É disso que falo na tese seguinte,

2. Um uso não-hegemónico de ferramentas jurídicas hegemônicas parte da


possibilidade de as integrar em mobilizações políticas mais amplas, que podem
incluir acções tanto legais como ilegais.
Ao contrário do que acontece com o movimento dos estudos críticos do
direito, a legalidade cosmopolita perfilha uma visão não-essencialista do
direito estatal e dos direitos, O que faz com que estes sejam hegemônicos é
o uso específico que as classes e grupos dominantes lhes dão, Usados como
instrumentos de acção social exclusivos e autônomos, eles fazem, de facto,
parte daquilo que é a política de cima para baixo. São instáveis, contin-
gentes, manipuláveis, e confirmam as estruturas de poder que deveriam,
alterar. Em suma: se concebidos e utilizados desta forma, eles não têm
qualquer préstimo para a legalidade cosmopolita,
Existe, no entanto, a possibilidade de o direito e os direitos serem usados
como não-autónomos e não-exclusivos. Tal possibilidade assenta no pres-
suposto da "integração" do direito e dos direitos em mobilizações políticas
de âmbito mais vasto, que permitam que as lutas sejam politizadas antes de
serem legalizadas. Havendo recurso ao direito e aos direitos, há também
q u e intensificar a mobilização política, por forma a impedir a despolitiza-
ção da luta - despolitização que o direito e os direitos, se abandonados a si
próprios, serão propensos a causar. Uma política de direito e direitos f o n e
é aquela que não fica dependente apenas do direito ou dos direitos. Uma
maneira de mostrar uma atitude de desafio helo direito e pelos direitos,
paradoxalmente, é lutando por um direito e direitos cada vez mais indusi-
vos. A disponibilidade para a manipulação, a contingência, e a instabilidade
procedentes de baixo são a maneira mais eficaz de contrariar a disponi-
bilidade para a manipulação, a contingência, e a instabilidade procedentes
de cima. Uma política de direitos forte é uma política de caracter dual,
assente na gestão dual de ferramentas jurídicas e políticas sob a égide destas
últimas.
38 | íloaventura de Sousa Santos

É provável que os momentos mais intensos da legalidade cosmopolita


envolvam acção directa, desobediência civil, greves, manifestações de rua,
encenações dirigidas aos media, etc. Algumas destas actividades serão ilegais,
outras terão lugar em esferas não reguladas pelo direito estacai. A ilegali-
dade subalterna pode ser usada para efeitos de confronto, quer com a lega-
lidade dominante, quer com a ilegalidade dominante. Esta última é espe-
cialmente difusa e agressiva no caso do Estado paralelo a que atrás aludi.
Nas sociedades com alguma experiência histórica de legalidade demoli-
beral, o direito estatal e os direitos, outrora percepcionados a partir das
margens - da posição dos oprimidos e dos excluídos - , são, contraditória-
mente, lugares ao mesmo tempo de exclusão e de inclusão. A natureza e a
direcção imprimida às lutas políticas é que vai determinar qual irá preva-
lecer. Nas sociedades com pouca ou nenhuma experiência histórica de lega-
lidade demoliberal, é muito improvável as leis e os direitos hegemônicos
receberem um tipo de uso não-hegemónico.

}. As formas não-hegemónicas de direito não favorecem nem promovem


necessariamente o cosmopolitismo subalterno.
A questão da não-hegemonia no domínio, do direito é, hoje, uma questão
bastante complexa. A legalidade demoliberal tem sido tradicionalmente
entendida como direito estatal ou sancionado pelo Estado, sendo essé'tam-
bém o conceito hegemônico de direito. Há hoje, neste nosso tempo de globa-
lizações e localizações intensas, múltiplas fontes do direito, e nem de todas
pode dizer-se que são sancionadas pelo Estado. As formas não-hegemóni-
cas de direito não são, necessariamente, conrra-hegemónicas. Pelo contrário,
podem até estar ao serviço do direito hegemônico, contribuindo para a sua
reprodução sob novas condições e acentuando até os seus traços exclusi-
vistas. As novas formas de legalidade global "vindas de cima", produzidas
por poderosos actorcs transnacionais - de que é exemplo a nova lex merca-
toria - , ilustram bem este aspecto, já que se aliam ou articulam com a lega-
lidade do Estado numa espécie de co-gestão jurídica que reforça a globali-
zação neoliberal e aprofunda a exclusão social.
H á igualmente muita legalidade que é gerada a partir de b a i x o - o
direito tradicional, o direito indígena, o direito comunitário, o direito
popular, etc. A exemplo do que sucede com a legalidade não-estatal
provinda de cima, esta legalidade não-hegemónica não é, necessariamente,
contra-hegemónica, porquanto pode ser utilizada em conjugação com o
direito estatal para fins exclusivistas. No entanto, ela também pode ser
utilizada para efeitos de confrontação com a legalidade estatal demoliberal,
bem como de luta pela inclusão social e contra a globalização neoliberal,
Poderá o direito ser emancipatório? | 39

a s s u m i n d o então um papei político contra-hegemónico. N e s t e caso, as


l e g a l i d a d j s não-hcgemónicas provindas de baixo fazem parte integrante
d a legalidade cosmopolita.
O pluralismo jurídico desempenha um papel fulcral na legalidade cosmo-
polita, contudo, deve ser sempre sujeito a uma espécie de teste de Litmus,
p a r a ver quais as formas de pluralismo jurídico q u e conduzem à legalidade
cosmopolita e quais as que o não permitem. O teste consiste em avaliar se o
pluralismo jurídico contribui para a redução da desigualdade nas relações
de poder, assim reduzindo a exclusão social ou elevando a qualidade da
inclusão, ou se, pelo contrário, torna ainda mais rígidas as trocas desiguais
e r e p r o d u z a exclusão. A verificar-se a primeira hipótese, estaremos perante
a pluralidade jurídica cosmopolita.

4. A legalidade cosmopolita é voraz relativamente às escalas de legalidade. .


A legalidade cosmopolita leva a sério a idéia d e q u e o direito é um m a p a
de tresleitura. Deste modo, para a legalidade cosmopolita, as formas de
mobilização política e os seus objectivos concretos é q u e hão-de determi-
n a r qual a escala (local, nacional, global) a privilegiar. A preferência atribuída
a u m a dada escala não quer dizer que outras escalas não venham a ser mobi-
lizadas. Pelo contrário, a legalidade cosmopolita t e n d e a combinar diferen-
tes escalas de legalidade e até a subvertê-las, no sentido de q u e visa atingir
o global no local e o local no global. É, pois, uma legalidade trans-escalar.

5. A legalidade cosmopolita é uma legalidade subalterna apontada à socie-


dade civil incivil e i sociedade civil estranha.
A legalidade cosmopolita visa antes de mais a sociedade civil incivil, visto
q u e procura erradicar a exclusão, especialmente na sua forma mais extrema
- o fascismo social. N o entanto, ela chega t a m b é m aos estratos mais baixos
da sociedade civil estranha, o n d e muitas vezes é fortíssima a exclusão social.
Ao combater a exclusão, a legalidade cosmopolita tem consciência do perigo
q u e é estar desse m o d o a confirmar e legitimar o contrato social liberal
m o d e r n o e, c o n s e q u e n t e m e n t e , t a m b é m a exclusão sistemática p o r ele
gerada, como sucede com a legalidade demoliberal e com as concessões
selectivas feitas p o r esta a d e t e n n i n a d o s g r u p o s de excluídos. Para o evitar,
a legalidade cosmopolita p r o c u r a atacar os danos de incidência sistemática
e n ã o só a relação vítima/agressor, como sucede no caso da legalidade demo-
liberal. Isto explica p o r q u e é q u e a mobilização política e os m o m e n t o s de
confrontação e rebelião não são complementos, mas antes componentes
intrínsecas, da legalidade cosmopolita. R e s p o n d e r ao d a n o sistemático
implica reivindicar um contrato social novo e radicalmente mais inclusivo.
4 0 | íloaventura de Sousa Santos

Impõe-se, por isso, substituir a justiça restauradora - que é a concepção de


justiça demoliberaJ por excelêricia - por uma justiça transformadora, quer
dizer, por um projecto de justiça sócia] que vá além do horizonte do capi-
• talismo global. É nisto que reside o caracter opositivo e contra-hegemónico
da legalidade cosmopolita.

6. Enquanto forma subalterna \le legalidade, o cosmopolitismo submete


os três princípios modernos da regulação a uma hermenêutica de suspeição.
Ao invés da legalidade demoliberal, a legalidade cosmopolita vê as rela-
ções de poder como algo não restringido pelo Estado, como algo que
"habita" o mercado e a comunidade, Em conformidade com essa visão, ela
faz uma distinção entre mercado dominante c mercado subalterno, entre
comunidade dominante e comunidade subalterna. O objectivo da legali-
dade cosmopolita consiste em capacitar os mercados e as comunidades subal-
ternos. Juntos, estes formam os tijolos das esferas públicas subalternas.

7. O fosso entre o excesso de sentido e o défice de desempenho ( inerente


a uma política da legalidade. A legalidade cosmopolita vive perseguida por
este fosso.
Apesar de a legalidade cosmopolita, sempre que recorre ao direito, o
fazer no contexto, de uma estratégia contra-hegemónica, a verdade é que o
fosso entre o excesso de sentido (expansão simbólica através de promessas
abstractas) e o défice de desempenho (a estreiteza das conquistas concre-
tas) p o d e acabar por desacreditar as lutas cosmopolitas no seu conjunto.
A crise do contrato social moderno reside na inversão da discrepância entre
a experiência social e a expectativa social. Após um longo período de expec-
tativas positivas quanto ao futuro, pelo menos nos países centrais e semi-
periféricos, entrámos num período de expectativas negativas l para amplos
sectores das populações de todo o planeta. O projecto cosmopolita con-
siste exactamente em restaurar a discrepância moderna entre experiências
sociais e expectativas sociais, ainda que por meio de práticas de oposição
pós-modernas e apontando para transformações políticas radicais, Tendo
em vista tudo isto, no entanto, p o d e gerar-se uma tensão entre o cosmo-
politismo no seu tftdo e a legalidade cosmopolita, Com efeito, num período
era que as expectativas sociais são negativas quando comparadas com as
experiências sociais do quotidiano, a legalidade cosmopolita pode achar-se
na situação de se^ mais eficaz ao defender o status quo jurídico, isto é, a
aplicação efectivaidas leis tal como elas vêm nos livros. O dilema, para o
cosmopolitismo, éstá em ter de lutar, ao mesmo tempo, por um transfor-
mação social p r o f u n d a e pelo status quo. Mais uma vez, a saída reside numa
Poderá o direito ser emanclpatórto? | 41

forte mobilização política do direito que use o excesso de sentido do direito


para transformar uma luta pelo status quo numa luta por mudanças sociais
profundas, e o seu défice de desempenho para transformar uma luta por
mudanças sociais numa luta pelo status quo.

8. Não obstante as diferenças profundas entre a legalidade demoliberale a


legalidade cosmopolita, as relações entre ambas são dinâmicas e complexas.
A legalidade demoliberal faz um uso hegemônico das concepções de
direito e de direitos. Não tolera infracções políticas à autonomia do direito,
e muito menos acções ilegais. Visa tanto a sociedade civil íntima como a
sociedade civil estranha, e as concessões que faz aos severamente excluídos
(a sociedade civil incivil) fá-las de modo a confirmar e a legitimar o contrato
social e as suas exclusões sistêmicas. Recebe os seus recursos reguladores
do Estado - onde considera que residem todas as relações dê p o d e r rele-
vantes - , bem como do mercado e da comunidade dominantes; Finalmente,
uma vez que não aspira a qualquer mudança social estrutural profunda,
aperfeiçoa-se no que diz respeito à justiça restauradora e usa oifosso entre o
excesso de sentido e o défice de desempenho para avançar com manipula-
ções adaptativas do status quo.
Isto mostra a que ponto a lealidade cosmopolita difere da legalidade
demoliberal. Apesar destas diferenças, contudo, as lutas cosmopolitas podem
aliar com proveito estratégias jurídicas cosmopolitas a estratégias demoli-
berais, originando assim híbridos políuco-jurídicos de vários tipos. As lutas
pelos direitos humanos prestam-se a este tipo de hibridação jurídica. Os
projectos emancipatórios, orientados por princípios de boa ordem e da
boa sociedade, combinam sempre diferentes conjuntos de objecrivos, alguns
dos quais se torna possível perseguir através de estratégias demoliberais,
dentro de certos limites e desde que estas se encontrem disponíveis. Pode
igualmente acontecer que o contexto político, cultural e social em que as
lutas cosmopolitas se travam obrigue a que estas sejam formuladas em ter-
mos demoliberais. Isto tem maiores probabilidades de se dar em duas situa-
ções contrastantes, e em que as lutas mais radicais p o d e r ã o ter que
confrontar-se com uma repressão especialmente eficaz: nas sociedades em
q u e uma cultura demoliberal forte do ponto de vista político-jurídico
coexiste com grandes ideologias conservadoras, como é sobretudo o caso
dos E.U.A.; e nos regimes ditatoriais ou quase-ditatoriais e, de uma forma
mais geral, em situações de democracia de densidade extremamente baixa,
como é o caso de muitos países periféricos e de alguns países semiperiféricos.
E m ambas as situações, serão muitas vezes necessárias coligações e uma
advocacia de âmbito transnacional para manter a legalidade cosmopolita.
4 2 | íloaventura de Sousa Santos

Mas a h i b r i d a ç í o jurídica entre cosmopolitismo e demoliberalismo tem


uma origem mais p r o f u n d a , derivada do p r ó p r i o conceito de emancipação
social. O s conceitos substantivos de emancipação social são sempre con-
textuais e incrustados. É possível, todavia, definir, em cada contexto dado,
graus de emancipação social. P r o p o n h o uma distinção entre conceitos de
emancipação social finos e espessos, de a c o r d o com o grau e a qualidade de
libertação ou de inclusão social q u e encerram. Por exemplo, a concepção
fina de emancipação social está subjacente às lutas através das quais as for-
mas de opressão ou de exclusão mais duras e extremas são substituídas p o r
formas de opressão mais brandas ou p o r formas de exclusão social de tipo
não-fascista. A mera sobrevivência física e a protecção contra ii violência
arbitrária p o d e m bem ser o único e ao m e s m o tempo o mais dese|ndo objec-
tivo emancipatório a alcançar, como nos mostra o caso de San J o n é d e Apar-
tado, na Colômbia. P o r outro lado, a concepção espessa de emancipação
implica, não apenas a sobrevivência h u m a n a mas também uma prosperi-
dade - no dizer de Agnes Heller - guiada por necessidades radicais. Segundo
esta autora, as necessidades radicais são de tipo qualitativo e permanecem
inquantificáveis; não p o d e m ser satisfeitas num m u n d o baseado na subor-
dinação e na sobre-ordenação; e impelem as pessoas para idéias e práticas
que abolem a subordinação e a sobre-ordenação (Heller, 1976, 1993). Em-
bora a distinção entre concepções de emancipação social finas e espessas se
possa fazer em termos genéricos, os tipos d e objectivos abrangidos p o r u m
ou outro dos dois termos da distinção só p o d e m ser determinados em con-
textos específicos. P o d e perfeitamente dar-se a circunstância de aquilo que
funciona c o m o concepção de emancipação fina para uma determinada luta
cosmopolita numa dada sociedade e n u m d a d o momento histórico funcio-
nar como concepção de emancipação espessa para uma outra luta cosmo-
polita n o u t r o contexto geográfico-temporal.

À luz desta distinção, p o d e afirmar-se q u e existe uma probabilidade maior


de as estratégias jurídicas cosmopolitas e demoliberais virem a aliar-se sem-
pre que as concepções de emancipação social finas tenderem a d o m i n a r os
projectos emancipatórios dos grupos e das lutas cosmopolitas. Será o caso,
por exemplo, dos grupos cosmopolitas q u e se batem por direitos políticos
e cívicos básicos, sem os quais não terão a mínima capacidade de se mobi-
lizar ou organizar. v

7, A legalidade cosmopolita em acçâo


De seguida, deter-me-ei brevemente em alguns exemplos em que as práticas
e reivindicações jurídicas são componentes constitutivas das lutas cosmo-
politas contra a globalização neoliberal e contra o fascismo social. C o m o já
Poderá o direito ser emandpatório? | 43

referi, mais do que fazer a análise exaustiva do enorme número de mani-


festações de práticas cosmopolitas jurídicas a ocorrer por todo o mundo,
pretendo traçar o mapa de alguns dos mais notórios e. promissores desses
combates, como forma de delinear uma agenda de investigação sobre a
legalidade cosmopolita e de detectar o eventual potencial de elos d e ligação
entre lutas aparentemente díspares. I J Mais concretamente, abordarei cinco
cachos delegalidadcs cosmopolitas: o direito nas zonas de contacto, o direito
e a redescoberta democrática do trabalho, o direito e a produção não-capi-
talista, o direito para os não-cidadãos e o direito estatal como mais recente
movimento social.

7.1. O d i r e i t o n a s z o n a s d e c o n t a c t o
As zonas de contacto são campos sociais em que diferentes mundos da vida
normativos se.encontram e defrontam. 1 1 As lutas cosmopolitas travam-se,
muitas vezes, em campos sociais deste tipo. Para além de fornecerem pa-
drões de experiências e de expectativas político-econômicas legítimas ou
autorizadas, os mundos da vida normativos apelam a postulados culturais
de tipo expansivo e, por isso, os conflitos que existem entre eles tendem a
envolver questões e a mobilizar recursos e energias que extravasam em muito
aquilo que pareceria estar em jogo na versão manifesta dos conflitos. As
zonas de ( contacto de que aqui me ocupo são aquelas em que diferentes
culturas jurídicas se defrontam de modos altamente assimétricos, quer dizer,
em embates que mobilizam trocas.de poder muito.desiguais. Assim, por
exemplo, os povos indígenas envolvem-se em conflitos assimétricos com
culturas nacionais dominantes, tal como sucede com os imigrantes ilegais
ou os refugiados que vão em busca da sobrevivência em países estrangeiros.

11
C o m o já referi atrás, esta minha tentativa de traçar o mapa das práticos jurídica?cosmopolitas é
fortemente informada pelo proiecto de investigação "Para Reinventar a Emancipação Social", que
eu p r ó p r i o dirigi de 1995 a 2002 e cujos resultados saíram publicados em Santos (org.) 2002a,
2 0 0 2 b , 2003 a, 2003b, 2003 c. Não obstante o proiecto não evidenciar uma dimensão sóclo-jurfdica
expUáta, muitos dos estudos de caso levados a cabo pelos participantes - o r i u n d o ! do Brasil, índia,
Colômbia, Moçambique, África do Sul e Portugal - documentam lutas subalternas travadas nesses
países nas quais se verifica o recurso a estratégias jurídicas Internacionais.
11
M a r y Louise Pratt (1992: 4) define zonas de contacto como "espaços sociais em que culturas
díspares se encontram, enfrentam e emrechocam, muitos vezes em relações de dominação e subor-
d i n a ç ã o altamente assimétricas - como no caso do colonialismo, da escravatura ou das respectivas
seqüelas tal como são hoje vividas em toda a face do planeta". Nesta formulação, as zonas de
contacto parecem implicar recontros entre totalidade; culturais, mas, d e facto, não tem que ser
assim. Com efeito, a zona de contacto pode envolver diferenças culturais selecdvas e parciais,
precisamente aquelas que n u m dado tempo-espaço competem entre si para conferir sentido a uma
determinada Unha de acçáo. Além disso, as trocas desiguais estendem-se hoje em dia multo para li
do colonialismo t das suas seqüelas, ainda que - como os estudos pós-coloniais vieram revelar -
a q u e l e continue a desempenhar um papel muito mais importante d o que gostaríamos de admitic.
44 | íloaventura de Sousa Santos

As zonas de contactosão, portanto, zonas em que idéias, saberes, formas


de poder, universos simbólicos e agências normativos e rivais se encontram
em condições desiguais e mutuamente se repelem, rejeitam, assimilam, imi-
tam e subvertem, de modo a dar origem a constelações político-jurídicas de
natureza híbrida em que é possível detectar o rasto da desigualdade das
trocas. Os híbridos jurídicos são fenômenos político-jurídicos onde se mis-
turam entidades heterogêneas que funcionam por desintegração das formas
e por recolha dos fragmentos, de modo a dar origem a novas constelações
de significado político ç jurídico. Em resultado das interacções que ocorrem
na zona de contacto, tanto a natureza dos diferentes poderes envolvidos
como as diferenças de poder existentes entre eles são afectadas.
A complexidade é intrínseca à definição da própria zona de contacto.
Quem é que defihe quem - ou que coisa - pertence à zona de contacto?
A quem pertencei a linha que delimita, interna e externamente, a zona de
contacto? Na verdade, o combate pela apropriação dessa linha é o meta-
combate pela legálidade cosmopolita na zona de contacto. Outra fonte de
complexidade reside na circunstância de as diferenças entre as culturas ou
os mundos da vida normativos presentes na zona de contacto poderem ser
tão largas que que se tornam incomensuráveis. A primeira tarefa consistirá,
portanto, em aproximar o universo cultural e o universo normativo, tra-
zendo-os até uma distância que permita, por assim dizer, o "contacto visual",
para que entre ambos possa ter início a tradução, Paradoxalmente, devido
à multiplicidade dos códigos culturais em presença, a zona de contacto
pode dizer-se relativamente não-codificada - ou abaixo do padrão - , enfim,
uma zona propícia à experimentação e à inovação cultural e normativa.
Para as lutas cosmopolitas, com os grupos subalternos a bater-se pela
igualdade e pelo reconhecimento e os grupos dominantes a opor-se-lhes, a
questão do poder afigura-se central. A legalidade cosmopolita é, então, a
componente jurídica das lutas que recusam aceitar o status quo do poder
bem como o mal sistemático por ele gerado, e que os combatem em n o m e
de legitimidades normativas e culturais de tipo alternativo. A legalidade
cosmopolita da zona de contacto é antimonopolista na medida em que reco-
nhece reivindicações rivais e organiza a luta cm tornp da competição entre
elas. A pluralidade jurídica é, assim, inerente à zona d e contacto.
O que está em jogo na zona de contacto nunca é uma determinação sim-
ples no sentido da igualdade ou da desigualdade, uma vez que no conflito
estão presentes conceitos alternativos de igualdade, Dito de outio modo,
nas zonas de contacto o direito da igualdade não funciona sepnrado do
direito do reconhecimento da diferença. O combate jurídico cosmopolita
travado na zona de contacto é uma luta pluralista pela igualdade iranseul-
Poderá o direito ser emancipatórlo?|397

tural ou intercultural das diferenças. Nesta igualdade das diferenças está


incluído o direito igual transculturai, que cada grupo envolvido na zona de
conracto tem, de decidir entre continuar a ser diferente ou misturar-se com
os outros e formar híbridos.
As lutas jurídicas cosmopolitas da zona de contacto são particularmente
complexas, e as constelações jurídicas que daí emergem tendem a ser instá-
veis, provisórias e reversíveis, Mas é evidente que a luta jurídica cosmopolita
não é o único tipo de luta jurídica que pode intervir na zona de contacto.
O contraste entre a legalidade demoliberal e a legalidade cosmopolita
resulta especialmente nítido se olharmos para os tipos de sociabilidade das
zonas de contacto que cada um dos paradigmas jurídicos tende a privile-
giar ou sancionar. Na minha visão do problema, existem quatro tipos de
sociabilidade: a violência, a coexistência, a reconciliação e a convivialidade.
A violência é o ripo de encontro em que a culrura dominante ou o mundo
da vida normativo assumem o controlo total da zona de contacto, sentindo-
•se por isso legitimados para suprimir, marginalizar ou até destruir a cultura
subalterna ou o mundo da vida normativo. A coexistência é a sociabilidade
típica do apartheid cultural, em que se permite que diferentes culturas
:volucionem em separado e em que os contactos, interpenetrações ou hibri-
iações são grandemente desincentivados, quando não mesmo proibidos.
\ reconciliação é o tipo de sociabilidade baseada na justiça restauradora, ho
:anar de antigas ofensas e agravos. Trata-se de uma sociabilidade mais voltada
jara o passado do que para o futuro. Por esse motivo, deixa-se que os
lesequilíbrios de poder herdados do passado continuem a reproduzir-se
©b novas capas. P o r fim, a convivialidade, que em certo sentido é uma
econciliação voltada para o futuro. Os agravos do passado são resolvidos
ie maneira a viabilizarsociabilidades alicerçadas em trocas tendencialmente
guais e na autoridade partilhada.
Cada uma destas sociabilidades é a um tempo produtora e produto de
tma constelação jurídica específica. Uma constelação jurídica dominada
telo demoliberalismo tenderá a favorecer a reconciliação e, sempre que
tossível, a coexistência e até a violência, ao passo que uma constelação
jrídica dominada pelo cosmopolitismo tenderá a favc^recer a convivialidade.
| D e seguida, identifico os principais casos em que,.hoje em dia, as estraté-
ias jurídicas cosmopolitas intervém nas zonas de contacto. Na maioripane
leles, tais intervenções ocorrem por meio de estratégias juridicamente híbri-
1
as, em que cosmopolitismo e demoliberalismo se combinam. C o m o l c o u
i t o atrás, dependendo do rumo que a mobilização política assumir, assim
stas estratégias poderão acabar por propiciar resultados de pendor cosmo-
olita ou demoliberal.
46 | íloaventura de Sousa Santos

7.1,1. Direitos humanos multiculturais


A crise da m o d e r n i d a d e ocidental veio mostrar q u e o fracasso dos piojec-
tos progressistas relativos à melhoria das o p o r t u n i d a d e s e das condições de
vida dos grtupos subordinados tanto dentro como fora do m u n d o ociden-
tal se deveu, em parte, à falta de legitimidade cultural. Isso m e s m o sucede
com os direitos humanos e com os movimentos que lhes dão voz, pela razão
de qúe a universalidade dos direitos h u m a n o s não é algo que possn ser
d a d o como adquirido. A idéia de dignidade h u m a n a pode ser formulada
em muitas "línguas". E m vez de serem suprimidas e m nome de universalis-
m o i postulados, essas diferenças têm de se tornar m u t u a m e n t e inteligíveis
através de um esforço de tradução e daquilo a que chamei uma hermenêu-
tica diatópica, 1 4
A questão dos direitos humanos transcende o direito na zona de contacto.
Nesta, o que está em jogo é o encontro entre direitos humanos enquanto
específica concepção cultural da dignidade h u m a n a e outras concepções
alternativas que com ela rivalizam. E n q u a n t o a legalidade demòliberal defen-
derá, quando muito, umn sociabilidade de reconciliação assente no pres-
suposto da superioridade da cultura de direitos h u m a n o s d o Ocidente, a
legalidade cosmopolita irá procurar construir, através d a hermenêutica diató-
pica, uma sociabilidade de convivialidade assente n u m a h i b r i d a ç ã o virtuosa
e n t r e as mais abrangenles e e m a n c i p a t ó r i a s c o n c e p ç õ e s de d i g n i d a d e
humana, nomeadamente as concepções perfilhadas pela tradição dos direitos
h u m a n o s e pelas restantes tradições de dignidade h u m a n a presentes na zona
de contacto.
U m a tal reconstrução transcultural tem p o r premissa uma política de
reconhecimento da diferença capaz d e estabelecer ligações entre, p o r um
lado, as incrustações locais e a importância e capacidade organizativa das
iniciativas vindas da base, e por outro lado a inteligibilidade translocal e a
emancipação. Uma dessas interligações reside na questão dos direitos dos
grupos, ou dos direitos colectivos, problema que na legalidade demòliberal
é suprimido ou triviallzado, A legalidade cosmopolita propõe uma política
d e direitos em q u e os direitos individuais e colectivos se reforçam mutua-
m e n t e em vez de se canibalizarem. A exemplo do que acontece em todos os
outros casos de legalidade cosmopolita, deverão os direitos humanos cosmo-
politas da zona de contacto ser defendidos e levados por diante pela mão
de netores locais, nacionais e globais, capazes de integrar os direitos huma-
nos cm projectos emancipntórios cosmopolitas de âmbito mais abrangente,

H
Nütj me deterei, neste momento, na questEo dos direitos humanos e do multiculturalismo, que
já fienu tratada em Santos, 2002s: cap. 5.
Poderá o direito ser emancipatório?|399

7.1.2. O Tradicional e o Moderno: As outras modernidades dos povos Indígenas e


das autoridades tradicionais
E s t a é outra zona de contacio em que a políüca da legalidade d e s e m p e n h a
u m papel importante e em que o demolíberalismo e o cosmopolitismo ofe-
recem concepções alternativas.
A política da legalidade desta zona de contacto expressa-se através de
concepções alternativas de pluralidade jurídica. C o n f o r m e já referi, a pri-
m e i r a e talvez principal questão relativa à zona de contacto é a de saber
q u e m lhe define as fronteiras externa e interna e com q u e critérios. Essa é
u m a questão particularmente candcnte nesta zona de contacto, d a d o que,
a o longo dos últimos duzentos anos, a m o d e r n i d a d e ocidental se arrogou,
n a práuca, o direito de definir o que é m o d e r n o e o que é tradicional. Mais
d o que qualquer outra, esta zona de contacto foi criação de u m a das.for-
mações culturais q u e nela se defrontam e entrechocam, pelo que o tradi-
cional é tão m o d e r n o como a própria m o d e r n i d a d e . Assim construída, esta
dicotomia foi um dos princípios organizadores mais importantes da domi-
n a ç ã o colonial, t e n d o p e r d u r a d o sob diferentes formas durante o período
pós-colonial. A e x e m p l o de outras dicotomias empíricas, t a m b é m esta foi
f r e q ü e n t e m e n t e objecto de apropriação pelos grupos subordinados para
resistir à opressão colonial e pós-colonial, tendo, t a m b é m ela, d a d o lugar a
diferentes ripos de híbridos jurídicos.

P a r t i n d o da investigação de campo q u e eu p r ó p r i o levei a efeito, iden-


tifico dois casos em que a dicotomia tradicional/moderno se traduz em
estratégias jurídicas. O primeiro tem a ver com o p a p e l das autoridades
africanas no presente (Santos e Trindade, 2002). E m M o ç a m b i q u e , por
e x e m p l o , d u r a n t e o p e r í o d o revolucionário que se seguiu à independência
(1975-1989), as autoridades tradicionais eram vistas como resquícios do
colonialismo e, c o m o tal, marginalizadas. N o p e r í o d o s u b s e q u e n t e , a
a d o p ç ã o da democracia liberal e a imposição de ajustamentos estruturais
p o r parte do F M I convergiram no sentido de abrir espaço para um novo
p a p e l das autoridades tradicionais. As transformações internas que estas
e n t ã o viveram para responder às novas tarefas e adptar-se aos novos papéis,
c o m o , p o r exemplo, a participação na gestão da terra, dão bem o teste-
m u n h o das possibilidades q u e a invenção da tradição encerra. O s e g u n d o
e x e m p l o de evolução da dicotomia tradicional/moderno através de estra-
tégias jurídicas é o da luta dos povos indígenas da América Latina pelo
r e c o n h e c i m e n t o dos seus sistemas político-jurídicos ancestrais (Santos e
Garcia-Villegas, 2001).

Quer" num caso, quer no outro, apesar das d i f í d e s condições em que as


l u t a s se desenrolam, existe espaço para o cosmopolitismo. Q u e r n u m caso,
48 | íloaventura de Sousa Santos

quer no outro, e ainda que d e m o d o s diversos, o tradicional tornou-se uma


maneira - e uma maneira c o m p e n s a d o r a - de reivindicar a m o d e r n i d a d e ,
uma outra m o d e r n i d a d e . D e b a i x o d o violento i m p a c t o da globali/.ação neo-
überal e à luz d o colapso do Estado, ele passou a simbolizar aquilo q u e não
p o d e ser globalizado. À sua maneira, ele é u m a f o r m a de globalização que
se apresenta como resistência à dobalização.
Reinventada desta forma, a dieptomia entre o tradicional e o m o d e r n o
afigura-se, hoje, mnis crucial do q u e nunca. E s t e é u m c a m p o privilegiado
para o surgimento de híbridos jurídicos. Esses h í b r i d o s apresenlam traços
diferentes de região para região. Assim, e por exemplo, os híbridoi jurídicos
moldados pelas autoridades tradicionais africanas diferem dos q u e resul-
tam da interacção entre as leis d o E s t a d o nacional e os sistema» jurídicos
indígenas da América Latina, Canadá, índia, N o v a Zelândia e Austrália.
D e facto, na América Latina o crescimento d o constitucionalismo multicul-
tural tornou-se um terreno privilegiado para as disputas travadas na zona
de contacto entre o demoliberalismo e o cosmopolitismo.

7.1.3. Cidadania cultural


Trata-se de u m a zona de contacto de g r a n d e importância, em q u e várias
estratégias político-jurídicas d i s p u t a m ferozmente o s termos do conflito e
d a negociação entre os princípios da igualdade (cidadania) e os princípios
d a diferença (identidade cultural). E m b o r a , ai é aqui, tenha sido teorizado a
partir da experiência dos latinos, em geral, e dos mexücanos, em particular,
na luta que travam nos Estados Unidos pelo direito à inclusão sem abdicarem
d a i d e n t i d a d e cultural,"o c o n f e i i o é m u i t o mais vasto e aplica-se a lutas
semelhante na E u r o p a e em todos os continentes.
N o s Estados Unidos, o volume crescente de literatura na área dos estudos
latinos - a "LatCrit" - articulou de f o r m a convincente as questões f u n d a -
mentais da cidadania cultural relacionadas com os imigrantes latinos e os
seus descendentes. Tema central desta literatura, são os conflitos jurídicos
que surgem na intersecção - de facto, a "interseccionalidade" é um conceito-
•chave em toda a literatura desta área - das experiências de vida e das cul-
turas latina e norte-americana ligadas à imigração, à e d u c a ç ã o e /1 l í n g u a , u
N a E u r o p a , como m o s t r o u Saskia Sassen (1999), questões como a regula-
mentação é os conflitos jurídicos relacionados com a imigração c a cidada-
nia cultural já não não tratadas exclusivamente n o p l a n o nacional. N a ver-

" Stefanic, 1998, oferece uma útil panorâmica destes e d o u t r o s temas no c o n t e j i o do debate
sobre a "LatCrit".
Poderá o direito ser emancipatório?|401

dade, "a efectiva transnacionalização da criação de políticas da imigração"


resultante da globalização, por um lado, e por outro a "expansão de uma
vasta rede de decisões judiciais e de direitos" significa que a cidadania
cultural é cada vez mais um lugar de conflitos jurídicos à escala regional
(Sassen, 1999:156).
Este lugar de legalidade cosmopolita implica, assim, um processo político-
•cultural que leva os oprimidos, os excluídos e marginalizados a criar esfe-
ras públicas subalternas ou sociedades civis insubmissas a partir da socie-
dade civil incivil para onde foram atirados pelas estruturas do poder domi-
nante. É aqui que reside o caracter opositivo desta procura de cidadania
cultural, cujo êxito depende da capacidade que os grupos subalternos
tiverem para mobilizar estratégias político-jurídicas cosmopolitas. O objec-
tivo é fomentar sociabilidades de convivialidade entre diferentes identidades
culturais sempre que se encontrarem e disputarem um terreno de' inclusão
e pertença potencialmente comum. Através da sociabilidade, o terreno
comum torna-se simultaneamente mais inclusivo e menos comum, ou seja,
menos homogeneamente comum a todos os que afirmam pertencer-lhe.

7.1.4. Direitas de propriedade Intelectual, biodiversidade e saúde humana


A discussão sobre a definição de direitos de propriedade intelectual é acrual-
mente o epicentro de uma debate sobre as raízes do conhecimento moderno.
Ao converter uma das muitas concepções do mundo numa concepção global
e hegemônica, a ciência ocidental localizou e condensou as restantes for-
mas de sabedoria e chamou-lhes "as outras". Assim, essas outras formas
tornaram-se indígenas - porque diferentes - e espedficas - porque situadas.
De acordo com este paradigma, conhedmento e tecnologia são coisas, objec-
tos a que se atribui valor e passíveis de ser transacionados. Para que possa
haver transacção e atribuição de valor, o conhecimento.; a tecnologia têm
que ser vistos como propriedade, e os direitos ortodoxos de propriedade
intelectual são os princípios que regem a a posse desta forma de propriedade.
Este tema é presentemente campo de batalha de um dos mais sérios con-
flitos entre o Norte e o Sul. " Abrange inúmeros problemas, cada um deles
com variadíssimas implicações político-jurídicas. Nesta secção, iremos ana-
lisar unicamente as que dizem respeito à refetnda zona de contacto, qué
aqui é constituída pelo tempo-espaço do encontro de saberes alternativos e
rivais: de um lado, a tecnologia e a ciência moderna de origem ocidental e,

" £ vasta a bibliografia relativa a estes temas, Ver, p o r exemplo, Brush e Stablinsky (org.), 1996;
5hiva, 1997; Vtsvanathan, 1997; Posey, 1999. Para uma apresentação de diversos estudos de caso
de conflitos e possíveis diálogos entre saberes, ver os resultados do projecto "Para Reinventar a
Emancipação Social", e m www.ces.fe.uc.pt/emancipa/ e também em Santos 2003a e 2003b.
í
402 | íloaventura de Sousa Santos

do outro, os saberes rurais, indígenas e de base comunitária que têm sido


os guardiões da biodiversidade. Esta zona de contacto não é nova, mas
adquiriu grande relevo nos últimos anos, graças à revolução dos micro-
processadores e da biotecnologia. Esta inovação científica permitiu desen-
volver, em pouco tempo, novos produtos farmacêuticos a partir de plantas
que se sabia curarem certas doenças. Quase sempre fora do alcance das
indústrias farmacêuticas e biotecnológicas, o conhecimento relativo à capa-
cidade terapêutica das plantas encontra-se não.mãos de shamant. mamos,
taitas, tinyanga, vanyamusòroeoutros curandelros tradicionais. Em resumo,
trata-se de um conhecimento não ocidental, que, por não ser produzido
de acordo com as normas e critérios do moderno conhecimento cientí-
fico, é entendido como tradicional, A pergunta que aqui se impfle é, pois,
a seguinte: se as empresas farmacêuticas e de biotecnologia rcinVindi-
cam direitos de propriedade intelectual rdativns nos processos de obtenção
do princípio activo das plantas, poderão os detentores dos conhecimen-
tos tradicionais proteger igualmente o seu saber relativo às propriedades
curativas das plantas, sem os quais a biodiversidade não pode ser útil à
indústria?
Nesta zona de contacto, o confronto é duplo, ou seja, entre conhecimen-
tos diferentes e entre concepções de propriedade rivais. A dicotomia tradi-
cional/moderno tem uma forte presença nesta zona de contacto. O que há
de "tradicional" no conhedmento tradicional não é o facto de ser antigo,
mas a forma como é adquirido e utilizado, isto é, o processo social de apren-
dizagem e partilha de conhecimentos que é específico de cada cultura
local. Muito desse saber é até, por vezes, bem recente, mas no teu signi-
ficado sodal e na sua natureza jurídica d e difere totalmente do conhecimento
que os povos indígenas receberam dos colonizadores e das sociedades
industrializadas.
A zona de contacto entre o conhecimento tradicional relativo às plantas
e o moderno conhecimento científico rdativo à biodiversidade é um campo
social de batalhas político-jurídicas renhidas, Pelo facto de a biodiversi-
dade existir sobretudo no Sul, e sobretudo também nos territórios de povos
indígenas, o problema político-jurídico que se levanta é saber em que con-
dições é que pode conceder-se o acesso à biodiversidade e que contra-
partidas devem oferecer-se a esses Estados ou comunidades cm troca do
seus saber, tendo em conta os lucros colossais que as empresas farmacêu-
ticas e de biotecnologia obtêm com a exploração da biodiversidade, Mesmo
aceitando que o conhecimento tradicional deve ser protegido, quem o pro-
tege e de que forma? E quais os meios de controlo dos mecanismos de
protecção?
Poderá o direito ser emancipatórlo?|403

, O crescente recurso à biotecnologia na produção de bens para expor-


tação e a aprovação, em 1995, do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos
d e Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, da OMC, aumen-
taram espectacularmente os riscos para as comunidades locais e indígenas
(Corrêa, 2000; The Crucible Group, 1994). Estes dois factores criaram um
enorme mercado potencial para os conhecimentos e recursos das comuni-
dades locais e indígenas, suscitando fortes receios quanto à sua apropriação
indevida, Em conseqüência desta situação, é cada vez maior a atenção inter-
nacional dedicada aos saberes locais e indígenas, por estarem relacionados
quer com as lutas das comunidades locais e indígenas pela autodeterminação
e pelos direitos grupais, quer com o conflito entre conhecimento tradicional
e ciência moderna. Os célebres casos recentes da ayahuãsca (uma planta
tradicionalmente usada como remédio e alucinogénio) da América do Sul,-
da curcuma da índia e das sapindáceas da África, por exemplo, concitaram
a atenção internacional e colocaram este tema na agenda dos movimentos
sociais e organizações cosmopolitas do m u n d o inteiro (Khotari, 1999).
A resolução do conflito vai depender do tipo de paradigma jurídico que
acabar por prevalecer, dando origem a uma determinada sociabilidade na
zona de contacto. O demoliberalismo, paradigma dominante até agora, tem
gerado uma sociabilidade de violência que, neste caso, assume a forma de
biopirataria (Shiva, 1997) ou, quando muito, de reconciliação. Alguns diri-
gentes indígenas sugeriram uma coexistência - nomeadamente a concessão
do acesso ao saber indígena sob determinadas condições fixadas pelos
próprios p^vos - , uma proposta que, salvo raras excepções, parece pouco
realista atendendo à pressão, de ambos os lados, para a existência de sociabi-
lidades híbridas que, nestes casos, se traduzem freqüentemente em acordos
informais facilmente manipulados pela parte mais forte. Quando se opta
pela reconciliação, chega-se a um acordo voltado para o passado c que, por
meio de contrapartidas (monetárias ou outras), faz algumas concessões ao
saber indígena/tradicional sem deixar de confirmar os interesses prevale-
centes do conhecimento biotecnológico.
A agenda cosmopolita subalterna preconiza uma convivialidade regida
simultaneamente pelo princípio da igualdade e pelo princípio da diferença.
Nessas condições, a integridade cultural do conhecimento não ocidental
devia ser totalmente respeitada através do reconhecimento, em pé de igual-
d a d e , dos dois conhecimentos rivais e das concepções de propriedade em
jogò. Os movimentos indígenas e os movimentos sociais transnadonais seus
aliados contestam esta zona de contacto e as forças que a constituem, lutando
pela criação de outras zonas de contacto de tipo não imperial, onde as
r d a ç õ e s entre as diferentes formas de conhecimento sejam de tipo mais
52 | íloaventura de Sousa Santos

horizontal, conferindo assim mais força à idéia da tradução entre conheci-


mento tradicional e conhecimento biomédíco. Em conformidade com isto,
caberia às comunidades indígenas/tradicionais estabelecer as condições em
que um eventual acesso à esfera da economia capitalista moderna pudesse
vir a beneficiar os interesses das comunidades no f u t u r o . Nestas e noutras
lutas semelhantes 17 levadas a cab<^ pelos movimentos que se opõem à orto-
doxia global dos direitos de propriedade intelectual e do monopólio do
conhecimento científico moderno, a legalidade cosmopolita subalterna tem
um papel fundamenta) a desempenhar.
Refira-se, por fim, um outro exemplo de legalidade cosmopolita no campo
dos direitos de propriedade intelectual que surgiu n o s últimos anos. Aqui,
a zona de contacto não é visível, embora o seja o c h o q u e entre diferentes
concepções de propriedade e de saúde. Trata-se da pandemia mundial da
SIDA e do HIV, Segundo Klug, os activistas dos movimentos ligados aos
problemas da SIDA/HIV e as organizações não governamentais como os
Médicos sem Fronteiras e a Oxfan consideram que a protecção das patentes
é uma das principais causas do elevado preço dos medicamentos, o que
impede que se salvem milhões de vidas nos países em desenvolvimento.
É p o r isso que, agora, as suas campanhas têm como alvo os medicamentos,
recentemente patenteados, contra as infecções oportunistas, e os medica-
mentos com retrovírus que, nos países desenvolvidos, fizeram que a S I D A /
H3V passasse a ser uma doença crônica, e já não u m a sentença de morte
(Klug, 2001a, 2001b). Parece que a formação de associações anti-hegemó-
nicas inundiais contret os direitos dc propriedade intelectual, neste domínio,
está a dar alguns frutos. Klug refere que dois importantes processos rela-
cionados com a SIDA foram retirados: um que fora instaurado contra a
África do Sul por uma empresa farmacêutica, num tribunal sul-aíricano, e
outro, na comissão de resolução dc conflitos da O M C , instaurado pelos
Estados Unidos contra o Brasil (Klug, 2000; 2002; n o prelo). Além disso,
devido a pressões internacionais, a O M C , na reunião anual realizada em
Doha, no Catar (Novembro de 2001), concluiu q u e o Acordo sobre os
Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o
Comércio (TRIPS)"[.,.] não impede nem deve impedir que os países mem-
bros tomem medidas para proteger a saúde pública [ e ] que o acordo pode
e deve ser interpretado e aplicado de forma a apoiar os direitos dns países
membros da O M C de protegerem a saúde pública e, e m especial, de promo-

17
P o d e m encontrar-se estudos da caso sobre lutas c o m o estnj em Posey, 1999; Meneses, 2003;
Xeba, 2003; Escobar e Pardo, 2003; Flórez Alonso, 2003: Coelho, 2003: Laymert Gurria i los Santos.
2003; Randeria, 2003.
I Poderá o direito ler emanclpatórlo? | 53

verem o acesso generalizado aos medicamentos". Perante isto, Klug conclui


que "o reconhecimento de que o direito econômico internacional, e o TRIPS
em particular, p o d e m ter implicações profundas para o plano de saúde
pública de um país reabriu o debate sobre as conseqüências que as normas
do comércio têm nos direitos humanos e nas políticas públicas relacionadas
com a pobreza, a desigualdade e a saúde" (Klug, 2001a: 4).

7.2. O direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho


A redescoberta democrática do mundo do trabalho é um factor crucial
para a construção das sociabilidades cosmopolitas. Por esse motivo, o tra-
balho é um dos campos sociais em que os choques entre o demoliberalismo
e o cosmopolitismo se revelam mais violentos nos planos local, nacional e
global. A partir do momento em que o econômico se desvincula do social,
em conseqüência da globalização neoliberal que reduz o trabalho a mero
factor de produção, este vê também ser-lhe amputada a possibilidade de
servir de suporte e de veículo dos direitos de cidadania, mesmo nos países
centrais. Tal evolução passou por uma intervenção maciça da legalidade
neoconservadora contra as leis e os direitos do trabalho, que o liberalismo
e o demo-socialismo haviam promovido por força da pressão dos movi-
mentos laborais.
Nesta área mais do que noutras, o demoliberalismo tem-se revelado, nos
últimos anos, incapaz ou indisponível para fazer frente à maré neoconser-
vadora. De facto, pode dizer-se até que, em grande medida, se lhe rendeu,
sobretudo através de mudanças drásticas relativamente às escalas relevan-
tes da intervenção político-jurídica. A globalização neoliberal conseguiu
deslocar o sistema nervoso da regulação do trabalho para a escala global,
deixando essa regulação entregue à realidade da legalidade e da política
neoconservadoras. Ao ficar-se por uma política e uma legalidade de âmbito
nacional, o demoliberalismo tem visto a sua credibilidade desgastar-se à
medida que a escala nacional da regulação laborai tem vindo a dar lugar a
uma escala global. Estamos, por isso, perante um campo cm que o confronto,
nos próximos anos, será muito provavelmente entfe cosmopolitismo e demo-
liberalismo conservador, ^
A o contrário das expectativas do movimento operário oitocentista, foram
os capitalistas de todo o mundo, e não os operários, quem acabou p o r se
unir. Enquanto o capital se globalizava, os sindicatos cuidaram de se fortale-
cer apenas ao nível nacional. Para fazer frente ao capital global, o movimento
operário precisa de se reestruturar profundamente, passando a integrar a
escala local e a escala transnacional de forma tão eficaz como integrou a
escala nacional. É igualmente tarefa nova do movimento sindical rdnvcntar
406 | íloaventura de Sousa Santos

n tradição da solidariedade entre os trabalhadores e as estratégias dc antago-


nismo social. H á que conceber um círculo dc solidariedade novo e mais
amplo, capaz de dar resposta às novas condições d e exclusão social e às
formas de opressão que hoje caracterizam as relações na produção, indo
nssim para além do âmbito convencional das reivindicações sindicais - isto
é, para além das reivindicações que visam apenas as relações da produção,
que o mesmo é dizer, a relação salarial. H á , por outro lado, que recoristruir
as estratégias do antagonismo social. Impõe-se um movimento operário mais
polidzadoque combata p o r u m a alternativa civilizadora, em que tudo esteja
ligado a tudo: trabalho e ambiente; trabalho e sistema dc ensino; trabalho
e feminismo; trabalho e necessidades sócio-culturais colectivas; trabalho e
Estado-providência; o trabalho e os idosos, etc. Em suma, nada que tenha a
ver com a vida dos trabalhadores e dos desempregados pode ser deixado
de fora das reivindicações dos trabalhadores. É este, p o r exemplo, o espírito
d o tipo de sindicalismo que, como demonstrou Moody (1998), vem aos
poucos emergindo nalguns países do Sul global. "
Os exemplos mais sólidos de legalidade cosmopolita acrualmente em
vigor cabem debaixo da mesma idéia normativa - a idéia de que o trabalho
deve ser partilhado democraticamente a uma escala global. A permanente
revolução tecnológica em que nos encontramos permite a criação de riqueza
sem criação de emprego, Por isso, o stock dc trabalho disponível deverá ser
redistribuído a uma escala mundial. Ora isso não s e afigura tateia fácil,
porque, embora o trabídho, enquanto factor de produção, esteja, hoje, glo-
balizado, a relação salarial e os mercados de trabalho acham-se tão segmen-
tados e territorializados como no passado. Perante este quadro, há quatro
iniciativas que se afiguram especialmente promissoras. São, todas rias, de
dimensão global,aindaque desigualmente distribuídas pela economia global.
A primeira iniciativa implica a redução do horário de trabalho. Nilo obs-
tante tratar-se de uma iniciativa fundamental com vista à redistribuição do
trabalho, a verdade é que, com a excepção de alguns países europeus, ela
teve, até ao momento, um êxito escasso. Por esse motivo, limitar-me-ei a
inscrevê-la como ponto da agenda da legalidade cosmopolita, dispensan-
do-me de lhe dar maior desenvolvimento neste momento.
A segunda iniciativa diz respeito à aplicação efectiva de padrões de tra-
balho internacionais, ou seja, à definição dé direitos essenciais extensivos
aoi trabalhadores de todo o mundo sem excepção e cuja protecção constitua
um pré-requisito para n livre circulação de produtos n u m mercado global.

11
Para uma discussão genérica de estratégias que visam crinr laços dc solidariedade entre os sindi-
0
calos de rodo o mundo, ver G o r d o n e T u m e r , 2000. '
Poderá o direito ser emancipatórlo? | 55

A questão dos padrões de trabalho internacionais é, presentemente, um


pólo fascinante de debate científico c de mobilização política, que com-
preende uai vasto leque de propostas e de alternativas visando pôr fim à
corrida para o abismo em que, na ausência de uma regulação internacional
d o trabalho, os países do Sul se vêm obrigados a participar, Entre as estra-
tégias actualmente em discussão e em fase de desenvolvimento em todo o
mundo, contam-se o reforço e aplicação efectiva das convenções da Organi-
zação Internacional do Trabalho, a inclusão de cláusulas sociais em acordos
de comércio de âmbito global como a Organização Mundial do Comércio
ou de âmbito regional como o NAFTA, a adopção de códigos de conduta
p o r parte das empresas transnacionais submetidas à pressão dos consumi-
dores do Norte e a criação de mecanismos de vigilância para 0 respectivo
cumprimento, e ainda a aplicação de sanções unilaterais contra os países
que promovam formas de trabalho em condições de exploração."
Para que não dêm azo a um proteccionismo discriminatório, os padrões
de trabalho internacionais deverão ser adoptados juntamente com duas
outras medidas: a já referida redução do horário de trabalho, e a flexibiliza-
ção das leis da migração tendo em vista a progressiva desnacionalização da
cidadania. Esta irá, por sua vez, fomentar uma partilha mais igualitária do
trabalho à escala mundial, promovendo fluxos populacionais das regiões
periféricas para as do centro. Presentemente - e áo contrário do que afirma
a propaganda das forças xenófobas nos países centrais - tais fluxos dão-se
predominantemente entre países periféricos, o que constitui para estes um .
fardo insuportável. Contra o apartheid social a que o pré-contratualísmo
e o pós-contrarualismo submetem os imigrantes, há que desnacionalizar a
cidadania de modo a facultar-lhes condições capazes de garantir tanto a
igualdade como o respeito pela diferença, para que a partilha do trabalho
se possa traduzir também numa partilha multicultural da sociabilidade.
A terceira iniciativa, estreitamente ligada à anterior, diz respeito ao mo-
vimento anti-sweatshops. Este baseia-se numa rede de organizações diver-
sas, não passando, portanto, por um órgão centralizado. Até agora, o
movimento tem-se preocupado com elevar a consciênda dos consumidores
e com gerar da parte destes uma pressão dirigida contra as empresas que se
sabe violarem os direitos dos trabalhadores nas suas dependências em terri-
tório offshore ou tolerarem tais violações em fábricas por si subcontratadas.
Graças à pressão dos consumidores, as organizações anti-sweatshops têm
vindo a pressionar as grandes empresas no sentido de adoptarem códigos .
de conduta apropriados, principalmente nas indústrias do vestuário e do

' P a r a uma panorâmica destas diferentes estratégias, ver Compa e Diamond, 1996.
56 | Boaventura de Sousa S i n t o s

calçado. 20 Entre as associações cosmopolitas transnacionais que actualmcntc


se batem pela eliminação das sweàtshops, contam-se sindicatos, organiza-
ções de consumidores, grupos réligiosos, O N G s de direitos humanos, orga-
nismos de vigilância e acompanhamento independentes, organizações estu-
dantis, organismos de âmbito abrangente como o Workcrs Rights Consor-
tium e a Fair Labor Association, e! também - se bem que ainda com clara
r e l u t â n c i a - g r a n d e s empresas transnacionais." Perante a natureza agres-
siva e difusamente omnipresente do neqliberalismo global e a incapacidade
ou indisponibilidade da legalidade estatal demoliberal - onde ela ainda
existe - para lhe opor uma resistência credível, as lutas cosmopolitas nesta
área terão de dar prioridade especial à construção política e ética do conflito
antes que qualquer estratégia jurídica seja ensaiada, Ta] estratégia deverá
ter duas vertentes.
Em primeiro lugar, quer os grupos subalternos envolvidos nesta luta,
quer os seus aliados sabem, por experiência própria, a pouca confiança de,
que a polírica e a legalidade demoliberais são, hoje cm dia, credoras no
campo social do trabalho e das relações laborais. P o r outro lado, e aten-
dendo às condições desfavoráveis em que o combate se trava, o movimento
não se pode dar ao luxo de desaproveitar todas as ferramentas legais dis-
poníveis. N o entanto, para evitar a eventual frustração gerada por derrotas
injustas e o impacto negativo que ela possa ter na motivação dos at.tivistas,
impõe-se que os grupos cosmopolitas se esforcem por mobilizar a legalidade
demoliberal de uma forma não-hegemónica, pressionando os tribunais e os
legisladores através de uma mobilização política inovadora. O objectivo
principal desta mobilização consistirá na ampliação simbólica da violação
dos direitos dos trabalhadores, transformando cada questão jurídica numa
questão moral; a questão - moral c i n j u s t a - d a negação da dignidade
humana. Tem sido esta, com efeito, a táctica utilizada nas lutas mais visíveis
e mais bem sucedidas levadas a cabo contra as sweàtshops, as quais têm
logrado aliar as estratégias legais adoptadas em tribunais de âmbito local
com uma pressão internacional exercida de forma constante pelas organi-
zações e movimentos sociais simpatizantes (Anner, 2001).
O segundo foco: de atenção da legalidade cosmopolita reside na legali-
dade global subalterna tal como hoje ela emerge não só da referida luta
por padrões de trabalho internacionais como também de uma nova conver-

10
Para uma visão gerai das estratégias jurídico-políticas adoptadas pelas associações t r a n s a c i o n a i s
na defesa dos direitos dps trabalhadores, ver Ross, 1997. Para uma discussão das vantagens e
ileyvantagens dos códigos d e conduta como meio de combater ss suitatshopt, v e r F u n g r r t f / . , 2001.
" O funcionamento deste tipo de associações na América Centrai foi estudado, e n t r e o u t m s autores,
por Anner, 2001.
Poderá o direito ser emancipatório? | 57

gência - d a própria em fase muito embrionária e cheia dc ambigüidades -


entre direitos humanos e direitos do t r a b d h o . O objectivo, neste caso,
consiste em explorar até que ponto será possível vir a recuperar à es-
cala global aquilo que, em termos de direitos do trabalho, se perdeu à
escala nacional. Neste mesmo sentido vão algumas discussões recentemente
travadas no seio da O I T com vista a definir uma lista de "direitos do tra-
balho fundamentais". A idéia é que se conceda a esses direitos uma pro-
tecção s e m d h a n t e àquela de que gozam os direitos humanos, embora a
decisão sobre quais os direitos a incluir nesse conjunto permaneça ainda
em aberto.
Finalmente, a quarta iniciativa visando a rcdescoberta d o m u n d o do tra-
balho consiste no reconhecimento do polimorfismo do trabalhó, ou seja, na
idéia de que a flexibilidade dos métodos e processos laborais Inão implica
necessariamente uma precarização da relação laborai. Desde ojséculo XIX
que o movimento operário se pautou por um tipo i d é d de trabalho que
consistia num emprego regular, a tempo inteiro, e com duração temporal
indeterminada. A verdade, porém, é que esse ideal apenas encontrou dguma
correspondência real nos países centrais e durante o breve período do for-
dismo. Com a proliferação das chamadas formas atípicas de trabalho e com
a promoção, por parte do Estado, da flexibilização das relações sdariais,
aquela visão ided vai-se afastando cada vez mais daquilo que é a realidade
das relações laborais. As formas atípicas de trabalho têm sido utilizadas
pelo capital global como meio de fazer do trabalho um critério de exclusão,
o que sucede sempre que os salários não permitem que os trabdhadores
ultrapassem a linha de pobreza. Nesses casos, reconhecer-se o polimorfismo
do trabalho, longe de ser um exercício democrático, é prefigurar um acto
de fascismo contratual. A agenda cosmopolita assume, neste domínio, duas
formas. Por um lado, o reconhecimento dos diferentes tipos de trabalho só
é democrático na medida em que cria, para cada tipo, um limiar mínimo de
indusão. Dito de outro modo, o polimorfismo do trabalho só é aceitávd na
medida em que o trabalho continue a ser critério de inclusão. P o r outro
lado, há que incorporar a aprendizagem profissional na rdação salarial,
independentemente do tipo de emprego e da respectiva duração.

7,3. O direito e a produção não-capitalista


Uma economia de mercado é, dentro de certos limites, desejável. Por outro
lado, uma sociedade de mercado, se fosse possívd, seria moralmente repug-
nante e quase certamente ingovernávd, Uma sociedade assim conduziria a
um fascismo social generalizado, É esse, contudo, o projecto que a globali-
zação neoliberal está a tentar pôr em prática à eseda mundial. O capitalismo
58 [ Boaventura de Sousa Santos

global não consiste apenas na extensão a todo o mundo dos mercados livres
e numa produção de bens e serviços tão isenta quanto possível de regu-
lação pelo Estado, mas também na mercad.orização da maior quantidade
possível de aspectos da vida social. A tfiercadorização significa não só a
criação de mercadorias ab ovo- isto é, a criação de produtos e serviços
avaliados e transaccionados de acordo com as regras de mercado - como
também a transformação em mercadoria de produtos e serviços antírior-
mente criados e distribuídos com base em regime alheio ao mercado. Este
aspecto significa, por exemplo, que as instituições sociais, como a educação,
os cuidados de saúde ou a segurança social, são convertidas em mercadorias
da área dos serviços e tratadas como tal, freqüentemente de acordo com
forças concorrenciais e com os ditames tanto do mercado como dos inte-
resses comerciais.
No campo social convencionalmente conhecido por economia, o cósmo-
politismo apresenta um objectivo com quatro vertentes. A primeira refere-
•se às condições e relações da produção de mercadorias, nomeadamente à
relação salarial. É este o alvo das estratégias que visam a redescoberta demo-
crática do trabalho, e que foram atrás analisadas. O segundo objectivo é a
desmercadorização, isto é, procurar que os bens e os serviços públicos e as
instituições sociais não sejam privatizados ou, no caso de o serem, que não
sejam inteiramente sujeitos às regras do mercado capitalista. Esta é a luta,
por exemplo, das comunidades empobrecidas de todo o mundo - e de forma
especialmente notória, nos últimos tempos, na Bolívia - contra o domínio
de formas comunitárias e acessíveis de distribuição de água por parte das
grandes empresas transnacionais (TNCs). O terceiro objectivo consiste na
promoção de mercados não-capitalistas subalternos, isto c, de mercados
norteados pela solidariedade e não pela ganância. Por fim, o quarto objec-
tivo é desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, mas de
uma produção não-capitalista, tanto para mercados capitalistas como não-
-capitalistas. Como afirmei noutro local, analisando estudos de caso sobre
iniciativas empreendidas de acordo com estas quatro vertentes, 22 as econo-
mias alternativas combinam presentemente idéias e práticas provenientes
de variadas tradições, desde o cooperativismo ao desenvolvimento alterna-
tivo, passando pelo socialismo de mercado.

O segundo objectivo tem sido terreno de alianças progressistas entre o


cosmopolitismo e o demoliberalismo. O terceiro e o quarto objectivos (cm
conjunto com o primeiro) são os mais característicos do cosmopolitismo e,

u
Santos e Rodrfguez, 2002. Este e outros estudos contidos no projecto "Para Reinventar a Emanci-
pação Social" encontram-se disponíveis em inglês no endereço w w . c e s . f e . u c . p t / c m a n c i p a /

1
Poderá o direito ser emancipatório? | 59

provavelmente, os mais promissores, apesar de as circunstâncias não estarem


a seu favor. Tal como geralmente sucede com o cosmopolitismo, o direito é,
aqui, uma componente subordinada das lutas cosmopolitas. Para finali-
dades precisas ou em contextos políticos específicos, contudo, o direito
p o d e representar uma ferramenta importante, senão a mais importante, de
uma dada luta. Como é apanágio da legalidade cosmopolita em geral, direito
aqui quer dizer não apenas o direito estatal, mas também o direito global
cosmopolita, o direito comunitário subalterno, etc.
As iniciativas anualmente em curso são múltiplas e bastante diversifica-
das. Assim, por exemplo, as cooperativas de trabalhadores informais - desde
os lixeiros na índia (Bhowmik, 2002) e na Colômbia (Rodríguez, 2002) às
donas de casa das favelas de São Paulo (Singer, 2002) - , bem como as coope-
rativas de trabalhadores da indústria despedidos durante o processo de
downúvifi das grandes empresas (Bhowmik, 2002; Singer, 2002), têm sabido
utilizar com imaginação as ferramentas do direito estatal - e as brechas que
aí, se encontram - para avançar com formas solidárias de produção e dis-
tribuição de bens e serviços. Em muitos outros casos, o terceiro e quarto
objectivos acima mencionados são perseguidos em conjunto, como sendo
duas componentes da mesma iniciativa. Promovem-se freqüentemente
mercados alternativos para produtos e serviços criados por unidades de
produção não-capitalistas. No que toca ao terceiro objectivo, a criação de
mercados alternativos, a iniciativa cosmopolita mais saliente é o movimento
do comércio justo. Segundo a Associação do Comércio Justo,

[ o ] t e r m o " j u s t o " p o d e ter v á r i o s s i g n i f i c a d o s d i f e r e n t e s p a r a d i f e r e n t e s p e s s o a s .


N a s o r g a n i z a ç õ e s d e c o m é r c i o a l t e r n a t i v o , o " c o m é r c i o j u s t o " significa q u e o s par-
ceiros c o m e r c i a i s sc b a s e i a m e m b e n e f í c i o s r e c í p r o c o s e n o r e s p e i t o m ú t u o ; q u e os
p r e ç o s p a g o s a o s p r o d u t o r e s r e f l e c t e m o t r a b a l h o q u e r e a l i z a m ; q u e os t r a b a l h a d o r e s
t ê m d i r e i t o a o r g a n i z a r - s e ; q u e as leis n a c i o n a i s r e l a t i v a s à s a ú d e , s e g u r a n ç a e s a l á r i o s
s ã o e f e c t i v a m e n t e a p l i c a d a s ; e q u e os p r o d u t o s s ã o a m b i c n t a l m e n t c s u s t e n t á v e i s e
c o n s e r v a m os r e c u r s o s n a t u r a i s ( h t t p : / / v w w . f a i r t r a d c f c d e r a t i o n . c o m / f a q . h t m l , c o n -
sultado em 07-02-02).

Dentro da mesma linha, Mario Monroy, um acuvista mexicano do comér-


cio justo e dírector do "Comercio Justo México, A.C.", afirma:

O que caracteriza o comercio justo é a co-responsabilidade entre o p r o d u t o r e o


consumidor. O p e q u e n o p r o d u t o r é responsável pela criação d e um p r o d u t o de
excelente qualidade, ecologicamente responsável c p r o d u z i d o sem recurso à explo-
ração humana. Deste m o d o , o comércio justo.é o meio, ao passo q u e a pessoa e a
412 | íloaventura de Sousa Santos

organização são o fim. O c o n s u m i d o r c responsável p e l o p a g a m e n t o de u m p r e ç o


j u s t o , q u e n ã o é urna e s m o l a , p o r u m p r o d u t o d e e l e v a d a q u a l i d a d e , p r e o c u p a d o
c o m a natureza, c feito c o m amor.11

O comércio justo é uma promissora ilhota no oceano injusto do comér-


cio mundial capitalista. Dos 3,6 biliões de dólares em bens transaccionados
a nível mundial,|o comércio jusro é responsável p o r apenas 0,01%, Mas
está a crescer. A jegnlidade cosmopolita p o d e funcionar em dois planos no
movimento do comércio justo: através da contestação jurídica da legalidade
global, por violai: o direito nacional, recorrendo para tanto a instrumentos
legais demoliberais, e através da luta por um direito global cosmopolita
neste campo, exercendo pressão para que se incluam cláusulas que prevejam
o comércio justo, nos acordos comerciais internacionais, A primeira estra-
tégia jurídica está n ser utilizada, por exemplo, pelos United Ster.lworkers
of America, ao desafiarem a constitucionalidade d o NAFTA. A segunda
estratégia é uma das vertentes do movimento do comércio justo, já que luta
pelos princípios sobre os quais os acordos de comércio justo devem assen-
tar: mulrilateralismo, democracia, transparência, representação, equidade,
subsidiariedade, descentralização, diversidade e responsabilização.
A componente jurídica destas lutas cosmopolitas consiste com freqüência
em exercer pressão para que sejam feitas leis locais e nacionais que criem
regimes jurídicos especiais para as organizações econômicas populares, de
forma a permitir-lhes competir em condições justas sem abdicar dos valores
e da cultura locais, de que os seus produtos estão imbuídos. Dado que os
Estados-nação, na generalidade, não conseguem ou não querem resistir
contra o direito global neoliberal - cm princípio, hostil ao que considera
como barreiras ao comércio ou transgressão das leis d e mercado - , os gover-
nos locais ou comunitários mostram-se, muitas vezes, mais abertos a este
tipo de legislação alternativa. Desta forma, é possível que se desenvolvam
elos locais/globais.
Outro exemplo envolvendo o direito e sistemas de produção alterna-
tivos são as novas formas de pluralidade jurídica contra-hegemónica que
estão a ser avançadas pelos movimentos e organizações de camponeses sem-
• terra ou de pequenos agricultores na sua luta pelo acesso à terra e pela
reforma agrária, Esta nova forma de legalidade cosmopolita pode, nalguns

" Mario Monroy, palestra proferida na Universidade de Wisconsin.Madison em Abril de 2001.


Segundo a Transfair, uma agência de a c o m p a n h a m e n t o e certificação d o comércio justo, " o preço
mundial i d o café) é de 60 céntimos a libra e, depois de os intermediários levarem a sua p a n e , os
pequenos produtores ficam só com 20 a 30 cêncimos por libra, Assim, p o r causa do c o m é r d o justo
há um benefício considerável para os produtores; depois de pagarem os custos da cooperativa,
recebem entre SI a $1.06 p o r cada libra."
Poderá o direito ser emancipatório? | 61

casos, envolver a cooperação facilitadora do Estado - como chegou a suce-


der, durante algum tempo, na África do Sul (Klug, 2002) - mas, na maioria
dos casos, assiste-se ao confronto com o Estado e a sua legislação - como
na índia, no Brasil (Navarro, 2002; Carvalho, 2002; Lopes, 2002) e no
México. O destino deste tipo de legalidade cosmopolita depende estrita-
mente da mobilização política que o movimento ou organização consegue
gerar. É muito freqüente a criação de endaves jurídicos subalternos na
terra o c u p a d a - c o m o os "assentamentos" do Movimento dos Sem-Terra
n o Brasil - , cuja duração depende do tempo que a ocupação conseguir ser
mantida. Em alguns casos, é possível estabelecei alianças entre esta lega- 1
lídade cosmopolita e a legalidade demoliberal do Estado, como, por exem-
plo, quando o Estado é forçado a "regularizar" a ocupação da terra,
Estes tipos de aliança podem também surgir em áreas urbanas, Pode ser
este o caso da habitação informal nas cidades ao longo da fronteira entre os
E.U.A. e o México, estudada por Jane Larson. De acordo com esta investi-
gadora, as famílias pobres dos E.U.A. tem-se voltado cada vez mais para a
habitação informal de forma a sobreviver à falta de garantias sociais básicas,
em particular ao estrangulamento criado p d a descida dos salários reais e
pela diminuição do apoio governamental tanto à habitação acessível como
à manutenção dos rendimentos (Larson, 2002: 142). E, de facto, a habita-
ção informal está já a deslocar-se das zonas fronteiriças para o interior. Dada
a improbabilidade de as políticas do Estado para a habitação virem a for-
necer habitações normais para os trabalhadores pobres, Larson reivindica
u m empenhamento positivo na informdidade. Em vez de a d e d a r a r ilegal,
há que "regularizá-la". A regularização "aligeira" os padrões regulatórios
no caso de algumas populações e "legaliza" algumas condições de habita-
ção ilegais, num programa destinado a incentivar o investimento em aloja-
mentos através da áuto-ajuda.
Tal como acontece para os camponeses sem terra, o potencial cosmo-
polita da regularização reside no espaço que abre à organização política e à
mobilização dos trabalhadores pobres (assodações de moradores, organi-
zações comunitárias, etc.), bem como na pressão que pode exercer sobre o
E s t a d o para afectar mais recursos a esta área da^política social c melhorar
gradualmente a habitação informa! até um nível adequado. A isto chama
Larson "realização progressiva" - afinal, um m o d d o alternativo de legali-
dade (Larson, 2002:144). A realização progressiva, combinada com a mobi-
lização política que a toma possívd como algo diverso do populismo estatal,
distingue-se tanto da repressão neoconservadora da informalidade sem
alternativa, como da celebração neoconservadora da informalidade à ma-
neira de Hernando de Soto (1989),
62 | íloaventura de Sousa Santos

7,4, Direito para os nJo-cidad3os


Enquanto soma dos direitos efectivamente exercidos pelos indivíduos ou
grupos, a cidadania nas sociedades capitalistas resume-se a uma questão de
graus. Existem os super-cidadãos - os que pertencem à sociedade civil
i n t i m a - e os restantes. Os restantes, que formam a sociedade civil estra-
nha, albergam cambiantes múltiplos de cidadania. E existem ainda os não-
-cidadãos, indivíduos e grupos sociais que pertencem à sociedade civil incivil
e às zonas fronteiriçns entre a sociedade estranha e a sociedade civil incivil.
As experiências de vida dos indivíduos pertencentes à segunda catt^oria
correspondem a estn ausência d e cidadania e caracterizam realmente não
só as suas relações com o Estado, como ainda as suas interacções com os
outros indivíduos, incluindo p o r vezes os que compartilham a sociedade
civil incivil, Estas experiências de vida variam de a c o r d o com a circunstân-
cia de o nãò-cidadão haver sido expulso de algum t i p o de contrato social e,-
consequentemente, da inclusão social que este t o m a v a possível (pós-con-
tratualismo), ou de o cidadão não haver alguma vez sequer experimentado
qualquer tipo de inclusão social contratual (pré-contratualismo), N o pri-
meiro'caso, a cidadania é vivida como ruína ou memória, enquanto, no
segundo, ela é ou uma aspiração irrealista ou u m a idéia absolutamente
ininteligível. A não-cidadania é o grau zero da inclusão assente no contrato
social. Seja qual for a inclusão social atingida neste nível, é-o numa base d e '
não-cidadania, de filantropia paternalista ou solidariedade genuínu. É, por
outras palavras, uma inclusão que confirma - se é que não promove mesmo -
o sistema de exclusão social.

Poderá perguntar-se qual o lugar do direito em situações de não-cidadania


- para já não falarmos do direito cosmopolita, A não-cidadania é o resultado
intencional ou involuntário da legalidade demolibcral, Para o demolibera-
lismo, a não-cidadania é um m a r c a d o r da sua impotência enquanto prática
política, ao passo que, para o cosmopolitismo, a não-cidadania é o impera-
tivo negativo que gera a obrigação da inclusão e da emancipação social. De
facto, o cosmopolitismo centra-se especificamente na não-cidadania, o que
é ilustrado pelos exemplos de legalidade cosmopolita acima analisados.
Afinal, todos os povos indígenas e os camponeses sem terra são, pelo menos
na América Latina, o exemplo mais cruel do q u e é a não-cidadania.
Nesta secção tenho em vista, de um m o d o mais geral, situações nas quais
se procura uma inclusão minimamente.dignificante e onde, cm conseqüên-
cia, é difícil encarar a emancipação social - mesmo n a sua concepção mais
fina e frágil - como uma perspectiva razoável. Muitas vezes, o que está em
jogo é a sobrevivência pura e simples, já que a morte é, objectivamcnte, o
destino mais provável e mais próximo. De uma perspectiva cosmopolita, o
Poderá o direito ser emancipatórlo? | 63

direito é uma necessidade quase dilemática das lutas em torno da não-cida-


dania, Por um lado, a mobilização política do direito é aqui particularmente
adequada, já que este é um campo social em que a probabilidade de êxito
das alianças com o demoliberalismo é elevada. Por outro lado, a força de
que a estratégia jurídica se pode revestir neste campo marca os limites estrei-
tos da sua eventual realização.
Distingo três tipos de legalidade cosmopolita nesta área, que cobrem
diferentes escalas de legalidade. A primeira é o direito global, que se refere
à mobilização política das direitos humanos internacionais ou de convenções
internacionais sobre intervenções humanitárias em situações de exdusão
social extrema e potencialmente fatal, A segunda trata do direito estatal,
sempre que este seja pressionado no sentido de estabelecer padrões míni-
mos de inefasão baseada na cidadania - cidadania de segunda ou terceira
classe. O exemplo mais importante deste tipo de mobilização jurídica nos
países centrais é a questão da "regularização" dos trabalhadores migrantes
indocumentados. Só nos E.U.A., estima-se que o número de trabalhadores
indocumentados seja de onze milhões. A luta por uma amnistia geral consta
hoje da agenda das organizações dos direitos humanos e de muitos sindica-
tos. A participação dos sindicatos nesta luta é bastante recente e representa
uma mudança radical de perspectiva da parte destas organizações, que antes
tendiam a considerar os trabalhadores indocumentados como inimigos que
vinham tirar os empregos disponíveis. Estas alianças cosmopolitas em
que entram os sindicatos e em que estes são levados para lá dos confins do
seu activismo convcnciond representam um dos desenvolvimentos mais
promissores do movimento laborai no sentido daquilo que é presente-
mente designado por "sindicalismo de movimento social" ou "sindicato de
cidadania".
O terceiro tipo de direito cosmopolita nesta área é o direito local e refere-
-se às comunidades locais que, depois de se encontrarem numa situação de
não-cidadania relativamente a comunidades maiores ou à sociedade nacio-
n d , estabdecem constituições locais em que se sela um pacto político-
-jurídico entre os membros das comunidades com vista a melhor se defen-
derem contra forças de exclusão exteriores, sejam d a s instituições estatais
ou não-estatais, legais ou ilegais. O exemplo mais notável deste tipo de
legalidade cosmopolita subalterna é a comunidade de paz de San José de
Apartado, na Colômbia. Debaixo das piores condições possíveis, a popula-
ção desta pequena aldeia localizada na região de Urabá começou a criar, no
fina] da década de 1990, uma comunidade pacífica autônoma no meio de
fogo cruzado. Ao defrontar-se com a intensificação e a deterioração do con-
flito armado no seu território, esta ddeia optou p d a paz, Para tal, assinou
416 | íloaventura de S o u s a Santos

um pacto público segundo o qual os seus habitantes se comprometiam a


não se envolver com as facções armadas - grupos paramilitares, guerrilhei-
ros e exército - e exigiu respeito a estas facções, incluindo ao Estado, além
de criar uma forma de organização social própria para a aldeia. Desta forma,
procuraram tomar uma posição pacifista e recusaram-se a abandonar as
suas parcelas de terra e as suas casás. O pacto público foi passado a escrito
c tornou-se a Constituição local, vinculando todos os habitantes da aldeia
(Uribe, 2002).

7. 5. O Estado como o mais recente de todos os movimentos sociais


O título desta secção pode parecer surpreendente e requer uma justificação,
A meu ver, o actual declínio do poder regulador toma obsoletas ns teorias
do Estado que prevaleceram até ao presente, sejam elas de origem liberal
ou marxista. A despolitização do Estado e a desestatização da regulação
social, resultantes, como atrás ficou sublinhado, da erosão do contrato social,
mostram que se assiste ao surgimento, sob o mesmo nome - E s t a d o - , de
uma forma nova e mais vasta de organização política, a qual é articulada
pelo próprio Estado e é composta por um conjunto híbrido de fluxos, redes
e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e
não-estatais, nacionais e globais.
Costuma conceber-se a relativa miniaturização do Estado dentro desta
nova organização política como se se tratasse de uma erosão da soberania
do Estado e das suas capacidades de regulação. Em verdade, o que está a
dar-se é uma transformação da soberania e o surgimento de um novo m o d o
de regulação, em que os bens públicos até agora produzidos pelo Estado
- a legitimidade, o bem-estar sócio-económico e a identidade cultural - são
objecto de permanente disputa e de uma árdua negociação entre diversos
actores sociais, debaixo da coordenação estatal. Essa nova organização
política não tem um centro, pelo que a coordenação estatal funciona, de
facto, como uma imaginação do centro. Na nova constelação política, o
Estado é um parente político parcelar e fragmentário, aberto à concorrência
por parte de agentes da subcontratação e do sufrágio políticos, portadores
de concepções alternativas dos bens públicos em oferta.
Nestas novas circunstâncias, o Estado, mais do que um conjunto homo-
gêneo de instituições, é um campo de batalha política não regulado, o n d e
as lutas travadas pouco se assemelham ao combate político convencional,
As diferentes formas de fascismo social procuram oportunidades para se
expandir e para consolidar as respectivas formas despóticas de regulação,
transformando assim o Estado numa componente da sua esfdra privada.
Por sua vez, as forças cosmopolitas têm que se concentrar em modelos de
Poderá o direito ser emancipatório? | 65

democracia de alta intensidade que abarquem simultaneamente acções


estatais e não-estatais, fazendo assim do Estado uma componente de todo
u m conjunto de esferas públicas não-estatais. É a esta transformação do
Estado que eu chamo o Estado como o mais recente de todos os movimentos
sociais.
Apresentam-se de seguida as características principais dessa transfor-
mação. Na organização política emergente, cumpre ao Estado coordenar
os diferentes interesses, organizações e redes que resultaram! da desestati-
zação da regulação social. A luta política é, por isso, e antes de mais, uma
luta pela democratização das tarefas de coordenação. Sc, antes, a luta a
travar era uma luta pela democratização do monopólio da regulação estatal,
h o j e em dia ela tem que ser uma luta pela democratização da perda desse
monopólio. Trata-se de um combate que tem vários aspectos. As tarefas
de coordenação dizem principalmente respeito à coordenação de interes-
ses divergentes e até mesmo contraditórios. Enquanto o Estado moderno
assumia como sua uma versão desses interesses, actualmente o Estado apenas
assume como sua a tarefa de coordenação de interesses que tanto podem
ser nacionais como globais. Tendo perdido o monopólio da regulação, o
E s t a d o conserva ainda o monopólio da meta-regulação, quer dizer, o
m o n o p ó l i o da articulação e da coordenação entre reguladores privados
subcontratados. Tal significa que, apesar das aparências em contrário, o
Estado está hoje, mais do que nunca, envolvido nas políticas de redistribuição
social - e, consequentemente, também nos critérios de inclusão e exclusão.
É p o r isso que a tensão entre democracia e capitalismo, que carece urgente-
mente de ser reconstruída, só poderá sê-lo a partir do momento em que
concebermos a democracia como uma democracia distributiva, que englobe
tanto a acção estatal como a acção não-estatal.
N u m a esfera pública em que o Estado incorpora interesses e organiza-
ções não-estatais cujos actos ele próprio coordena, a democracia rcdistri-
butiva n ã o pode restringir-se à democracia representativa, uma vez que
esta foi concebida para a acção política convencional, o que eqüivale a
dizer que se acha confinada ao domínio estatal. Na verdade, reside aí o
desaparecimento misterioso da tensão entre democracia e capitalismo no
dealbar do século XXI. Com efeito, a democracia representativa perdeu as
escassas capacidades redistributivas que outrora possuiu. Nas novas con-
dições ora vigentes, a redistribuição social tem por premissa a democracia
participativa e acarreta o empreendimento de acções tanto por parte do
Estado como por parte de agentes privados - empresas, O N G s , movimen-
tos sociais, etc. - , de cujos interesses e desempenhos o Estado assegura a
coordenação. Por outras palavras, não fará sentido democratizar o Estado
418 | Boaventura de Sousa Sintos

se a esfera não-estutal não for democratizada ao mesmo tempo, Só a con-


vergência dos dois processos de democratização garantirá a recnnstituição
da esfera pública.
H á hoje em dia, por todo o mundo, um sem número de exemplos con-
cretos de experiências políticas de redistribuição democrática dos recursos
resultante da democracia participativa ou de um misto de democracia par-
ticipativa e representativa. N o que se refere ao Brasil, por exemplo, devem
referir-se as experiências do orçamento participativo efectuadas em cidades
governadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), com especial relevo - e
especial grau de êxito - para o caso de Porto Alegre." Apesar de, até ao
momento, se haverem limitado ao âmbito local, não há razão para que a
aplicação do orçamento participativo não seja alargada ao âmbito da gover-
nação regional e até nacional.
As limitações das experiências do ripo do orçamento participativo resi-
dem no facto de se cingirem ao uso dos recursos do Estado, sem atender à
respectiva captação, Considerando as lutas e as várias iniciativas jí em curso
suscitadas pela democracia participativa, proponho que a lógica participa-
tiva da democracia redistributiva deve passar também a preocupur-se com
a captação dos recursos estatais - isto é, com a política fiscal, No que res-
peita à política tributária, a democracia redistributiva define-se pela soli-
dariedade fiscal. A solidariedade fiscal do Estado modemo, quando existe
(impostos progressivos, etc.), não passa de uma solidariedade ubstracta.
A luz da nova organização política, e dada a miniaturização do Estado, essa
solidariedade torna-se mais abstracta ainda, acabando por se tornitr incom-
preensível para a maioria dos cidadãos. Daí as diversas revoltas fiscais a que
assistimos nestes últimos anos. Muitas dessas revoltas são mais pnssivas do
que activas, expressando-se através de uma evasão fiscal maciça. Urge pro-
ceder a uma alteração radical da lógica tributária, de maneira a adaptá-la às
novas condições do poder político. É, pois, de tributação participativa que
falo. Atendendo a que as funções do Estado terão cada vez mais a ver com
a coordenação e menos com a produção directa de riqueza, torna-se pra-
ticamente impossível controlar, através dos mecanismos da democracia
representativa, a ligação entre a captação de recursos e a sua atribuição.
Daí a necessidade de recorrer a mecanismos da democracia participativa.
A tributação participativa é uma forma possível de recuperar a "capaci-
dade extractiva" do Estado, associando-a ao cumprimento de objectivos
sociais definidos de uma maneira participada. Assim que os níveis gerais de

" Sobre a experiência do orçamento participativo em Porto Aiegre. ver, entre outros, Santos, i 998a,
2002b.
Poderá o direito ser emancipatório? | 67

tributação e o conjunto de objectivos susceptíveis de financiamento pelo


orçamento do Estado estejam fixados a nível nacional, por meio de meca-
nismos que aliem a democracia representativa à democracia participativa,
terá que. se dar aos cidadãos e às famílias a opção de decidir, colectiva-
mente, onde e em que proporção é que os seus impostos devem ser gastos.
Determinados cidadãos ou grupos sociais poderão querer que os seus impos-
tos sejam gastos maioritariamente na saúde, enquanto outros poderão pre-
ferir vê-los gastos com a educação ou com a segurança social, e assim por
diante,
Quer o orçamento participativo, quer a tributação participativa consti-
tuem peças fundamentais da nova democracia redistributiva, cuja lógica
política consiste na criação de esferas públicas, não-estatais, em que o Estado
será o principal agente de articulação e coordenação. Nas condições actuais,
a criação dessas esferas públicas é a única alternativa à proliferação de esfe-
ras privadas de tipo fascista, sancionadas pelo Estado, O novo combate
democrático é, enquanto combate em prol de uma democracia redistribu-
tiva, um combate antifascista, não obstante ter lugar num campo político
q u e é, formalmente, democrático também. O combate a travar não irá
assumir as mesmas formas do combate que o antecedeu, contra o fascismo
de Estado, mas também não pode cingir-se às formas de luta democrática
legitimadas pelos Estados democráticos que se ergueram das ruínas do fas-
cismo estatal. Estamos, portanto, em vias de criar novas constelações de
lutas democráticas, visando permitir mais e mais amplas deliberações demo-
cráticas jobre aspectos de sociabüidade também mais vastos e mais dife-
renciados. A minha definição de socialismo como democracia sem fim vai,
exactamente, neste sentido.
Para além do orçamento participativo, já em vigor nalgumas partes do
mundo, e da tributação participativa, que na forma aqui avançada não é
mais do que uma aspiração cosmopolita, existe uma terceira iniciativa já em
curso em vários países europeus e, embora em menor escala, também em
fase de ensaio em países como o Brasil e a África do Sul. Refiro-me ao
rendimento mínimo universal. Ao garantir a todos os seus cidadãos, inde-
pendentemente do respectivo estatuto de emprego, um rendimento míni-
m o suficiente para cobrir as necessidades básicas, esta inovação institucio-
nal constitui um poderoso mecanismo de inclusão social e abre o caminho
ao exercício efectivo de todos os restantes direitos de cidadania (van Parijs,
1992). As lutas pelo rendimento mínimo garantido são lutas cosmopolitas,
na medida em que a sua lógica consiste em fixar "benefícios" econômicos
n ã o dependentes dos altos e baixos da economia, e, como tal, não são meras
respostas à acumulação de capital.
68 | íloaventura de Sousa Santos

A ênfase na democracia redistributiva é uma das condições prévias para


que o Estado moderno se converta no mais recente dos movimentos sociais.
Outra dessas condições é aquilo que designo por Estado experimental. Numa
fase de transformações turbulentas cm t o m o do papel do Estado na regu-
lação social, a matriz institucional do Estado, apesar de rígidn, irá ver-se
submetida a fortes abalos, que lhe ameaçam a integridade e poderão gerar
efeitos perversos. Além disso, q t a matriz institucional inscreve-se num
tempo-espaço estatal e nacional que, por sua vez, está a sofrer o impacto
simultâneo de tempos-espaços que são, a um tempo, locais e globais, instan -
tâneos e glaciais. Deve concluir-se que o desenho institucionalda nova forma
de Estado emergente está, ainda, por inventar. Resta, com efeito, saber se a
nova matriz institucional será feita de organizações formais, ou de redes e
fluxos, ou até mesmo de formas híbridas e de dispositivos flexíveis, suscep-
tíveis de reprogramação. Não é, por isso, difícil prever que as lutas democrá-
ticas a travar nop próximos anos serão, essencialmente, lutas por desenhos
institucionais alternativos.
Uma vez que ia quilo que caracteriza os períodos de transição paradigmá-
tica é o facto de neles coexistirem soluções próprias do velho e do novo
paradigma, e de pstas últimas serem freqüentemente tão contraditórias entre
si como o são em relação às primeiras, considero que deve ter-se em conta
esta condição quando se concebem instituições novas. Seria insensato, nesta
fase, tomar opções institucionais irreversíveis. Assim, há que fazer do Estado
um campo de experimentação institucional em que seja possível a coexis-
tência de diferentes soluções institucionais concorrentes entre si, funcio-
nando como experiências-piloto sujeitas à perserutação permanente por
p a n e de colectivos de cidadãos encarregados da avaliação comparativa dos
desempenhos. A disponibilização de bens públicos, principalmente no
domínio das políticas sociais, pode ocorrer, portanto, de variadas formas, e
a opção entre estas, a ter que se verificar, só poderá dar-se depois de as
alternativas terem sido devidamente ponderadas, pelos cidadãos cm função
da respectiva eficácia e índole democráticas.
Para proceder à experimentação institucional, há q u e ter em mente dois
princípios- fundamentais. Em primeiro lugar, o Estado só será genuina-
mente experimental se forem dadas condições iguais às diferentes soluções
institucionais, para q u e possam desenvolver-se s e g u n d o a sua lógica
própria, Por outras palavras, o Estado experimeHtal será democrático na
medida em que conferir igualdade de oportunidades às diversas propos-
tas de institucionalização democrática. Só assim o combate democrático
poderá verdadeiramente tornar-se num combate por altcrnativim democrá-
ticas. Só assim será possível lutar democraticamente contra o di igmatismo
Poderá o d i r e t o ser emandpatôrio? | 69

democrático. A experimentação institucional há-de necessariamente cau-


sar alguma instabilidade e incoerência na acção do Estado, que, por sua
vez, poderá eventualmente dar origem a novas e inesperadas exclusões.
Trata-se de um risco sério, e tanto mais quanto, no contexto da nova orga-
nização política d e que o Estado faz parte, continua a competir ao Estado
democrático proporcionar uma estabilidade básica consonante com as
expectativas dos cidadãos, bem como padrões básicos de segurança e de
inclusão.
Nestas circunstâncias, o Estado deve garantir, não apenas uma igual-
dade de oportunidades aos diferentes projectos de institucionalização demo-
crática, mas também - e aqui reside o segundo princípio da experimen-
tação política - padrões básicos de inclusão, sem os quais a cidadania activa
necessária à observação, verificação e avaliação do desempenho dos pro-
jectos alternativos há-de revelar-se inviável. O novo Estado-providência é
u m Estado experimenta], e a experimentação permanente conseguida atra-
vés da participação activa dos cidadãos é o garante da sustentabilidade do
bem-estar.
Sendo o mais recente dos movimentos sociais, o Estado acarreta consigo
u m a grande transformação do direito estatal tal como o conhecemos nas
actuais condições do demoliberalismo. O direito cosmopolita é, aqui, a
componente jurídica das lutas pela participação e pela experimentação
democráticas nas políticas e regulações do Estado. O campo das lutas cosmo-
politas emergentes é vasto; tão vasto, de facto, quanto as formas de fascismo
que nos ameaçam. No entanto, e como resultado do exposto, as lutas cosmo-
politas não podem restringir-se ao tempo-espaço nacional. Muitas das lutas
acima expostas pressupõem uma coordenação internacional, quer dizer,
u m a colaboração entre Estados e entre movimentos sociais visando reduzir
a competição internacional entre estes e incrementar a cooperação. D o
mesmo modo que o fascismo social a si mesmo se legitima ou naturaliza
enquanto pré-contratualismo e pós-contratualismo imposto pdr insuperá-
veis imperativos de âmbito global ou internacional, cabe também às forças
cosmopolitas transformar o Estado nacional,num elemento dé uma rede
internacional apostada em reduzir ou neutralizar o impacto destrutivo e
exclusivista desses imperativos, na procura de uma redistribuição iguali-
tária da riqueza globalmente produzida. Os Estados do Sul - 1 em parti-
cular os grandes Estados semiperiféricos, como sejam o Brasil, a índia, a
África do Sul, uma futura China democrática, bem como uma Rússia livre
de mafias - terão, neste capítulo, um papel decisivo a desempenhar. O even-
tual aumento da competição internacional entre eles revelar-se-á desastroso
p a r a a vasta maioria dos respectivos habitantes e fatal para a população dos
7 0 | íloaventura de Sousa Santos

paises periféricos. A luta por um direito internacional novo, mal» democrá-


tico e mais participativo, faz, por conseguinte, parte integrante da luta nacio-
nal em prol de umtt democracia redistributiva.

8. Conclusão
O presente artigo foi escrito a partir da lógica da sociologia das emergên-
cias. O objectivo que lhe presidiu foi o de expor os sinais da reconstrução
da tensão entre regulação social e emancipação social, bem como o papel
reservado ao direito nessa reconstrução. A credibilidade dos sinais assen-
tou no trabalho de escavação dos alicerces do paradigma da m o d e r n i d a d e
- um trabalho que confirmou o esgotamento do paradigma ao mesmo t e m p o
que pôs a descoberto a riqueza e vastidão da experiência social que ele
inicialmente tornou possível e posteriormente veio a desacreditar, a mar-
ginalizar ou, simplesmente, a suprimir.
A reconstrução da tensão entre regulação social e emancipação social
obrigou a sujeitar o direito m o d e r n o - um dos mais importantes factores
de dissolução dessa tensão - a uma análise crítica radical e mesmo a u m
despensar. Este despensar, no entanto, nada teve q u e ver com o m o d o
desconstrutivo. Pelo contrário, foi seu objectivo libertar o pragmatismo de
si próprio, quer dizer, da sua tendência para se ater a concepções domi-
nantes da realidade. U m a vez postas de lado essas concepções dominan-
tes, torna-se possível identificar u m a paisagem juridica mais rien e ampla,
uma realidade que está mesmo à frente dos nossos olhos, mas q u e mui-
tas vezes não vemos p o r nos faltar a perspectiva d e leitura ou o código
adequados.
Essa falta p o d e ter a sua explicação nas disciplinas convencionalmente
votadas aos estudo do direito, desde a jurisprudência à filosofia d o direito,
passando pela sociologia do direito e pela antropologia do direito. Estas
disciplinas são responsáveis pela construção do cânone jurídico modernista -
um cânone estreito c redutor, que arrogantemente desacredita, silencia ou
nega as experiências jurídicas de grandes grupos populacionais.
Uma vez recuperada toda esta experiência sócio-jurídica, tornou-se pos-
sível entendê-la cabalmente na sua diversidade interna, nas suas muitas
escalas, e nas suas muitas e contraditórias orientações político-culturais
(Santos, 2002a). Restava, contudo, ainda uma outra tarefa: aferir o poten-
cial dessa experiência tendo em vista a reinvenção d a emancipação social.
Foi sobre essa questão que se debruçou o presente artigo. Uma vez formu-
l a d a - p o d e r á o direito ser é m a n c i p a t ó r i o ? - , ela foi submetida ü análise
crítica no sentido de lhe clarificar tanto as possibilidades como os limites.
Pôde, assim, conferir-se credibilidade a uma ampla variedade de lutas, ini-
Poderá o direito ser emancipatório?|423

ciativas, movimentos e organizações, quer de âmbito local quer de âmbito


nacional ou global, em que o direito figura como um dos recursos utiliza-
dos para fins emancípatórios.
Como tomei claro, este uso do direito vai, freqüentemente, para além do
• cânone jurídico modernista. Recorre-se a formas de direito (formas de direito
informa] e não oficial, nomeadamente) que muitas vezes não são reconheci-
das como tal. Acresce que, quando se recorre ao direito estatal ou oficial, o
uso que dele é feito nunca é um uso convenciona] - pelo contrário, esse
direito passa a fazer parte de um conjunto de recursos políticos mais vasto.
É freqüente o direito estar presente sob a capa de práticas ilegais, que mais
não são, afinal, do que um meio de lutar por uma legalidade alternativa.
Por fim, aguilo que se designa por legal, ilegal ou até mesmo alegai resume-
•se a compwientes de constelações jurídicas passíveis de ser accionadas à
escala loca], nacional e global. Chamei-lhes, considerando-as no seu conjunto,
legalidade cosmopolita subalterna. Uma vez completada esta trajectória,
será possível mostrar que a pergunta - poderá o direito ser emancipatório? -
tem tanto de proveitoso como de inadequado. No fim e ao cabo, o direito
não pode ser nem emancipatório, nem não-emancipatório, porque emandpa-
tórios e não-emancipatórios são os movimentos, as organizações e os grupos
cosmopolitas subalternos que reco nem à ld para levar as suas lutas por diante.
Conforme já sublinhei, segundo a lógica da sociologia das emergências
esta legalidade cosmopolita subalterna está, ainda, a dar os seus primeiros
passos; trata-se, acima de tudo, de uma aspiração e de um projecto. Exis-
tem já, contudo, sinais suficientes para justificar a adopção de concepções
mais amplas de realidade e de realismo, Tais concepções deverão abranger
n ã o só o que existe mas também aquilo que a sociedade produz activa-
mente como não-existente, e ainda aquilo que existe apenas como sinal ou
vestígio do que pode ser facilmente menosprezado ou ignorado. A melhor
maneira de captar esta realidade será mediante uma agenda de investigação
aberta. Foi esse o meu objectivo no presente texto,
Para a teoria e sociologia convencionais, será sempre fácil desacreditar
os sinais da legalidade cosmopolita subalterna, bem como a agenda de inves-
tigação que visa desmontá-los. Isso é-lhes fácil porque, historicamente, elas
mais não têm feito do que depreciar as alternativas de um futuro novo, que
em qualquer drcunstância continuam a verificar-se. Agarram-se, assim, a
concepções políticas e teóricas alicerçadas em estreitas noções de realismo,
recorrem ao pragmatismo para disfarçar a razão cínica que as caracteriza, e
apresentam-se como paladinos do cepticismo científico para estigmatizar
como sendo idealista tudo aquilo que se não compagina com a estreiteza
das suas análises e perspectivas.
424 | í l o a v e n t u r a de S o u s a S a n t o s

Essas análises e perspectivas provêm d e uma espécie de racionalidade a


que Leibniz, n o seu prefácio iTeodiceia, publicada em 1710 (Leibniz, 1985),
chamou "razão indolente", e que consiste no seguinte: se o f u t u r o é uma
necessidade e o q u e tem q u e acontecer acaba por acontecer, independente-
mente d o q u e possamos fazer, é preferível não fazer nada, não nos preo-
cuparmos com nada, limitando-no^ a desfrutar o prazer d o m o m e n t o . Esta
forma de razão é indolente p o r q u e desiste de pensar ante a necessidade e o
faralismo, de q u e Leibniz distingue três tipos: Fatum Mahometanum, Fatum
Stoicum, e Fatum Christianum.
A conseqüência sócio-políüca mais nefasta da razão indolente é o des-
perdício da experiência, Este texto, tal como o livro d e que foi extraído, foi
escritoicontra a razão p r e g u i ç o s a s contra o desperdício de experiência q u e
ela provoca.
Tradução de
João PauJo Moreira

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LIBERALISMO IGUALITARIO
E MULTICULTURALISMO*
(Sobre Brian Barry, Culture and Equality)

ÁLVARO DE VITA

Ao longo da última década tomou-se uma objeção recorrente à


teoria política normativa do liberalismo igualitário a de que essa teoria não é
capaz de levar em conta as exigências daquilo que Charles Taylor denomi-
nou "reconhecimento".1 Antes de tratar dessa objeção, alguns esclarecimen-
tos tcrminológicos se fazem necessários. Por "liberalismo igualitário" estou
entendendo a posição normativa segundo a qual uma sociedade democrática
" justa é aquela comprometida com a garantia de direitos básicos iguais e uma
parcela eqüitativa dos recursos sociais escassos - renda, riqueza e oportu-
nidades educacionais e ocupacionais - a todos os seus cidadãos. A idéia cen-
tral desse ideal normativo se apoia em uma divisão moral de trabalho entre
a sociedade e seus membros individuais. À sociedade - aos cidadãos como
um corpo coletivo - cabe a responsabilidade de dar forma a uma estrutura
institucional que propicie aqueles direitos e oportunidades para todos, "sem
distinção de qualquer tipo, tais como raça, etnia, sexo ou religião" (para fazer
uso da frase que quase invariavelmente aparece nos artigos iniciais das
declarações de direitos); aos cidadãos individualmente, cabe decidir que uso
farão em suas vidas desses recursos institucionalmente garantidos.2

' Este texto foi escrito durante u m pós-doutontmento na C o l u m b i a University, que contou
c o m o apoio, pelo qua] sou grato, da F A P E S P e da Fulbright.
1
Charles Taylor, ' T h e Politics o f Recognition", in A m y Gutmann (org.), Multiculturulism
and "Tht Politics 0/Recognition" (Princeton. Princeton University Press, 1994), pp. 25-73.
2
A formulação mais completa desse ideal politico, no século X X , é a de John R a w l s em A
Theory of Justice (Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1971) e em outros de seus
textos, mas d go semelhante a isso pode ser econtrado nos escritos de inúmeros teóricos li-
beraj-igualitários e nas Declarações de Direitos da O N U e em textos constitucionais de diver-
sós países do mundo. Trata-se essencialmente da mesma concepção de cidadania expressa por
T.H. Marshall em seu clássico Citizenship and Social Class ( L o n d o n , Pluto Press. 1992).
6 LUA NOVA N- 55-56— 2002

No que screfer^à segunda .parte dessa proposição, ressahc-se


que os mesmos recursos e oportunidades institucionais podem ser coloca-
dos a serviço de uma ampla diversidade de objetivos, valores, formas de
vida e doutrinas religiosas ou filosóficas. O empenho em realizar ou
praticar qualquer uma dessas coisas não pode se fazer à custa de princípios
de justiça, mas também não se exige que esses diferentes fins tenham cre-
denciais tipicamente liberais. Sob uma estrutura institucional justa de acor-
do com a perspectiva normativa que estou descrevendo deve haver lugar,
por exemplo, tanto para o caráter individual que John Stuart Mill descreveu
de forma tão eloqüente em Sobre a liberdade, que rejeita a conformidade
social e preza a escolha autônoma dos próprios fins, quanto para aqueles
que rejeitam esse ideal de autonomia individual e crêem dever conduzir
suas vidas de acordo com os ditames da verdade revelada ou da cultura de
seus ancestrais. O que nem uns nem outros podem querer é que o poder
coercitivo estatal seja empregado para promover a forma de vida que jul-
gam ser a mais valiosa. Isso deve ficar por conta de direitos e oportu-
nidades iguais - da liberdade de associação, em particular.
Embora houvesse muito mais a dizer a respeito, o que foi dito nos
dois parágrafos anteriores constitui o componente central da estratégia libe-
ral-igualitária para enfrentar a diversidade normativa e cultural das socie-
dades contemporâneas. Nas últimos 10 ou 15 anos essa estratégia vem sendo
atacada por aqueles que acham que ela negligencia o reconhecimento das
identidades culturais de grupos minoritários. É hora de voltar à objeção que
mencionei no início deste artigo. O que está em questão é o que vem sendo
denominado "objeção multiculturalista" ao liberalismo. (O leitor deve ter em
mente que sempre que eu empregar o termo "liberalismo", neste texto, a
referência é à versão de liberalismo igualitário que sumariei acima). "Política
da diferença" ou "polílica do reconhecimento" são outras denominações
comuns para a posição que se expressa nessa objeção.3
O liberalismo igualitário, que Taylor denomina "polftica da dig-
nidade igual", preocupado como é com a defesa de instituições e políticas
que garantam direitos iguais a todos, independentemente de raça, elnia,
sexo ou religião, é "cego a diferenças".4 Em diversos países do mundo, há

3
U m a formulação influente dessa p o s i ç i o , bastante mais extremada do que a de Taylor, é a
de íris M a r i o n Y o u n g em Justice and llie Potillcs of Difference (Princeton, Princeton
Univerpity Press, 1990). W i l l K y m l i c k a , em f4uhiculiural Citizenship: A Liberal Tlieory of
Minonry Riglus (Oxford, Cla.-er.dor. Press. 1995) formulou uma teoria que objetiva conciliar
o liberalismo c o m as exigências de reconhecimento de minorias nacionais.
4
Taylor. " T h e Politics of Recognítion", pp. 39-40, 43-44. 60-61.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 7

u m a variedade de g r u p o s minoritários, entre os quais o s negros (em


sociedades que tiveram escravidão negra), as mulheres, os homossexuais,
minorias nacionais e g r u p o s étnicos imigrantes (em países q u e receberam
ou ainda recebem fluxos significativos de imigração), q u e não d e m a n d a -
riam simplesmente ter a s m e s m a s coisas q u e seus c o n c i d a d ã o s - os mes-
m o s direitos, n o caso. E l e s t a m b é m d e m a n d a r i a m o r e c o n h e c i m e n t o públi-
c o de suas identidades culturais. A l é m d o tratamento igual, que o "libera-
lismo c e g o a diferenças" tem por objetivo, as instituições e políticas públi-
cas d e u m a democracia multiculturalista d e v e r i a m tratar g r u p o s diferentes
de a c o r d o c o m suas d i f e r e n ç a s culturais. C o m o o liberalismo igualitário é
"cego a diferenças", os adeptos d o multiculturalismo 5 o a c u s a m de pro-
m o v e r ou corroborar a imposição da cultura d o m i n a n t e sobre grupos
minoritários. C o m o diz Taylor, "a o b j e ç ã o [dos multiculturalistas] é a de
que o conjunto s u p o s t a m e n t e neutro de princípios c e g o s à diferença da
política da dignidade igual de f a t o é o r e f l e x o d e uma cultura hegemônica.
D o m o d o c o m o isso se apresenta, então, s o m e n t e as culturas minoritárias
ou suprimidas são obrigadas a assumir u m a forma que lhes é estrangeira.
E m conseqílSncia, a s o c i e d a d e s u p o s t a m e n t e eqüitativa e cega a diferenças
não é s o m e n t e d e s u m a n a ( p o r q u e s u p r i m e identidades) m a s t a m b é m , d e
u m a f o r m a inconsciente e sutil, altamente discriminatória". 6
E m tempos idos, a crítica social (liberal ou socialista) costuma-
va se exprimir e m u m discurso úniversalizante e e m u m a l i n g u a g e m igua-
litária, c a b e n d o a e x p o e n t e s d o reacionarismo político, c o m o H e r d e r e de
Maistre, invocar identidades e diferenças culturais contra o racionalismo
iluminista. 7 É perturbador c o m o isso h o j e parece ter se invertido ou n o
m í n i m o se t o m a d o m u i t o mais c o n f u s o . E m virtude da crítica multicultu-
ralista, aqueles que, na a c a d e m i a e n o m u n d o político, e n t e n d e m q u e a con-
c e p ç ã o de cidadania de T . H . Marshall (ou idéias similares) f o r n e c e um
ideal plausível de progresso social para as sociedades democráticas, têm
sua c o n v i c ç ã o abalada pela suspeita de que o c o m p o n e n t e universalista e

5
Esclareço adiante de que forma este termo deve ser entendido.
6
lbid., p. 43.
7
C o m o Barcy observa ( C E , pp. 15-16). i parte tudo aquilo a que o lluminismo se opunha,
nunca houve u m "projeto iluminista" claramente discemfvel. M a s se há algo que os herdeiros
do lluminismo ( B a i r y entre eles) aceitam é a idéia de que deve ser possível justificar as insti-
tuições sociais, nfio c o m base em costumes ancestrais ou identidades culturais, mas s i m c o m
base em princípios gerais tais c o m o o b e m público ou a equidade, S e é isso que se entende
por "racionalismo iluminista", não há nenhuma razSo para os liberais igualitários rejeitarem
o rótulo.
433 LUA NOVA N- 55-56— 2002

igualitário desse ideal normativo é indiferente a f o r m a s significativas d e


inferiorização social. E os herdeiros raulticulturalistas de Herder se c o n -
cebem c o m o teóricos de esquerda, que, d ã o o p e s o moral apropriado às
exigências de reconhecimento de grupos discriminados. 8
É nesse ponto e m q u e as coisas se encontram que o livro recente
de Brian Barry, Culture and Equality: An Egalitarian Critique of
Multiculturalism, deve ser considerado u m a das contribuições mais signi-
ficativas à teoria política normativa nos últimos anos. 9 Nos últimos 13 ou 14
anos Barry se impôs a tarefa de produzir u m a trilogia que, além de conden-
sar décadas d e reflexão sobre a natureza da justiça na sociedade, tinha a
ambição de formular de forma mais abrangente c detalhada sua própria pers-
pectiva teórica sobre a justiça social e política - uma variante d e justiça
rawlsiana, mas com suficientes elementos originais para poder ser conside-
rada uma teoria "barryana". Dois livros importantes resultaram desse
empreendimento. 1 0 Antes de levar a c a b o sua trilogia, no entanto, Barry
decidiu que era hora de enfrentar diretamente a crítica multiculturalista ao
liberalismo igualitário. É esse o teor de Culture and Equality (CE, daqui para
frente), u m livro que entra nessa controvérsia e m todos os aspectos e m que é
possível fazê-lo: da discussão filosófica sobre princípios de justiça até a dis-
cussão de políticas públicas específicas e m países c o m o o Grã-Bretanha,
Estados Unidos e Canadá - tais c o m o a isenção concedida na Grã-Bretanha
a j u d e u s e muçulmanos de obedecer às normas d e sacrifício humanitário de
animais. 1 1 T a l v e z a motivação mais forte de B a n y seja a de mostrar que cre-
denciais genuínas de crítica social e d e r e f o r m i s m o social continuam perten-
cendo, c o m o foi o caso nos últimos 3 0 0 anos, muito mais àqueles que enfa-
tizam o que há ou o que deve haver de c o m u m entre os cidadãos do q u e àque-
les que q u e r e m salientar o que os toma diferentes entre si.

8
A lista dc Y o u n g de grupos discriminados é longa. N o caso dos E U A , essa lista incluiria
"entre outros, as mulheres, os negros, os chicanos, o s portorriquenhos e outros americanos de
língua espanhola, os índios americanos, os judeus, as lésbicas, os gays; os árabes, os asiáti-
cos, o s idosos, as pessoas da classe trabalhadora e os deficientes físicos o u mentais" ( J u s t i c e
and ilus Politics of Difference, p. 40). C o m o se vê, resta c o m o "cultura dominante" aquela d o s
homens brancos, heterossexuais e de status social elevado.
9
B r i a n Barry, Culture and Equality: An Egalitarian Critique of Mulliculturalism
(Cambridge-Mass., Harvard University Press, 2001).
10
Theories of Justice (London, Harvester-Wheatsheaf, 1989) e Justice as impartiality
(Oxford, Clarendon Press, 1995).
" A o passo que essas normas exigem que os animais sejam desacordados antes de serem sa-
crificados, judeus e muçulmanos muitas vezes querem fazer valer normas religiosas segundo
as quais animais só podem ser sacrificados quando estão em estado de consciência.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 9

Examino, a seguir, alguns dos argumentos de Ватту contra о mul-


ticulturalismo. 1 2 O próprio significado que se dá a este termo já constitui um
ponto de controvérsia. C o m o В а л у observa, é freqüente q u e se oscile entre
u m uso descritivo e u m uso normativo de "multiculturalismo" (CE, p. 22).
E m u m sentido puramente descritivo esse termo é equivalente a "pluralis-
mo", ou outros termos assemelhados, e não identifica n e n h u m a posição nor-
mativa específica. Praticamente todas as sociedades c o n t e m p o r â n e a s são
"multiculturais" nesse sentido. E o reconhecimento disso é u m d o s pontos
de partida do liberalismo d e direitos iguais - o liberalismo nasceu, aliás,
c o m o uma resposta aos conflitos gerados pelo "multiculturalismo" das
sociedades européias dos séculos X V I с Х У Л , isto é, c o m o u m a proposta
de tratamento eqüitativo para os adeptos d o catolicismo e d o protestantismo
sob instituições comuns. O q u e Ватту critica e m seu livro é o multicultura-
lismo entendido c o m o uma posição normativa e u m programa político.
Trata-se, em suma, de confrontar os méritos relativos d a s respostas multi-
culturalista ( e m sentido normativo) e liberal-igualitária a o "multiculturalis-
m o " (em sentido descritivo) das sociedades contemporâneas.
E e m q u e consiste o p r o g r a m a político multiculturalista? A idéia
central é a de que, q u a n d o há identidades culturais envolvidas, n ã o basta
garantir direitos iguais entre os m e m b r o s de minorias e os m e m b r o s da
maioria cultural. A j u s t i ç a exigiria o r e c o n h e c i m e n t o público d e direitos
diferenciados c u j o s portadores não são indivíduos, m a s s i m grupos. Alguns
e x e m p l o s de medidas e políticas propostas s ã o os seguintes: o reconheci-
m e n t o , nos currículos escolares, do valor e da c o n t r i b u i ç ã o de diferentes
identidades culturais (o q u e pode chegar a o ponto, nos E U A , de se propor
o ensino e m língua espanhola nas escolas públicas e m q u e há alta concen-
tração de hispânicos ou de se r e c o n h e c e r o c h a m a d o " B l a c k E n g l i s h " em
pé d e igualdade com a n o r m a culta da língua nas escolas d e alta c o n c e n -
tração d e negros); a isenção d o c u m p r i m e n t o de determinadas normas
legais por razões culturais ou religiosas - c o m o o j á m e n c i o n a d o e x e m p l o
da isenção d o c u m p r i m e n t o d e n o r m a s humanitárias de sacrifício d e ani-
mais ou, de f o r m a ainda muito mais controversa, a d e m a n d a por parte de
grupos de j u d e u s ortodoxos e de m u ç u l m a n o s , e m países c o m o a Grã-
Bretanha, de fazer seu direito familiar religioso prevalecer sobre o direito
familiar do Estado libcral-democrático ou a recusa de m e m b r o s d a igreja

12
O leitor já deve ler percebido que não sou uma parte neutra nessa discussão. M e u próprio
trabalho tem sido dedicado à defesa de u m a perspectiva liberal-igualitária sobre a justiça
social. Ver o meu A justiça igualitária e seus críticos ( S ã o Paulo, Editora Unesp, 2000).
10 LUA NOVA N- 5 5 - 5 6 — 2002

T e s t e m u n h a s de J e o v á d e aceitar cortas f o r m a s d e tratamento médico,


m e s m o q u a n d o isso poderia ser a ú n i c i f o r m a de salvar crianças e m situa-
ç ã o d e risco d e v i d a ; e o direito d e mifiorias nacionais ( c o m o a minoria
f r a n c ó f o n a d o Canadá, conédntrada na província do Q u e b e c , e g r u p o s indí-
g e n a s e m várias partes d o m u n d o ) d e a s s e g u r a r e m as c o n d i ç õ e s para a
sobrevivência indefinida de sua cultura.
Esbocei acima a f o r m a c o m o o liberalismo igualitário enfrenta as
diferenças culturais e religiosas. B a n y d e n o m i n a isso "estratégia da privati-
z a ç ã o " (CL, pp. 24-32). Assim c o m o ocorreu c o m as diferenças religiosas n o
passado no m u n d o ocidental, a desativação d o potencial de conflitividade das
diferenças culturais passa p o r despolitizá-las e por deixar que sua sobre-
vivência dependa basicamente da disposição d e seus adeptos de fazer uso d o s
m e s m o s recursos institucionais que estão disponíveis para todos. N ã o é nen-
h u m a idéia d e uniformidade cultural, c o m o Young parece supor, q u e inspira
essa estratégia. 1 3 D e u m a parte, a suposição é a de que a afirmação pública
de princípios tais c o m o a igualdade cívica, a liberdade de expressão e de con-
sciência e a liberdade de associação, a não-dicriminação e a garantia de opor-
tunidades iguais constitui a única f o r m a eqüitaliva d e lidar c o m os conflitos
q u e decorrem d e visões diferentes sobre as condições sociais da boa vida
(CE, p. 122). D e outra parte, os liberais acreditam que, se esses princípios
são efetivamente implementados pelos arranjos institucionais básicos da
sociedade, há espaço suficiente para q u e minorias culturais e religiosas
o b s e r v e m costumes diferentes, enfatizem valores distintos e se e m p e n h e m
e m preservar sua identidade de grupo. D o que eles suspeitam é da exigên-
cia, q u e aparece nos e x e m p l o s m e n c i o n a d o s n o parágrafo anterior, d e que o
poder coercitivo estatal seja colocado a serviço da sobrevivência de uma
identidade cultural específica - quer isso se apresente na f o r m a da concessão
d e u m direito específico a u m determinado grupo quer na da isenção de u m a
obrigação legal a que os demais cidadãos estão sujeitos.

A CULTURA NÃO É O PROBLEMA

Pelo q u e foi visto até esse ponto, a política d o tratamento igual


p o d e c a m i n h a r u m b o m p e d a ç o na a c o m o d a ç ã o da diversidade cultural.

I 3 Y o u n g (op, cil.. p. 158) i m p i n g e o p r o p ó s i t o de u n i f o r m i z a ç ã o cultural, d e n o m i n a n d o - o


" i d e a l de a s s i m i l a ç ã o " , àquilo que para o l i b e r a l i s m o igualitário se justifica c o m base e m u m a
c o n c e p ç ã o de eqüidade, a saber, a política de tratamento igual.
LIBERALISMO E MULT1CULTU1ULISM0 11

M a s a ê n f a s e e m direitos e obrigações iguais não significa que o liberalis-


m o igualitário não possa justitificar a existência de um tratamento diferen-
c i a d o para os m e m b r o s de certas minorias discriminadas. O s liberais
p o d e m defender, sem incorrer e m n e n h u m a incoerência de princípio,
políticas tais c o m o a de "ação a f i r m a t i v a " e d c " a d m i s s ã o diferenciada",
i m p l e m e n t a d a s nos E U A sobretudo para c o m b a t e r os efeitos da discrimi-
nação racial no acesso às universidades. M a s a f o r m a c o m o o f a z e m difere
e m aspectos cruciais d o p r o g r a m a político multicultualista. C o m o Barry
argumenta, essa política beneficia diretamente indivíduos e n ã o grupos
(CE, p. 113). É claro q u e se espera que ela tenha efeitos b e n é f i c o s para o
g r u p o c o m o u m todo. U m a das expectativas 6 a de q u e a u m e n t a r a partici-
p a ç ã o de negros e m posições ocupacionais valorizadas - pela via da
" a d m i s s ã o d i f e r e n c i a d a " - poderia e x e r c e r u m efeito benéfico sobre a auto-
estima d o s negros e m geral, e m particular no que se refere às crianças
negras p e r c e b e r e m essas carreiras c o m o objetivos a q u e elas naturalmente
poderiam aspirar. M a s não é o grupo e n q u a n t o tal, c o m o u m a entidade
coletiva, que é investido de u m direito ou de u m tratamento diferenciado.
Conferir direitos a entidades coletivas tais c o m o grupos e c o m u n i d a d e s ,
c o m o algo distinto d e seus m e m b r o s individuais, pode ter implicações
perigosas (volto a esse ponto na próxima seção).
U m s e g u n d o ponto importante diz respeito a qual é o diagnós-
tico mais a c u r a d o do problema central envolvido na discriminação racial e
e m outras f o r m a s socialmente importantes de discriminação. O problema,
para Barry, simplesmente não está na cultura d o s negros. Os n e g r o s norte-
americanos (pode-se dizer o m e s m o d o s negros brasileiros) não são dis-
criminados porque são portadores d e u m a cultura específica. Eles, assim
c o m o grupos d e imigrantes e m vários países industrializados, s o f r e m u m a
f o r m a de discriminação direta q u e se d e f i n e muito mais por características
adscritas e p o r descendência do q u e por cultura (CE, pp. 96-97). E se eles
n ã o são discriminados e m virtude de u m a identidade cultural específica,
t a m p o u c o a solução do p r o b l e m a pode estar na cultura. D o q u e eles se
ressentem não é d o " B l a c k E n g l i s h " não ser ensinado n a s escolas freqüen-
tadas por crianças negras, m a s s i m de n ã o ler as mesmas coisas q u e seus
c o n c i d a d ã o s q u e não s o f r e m d e u m a discriminação similar têm - referindo-
se essas " m e s m a s coisas" aos recursos c oportunidades que u m a sociedade
liberal j u s t a deveria garantir igualmente a todos. O déficit não é de "reco-
n h e c i m e n t o " , mas da boa e velha igualdade social. Dessa perspectiva, as
políticas d e " a d m i s s ã o d i f e r e n c i a d a " têm o propósito dc p r o m o v e r oportu-
nidades iguais para todos (ainda q u e c e r t a m e n t e são insuficientes para isso)
12 LUA NOVA N- 55-56— 2002

e só d e v e m durar e n q u a n t o se p u d e r demonstrar que a discriminação racial


contribui para gerar oportunidades deáiguais.
Essa objeção de que "a cult^ira não é o problema" deriva da per-
cepção de uma deficiência mais básica ho argumento multiculturalista. Esse
argumento se apóia em u m a teoria equivocada sobre o que fundamenta a iden-
tidade de muitos dos grupos nomeados c o m o "minorias culturais". 1 4 Talvez o
ponto mais enfatizado por Barry ao longo do livro é o de que é simplesmente
equivocado considerar q u e aquilo que constitui esses grupos - os negros, as
mulheres, os idosos, os homossexuais e até m e s m o as minorias étnicas e
nacionais - de fato seja u m fundamento cultural (CE, pp. 21-22, p. 96, pp.
305-306). A filiação ao grupo das mulheres se define pela fisiologia, a idade é
aquilo que define alguém c o m o membro d o grupo dos idosos, a orientação se-
xual é o fator que define uma pessoa como membro do grupo dos homos-
sexuais (muitos homossexuais não f a z e m da homossexualidade o elemento
organizador de uma forma de vida) e assim por diante (CE, p. 96). E m nenhum
desses casos, uma cultura ou forma de vida compartilhada desempenha u m
papel de relevo para identificar um grupo d e pessoas que estão submetidas a
uma situação similar de discriminação e que, por isso, podem fazer jus a for-
mas de tratamento diferenciado que corrijam o tratamento desigual que sofrem.
Creio que vale a pena reproduzir o q u e Barry diz sobre esse tópico:

O erro que tenho e m mente, que fundamenta o diagnóstico multi-


culturalista e por isso invalida as curas que propõe, é a tendência
endêmica de supor que atributos culturais distintivos constituem a
característica definidora de todos os grupos. Essa suposição leva à
conclusão d e que quaisquer problemas com os quais um grupo
possa se defrontar só podem surgir, de uma forma ou de outra, das
características culturais distintivas desse grupo. A c o n s e q ü ê n c i ^
dessa 'culturalização' das identidades de grupo é a sistemática
desconsideração de outras causas da desvantagem de grupo. Dessa
forma, os membros de u m grupo podem sofrer não porque tenham
objetivos culturalmente derivados distintos, mas sim porque levam

' ^ Essa lese é claramente endossada por Íris Y o u n g , para quem um grupo se define c o m o " u m
coletivo de pessoas diferenciado de pelo menos u m outro grupo por formas culturais, práticas
ou pela forma de v i d a " ( Y o u n g , Justice and tlie Politlcs of Difference, p. 43). M e s m o
K y m l i c k a , que critica Y o u n g por não diferenciar as exigências de "reconhecimento" de mino-
rais nacionais das exigências de minorias étnicas e daquelas de gíupos em desvantagem (tais
c o m o as mulheres e os negros), parece endossar uma versão dessa tese ( K y m l i c k a .
Multicultural Citizensliip, pp. 18-19).
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 13

a pior na realização de objetivos que são compartilhados d e forma


geral, tais c o m o uma boa educação, empregos desejáveis e bem
pagos (ou talvez simplesmente ter algum emprego), viver e m um
bairro seguro e salubre e ter renda suficiente para morar, se vestir
e se alimentar de forma apropriada e para participar da vida social,
econômica e política de sua sociedade." (CE, pp. 305-306)

Poder-se-ia replicar que a teoria multiculturalista da identidade de


grupo vale pelo menos para as minorias étnicas e nacionais. Mas nem isso
Barry está disposto a conceder. Consideremos a distinção proposta por
Kymlicka entre grupos "étnico-culturais" e "minorias nacionais". 1 3 A pri-
meira categoria se aplica a grupos étnicos e raciais constituídos de forma vol-
untária, por meio de imigração, tais c o m o os grupos hispânicos nos E U A , os
silchs na Grã-Bretanha, os turcos na Alemanha e inúmeros outros; e a segun-
da, a minorias não-imigrantes cujos territórios foram involuntariamente
"incorporados às fronteiras de um estado maior, por meio de conquista, colo-
nização ou federação" 1 6 , entre os quais encontram-se os grupos indígenas de
países c o m o o Canadá, os E U A e o Brasil, os chicanos 1 7 e portorriquenhos
nos E U A , os habitantes de fala francesa do Quebec, no Canadá, os Maori da
Nova Zelândia e os grupos aborígenes da Austrália. Enquanto os primeiros
podem demandar certos direitos de grupo - q u e Kymlicka denomina "dire-
itos poli-étnicos" - , tais o direito concedido aos sikhs da Grã-Bretanha de diri-
gir motoclicletas sem usar capacete (o q u e os obrigaria a tirar o turbante que
usam por razões religiosas), m a s de resto objetivam a integração na sociedade
mais ampla, os segundos d e m a n d a m essencialmente direitos de autogover-
no. 1 8 (Não é difícil perceber que a motivação central de Kymlicka é a de pro-
por uma teoria normativa que fortaleça as demandas de "reconhecimento" das
minorias nacionais, em particular da minoria quebequense do Canadá.)
A distinção d e Kymlicka é e m p i r i c a m e n t e questionável. Ele
próprio r e c o n h e c e um importante contra-exemplo, o d o s negros ameri-
canos, que n ã o p o d e m ser classificados n e m c o m o minoria imigrante nem
c o m o minoria nacional (a m e s m a coisa v a l e para os negros b r a s i l e i r o s ) . "

Kymlicka, Multicultural Clllzeiulilp, pp, 10-18.


16
Ibid., p. vii.
17
" C h i c a n o s " são os habitantes de língua espanhola do território que os E U A conquistaram
do M é x i c o no século X I X .
18
Kyruliclca, op. cll., pp. 30-31.
" Ibid., pp. 58-60.
I

LUA NOVA N* 55-56— 5002

A teoria multiculturalista de Kymlicka. deixa de fora a q u e l e q u e 6 o c a s o


mais importante de d i s c r i m i n a ç ã o d e t r u p o e m países c o m o os E U A e o
Brasil 2 0 - caso esse e m q u e , c o m o foi v i s t o acima, a cultura n ã o constitui
o fator central da d e s v a n t a g e m d e g r u p o . M a s , m e s m o d e i x a n d o - s e d e lado
e s s e p r o b l e m a , sení a teoria multiculturalista da identidade de g r u p o váli-
da para os g r u p o s étnicos (no sentido d e K y m l i c k a ) e m i n o r i a s nacionais?
Barry acha q u e não, o u p e l o m e n o s q u e os e x e m p l o s de g r u p o s q u e se
d e f i n e m por u m a cultura ou f o r m a de vida c o m p a r t i l h a d a são b e m m e n o s
Pmf.Dr.Jame Cunha n u m e r o s o s d o q u e os multiculturalistas i m a g i n a m . N o c a s o d o s E U A , os
FCS/IFCH/UFPA g r u p o s "étnico-culturais" a o s quais K y m l i c k a se refere h o j e são d e f i n i d o s
muito m a i s por u m critério de d e s c e n d ê n c i a d o q u e p o r u m critério cultu-
ral (CE, p. 82). Além disso, n o passado a etnicidade n o s E U A foi m u i t o
m a i s u m f e n ô m e n o político d o q u e u m f e n ô m e n o cultural:

D e meados d o século X I X a m e a d o s d o século X X , a f u n ç ã o mais


importante das identidades étnicas foi a de constituir os e l e m e n -
tos básicos da competição eleitoral nas principais cidades: , se os
irlandeses c o n s e g u i a m controlar a máquina democrata, eles podi-
am monopolizar a patronagem q u e estava à disposição d o City
Hall [governo municipal]; se os italianos se organizavam a ponto
de terem d e ser incluídos na chapa democrata, eles c o n s e g u i a m
participar da dança q u a n d o chegava o m o m e n t o de dividir as
prebendas, e assim por diante. Mas, à parte os pedidos d e autor-
ização para os desfiles de St. Patrick's Day e C o l u m b u s Day, não
f a z i a m quaisquer d e m a n d a s às políticas públicas q u e f o s s e m
baseadas e m distinção cultural. E tampouco tinham qualquer
razão para fazer isso. Dessa forma, a politização da etnicidade era
u m instrumento na luta para conseguir mais dos bens desejados
t a m b é m por quase todos os demais, tais c o m o e m p r e g o s seguros
e (em r e a ç ã o ao nível d e qualificação exigida) b e m pagos. Isso
nada tinlja a ver c o m demandas à c o m u n i d a d e política c o m o
propósito de garantir a capacidade d e perseguir objetivos idios-
sincráticos gerados p o r pecularidades culturais." (CE, p. 314)

20
Chandran Kukathas, conhecido por suas posições contrírias a direitos culturais, aponta u m
número significativa de minorias discriminadas no mundo que não se encaixam bem na classifi-
cação proposta e c o m respeito às quais, por isso, a teoria de K y m l i c k a não oferece muita orien-
tação sobre o que deveria ser feito (reconhecer "direitos poli-étnicos"? Reconhecer direitos de
autogovemo?). Chandran Kukathas. " M u l t i c u l t u r a i i s m as Faimess: W i l l K y m ! i c k a ' s
Multicultural Citlzenship', The Joumal of Polilical Philoloplty, 5, 1997,4: pp. 406-427.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 440

Chandran Kukathas diz algo semelhante sobre uma variedade d e


grupos minoritários: com freqüência a identificação do grupo - mesmo n o
caso de minorias nacionais - pode ser determinada muito mais por fatores
políticos (tais c o m o a utilização de peculiaridades étnicas e culturais para
tomar o grupo mais competitivo politicamente) do que pela homogeneidade
cultural. 2 1 A discussão de Kymlicka sobre a etnicidade c o m o u m fenômeno
cultural pode ser muito mais enviesada do que ele supõe pelo caso canadense.
E, m e s m o quando há componentes culturais presentes na identidade d e u m
determinado grupo, isso não significa que a desvantagem social desse grupo
não possa ser explicada de u m a outra forma d o que pela "privação de reco-
nhecimento": "os grupos podem sofrer de privação material, de falta de opor-
tunidades iguais e de discriminação direta, e não há nenhuma razão para supor
que essas desvantagens derivem da possessão de uma cultura diferenciada,
m e s m o quando eles a têm (o q u e muitas vezes não é o caso)" (CE, p. 315).
A crítica mais importante ao multiculturalismo é a de que ele
desvia nossa atenção daqueles q u e são os fatores m a i s significativos d e
d e s v a n t a g e m social dos grupos discriminados. Fazer isso foi a s s u m i d o pro-
g r a m a t i c a m e n t e por íris Young, q u a n d o ela afirma, logo nas páginas ini-
ciais de seu livro de 1990, q u e seu propósito central era deslocar o que ela
d e n o m i n a "paradigma distributivo" sobre a j u s t i ç a social. 2 2 O q u e é intri-
gante é que essa perspectiva passe c o m o s e n d o u m a teoria política mais
igualitária ou mais radical d o q u e o liberalismo igualitário.

DIREITOS DE GRUPO

O q u e foi dito na seção anterior sobre a d i s c r i m i n a ç ã o sofrida


pelos negros pode ser estendido para a interpretação das desvantagens so-
ciais de outros grupos minoritários tais c o m o a s m u l h e r e s - " m i n o r i a " aqui
não é um t e r m o m u i t o apropriado - e os h o m o s s e x u a i s e para as f o r m a s d e
lidar c o m e s s e problema por m e i o da ação pública. Para íris Young ino-
vações institucionais tais c o m o o reconhecimento da união civil entre
h o m o s s e x u a i s entram na categoria de "meros direitos civis". P a r a ela o q u e
realmente importa é o reconhecimento de u m a especificidade cultural e d o
valor de u m a f o r m a de vida:

21
Kukathas, op. cit., p. 4 1 6 .
22
Íris Y o u n g , Justice and the Politics of Difference, cap. 1. É u m a outra discussão a de
avaliar o que Y o u n g denominou "paradigma distributivo" :
LUA NOVA N® 5 5 - 5 6 — 2002

A maior p a n e dos d e f e n s o r e s da liberação gay e lésbica hoje não


se e m p e n h a m m e r a m e n t e na conquista de direitos civis, mas na
a f i r m a ç ã o dos h o m e n s gayV e das lésbicas c o m o g r u p o s sociais
q u e têm experiências e perspectivas especificas. R e c u s a n d o - s e a
aceitar a definição d o m i n a n t e de sexualidade saudável e d e vida
familiar e práticas sociais respeitáveis, os m o v i m e n t o s d e libe-
ração de gays e lésbicas sentem orgulho e m ter criado e exibido

Prof.Dr. Jrne Cunha u m a autodefinição e uma cultura distintivas. Para os h o m e n s


gays e as lésbicas, o c o r r e s p o n d e n t e à integração racial é o típi-
FCS/IFCH/UFPA c o e n f o q u e liberal ã sexualidade, q u e tolera qualquer c o m p o r t a -
m e n t o desde seja mantido privado. O orgulho gay a f i r m a q u e a
identidade sexual é u m a questão de cultura e política, não
s o m e n t e u m " c o m p o r t a m e n t o " a ser tolerado ou proibido. 2 3

N ã o se trata aqui de avaliar um " e n f o q u e liberal" s e m mais, já


que isso deixa a m b í g u o se a referência é à perspectiva normativa q u e estou
c o n t r a p o n d o à política d o r e c o n h e c i m e n t o ou às práticas vigentes e m deter-
m i n a d a s s o c i e d a d e s liberais. 2 4 R e c a p i t u l e m o s os pontos centrais de
divergência entre liberais igualitários e teóricos do multiculturalismo c o m o
Young discutidos até aqui. Para os primeiros a origem da d e s v a n t a g e m
social d o s h o m o s s e x u a i s está e m u m a f o r m a d e discriminação direta, nesse
caso baseada na orientação sexual, q u e faz c o m eles tenham m e n o s daqui-
lo que d e v e ser propiciado a todos os cidadãos, a saber, direitos e oportu-
nidades iguais. E a f o r m a de enfrentar essa desvantagem consiste na
adoção de reformas institucionais que, por exemplo, garantam aos par-
ceiros d e uniões h o m o s s e x u a i s os m e s m o s direitos previdenciários e de
herança q u e os n ã o - h o m o s s e x u a i s têm, e e m m e d i d a s q u e c o m b a t a m a dis-
c r i m i n a ç ã o por orientação sexual n o acesso a posições ocupacionais. A
defesa dessas políticas se f u n d a e m uma norma moral d e tratamento c
respeito iguais e não em u m j u í z o sobre o valor moral d e u m a forma de
vida ou u m a cultura gay. E m q u e medida alguns homossexuais (os mili-
tantes de m o v i m e n t o s gays, por e x e m p l o ) se e m p e n h a r ã o ativamente na
afirmação de u m a identidade gay, ao passo que outros ( m e s m o tendo
" s a í d o d o armário") preferirão não fazê-lo, essas são escolhas q u e ficam
por conta da liberdade de associação e da responsabilidade q u e cada u m
deve ter pelos próprios objetivos e fins. N o j a r g ã o da teoria política nor-

23
tbid.. p. 161.
24
E m a l g u n s estados d o s E U A , ainda há leis que c r i m i n a l i z a m a h o m o s s e x u a l i d a d e .
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 17

mativa essas escolhas dizem respeito a " c o n c e p ç õ e s do b e m " , s o b r e as


quais u m Estado liberal j u s t o deve manter-se neutro.
Já a política multiculturalista, porque avalia q u e a f o n t e da
d e s v a n t a g e m d e muitos grupos é s o b r e t u d o d e natureza cultural, propõe,
c o m o remédio, o reconhecimento de distinções culturais. "Reconheci-
mento", aqui, significa q u e certos direitos d e v e r ã o ser garantidos a grupos
c o m o algo distinto dos direitos dos m e m b r o s individuais desses grupos. O s
direitos prezados pelos multiculturalistas não são direitos d e indivíduos,
mas s i m direitos de entidades coletivas definidas por atributos culturais. A
critica de Barry ao multiculturalismo p r o s s e g u e nos seguintes termos: além
de não ser solução para ao p r o b l e m a q u e se propõe a enfrentar, o da
d e s v a n t a g e m social de grupos discriminados, o remédio p r o p o s t o pela
"política da diferença" p o d e e n g e n d r a r n o v o s e graves p r o b l e m a s sociais e
políticos. O reconhecimento d e direitos d e grupos (nesse sentido cole-
tivista) pode ter dois efeitos interligados q u e só p o d e m ser vistos c o m o
negativos p o r aqueles q u e se p r e o c u p a m c o m a igualdade social: o de acen-
tuar a h o m o g e n e i d a d e e m e s m o a o p r e s s ã o d e m e m b r o s individuais dentro
dos grupos; e o de p r o m o v e r a conflitividade e o f a c c i o s i s m o entre grupos
à custa d o s atributos q u e seus m e m b r o s poderiam ter e m c o m u m .
C o m e c e m o s pelo primeiro desses dois efeitos. Conceder direitos
culturais a determinados grupos na prática significa conceder uma "carta
branca" para que seus chefes, líderes, elites ou militantes mais aguerridos
obriguem os membros desses grupos a se conformar ao figurino da identidade
coletiva reconhecida Kvvame Anthony Appiah, que alem de filósofo e estu-
dioso de religiões africanas (atualmente na Universidade de Princeton), é
negro e homossexual, critica a pressão multiculturalista para que uma pessoa
c o m o ele adote uma identidade negra e gay: "alguém que leva a autonomia a
sério se pergunta se não trocamos u m tipo dc tirania por outro. Se eu tivesse
de escolher entre o mundo d o armário e o m u n d o da liberação gay, ou entre o
m u n d o de A cabana do Pai Tomás e o m u n d o do Black Power, é claro que,
nos dois casos, escolheria a segunda alternativa. M a s eu preferiria não ter d e
escolher. Preferiria ter outras opções. A política do reconhecimento exige que
a cor da própria pele e que o próprio corpo sexual sejam reconhecidos publi-
camente de formas que são opressivas para aqueles que querem tratar sua pele
e seu corpo sexual c o m o dimensões pessoais d o eu". 2 5

25
K . A n ü i o n y Appiah. "Identily, Authenlicity, Survival: Multicultural Socielies and Social
Reproduction", ín A m y Gutmann (org.). Multiculturalism: Examining llie Polilics of
Rccognitlon (Princeton University Press, 1994), pp. 162-63.
18 LUA NOVA N- 55-56— 2002

A política d o r e c o n h e c i m e n t o p o d e ter i m p l i c a ç õ e s m u i t o
m e n o s p a l a t á v e i s a i n d a d o q u e e s s a p r e s s ã o m a i s ou m e n o s d i f u s a , da
qual A p p i a h se q u e i x a , p a r a a f i r m a r p u b l i c a m e n t e u m a i d e n t i d a d e coleti-
va n e g r a ou gay. Isso diz respeito à q u e l a s e x i g ê n c i a s e m que, c o m o diz
B a n y , a cultura é o p r o b l e m a , m a s n ã o é a s o l u ç ã o (CE, p. 318). E s s e s
são os c a s o s n o s q u a i s os g r u p o s (ou o s q u e f a l a m e m seu n o m e ) a p e l a m
a d i f e r e n ç a s c u l t u r a i s ou r e l i g i o s a s para tratar s e u s m e m b r o s d e f o r m a s
q u e v i o l a m princípios liberais d e j u s t i ç a e q u e e n v o l v e m d e s i g u a l d a d e s
p r o f u n d a s . O p r o b l e m a é q u e direitos c u l t u r a i s d e g r u p o s c o s l u m a m ser
r e i v i n d i c a d o s j u s t a m e n t e e m c a s o s d e s s e tipo. A o c o r r ê n c i a m a i s f r e -
q ü e n t e é a d e m i n o r i a s c u l t u r a i s , e m v á r i o s países o c i d e n t a i s , q u e q u e r e m
discrição para d a r j l i v r e c u r s o a p r á t i c a s tais c o m o a c l i t o r i d e c t o m i a , a
recusa a g a r a n t i r o p o r t u n i d a d e s e d u c a c i o n a i s iguais para a s m e n i n a s , o
c a s a m e n t o f o r ç a d o d e m e n i n a s d e 13 ou 14 anos, as n o r m a s d e s i g u a i s d e
divórcio (em q u e as m u l h e r e s i n v a r i a v e l m e n t e l e v a m a pior), a recusa a
a u t o r i z a r t r a n s f u s õ e s d e s a n g u e para c r i a n ç a s e m s i t u a ç ã o d e risco d e
vida, o s a c r i f í c i o ritual d c a n i m a i s d e f o r m a s q u e v i o l a m n o r m a s d e trata-
m e n t o h u m a n i t á r i o d o s a n i m a i s e p o r af a f o r a . C o m a e x c e ç ã o parcial d o
ú l t i m o ( e m q u e o q u e está e m q u e s t ã o é o b e m - e s t a r d o s a n i m a i s não-
h u m a n o s ) , e m t o d o s e s s e s e x e m p l o s a r a z ã o o f e r e c i d a para o r e c o n h e c i -
m e n t o d e direitos c u l t u r a i s é a v i o l a ç ã o d e n o r m a s d e respeito igual p e l o s
m e m b r o s i n d i v i d u a i s d e s s e s g r u p o s . C o n c e d e r direitos d i f e r e n c i a d o s a
entidades coletivas significa admitir que quaisquer formas de tratamento
d i s p e n s a d a s a o s m e m b r o s i n d i v i d u a i s d o s grupos p o d e r ã o ser j u s t i f i c a d a s
c m n o m e da p r e s e r v a ç ã o da i d e n t i d a d e coletiva.
Isso p o d e s e r p e r c e b i d o até m e s m o n a q u e l e q u e p o d e r i a pare-
cer o c a s o m a i s i n ó c u o dc r e c o n h e c i m e n t o q u e c o s t u m a ser d i s c u t i d o por
teóricos c o m o T a y l o r e K y m l i c k a : o d o Q u e b e c . C o n f e s s o q u e n ã o c o n s i -
g o e n x e r g a r m u i t o b e m o n d e r e s i d e o interesse teórico m a i s geral pela
sorte d o Q u e b e c , quer a m a i o r i a d e s e u s h a b i t a n t e s d e c i d a q u e é m e l h o r
conquistar u m âmbito maior de autogoverno dentro do Estado canadense,
quer a o p ç ã o final a c a b e s e n d o m e s m o a da s e c e s s ã o . C o m o B a r r y o b s e r -
va, n ã o há u m a teoria e s p e c i f i c a m e n t e liberal para lidar c o m os p r o b l e -
mas d e f r o n t e i r a s políticas de u m a f o r m a f u n d a m e n t a d a ( C E , p. 135).
N ã o e x i s t e algo c o m o u m direito m o r a l d c u m a minoria n a c i o n a l se a u t o -
g o v e r n a r . Em q u e m e d i d a p r o b l e m a s de d i v e r s i d a d e religiosa, étnica ou
n a c i o n a l d e v e m ser e n f r e n t a d o s p o r m e i o de a r r a n j o s i n s t i t u c i o n a i s tais
c o m o o c o n s o c i a c i o n a l i s m o e o f e d e r a l i s m o , ou p o r m e i o de s e c e s s ã o ,
essas s ã o q u e s t õ e s à s quais só é p o s s í v e l d a r r e s p o s t a s p r a g m á t i c a s , t e n d o
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 19

e m vista qual é a s o l u ç ã o q u e m a x i m i z a as p o s s i b i l i d a d e s d e i m p l e m e n -
tação de princípios liberal-igualitários na(s) u n i d a d e ( s ) política(s) resul-
tante(s). Essa p o s i ç ã o é e s s e n c i a l m e n t e a m e s m a d e Robert Dahl e m
Democracy and Its Critics.26 EJara D a h l , c o m o para B a r r y , a teoria
d e m o c r á t i c a não o f e r e c e n e n h u m a s o l u ç o para e s s a s q u e s t õ e s no â m b i t o
d o s princípios. Só 6 possível avaliar as d i f e r e n t e s alternativas d e u n i d a d e
política p r o p o s t a s c o m b a s e nas p e r s p e c t i v a s q u e c a d a u m a d e l a s o f e r e c e
para a s o b r e v i v ê n c i a da d e m o c r a c i a .
M a s há u m a s p e c t o da política d o Q u e b e c d e p r e s e r v a ç ã o da
cultura f r a n c e s a q u e constitui u m e x e m p l o d o p r o b l e m a q u e e s t a m o s
e x a m i n a n d o . T r a t a - s e da lei d o Q u e b e c q u e p e r m i t e q u e os c a n a d e n s e s
a n g l ó f o n o s (residentes no Q u e b e c ) e n v i e m s e u s Filhos a e s c o l a s d e língua
inglesa, m a s p r o í b e os c a n a d e n s e s f r a n c ó f o n o s c i m i g r a n t e s estrangeiros
de f a z ê - l o . E m " T h e Politics of R e c o g n i t i o n " , C h a r l e s T a y l o r critica o
" l i b e r a l i s m o c e g o a d i f e r e n ç a s " p o r n ã o a c o m o d a r políticas d e s s e teor,
concebendo u m a variante de liberalismo ("hospitaleiro a diferenças") que
dispensaria a n o r m a de n e u t r a l i d a d e estatal diante d e c o n c e p ç õ e s da b o a
vida e q u e aceitaria q u e " u m a s o c i e d a d e c o m o b j e t i v o s coletivos fortes
p o d e ser liberal". 2 7 U m p o u c o adiante, neste m e s m o ensaio, T a y l o r afir-
ma que, para a v e r s ã o de l i b e r a l i s m o praticado p e l o g o v e r n o d o Q u e b e c ,
e q u e ele p r ó p r i o d e f e n d e , "a s o c i e d a d e política n ã o é neutra e n t r e aque-
les q u e v a l o r i z a m se m a n t e r e m fiés à cultura d e n o s s o s ancestrais e aque-
les q u e p o d e m q u e r e r se liberar disso e m n o m e d e a l g u m o b j e t i v o indi-
vidual de autodesenvolvimento".28
É difícil concordar c o m Taylor q u e ele realmente tenha con-
f r o n t a d o os méritos relativos de duas variantes distintas de liberalismo. O
liberalismo igualitário aceitaria e até m e s m o r e c o m e n d a r i a a intervenção
pública n o sentido de tomar a opção pela língua f r a n c e s a e pela cultura
f r a n c ó f o n a a o alcance de todos aqueles q u e desejassem fazer uso delas n o
Quebec. U m a política desse teor seria p e r f e i t a m e n t e c o m p a t í v e l com a
f o r m a d e neutralidade perante as c o n c e p ç õ e s d o b e m q u e u m E s t a d o libe-
ral j u s t o d e v e garantir. O q u e não é compatível c o m a neutralidade liberal
é a suposição d e q u e é legítimo coagir os f r a n c o - c a n a d e n s e s e imigrantes
que prefeririam u m a e d u c a ç ã o e m inglês (ou talvez bilingüe) a m a n d a r seus
filhos a escolas d e língua francesa, c o m b a s e na suposição d e q u e essa

26
Robert D a h l , Democracy and lis Critics (New Haven, Y a l e University Press, 1989).
27
Charles Taylor. " T h e Politics of Recognition", p. 59.
28
Ibid., p. 58.
20 LUA NOVA N " 5 5 - 5 6 — 2002

política é necessára à sobrevivência indefinida da cultura francesa no


Q u e b e c . A política q u e Taylor está atrifcuindo a um liberalismo "tolerante
às diferenças culturais" nada tem d e ^ l g u m a coisa q u e ainda se possa
r e c o n h e c e r c o m o liberal: trata-se, isso sim, d e justificar violações aos direi-
tos de liberdade individual de pessoas da geração presente apelando-se ao
"direito" q u e u m a entidade coletiva, a identidade francesa do Quebec, teria
d e existir, digamos, daqui a d e z gerações.

Proj.Dr. Jaime Cunha Para os liberais igualitários, é importante prover os indivíduos


c o m u m c o n t e x t o apropriado de escolha e é dessa f o r m a que a ação públi-
FCS/IFCH/UFPA c a que objetiva preservar a diversidade cultural - o acesso à língua france-
sa, no c a s o - deve ser interpretada. M a s s ã o características do bem-estar de
indivíduos que constituem a fonte última d e valor moral e q u e justificam a
intervenção pública. E essa intervenção se limita a oferecer oportunidades,
q u e p o d e r ã o ou não ser aproveitadas pelos indivíduos. S e u m a política
desse tipo é implementada, nada garante q u e u m a identidade coletiva
f r a n c ó f o n a vai existir no Q u e b e c daqui a dez gerações. Isso dependerá do
valor q u e sucessivas gerações de q u e b e q u e n s e s atribuirão a preservar tal
identidade. Já o tipo de política praticada p e l o Q u e b e c , que T a y l o r vê c o m
b o n s olhos, parte da suposição de q u e a f o n t e última de valor moral encon-
tra-se em u m a individualidade fictícia 2 9 - o grupo, tal c o m o definido por
atributos culturais - cuja existência continuada no t e m p o justificaria coagir
as escolhas d o s m e m b r o s individuais d o grupo.
Acredito que Taylor reagiria c o m indignação à sugestão de que
seus argumentos em f a v o r da política d o Q u e b e c de coagir os m e m b r o s d o
grupo f r a n c ó f o n o (e imigrantes estrangeiros) "a se manterem fiés à cultura
de nossos ancestrais" p o d e r i a m ser e m p r e g a d o s para defender o reconhe-
cimento das distinções culturais muito m a i s objetáveis q u e mencionei
alguns p a r á g r a f o s acima. M a s a racionalidade justificatória das medidas
relativas a grupos 6 essencialmente a m e s m a . Tratar o b e m de grupos, e não
os aspectos moralmente relevantes d o b e m - e s t a r individual, c o m o aquilo
q u e tem valor intrínseco implica autorizar violações aos direitos de m e m -
bros individuais - o que, ademais, afeta desproporcionalmente os m e m b r o s
m a i s vulneráveis d o grupo, tais c o m o as m u l h e r e s e as crianças ~ e m n o m e
da preservação de uma identidade coletiva. Para Barry, e creio q u e ele não

29
" F i c t í c i a " porque uma individualidade coletiva n ã o tem n e n h u m dos atributos nos quais
usualmente n o s baseamos para atribuir s i g n i f i c a d o moral eo bem-estar de i n d i v í d u o s : a
capacidade de decidir o que 6 certo e o que 6 errado, de sentir prazer e dot, de fazer planos,
de sentir frustração o u h u m i l h a ç ã o e a s s i m p o r diante.
LlBf.HALlSMO E MLTLTICUl.TmAi.ISMO 21

poderia estar mais certo a esse respeito, longe de levar a u m tratamento


igualitário d e diferenças culturais, isso é receita de opressão de grupo.
Excluindo-se os casos e m que a cultura não é o p r o b l e m a e os
c a s o s e m que, apesar da cultura ser o problema, definitivamente ela não é
a solução, o q u e resta da "política d o r e c o n h e c i m e n t o " ? N ã o muito, a o q u e
parece. É verdade que Barry esboça algo q u e ele d e n o m i n a u m a "teoria
liberal dos direitos de g r u p o s " (CE, pp. 146-154). M a s essa d e n o m i n a ç ã o
parece equívoca, já q u e essa teoria nada tem a ver c o m o r e c o n h e c i m e n t o
público de distinções culturais e identidades coletivas q u e os multicultu-
ralistas têm e m mente. D o q u e se trata, para Barry, é de c h e g a r a princípios
q u e se apliquem aos grupos igualmente e que permita tratar os g r u p o s da
mesma forma. Vejamos b r e v e m e n t e c o m o isso se passa.
A teoria de Barry dos direitos d e minorias culturais e religiosas
se assenta e m duas idéias básicas. U m a delas é a liberdade de associação.
Voltando a u m tópico que m e n c i o n e i de p a s s a g e m no início deste artigo, o
liberalismo igualitário é u m a doutrina política sobre o uso m o r a l m e n t e
legítimo da c o e r ç ã o coletiva da sociedade q u e não apela ao valor da
a u t o n o m i a individual - ainda q u e e s s e possa ser o valor s u p r e m o para
a l g u m a variante de "liberalismo abrangente". P r o m o v e r a a u t o n o m i a indi-
vidual c o m o u m a f o r m a d e vida n ã o é assunto de u m Estado liberal justo.
O q u e é assunto de tal E s t a d o é a garantia d e condições institucionais, entre
as quais a liberdade de associação, q u e a s s e g u r e m u m tratamento eqüitati-
v o aos adeptos de diferentes c o n c e p ç õ e s d o bem e f o r m a s de vida. E o
c o m p r o m i s s o com a liberdade de associação "inclui a liberdade de asso-
ciação para grupos cujas n o r m a s seriam intoleráveis caso tivessem por trás
o poder político, mas que são aceitáveis d e s d e q u e a filiação ao g r u p o seja
voluntária" (CE, p. 150). D o ponto de vista político, portanto, a pree-
minência c a b e à liberdade d e associação, n ã o à autonomia individual, o que
significa dizer que u m a variedade de grupos minoritários d e v e ter, dentro
de certos limites muito a m p l o s 5 0 , discrição para p r o m o v e r f o r m a s d e vida
nas quais u m valor s u p r e m o é atribuído à verdade revelada, a práticas tradi-
cionais e à obediência à autoridade hierárquica ou patriarcal. A liberdade
de associação, além disso, se estende a p o n t o d e incluir a "liberdade de
recusar a s s o c i a ç ã o " ( C E , p. 151), isto é, o direito q u e os grupos têm de
excluir os m e m b r o s q u e d e i x a m de professar as c o n v i c ç õ e s e a identidade
q u e são considerados vitais para a sobrevivência d o grupo.

50
Q u e excluem a violação de direitos fundamentais dos membros dos grupos, c o m o ocorre
em vários dos exemplos que foram considerados acima.
22 LUA NOVA N- 55-56— 2002

A s e g u n d a idéia b á s i c a d c y e n f o q u e p r o p o s t o p o r B a r r y d i z
r e s p e i t o à c l á u s u l a q u e a p a r e c e n o t r e c h o q u e citei n o p a r á g r a f o - é p r e -
c i s o q u e a filiação a o g r u p o seja voluhfária. Afirmar que a participação
d e v e ser voluntária não significa dizer, c o m o m u i t o s s u p õ e m , q u e os li-
berais i g n o r a m a c e n t r a l i d a d e q u e v í n c u l o s d e n a t u r e z a n ã o - v o l u n t á r i a
têm na v i d a d e m u i t a s p e s s o a s . O b v i a m e n t e , u m a p e s s o a n ã o a d e r e v o -
l u n t a r i a m e n t e à f a m í l i a o u à c o m u n i d a d e étnica ou n a c i o n a l e m q u e
nasceu c f o i criada.! M a s d o p o n t o d e vista político, a p a r t i c i p a ç ã o e m u m
g r u p o c o n t a c o m o [ ' v o l u n t á r i a " se o p o r t u n i d a d e s s u f i c i e n t e s e a p r o p r i a -
d a s d e saída s ã o a s s e g u r a d a s . E s s a não é u m a p r e o c u p a ç ã o p r o e m i n e n t e
e n t r e os a d e p t o s djo m u l t i c u l t u r a l i s m o , j á q u e s u a s r e c o m e n d a ç õ e s d e
política a c a b a m e n f o c a n d o s o m e n t e a l i b e r d a d e ( d o g r u p o ) de r e c u s a r
a s s o c i a ç ã o . M a s é j p r e c i s o q u e seja, s u s t e n t a Barry, u m a p r e o c u p a ç ã o
p r o e m i n e n t e para os liberais igualitários, q u e p r e z a m n ã o s o m e n t e a
a u t o n o m i a d o g r u p o d e g e r i r s e u s a s s u n t o s internos d e a c o r d o c o m s e u s
próprios valores e normas mas também a proteção de m e m b r o s indivi-
duais contra a opressão do grupo.
Sustentar q u e a o p ç ã o d e " s a í d a " d e v e estar disponível tem impli-
c a ç õ e s que vão além do q u e dizer q u e e m u m a sociedade liberal a apostasia
não é tratada c o m o u m crime. H á circunstâncias e m q u e os custos d e saída
são inaceitáveis para u m dissidente, para u m e x c o m u n g a d o ou para u m
apóstata. Isso ocorre q u a n d o a saída d o g r u p o p õ e e m risco a própria sobre-
viência d o e x - m e m b r o . E minimizar tanto q u a n t o possível esses custos, e m
casos desse tipo, constitui u m objeto apropriado de ação pública. Barry f a z
u m e s f o r ç o para identificar os diferentes tipos de custo q u e u m a pessoa p o d e
enfrentar q u a n d o abandona ou é expulsa de u m grupo, c o m o propósito d e
discernir aqueles para os quais deveria haver alguma f o r m a d e c o m p e n s a ç ã o
(CE, pp. 150-54). Essa discussão tem implicações importantes para a políti-
ca pública e para as decisões judiciais, mas c o n c e n t r e m o - n o s aqui s o m e n t e
na idéia central. Esta p o d e ser percebida tendo-se p o r referência aquele
grupo q u e c o m freqüência é t o m a d o c o m o protótipo d e c o m u n i d a d e : a
família. N o s casos de violência doméstica, não basta a s s e g u r a r às m u l h e r e s
o direito legal de se separar d o marido (em a l g u m a s sociedades, n e m m e s m o
isso é garantido); para q u e os custos d e saída n ã o sejam inaceitáveis, é pre-
ciso q u e as mulheres tenham u m a f o r m a d e sobreviver fora d o g r u p o f a m i -
liar. Isso requer políticas públicas n o sentido de propiciar albergues e renda
substitutiva para mulheres espancadas. S e m isso, n ã o se p o d e dizer q u e a
o p ç ã o d e saída de fato esteja disponível e q u e a participação n o g r u p o f a m i -
liar d e fato seja voluntária.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 23
%
tei

A estratégia de Ватту parece ser a de partir desse caso m a i s níti-


d o (o da violência doméstica) para tratar de uma variedade de outros casos
nos quais se justifica impor ao grupo o ônus d e prover u m a forma apropri-
ada d e c o m p e n s a ç ã o a u m e x - m e m b r o . Essa forma de intervenção é
necessária para assegurar que a filiação a o g r u p o de f a t o seja voluntária e
constitui a outra face, inteiramente negligenciada pelos adeptos da "política
d o reconhecimento", do direito q u e os grupos d e v e m ter de gerir seus negó-
cios internos d e acordo c o m seus próprios valores e identidade coletiva.

NACIONALIDADE CÍVICA

Disse acima q u e a política de reconhecer direitos diferenciados


de grupos pode ter um s e g u n d o efeito negativo. A c e n t u a r os atributos que
diferenciam os m e m b r o s de diferentes g r u p o s pode g e r a r u m resultado que
é oposto às intenções d o multiculturalismo: ao invés d e p r o m o v e r a to-
lerância pela diversidade cultural, p o d e f o m e n t a r o f a c c i o s i s m o e o confli-
to entre grupos. Ватту m e n c i o n a , a esse respeito, uma o b s e r v a ç ã o de Ralph
Grillo no sentido d e que as medidas de teor multiculturalista colocadas em
prática na Grã-Bretanha, q u e t e n c i o n a v a m "legitimar a heterogeneidade na
cultura nacional britânica", acabaram p o r f o m e n t a r o f u n d a m e n t a l i s m o
religioso e o separatismo (CE, p. 129).
Simpatizantes d o multiculturalismo, c o m o Charles Taylor, pare-
c e m supor que há u m a afinidade natural entre a "política da d i f e r e n ç a " e
u m a noção de valor igual das culturas. 3 1 E se há um vínculo dessa natureza,
seria plausível supor que a primeira d e fato promove o respeito mútuo entre
os membros de grupos culturais distintos. M a s Ватту evidencia u m proble-
ma nessa suposição de afinidade que talvez a j u d e a explicar por que a
"política da diferença" parece gerar resultados q u e s ã o inversos aos deseja-
dos. Sc as medidas multiculturalistas objetivam reconhecer identidades cul-
turais e coletivas naquilo que elas têm de diferente entre si, onde, precisa-
mente, se encontra o suporte para a idéia - q u e de f a t o corresponde a u m
valor universalista - de q u e as culturas t ê m u m valor igual? 3 2 " O problema
inescapável", diz В а л у , " é o de q u e as culturas t ê p u m c o n t e ú d o proposi-
cional. É u m aspecto inevitável d e qualquer cultura o de necessariamente
I
31
T a y l o r , " T h e Política o f R e c o g n i t i o n " , p. 42,
32
U m p r o b l e m a s e m e l h a n t e s e a p r e s e n t a na d i s c u s s ã o d e W a l z e r s o b r e a t o l e r â n c i a , e m
Splieres of Justice ( O x f o r d , B l a c k w e l l , 1 9 8 3 ) e o u t r o s d e s e u s e s c r i t o s .
UM HOV/I N* 55-56— 2002

incluir idéias no sentido de q u e a l g u m a s crenças são verdadeiras e outras


são falsas, algumas coisas são certas e outras, erTadas" (CE, p. 270). Se sou
adepto de uma seita religiosa que a b o m i f y a homossexualidade, e sou enco-
rajado a afirmar a distinção cultural do meu gropo, c o m o é possível q u e eu
ao m e s m o t e m p o afirme o valor de uma f o r m a de vida gay? A noção de
valor igual das culturas certamente encontra-se na cabeça dos teóricos mul-
ticulturalistas, mas essa n o ç ã o não é u m a verdade e m nenhuma cultura e não
encontra - e n e m teria c o m o encontrar - suporte nas medidas específicas a
Prof.Dr. Jaime Cuàa grupos por eles propostas. Essas medidas constituem simplesmente uma
rcS/IFCH/UFPA receita para encorajar a divisão e o conflito entre grupos.
Levada a seus extremos, a "política da diferença" levaria a
algum arranjo s e m e l h a n t e ao sistema de g r u p o s comunitários a u t o g o v e m a -
dos q u e subsistiu por longo t e m p o n o I m p é r i o O t o m a n o . Barry especula se
esse sistema (trata-se a s s u m i d a m e n t e de uma especulação) de manter
minorias étnicas e religiosas v i v e n d o em universos paralelos não teria algu-
m a relação c o m o fato de q u e os m a i s terríveis conflitos étnicos do século
X X t e n h a m ocorrido j u s t a m e n t e n o território q u e era abrangido pelo
Império O t o m a n o (CE, p. 88).
Em c o n t r a s t e c o m a política d e realçar e eternizar d i f e r e n ç a s
culturais, a política d o " r e s p e i t o e da a t e n ç ã o i g u a i s " sustenta que o f o c o
da a ç ã o p ú b l i c a d e v e recair n o s a t r i b u t o s q u e os c i d a d ã o s têm ou p o d e m
ter e m c o m u m . Vou finalizar este a r t i g o c o m e n t a n d o duas c o n d i ç õ e s q u e ,
para B a r r y , são r e q u e r i d a s p o r essa n o r m a d e respeito e a t e n ç ã o iguais.
U m a d e l a s é r e l a t i v a m e n t e i n c o n t r o v e r s a para os liberais igualitários,
ainda q u e n ã o o seja p a r a o u t r a s v a r i a n t e s de l i b e r a l i s m o e e n c o n t r e
i m e n s o s o b s t á c u l o s políticos p a r a ser c o l o c a d a e m prática. Barcy a
d e s c r e v e dessa f o r m a :

N ã o podemos esperar q u e os resultados da política democrática


s e j a m justos e m uma sociedade q u e contém um grande n ú m e r o
de pessoas q u e não têm n e n h u m senso de empatia para c o m seus
concidadãos e n e n h u m a identificação c o m sua sorte. Esse senso
d e solidariedade é f o m e n t a d o p o r instituições c o m u n s e por uma
distância entre as rendas q u e seja limitada o suficiente para
impedir as pessoas de supor - e c o m certa razão - q u e elas
p o d e m escapar d o destino c o m u m c o m p r a n d o sua saída do sis-
tema de educação, de saúde, d e policiamento e de outros
serviços públicos d o s quais seus c o n c i d a d ã o s m e n o s afortuna-
dos são obrigados a depender. (CE, p. 79)
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 25

A s questões públicas suscitadas por essa primeira c o n d i ç ã o são


as que recaem n o â m b i t o tradicional da justiça distributiva e, sobretudo em
u m a sociedade c o m o a brasileira, elas são extraordinariamente mais rele-
vantes d o q u e as questões típicas de r e c o n h e c i m e n t o d e distinções cultu-
rais. 3 3 M a s aqui vou m e concentrar u m p o u c o mais na segunda condição
m e n c i o n a d a por Ватту, j á q u e ela p o d e ser controversa m e s m o para aque-
les q u e aceitam u m a c o n c e p ç ã o liberal-igualitária d e j u s t i ç a distributiva. 3 4
E m estados poli-étnicos (e hoje quase não há os q u e não o são), só é de se
esperar q u e a d e m o c r a c i a liberal produza resultados j u s t o s se os cidadãos
compartilharem d e u m c o n j u n t o d e atitudes uns pelos outras que В а л у
d e n o m i n a u m sentido d e "nacionalidade c í v i c a " ou d e "patriotismo cívico"
(CE, pp. 80-81). Esse c o n j u n t o de atitudes q u e seria desejável p r o m o v e r
nos cidadãos é algo q u e ocupa u m a posição intermediária entre u m
nacionalismo étnico ou cultural e a c o n c e p ç ã o que H a b e r m a s d e n o m i n o u
"patriotismo da Constituição". Trata-se, de u m a parte, d e dissociar a idéia
de cidadania igual da assimilação d e todos a u m a cultura específica; de
outra, é desejável q u e exista u m a identificação entre os c i d a d ã o s de uma
c o m u n i d a d e política liberal-democrática mais forte d o q u e aquela q u e a
concepção de H a b e r m a s deixa entrever.
E s s e é mais u m ponto de divergência c o m os multiculturalistas.
P r e o c u p a d o s c o m o estão c o m o r e c o n h e c i m e n t o de identidades coletivas
de grupos, eles a d o t a m u m a c o n c e p ç ã o de nacionalidade c o m u m q u e , para
Barry, vai p o u c o além daquilo que está escrito nos passaportes. M a s sem
que u m sentido c o m u m d e pertencer a u m a m e s m a c o m u n i d a d e política se
desenvolva entre os cidadãos, não é de se esperar q u e a discriminação étni-
ca (ou coisa pior) possa ser evitada. A s atitudes que Barry associa à sua
c o n c e p ç ã o mais substancial de nacionalidade s ã o as seguintes: " é preciso
ser universalmente r e c o n h e c i d o q u e os interesses de todos c o n t a m por
igual, e q u e não há grupos c u j o s m e m b r o s tenham seus pontos d e vista
automaticamente ignorados. I g u a l m e n t e importante é a disposição da parte

33
L e v a n d o - s e e m c o n t a t a m b é m o q u e foi d i t o a c i m a s o b r e as f o r m a s d e d e s v a n t a g e m social
e n v o l v i d a s na d i s c r i m i n a ç ã o d e n e g r o s , m u l h e r e s e h o m o s s e x u a i s , eu m e arriscaria a d i z e r q u e
as q u e s t õ e s típicas d e r e c o n h e c i m e n t o f i c a m c o n f i n a d a s , n o Brasil, à f o r m a de lidar c o m o s
grupos indígenas. Isso não significa dizer q u e não tenham importância, mas sim que não
d i z e m r e s p e i t o à i n t e r p r e t a ç ã o das f o r m a s m a i s i m p o r t a n t e s d e d e s v a n t a g e m social da main-
stream d a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a .
34
E x a m i n o e s t a c o n c e p ç ã o e m d e t a l h e e m m e u A justiça igualitária e seus críticos (São
P a u l o , E d i t o r a da U n e s p , 2 0 0 0 ) , c a p . 6.
26 LUA NOVA N- 55-56— 2002

d o s c i d a d ã o s de f a z e r sacrifícios p e l o b e m c o m u m - o q u e , é claro, pres-


s u p õ e q u e eles são c a p a z e s d e r e c o n h c c t r u m b e m c o m u m . A l é m disso, n ã o
é s u f i c i e n t e q u e os c i d a d ã o s d e fato se o j s p o n h a m a f a z e r sacrifícios; lam-
b e m é p r e c i s o q u e eles t e n h a m expectativas f i r m e s uns e m relação a o s out-
ros n o q u e diz respeito a abijf m ã o de dinheiro, d e lazer e talvez m e s m o da
própria vida c a s o as circunstâncias Ъ e x i j a m " (CE, p. 80). F o m e n t a r essas
atitudes requer, entre outras coisas, u m a e d u c a ç ã o cívica vigorosa, algo q u e
não está distante - e x c e t o n o q u e se refere a exigências igualitárias m a i s
fortes - da c o n v i c ç ã o n o r t e - a m e r i c a n a de cerca de u m século atrás, segun-
d o a qual o p a p e l d o sistema p ú b l i c o d e e d u c a ç ã o deveria ser o d e c o n v e r t -
e r imigrantes provenientes d a s m a i s diversas culturas e m c i d a d ã o s c a p a z e s
d e f a z e r as instituições de u m a d e m o c r a c i a liberal f u n c i o n a r e m . A idéia n ã o
é a de q u e singularidades culturais t e n h a m de ser a b a n d o n a d a s , m a s sim a
de q u e , p o r mais heterogêneos culturalmente que s e j a m , os c i d a d ã o s
p o d e m d e s e n v o l v e r as atitudes associadas à participação e m instituições
políticas c o m u n s . Isso é o o p o s t o d o sistema d e millet: ao p a s s o q u e neste
o p o d e r político se prestava a preservar identidades coletivas, e a m a n t ê - l a s
separadas, a c o n c e p ç ã o d e " n a c i o n a l i d a d e c í v i c a " dirige a ação pública
para f o m e n t a r os atributos q u e os c i d a d ã o s p o d e m compartilhar.
Finalizo l i m i t a n d o - m e a apontar u m a possível d i f i c u l d a d e c o m a
c o n c e p ç ã o d e patriotismo de Barry. Essa dificuldade n ã o diz respeito às
divergências c o m os multiculturalistas, mas s i m à c o m p a t i b i l i d a d e da con-
c e p ç ã o de " n a c i o n a l i d a d e c í v i c a " c o m as posições liberal-igualitárias cos-
m o p o l i t a s q u e o próprio Barry sustenta e m outros d e s e u s textos. 3 s U m a
p a s s a g e m relevante é a seguinte: " a s exigências d o c o s m o p o l i t i s m o , estou
sugerindo, seriam satisfeitas e m u m m u n d o n o qual as p e s s o a s ricas seriam
tributadas o n d e quer q u e v i v e s s e m e m b e n e f í c i o d a s p e s s o a s p o b r e s o n d e
quer q u e v i v e s s e m " . 3 6 N o m e s m o texto e m q u e esta p a s s a g e m aparece,
Barry p r o s s e g u e discutindo f o r m a s de « d i s t r i b u i ç ã o internacional - entre
países, não entre indivíduos - q u e n ã o c o l i d a m tão f r o n t a l m e n t e c o m o sis-
tema d e Estados vigente q u a n t o u m sistema tributário e d e transferências
interpessoal de alcance planetário. M a s m e s m o nas o p ç õ e s second best
examinadas, os c i d a d ã o s dos países ricos teriam consideráveis obrigações
de j u s t i ç a no m í n i m o e m relação àqueles que se e n c o n t r a m no quintil m a i s

35
V e r , p o r e x e m p l o , Brian Ватту, " I n t e r n a t i o n a l S o c i e t y f r o m a C o s m o p o l i t a n P e r s p e c t i v e " in
D a v i d M a i p c l с Т е п у N a r d i n ( o r g s . ) , Inlcmational Society ( P r i n c c t o n , P r i n c e t o n U n i v e r s i t y
Press, 1998). p p . 1 4 4 - 6 3 .
36
l b i d . , p . 153.
LIBERALISMO E MULT1CULTURALISMO 27

pobre d o planeta. C o m o vimos acima, Barry sustenta q u e não i de se espe-


rar que um regime libcral-democrático satisfaça a norma liberal-iguaiitiria
de respeito e atenção iguais se os cidadãos não compartilharem de uma
identidade coletiva densa que lenha por foco a comunidade política da qual
são membros. O problema é que essa comunidade política corresponde ao
Estado territorial. Será um patriotismo cívico que se expressa por meio de
Estados territoriais compatível c o m o reconhecimento de obrigações inter-
nacionais de justiça distributiva? Quando refletimos sobre as exigências da
norma de respeito e atenção iguais e m âmbito planetário, promover uma HkMmCunk
identificação forte dos cidadãos com o Estado territorial não seria somente k s / i f c h / u f p a
mais uma das formas de perpetuar identidades coletivas separadas e divisi-
vas q u e Barry critica na política multiculturalista? Oferecer julgamentos
apressados para questões complexas c o m o essas não ajuda muito. Mas não
há dúvida de que elas estão entre aquelas que os teóricos igualitários têm
de enfrentar. Espero ser capaz de contribuir para essa reflexão cm uma
outra oportunidade.

ALVARO DE VITA é professor


no Departamento de Ciência Política da USP
e pesquisador do CEDEC.
As contradições políticas do multiculturalismo

Danilo Martuccelli
Department de Sociologie, Université de Bordeaux II

Este artigo é uma primeira versão de um texto publicado


em livro sob a direção de Michel Wicviorka, La Découvorte, 1996.

A noção de "sociedade multicultural" depen- diferenças culturais, tanto regionais quanto comu-
de essencialmente de duas grandes perspectivas. nitário-classistas. 3
Para certos autores, designa um modelo prescritivo O interesse em examinar a idéia da sociedade
de integração, por vezes pós-nacional. Assim, di- multicultural é outro. Está no dilema moderno das
versos trabalhos, notadamente nos países anglo- identidades que a noção revela, nos problemas po-
saxões, visam a mostrar como uma sociedade pode líticos e nos impasses que ela põe em evidência. O
colocar sob controle a diferença cultural desde que problema determinante de uma sociedade multi-
proclame uma vigorosa separação entre o privado cultural é sempre a busca de uma nova articulação
e o público, 1 ou dela tire vantagens, 2 graças a me- entre a identidade e o político.
didas legislativas favoráveis à adoção da diversida-
de na escola ou na moradia. Para outros autores, Multiculturalismo e democracia
a sociedade multicultural é menos um modelo do
que uma propriedade das sociedades modernas, O multiculturalismo não adquire todo o seu
caracterizadas pela coexistência de diferentes gru- sentido a não ser ligado ao processo de moderni-
pos culturais ou étnicos. Isto constitui uma defini- zação e às suas conseqüências sobre a matriz de-
ção sem grande alcance: as sociedades nacionais de mocrática. 4 De fato, ele põe em questão a respos-
classe sempre foram, elas também, cruzadas por

3
Um caso extremo dessa distância encontra-se em
Hoggart, 1970.
4
1
Desta perspectiva, o debate entre o universalismo e
Cf. Rex, 3986. o pluralismo, de tão numerosas conseqüências, notadamente
2
Por exemplo, os debates apresentados em Britain: a no que diz respeito à integração das populações imigradas,
plural sociey, 1990. não é senão uma das dificuldades (e certamente não a mais

18 Mai/Jun/Jul/Ago 1996 N» 2
As contradições políticas do multiculluralismo

I |
ta democrática tradicional ao dilema identitário, a consciência institucional do triunfo de uma mo-
que ela garante sobretudo mediante seus dois prin- dernidade identificada com a Razão universal.
cípios que são a liberdade e a igualdade. Por um Nada de importante separa as grandes concep-
lado, supõe-se que a liberdade, indissociável da se- ções da democracia clássica: o ideal da democracia
paração entre público e privado, permite a expres- enquanto divergência consensual de opiniões; o ideal
são das identidades particulares fora do domínio que acreditava na possibilidade de pôr em evidên-
público. 0 espaço público, identificado com a ra- cia uma vontade unitária dos homens mediante re-
zão, protege as identidades eliminando-as da esfe- ' curso à livre deliberação; e a concepção "sociológica"
ra pública. Por outro lado, a igualdade, quaisquer ' ( que dela faz a representação institucional de relações
que sejam seus vínculos com a problemática da li- sociais antagônicas. A primeira concepção insiste na
berdade democrática, visa a uma repartição justa possibilidade de preservar um espaço público pro-
da riqueza produzida socialmente, independente- tegido da luta de classes, um espaço de discussão em
mente dos traços peculiares aos indivíduos. 5 que a concórdia dos homens se torne possível pela
Não há melhor resumo da articulação entre es- construção comunicacional de uma verdade harmo-
ses dois princípios do que o caráter universalizável niosa superior. A segunda dá ênfase às divisões es-
dos direitos. A democracia é o sítio por excelência truturais do corpo social, à existência de uma ten-
do universal, do Cidadão, no fundo uma das concep- são não eliminável que faz do conflito uma verdade
ções mais abstratas que se pode imaginar do vínculo permanente na vida coletiva. Duas posições contes-
social, em cujo seio todo substractum particular é tadas por todos os que não vêem na democracia mais
abandonado em favor de uma representação univer- do que um formalismo, ou uma trégua, portanto, no
sal, É próprio à democracia, em um país como a Fran- fundo, sempre uma espécie de fratura a ser supera-
ça, sua indiferença pelo problema identitário: clas- da. Ora, tanto a democracia-procedimento, quan-
sicamente, sempre se considera que ele se possa tra- to a democracia-divisão e a democracia-superação
duzir, via direitos universais, em problema civil ou concordam quanto ao caráter universal das deman-
em problema social. Nos dois casos, e não há nisso das sociais.' O burguês esclarecido ou o proletário
excesso de linguagem, os indivíduos possuem "perti- desumanizado não se opõem senão no interior de
nências", mas nunca "identidades". Ou, melhor di- uma concepção universal da política: considera-se
zendo, as formas pelas quais foram construídas as que ambos, um por encarnar a Razão, o outro, por
identidades sociais na democracia clássica têm sido estar privado de toda a identidade, ajam em nome
sempre subordinadas e informadas pela universa- da humanidade inteira. 7
lização das linguagens. N o fundo, a çlemocracia, em O multiculturalismo questiona, prática e inte-
sua acepção tradicional, notadamente na França, é lectualmente, esse implícito democrático, uma vez
que reivindicações particularistas têm por objeto
importante) de uma sociedade multicultural. De fato, o de- direitos que parecem dificilmente universalizáveis,
bate é uma versão secularizada e fin-de-sièçle da "guerra dos e que as demandas por elas formuladas questionam
deuses" weberiana. Certamente, o problema é de grande im- os limites institucionais fixados pela liberdade ne-
portância na medida em que, afinal, implica uma reflexão
sobre a existência ou não de Direitos do. Homem de cará-
ter universal. Mas esse debate, apesar de seu caráter dramá- 6
Cf. Macpherson, 1985.
tico e dc sua visibilidade atual, é apenas um dos pontos que 7
Unicamente às "margens" do sistema mundial é que
devem ser lembrados.
o problema identitário perturbou verdadeiramente a univer-
s
Dualidade de princípios que volta a encontrar-se nas salidade do jogo democrático. Desse ponro de vista, pode-
três dimensões da democracia admitidas por Touraine: ci- se entender o multiculturalismo como a importação para os
dadania, limitação do poder absoluto e representatividade; países "centrais" do antigo dilema identitário das "mino-
cf. Touraine, 1994. rias" colonizadas.

Revista Brasileira de Educação 19


Danilo Mariuccelli

gativa. Os indivíduos já não se satisfazem com uma nas diversas fases da história democrática, ou seja,
identidade privada e, a partir daí, a extensão do se a justiça consiste em dar aos homens em função
processo de individualização é acompanhada da de suas capacidades ou de suas necessidades, an-
afirmação pública das identidades. tes de se chegar a levar em conta o estilhaçamento
Durante muito tempo, a democracia alicerçou- dos princípios de justiça na sociedade moderna. 1 0 O
se, na França, no recalque das identidades particula- essencial é que a idéia da igualdade entre todos os
res e na construção de sujeitos coletivos universais, homens significa que os indivíduos são considera-
a liberdade e a igualdade, que supõem o abandono dos iguais e tratados como tais com referência a
de toda a demanda identitária não universalizável qualidades consideradas constitutivas da "nature-
no domínio público. 8 O que ela propunha não era za" humana — a razão, a responsabilidade moral,
negar a diversidade social (toda a política moder- a liberdade. Essa idéia é reguladora. Historicamen-
na é consagrada a opor-se a esse processo), mas sim te, ela jamais ignorou as diferenças de "natureza",
impor uma linguagem institucional que obrigasse mas tornou-se a exigência moral segundo a qual
sua tradução em termos universais. Mas, a partir todos os homens devem ser tratados, enquanto ci-
de então, mudanças importantes de orientação são dadãos, da mesma maneira. De sua perspectiva, as
postas em ação. desigualdades de natureza existem, trata-se de eli-
miná-las, Ou de corrigi-las, mediante um tratamen-
Da igualdade e da eqüidade to igualitário. A igualdade democrática, em sua
visão maximalista, refere-se à substituição da de-
Quando a política é assimilada ao universal, a sigualdade natural (e do tratamento a esta reserva-
própria identidade é pensada através do prisma da do pelos Antigos Regimes) pela igualdade moral,
universalidade, concebida como definidora das re- para retomar as palavras de J.-J. Rousseau. O iti-
lações entre os indivíduos a partir de uma represen- nerário da noção de igualdade no seio da história
tação da sociedade como totalidade. A igualdade é, social da democracia pode ser reduzido à imagem
assim, um conceito genérico, extrai seu sentido da de uma progressiva consideração das diferenças e
referência a um indivíduo genérico, membro de uma ao tratamento delas mediante a equação igualitá-
sociedade e, portanto, com o tempo, sempre uni- ria. Na história, as diversidades objetivas freqüen-
versalizado. Por certo, a diversidade individual nunca temente foram percebidas, mas para muitos elas
é concretamente eliminada de maneira completa, e não se destacavam de um ponto de vista político,
o problema clássico da "equivalência" entre os in- até o momento em que eram traduzidas numa lin-
divíduos, ligados a situações de vida em comum, ali guagem universal.
se encontra para que isso não seja esquecido. N o De fato, as diversidades só podem tornar-se
entanto, na definição clássica de igualdade, todas as politicamente significativas no interior de uma con-
diversidades, mais cedo ou mais tarde, acabam por
exprimir-se mediante conceitos universais.' 10
Cf. Walzer, 1983] Boltanski e Thévenot, 1991. Fica
Pouco importa, pelo menos para nossos atuais claro que o problema da medida (a "humanidade comum"
propósitos, qual o critério de justiça conservado dos contratantes, de que falam Luc Boltanski e Laurenr Thé-
venot) c, portanto, da equivalência das "coisas" é impor-
tante sobretudo no seio de uma sociedade em que a incomen-
> Cf. Mouffe, 1994. surabilidade das práticas é rigorosa. No entanto, o proble-
9 ma pode limitar-se aqui a uma variação de grau e não de
No tocantc a isso, a história do feminismo é para-
digmática. Não foi senão após estar na posse da lingua- natureza. Sendo sempre a questão, de um lado estabelecer
gem do sufrágio universal e de universalidade dos interes- as equivalência entre as "coisas" e, em seguida, de preconi-
ses de classe que pôde constituir verdadeiramente um dis- zar a aplicação igualitária de um tratamento determinado
curso identitário. a todas as "coisas".

20 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo

cepção liberal. Esta exige que se pare de pensar na cidade de um indivíduo de agir ou não sem entra-
igualdade no interior de uma concepção global da ves e, diante do crescimento do Estado, de dispor
injustiça, a qual remete a uma situação estrutural de um "foro privado" e protegido defendido de toda
de dominação e de exploração, e que se desloque intervenção pública. A "liberdade positiva" é a ca-
na direção de uma concepção de justiça social en- pacidade de agir de maneira autônoma sem ser in-
quanto igualdade de oportunidades. Conseqüente- fluenciado pela vontade dos outros. 13 A primeira
mente, a sociedade deixa de ser concebida como um faz referência à ação, a segunda, à vontade: como
lugar de conflito, para tornar-se o lugar de uma diz Norberto Bobbio, uma remete aos direitos ci-
14
corrida social. Daí para diante, trata-sc de garan- f vis, a outra, a manifestações da liberdade política.
tir uma participação igualitária no seio da compe- ' Observe-se que, com o desenvolvimento dos tota-
tição social. A crise da visão da igualdade social sob litarismos ao longo do século, o primado da liber-
influência de uma concepção totalizante da socie- dade negativa sobre a liberdade positiva tornou-se
dade acarreta uma mudança profunda, formulada elemento consensual para muitqs autores.
pela noção de eqüidade. Em sua formulação clás- Ora, o multiculturalismo traz uma mudança de
sica, a igualdade enfatiza os elementos comuns aos orientação importante. Historicamente, a liberdade
indivíduos genéricos e não suas diferenças, seus par- negativa era uma liberdade individual, enquanto que
ticularismos coletivos, ela remete sempre a uma con- a liberdade positiva era, no fundo, a liberdade de um
cepção global e comum da sociedade. É diferente sujeito coletivo, por exemplo, a liberdade de um povo
o que se dá com a noção de "eqüidade" 1 1 que re- à autodeterminação. No multiculturalismo, a liber-
conhece a pertinência política das especificidades dade positiva torna-se a liberdade de um sujeito in-
culturais dos indivíduos e dos grupos, aceitando a dividual, desde que se compreenda que esse proble-
idéia de um tratamento diferenciado dos membros ma não é mais um problema filosófico (a indeter-
dessas coletividades. 12 minação da vontade humana) mas, ames, o da au-
A origem dessa mudança de direção no inte- todeterminação de um sujeito individual enquanto
| rior da matriz democrática deve ser buscada no pro- membro de um grupo. Porém, e este é um ponto es-
cesso de racionalização e, mais precisamente, no sencial na modernidade, pode a partir de então tra-
desenvolvimento de um saber social sobre as razões tar-se de uma autonomia pessoal e não mais da ex-
das desigualdades e sobre os resultados das políticas pressão de uma comunidade. De fato, a nova liber-
sociais igualitaristas. A antiga denúncia da "igual- dade positiva, expressa no multiculturalismo, é o re-
dade formal" teve continuidade e se estendeu sob sultado de uma mescla, no momento teoricamente
novas formas e princípios. A eqüidade é o encon- instável, entre a liberdade negativa e a liberdade de
tro entre a metáfora da "corrida" e do saber sobre auto-afirmação.
os handicaps dos competidores. Aqui também, a análise política deve prolon-
gar-se, mediante a tomada em consideração da si-
Da liberdade e da diferença tuação social. A antiga acusação feita aos liberais,
a saber, que, com o tempo, seu projeto político pre-
Um debate clássico contrapõe duas concepções judica a coesão social, volta a se encontrar nos fa-
de liberdade. A "liberdade negativa" define a capa-
13
Esse p o n t o é c o n t r o v e r s o , mas a o p o s i ç ã o entre a s
11
Em relação a o e m p r e g o dessa n o ç ã o na F r a n ç a , cf. noções t e m origem na distinção estabelecida p o r Benjamin
A f f i c h a r d e de F o u c a u l d , 1 9 9 2 ; e o R e l a t ó r i o a o Primeiro- C o n s t a n t e n t r e a liberdade d o s antigos e a d o s m o d e r n o s .
Ministro, 1994. Uma apresentação crítica dessas noções encontra-se e m Ber-
12 lin, 1 9 8 8 .
Charles T a y l o r coloca o " r e c o n h e c i m e n t o " n o cen-
t r o m e s m o de suas análises; cf. T a y l o r , 1992. " Cf. Bobbio, 1 9 7 9 .

Revista Brasileira de Educação 21


Danilo Mariuccelli

tos a t r a v é s da existência e d o c r e s c i m e n t o de um ção de sua autenticidade. N a Declaração Universal


desejo d e a f i r m a ç ã o identitária. N a c o n c e p ç ã o clás- d o s D i r e i t o s H u m a n o s , d e 1 9 4 8 , já t r a n s p a r e c e essa
sica d a l i b e r d a d e p o s i t i v a , o i n d i v í d u o , p a r a e x p r e s - distinção, u m a vez q u e a u m a definição objetiva dos
sar-se, deve conceber-se e n q u a n t o m e m b r o de u m a direitos d o indivíduo acrescenta-se u m elemento
t o t a l i d a d e política e as diferenças individuais s ã o s u b j e t i v o : fala-se, e n t ã o , de u m a " i g u a l d a d e d e dig-
obrigadas a trliluzir-se n u m a linguagem universal. nidade". E d a d o o peculiar ao processo de indi-
O r a , a o u t r a vertente da modernização, aquela que, v i d u a l i z a ç ã o m o d e r n o , essa " d i g n i d a d e " se a f i r m a r á
m e l h o r d o q u e ninguém, foi descrita p o r N o r b e r t c o m o e x p r e s s ã o de u m a "diferença". A ascensão de
Elias,15 a saber, a individualização crescente dos u m desejo individual de dignidade, sob a forma de
sujeitos, traduz-se politicamente por u m questio- desejo de r e c o n h e c i m e n t o público d e u m a diferen-
n a m e n t o dessa exigência. Nesse caso, o desejo é o ça individual (ou, m e l h o r , vivida p o r m u i t o t e m p o
d e se a f i r m a r p o s i t i v a m e n t e e n q u a n t o i n d i v í d u o s n a c o m o individual e privada), m o s t r a os limites da
c e n a social. E, desse p o n t o d e vista, as g r a m á t i c a s l i b e r d a d e n e g a t i v a (lá o n d e n ã o s o u reconhecido
sexuais ou étnicas n a d a m a i s são d o q u e signos pre- p o r q u e n ã o m e a f i i m o ) e da liberdade positiva clás-
cursores de u m processo m a i s geral. Está e m curso sica (lá o n d e n ã o p o s s o a f i r m a r - m e s e n ã o e n q u a n -
u m a inversão das c o n c e p ç õ e s tradicionais da "ver- to cidadão, p o r t a n t o c o m o h o m e m genérico). O
d a d e " política, de fato, d o sujeito q u e enuncia a m u l t i c u l t u r a l i s m o , s e g u i n d o - s e a o p r o c e s s o d e in-
v e r d a d e política. A r u p t u r a d a s " a p a r ê n c i a s " e das dividualização m o d e r n o , expressa a exigência do
"essências" m u d a então de sentido. O n t e m , consi- a u m e n t o da diferença n o d o m í n i o público.
derava-se que o "Eu público" e a "vontade geral"
O político encontra-se transtornado. Já não se
e n c a r n a v a m o sujeito, verdadeiramente individual
trata apenas de defender o indivíduo contra as amea-
e h u m a n o porque político — aquele do qual Rous-
ças sociais, econômicas ou ideológicas. Trata-se de,
seau, por suas contradições, constitui aqui a figura
publicamente, afirmar as diferenças: de autodeter-
de referência. Hoje, supõe-se que o "Eu privado"
minar-se individualmente e de se assegurar a coexis-
e as "vozes minoritárias" e n c a r n a m o verdadeiro
tência da maior diversidade possível. O motor do
s u j e i t o da política; o da a u t e n t i c i d a d e . A o s c i l a ç ã o
novo avatar histórico da liberdade é a diferença e o
d o coletivo e d o individual é considerável. O n t e m ,
desejo de afirmá-la.
a liberdade positiva b u s c a v a a imediatez d a socie-
d a d e nela m e s m a (o indivíduo nada mais s e n d o d o
Os debates políticos
que u m p r o l o n g a m e n t o dessa exigência f u n d a d o r a
do multiculturalismo
d a v e r d a d e política); hoje, a l i b e r d a d e positiva busca
a imediatez d o indivíduo nele m e s m o (não se con-
A m u d a n ç a de direção o p e r a d a pela reivindi-
c e b e n d o , n o f u n d o , a sociedade política senão c o m o
cação identitária dentro do q u a d r o democrático
o c o r o l á r i o dessa v e r d a d e política). A o p r i m a d o da
leva à c o n s t i t u i ç ã o , na esfera pública, d e quatro
" v o n t a d e g e r a l " e n q u a n t o essência d o político, su-
g r a n d e s d e b a t e s . Estes e s t ã o longe d e esgotar a di-
cede o p r i m a d o da política da autenticidade.
versidade das problemáticas, mas possuem o mé-

A distância e n t r e o o b j e t i v o e o subjetivo está rito de fixar u m q u a d r o c o m u m de discussão. No

n a b a s e d e s s e p r o c e s s o 1 6 e m q u e o " e u " já n ã o p o d e e n t a n t o , n ã o se t r a t a a q u i de estabelecer u m a coe-

se identificar c o m u m a " v o n t a d e g e r a l " e n ã o p o d e rência intelectual para escolhas e discussões ainda

se a f i r m a r p u b l i c a m e n t e s e n ã o m e d i a n t e a o s t e n t a - e m g r a n d e m e d i d a tateantes, m a s sim de fixar u m


q u a d r o c o m u m e de indicar as condições de incer-
t e z a n a s q u a i s o s d e b a t e s se d e s e n r o l a m . Isso é p a r -
15
Cf. especialmente Elias, 1991 e 197J. ticularmente importante na França, onde o apelo

" Cf. Simmel, 1988, c Touraine, 1992. à t r a d i ç ã o republicana serve sempre à diabolização

22 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo

sistemática e à repressão de qualquer aspiração a "correção" de natureza eqüitativa, intervém an-


identitária. tes dos direitos sociais: preconiza-se, então, um tra-
tamento diferente para determinados indivíduos em
Igualdade versas eqüidade função de suas características individuais.
i |
N o caso da França, a tensão entre esses dois
Para além dos debates filosófico-políticos tra- princípios pode ser ilustrada com as políticas públi-
vados em torno da noção de eqüidade, 17 trata-se de cas. Isto está especialmente claro com as zonas de
:
encarar aqui as tensões introduzidas pelo problema educação prioritárias (ZEP)*. Além dos limites pro-
identitário. N o panorama francês, a noção de eqüi- p r i a m e n t e escolares que foram indicados, 18 algumas
dade apresenta ao mesmo tempo uma força e uma de suas dificuldades podem ser encaradas como pro-
fraqueza. Sua força é situar-se na descendência di- duto de uma tensão entre esses dois princípios.
reta do processo de racionalização, visando então Se bem que a finalidade das ZEP ultrapasse de
a um tratamento mais individualizador da justiça muito o simples quadro do multiculturalismo, muitas
social. Sua fraqueza é que ela somente é possível sob de suas dificuldades se reconhecem a partir deste. 19
a condição de alterar a concepção igualitarista (ou De fato, aqui a tensão entre a "igualdade" e a "eqüi-
"republicana") da coesão social cm favor de um dade" é máxima. À dificuldade de uma lógica "repu-
modelo individualista da coesão social, apoiado na blicana" em levar em conta questões que dependem
igualdade de oportunidades. da especificidade cultural dos alunos provenientes
A igualdade implica que a sociedade é una e, da imigração, acresce a dificuldade de uma lógica
sobretudo, que o Estado intervenha de maneira uni- "diferencialista" que leve em conta questões que re-
versalista para fortalecer sua unidade, e garantir, metem à história desterritorializada da educação na
então, a invariância dos valores morais. Se o Esta- França. 2 0 As tensões são, então, o mais freqüente-
do intervém de outro modo que não em sentido
estritamente universalista, ele introduz discrimina- • As Z.E.P. (zonas de educação prioritária) são uma
ções que, com o tempo, conduzem a um descom- das mais importantes políticas de educação realizadas na
promisso dos cidadãos que duvidam de sua legiti- França desde o começo dos anos oitenta. O objetivo inicial
midade. Em contraposição, a eqüidade supõe que íoi permitir a abertura do sistema educativo para seu entor-
não se conceba a igualdade de direitos senão em no, estabelecendo exigências de cooperação enrre os diferen-
tes atores sociais (educadores, .trabalhadores sociais, pais de
função da situação particular de cada um. A partir
família). O trabalho conjunto destes atores deveria permi-
de então, não se trata mais de aplicar os mesmos tir tratar as causas profundas do fracasso escolar bem como
princípios a todo o mundo e, às vezes, nem se con- da degradação física e social de1 certos bairros populares.
cebe mais que os princípios sejam idênticos para Para isto houve a tendência a se designar maiores recursos
todo o mundo: trata-se sempre de levar em conta (sobretudo financeiros e institucionais) aos estabelecimen-
as circunstâncias pessoais. tos localizados em zonas socialmente sensíveis. Este proje-
to enfrentou dois grandes obstáculos: por um lado, a difi-
Dois princípios sociais passam então a com- culdade da escola em se rerritorializar c, por outro lado, a
petir. Para o primeiro, a diminuiçãp das desigual- crise de definição profissional que acarreta ou acentua en-
dades passa pela outorga de direito^ sociais aos in- tre os educadores. (N. E.)
divíduos. Para o segundo, a coesão, social provém 1!
Cf. Denis Mcuret, 1994.
da capacidade efetiva de assegurar ijm acesso eqüi- 19
Para uma apresentação de muitas dessas dificulda-
tativo aos direitos sociais. A intervenção, por vezes des, cf., sob a direção de Wieviorka, 1993, L'éco!e et Ia vitle.
10
Na realidade, essa representação extraterritorial da
escola republicana é cada vez mais questionada pelos histo-
17
Especialmente o conjunto das pólêmicas travadas riadores, que assinalam, ao contrário, sua fone capacidade de
em torno da obra de Rawls, 1987. compromissos locais; cf., entre outros, Ozouf e Ozouf, 1992.

Revista Brasileira de Educação 23


Danilo Mariuccelli

mente, enviadas aos próprios professores que, em se têm em vista especificidades culturais e identitárias,
função das orientações e dos recursos locais, são obri- é sempre enquanto problemas sociais (expressos por
gados a improvisar "sua" reação. Mas eles estão pre- meio de linguagens universais). 24 Esta é uma das ra-
sentes na concepção mesma da política das ZEP. zões porque as políticas de ZEP não são acompanha-
As ZEP são de fato um bom exemplo de polí- das por pedagogias específicas.
tica pública a meio caminho entre a igualdade e a A não consideração do tema identitário esta-
eqüidade. Elas partem de uma abordagem global do belece os limites das ZEP. A racionalização se ope-
fracasso escolar e levam em conta a correlação en- ra no sentido de uma eventual aproximação das
tre este e a origem social modesta, assim como a in- especificidades dos mercados de trabalhos locais e
tensificação do fracasso em função de disparidades no sentido de uma maior descentralização, 25 mas
21
espaciais. A definição dos estabelecimentos esco- a diferença cultural permanece, na verdade, fora
lares classificados como ZEP combina critérios esco- do processo. Sempre se supõe que os docentes,
lares propriamente ditos (taxas de repetência, núme- apesar de suas divergências reais, aplicarão instru-
ro de alunos imigrados, idade e retardo...) com crité- ções idênticas e transmitirão ensinamentos unifor-
rios externos à educação nacional. A "nova" concep- mes. A "abertura" da escola para o bairro é, pois,
ção do problema conduz, então, a políticas públi- um projeto mutilado já em sua origem: a escola
cas compensatórias, pedagógicas e até urbanas, para leva em conta desigualdades sociais, até mesmo
alcançar, por uma dotação desigualitária (portanto 1 concebe o handicap esdolar ligado a uma diversi-
mais eqü itativa) de meios, um reequilíbrio em termos dade cultural, mas não pensa verdadeiramente a
de justiça social. Em suma, "dar mais aos que têm diferença. Assim, as ZEP não constituem mais do
menos". N o entanto, e uma das grandes insuficiên- que uma dose de "eqüidade" no interior de um sis-
cias das ZEP encontra-se neste nível, a reconversão tema educativo alimentado, em seu conjunto, por
da eqüidade só se realizou pela metade. De fato, as sólidos princípios igualitários.
ZEP, que operam uma síntese da eqüidade diferen-
cialista e da igualdade republicana, não visam a uma Igualdade versus diferença
categoria de população distinta, mas a um território.
As ZEP inscrevem-se num processo de racio- A igualdade implica recriar, muitas vezes pelo
nalização crescente da ação pública, 2 2 do qual pro- viés de uma dinâmica conflitual entre diversos gru-
vém sua vocação de utilizar uma abordagem ao mes- pos, um espírito de solidariedade e passa por uma
mo tempo mais global e melhor centrada da assis- linguagem política cuidadosamente universalista:
tência social. 23 Mas esse levar em conta das espe- quer porque a gramática dos agentes sociais acaba
cificidades locais verifica-se dentro do quadro de uma fazendo emergir o universal, quer porque o univer-
concepção igualitarista e republicana: os particula- sal, como ocorre freqüentemente, se identifica com
rismos locais só são considerados na medida em que uma dessas vozes. Em contraposição, a diferença
podem ser pensados em termos universais. O prin- consiste em estabelecer um princípio de reconheci-
cípio de eqüidade visa, pois, déficits sociais, e quando mento entre os indivíduos. Neste caso, a linguagem
política é particularista: toda pertinência não é to-

21
Sobre as apostas sociológicas das ZEP, cf. Henriot- 24
No fundo, esta é a versão bem arrumada da peda-
van-Zanten, 1990. gogia diferenciada que se encontra na escola republicana.
u
Para uma reflexão mais ampla a respeito das no- 25
Neste sentido, as ZEP têm sua origem antes numa
vas competências do Estado, cf. Donzelot e Estèbe, 1994. crise, do que num projeto de renovação escolar. A incapa-
23
Para uma reflexão crítica neste sentido, cf. Roman, cidade ou a dificuldade do "centro" em fornecer diretrizes
1993. únicas preconizando uma autonomização local.

24 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo

mada senão c o m o uma especificidade a u t ô n o m a , e to. A abolição das fronteiras entre o p r i v a d o e o


c o l o c a r e n t r e p a r ê n t e s e s a t o t a l i d a d e visa e s p e c i a l - p ú b l i c o , o q u e s t i o n a m e n t o d o p a t r i a r c a d o , as a n á -
mente anular toda hierarquia entre as diferenças. lises f e i t a s c o m a a j u d a d o m a t e r i a l i s m o h i s t ó r i c o

P o r t a n t o , a t e n s ã o n ã o p o d e d e i x a r de ser f o r t e ou da psicologia (psicanálise freudiana ou lacaniana

entre a igualdade e a diferença. A igualdade, cen- — e a emergência de u m "falar-mulher" — ou ain-

trada nos direitos universalizáveis, supõe, de u m a da, a teoria das relações objetais) visam, cada qual

ou outra m a n e i r a , ignorar as diferenças entre os à sua m a n e i r a , a p r o d u z i r a teoria dessa prática c o n -


1
indivíduos numa finalidade particular e considerar t e s t a t ó r i a . A divisão foi m a i s o u m e n o s g r a n d e c o n -

pessoas diferentes c o m o equivalentes (mas n ã o for- í forme o caso, mas foi sempre obrigatória.

çosamente idênticas) para u m propósito determina- De fato, a tensão é irreprimível, p o r q u e remete


d o . E s t a é a r a z ã o p o r q u e h o u v e q u e m se a p r e s s a s - a d u a s filosofias d a i n t e g r a ç ã o social. P a r a o igua-
se e m a f i r m a r o c a r á t e r a r t i f i c i a l d a o p o s i ç ã o e n t r e litarismo, trata-se de encontrar, por meio da polí-
a igualdade e a diferença; em oposição à igualdade tica, u m a g r a m á t i c a q u e p e r m i t a e s t a b e l e c e r u m es-
encontra-se a não comensurabilidade dos indivíduos p a ç o c o m u m social, c m s u m a , u m universal que
e m f u n ç ã o de certos objetivos (Scott, 1992). M a s é permita consolidar a sociedade. A integração da
e x a t a m e n t e a p a r t i r dessa e x i g ê n c i a q u e n a s c e m as sociedade passa s e m p r e pela liberação dos direitos
o p o s i ç õ e s e n t r e as d u a s c o n c e p ç õ e s . As d e m a n d a s universais: donde a primazia ^ o político. Para o
de igualdade visam a fazer reconhecer a legitimidade diferencialismo, ao contrário, trata-se de permitir
de certas diferenças n ã o reconhecidas m a s , para a m a i o r expressão possível d a s diferenças, d o n d e as
fazê-lo, exigem a existência d e u m a l i n g u a g e m c o - críticas d o político e n q u a n t o cimento da socieda-
m e n s u r á v e l c o m u m . O r a , é e x a t a m e n t e isso q u e de. Afinal, a integração é "sistêmica"; de fato, c e d o
apresenta dificuldades d e u m p o n t o de vista identi- ou tarde, e m u i t a s vezes de maneira implícita, da-
t á r i o : os a g e n t e s q u e r e m i m p o r u m a c o n c e p ç ã o es- m o s ao mercado o estatuto de princípio n ã o trans-
pecífica e n q u a n t o tal. O i m p a s s e talvez n ã o seja " l o - cendente da ordem. De fato, é sempre o mercado
g i c a m e n t e " n e c e s s á r i o , m a s t e m se m o s t r a d o m u i - que permite articular elementos interligados entre
to freqüentemente insuperável sociologicamente. si, m a s s e m p r i n c í p i o c e n t r a l . O m e r c a d o d e s t r ó i t o -
da referência aos universais e acomoda-se ao m u n -
O s avatares do m o v i m e n t o feminista podem
do das diferenças.
i l u s t r a r essa t e n s ã o . P o r u m l a d o , o f e m i n i s m o i g u a -
litário visa a estabelecer a i g u a l d a d e e n t r e a m u l h e r
e o h o m e m p o r meio da n e g a ç ã o d o sexo c o m o de- Liberdade versus diferença
t e r m i n a n t e d o status social. O m o v i m e n t o defende
e n t ã o os direitos (universais) d o s indivíduos para A t e n s ã o entre esses dois t e r m o s p õ e e m ques-
além de toda particularidade. Essa vertente d o m o - tão, por u m lado, a síntese, operatia n o seio da de-
vimento identificou-se facilmente com o otimismo m o c r a c i a m o d e r n a , e n t r e a s d u a s c o n c e p ç õ e s d a li-
d a s classes dirigentes q u a n t o a o s benefícios d o p r o - b e r d a d e , n e g a t i v a e p o s i t i v a , e, p o r o u t r o , a p r i m a -
cesso de m o d e r n i z a ç ã o , especialmente c o m a idéia zia d a p r i m e i r a , tal c o m o a m o d e l o u a h i s t ó r i a d o
de q u e o desenvolvimento e c o n ô m i c o acarreta o nosso século. O processo de individualização con-
progresso social. O r a , neste caso, c o m o têm conti- duz, de fato, a u m excesso d e reivindicações identitá-
n u a m e n t e assinalado os partidários de u m feminis- rias, por m e i o das q u a i s os agentes q u e r e m a f i r m a r
m o p a r t i c u l a r i s t a , a m u l h e r se a n u l a a n t e s m e s m o sua especificidade c u l t u r a l e n ã o mais a p e n a s se c o n -
de ter p o d i d o existir historicamente: a aceitação, tentar c o m sua a existência n u m a esfera " p r i v a d a " .
m e s m o implícita, de u m universal dissolve a iden- M a s essa t e n s ã o n ã o o p e r a n o vazio. E m sua
tidade. Por o u t r o lado, o f e m i n i s m o da diferença faz base encontra-se o fato de que, em cada sociedade,
da reivindicação identitária o cerne do movimen- existe, o mais das vezes implicitamente, u m m o d e -

Revista Brasileira de Educação 25


Danilo Mariuccelli

Io prescritivo de indivíduo. A liberdade democrá- A dupla proposição repousa, assim, de um


tica negativa é, então, vivida por alguns como uma lado sobre o questionamento da liberdade negati-
maneira de esconder seus handicaps diante de uma va pela preocupação de afirmação diferencialista e,
normalidade estabelecida. Por isso e que a contes- de outro lado sobre a crítica das essências diferen-
tação dos modelos dominantes não pode traduzir- cialistas em nome da liberdade individual. As duas
se, afinal, senão por um questionamento do prin- divisões são tais que se chega a assistir assistir, aqui
cípio mesmo da divisão entre o "privado" e o "pú- ou ali, a entronização de uma nova política que visa
blico". A política multiculturalista surge pondo em a "superar" esses dois impasses. Tratar-se-ia, de
questão essa cplvisão vivida sob a forma de ampu- agora em diante, de reclamar em nome de sua di-
tação. Ora, ao visar à destruição de um modelo ferença o direito à indiferença e, portanto, chegar
dominante, a política da diferença arrisca-se, pois, a uma harmonização entre os dois princípios. Ora,
a transformar a sociedade em mera justaposição de nos fatos, nada pode ser mais contraditório: como
grupos. Os conflitos identitários exprimem então, mobilizar um recurso identitário para instaurar uma
aos olhos de alguns, ao mesmo tempo uma obses- indiferença identitária? Neste caso, a finalidade do
são agônica por reencontrar um princípio de coe- movimento entra em oposição com os recursos aos
são e a explosão das minorias que não se detém quais ele apela. De fato a tensão encontra-se menos
diante de nada e a que tudo parecem opor-se: to- entre duas concepções opostas, e que carregam re-
dos contra todos, uns após os outros, todos estão presentações opostas da sociedade, do que entre
sob a mira. 2 6 duas reivindicações contrárias: de um lado, a preo-
Mas a essa primeira oposição, acrescenta-se cupação com a liberdade negativa (a reclusão da
uma outra, de natureza inversa. Com efeito, à me- identidade ao privado) e, de outro, a afirmação
dida que tem lugar essa dissolução, corremos o risco identitária no domínio público.
de assistir a uma super-valorização da política da Essa tensão revelou-se da maneira mais viva
diferença. N o final desse processo de endurecimento possível na França com o "caso do foulard"11', que
identitário, opera-se a passagem a uma auto-afir-
mação de natureza essencialista e não mais rela-
27
Aqui, a instabilidade dos termos do debate é espe-
cionai de identidades, o que se traduz muito con-
cialmente clara. O "caso do foulard" comporta também,
cretamente por recuos comunitários que negam as
mas de outra maneira, um debate entre dois princípios opos-
diferenças individuais. tos de integração social, o igualitarismo e a diferença.
Observa-se, então, a perversidade irreprimível * O "caso do foulard"'. cm 1989, desencadeou-se, na
das reivindicações identitárias: numa de suas ver- França, um debate político motivado pela proibição, por um
tentes, e em nome do "pós-modernismo", elas le- diretor de escola secundária, ao ingresso no estabelecimento
vam às concepções mais passadistas da identidade de um grupo bem pequeno de alunas de origem marroquina
que portavam o "véu islâmico'' {foulard). Em tomo desse
social. No seio de cada categoria do Outro todos
incidente menor desencadeou-se um verdadeiro debate na-
são o mesmo. No devido tempo, impõe-se uma base
cional que opunha, de maneira passional, duas posições
identitária comum a todos os membros de uma cate- fortemente antagônicas: de um lado, os defensores de «ma
goria mais profunda e até mais intrínseca do que as concepção estrita de "laicidade", segundo a qual não se
suas individualidades. deveria permirir a expressão de nenhuma diferença (sobretu-
do étnica ou religiosa) dentro da escola e, de outro lado, os
defensores de uma concepção mais aberta de "laicidade",
lfi sem que a estes últimos se imponha necessariamente uma
Um processo lido de maneira diversa conforme as
sensibilidades políticas dos autores. O que abrange desde os concepção diferencialista das identidades culturais. O confli-
partidários desse processo (por exemplo, Michel Foucault) to, em sua dimensão escolar, foi absorvido caso a caso atra-
ate os detratores neoconservadores (por exemplo, Arthur vés de um conjunto de decisões práticas antes de conhecer
Schlesinger Jr. ou Samuel Huntington). uma "segunda onda" em meados dos anos noventa. (N. E.)

26 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo

deve ser interpretado, para além de suas significa- governos, dá lugar a sentimentos de frustração na-
ções estritamente escolares, em seu cerne político, queles que se identificam com os modelos culturais
como a oposição entre duas concepções de indivi- dominantes, sobretudo quando sua situação social
dualidade moderna. Os defensores de uma concep- é instável ou precária. 25
ção laica da escola, lugar neutro protegido do mun-
do e de suas divisões, defendem a versão francesa Liberdade versus eqüidade
e escolar da liberdade negativa. Para eles, supõe-se
que o indivíduo deva desprender-se de suas carac- A tensão entre esse dois princípios pode ser en-
terísticas diante de uma instituição que nele vê ape- u^im, extrema. Ambos trazem consigo preocupações
nas um cidadão a ser formado e que não pode ad- diversas. A liberdade negativa, cujo valor não é pre-
mitir a intrusão da diferença. Do outro lado, há ciso demonstrar, supõe o estabelecimento de uma
todos aqueles para os quais a afirmação identitária, fronteira entre o privado e o público. Certamente,
e o conjunto das significações apregoadas por essa essa fronteira é histórica e mutável, mas exige sem-
manifestação, 28 fazem parte (ou são vividos ou cap- pre a existência de um domínio que escapa da in-
tados) como provindos do desejo moderno de mos- tervenção estatal. A eqüidade, ao contrário, e a sua
trar sua individualidade e sua resistência em admi- preocupação em levar cada vez mais em conta di-
tir imagens desencarnadas deles. Com o tempo, o ferenças individuais, preconiza a produção de con-
véu é, ou pode ser, interpretado num sentido multi- cepções cada vez mais globais que acabam por ocu-
culturalista, como manifestação de um rosto dife- par esse espaço.
rencialista no seio de uma instituição despersona- Vale dizer que, apesar de seu aparente acor-
lizadora — o que, evidentemente, não impede que do em torno de uma concepção "liberal" da socie-
revele outras significações. dade, esses dois princípios conduzem a tensões mui-
Muitas vezes, o debate conclui, então, nos im- to intensas: a vontade de oferecer aos homens mais
passes invocados anteriormente: quer se trate de eqüidade, na medida em que esta exige uma consi-
operar uma "volta" a uma concepção que remete deração aprofundada das situações particulares,
ao privado as manifestações das diferenças (mas, torna-as também mais expostas em suas liberdades
então, torna-se permanente, aos olhos das minorias, individuais. Não é preciso ser partidário da "mi-
a suspeita quanto ao caráter discriminatório dessa crofísica do poder" para compreender o risco, para
liberdade negativa), quer se trate de operar uma as liberdades individuais, que está inscrito nas po-
"volta", sob a forma de endurecimento para com líticas de eqüidade.
posições diferencialistas extremas, onde com o tem- Sob esse aspecto das coisas é preciso lembrar
po o indivíduo é dissolvido no coletivo. dos dilemas produzidos, a fim de questionar os efei-
Mas essa tensão também pode estar na base tos "não desejados" das discriminações institucio-
de sentimentos de frustração por parte de membros nais. Esse tema ainda não atraiu a atenção que me-
"majoritários" duma sociedade. Com efeito, sendo rece, na França, mas tem sido amplamente discuti-
sua identidade, na maioria das vezes, tomada im- do em outros países da Europa. N o Reino Unido, há
plicitamente como modelo cultural dominante, eles todo um conjunto de trabalhos que questionam as
só podem sentir toda reivindicação diferencialista injustiças ligadas à não consideração das necessida-
como um questionamento de sua identidade. A agi- des particulares de certos grupos da população, ou
tação diferencialista das minorias^ n o t a d a m e n t e a uma representação estereotipada das demandas
quando encontra eco na opinião pública ou nos potenciais. Para impedir a exclusão institucionali-

" Cf. Gaspard c Khosrokhavar, 1S|95. " Cf. Wicviorka, 1992.

Revista Brasileira de Educação 463


Danilo Maituccelli

zada não deliberada que atinge certas minorias, as Há, pois, um conflito ente os defensores de u m
políticas públicas são responsáveis, desde sua con- liberalismo minimalista e os partidários de um so-
cepção, por levar em conta as necessidades reais e cialismo liberal (ou de um liberalismo diferencia-
específicas dos diferentes grupos sociais ou culturais. lista). Mesmo que a intervenção se faça sempre em
Por exemplo, a concepção de um parque público deve nome da igualdade de oportunidades, a racionali-
levar em conta o t a m a n h o das famílias das diversas zação da ação pública está sempre ameaçada a cons-
minorias. 3 0 Por um lado, essas políticas levam a uma pirar contra a liberdade negativa.
eqüidade crescente e real para os indivíduos, na me-
m **
dida em que o Estado leva melhor em conta os par-
ticularismos culturais. M a s , de outro lado, essas po- As quatro tensões que acabamos de apresen-
líticas recorrem à extensão de um saber social, à pro- tar mostram, certamente de modo esquemático, as
dução de uma engenharia social que pode chegar a dificuldades ligadas à penetração do tema identi-
uma intensificação do poder. Acresce a isso o peri- tário na política. Os debates assim provocados, nos
go de u m enrijecimento das políticas públicas. Segu- quais se misturam, à mercê das circunstâncias, ques-
ramente, a oposição nunca é rígida na medida em tões culturais, sociais e políticas, estruturam, de
que as necessidades sociais consideradas são diver- maneira renovada, quatro grandes questões.
sas e onde noções como " r a ç a " ou "etnia" não são, A primeira diz respeito aos grandes princípios
em sua significação social, traços imutável dos in- da justiça social e à melhor maneira de levar em conta
divíduos, mas sim construções sociais sempre se mo- desigualdades ou diferenciações sociais (igualdade-
vendo n u m espaço relacionai. M a s como evitar es- eqüidade). A segunda diz respeito aos princípios de
ses desvios quando os agentes portadores dessas rei- coesão e de integração culturais da sociedade, varian-
vindicações, eles próprios, deslizam tão freqüente- do as posições desde uma ruptura radical entre o
mente para uma naturalização de suas identidades, privado e o público (e, pois, a identificação dos in-
portanto, finalmente, de suas necessidades? divíduos com a razão) até a expressão acabada e mul-
Dois riscos estão, pois, inscritos nesse proces- tiforme dos particularismos culturais (igualdade-di-
so. O primeiro é que assumir a responsabilidade ferença). Uma terceira questão tem a ver com a cons-
política das "necessidades" particularistas permite tituição dos indivíduos pela política e na política, seja
que um grupo de peritos amplie seu poder. E o se- mediante um espaço pessoal irreprimível e protegi-
gundo é que essa política "particularista", tornan- do de toda intervenção estatal, seja mediante a ca-
do públicos elementos "privados", isola ainda mais pacidade de auto-afirmação pública das diferenças
os indivíduos em suas identidades coletivas. Este identitárias (liberdade-diferença). Enfim, uma quarta
último aspecto provocou muitas vezes as reações de questão diz respeito aos limites do poder na socie-
membros de minorias, e de maneira muito diferen- dade, estabelecendo-se uma oposição entre duas ten-
te segundo sua posição social: de fato, a origem dências importantes da modernidade, a consolida-
étnica, se proporciona vantagens aos trabalhado- ção política da liberdade negativa e o processo de ra-
res imigrados ou a alguns membros das camadas cionalização do Estado (liberdade-eqüidade).
médias que se tornaram verdadeiros "notáveis" po-
líticos da imigração, representa obstáculo para a A dialética identitária
assimilação definitiva dos outros. 3 1 do multiculturalismo

Mas poderia suceder que essas tensões nada


mais fossem do que um aspecto próprio de uma fase
10
Cf. Couper e Martuccelli, 1954. de transição, em que se emaranham os "antigos"
31
Para prevenir-se nesse sentido, cf. Vasta, 1994. princípios e as novas questões. É preciso, pois, que

28 Mal/| un/Jul/Ago 1996 N»2


As contradições políticas do multiculluralismo

se p r o p o n h a a q u e s t ã o da c o e r ê n c i a de u m a políti- ligada à " p e l e " , m a s que f a z e m parte de u m a estru-


ca m u l t i c u l t u r a l , isto é, q u e seja t o t a l m e n t e arti- tura global de significação de caráter totalizador.
culada e m t o r n o da diferença e da eqüidade. A o p o s i ç ã o n a d a m a i s é d o q u e u m contraste social-
À primeira vista, é g r a n d e o contraste entre a mente estabelecido e a maior parte das interdepen-
o p o s i ç ã o clássica entre a igualdade e a liberdade, d ê n c i a s s ã o h i e r á r q u i c a s : n o seio de c a d a d u p l a bi-
t a n t a s vezes a p r e s e n t a d a s c o m o o p o s t a s e, na ver- nária, u m tem a primazia e o outro é negado.33 A
dade, tendo por tantas vezes caminhado juntas, e luta social é j u s t a m e n t e definida pela c a p a c i d a d e d e
a h a r m o n i a natural, s u p o s t a m e n t e instaurada, en- : d e s f a z e r e s s a e q u a ç ã o . B a s t a p e n p a r n o slogan das
tre os dois princípios políticos d o multiculturalismo, ' f e m i n i s t a s d o s a n o s 70: o h o m e m está p a r a a m u -
a eqüidade e a diferença. lher assim c o m o o velocípede está para o peixe. M a s

A p a r e n t e m e n t e , n a d a , d e f a t o , c o n t r a p õ e es- essa p r e o c u p a ç ã o d e a u t o n o m i z a ç ã o logo e n c o n t r a

ses d o i s p r i n c í p i o s . P a r e c e i m e d i a t o o a c o r d o e n - dificuldades devido ao caráter intrínseco da iden-

tre o princípio da e q ü i d a d e ( t o r n a d o possível pela tidade. Esta, c o m o a c o m p r e e n d e u Hegel melhor d o

i n t e r v e n ç ã o e a r e f l e x i v i d a d e crescentes da ação q u e n i n g u é m , n ã o se a p r e s e n t a s e n ã o diante d o o u -

pública), que corresponde à necessidade de centrar tro. Esta é toda a dificuldade que existe e m "afir-

m e l h o r as políticas p ú b l i c a s , e o p r i n c í p i o d a dife- m a r " uma identidade que rompe com toda depen-

r e n ç a , l i g a d o a essa n e c e s s i d a d e d e levar e m c o n t a dência relacionai: c o m o bem têm d e m o n s t r a d o as

as e s p e c i f i c i d a d e s d a s m i n o r i a s . M a s a "utopia" lutas coletivas, o tema identitário girando e m falso

m u l t i c u l t u r a l i s t a p a s s a m u i t o r a p i d a m e n t e e m si- e s g o t a - s e a si m e s m o D e f i n i d a a i d e n t i d a d e , a f i r m a -

llêncio, n ã o tanto a emergência de novas d e m a n d a s d a a p a r t i c u l a r i d a d e , obtida a especificidade, seu

identitárias c a d a vez mais socioculturais,32 quan- o b j e t i v o se d e s i n t e g r a n a s n o v a s d i m e n s õ e s s i m b ó -

to aquilo que é o verdadeiro núcleo do desacordo, licas a d q u i r i d a s p o r seus m e m b r o s . O movimento

a saber, a "natureza" mesma das reivindicações é, p o i s , o b r i g a d o a r e c o m e ç a r . P o d e f a z ê - l o d e t r ê s

identitárias, m a r c a d a pela influência, d e s d e o iní- m a n e i r a s : p r o d u z i n d o (de f a t o , m a n t e n d o viva) a

cio, d e seu c a r á t e r r e a t i v o . A d i f e r e n ç a se d e f i n e — exigência d e u m a c u l t u r a r a d i c a l m e n t e o u t r a ; es-

m a s é a h i s t ó r i a social t a n t o q u a n t o a n a t u r e z a in- sencializando c o m o t e m p o as identidades reivin-

trínseca da n o ç ã o q u e a q u e r e m assim — c o m re- dicadas; relançando ininterruptamente novas de-

ferência a u m a alteridade, o mais das vezes de ca- m a n d a s identitárias reativas.

r á t e r d o m i n a n t e . A r e i v i n d i c a ç ã o identitária é inse- A fuga p a r a f r e n t e é m u i t a s vezes irresistível:


parável desse estado de coisas. a c a d a vitória prática, descobre-se u m a insatisfa-

A n o ç ã o de identidade multicultural, depen- ç ã o simbólica persistente, o mal-estar s e m p r e exi-

d e n d o d a d e d i f e r e n ç a , s u p õ e q u e o s e n t i d o se c o n s - g i n d o u m a a ç ã o a mais. E q u a n t o m a i s essa preo-

trói em contraste c o m o seu oposto, e até m e s m o c u p a ç ã o é individual, sentida de m a n e i r a irrepri-

n e g a n d o - o o u r e p r i m i n d o - o . T o d a i d e n t i d a d e se es- mivelmente individual, tanto mais recorre a lingua-

tabelece e m oposição explícita a u m a outra identi- gens coletivas. P o r isso é q u e os m o v i m e n t o s dife-

dade. De u m p o n t o de vista sociológico, a análise r e n c i a l i s t a s , a m e n o s q u e se i n s t a u r e m p o r m e i o d o

d a s lutas diferencialistas consiste e m desfazer essas


categorias e oposições a fim de questionar o con-
33
texto específico em que o p e r a m . É assim que u m a Para teorizar esse processo, diversos aurores femi-
diferença específica, por e x e m p l o , étnica, serve para nistas inspiraram-se em trabalhos de J. Derrida, especialmen-
estabelecer significações q u e n ã o são diretamente
te das técnicas da "inversão" e do "deslocamento": uma
significação é invertida e colocada para além de seu papel
de oposição a fim de mostrar a violência hierárquica e a
dívida que o termo dominante tem para com o termo do-
32
Cf. a esse respeito Lapeyronnie, 1993. minado. Cf. Derrida, 1967.

Revista Brasileira de Educação 29


Danilo Mariuccelli

político enquanto universal, possuem repercussões distanciamento. Certamente, esse apaziguamento é


tão freqüentes: a natureza mesma da identidade motivado por elementos externos. Seria, porém, um
faz c o m que todo reconhecimento identitário seja erro reduzi-lo a u m efeito de situações objetivas.
suscetível de ttaduzir-se facilmente em depressão Certamente, políticas que visam a aumentar a par-
identitária, impelindo então o agente para novas ticipação de minorias na vida social podem facili-
demandas... identitárias. tar esse apaziguamento contanto que não se negli-
Isso é próprio ao dilema identitário. Em seu gencie o que se passa do lado subjetivo e que per-
interior devem distinguir-se sempre dois níveis di- manece além, ou aquém, desses processos 3 5 — a
ferentes. O que se passa na cena pública não é o percepção individual cotidiana da alteridade, as
homólogo ao que se passa na esfera privada. Ou emoções da negação de si mesmo, sempre percebi-
melhor, não ha solução de continuidade entre as das mesmo que não sejam inteiramente reais, o sen-
identidades reivindicadas mediante a ação coletiva timento de ser, devido a sua alteridade, retirando-
e as identidades vividas no cotidiano. A preocupa- se ou avançando, sempre na defensiva...
ção identitária nunca é totalmente atingida pela ou- Em outras palavras, devido à sua própria "na-
torga de novos direitos. Por certo foram realizados tureza", as identidades podem ser produzidas nega-
progressos, e grandes, c as situações são demasia- tivamente: a força do racismo vem de sua capacidade
do diversas para que possamos permanecer num de produzir identidades impostas, de encerrar qual-
raciocínio global. N o entanto, as duas ordens do quer u m num estereótipo, de, afinal, negar sua hu-
fenômeno identitário, o "público" e o "privado", manidade. O processo é mais aleatório no sentido
jamais se fundem, ainda que muitas vezes se con- inverso. As identidades das minorias nem sempre
f u n d a m . 3 4 Por um lado, encontram-se diversas fi- podem afirmar-se simbolicamente de maneira posi-
losofias da coesão social (integração ou assimilação) tiva. O drama identitário das minorias é que elas não
ou de justiça social; por outro, uma diversidade de podem tornar-se sujeitos universais, que estejam na
sentimentos que vai desde o ferimento identitário democracia, obrigadas a existir de maneira "reativa "
até a perda de^i mesmo, passando pelo esquecimen- ou a aceitar sua dissolução identitária.
to. M a s não existe ligação direta entre essas duas A instabilidade central da utopia multicul-
ordens. Às vezes, a assimilação traduz-se pelo es- tural encontra-se aqui: na contradição da dinâmi-
quecimento identitário, mas nem sempre, nem obri- ca identitária. Por isso é possível revelar uma dia-
gatoriamente. Outras vezes, a perda identitária está lética não isomorfa entre a eqüidade e a diferença.
separada de todo processo de integração. A ausência de uma verdadeira eqüidade, especial-
O apaziguamento identitário possui um tem- mente a existência de discriminações ligadas aos
po e uma lógica diversos dos da reivindicação iden- particularismos, tende a traduzir-se em apelos e
titária. É difícil caracterizar esse "apaziguamento" reivindicações identitárias. Porém, e eis o ponto
tanto o conjunto dos conceitos dc que dispomos visa mais importante, quanto mais uma sociedade se
a afirmar uma identidade; digamos que não se tra- envolve em p r o g r a m a s de eqüidade, t a n t o mais
ta nem de uma renúncia nem de uma negação, mas existem (seja por depressão identitária, seja por es-
antes de uma gestão do discurso das origens pelo sencialização das identidades) reivindicações iden-
titárias. Em certos casos, pode até suceder que o
q u a n t o os agentes g a n h a m em eqüidade perdem
em diferença. O fato de a diferença não existir a
34
Compreende-se então os principais impasses de uma
posição como a de Fukuyama que julga encontrar na esfe-
ra timótica (o desejo de reconhecimento) o princípio de um

fim da história, bem como um motor da própria democra- Relativamente a tensões desse tipo, cf. Goffman,
cia. Cf. Fukuyama, 1992. 1975.

30 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo

n ã o ser e m t e n s ã o está na raiz desse p r o c e s s o de BOBBIO, Norberto, (1979). Liberia. In: Enciclopédia dei
constante retomada das reivindicações identitárias. Novecento. Roma: Istituto dell'Enciclopedia Italiana, v.
Daí, em certa medida, os ritmos históricos pecu-
III, p. 994-1004.

liares aos m o v i m e n t o s identitários, d i f e r e n t e m e n - BOLTANSKI, Luc, THÉVENOT, Laurent, (1991). De la


te d e o u t r o s m o v i m e n t o s sociais: t a n t o o f e m i n i s - justification. Paris: Gallimard.

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ráter irreprimível das d e m a n d a s de identidade, en- mann-Lévy.
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Hautes Etudes en Sciences Sociales. É professor do Depar- zones d'education prioritaires. Revue Française de Pé-
tamento de Sociologia na Universidade de Bordeaux. Entre dagogie, n° 109.
suas obras, destacam-se: MARTUCCELLI, Danilo, (1995). MOUFFE, Chantal, (1994). Le politique et ses enjeux. Pa-
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Danilo Martuccelli

Mai/)un/]ul/Ago 1996 N"2

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