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Hl - Identificação
1.1 Faculdade de Ciências Sociais
1.2 Curso de Direito
1.3 Disciplina: Sociologia Jurídica
1.4 Professor: Jaime Luiz Cunha de Souza
1.5 Carga Horária: 60 horas/aula
1.6 Período:
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Da filosofiaSocial à Sociologia: contexto históricodo-naseimento-da-Soctologia;
O direito como objeto de investigação sociológica; Karl Marx e o direito como
superestrutura; Émile Durkheim e o direito como fato social; Max Weber e a
racionalidade Jurídica na modernidade; Pierre Bourdieu e o Campo Jurídico;
Habermas: facticidade e validade do direito; Direito e Teoria Sistêmica na análise
de Niklas Luhmann; Direito, globalização e multiculturalismo; Direito e acesso à
justiça.
Ao término da disciplina o(a) aluno(a) deverá ter compreendido como alguns dos
principais teóricos da Sociologia analisaram o papel do direito na modernidade;
deverá ter compreendido o que significa conceber o direito como fato social;
deverá compreender os fatores sociais responsáveis pela lógica interna de
funcionamento das instituições jurídicas; deverá também ser capaz de
compreender as novas configurações que o direito assume/ ou deverá assumir no
mundo contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de
informação e comunicação, pela diversidade cultural e pelos variados tipos de
demandas por justiça.
2
4-UNIDADES TEMATICAS:
%
5-Procedimentos Metodológicos
6-Recursos Didáticos
Quadro e pincel marcador, computador, datashow, vídeos.
7-Avaliação
O processo avaliativo será realizado através da aplicação de avaliações escritas e
individuais, as quais ocorrerão após ser completado o conteúdo de cada unidade
temática, perfazendo um total de três avaliações parciais. Sobre as três avaliações
parciais será aplicado o critério regimental adotado pela UFPA com o intuito de
chegar ao conceito final do aluno.
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í 8- Bibliografia Básica
FORST, Rainer. Jürge n Habermas: factidade e validade IN: Jürgen Habermas, 80 anos
Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
GIANNOTTI, José Arthur. Sobre o Direito e o Marxismo. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1980.
MARTUCCELLI, Danilo. As Contradições'políticas do Multiculturalismo. Revista
Brasileira de Educação. Mai/jun/jul/ago 1996, n.2.
VITA, Álvaro de. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo. Lua Nova, :N°5 5-56 -
"20027
9- Bibliografia C o m p l e m e n t a i f e ^ | | ^ S f t Í Í M
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
(capítulo "da divisão do trabalho social").
FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: crise do Direito e práxis política. Rio de
Janeiro: Forense, 1984.
MARX, Karl. Sociologia/Organizador [da coletânea] Octávio Ianni. São Paulo- Ática
1984.
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F.A. de Miranda Rosa
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SOCIOLOGIA DO DIREITO
O Fenômeno Jurídico
como Fato Social
17 à edição
revista e atualizada
Jorge Z a h a r E d i t o r
Rio de Janeiro
Copyright Ê> 2004, F.A. dc Miranda Rosa
Capa: M i r i a m Lerner
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Apêndice | i
ISBN 85-7110-219-8
04-1513 C D U 316.334.4
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Capítulo III
4. Dicussão esclarecedora.
1 : A norma jurídica como resultado e reflexo da realidade social.
O Direito c fato social. Ele se manifesta como uma das realidades observáveis na
sociedade.' É o i n s t r u m e n t o institucionalizado de maior importância para o con-
trole social. Desde o início das sociedades organizadas manifestou-se o f e n ô m e n o
jurídico, c o m o sistema de normas de conduta a que corresponde u m a coação
exercida pela sociedade, segundo certos princípios aprovados e obedientes a for-
m a s predeterminadas.
A n o r m a jurídica, portanto, e um resultado da realidade social. Ela e m a n a da
sociedade, por seus instrumentos c instituições destinados a formular o Direito,
refletindo o que a sociedade tem c o m o objetivos, bem c o m o suas crenças e valora-
ções, o complexo de seus conceitos éticos e finalísticos.
Esse fato pode ser esclarecido mediante simples referência à variedade de
sistemas e normas de Direito em diferentes quadros culturais. O estudo histórico
das sociedades revela a existência de estruturas jurídicas bastante diversas no t e m -
p o e no espaço. As pesquisas realizadas sobre a evolução do direito de família, ou
sobre as diversas fórmulas adotadas no direito de sucessão hereditária, n o q u e se
refere ao direito de propriedade etc., mostram que cada u m a dessas faces do fenô-
m e n o jurídico global apresentou uma dessemelhança de formulações, extrema-
m e n t e interessante e curiosa. As realidades sociais diferentes c o n d i c i o n a r a m or-
d e n s jurídicas t a m b é m diversas.
É importante pesquisar as relações existentes entre as estruturas e a dinâmica
sociais dos exemplos tomados, e as manifestações das instituições de Direito. Nes-
se estudo, a relação entre a realidade do meio social e cada u m a das facetas d o seu
sistema cultural, nele incluída a ordem jurídica, revela a existência de u m a intera-
ção entre a c o n j u n t u r a global e a normatividade jurídica.
É p o r esse motivo, p o r exemplo, que as manifestações jurídicas nas sociedades
em desenvolvimento t e n d e m a apresenfar grandes diferenças em relação às q u e
são vigentes nos países chamados desenvolvidos. As sociedades "em desenvolvi-
mento", ou subdesenvolvidas, têm realidades socioculturais próprias, i n c o n f u n d í -
veis e não-identificáveis com outros modelos. O contexto real de tais sociedades
não pode ser assemelhado ao que se observa nas sociedades plenamente desenvol-
vidas.
Há u m a realidade particular de cada processo histórico nacional, o u grupai,
m u i t o p r ó p r i a e diferenciada, dentro de u m q u a d r o m u n d i a l q u e tende à r e d u ç ã o
das diversidades f u n d a m e n t a i s e à maior influência recíproca de todos os g r u p o s
h u m a n o s . A essa realidade particular corresponde a p r o d u ç ã o de instituições t a m -
b é m particulares, entre elas as jurídicas. O motivo evidente d o fracasso de f ó r m u -
44
Ias e instituições de Direito tão bem-sucedidas em certas sociedades, q u a n d o apli-
cadas sem as devidas modificações a outras sociedades, é precisamente a inade-
quação das n o r m a s assim editadas à realidade concreta do meio em que se as
pretende empregar. Modelos jurídicos das sociedades industriais mais avançadas
não p o d e m , evidentemente, ser bons para sociedades subdesenvolvidas, a menos
que sofram grandes transformações no processo de aplicação, q u a n d o isso for
possível.
A m u d a n ç a social, que opera em escala planetária, repercute assim, sempre,
na t r a n s f o r m a ç ã o d o Direito. O fato, notório aliás, mereceu de Friedmann um
preciso exame cm três livros interessantes, cm um dos quais o analisou de forma
genérica, focalizando especialmente as interações da mudança social com a mu-
dança do Direito, l e m b r a n d o que os estímulos sociais à modificação da ordem
jurídica a s s u m e m formas variadas, seja pelo crescimento lento da pressão dos
padrões c n o r m a s alterados na vida social, criando uma distância cada vez maior
entre os fatos da vida e o Direito, seja pela súbita e imperiosa exigência de certas
emergências nacionais, visando a u m a redistribuição dos recursos naturais ou
novos paradigmas de justiça social, ou seja, ainda pelos novos desenvolvimentos
científicos. 2
terminadas situações, coisas e idéias. Não há, contudo, valores da sociedade sem que
se estabeleçam condutas necessárias; n e m imposições normativas sem a avaliação
concreta do que é justo e do que é injusto. Daí que todas as sociedades sejam orga-
nizações jurídicas, pelo menos no que se refere à confirmação de u m a consciência
de solidariedade que estabelece regras necessárias à sobrevivência d o grupo. 5
Essa relação entre a realidade social, condicionante sociocultural da n o r m a t i -
vidade jurídica, e esta p o d e ser ainda salientada pela e n o r m e força q u e possui o
costume, cujo papel c o m o elemento decisivo na formação d o Direito n ã o p o d e ser
negado. 6 O costume reflete práticas <^ue se revelaram socialmente úteis e aprova-
das, ajustadas às demais formas de^vida do grupo social e que, com o tempo,
tendem à uniformidade e a adquirir autoridade própria.
Essa autoridade é u m a conseqüência da convicção que se f o r m a na sociedade
de que tal o u qual m o d o de proceder é adequado e conveniente aos fins sociais. Em
grande número de casos, o costume se transformou em Direito Positivo, acolhido
e institucionalizado nas leis que os órgãos da sociedade editaram. E m m u i t o s
outros, o costume foi m a n d a d o observar no texto das n o r m a s de Direito C o m e r -
cial, cuja importância para a Sociologia do Direito ainda não foi convenientemen-
te estudada. Ha grande maioria dos exemplos, entretanto, o costume permanece à
margem do Direito Positivo, mas o influencia de maneira peculiar e o condiciona
em todos os momentos.
A questão das regras sociais juridicamente relevantes, aliás, é de grande atua-
lidade. Não apenas no que tange ao costume, mas t a m b é m às n o r m a s morais,
normas religiosas e outras normas de c o m p o r t a m e n t o que existem em vários pla-
nos e atendendo a interesses diversos, há conseqüências jurídicas a considerar,
mesmo quando não são expressamente mandadas observar no texto das leis. O
assunto, sempre fascinante para juristas e sociólogos, mereceu de Balossini u m
tratamento primoroso que muito pode esclarecer os estudiosos, e que faz intei-
ramente clara a natureza de lato social que tem o f e n ô m e n o jurídico, de acolhi-
mento que a normatividade jurídica manifesta às demais formas de n o r m a t i v i d a -
dc social. 7
Discussão esclarecedora.
ciência que trata da formação das idéias; tratado das idéias em abstrato. Interpretação
subjetiva dos fenômenos sociais. Sistema de idéias sobre a vida. Maneira de pensar
característica de um indivíduo, ou de uma classe, dentro das suas convicções e con-
venções filosóficas, religiosas, sociais e políticas. Sistema filosófico que considera a
sensação como fonte única dos nossos conhecimentos e único princípio de nossas
faculdades.
4. Em resumo.
1 A interação social e o Direito. Influência deste sobre as demais manifestações sociais.
Outras funções de importância exercidas pelo Direito devem ser referidas, entre-
tanto, especialmente as funções educativa, conservadora e transformadora. A res-
" Sobre essa função de "resolver", ou de "tratar" os conflitos que se manifestam na vida social, ver o
capítulo v.
Realidade Social 59
peito da primeira dessas funções, existem trabalhos curiosos que demonstram que
a simples existência de uma regra de Direito resulta, geralmente, na convicção, por
parte de quem a conhece, de que a conduta recomendada na referida norma é a
mais conveniente.
Esse fato revela a influência educativa da n o r m a jurídica, m o l d a n d o as opi-
niões sociais e p o r t a n t o o c o m p o r t a m e n t o grupai, p o r m e i o de u m processo d e
a p r e n d i z a d o e de c o n v e n c i m e n t o de q u e é socialmente útil, ou b o m , agir de certo
m o d o . N ã o se trata, a p r o p ó s i t o , a p e n a s de ameaça de sanções i m p o s t a s pela socie-
d a d e , em conseqüência da transgressão dos m a n d a m e n t o s da o r d e m jurídica, o
q u e já possui e m si a q u e l a influênci^ sobre a c o n d u t a , a q u e a l u d i m o s . Cuida-se
t a m b é m da força c o n d i c i o n a n t e da o p i n i ã o pessoal e grupai, q u a n t o ao q u e é j u s t o
o u injusto, b o m ou m a u p a r a a sociedade, m o d o de p r o c e d e r a d e q u a d o ou inade-
quado.
Skolnick observou, c o m p r o p r i e d a d e , q u e indagar dos entrevistados, e m pes-
quisa, qual o seu p o n t o de vista s o b r e o c a m i n h o q u e a lei deve adotar, entre duas
hipóteses possíveis, e m t e r m o s abstratos, n ã o é o m e s m o q u e fazer idêntica p e r -
g u n t a depois de dizer qual a solução q u e a lei efetivamente a d o t o u . L e m b r o u mais
q u e se poderia fazer a p e r g u n t a pelas duas formas, a dois g r u p o s diversos de entre-
vistados de características semelhantes, para se m e d i r a diferença das respostas n o s
dois casos, p o r q u e o Direito é, e m si m e s m o , u m a força q u e cria opiniões. 6
N o que se refere à f u n ç ã o c o n s e r v a d o r a da o r d e m jurídica, deve ser dito q u e
ela é, essencialmente, a expressão de u m a d e t e r m i n a d a o r d e m social cuja regula-
ção, c u j o controle e cuja proteção se destina a realizar. C o m o b e m a c e n t u a m os
a u t o r e s mais m o d e r n o s , ela reflete a relação de p o d e r entre as várias classes sociais^'
e as convicções d o m i n a n t e s na sociedade. 7 Logo, exerce f u n ç ã o c o n s e r v a d o r a des-
sa o r d e m , g a r a n t i n d o - I h e as instituições e o tipo de d i n â m i c a social c o n s i d e r a d o
b o m para seus fins, c o m u m a e s t r u t u r a a isso a d e q u a d a . Protege os valores social-
m e n t e aceitos e, c o m o já a c e n t u a m o s , gera u m a tendência c o n s e r v a d o r a entre os
especialistas em seus estudos.
A inclusão de n o r m a s de autodefesa d o sistema, assim, é algo de n o r m a l e
e n c o n t r a d i ç o em todos os exemplos de o r d e m jurídica de mais c o m p l e x i d a d e . As
sociedades n ã o - p r i m á r i a s , ao estabelecerem seu m o d o de vida, seu sistema de
valores e instituições, ficam t a m b é m , na o r d e m jurídica, princípios e regras de
m a n u t e n ç ã o d o sistema total, e m q u e são previstas as hipóteses d e sua defesa
c o n t r a as tentativas de modificá-lo. Sob esse p o n t o de vista, a Sociologia d o Direito
p o d e ser entendida em í n t i m a relação c o m a c h a m a d a Sociologia d o Poder. A
natureza, a qualidade de suas n o r m a s de autodefesa, d e p e n d e das relações de p o -
der na sociedade observada.
Tais relações de póder, c e r t a m e n t e , r e p o u s a m na e s t r u t u r a social e n o seu
m e c a n i s m o funcional. Os c o n d i c i o n a n t e s socioeconômicos das relações de p o d e r
possuem, p o r t a n t o , conseqüências políticas, que se verificam em tais relações p r o -
p r i a m e n t e , e se explica,m, s e m p r e , em manifestações de o r d e m jurídica. Estas,
c o m o resultado, p o s s u e m s e m p r e aquele caráter de expressão de u m a d e t e r m i n a -
da o r d e m social e, inegavelmente, são manifestações de u m a ideologia, sob cuja
pressão se f o r m a m e vivem.
Em s e n t i d o contrário, p o r é m , as n o r m a s jurídicas p o s s u e m u m a f u n ç ã o
t r a n s f o r m a d o r a d o meio. Q u a n d o editadas a t e n d e n d o a necessidades sentidas pe-
los órgãos legiferantes, ou em resposta ao consenso de grupos que se antecipam ao
processo histórico, elas resultam em modificações da sociedade, alterando-lhe o
sistema de controle social e, diretamente, a relação de influências recíprocas dos
diversos elementos condicionantes da vida grupai. Por o u t r o lado, c o n t r i b u e m
indiretamente para a formação de novas manifestações de consenso, nisso con-
fundidas as funções t r a n s f o r m a d o r a e educativa do Direito.
Este precisa, na verdade, ser b e m estudado c o m o agente da m u d a n ç a social. É
essa u m a i m p o r t a n t e manifestação da função t r a n s f o r m a d o r a , exercida pelas n o r -
mas jurídicas, cuja utilização planejada, visando alterar determinado contexto so-
ciocultural, começa a ser objeto de estudos e de primeiras aplicações. Não se perca
de vista que, no p r ó p r i o m o m e n t o em que o legislador edita a n o r m a legal, ou
q u a n d o o Juiz a aplica ao caso concreto, ou ainda, q u a n d o o a d m i n i s t r a d o r execu-
ta os seus m a n d a m e n t o s , um e o u t r o estão modificaiido, em alguma parcela,
maior ou menor, a realidade social. Esse fato é especialmente sensível e fácil de
constatar n o primeiro caso, pois a edição da n o r m a legal sempre, invariavelmen-
te, u m fato de m u d a n ç a da estrutura social.
É t a m b é m visível, em u m exame simples, essa f u h ç ã o de m u d a n ç a social,
q u a n d o os tribunais firmam orientação jurisprudencial em questões de grande
repercussão e que envolvam grande número.de casos concretos, fixando interpre-
tação nova às n o r m a s legais imprecisas, ou quando, t a m b é m interpretando as leis,
a administração adota orientação determinada para a sua execução. Tais situações,
m o d i f i c a n d o em alguma coisa a o r d e m jurídica, se projetam sobre a realidade
social nela regulada, m u d a n d o - a .
A propósito, é interessante abordar a relação existente entre Direito e opinião
pública. A m b o s os fenômenos, c o m o ocorre em geral na sociedade, são condicio-
nantes e condicionados recíprocos, em virtude da interação que opera entre a
n o r m a jurídica e a opinião pública. As reações desta à realidade da o r d e m jurídica
constituem m e s m o , na atualidade, u m dos campos de pesquisa mais i m p o r t a n t e s
dos sociólogos norte-americanos e europeus. Entre estes últimos, Podgorecki e
seus assistentes, n a Polônia, Vinke e sua ecjuipe, na Holanda, e n u m e r o s o g r u p o
italiano, a q u e faremos referência detalhada em outro capítulo, têm realizado, n o s
últimos anos, preciosas indagações que tendem a assumir o caráter de pesquisa
coordenada de c u n h o mundial.
As regras de Direito m o l d a m , em parte, c o m o aliás já ficou d e m o n s t r a d o n o
desenvolvimento deste trabalho, a opinião d o m i n a n t e em d e t e r m i n a d a sociedade.
O que ficou dito há p o u c o a respeito de suas funções educativa e t r a n s f o r m a d o r a
o atesta. A maneira c o m o são encaradas, porém, tais regras pelos c o m p o n e n t e s da
opinião grupai, constitui algo que exige reflexão e pode indicar caminhos legisla-
tivos mais apropriados.
4 Em resumo.
W UNBGRANRIO
W Mm do «to dc REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
liltp://publicacoes.unigranrio.edü.br/index.php/rdugr
ISSN: 1934-7920
Prof.Dr.Mne Cunha
fb/IFCH/UFPA Cleber Andrade
RESUMO
A reflexão d e Marx tem p r o f u n d a s implicações á c o m p r e e n s ã o do f e n ô m e n o
jurídico. Contudo, nota-se a p o u c a a t e n ç ã o q u e lhe tem d i s p e n s a d o os
e s t u d i o s o s do direito. Este texto p r e t e n d e contribuir à s u p r e s s ã o d e s s a lacuna
t o m a n d o c o m o objeto a s c o n s i d e r a ç õ e s d e Marx a respeito do E s t a d o e do
1
Direito. Nesse sentido, inicia com u m a breve e x p o s i ç ã o do itinerário intelectual
d e Marx; 2) e m seguida, a p r e s e n t a e c o m e n t a s u a s principais e l a b o r a ç õ e s a
respeito d o E s t a d o e do Direito; 3) conclui c o m um breve balanço da q u e s t ã o
política hoje, evidenciando alguns d o s p o n t o s a o s quais s u a contribuição ainda
é relevante.
ABSTRACT
f^UNIGRANRIO
vi ato, C
ot tótotf,Wb REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
IUtp://publicacocs.unigranrio.edu.br/indcx.php/rdugr ([ j
ISSN: 1984-7920 ,. , V
INTRODUÇÃO
Nos m e i o s a c a d ê m i c o s , Marx é muito mais c o n h e c i d o por suas
teorias a c e r c a da s o c i e d a d e e d a e c o n o m i a do q u e propriamente por sua
reflexão s o b r e o i f e n ô m e n o jurídico. Isso é razoável já q u e e l e n ã o legou
n e n h u m a teorização sistemátici^ s o b r e o E s t a d o e o Direito, embora sua
f o r m a ç ã o t e n h a sido n e s t a á r e a . O q u e h á s ã o c o n s i d e r a ç õ e s conjunturais,
dispersas pela sua obra nem sempre acessível a um público menos
especializado.
2
U N I V E R S I D A D E
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http://publicacocs.unigraftrio.edy.br/indcx.t>hf)/rdugr
ÍSSN: 1984-7920
d i s c r i m i n a ç õ e s no âmbito d e um e s t a i j o m o n á r q u i c o c o m o a Prússia d e s u a
i
época - traço evidente é a mudança de seu nome para Heinrich,
definitivamente m a i s g e r m a n i z a d o .
1
Muitas são as biografias disponíveis sobre Marx no vernácula. Dentre estas, sem dúvida, a
melhor é a de Davld McLellan: muitíssimo bem escrita, com dados confiáveis, de excelente
leitura, e sem os excessos hagiográficos. Assim, todas as referências à vida de Marx podem
ser também nela encontradas.
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ISSN: 1984-7920
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ISSN: 1984-7920
C a b e c o n s i d e r a r que, e m b o r a f o s s e um p e n s a d o r sistemático, n e m
por isso Marx era hermético. Permitia-se a todo o m o m e n t o reelaborar e revisar
s e u s c o n c e i t o s d e m o d o a ajustá-los a o s objetos q u e analisava e a o corpo m ã i s
amplo d e idéias q u e formavam s e u s i s t e m a . E s s a característica d e work in
progress, restará evidente, e s p e r a m o s , com a a p r e c i a ç ã o d a s sucessivas
r e e l a b o r a ç õ e s p e l a s q u a i s p a s s a r a m o E s t a d o e o Direito no âmbito d e s u a
reflexão.
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A - U N I V E R S I D A D E
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http://pnblicacoEs.unigranrio.edu.br/indcx.plip/rdugr
ISSN: 1984-7920
2
A primeira evidência disso é patenteada na linguagem. Observa-se também um certo tom
raivoso, juvenil, característico de quem ataca um tigre com um punhal. Grande parte da
terminologia empregada por Marx apresenta o colorido peculiar do idealismo alemão. Em
realidade, ele avança, sobre a economia política a partir do ponto de vista de um hegeliano
decepcionado com o idealismo, mas contente com os recursos críticos que a dialética pode lhe
proporcionar, A segunda prova é natureza epistemológica. Sua critica, embora perspicaz 8
inteligente, está limitada por uma abordagem externa, isto é, não demonstra a Incoerência
constitutiva, interna, das categorias da economia clássica, apenas objeta-lhe com uma critica
filosófica. Há, portanto, uma inadequação,, uma vez que os estatutos epistemológicos da
economia são profundamente distintos dos da filosofia, principalmente do idealismo alemão da
matiz hegeliano.
6
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ISSN: 1984-7920
3
Mais especificamente, a Filosofia do Direito, de Hegel é estruturada, além da Introdução e do
Plano da obra (§§1 -33) em trás grandes partes: O Direito Abstrato (§§ 34-104), A Moralidade
Abstrata (§§105-141), e a Moralidade Subjetiva (§§ 142-360), onde as partes aludidas figuram
compondo a terceira seção denominada O Estado. Cf. HEGEL, G. W. Filosofia do Direito. Trad.
Orlando Vitorino. Guimarães Cia. Editores, Lisboa, 1976, 315pp.
A . U N I V E R S I D A D E
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http://publicacocs.unigranrio.edu.br/indcx.Dhp/rduEr
ISSN: 1984-7920
Um príncipe, c u j a s q u a l i d a d e s s ã o d e t e r m i n a d a s exclusivamente
p e l a s consangüinidade, hereditariedade e primogenitura, d e v e estar â testa
| d e s t e p o d e r (Idem, p. 53). Colada a ele, propõe uma c l a s s e d e funcionários, ou
seja, u m a burocracia, c o m p o s t a por r e p r e s e n t a n t e s d o s muitos estamentos ou
corporações profissionais da sociedade civil. A representação desses
s e g m e n t o s na órbita do p o d e r governamental c o n s i s t e / s e g u n d o Hegel, numa
m e d i a ç ã o n e c e s s á r i a á s u p r e s s ã o d a s contradições entre o interesse particular
e o universal.
P e n s a d o d e s s a forma, o e s t a m e n t o instrumentaliza a representação
popular funcionando c o m o uma e s p é c i e d e catalizador, de filtro d a s aspirações
coletivas. (Idem, p. 66). A disciplina e a hierarquia do s a b e r a g e m de forma a
neutralizar seus eventuais desvios em relação ao interesse universal.
Ademais, alçada a este patamar, a burocracia cumpre a função de
d e s e m p e n h a r e r e p r e s e n t a r a soberania popular. Junto dela existiria uma
s o b e r a n i a centrada no príncipe.
No âmbito do p o d e r legislativo, Hegel c o n c e d e a o estamento dos
proprietários d e terra o privilégio d a f u n ç ã o mediadora entre o príncipe e os
demais segmentados sociais. Tal prerrogativa decorre do fato ds os
proprietários de terra e n c e r r a r e m em si e l e m e n t o s d e s o b e r a n i a - típicos do
príncipe - ou seja, "uma vontade q u e s e f u n d e e m si", cujo atributo distintivo é
a independência e m r e l a ç ã o "as circunstâncias exteriores", o que permite
"proceder s e m impedimentos em prol do Estado" (Idem, p. 110).
Dentre outros equívocos, Marx constata q u e Hegel trata a soiSbrania
c o m o um mixtum compositum, ou seja, postula dois polos s o b e r a n o s , trata-os
como equivalentes, e o s s u b m e t e a um m e s m o território e p o d e r . Aprendemos
com Bodin, q u e a s c o n d i ç õ e s da soberania s ã o a indivisibilidade, a unidade, e
a s u p r e m a c i a quanto a o exercício do poder e d a jurisdição; u m a ' v e z que falta
um d e s s e s e l e m e n t o s , n ã o h á s o b e r a n i a . "Certamente: s e a soberania existe
no m o n a r c a , é u m a e s t u p i d e z falar e m u m a s o b e r a n i a o p o s t a existente no
Mx N I V E B S I O A D E
C^UNIGRANRIO
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ISSN: 1984-7920 |
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Vi Mm to saíarfeaula REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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FCS/IFCH/UFPA
a ç õ e s práticas e efetivas.
10
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ISSN: 1984-7920
Enfim, M a r x n o t o u q u e H e g e l c a p t o u tal c o n t r a d i ç ã o 4 , m a s d e u - l h e
u m a s o l u ç ã o a p e n a s a p a r e n t e . Viu t a m b é m q u e o E s t a d o m o d e r n o e v i d e n c i a
c l a r a m e n t e e s t a c o n t r a d i ç ã o (Idem, p . 9 4 ) . E a i n d a p e r c e b e u q u e s u a principal
característica é a alienação.
"A separação da sociedade civil e do; Estado político aparece
necessariamente como uma separação éntre o cidadão político, o
cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua própria realidade
empírica, efetiva, pois, como idealista do Estado, ela é um ser
totalmente diferente de sua realidade, um ser distinto, diverso,
oposto. A sociedade civil realiza, aqui, dentro de si mesma, a relação
entre Estado e sociedade civil, que por outro lado, existe como
burocracia. (...) O cidadão deve abandonar seu estamento, a
sociedade civil, o estamento privado, para alcançar significado e
eficácia políticos, pois precisamente este estamento se encontra
entre o indivíduo e o Estado político" (Idem, p. 94).
dirigido a u m a p o l ê m i c a c i r c u n s t a n c i a l s u a s r e p e r c u s s õ e s s ã o p r o f u n d a s . P a r a
B r u n o B a u e r , já e x - a m i g o d e Marx, p r o d u z u m t e x t o a t r i b u i n d o t o d o s
o s p r o b l e m a s s o c i a i s e p o l í t i c o s à religião. S e g u n d o e l e , o p r o b l e m a d o p o d e r
A s s i m , B a u e r p r o p õ e c o m o s o l u ç ã o a a b o l i ç ã o d a religião n a A l e m a n h a . C o m
44
"Não se deve condenar Hegel porque ele descreveu a essência do Estado moderno como
ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do Estado. Que o racional é o real, isso
se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que, por toda parte, é o
contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é. Em vez de demonstrar que o
'assunto universal' existe para si, subjetivamente, e que, com isso, existe realmente como tal, e
que ele também tem a forma universal, Hegel demoiistra apenas que a ausência de forma é a
sua subjetividade, e que uma forma sem conteúdp tem que ser disforme. A forma que o
assunto universal assume em um Estado que não séja o Estado do assunto universal pode ser
apenas,' uma nSo-forma, uma forma que engana a si mesma, que contradiz a si mesma, uma
forma aparente, que se mostrará como uma tal aparência" (Idem, p. 82).
' Ê importante notar que a Alemanha da década da 1840, não é ainda propriamente um
Estado-naclonal. Além de Inúmeras barreiras alfandegárias, o que dificultava em muito a
consumação das relações econômicas, persistia, no âmbito da política, a figura do príncipe
cristão, e a existência de privilégios feudais, com as características vistas acima e criticadas
por Marx. Um dos problemas dal decorrentes residia na discriminação do tratamento dado a
judeus e cristãos, em detrimento dos primeiros, que já sofriam perseguição e a opressão em
função da opção religiosa.
11
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Mi Mm to sala to aula REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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T o d o s o s h o m e n s participam d e u m a c o m u n i d a d e imaginada, u m a
espécie d e família, q u e tem á testa um D e u s onipotente, o n i p r e s e n t e e
onisciente, m a s justo e g e n e r o s o q u e trata a todos c o m o s e u s filhos e,
portanto, iguais. S u b m e t e - o s a um sistema jurídico uniforme de tipo patriarcal,
no qual d e s c o n s i d e r a , e m f u n ç ã o da justiça q u e lhe é inerente, a s i n ú m e r a s
d i f e r e n ç a s reais q u e d e fato o s distinguem entre si. D e u s s ó a g e n e s s e plano,
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I
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v,i além da sala dc aula
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
MDr.Jàm Cunha
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ISSN: 1984-7920
c o m o trabalho no m o m e n t o e m q u e a p r o p r i e d a d e privada é p r e p o n d e r a n t e
(Idem, 26-7). Em s í n t e s e :
"Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o
homem leva, não só no plano da consciência, mas também no da
realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a
vida na comunidade política, na qual ele se considera um ser coletivo,
e a vida na sociedade civil, em que eis atua como particular;
considera outros homens como meios, degrada a si próprio como
meio e converte-se em Joguete de poderes estranhos. O estado
político conduz-se então om relação â sociedade civil de modo tão
espiritualista com o céu em relação à terra, Acha-se com relação a
ela, em contraposição idêntica e a supera do mesmo modo que a
religião, que a limitação do mundo profano, Isto é, reconhecendo-a
também de novo. restaurando-a e deixando-se necessariamente
dominar por ela. O homem, em sua realidade Imediata, na sociedade
civil, é um ser profano. (...) Pelo contrário, no Estado (...) ele é o
membro imaginário de uma soberania imaginária, acha-se despojado
de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal"
(Idem, 20).
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Vi Mm d, sala do cub REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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ISSN: 1984-7920 j
7
"Suponhamos, por exemplo, que um terreno deixa de ser rentável devido à concorrência - o.
seu proprietário conservará sem dúvida o titulo jurídico da propriedade, assim, como o seu jus
utendl et ahutendi [direito de usar e abusar], Mas nada poderá fazer com ele nem nada
possuirá de fato se não dispuser de capital suficiente para cultivar o seu terreno'. Cf. A
Ideologia
8
Alemá, p.97.
"Na prática, o abuttl [direito de abusar] tem limitações econômicas bem determinadas para o
proprietário privado se este não quiser que sua propriedade, e com ela seu jus abutendi, passe
para outras mãos", Ibidem.
iU NIV E R SIO A O E
W j UNIGRANRIO ;
n Mm óc
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ISSN: 1984-7920 •
S o b a regência d o m o d o d e ^ p r o d u ç ã o capitalista a p r o p r i e d a d e
t r a n s p a r e c e d e s c o l a d a da c o m u n i d a d e ; e o direito predomina s o b a forma d e
lei, d e c a l c a d o d o s c o s t u m e s . Assim, o E s t a d o s ó p o d e figurar c o m o u m a
a b s t r a ç ã o diante d a s o c i e d a d e civil 9 .
9
"Dado que a propriedade se emancipou da comunidade, O Estado adquiriu uma existência
particular junto da sociedade civil e fora dela; mas esse Estado não é mais do que a forma de
organização que os burgueses constituem pela necessidade de garantirem mutuamente a sua
propriedade e os interesses tanto no exterior como no exterior!'. Idem, p. 95.
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UNIGRANRIO
w a/ta «a Miatenlu REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http.7/publicacocs. uni granrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
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o interesse natural, universal, e m prol do bem comum . Essa burguesia
penetra no E s t a d o paulatinamente, "através d o s impostos, inteiramente caldo
n a s s u a s m ã o s pelo s i s t e m a da dívida pública e cuja existência depende
exclusivamente, pelo jogo d a alta e d a baixa dos valores do Estado na Bolsa [ej
do crédito comercial q u e lhe c o n c e d e m o s proprietários privados" (Ibidem).
"A burguesia, por ser já uma classe e não uma simples ordem, é constrangida a organizar-se
á escala nacional e já não exclusivamente num plano local, e a dar uma forma universal a seus
Interesses comuns". Ibidem.
20
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VÍ Mmtosobto.1to REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
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ISSN: 1984-7920
O b s e r v e m o s a l g u m a s p a s s a g e n s luminosas d e O Manifesto:
0
"A história de toda sociedade até hoje é a história da luta de
classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo,
mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos,
sempre estiveram em constante oposição uns aos outros.
(...)
A moderna sociedade burguesa, surgida da ruína da sociedade
feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas
estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas
formas de luta em lugar das antigas.
(...)
Na mesma proporção em que se desenvolve a burguesia, ou
seja, o capital, desenvolve-se também o proletariado.
(...)
porém, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não
apenas se multiplica (...) Os interesses, as condições de existência no
Interior do proletariado igualam-se cada vez mais à medida que a
R e s u m i n d o o a r g u m e n t o : a p e s a r d e já constituída e r e p r e s e n t a d a
e m s u a s múltiplas f r a ç õ e s , a burguesia n ã o d e t é m e f e t i v a m e n t e a h e g e m o n i a
política - fato q u e decorre tanto d a s lutas i n t e r n a s c o m o do confronto c o m
r e s í d u o s do p a s s a d o feudal. S o m e n t e a c o n s o l i d a ç ã o d a b u r g u e s i a industrial
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/S5iV> 1984-7920
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vi Mm do sou do mio REVISTA DE DIREITO DA UNICRANRIO
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ISSN: 1984-7920
m e l h o r , a n e c e s s i d a d e d e p e r í o d o s d e a p a r e n t e i n d e p e n d ê n c i a d o E s t a d o para
24
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ISSN: 1984-7920
e c o n o m i a 1 2 . Mais à f r e n t e o a r g u m e n t o é c o m p l e m e n t a d o c o m u m a r e f l e x ã o e m
C o n t e x t o s e m q u e a s c l a s s e s s e m o s t r a m i n c a p a z e s d e d e t e r p o r si
12
Note-se a freqüência com que Marx recorre à metáfora do teatro quando lida com a dinâmica
política.
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vi Mn,,fowtoteauto REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
Prof.Dr. Jaime Cunha http://publicacoes.unigranrio.cdu.br/indcx.php/rdugr
FCS/IFCH/UFPA ISSN: 1984-7920
1
"A libertação do trabalho exige a transformação dos produtos [instrumentos, na tradução aqui
usada] do trabalho em patrimônio comum da sociedade e a regulamentação do trabalho
coletivo pela comunidade, com afetação de uma parte do produto às necessidades gerais e
distribuição equitatlva do restante". Programa de Gotha (Maio de 1875). In, MARX, ENGELS,
LENINE: Crítica do Programa de Gotha; Critica do Programa de Erfurt, Marxismo e
Revlslonlsmo. Porto, Portucalanse editora, 1971, p.91, itálicos nossos, Tradução modificada
de acordo com o sentido da Interpretação de Marx.
;U N I V E R 5 I 0 A D E ....,-.«•
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M M , * * . * * . . ' : - R E V I S T A DE D I R E I T O DA U N I C R A N R I O
http://miblicacocs. unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: №4-7920
S a b e n d o Marx s e r e s s e último o e n t e n d i m e n t o a q u e o s l a s s a l i a n o s
almejam chegar, dedica-se a esclarecer seu conteúdo retórico e sua
capitulação diante do reformismo. Nessa trilha, destaca e interroga o
significado da e x p r e s s ã o "repartição equitativa" à luz d e s e u significado no
Direito m o d e r n o : "Não afirmam o s burgueses que a repartição atual é
'equitativa'? E realmente, na b a s e do atual m o d o d e produção, n ã o é a única
repartição 'equitativa'?" (MARX: 1971, 17). É importante justificar o c o n t e ú d o
irônico e a p a r e n t e m e n t e controvertido d e s s e q u e s t i o n a m e n t o .
14
Nesse prisma, não há classes, só indivíduos. Há de se notar também que, ao contrário do
que se poderia pensar, não há convergência, mas sim divergência de interesses: o indivlduo-
trabalhador quer vender sua força de trabalho, e o indivtduo-capitalista, comprá-la. É isso o que
estabelece uma finalidade comum, a troca.
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http://publicacocs.urugranrio.edu.br/indcx.php/rdugr
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ProJ.Dr. Jaime Cunha "Í*"!"'H,,J"" REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
FCS/IFCH/UFPA http://nublicacoes.unigranrio.edu.br/indcx.ohp/rdugr
ISSN: 1984-7920
Note o leitor que essa concepção é semelhante â de Marx no contexto d'0 Manifesto do
Partido Comunista, e que foi superada, desde O Dezoito Brumário, conforme demonstrado
acima.
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ISSN: 1984-7920
que, s e possível, recorra a o s textos .do próprio para montar sua própria
reflexão.
Como g r a n d e parte d e s u a obra é d e leitura reconhecidamente
intrincada e s e m p r e referida a e r e f e r e n d a d a e m conceitos e contextos mais
a m p l o s do q u e o s e x p o s t o s no momento, cumprirá c o m êxito e júbilo esse
trabalho s e a j u d a r o leitor em s u a própria leitura d e Marx com esclarecimentos
sobre t e m a s , idéias e e v e n t o s nem s e m p r e evidenciados num dado texto em
apreciação.
" Do primeiro, temos Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1986,6 0
Estado, O Poder, O Socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1981; do segundo, O Estado na
Sociedade Capitalista, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1972, e Marxismo e Política,
20
Nesse campo a oferta de textos é abundante, figurando Inclusive em diversas coletâneas
temáticas. Para citar só autores os incontornáveis: Lenin, Rosa Luxemburgo, Kaustky e
Bernsteln.
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ISSN: 1984-7920
R E F E R Ê N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
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ISSN: 1984-7920
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CRÍTICA
DO DIREITO
1
L I V R A R I A E D I T O R A CIÊNCIAS HUMANAS
SÃO PAULO
1980
CRÍTICA DO DIREITO
Revista dirigida p o r :
Márcio B. Naves
i
J . M. de Aguiar Barros
© Copyright by
LECH - LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LIDA.
Rua Sete de Abril, 264 - Subsolo B - Sala 5 - CEP 01044
São Paulo - SP
Impresso no Brasil Printed in Brazil
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5
uso de sua força de trabalho, deixando que seja consumida
pelo comprador antes que este tenha pago seu preço;
por t o d a parte, portanto, o trabalhador abre u m crédito
para o capitalista. T a n t o isso não é uma ilusão que, por
vezes, em virtude duma falência do capitalista, ele perde
o salário creditado; além do mais o demonstra uma série
de conseqüências mais duradouras. N o entanto, nada se
altera na natureza da mercadoria se o dinheiro funciona
c o m o meio de compra ou de pagamento. 0 preço da
força de trabalho é fixado contratualmente, embora só
se realize posteriormente, tal c o m o o preço de aluguel
duma casa. A força de trabalho é vendida, a despeito de
ser paga mais tarde. Para a pura compreensão do que
acontece é útil todavia, por enquanto, pressupor que o
possuidor da força de trabalho, pela venda, receba logo
a seguir o preço contratual estipulado.
7
reflecir sobre as questões j u r í d i c a s que ele coloca. Cabe ter presente
desde o início que n ã o existe u m a teoria do Direito e m Marx, nele
p o d e m o s e n c o n t r a r apenas"~ãlgüns fragmentos, sendo q u í l T m ã i o r ,
as observações aos parágrafos finais da Filosofia do Direito, de
Hegel, deve ser m a n u s e a d o c o m m u i t o cuidado. De f a t o , a despeito
do brilhantismo da polêmica, da análise percuciente sobre a buro-
cracia e a alienação do e s t a d o , estas observações inacabadas se
m o v e m n o interior d u m a lógica feuerbachiana, onde a essência d o
h o m e m f u n c i o n a c o m o m a t r i z da dialética, paradigma a medir o
processo de alienação. Desse m o d o , as teses d o jovem Marx f i c a m
subordinadas a u m a antropologia f u n d a n t e , certa matriz de h u m a -
nioade que foi destruída pela instalação da propriedade privada e que
o c o m u n i s m o teria a missão de restaurar. Daí o caráter moralizante
de suas análises, que chegam a censurar Ricardo por c o n f u n d i r
h o m e n s c o m chapéus. S o m e n t e depois de 1844, graças a uma leitura
mais a p r o f u n d a d a da E c o n o m i a Política clássica, Marx a f i r m a r á :
n ã o é m a i s Ricardo que f a z aquela c o n f u s ã o , sendo esta u m vício
d o p r ó p r i o sistema. Mas e n t ã o n ã o se obriga a encontrar o u t r o
f u n d a m e n t o para sua dialética?
t
preço. Este valor, porém, parece como se fosse um atributo duma
coisa, no mesmo nível que a cor vermelha ou a extensão, embora,
na verdade, se resolva na relação duma coisa útil que encontra
em muitas outras seu valor de troca. Em suma, o valor nada mais
é do que aquele fugdamento da igualdade que os comportamentos
de troca passam a postular, na medida em que se repetem e os
agentes se apresentam no mercado como produtores independentes
daquilo que vendem — o trabalho social e abstrato constitui o
cerne desse postulado. É nesse sentido que uma análise do compor-
tamento só se torna inteligível depois do exame daquela forma
que serve de p,onto de referência, é\ de aglutinação de condutas
particulares.
O objeto mercadoria se define, pois, como algo determinado
por uma troca equivalente, capaz de reduzir todos os produtos
de trabalhos concretos a parcelas dum trabalho abstrato. Por sua
vez os agentes são especificados tão-só como trocadores, indivíduos
cujas determinações consistem naqueles atributos necessários para
pôr em funcionamento a operação de troca. Quais são eles? E m
primeiro lugar, cada um precisa reconhecer no outro o proprietário
do valor de uso de que carece, senão poderia simplesmente capturá-lo.
Recordemos que as relações num mercado ocorrem sem pressupor
qualquer outro tipo de sociabilidade, os agentes atuando como
estranhos, referindo-se a si mesmos e aos outros unicamente como
proprietários de objetos trocáveis. Possuindo reconhecidamente
um objeto trocável por qualquer outro, o agente vem a ser aquele
que por meio de sua coisa abarca uma parcela de valor, do trabalho
abstrato e social. 0 proprietário duma mercadoria não se confunde,
portanto, com o proprietário duma coisa qualquer, apresenta-se,
como aquele que partilha do comum das coisas, estando de posse
de algo que se dá como manifestação duma entidade abstrata, o
valor. Em conseqüência, determina-se como alguém que pode ter
este ou qualquer objeto diferente do mesmo valor; antès dè possuir
isto ou aquilo tem algo que se converte indiferentemente nisto
ou naquilo. Esta capacidade prática de particularizar-se numa coisa
chama-se, na filosofia do século XIX, vontade. Assim sendo, os
proprietários de mercadorias se reconhecem como vontades autô-
nomas, na medida em que independem do conteúdo que vierem a
abranger. E vontade autônoma é sinônimo de pessoa. A relação
de troca se dá, assim, como ato de vontade entre duas pessoas,
pelo qual elas resolvem restringir sua universalidade abstrata; o
querer qualquer coisa vem a ser o querer algo em detrimento daquilo
que se possuia antes. Desse m o d o , a relação aparece c o m o u m
contrato. No entanto, este aparecer tanto concretiza a relação c o m o
encobre seu f u n d a m e n t o , pois o que se f u n d a numa relação
mercantil - onde u m valor de uso se determina como valor por
encontrar sua medida noutros valores de troca — surge como relação
entre duas pessoas que simplesmente desejam coisas, ao invés de
mercadorias. Para satisfazerem seus carecimentos estão dispostas a
sacrificarem algo de seu. No lugar da relação formal entre coisas que
se dão c o m o aparências dum mesmo f u n d a m e n t o , o valor, surgem
pessoas entabulando contratos. Mas com isso se esquece que tais pes-
soas só podem operar c o m o vontades autônomos, desligadas de qual-
quer sociabilidade prévia, unicamente e n q u a n t o indivíduos que ser-
vem tão-só para realizar a trocabilidade das mercadorias.
11
vinculados exclusivamente pela promessa contraída. Já n o p r ó p r i o
nível da circulação, o dinheiro, que naturalmente nas trocas v e m
a ser meio de troca, f u n c i o n a c o m o m e i o de pagamento, algo que
procura ressarcir u m a promessa antiga. Com isso o t r a b a l h a d o r ,
durante uma semana o u u m mês, passa a creditar ao capitalista o
trabalho que paulatinamente vai e f e t u a n d o . Tanto é assim que
ele p o d e t u d o perder com a falência da firma. Do p o n t o de vista
da c o m p r a e venda da força de trabalho a operação se efetiva pelo
c o n t r a t o e, finalmente, pelo pagamento posterior; t u d o se passa
c o m o se o comprador alugasse alguém para cumprir u m a tarefa
por u m t e m p o determinado. Se n ã o fosse o c o n t r a t o e o m e d o
de perder o que já foi feito, o operário poderia muito b e m a b a n d o n a r
o emprego quando entendesse que já teria prestado ao p a t r ã o os
serviços equivalentes a seu salário. No m e r c a d o impera e m geral
a desconfiança, ninguém entrega uma mercadoria se a o m e n o s
não tiver em mãos u m p e d a ç o de papel c o m o promessa d u m valor
correspondente. Nos dias de h o j e , c o m a quebra do p a d r ã o o u r o ,
esta promessa é garantida e m tese pelo Estado, que, ainda, se
aproveita desse crédito para regular u m a inflação que diminui
o valor efetivo do salário. N o m e r c a d o da força de t r a b a l h o ,
e n t r e t a n t o , o operário só recebe a promessa contratual de ganhar
u m salário n o fim do m ê s , q u a n d o já pôs em exercício a f o r ç a
alugada, n o sentido de produzir novas mercadorias. Aqui se revela
' o segredo da exploração capitalista; u m empregado d o m é s t i c o
pode ser sugado por seu p a t r ã o até a estafa, como p o r é m n ã o está
produzindo mercadorias f u t u r a s o p r o d u t o de seu t r a b a l h o não
surge c o m o valor mercante. Só aquele que opera para o capitalista
termina f o r n e c e n d o u m c o n j u n t o de objetos que vão adquirir valor,
a saber, penetrar no circuito das trocas equivalentes. Percebemos
assim c o m o o pressuposto da equivalência torna-se a c o n d i ç ã o
para u m relacionamento desigual; já que a entrada e a saída do
processo estão f o r n e c e n d o o b j e t o s que, por princípio, são t r o c a d o s
por seus equivalentes, o m o v i m e n t o que resulta na p r o d u ç ã o d u m
valor excedente, surge na superfície c o m o troca entre iguais. Nesse
sentido, o trabalho do e m p r e g a d o doméstico e o t r a b a l h o do
operário aparecem c o m o se estivessem sendo sido pagos pelo que
p r o d u z e m e n ã o pelo que valem c o m o mercadorias a serem vendidas.
Desse m o d o , a categoria de salário vem encobrir o f a t o da explo-
r a ç ã o de c u n h o capitalista, apresentando-a c o m o u m f e n ô m e n o
p e r t e n c e n t e à esfera da circulação.
N ã o c o n v é m insistir nestas teses ultra-conhecidas; i m p o r t a - n o s " "
apenas frisar c o m o u m a troca de equivalentes converte-se n o seu
c o n t r á r i o graças à pressuposição efetiva d u m c o n t r a t o . Uma relação
j u r í d i c a , i m p l í c i t a n a s operações de venda e c o m p r a da força de
t r a b a l h o e explicitada pelas leis trabalhistas, v e m coonestar uin
f a t o de d o m i n a ç ã o . Graças a u m a espécie de projeção d o f e n ô m e n o _
p r o d u t i v o para o t e c i d o da circularão, o vínculo capital-trabalho
legitima-se c o m o f e n ô m e n o igualitário. Aqui reside o p o d e r expli-
cativo da categoria m a r x i s t a ; n ã o se trata u n i c a m e n t e de desenhar
u m m o d e l o r e d u z i d o do real, mas antes de t u d o e n c o n t r a r sob
a capa de sua s u p e r f í c i e o processo que o engendra c ò m o figura
repetindo-se sistematicamente. O mercado é o t e r r e n o da liberdade,""'
igualdade e segurança da propriedade individual. Mas para q u e
possa f u n c i o n a r c o m o o lugar o n d e se t r o c a m mercadorias q u e ,
p o r sua vez, são p r o d u z i d a s por outras mercadorias, é preciso q u e
u m a desigualdade f u n d a m e n t a l se instaure c o m o f o n t e d u m a
circulação ampliada. Más q u e m percebe apenas a figura c o n s t i t u í d a , _
o f e n ô m e n o n o seu aparecer, n ã o é capaz de ir além da igualdade
e n t r e o t r a b a l h o e o salário. O esforço de seu c o n h e c i m e n t o , sejam
quais f o r e m suas i n t e n ç õ e s , resulta n u m a ideologia, n ã o t a n t o
p o r q u e se deixa c o n t a m i n a r por seus interesses o u pelos interesses
de sua classe, mas antes de t u d o porque estes o c o n d u z e m a detectar
n o real tão-só as figuras da aparência. Uma ideologia n ã o é t a n t o
u m a idéia falsificada por u m a viés qualquer, mas s o b r e t u d o o
e s p e l h a m e n t o d u m objeto que c o m o tal esconde seu processo
de individualização e repetição. Com isso percebemos o lugar da
crítica d o Direito n o interior d u m marxismo vivificado. Se na
verdade participa da super-estrutura duma sociedade, isto n ã o
significa que u m a n o r m a j u r í d i c a deixa de indicar u m a condição
de existência d u m a relação infra-estrutural. A p e n a s o c o n t e ú d o
dessa c o n d i ç ã o só p o d e ter seu lugar de nascimento onde se cruzam
relações de p r o d u ç ã o e relações de circulação, vale dizer, o n d e emerge
aquela imbricação q u e dá origem a relações sociais de p r o d u ç ã o .
Além d o mais, p e r c e b e m o s ainda que uma n o r m a jurídica n ã o se
13
resolve n u m m a n d a m e n t o , n u m dever ser q u a l q u e r , mas ainda
exprime u m a condição existente que se cola e ilma relação social
de p r o d u ç ã o c o m o bastidor que ela m e s m a cria para d e m a r c a r o
terreno de sua atuação. A n o r m a surge assim d e n o t a n d o u m a
existência, reportando-se a u m c o n t e ú d o q u e se expraia além dela.
Decorre d a í uma exigência m u i t o peculiar de q u a l q u e r crítica
dialética do Direito. Torna-se inócua t o d a investida generalizada,
que n ã o se p r o p o n h a a tarefa de esmiuçar, graças a u m a análise
catigorial e histórica, os c o n t e ú d o s sociais q u e p e r m i t e m a n o r m a .
Só agindo levando e m conta o p o r m e n o r será possível d e t e c t a r
o que a n o r m a j u r í d i c a revela e o que ela esconde. É inútil u m a
crítica ao f o r m a l i s m o do direito burguês se n ã o f o r m o s capazes
de a p o n t a r a f o n t e de seus c o n t e ú d o s . A história desses últimos
anos n o s t e m m o s t r a d o a que n ó s leva u m a d e n ú n c i a da liberdade
e da igualdade burguesas que, de u m l a d o , n ã o t r a t a de, t e o r i c a m e n t e ,
estudar o p r i n c í p i o de cada liberdade e de cada igualdade; de o u t r o ,
de promover praticamente u m a m u d a n ç a social o n d e esse f o r m a -
lismo seja p r e e n c h i d o por instituições capazes de assegurar as
liberdades e as igualdades que a revolução burguesa j á l o g r o u . U m a
crítica do Direito passa pela crítica efetiva das figuras da realidade
capitalista que lhe dão origem, p o r isso ela é h o j e m u i t o mais u m a
tarefa teórica e prática do que Ciência feita e Realidade Efetivada.
14
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K z t -
M&rcio Bilharinho Naves \
M A R X I S M O E D I R E I T O
u m estudo sobre Pachukanis
n r t r j H P ^
E D I T O R I A L
:
!
C o p y r i g h t © M á r c i o B i l h a r i n h o N a v e s , 2000
Revisão
Daniela Jinkings
Eloísa d a Silva A r a g ã o
Elzira Arantes
Capa
Ivana Jinkings e Antonio Kehl
(sobre desenho de Steinlen reproduzido de capa da coleção
"Critique du droit", Presses Universitaires de Grenoble / Maspero.)
Produção gráfica
Sirlei A u g u s t a C h a v e s
Fotolitos
OESP
Impressão e acabamento
Bartira Gráfica e Editora
'ISBN - 8 5 - 8 5 9 3 4 - 6 3 - 8
Ir e d i ç ã o : n o v e m b r o d e 2000
T o d o s o s d i r e i t o s d e s t a e d i ç ã o r e s e r v a d o s à:
BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda.
A v e n i d a P o m p é i a , 1991 - P e r d i z e s
05023-001 - São P a u l o - SP
T e l e f a x (11) 3 8 6 5 - 6 9 4 7 e 3872-6869
E-mail: boitempo@ensino.net
A Wilson Carripos Naves,
in memoriam
Para Marisa
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2
53
Marxismo e direito
26
5
Id., ibid., p. 85, grifos meus, MBN.
6 Id., ibid., p. 86, grifos meus, MBN.
7
Id., ibid., p. 78, grifo meu, MBN.
8
Id., ibid., p. 85, grifos meus, MBN.
9
Id., ibid., p. 85, grifo meu, MBN.
E. Pachukanis, "Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte (K
n e k o t o r y m i t o g a m d i s k u s s i i ) " , in Sovetskoe Gosudarstvo i
Revoliutsiia Prava, n s 10-11, 1930, p. 32-33, grifos meus, MBN.
54
Circulação e forma jurídica
55
Marxismo e direito
15
Id., ibid., p. 75.
16
"Para a filosofia burguesa do direito, que considera a relação jurídica
como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana, tal
questão não chega sequer a ser colocada. Para a teoria marxista, que
se esforça por penetrar nos mistérios das formas sociais e por
reconduzir todas as relações humanas ao próprio homem, essa tare-
fa deve ser colocada em primeiro plano", E. Pachukanis, op. cit., p. 46.
56
Circulação e forma jurídica
17
Id., ibid., p. 45.
18
Cf., além das considerações feitas no capítulo 1, R. Guastini, "La
teoria generale dei diritto in U.R.S.S. Dalla coscienza giuridica
rivoluzionaria alia legalità socialista", op. cit. Sobre o m e s m o pro-
blema da forma jurídica e, e m especial, sobre a diferença entre a
concepção de Pachukanis e de Stutchka sobre tal tema, pode-se
ver Wolf R o s e n b a u m , " Z u m Rechtsbegriff bei Stucka u n d
Pasukanis", in Kritische J u s t i z , n'- 5,1972.
19
Id., ibid., p. 160.
57
Marxismo e direito
«
58
Circulação e forma jurídica
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Marxismo e direito
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Circulação e forma jurídica
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Marxismo e direito
62
Circulação e forma jurídica
63
Marxismo e direito
25
E. Pachukanis, "Obschaia Teoriia prava i marksizm", op. cit., p. 78,
E ainda: "Do mesmo m o d o que a riqueza da sociedade capitalista!
assume a forma de uma imensa acumulação de mercadorias, as-!
sim também a sociedade como um todo apresenta-se como uma
cadeia infinita de relações jurídicas [Podobno tomu kak bogatstvc
kapitalistitdieskogo obschestva príniniaetfomiu gmmadnogoskopleniií
to varo v, samo obschestvo predstavliaetsia beskonetchnoi tsep'ii
iuriditcheskikh otnochenii). A troca de mercadorias pressupõe uma
economia atomizada. A conexão entre as unidades econômicas
privadas e isoladas é feita, caso a caso, por meio de contratos".
26 Id., ibid.,p. 79.
64
Circulação e forma jurídica
27
Id., ibid., p. 102.
28
Id., ibid., p. 105.
65
Marxismo e direito
29
K. Marx, O capital, v. 1,1.1, op. cit., p. 79-80.
66
Circulação e forma jurídica
67
Marxismo e direito
68
Circulação e forma jurídica
69
Marxismo e direito
34
K. Marx, "Troca, igualdade, liberdade", iii Temas de Ciências Hu-
manas, n 2 3,1978, p. 3. (Tradução de u m extrato dos Grundrisse
der Kritik der politischen Õkonomie).
35
Id.,ibid.,p.3.
70
Circulação e forma jurídica
36
Id., ibid., p. 4.
37
Id., ibid., p. 5. E Marx prossegue: "Nenhum se apodera da proprie-
dade do outro com violência. Cada um desfaz-se da mesma vo-
luntariamente. Mas isto não é tudo: o indivíduo A serve à necessi-
dade do indivíduo B por meio da mercadoria a, apenas na medida
em que e porque o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo
A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao
outro a fim de servir-se a si próprio; cada um serve-se do outro
reciprocamente como seu meio", ibid., p. 5.
Id., ibid., p. 6. Marx utiliza termos quase idênticos na primeira
versão de Para a crítica da economia política. Cf. nota 130.
71
Marxismo e direito
72
Circulação e forma jurídica
110
Marxismo e direito
41
Id., ibid., p. 86.
\
42
Id., ibid., p. 88.
43
Cf. E. Pachukanis, "Polojenie na teoretitcheskom pravovom fron-
te (K nekotorym itogam diskussii)", op. cit., p. 41.
44
Pachukanis chega mesmo a dizer que a determinação do direito
pelas relações de produção é lima determinação direta, mas ele se
refere aqui a uma determinação que se verifica já na presença d o
que ele chama de camada de superestrutura jurídica, o que de-
monstra que essa determinação é de a l g y m m o d o mediada.
74
Circulação e forma jurídica
75
Marxismo e direito
76
Circulação e forma jurídica
4
J. Michel, Marx et la société juridique, op. cit., p. 195.
50
Cf. id., ibid.
77
I I
Marxismo e direito
78
Durkheim e o Fenômeno
Jurídico na Obra
Da Divisão do Trabalho
Social: ensaio crítico
J o ã o
Maurício Martins d e Abreu
Advogado. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF.
Professor de Direito Civil da UNESA (licenciado).
1-INTRODUÇÃO
1 Tese de doutoramento escrita no último quarto do século XIX, em meio ao processo de masslva Industrialização
capitaneado pela Inglaterra. DURKHEIM. Émile. Da divisão do trabalho social. 2®ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
2 É importante, desde já, pontuar em que sentido é concebida dita moralidade social para o autor: trata-se de um
estado de dependência que liga o indivíduo à sociedade e conforma a conduta daquele às normas provenientes
desta. Op. cit., 2004, p. 420-1.
3 Dentre os muitos pontos de contato com os pressupostos do positivismo, destacam-se do pensamento durkhei-
miano os seguintes: a reflexão cientifica deve partir da realidade sensível e o conhecimento científico é neutro. Cf.,
com breve exposição da classificação usual das teorias sociológicas e, em caráter propositivo, com uma perspectiva
classificatória própria, MELLO Marcelo P. "Vertentes do pensamento sociológico empirista e naturalista e algumas
razões para se duvidar delas". In: Sociologia e direito: explorando as Interseções. Niterói: PPGSD, 2007, p. 9-37.
4 Não são raras as referências do autor a graus hierarquizados de sociedade: das simples (ou, como ele mesmo
denomina, primitivas), às complexas. As transformações sociais obedeceriam, portanto, a um processo evolutivo
das sociedades, onde o lugar da mudança não é a revolução, mas a evolução. V. GIDDENS, A. Apud SOUZA, Ricardo
Luiz. "Normas morais, mudanças sociais e individualismo segundo Durkheim". In: Confluêndas. Niterói: PPGSD, nov.
2007, v. 9.2, p. 72.
5 Em oposição ao individualismo metodológico, que tem em Hobbes um de seus mais notórios defensores, Durkheim
postula que a sociedade é uma espécie de sujeito transcendente e sul generis, maior do que a soma dos Indivíduos
que a compõem e modulador de suas relações sociais; para ele, "a sociedade determina tudo: a divisão do traba-
lho, o crime, o suicídio, as formas de classificação, a religião e as demais representações coletivas" (...), que "nada
mais significam em si mesmos; eles encontram as razões de sua existência na capacidade de expressar ou projetar
a existência da própria sociedade" (p. 157). VARGAS, Eduardo V. "Durkheim e o domínio da sociologia". In: Antes
Tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contracapa/FAFICH/UFMG,
2000, p. 129-161.
6 A noção de fato social foi exposta em DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 1963.
Para uma sfntese sobre o tema, cf. DURKHEIM, E. "O que é fato social?" In: Rodrigues, José Albertino (org.). Émile
Durkheim. São Paulo: Ática, 1988, p. 46-52.
(...)
[Os crimes] ríão sõo apenas gravados em todas as consci-
ências: são fortemente gravados. Não são veleidades hesi-
tantes e superficiais, mas emoções e tendências fortemente
arraigadas em nós. O que o prova é a extrema lentidão com
a qual o direito penal evolui
12 É claro que qualquer opção metodológica traria inconvenientes; no entanto, especialmente para a análise das
sociedades complexas, onde o intercâmbio e a Importação de legislações são uma prática comum, gerando muitas
semelhanças no âmbito do Direito posto, pareceria mais aconselhável, para os fins a que se propõe Durkheim, ana-
lisar o modo como são aplicadas essas mesmas normas jurídicas aos casos concretos, sob pena de se encontrarem
mais similitudes do que realmente existem.
13 Por todos, cf. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 6» ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p, 42-44.
188 |r. EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l | 179
Prof.Dr.MmeC
FCS/IFCH/UF^
14 Essa visão, baseada em escritos da juventude de K. Marx, postula um determinismo puro e simples das re-
lações e instituições Jurídicas pelas relações econômicas que lhes servem de base, negando à Instância jurídica
qualquer valor no processo de emancipação da classe trabalhadora. Contra essa perspectiva, remetendo-se a
escritos da maturidade de Marx e de F. Engels, cí? MARINS, Maurício V. "Sobre a lei, o Direito e o Ideal: em
torno da contribuição de E.P. Thompson aos estudos Jurídicos". In: Sociologia e Direito: explorando as Interseções.
Niterói: PPGSD, 2007, p. 39-71.
15 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4' ed. Rio de Janeiro: Revan, p. 57.
16 Sobre o lugar do Direito na perspectiva marxista, cf. as Interessantes discussões suscitadas em MARTINS, Maurí-
cio V. Op. clt., bem como o texto clássico sobre o tema: MIAILLE, Michel, Introdução crítica dp Direito. 2' ed. Lisboa:
Estampa, 1994, especialmente p. 75-84 e 86-103.
179
189 | r . EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l |
francesa, ponderemos se essa afirmação é generalizável a todos os orde-
namentos jurídicos de tradição romano-germânica, como o é o francês:
valeriam as reflexões de Durkheim para todos os ordenamentos baseados
na autoridade da lei posta pelo Estado? 17
Certamente, não.
Especialmente em formações sociais recentes e consideradas peri-
féricas ou semlperiféricas, na economia' e na política internacional, como
ainda o é a brasileira, e m que o sentimento de nacionalidade é incipiente,
a influência e às vezes até a submissão a padrões estrangeiro^ de com-
p o r t a m e n t o e de pensamento são uma marca secular. Sérgio Buarque de
Holanda, já no p r i m e i r o parágrafo de seu livro mais conhecido, sen-
tenciava: "somos ainda hoje uns desterrados e m nossa terra" (Holanda:
1995, p. 31). Diferentemente do que ocorre na França, p. ex., que d e t é m
uma tradição jurídica própria e arraigada pela população, a tradição jurí-
dica brasileira ainda está por construir, t e n d o vivenciado durante muitos
anos, e esforçando-se para deixar de vivenciar, a pura e simples importa-
ção de modelos legislativos estrangeiros e sua aplicação às relações jurídi-
cas locais: importações de Portugal, da França, da Alemanha, da Itália, dos
Estados Unidos da América etc.
Um sinal disso, marcado em nossa história, é que, até o ano de
1917, quando passou a viger o primeiro Código Civil brasileiro, após qua-
se 100 (cem) anos de independência, sendo 28 (vinte e oito) dá regime
republicano, permaneciam em vigor, para regular as relações civis, as Or-
denações Filipinas, publicadas no longínquo ano de 1603, durante a do-
minação espanhola sobre Portugal. E, curiosamente, quase 50 (cinqüenta)
anos antes de serem revogadas no Brasil, as Ordenações Filipinas já ha-
viam sido revogadas em Portugal! 18
Ora, será possível defender que nas Ordenações Filipinas de 1603,
uma obra de espanhóis e portugueses, estariam retratados os elos de co-
operação, ou a consciência coletiva, da sociedade brasileira do século XIX,
cujas relações civis elas regiam? Parece certo que não.
Mas n e m mesmo se progredirmos para o Código Civil de 1916, obra
de um grande brasileiro, Clóvis Bevilacqua, elogiada por juristas de t o d o
17 Sobre a distinção entre a tradição romano-germânica e a anglo-saxônlca, baseada na autoridade dos precedentes
judiciais, orientados pelos costumes, cf. DAVI D, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, especialmente p. 31-171 e 351-508.
18 Sobre o tema, cf. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, especialmente p. 1-23.
19 "Art. 1.807. Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes
às matérias de direito civil reguladas neste Código."
20 GOMES, Orlando. Op. cit., p. 45.
21 Sobre a tradição romano-germânica e sobre sua expansão além da Europa, cf. DAVID, René. Op. cit. p. 33-81.
179
191 | r . EMERJ, Rio d e Janeiro, M. 14, n. 56, p, 179-192, out.-dez. 2 0 1 l |
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA
4 - C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S : U M A TESE D A T A D A ?
Cláudio Souto
e
Joaquim Falcão
(da Universidade Federal de Pernambuco
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(organizadores)
2a Edição Atualizada
THOIVJSOINJ
* i-..
Austrália Brasil Canadá Cingapura Espanha Estados Unidos México Reino Unido
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
CDD-371.3 97
j
j
j
J
)
)
Divisão do Trabalho Social e Direito 1
Émile Durkheim
1
Oiiyàp èx àio larpCjv yíyveTaixoivuivia, a\\' è(íarpov x«í yeuipyoü X"' 8\u<; èrépojv
5
oux l'au>f (Éthique à Nicomaque, E , 1 1 3 3 o , 16).
Journal des Êconomistes, Nov. 1884, p. 211.
100 SOCIOLOGIA E DIREITO
3
De Candolle, Histoire des Sciences et des Savants, 2? ed. p. 263.
4
Loc. cit.
DIVISÃO DO T R A B A L H O SOCIAL E DIREITO 101
instituição social que tem a sua origem na inteligência e na vontade dos homens;
mas é um fenômeno de biologia geral de que é preciso, parece, ir procurar as
condições nas propriedades essenciais da matéria organizada. A divisão do trabalho
social já não aparece senão como uma forma particular deste ptocessus geral, e
as sociedades, conformando-se a essa lei, parecem ceder a uma corrente nascida
bem antes delas e que arrasta num mesmo sentido o mundo vivo por inteiro. ( . . . )
É nos necessário afastar essas deduções, que são geralmente empregadas
apenas para fazer as vezes de argumento e justificar, de seguida, sentimentos
preconcebidos e impressões pessoais. A única maneira de se chegar a apreciar
objetivamente a divisão do trabalho é estudá-la primeiro em si mesma de uma
forma abstrata, procurar saber para que serve e de que depende, numa palavra,
formar dela uma noção tão adequada quanto possível. Feito isto, estaremos em
condições de a comparar com os outros fenômenos morais e de ver quais as
relações que ela mantém com eles. Se achamos que desempenha um papel similar
a |qualquer outra prática cujo caráter moral e normal é indiscutível, e se em
certos casos ela não desempenha esse papel, isso é conseqüência de desvios anot-
m|ais; e se causas que a determinam são também as condições determinantes de
ostras normas morais, poderemos concluir que ela deve ser classificada entre estas
últimas. E assim, sem querer substituir-nos à consciência moral das sociedades,
m pretender legislar em seu lugar, poderemos trazer-lhe um pouco de luz e
diminuir as suas perplexidades.
O nosso trabalho dividir-se-á, assim, em três partes principais:
Procuraremos, primeiro, saber qual é a função da divisão do trabalho, isto
a que necessidade social corresponde;
Determinaremos, em seguida, as causas e as condições de que depende;
Finalmente, como ela não teria sido objeto de acusações tão graves se
realmente não se tivesse desviado, mais ou menos freqüentemente, do estado
n írmal, procuraremos classificar as principais formas anormais que ela apresenta,
a fim de evitar que sejam confundidas com as outras. Este estudo oferecerá, além
dsso, o interesse seguinte: é que aqui, como em Biologia, o patológico ajudar-
-rios-á a compreender melhor o fisiológico.
De resto, se tanto se discutiu sobre o valor moral da divisão do trabalho, é
niuito menos porque não se está de acordo sobre a fórmula geral da moralidade, do
qüe por se ter negligenciado em demasia as questões de fato que vamos abordar.
Sempre se raciocinou como se elas fossem evidentes; como se, para conhecer a
natureza, o papel, as causas da divisão do trabalho, bastasse analisar a noção que
cada um tem acerca disso. Um tal método não leva a conclusões científicas; por
iiso, depois de Adam Smith, a teoria da divisão do trabalho bem poucos progressos
fez." Os seus continuadores, diz Schmoller 5 , com uma pobreza de idéias notável,
agarraram-se obstinadamente aos seus exemplos e às suas notas até ao dia em que
A divisão do trabalho estudada do ponto de vista histórico, in Rerue d'Écon. Pol, 1889,
p. 567.
102 SOCIOLOGIA Ê DIREITO
6
Após 1893, duas obras apareceram, ou chegaram ao nosso conhecimento, que interessam à
questão tratada no nosso livro. Foi primeiro a Sociale Differenzierung de Simmel (Leipzig,
V i l - 1 4 7 p.), onde não é abordada em particular a questão da divisão do trabalho, mas,ide
uma forma geral, a do processus de individuação. Depois, o livro de Bücher, Die Entstehung
der Wolkswirtschaft, recentemente traduzido para o francês sob o título deEtudesd'Histoire
et d ' É c o n o m i e Politique (Paris, Alcan, 1901), e o n d e vários capítulos são consagrados à
divisão d o trabalho econômico.
DIVISÃO DO T R A B A L H O SOCIAL E DIREITO 103
i
seus encontros fossem raros, eles não dependeriam uns dos outros senão de uma
maneira intermitente e fraca. Por outro lado, o número destas relações é necessa-
riamente proporcional ao das normas jurídicas que as determinam. Com efeito, a
vida social, por todo o lado onde ela existe de uma maneira durável, tende inevi-
tavelmente a tomar uma forma definida e organizar-se e o direito não é outra coisa
senão esta mesma organização,; naquilo que ela tem de mais estável e de mais
preciso 7 . A vida geral da sociedade não pode estender-se num rei to sentido sem que
a vida jurídica para aí se estendaao mesmo tempo e na mesma proporção. Podemos
assim estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais
da solidariedade social.
Poder-se-ia objetar, é verdade, que as relações sociais podem fixar-se sem
tomarem para isso uma forma jurídica. "Assiiçi é, quando a regulamentação não
atinge um dado grau de consolidação e de precisão; mas nem por isso aquelas
relações ficam indeterminadas; em vez de serem reguladas pelo direito, são-no pelo
costume. O direito não reflete, portanto, senão uma parte da vida social e, por
conseqüência, não nos fornece senão dados incompletos para resolver o problema.
Há mais: acontece freqüentemente que os costumes não estão em concordância
com o direito; diz-se incessantemente que aqueles lhe moderam os rigores, que
lhe corrigem os excessos formalistas, por vezes mesmo que estão animados de
um espírito completamente diferente. Não poderá acontecer que manifestem
espécies de solidariedade social diferentes daquelas que o direito positivo exprime?
Mas esta oposição somente se produz em circunstâncias absolutamente
excepcionais. É preciso para isso que o direito já não corresponda à situação
vigente na sociedade e que, no entanto, êie se mantenha, sem razão de ser, pela
força do hábito. Como efeito, neste caso, e apesar disso, as novfcs relações que
se estabelecem não deixam de se organizar; porque não podem subsistir sem
procurar consolidar-se. Somente, como estão em conflito com o antigo direito
que persiste, não ultrapassam o estádio dos costumes e não chegam a entrar na
vida jurídica propriamente dita. Ê assim que surge o antagonismo. Mas este não
se pode produzir senão em casos raros e patológicos, que não podem prolongar-se
sem perigo. Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, pelo con-
trário, constituem-lhe a base. Pode acontecer, é verdade, que sobre esta base nada se
erga. Pode haver relações sociais que apenas comportem essa regulamentação difusa
que provém dos costumes, mas é porque carecem de importância e continuidade,
exceto, bem entendido, nos casos anormais que acabamos de tratar. Assim, se pode
acontecer que haja tipos de solidariedade social que só os costumes manifestam,
são certamente muito secundários; pelo coritrário, o direito reproduz todos aqueles
que são essenciais e esses são os únicos que temos necessidade de conhecer.
Poder-se-á ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não se encontra
por completo nas suas manifestações sensíveis? Que estas apenas a expressam
em parte e imperfeitamente? Que para além do direito e dos costumes existe o
7
V. infra, liv. Ill, cap. 1? (v. vol. II).
104 SOCIOLOGIA E D I R E I T O
estado interior donde ela deriva e que, para a conhecer verdadeiramente, é preciso
atingi-la em si própria e sem intermediários? Mas não podemos conhecer cientifica-
mente as causas senão através dos efeitos que produzem, e, para melhor determinar
a sua natureza, a ciência não faz senão escolher de entre esses resultados aqueles
que são mais objetivos e que melhor se prestam à medida. Ela estuda o calor através
das variações de volume que as mudanças de temperatura produzem nos corpos, a
eletricidade através dos seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento.
Por que é que a solidariedade social haveria de ser exceção?
Aliás, o que é que subsistiria dela uma vez despojada das suas formas sociais?
O que dá as suas características específicas é a natureza do grupo de que ela
assegura a unidade, é por isso que ela varia consoante os tipos sociais. Ela não é a
mesma no seio da família e nas sociedades políticas; nós não estamos vinculados à
nossa pátria da mesma maneira que o Romano estava à cidade, ou o germano à
sua tribo. Mas porque estas diferenças têm que ver com causas sociais, só podemos
configurá-las através das diferenças que os efeitos sociais da solidariedade apre-
sentam. Assim, se negligenciarmos estas últimas, todas estas variedades se tomam
indiscerníveis e já não nos apercebemos senão do que lhes é comum a todas, a
saber, a tendência geral à sociabilidade, tendência que é sempre e por todo o lado a
mesma, e não está ligada a nenhum tipo social em particular. Mas este resíduo
não é senão uma abstração; pois a sociabilidade em si não se encontra em parte
alguma. O que existe e vive realmente são as formas particulares da solidariedade, a
solidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, a de
ontem, a de hoje, etc. Cada uma tem a sua natureza própria; por conseqüência,
estas generalidades não poderiam em qualquer caso dar do fenômeno senão uma
explicação bem incompleta, pois que deixam necessariamente escapar aquilo que
têm de concreto e de vivo.
O estudo da solidariedade releva assim da Sociologia. É um fato social que
não se pode conhecer bem a não ser por intermédio dos seus efeitos sociais. Se
tantos moralistas e psicólogos puderam tratar da questão sem seguir este método,
foi porque tornearam a dificuldade. Eliminaram do fenômeno tudo o que ele
tem de mais especificamente social para apenas reterem o núcleo psicológico de
que ele é o desenvolvimento. Coii efeito, é certo que a solidariedade, sendo em
primeiro lugar um fato social, depende do nosso organismo individual. Para que
ela possa existir, é preciso que a nossa constituição física e psíquica a comporte.
Em rigor, podemo-nos pois contentar em estudá-la sob este aspecto. Mas, neste
caso, dela não se vê senão a parte mais indistinta e menos específica; não se trata
dela propriamente, mas antes do que a torna possível.
Mesmo este estudo abstrato não poderia ser muito fecundo em resultados.
Porque enquanto permanece no estado de simples predisposição da nossa natureza
psíquica, a solidariedade é qualquer coisa de demasiado indefinido para que se
possa facilmente atingi-la. É uma virtualidade intangível que não se abre à obser-
vação. Para que tome uma forma perceptível, é preciso que algumas conseqüências
sociais a traduzam no exterior. Além disso, mesmo nesse estado de indetermi-
nação, ela depende de condições sociais que a explicam e de que, conseqüente-
DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL E DIREITO 11»?
mente, ela não pode ser desligada. Ê por isso que não é raro que nestas análises de
pura psicologia se encontrem misturados alguns pontos de vista sociológicos. Por
exemplo, dizem-se algumas palavras sobre a influência do estado gi-egário na
formação do sentimento social em geral 3 ; ou então indicam-se rapidamente as
principais relações sociais de que a solidariedade depende de maneira mais apa-
rente 9 . Certamente que estas considerações complementares, introduzidas sem
método, a título de exemplo e sugeridas ao acaso, não poderiam bastar para
elucidar grandemente a natureza social da solidariedade. Elas demonstram, pelo
menos, que o ponto de vista sociológico se impõe mesmo aos psicólogos.
O nosso método está assim completamente traçado. Já que o direito repro-
duz as formas principais da solidariedade social, não temos mais do que classificar
as; diferentes espécies de direito para procurar em seguida quais são as diferentes
espécies de solidariedade social que lhes correspondem. Desde já, é provável que
haja uma que simbolize essa solidariedade especial de que a divisão do trabalho é
a icausa. Feito isto, para medir a importância desta última bastará comparar o
número de normas jurídicas que a exprimem ao volume total do direito.
Para este trabalho, não nos podemos servir das distinções comuns dos juris-
consultos. Criadas pela prática, podem ser muito cômodas desse ponto de vista,
mas a ciência não pode contentar-se com estas classificações empíricas e aproxi-
madas. A mais divulgada é a que divide o direito em direito público e em direito
privado; o primeiro é suposto regular as relações entre o indivíduo e o Estado, o
segundo as relações dos indivíduos entre si. Mas quando se trata de analisar os
termos com mais minúcia, a linha de demarcação, que parecia tão nítida à primeira
vista, esbate-se. Todo o direito é privado no sentido em que são sempre e por todo
o lado os indivíduos que se encontram em presença e que agem;mas principalmente
todo o direito é público, no sentido em que ele é uma função social e que todos
os indivíduos são, embora a diversos títulos, funcionários da sociedade. As funções
maritais, paternais etc., não são delimitadas nem organizadas de maneira diferente
das funções ministeriais e legislativas e não foi sem razão que o direito romano
qualificou a tutela de munus publicum. O que é então o Estado? Onde começa e
onde acaba? Sabe-se quanto é controversa a questão; não é científico fazer
assentar uma classificação fundamental numa noção tão obscura e mal analisada.
Para proceder metodicamente é preciso encontrar alguma característica que
sendo essencial aos fenômenos jurídicos, seja susceptível de variar quando eles
variam. Ora, todo o preceito de direito pode ser definido; uma regra de conduta
sancionada. Por outro lado, é evidente que as sanções mudam conforme a gravidade
atribuída aos preceitos, o lugar que ocupam na consciência pública, o papel que
desempenham na sociedade. É conveniente assim classificar as normas jurídicas
segundo as diferentes sanções que lhes estão adstritas.
J Trata-se de duas espécies. Umas consistem essencialmente numa pena, ou,
pelo menos, numa limitação infligida ao agente; têm por objeto atingi-lo no seu
lado, o número destas relações é ele próprio proporcional ao das normas repressivas;
determinando qual a fração do aparelho jurídico que representa o direito penal,
medimos portanto simultaneamente a importância relativa desta solidariedade. É
verdade que ao procedermos desta maneira não levamos em conta certos elementos
da consciência coletiva que, em virtude da sua menor energia, ou da sua indeter-
minação, permanecem estranhos ao direito repressivo, contribuindo sempre para
assegurar a harmonia social; são aqueles que são protegidos por penas simplesmente
difusas. Mas o mesmo se passa com as outras partes do direito. Não há nenhuma
delas que não seja completada pelos costumes, e como não há razão para supor
que a relação entre o direito e os costumes não seja a mesma nessas diferentes
esferas, esta eliminação não corre o risco de altbrar os resultados da nossa compa- R ^
ração. ( . . . ) \ 7] fe-
A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a solidarie- - 5 jg'
dade social, à qual corresponde este direito, é de uma espécie completamente :g c p
>
diferente. g-
0 que distingue esta sanção é que ela não é expiatória, mas reduz-se a uma
simples reposição das coisas. Um sofrimento proporcional ao dano não é infligido
àquele que violou o direito, ou qüe o desconhece; este é simplesmente condenado
a submeter-se-lhe. Se houver já fatos consumados, o juiz repõe-os tal como
deveriam ser. Ele dita o direito, rião dita penas. As perdas e danos não têm caráter
penal; é apenas um meio de voltar ao passado para o restituir tanto quanto possível
à sua forma normal. ( . . . )
Mas, se bem que estas normas estejam mais ou menos fora da consciência
coletiva, elas não dizem respeito somente aos particulares. Se assim fosse, o direito
restitutivo não teria nada em comum com a solidariedade social, porque as relações
que ele regula ligariam os indivíduos uns aos outros sem os vincular à sociedade.
Seriam simples acontecimentos da vida privada como, por exemplo, as relações
de amizade. Mas estamos longe de que a sociedade esteja ausente desta esfera da
vida jurídica. É verdade que, em geral, ela não intervém por si própria e pelo seu
próprio movimento; é preciso que seja solicitada pelos interessados. Mas, sendo
provocada, a sua intervenção nem por isso é menos a engrenagem essencial do
mecanismo, pois que ela o faz funcionar. É ela que dita o direito por intermédio
dos seus representantes. ( . . . )
Já que as normas de sanção restitutiva são estranhas à consciência comum,
as relações que determinam não são das que indistintamente atingem toda a gente;
quer dizer que estas se estabelecem imediatamente, não entre o indivíduo e a
sociedade, mas entre partes restritas e especiais da sociedade, que ligam entre si.
Mas, por outro lado, uma vez que esta não está ausente, é preciso que ela esteja
mais ou menos diretamente interessada, que lhe sinta as incidências. Então,
consoante a vivacidade com a qual as sente, intervirá mais ou menos prontamente
e mais ou menos ativamente por intermédio de órgãos especiais encarregados de
a representar. Estas relações são assim bem diferentes daquelas que o direito
repressivo regula, pois estas ligam diretamente, e sem intermediários, a consciência
particular à consciência coletiva, quer dizer, o indivíduo à sociedade.
1...
108 SOCIOLOGIA E DIREITO
Mas estas relações podem tomar duas formas muito diferentes: umas vezes
são negativas e reduzem-se a uma pt\ra omissão; outras são positivas ou de coope-
ração. Às duas classes de normas que determinam umas e outras, correspondem
duas espe'cies de solidariedade social que é necessário distinguir.
DURKHEIM, Émile, A Divisão do Trabalho Social. 19vol. Tradução de Maria Inês Mansinho
e Eduardo Freitas. Lisboa, Editorial Presença, 1977, pp. 51-3, 58-9, 79-88, 130-31, 133 e
135.
41
I
C^S^fla^DIREITOGV 5 v. 3 14. I 1 p. Ibl • 1(16 I IAN- JUN 2007
David M. Trubek
RESUMO ABSTRACT
A TENDÊNCIA COMUM EM PENSAR "OIRElfO E DESENVOLVIMENTO" THE COMMON TENOENCY TO THINK 'LAV/ANO DEVELOPMENT'
COMO O ESTUDO OE PROBLEMAS EXCLUSIVOS AO SÉCULO XX AS THE STUOY OP PROBLEMS UNIQUE TO THE 20TH CENTURY
RESULTA. GERALMENTE. EM NEGLIGENCIA» TPA0ALH05 OFTEN RESULTS IN OUR NEGLECT OF THE GROUNDWORK
REALIZADOS POR ACA0ÉMIC05 OE ÉPOCAS ANTERIORES SOBRE ALREADY ESTABLISHED BY SCHOLARS OF AN EARLIER AGE
PROBLEMAS .SIMILARES. A CONCISA EXPLICAÇÃO DO PROFESSOR FACING SIMILAR PROBLEMS. PROFESSOR TRLJBEK'S CONCISE
TRUQEK DA CONTRIBUIÇÃO DE MAX WEBER A IE0RIA 00 "DIREITO DISTILLATION OX MAX WEOER'S CONTRIBUTION TO LAY/
AND DEVELOPMENT THEORY DEMONSTRATES THE CONTINUED
E DESENVOLVIMENTO" DEMONSTRA A CONTINUA VIABILIOAOE OA
ANALISE OE WEBER PARA USO ATUAL. VIABILITY OF WEBER'S ANALYSIS FOR CONTEMPORARY USE.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
DIREITO, ECONOMIA. MAX WEBER. CAPITALISMO. DESENVOLVIMENTO LAVT, ECONOMICS. MAX WEBER, CAPITALISM. DEVELOPMENT
I
Prof.Dr. Jaime Cunho
1 5 6 I MAX W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O 0 0 C A P I T A L I S M O (1972) | DAVI D M. TRUBEK
FCS/IFCH/UFPA
A. O C O N C E I T O W E B E R I A N O DE DIREITO.' C O A Ç Ã O , L E G I T I M I D A D E E R A C I O N A L I D A D E
I. VARIAÇÕES NA R A C I O N A L I D A D E J U R Í D I C A :
O S T I P O S DE " P E N S A M E N T O " J U R Í D I C O
Para poder explorar o significado histórico dos sistemas jurídicos, Weber construiu
tipos ideais para diferentes ordens jurídicas. Estes tipos eram artifícios metodológicos
que permitiam examinar e comparar os sistemas de direito de sociedades concretas.
Não refletiam um sistema de direito especifico em concreto, mas incluíam complexos
de características típicas, passíveis de serem encontradas e m sistemas reais, e que ilu-
minam os problemas que Weber visava explorar.
A classificação weberiana dos sistemas jurídicos deve ser estudada no c o n t e x t o d e
sua análise geral da "racionalidade". Ela tenta discriminar as dimensões da organização
do direito e da relação direito-sociedade que, segundo Weber, Influenciavam a racio-
nalidade. Estes vários tipos, portanto, evidenciam as diferenças existentes entre o
modo com que os sistemas jurídicos lidam com os problemas pertinentes à formula-
ção de n o r m a s dotadas de autoridade (criar as normas) e à aplicação de tais n o r m a s a
casos concretos (aplicar as normas).
Há várias maneiras possíveis de criar normas ou legislar. Uma sociedade pode, ou
não, ter um c o n j u n t o explícito d e preceitos jurídicos que cada um de seus m e m b r o s
deve aceitar como obrigatório. Se tais preceitos existirem, eles podem ser vistos
c o m o t e n d o sido deliberadamente construídos ou c o m o t e n d o sido entregues por um
legislador primordial que t e m , neste caso, uma qualidade sagrada e imutável. Se estes
preceitos f o r e m reconhecidos c o m o deliberadamente construídos, p o d e m ser vistos
apenas c o m o instrumentos para que um conjunto extrínseco de objetivos concretos
seja atingido, tais c o m o religião ou ideologia política e, portanto, devem ser obedeci-
dos apenas até que tais objetivos se realizem. Por o u t r o lado, este conjunto de precei-
tos p o d e ser visto c o m o independente de um conjunto específico de objetivos sociais
e, portanto, deve ser obedecido pelo seu valor intrínseco.
. Similarmente, a aplicação das normas tem suas variações características. Pode-se
chegar a decisões por meio d e considerações mágicas. Alguns casos podem ser decidi-
dos por indivíduos que, acredita-se, são dotados de alguma espécie de poder extraordi-
nário; e seus Julgamentos são obedecidos devido à crença em seus poderes mágicos. Por
outro lado, as decisões p o d e m ser baseadas em poderes mais mundanos. Do mesmo
modo, em uma orientação mais temporal, há a possibilidade de variações. Assim, a apli-
cação das leis pode ser dirigida à resolução de conflitos específicos e à equidade de uma
OSOfflSSfiSíDDIREITOGV S 3 ll. I I Ibl • IBò I JAU-ItlM 2I)(J7 1 1
situação concreta; também pocle ser dirigida à aplicação mais ou menos estereotipada de
um precedente ou à aplicação de regras gerais por meio de técnicas cognitivas. i
Weber preocupou-se em diferenciar estas variações dos sistemas de direito estudan-
do todo e qualquer sistema no qual as decisões são ( l ) determinadas por regras prévias
de aplicação universal e (2) estabelecidas por diferentes órgãos jurídicos.
Embora fossem estas as maiores preocupações d e Weber, ele mesmo se expressa-
va d e maneira muito diferente. O sistema weberiano é rotulado como uma tipologia
do "pensamento jurídico" e organiza os sistemas jurídicos com o que Weber chamou
d e racionalidade da elaboração e da aplicação das normas. Este aspecto do debate
levou a uma grande confusão sobre o p o n t o a que ele queria chegar. Nas discussões
sobre a obra de Weber, é raro ver as categorias de racionalidade relacionadas a teorias
implícitas d e diferenciação, generalidade e universalidade. Se fizermos tal relação, as
opiniões de Weber se t o r n a m mais claras.
Ò próprio Weber classificou os sistemas jurídicos e m diferentes categorias,
d e p e n d e n d o de c o m o o direito é elaborado e aplicado. O direito p o d e ser elaborado
e aplicado tanto irracionalmente quanto racionalmente. O direito pode ser (1) formal-
m e n t e ou (2) substancialmente irracional, ou (3) substancialmente ou (4) f o r m a l m e n -
te racional. Finalmente, o direito f o r m a l m e n t e racional pode ser formal tanto em sen-
15
tido "extrínseeo" quanto "lógico",
H á , portanto, duas grandes dimensões de comparação: a extensão da formalidade
d e u m sistema e a extensão d e sua racionalidade. Se analisarmos estes termos, percebe-
mos q u e "formalidade" pode ser definida c o m o "empregar critérios de decisão intrínse-
cos ao sistema de direito" e, portanto, a formalidade mede o grau de autonomia do sis-
t e m a . Por outro lado, "racionalidade" significa "seguir alguns critérios de decisão aplicá-
veis a todos os casos" e, portanto, a racionalidade m e d e a generalidade e a universalida-
de das regras empregadas pelo sistema. A relação entre a classificação d e Weber e os
conceitos de diferenciação e generalidade pode ser observada na seguinte tabela:
GRAU DE GENERALIDADE
DAS N O R M A S J U R Í D I C A S
ALTO BAIXO
A t o m a d a d e decisões j u r í d i c a s f o r m a l m e n t e i r r a c i o n a i s e s t á relacionada a
d e c i s õ e s ou r e v e l a ç õ e s p r o f é t i c a s . D e c i s õ e s são a n u n c i a d a s s e m q u a l q u e r refe-
r ê n c i a a p a d r õ e s gerais o u , ate m e s m o , às p r e o c u p a ç õ e s dos p a r t i c i p a n t e s da dis-
p u t a . O s c r i t é r i o s para a t o m a d a d e d e c i s õ e s são i n t r í n s e c o s ao s i s t e m a de direi-
to, mas d e s c o n h e c i d o s ; não há m e i q s para q u e um o b s e r v a d o r p r e v e j a a decisão
c o m a n t e c e d ê n c i a j o u e n t e n d a c o m ^ se c h e g o u a tal d e c i s ã o . D e c i s õ e s substan-
c i a l m e n t e irracionais utilizam c r i t é r i o s q u e p o d e m s e r i d e n t i f i c a d o s , mas que
são s e m p r e b a s e a d o s e m c o n s i d e r a ç õ e s éticas e práticas s o b r e os casos em ques-
tão. É possível e n t e n d e r tais d e c i s õ e s d e p o i s d e o c o r r i d o o f a t o , m a s , a não ser
q u e e x i s t a um sistqma d e p r e c e d e n t e s , é difícil g e n e r a l i z a r a p a r t i r de casos con-
c r e t o s . A t o m a d a ;de decisões s u b s t a n c i a l m e n t e r a c i o n a i s utiliza u m a série de
c r i t é r i o s ou políticas, mas tais c r i t é r i o s a d v ê m d e u m c o r p o d e pensamento
e x t e r n o ao s i s t e m a j u r í d i c o , p o r e x e m p l o , a r e l i g i ã o e a i d e o l o g i a política. Será
possível a p r e e n d e r a r a c i o n a l i d a d e d o f u n c i o n a m e n t o desse s i s t e m a até onde se
possam c o m p r e e n d e r os p r i n c í p i o s q u e o r i e n t a m o f u n c i o n a m e n t o do corpo de
p e n s a m e n t o q u e lhe é e x t e r n o . Mas isto é v e r d a d e i r o a p e n a s p a r c i a l m e n t e : pode
variar a m a n e i r a pela qual os p r e c e i t o s d e u m s i s t e m a e x t e r n o s e r ã o transforma-
dos em decisões j u r í d i c a s . A s s i m , e m b o r a e s t e t i p o de d i r e i t o e s t e j a mais aplo a
f o r m u l a r r e g r a s gerais se c o m p a r a d o aos d o i s tipos a n t e r i o r e s , ele se revela
m e n o s a p t o a fazê-lo do q u e o t i p o da r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l . Portanto, em
c o m p a r a ç ã o a esta q u a r t a classificação, estes t r ê s tipos d e s i s t e m a s de direito
a p r e s e n t a m u m b a i x o g r a u d e d i f e r e n c i a ç ã o , u m baixo g r a u d e g e n e r a l i d a d e de
r e g r a s , ou a m b o s . C o m o c o n s e q ü ê n c i a , é difícil p r e v e r a q u e e s p é c i e s de deci-
são s e r ã o capazes de c h e g a r .
Isto não é verdade para o d i r e i t o e u r o p e u , q u e W e b e r i d e n t i f i c o u com o tipo
da r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l . Este tipo d e sistema c o m b i n a u m alto grau de
diferenciação j u r í d i c a com u m a confiança substancial e m r e g r a s gerais pré-exis-
tentes para a t o m a d a de decisões j u r í d i c a s . Essas duas c a r a c t e r í s t i c a s têm uma
relação e s t r e i t a .
O q u e W e b e r q u e r d i z e r c o m " r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l ? " E por que ela
c o n d u z a regras gerais, u n i v e r s a l m e n t e aplicáveis? O p e n s a m e n t o j u r í d i c o é racio-
nal, pois r e m e t e a alguma justificativa q u e t r a n s c e n d e o caso c o n c r e t o e se baseia
em r e g r a s e x i s t e n t e s e c l a r a m e n t e d e f i n i d a s ; é f o r m a l , pois os c r i t é r i o s de decisão
são i n t r í n s e c o s a o sistema d e d i r e i t o ; e lógico, p o i s as r e g r a s e os princípios são
d e l i b e r a d a m e n t e c o n s t r u í d o s p o r f o r m a s especializadas d e p e n s a m e n t o jurídico,
baseados e m uma classificação a l t a m e n t e lógica; t a m b é m p o r q u e as decisões de
casos específicos são t o m a d a s p o r m e i o d e processos l ó g i c o - d e d u t i v o s especializa-
dos q u e p a r t e m de princípios ou regras p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o s . D e s d e que, em
um s i s t e m a c o m o o d e s c r i t o a c i m a , as d e c i s õ e s jurídicas p o s s a m ser baseadas ape-
nas em p r i n c í p i o s legais p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o s ; e d e s d e q u e o sistema exija
IBSWfe/MlDIREITOGV 5 II. I I P. Ibl - 166 I JAN.JUN 2007 i 1 6 1
2. A R E L A Ç Ã O ENTRE E S T R U T U R A P O L Í T I C A E SISTEMA DE D I R E I T O :
OS T I P O S D E D O M I N A Ç Ã O E O S T I P O S D E D I R E I T O
A t e o r i a de W e b e r s o b r e a g ê n e s e da e s t r u t u r a d o d i r e i t o e u r o p e u deve s e r exa-
m i n a d a t e n d o e m m e n t e as características p e c u l i a r e s d e s t e s i s t e m a . Sob quais
c o n d i ç õ e s s u r g i u o d i r e i t o e u r o p e u ? Por q u e e s t e sistema só se d e s e n v o l v e u na
E u r o p a ? As r e s p o s t a s a estas p e r g u n t a s p r e c i s a m da análise da sociologia política
d e W e b e r , pois, nesta p a r t e de sua o b r a , W e b e r d e f e n d e a existência de uma rela-
ção m ú t u a e n t r e e s t r u t u r a s políticas e j u r í d i c a s . O sistema d e d i r e i t o e u r o p e u ou
" m o d e r n o " p o d e r i a e m e r g i r apenas sob c o n d i ç õ e s políticas específicas. Sua exis-
t ê n c i a está i n t i m a m e n t e ligada ao s u r g i m e n t o d o e s t a d o b u r o c r á t i c o m o d e r n o .
A o m e s m o t e m p o , e m c o n t r a p a r t i d a , e s t e tipo d e e s t a d o fazia-se d e p e n d e n t e d e
u m s i s t e m a d e d i r e i t o d o tipo m o d e r n o .
E m sua s o c i o l o g i a p o l í t i c a , W e b e r c o n s t r u i u classes ideais de sistemas polí-
t i c o s o u f o r m a s d e " d o m i n a ç ã o " ( a u t o r i d a d e l e g í t i m a ) . Estas f o r m a s d e d o m i n a -
ção s ã o organizadas d e a c o r d o c o m a t-eivindicação básica feita p o r estes siste-
m a s , o u r e g i m e s , d e q u e suas o r d e n s è : j a m o b e d e c i d a s . A classificação é feita
p o r m e i o d e c o n d i ç õ e s típicas d e l e g i t i m i d a d e ; justificativas p r i m á r i a s o f e r e c i -
das p o r estes r e g i m e s para e x e r c e r p o d e r s o b r e as pessoas. W e b e r e l e g e u este
a s p e c t o dos sistemas p o l í t i c o s c o m o base para a classificação q u e c o n s t r u i u p o r
s e n t i r q u e ele c o n s t i t u í a "a base de d i f e r e n ç a s b a s t a n t e reais na e s t r u t u r a e m p í -
17
rica d a d o m i n a ç ã o " .
1 6 2 I M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O |1?72| DA VIO M. rei/SfK
TIPO DE DOMINAÇÃO
D . O S U R G I M E N T O DA " L E C A L I S M O "
I I
Ao m e s m o t e m p o , no e n t a n t o , os a t o r e s e c o n ô m i c o s d e s t e sistema São neces-
s a r i a m e n t e i n d e p e n d e n t e s . N e n h u m p a r t i c i p a n t e d o m e r c a d o c o n s e g u e atingir
seus objetivos sem o b t e r p o d e r s o b r e as ações dos o u t r o s . N ã o é vantagem, p o r
e x e m p l o , para o p r o p r i e t á r i o d e uma indústria t ê x t i l , agir de m a n e i r a e g o c ê n t r i -
ca d e a c o r d o com seus interesses se, ao m e s m o t e m p o , ele não p o d e t e r a certeza
d e q u e o u t r o s p a r t i c i p a n t e s f o r n e c e r ã o a ele os insumos necessários para a p r o d u -
ção e o c o n s u m o d e seu p r o d u t o . Se os f o r n e c e d o r e s não p r o v i d e n c i a r e m as m a t é -
r i a s - p r i m a s p r o m e t i d a s , se os t r a b a l h a d o r e s se r e c u s a r e m a trabalhar, se os clien-
tes não p u d e r e m pagar pelos b e n s e n t r e g u e s , n e m t o d o o e g o i s m o i m p i e d o s o e
racional d o m u n d o t e r á valor para o p r o d u t o r têxtil em sua busca de lucro.
O r a , se t o d o s os o u t r o s p a r t i c i p a n t e s fossem gentis e c o o p e r a t i v o s , nosso p r o -
d u t o r têxtil não precisaria se p r e o c u p a r . Eles d e s e m p e n h a r i a m seus papéis e t u d o
sairia c o m o planejado. Mas isto, talvez, n e m s e m p r e a c o n t e ç a , p o r q u e os o u t r o s
p a r t i c i p a n t e s são, p o r h i p ó t e s e , tão egoístas q u a n t o o p r o d u t o r t ê x t i l . P o r t a n t o ,
eles t a m b é m farão o q u e for prcciso para o b t e r o m a i o r l u c r o possível e se isto
significar não c u m p r i r algum a c o r d o , q u e assim seja. Se f o r possível p r e s u m i r q u e
haja o p o r t u n i d a d e s f r e q ü e n t e s para q u e os o u t r o s p a r t i c i p a n t e s se saiam melhor,
d e i x a n d o de p r o v e r ao p r o d u t o r têxtil algum serviço ou p r o d u t o necessário ao
sucesso d e seu e m p r e e n d i m e n t o , nosso e m p r e s á r i o h i p o t é t i c o viverá em um
m u n d o d e radical i n c e r t e z a .
M e s m o assim, c o m o W e b e r c o n s t a n t e m e n t e ressaltava, incertezas deste tipo
são s e r i a m e n t e prejudiciais ao t r a n q ü i l o f u n c i o n a m e n t o da e c o n o m i a m o d e r n a .
C o m o p o d e um p a r t i c i p a n t e da e c o n o m i a capitalista, e m u m m u n d o cheio d e
egoístas e m busca d e l u c r o , r e d u z i r o n ú m e r o d e incertezas q u e a m e a ç a m r o u b a r
d o s i s t e m a capitalista seu e v i d e n t e p o d e r p r o d u t i v o ? O q u e p e r m i t e a um partici-
p a n t e da e c o n o m i a p r e v e r c o m relativa c e r t e z a qual será o c o m p o r t a m e n t o das
o u t r a s pessoas ao l o n g o do t e m p o ? O q u e c o n t r o l a a t e n d ê n c i a à instabilidade?
Para r e s p o n d e r a estas p e r g u n t a s , W e b c r d e s l o c o u - s e para a esfera da análise
s o c i o l ó g i c a . O p r o b l e m a do c o n f l i t o e n t r e os i n t e r e s s e s dos Indivíduos e a esta-
b i l i d a d e social - o q u e P a r s o n s c h a m a d e " p r o b l e m a h o b b e s i a n o da o r d e m " 4 2 - é
u m d o s p r o b l e m a s f u n d a m e n t a i s da sociolpgia e, para lidar c o m ele, W e b e r cons-
t r u i u e s q u e m a s básicos d e ação s o c i a l . 4 3 W e b e r ' r e c o n h e c i a q u e as u n i f o r m i d a d e s
previsíveis das atividades sociais p o d e m ser "garantidas" de várias m a n e i r a s e q u ç
t o d o s esses m é t o d o s d e c o n t r o l e social p o d e m i n f l u e n c i a r as atividades e c o n ô m i -
cas. Os participantes podem incorpprar padrões normativos, satisfazendo
" v o l u n t a r i a m e n t e " as e x p e c t a t i v a s sociais. O u p o d e m ser s u b m e t i d o s a a l g u m , t i p o
de " e f e i t o e x t e r n o " se d e s v i a r e m das expectativas sociais. Estas garantias e x t e r -
nas p o d e m d e r i v a r d e u m sistema i n f o r m a l d e sanções ou e n v o l v e r coação orga-
n i z a d a . Todos os tipos d e c o n t r o l e p o d e m e s t a r envolvidos e m g a r a n t i r estabili-
d a d e a o p o d e r s o b r e os r e c u r s o s e c o n ô m i c o s ; u m c o n t r o l e e f e t i v o d e s t e t i p o ,
1 7 0 I M4X WEBER S 0 9 R E DIREITO E ASCENSÃO DO CAPITALISMO I1972I OAVID M. TíiÍBW
W e b c r o b s e r v o u , p o d e a d v i r d e h á b i t o s , d e um j o g o d e i n t e r e s s e s , dc conven-
44
ç õ e s , oti d o d i r e i t o .
C o m o i n d i q u e i , p o r é m , W e b e r a c r e d i t a v a q u e a c o a ç ã o o r g a n i z a d a d o dirclio
era n e c e s s á r i a nas e c o n o m i a s c a p i t a l i s t a s m o d e r n a s . E m b o r a a i n c o r p o r a ç ã o de
p a d r õ e s n o r m a t i v o s e s a n ç õ e s c o n v e n c i o n a i s p o s s a m e l i m i n a r e r e s o l v e r conflitos
e m s o c i e d a d e s m a i s s i m p l e s , são i n c a p a z e s d e s e r v i r a esta f u n ç ã o d e m o d o a satis-
f a z e r as n e c e s s i d a d e s da m o d e r n a e c o n o m i a d e m e r c a d o . Para e s t a f u n ç ã o , o direi-
to, n o s e n t i d o d e c o a ç ã o OTganizada, era n e c e s s á r i o . W e b e r a f i r m o u :
P o r q u e a c o a ç ã o é n e c e s s á r i a e m u m s i s t e m a d e m e r c a d o ? E p o r q u e a coação
d e v e t e r u m a f o r m a j u r í d i c a ? F i n a l m e n t e , q u a n d o f a l a m o s c m c o a ç ã o jurídica, esta-
m o s falando de p o d e r d o e s t a d o , n ã o i m p o r t a n d o c o m o seja e x e r c i d o , ou estamos
f a l a n d o d e p o d e r r e g u l a d o p o r n o r m a s , o u s e j a , d e l e g a l i s m o ? As respostas de
W e b e r a estas p e r g u n t a s n ã o são t o t a l m e n t e claras. Sua d i s c u s s ã o d o assunto suge-
re r e s p o s t a s , m a s as q u e s t õ e s n ã o são c o m p l e t a m e n t e d e s e n v o l v i d a s p o r ele. A
q u e s t ã o mais c r u c i a l , a r e l a ç ã o e n t r e a n e c e s s i d a d e d e c o a ç ã o e o m o d e l o do lega-
l i s m o , m a l é d i s c u t i d a . N o e n t a n t o , p e n s o q u e s e p o d e r d a r r e s p o s t a a estas per-
g u n t a s , r e s p o s t a s q u e se e n c a i x a m c o e r e n t e m e n t e a o u t r o s a s p e c t o s d e sua análise.
A coação é necessária e m razão do c o n f l i t o egoísta q u e i d e n t i f i q u e i acima. Embora
W e b e r jamais tenha identificado c l a r a m e n t e tal c o n f l i t o , tinha consciência de que ele
existia. E m um sistema d e m e r c a d o é p r e c i s o haver u m p r i n c í p i o c o m p o r t a m e n t a l que
não seja o egoísmo a c u r t o - p r a z o . T r a d i ç õ e s não p o d e m ser responsáveis p o r restrin-
gir c o m p o r t a m e n t o s egoístas p o r q u e o m e r c a d o d e s t r ó i as bases c u l t u r a i s e sociais das
t r a d i ç õ e s . S i m i l a r m e n t e , o s u r g i m e n t o da e c o n o m i a d e m e r c a d o a r r u i n a grupamen-
tos sociais q u e p o d e r i a m s e r v i r d e foco para a aplicação de p a d r õ e s convencionais. De
fato, a m e r a existência d o tipo de c o n f l i t o q u e descrevi é evidência d o declínio das tTa- ,
dições e dos hábitos. Sobra apenas o d i r e i t o para p r e e n c h e r e s t e v á c u o normativo; a
coação j u r í d i c a é essencial p o r q u e não há o u t r a f o r m a disponível d e c o n t r o l e .
U m a s e g u n d a r a z ã o p a r a q u e a c o a ç ã o n e c e s s á r i a ao f u n c i o n a m e n t o d o merca-
d o seja j u r í d i c a e s t á ligada ao r i t m o da a t i v i d a d e e c o n ô m i c a e ao t i p o d e cálculo
r a c i o n a l c a r a c t e r í s t i c o da e c o n o m i a d e m e r c a d o . N ã o é s u f i c i e n t e p a r a os capita-
listas t e r u m a idéia g e r a l d c q u e a l g u é m t e n h a a p o s s i b i l i d a d e d e r e a l i z a r um ser-
v i ç o p a r e c i d o c o m o q u e foi c o m b i n a d o , e m um t e m p o p r ó x i m o ao q u e foi esti-
p u l a d o . Ele p r e c i s a s a b e r e x a t a m e n t e o q u ê e q u a n d o , e p r e c i s a e s t a r bastante
OQBWtKMDIREITOGV 5 V. JII. I I F. ISI • 106 ! JAN-JUN líOUV i
IV. U M C A S O D E S V I A N T E OS PROBLEMAS
DE VERIFICAÇÃO HISTÓRICA: O LEGALISMO
E O CAPITALISMO NA INGLATERRA
A análise típico-ideal da economia, da política e do direito levou Weber a concluir
que o direito contribuíra com o capitalismo, em grande p a r t e , devido i sua calcula-
bilidade. Além disso, ele ressaltou que apenas a racionalidade lógico-formal e o sis-
tema d e direito a u t ô n o m o , com regras gerais e universais, p o d e r i a m garantir a
necessária certeza jurídica. Q u a n d o tentou verificar esta teoria historicamente, os
dados disponíveis não sustentaram c o m p l e t a m e n t e sua análise. Isto o levou a modi-
ficar, mas nunca realmente a abandonar, sua tese inicial..
Em suas tentativas d e lutar com os dados históricos, W e b e r r e f e r i u - s e repetida-
m e n t e aos aspectos da experiência jurídica importantes p a r a o desenvolvimento do
capitalismo, mas inconsistentes com um alto grau de f o r m a l i s m o lógico. Por exem-
plo, em c e r t o ponto ele reconheceu explicitamente que há um conflito potencial
entre o racionalismo jurídico do tipo lógico-formal e a capacidade criativa de um
sistema jurídico para gerar novos conceitos e instituições substanciais, requeridas
49
por situações econômicas e m processo de mudança. Ele t a m b é m observou o
modo pelo qual a autonomia do direito pode f r u s t r a r expectativas econômicas. 5 0
Mas estas deduções, que talvez possam ter provocado uma reavaliação fundamental
(BíWtfeliiaOlRElrOGV 5 V. 3 LI, I 1 R. 1 5 1 • 1 8 » 1 «IJ.JUN 7007 I 1 7 3
V. O LEGALISMO E A LEGITIMIDADE
DA DOMINAÇÃO DE CLASSE
Até este ponto, o "capitalismo" foi apresentado de f o r m a vaga, a b s t r a t a . Embora o
W e b e r pensasse que o capitalismo fosse, em vários sentidos, o sistema econômico
60
mais racional possível, não fazia apologia do capitalismo. Weber podia ser um crí-
tico incisivo dos resultados morais deste sistema.Tais criticas p o d e m ser percebidas
em várias ocasiões; elas s u r g e m claramente e m o u t r a parte da sociologia do direito
em q u e Weber leva adiante uma questão posta por Marx: o papel do legalismo na
legitimidade da dominação capitalista.
BtexfeiSajDiREiTOGv 5
s
VII. CONCLUSÃO «
M i n h a análise da o b r a d e W e b e r foi n e c e s s a r i a m e n t e b r e v e e a b s t r a t a . N ã o p u d e
a p r e s e n t a r t o d a a c o m p l e x i d a d e d e sua a r g u m e n t a ç ã o , e a p e n a s e s b o c e i a análise his- !
t ó r i c a p e l a qual W e b e r m o s t r o u c o m o o legalismo s u r g i u na E u r o p a ; e a pesquisa
c o m p a r a t i v a pela qual t e n t o u m o s t r a r p o r q u e o u t r a s g r a n d e s civilizações n ã o c o n -
s e g u i r a m desenvolver o legalismo. (
M e s m o assim, e s p e r o t e r s u g e r i d o q u e analises h i s t ó r i c a s e c o m p a r a t i v a s f o r a m
f u n d a m e n t a i s para W e b e r . C o m o i n d i q u e i n o ç o m e ç o d e s t e ensaio,.a p r i n c i p a l t a r e -
fa d e W e b e r era h i s t ó r i c a . C o m o a f i r m o u R o t h , W e b e r via c o n c e i t o s s o c i o l ó g i c o s
66
c o m o "ajudantes de Clio" ; c o m o f e r r a m e n t a s c o m as quais c o n d u z i r i a pesquisas
h i s t ó r i c a s e c o m p a r a t i v a s . T i p o s ideais e t e o r i a s c o m o as a p r e s e n t a d a s a q u i são
m e c a n i s m o s c o m os q u a i s e v e n t o s h i s t ó r i c o s e s p e c í f i c o s são e x a m i n a d o s . São, a l é m
d i s s o , n e c e s s a r i a m e n t e l i m i t a d o s e m sua u t i l i d a d e p a r a e n f r e n t a r os p r o b l e m a s c o m
178 I MAX WEBER SOBRE DIREITO E ASCENSÃO 0 0 CAPITALISMO I I 9 7 2 I OAVIO M. TRUBÍK
que o pesquisador se depara. O tipo ideal não é uma teoria universal s o b r e a socie-
67
dade, embora.possa ser usado para construí-la. O s tipos ideais legais construídos
por W e b e r lidavam com os problemas q u e estava investigando e talvez não possam
ser e m p r e g a d o s m e c a n i c a m e n t e em o u t r o s c o n t e x t o s .
Se t i v e r m o s em m e n t e e s t e p r i n c í p i o f u n d a m e n t a l da análise w e b e r i a n a , os
autores c o n t e m p o r â n e o s estarão em m e l h o r posição para avaliar sua obra e sua
c o n t r i b u i ç ã o ás pesquisas atuais. Em o u t r a s palavras, será possível usar W e b e r
com propriedade.
N ã o há dúvida de q u e um e n t e n d i m e n t o mais c o m p l e t o das teorias d e W e b e r
a j u d a r á os acadêmicos atuais a levar a d i a n t e a t a r e f a à qual ele m e s m o deu tanta
a t e n ç ã o : a análise d o papel do direito na ascensão do capitalismo. C o m o s u g e r e
minha discussão s o b r e o caso-desvio da I n g l a t e r r a , esta tarefa está l o n g e de ser
c o m p l e t a d a . Sem d ú v i d a , as tipologias d e W e b e r s o b r e d i r e i t o , d o m i n a ç ã o e capi-
talismo a j u d a r ã o a c o n t i n u a r d e s v e n d a n d o estas q u e s t õ e s da história social e j u r í -
dica da E u r o p a e da I n g l a t e r r a . N o e n t a n t o , c o m o indica minha r e c o n s t r u ç ã o , os
c o n c e i t o s p a r t i c u l a r e s q u e usou ao a p r e s e n t a r os "tipos d e p e n s a m e n t o j u r í d i c o "
talvez c r i e m mais c o n f u s ã o do que e s c l a r e c i m e n t o . Talvez seja necessário e m p r e -
gar i n s t r u m e n t o s mais detalhados e precisos para e s t u d o s históricos c o m p a r a t i -
vos do legalismo.
Ainda mais cautela deve s e r adotada ao se aplicar as tipologias weberianas ao
68
m u n d o atual. As condições atuais de d e s e n v o l v i m e n t o ou m o d e r n i z a ç ã o d i f e r e m
substancialmente daquelas p r e d o m i n a n t e s no p e r í o d o estudado por Weber. Muitos
dos e l e m e n t o s de suas tipologias não p o d e m s e r e n c o n t r a d o s nos Estados atual-
m e n t e e m desenvolvimento. Por e x e m p l o , toda a teoria d e W e b e r sobre o papel
e c o n ô m i c o d o Direito estava, c o m o ressaltei, ligada a um m e r c a d o competitivo no
59
qual t o d o s os participantes tinham u m p o d e r e c o n ô m i c o relativamente limitado.
Tais c o n d i ç õ e s são exceção, e não r e g r a , no Terceiro M u n d o . S i m i l a r m e n t e , o
m o d e l o do Estado e seu papel na economia estavam relacionados de maneira muito
p r ó x i m a às idéias de laissez-faire do século X I X . 7 0 N o v a m e n t e , é necessário cau-
tela ao tratar problemas atuais nos t e r m o s em q u e W e b e r pensava serem apropria-
dos para pesquisa histórica.
Além disso, não se p o d e e s q u e c e r d e que, até m e s m o para Weber e para o
p e r í o d o q u e ele estudava, estes tipos-ideais e r a m apenas tipos-ideais, ou seja,
c o n s t r u ç õ e s intelectuais e m p r e g a d a s c o m p r o p ó s i t o s heurísticos. N e n h u m destes
tipos p u r o s p o d e ser e n c o n t r a d o no m u n d o real; n e n h u m sistema d e direito é
p u r a m e n t e lógico, f o r m a l e racional, e n e n h u m Estado baseia sua legitimidade
p u r a m e n t e na racionalidade de sua ação c o n f o r m e o direito. A História escapa
c o n s t a n t e m e n t e das m o l d u r a s nas quais as teorias q u e r e m p r e n d ê - l a .
Finalmente, devemos questionar a ênfase dada por Weber às qualidades f o r m a i s
do direito m o d e r n o , uma perspectiva q u e subestima suas qualidades finalísticas e
В й К Й Й М ! DIREITO GV 5 v.l«, II » 151 • 106 I M H - J U N 200V I 1 7 9
NOTAS
* Jan D e u t s c h , D u n c a n K e n n e d y с H e n r y S t c l n c r f i z e r a m c o m e n t á r i o s s o b r e v e r s õ e s a n t e r i o r e s d e s t e e s t u d o . Sou
e s p e c i a l m e n t e a g r a d e c i d o a R o b e r t o M a n g a b e i r a U n g c r p o r m c e n c o r a j a r e p o r .ilu$ criticas c o n s t r u t i v a s . Este e s t u d o
foi a p o i a d o , cm p a r t e , p o r uma d o a ç ã o da Agência p e l o D e s e n v o l v i m e n t o I n t e r n a c i o n a l (AID) a m e r i c a n a e p e l o
P r o g r a m a d e D i r e i t o e M o d e r n i z a ç ã o da U n i v e r s i d a d e Yale. As I n f o r m a ç õ e s с c o n c l u s õ e s d e s t e e s t u d o n ã o r e f l e t e m n e m
a p o s i ç ã o da AID n e m a d o G o v e r n o .
t Bibliografia: G a l a n t c r . T h e M o d e r n i z a t i o n оГ Law, in M O D E R N I Z A T I O N : T H E D Y N A M I C S O F G R O W T H
( M . W c i n c r ed, 1 9 6 6 ) ; F r i e d m a n , Legal C u l t u r e a n d Social D e v e l o p m e n t , 4 L A W & S O C ' Y REV. 2 9 f I 9 6 9 ) ; F r i e d m a n ,
O n Legal D e v e l o p m e n t , 24 R U T G E R S L. REV. II ( I 9 6 9 ) ; K a r s l , Law in D e v e l o p i n g C o u n t r i e s , 60 L A W LIB. J. 13
( 1 9 6 7 ) ; K o n z , Legal D e v e l o p m e n t In D e v e l o p i n g C o u n t r i e s , I 9 6 9 P R O C . A M . S O C ' Y I N T ' L L. 9 1 ; M e n d e l s o n , Law
and t h e D e v e l o p m e n t o f - N a t i o n s , 32 J. P O L . 2 2 3 ( 1 9 7 0 ) ; S c i d m a n , Law and D e v e l o p m e n t : A G e n e r a l M o d e l , 6 L A W &
1 8 0 I M A X W E B E R S O B R E D I R E I T O E A S C E N S Ã O D O C A P I T A L I S M O [19721 DAVID M. TRU8EK
4 C o m o h i s t o r i a d o r c p e s q u i s a d o r d o d i r e i t o , W c b e r e s c r e v e u s o b r e q u e s t õ e s e s p e c í f i c a * d e história d o direito.
Mas sua tentativa m a i s I m p o r t a n t e d e lidar c o m as l n t c r - r c l a ç õ o s e n t r e o d i r e i t o o o q u e h o j e c h a m a m o s d c "desenvolvi-
m e n f o " ou " m o d e r n i z a ç ã o " eslão c o n t i d a s e m seu e s b o ç o s o b r e sociologia I n l u r p r e l a ü v a , W l r t s c h a l t imd Gesellschifl,
que c o n t é m d i v e r s a s e e x t e n s o s d i s c u s s õ e s s o b r e a p a r t i c i p a ç ã o d o d i r e i t o na e c o n o m i a c na s o c i e d a d e , Incluindo uma
e x t e n s a s e ç ã o e x p l i c i t a m e n t e intitulada "Sociologia d o D i r e i t o " . N e s t a a p r e s e n t a ç ã o , b a s e c l - m c p r i n c i p a l m e n t e na reccn-
te e d i ç ã o e m inglês da o b r a c o m p l e t a , 1 - 3 M . W E B E R , E C O N O M Y A N D S O C I E T Y ( G . R o t h & R . W i t l i c h ed. I96H)
[ d o r a v a n t e citada c o m o E C O N O M I A E S O C I E D A D E ) .
8 Veja 2 E C O N O M Y A N D S O C I E T Y 8 8 3 ; M. W E B E R . T H E R E L I G I O N O F C H I N A p p . 1 4 9 - 5 0 ( 1 9 S I ) [dora-
vante c i t a d o c o m o A R E L I G I Ã O DA C H I N A | .
9 Veja A R E L I G I Ã O DA C H I N A , p p . 1 0 0 - 0 * e p p . 1 4 7 - 5 0 .
10 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 3 4 .
11 I d e m p p . 3 1 . 3 6 .
12 I d e m .
13 I d e m , p . 3 1 3 .
16 I d e m , p p . 6 5 7 - 5 8 . Em u m a d i s c u s s ã o mais e x t e n s a s o b r e o p e n s a m e n t o d e W e b e r , s e r i a I m p o r t a n t e t r a ç a r a s
o r i g e n s da decisão d e e l e v a r o l e g a i l s m o a um m o d e l o tie p e n s a m e n t o j u r í d i c o , e e l e g e r o m o d e l o P a n d e c t l s t a A l e m ã o
c o m o o z c n l t e d o p e n s a m e n t o legalista. Posso a p e n a s s u g e r i r possíveis d i r e ç õ e s para q u e u m a i n v e s t i g a ç ã o c o m o esta seja
r e a l i z a d a . A p r i m e i r a q u e s t ã o a ser e x a m i n a d a s e r i a a razão p e l a qual W c b c r e s c o l h e u e x a m i n a r o a u m e n t o d o s tipos d c
p e n s a m e n t o j u r í d i c o a o invés d e se c o n c e n t r a r d i r e t a m e n t e n o s a s p e c t o s essenciais d e u m s l s t e m n para o qual o p e n s a -
m e n t o j u r í d i c o é, a t é c e r t o p o n t o , u m Indicador. Esta e s t r a t é g i a p o d e s e r e x p l i c a d a se p e n s a r m o s , p a r a l e l a m e n t e , c m sua
s o c i o l o g i a da religião, cin q u e a variável d e p e n d e n t e é u m a classe p a r t i c u l a r d e c r e n ç a r e l i g i o s a ; e, p o r flm, s e p e n s a r -
m o s n o c o m p l e x o d i á l o g o d e W e b e r c o m o m a r x i s m o , q u e o levou a se c o n c e n t r a r n o p a p e l I n d e p e n d e n t e d a s idéias e m
r e l a ç ã o ã H i s t ó r i a . N o t e - s e q u e ele desejava m o s t r a r q u e o p e n s a m e n t o j u r í d i c o contrlí>ulu p a r a a ascensão d o capitalis-
m o , e n ã o o c o n t r á r i o . 3 i d e m , p . 8 9 2 . Para u m a d i s c u s s ã o s o b r e M a r x e W e b e r n e s t e c o n t e x t o , veja A. C I D D E N S , n o t a
3 acima, pp. I 9 0 - 9 5 e p p . 2 0 5 - 2 3 .
Por o u t r o l a d o , t a l v e z as c a r a c t e r í s t i c a s d o p e n s a m e n t o j u r í d i c o a l e m ã o t e n h a m e n c o r a j a d o W e b e r a enfatizar o
m o d o s i s t e m á t i c o e a b s t r a t o d e p e n s a r c o m o p e c u l i a r i d a d e m a r c a n t e d o legailsmo. Franz N e u m a n n r e s s a l t o u q u e as c o n -
d i ç õ e s políticas da A l e m a n h a d o S é c u l o XIX t i v e r a m u m f o r t e I m p a c t o s o b r e o m o d o c o m o os p e n s a d o r e s a l e m ã e s t e n -
t a r a m d e s e n v o l v e r u m c o n c e i t o d a q u i l o a q u e m e r e f e r i c o m o "legailsmo", N e u m a n n vê e s t e s p e n s a d o r e s c o m o r e p r e -
s e n t a n t e s d c unia classe m é d i a e m a s c e n s ã o , q u e t e v e q u e c o n f r o n t a r a r e a l i d a d e d c u m e s t a d o p r a t i c a m e n t e absolutlsta
c o n t r o l a d o p o r o u t r a s c a m a d a s sociais. Esta I m p o t ê n c i a p o l í d c a o s levou a e n f a t i z a r técnicas f o r m a i s e lógicas, e não
s u b s t a n c i a i s , para r e s t r i n g i r a ç õ e s d c e s t a d o a r b i t r á r i a s . Veja, d e m a n e i r a g e r a l , F. N E U M A N N , T H E D E M O C R A T I C .
A N D T H E A U T H O R I T A R I A N STATE, p p . 2 2 - 6 8 ( I 9 5 7 ) . Veja t a m b é m a n o t o 48 abaixo. Para u m a tentativa d e explicar
" r a c i o n a l i d a d e l ó g i c o - f o r m a l " e m r e f e r ê n c i a a c o n c l u s õ e s t i r a d a s a p a r t i r da J u r i s p r u d ê n c i a a n g l o - a m e r i c a n a , veja
R h e l n s t e l n , n o t a 5 a c i m a , p p . Il-lxlii.
17 3 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p . 9 5 3 .
)8 l I d e m , p p . 2 I 5 - I 6 . Para u m e x c e l e n t e r e s u m o d e s t e s t r ê s t i p o s d c d o m i n a ç ã o , veja B E N D I X , p p . 2 9 4 - 9 7 .
2 0 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E , pp. 2 I 7 - I S .
21 3 l d e m , p. 9 7 6 .
23 2 E C O N O M I A E SOCIEDADE, p. 637,
2 5 I I d e m , p. 8 1 1 .
2 6 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E p. 2 3 9 . Veja t a m b é m A R E L I G I Ã O DA C H I N A , pp. 1 0 0 - 0 4 .
27 Idem.
28 I d e m , p . 2 4 4 .
2 9 Veja, p o r e x e m p l o , 2 I d e m , p . 8 1 1 .
30 W e b c r o b s e r v o u q u e
A r a c i o n a l i d a d e das h i e r a r q u i a s e c l e s i á s t i c a s , assim c o m o a d c s o b e r a n o s p a t r i a r c a i s , t e m c a r á t e r s u b s t a n c i a l e,
p o r t a n t o , s e u o b j e t i v o n ã o é o b t e r o m a i o r g r a u p o s s í v e l d e p r e c i s ã o j u r í d i c a f o r m a l , o q u e m a x i m i z a r i a as m u d a n -
ças na d i r e ç ã o da p r e v i s ã o c o r r e t a d a s c o n s e q ü ê n c i a s j u r í d i c a s c A s l s t e m a t l z a ç â o r a c i o n a l d o d i r e i t o c d e seus p r o -
c e d i m e n t o s . A I n t e n ç ã o c , na v e r d a d e , e n c o n t r a r o t i p o d e d i r e i t o mais a p r o p r i a d o p a r a q u e s c a t i n j a m o s o b j e t i v o s
é t i c o s e e x p e d i e n t e s das a u t o r i d a d e s e m q u e s t ã o . Para e s t e s p o r t a d o r e s d o d e s e n v o l v i m e n t o d o d i r e i t o , o t r a t a m e n -
t o c o m p a r t i r a c n t a d o e e s p e c i a l i z a d o ( j u r í d i c o ) d a s q u e s t õ e s d e d i r e i t o é u m a idéia i n c o n c e b í v e l . Eles n3o e s t ã o Inte-
r e s s a d o s e m q u a l q u e r s e p a r a ç ã o e n t r e d i r e i t o c é t i c a . Isto c p a r t i c u l a r m e n t e v e r d a d e i r o , d c m o d o g e r a l , c m siste-
mas jurídicos q u e sofrem algum tipo d e influencia teórica c que sSo caracterizados p o r uma combinação de regras
legais e r e q u i s i t o s é t i c o s .
Idem, p. 810.
41 T r u b e k , nota I acima.
1 COn
42 T. PARSONS. T H E S T R U C T U R E O F S O C I A L A C T I O N , p p . 89-94 11963). dn J í " " " ""™° 0 l " ° J " Ç 5 ° s ™ autônomo, d . economia. O » „ .
dn nao rcgul, , atividade e c o n o m i c . Weber não acreditava , u e tai situação fosse empirlczmentc p,»,i,el; ei. pcm,.
beu que o dlreiu, de,e. por necessidade, afeta, substancialmente a atividade econômica, e , , c o estado m o d e m o l a .
43 I E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 68.
4 9 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 6 8 a .
5 0 Idem.
51 Idem, p. 892.
5 2 Idem, p. 890,
5 3 Idem, p. 891.
5 4 J I d e m , p. 9 7 7 .
56 2 Idem, p. 814.
5 7 1 I d e m , p. I J 9 S . Veji a m b i m A R E U C l A o OA C H I N A , p. 102.
59 Idem.
6 0 Veja, nota 47 acima.
6 1 2 E C O N O M I A E S O C I E D A D E , p. 699.
6 2 Idem, p. í 12. „
6 3 3 Idem, pp. 9 7 9 - 8 0 .
6 4 Idem, p. 980.
6 5 2 Idem, p p . 7 2 6 - 2 7 .
6 9 Veja п о и 49 acima.
David M. Trubek
VOSS-8ASCOM PROFESSOR OF LAW & SENIOR FELLOW,
CENTER FOR WORLD AFFAIRS ANO IHE GLOBAL ECOHOMT
(WAGEL DA UNTVEFLSIFMOH OE WISCONSIN-MAOISON
i
I
í
I
Austr
SOCIOLOGIA
E DIREITO í
Cláudio Souto
e "«sãs*
Joaquim Falcão
(da Universidade Federal de Pernambuco
e da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(organizadores)
2a Edição Atualizada
THOMSON
*
ália Brasil Canadá Cingapura Espanha Estados Unidos México Reino Unido
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
CDD-371. 397
Max Weber
2
Ver § 6. Ver também Gesammelte Aufsàtze zur Wissenschaftlehre, 2? cd., p. 445 Anm. 1,
447 ss. (passlm).
120 SOCIOLOGIA E DIREITO
nidade política são de fato os mais fortes frente aos demais poderes. O "direito
canônico" é também direito quando entra em conflito com o direito "estatal", o
que sempre tem ocorrido e ocorrerá inevitavelmente entre a Igreja Católica — e
também as outras - e o Estado moderno. A zadruga eslava na Áustria não só
carecia da garantia jurídica estatal, mas inclusive seus ordenamentos eram em
parte contrários ao direito oficial. Como o atuar consensual que a constitui possui
para seus ordenamentos um aparato coativo próprio; estes ordenamentos represen-
tavam um "direito" que só no caso de haver sido invocado o aparato coativo
estatal não foi reconhecido por este, senão violado. Por outro lado, não é coisa
rara, sobretudo fora do círculo jurídico europeu-continental, que o direito esta-
tal moderno trate como "válidas" as normas de outras associações e examine
as decisões concretas destas. Assim protege numerosas vezes o direito norte-ameri-
cano o "label" dos sindicatos, regula as condições sob as quais um candidato
de um partido será considerado como candidato "válido"; o juiz inglês intervém,
quando se lhe chama, na jurisdição de um clube; o juiz alemão investiga nos
processos por injúrias "se tem lugar", conforme às convenções estamentais, a
recusa de uma provocação de duelo, apesar de que este esteja proibido pela lei
etc. Não entramos aqui na casuística de até que ponto se convertem deste modo
em "direito estatll" tais ordenamentos. Por todos estes motivos e, demais pela
terminologia aqui mantida, recusamos como coisa evidente que se fale só de
"direito" quando, graças à garantia da autoridade política, se disponha de coação
jurídica. Não existe para nós nenhum"'motiyo prático para isso. Falaremos de
"ordem jurídica", quando existir a perspectiva de aplicar qualquer meio coativo,
físico ou psíquico, exercido por um aparelho coativo, isto é, por uma ou várias
pessoas que estejam dispostas a manejá-lo, caso se apresente a situação; quando,
portanto, existe uma forma específica de socialização para fins da "coação jurí-
dica". Nem sempre foi um monopólio da comunidade política a possessão de um
aparelho semelhante para o emprego da coação física. Tampouco existe hoje
monopólio semelhante, como o mostra a significação do direito garantido só
por via eclesiástica, no referente à coação psíquica. Ademais, já dissemos que a
existência de uma garantia direta do direito objetivo e subjetivo mediante um
aparato coativo só constitui um caso pa existência do "direito" e de "direitos".
Inclusive dentro deste estreito campo,1 o aparato coativo pode ser estruturado de
uma maneira muito diversa. No caso limite pode consistir na probabilidade,
existente por consenso, da ajuda forçosa de todo membro de uma comunidade
quando está ameaçada a ordem vigente. Pode valer como "aparato coativo" se
a forma de vinculação a esta ajuda forçosa está firmemente ordenada. O aparato
coativo e a forma da coação em direitos que garanta a instituição política por
meio de seus órgãos pode fortalecer-se, além disso, mediante o meio coativo de
associações de "interessados": as medidas coativas agudas das associações de
credores e de proprietários de imóveis urbanos: boicote organizado do crédito
ou da habitação (listas negras) contra devedores pouco solventes atuam com
freqüência de um modo mais forte que a probabilidade da demanda judicial. E,
naturalmente, esta coação pode estender-se a pretensões não garantidas pelo
i
Estado: continuam sendo direito subjetivo, só que com outros poderes. Não raras
vezes o direito do instituto estatal interfere com os meios coativos de outras
psociações: assim, o tíbel act inglês impossibilita as listas negras ao excluir a
jiemonstração de verdade. Porém nem sempre com êxito. As associações e grupos
que se baseiam no "código de honra" do duelo como meio de dirimir as questões
pessoais, por natureza quase sempe de caráter estamental, com seus meios coativos,
em sua essência tribunais de honra e boicote, são em geral os mais firmes e forçam
com rigor específico (como "dívidas de honra") ao cumprimento de obrigações
não protegidas ou proibidas estatalmente, porém imprescindíveis para os fins de
sua comunidade (dívidas de jogo, obrigação de encontros em duelo). Em parte,
Ó Estado tem recolhido as velas diante disso. É um erro, do ponto de vista jurídico,
pretender que um delito criado especificamente, como o duelo, seja tratado como
um intento de "homicídio" ou como um delito de "lesões", visto que não tem as
características destes delitos; porém o fato continua de pé: que apesar do código
penal o duelo é, na Alemanha, para os oficiais, uma obrigação exigida pelo Estado,
porque com o seu não cumprimento vão unidas conseqüências jurídicas estatais.
Outra coisa ocorre fora do estamento de oficiais do exército. 0 típico meio de
coação jurídica das comunidades "privadas" contra seus membros desobedientes
é excluí-los da associação e de suas vantagens materiais ou ideais. Nas associações
profissionais de médicos e advogados, assim como em clubes sociais o políticos,
é a ultima ratio. A associação política moderna tem usurpado muitas vezes a
aplicação deste método coativo. Assim, entre nós se nega a médicos e advogados
esSe meio mais extremo; na Inglaterra está atribuído aos tribunais estatais, a
questão de exclusão de um clube; na América do Norte, inclusive para os partidos
políticos, além do exame da legitimidade do "label", a petição de parte. Esta luta
entre os meios coativos de diferentes associações é tão antiga como o direito.
Com freqüência, no passado não tem terminado com a vitória do meio coativo
da associação política e tampouco hoje é sempre este o caso. Assim, não há
possibilidade de impedir o uso da concorrência desleal frente a um violador de
contrato*. Tampouco se podem tocar as listas negras dos corretores de bolsa
contra aqueles que utilizam exceções indevidas. Na Idade Média temos que as
disposições estatuídas pelos comerciantes contra a apelação aos tribunais ecle-
siásticos eram nulas pelo direito canônico; porém, contudo, subsistiram. E também
deve tolerar hoje amplamente o direito estatal o poder coativo das associações
quando se dirige não só contra os membros, mas também ou, precisamente, contra
os alheios a elas, e a associação trata de que cumpram suas normas (cartéis não
só contra os membros, senão contra aqueles cujo ingresso se pretende forçar,
associações de credores contra devedores e inquilinos).
Apresenta-se um caso limite importante do conceito sociológico do "direito"
garantido coativamente, quando aqueles que o garantem não possuem — como é
comum nas modernas comunidades políticas (bem como nas religiosas que aplicam
)
)
)
)
)
)
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j
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PIERRE BOURDIEU A ^
O PODER SIMBÓLICO
f A
3I
EDIÇÃO
Tradução de
Fernando Tomaz
fa
BERTRAND BRASIL
Copyright © 1989, Pierre Bourdieu
2000
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livfos, RJ
CDD-301
97-2015 CDU-301
)
)
)
)
)
)
)
CAPÍTULO VIII
A força do direito
Elementos para uma sociologia \jo campo jurídico
Seria preciso examinar aqui tudo o que separa a noção de campo jurídico
como espaço social da noção de sistema tal como a desenvolve Luhmann, por
exemplo: em nome da recusa, perfeitamente legítima, do reducionismo, a
teoria dos sistemas põe «a auto-refetência» das «estruturas legais», confun-
dindo neste conceito as estruturas simbólicas (o direito propriamente dito) e
as instituições sociais que as produzem; compreende-se que, na medida em
que a teoria dos sistemas apresenta com um nome novo a velha teoria do
sistema jurídico que se transforma segundo as suas próprias leis, ela forreça
hoje um quadro ideal à representação formal e abstracta do sistema
jurídico 5 . Por se não distinguir a ordem propriamente simbólica das normas
e das doutrinas — (quer dizer, o campo das tomadas de posição ou espaço dos
possíveis), a qual, como sugerem Nonet e Selznick, encerra potencialidades
objectivas de desenvolvimento e até mesmo de direcções de mudança, mas
4
E. P. Thompson, Whigs and Hunters, The Origin of the Black Act,
Nova Iorque, 1 9 7 5 , p. 2 6 1 .
5
N . Luhmann, Soziale Systeme, Grundriss einer allgemeinen Theorie,
Francforte, 1984; «Die Einheit des Rechtssystems» ii> Rechtstheorie, 14,
1 9 8 3 , pp, 1 2 9 - 1 5 4 .
212 /1 FORÇA DO DIREITO
7
A autoridade neste domínio reconhece-se, entre outras coisas, pela
arte de respeitar a ordem reconhecida como legítima na enumeração das
autoridades (cf. J . M. Scholz, loc. cit.).
* Segundo Andrew Fraser, a moralidade cívica do corpo judicial
assentava não em um código de regras expressas mas sim num «sentido da
honra tradicional», quer dizer num sistema de atitudes para o qual o
essencial daquilo que contava na aquisição das virtudes associadas ao
exercício da profissão era tido como evidente. (A. Fraser, Te/os, 60, Verão,
1 9 8 4 , pp. 1 5 - 5 2 ) .
CAPÍTULO VIII 215
10
Cf. J . L . Souriaux e P. Lerat, Le langage du droit, Paris, PUF, 1975.
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA CAPITULO VIII 217
o estatuto da regra de direito, que não se afirma fundado numa teoria moral
ou numa ciência racional e que, tendo em mira apenas dar uma solução a
um litígio, se situa deliberadamente ao nível da casuística das aplicações
particulares, compreende-se se se souber que neste caso o grande jurista é o
juiz saído da fila dos práticos.
De facto, a força relativa das diferentes espécies de capital jurídico nas
diferentes tradições tem, sem dúvida, que ser posta em relação com a posição
global do campo jurt'4ico no campo do poder que, por meio do peso relativo
que cabe ao «reino da lei» (the rule of law) ou à regulamentação burocrática,
determina os seus limites estruturais pela eficácia da acção propriamente
jurídica. N o caso da França, a acção jurídica acha-se hoje limitada pela
dominação que o Estado e os tecnocratas saídos da Escola Nacional de
Administração exercem em vastos sectores da administração pública e
privada. Nos E U A , pelo contrário, os lawyers saídos das escolas superiores de
direito (Harvard, Yale, Chicago, Stanford) podem ocupar posições paráalém
dos limites do campo propriamente dito, na política, na administração, na
finança ou na indústria. Daqui resultam diferenças sistemáticas, freqüente-
mente evocadas depois de Tocqueville, nos usos sociais do direito e, mais
precisamente, no lugar que cabe ao recurso jurídico no universo das acçôes
possíveis, sobretudo em matéria de lutas reivindicativas.
í
12
Achar-se-ia uma cadeia da mesma forma, entre os teóricos e os
«homens do terreno», nos aparelhos políticos ou, pelo menos, nos que por
tradição invocam a caução de uma teoria econômica ou política.
13
E um belo exemplo de trabalho jurídico de codificação que produz o
jurídico a partir do judicial, a edição das decisões da «C-our de Cassation» e
0 processo de selecção, de normalização e de difusão que, a partir de um
conjunto de decisões seleccionadas pelos Presidentes de Câmara pelo seu
interesse jurídico, produz um corpo de regras racionalizadas e normalizadas
(cf. E. Serverin, «Une production communautaire de la jurisprudence:
1 édition juridique des arrêts», Annales de Vaiaresson, 23, 2 . ° semestre,
1985, pp. 73-89.
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 221
exemplo ao propor uma interpretação estreita dela — como foi o caso com a
lei de 5 de Abril de 1910 sobre «as reformas de operários e camponeses») aos
juizes dos tribunais de instância, os quais, pela sua formação escolar e pela sua
«deformação» profissional, são dados a abdicar da liberdade de interpretação
de que dispõem teoricamente e a aplicar a situações codificadas, interpreta-
ções codificadas (exposições dos motivos da lei, doutrina e comentários dos
juristas, professores ou juizes doutos, e decisões da «Cour de Cassation»),
Pode-se citar, a partir das observações de Rémi Lenoir, o exemplo de um
tribunal de um bairro de Paris onde, todas as sextas-feiras de manhã, a sessão
é especialmente consagrada a um contencioso, sempre o mesmo, sobre a
ruptpra de contratos de venda ou aluguer, que é designado pelo nome de uma
empresa de aluguer e de venda a crédito de aparelhos domésticos e de tele-
visão: os julgamentos, completamente predeterminados, são muito breves, e
nem mesmo os advogados, quando os há — o que é raro — neles tomam a
palavra. (Se a presença de um advogado se mostra útil, provando deste modo
que há, mesmo a este nível, um poder de interpretação, é sem dúvida porque
é percebida como uma manifestação de reverência para com o juiz e a institui-
ção que, a este título, merece alguma consideração— a lei não é aplicada com
todo o seu rigor — ; e é também porque ela constitui uma indicação acerca dn
importância dada ao julgamento e sobre a possibilidade de apelação).
i -v 'O
<1 s' Vj
V \>
> *
^ 224 A FORÇA DO DIREITO
1
•V
17
Mario Sbriccoli propõe um inventário dos processos codificados que
permitiam aos juristas (advogados, magistrados, peritos, conselheiros políti-
cos, etc.) das pequenas comunidades italianas da Idade Média, «manipula-
rem» o corpus jurídico: por exemplo, a declaratio pode apoiar-se na rubrica,
na matéria da norma, no uso e na significação corrente dos termos, na sua
etimologia, instrumentos que por sua vez se subdividem, e pode jogar com
« as contradições entre a rubrica e o texto, partindo de uma para compreender
°0 outro ou vice-versa. (cf. M. Sbriccoli, L'interpretazzione dello statuto,
Contributo alio studio delia funzione dei giuristi nell'età communale, Milano, A.
Giuffrè, 1969, e «Politique et interprétation juridiques dans les villes
italiennes du Moyen-Âge», Archim de Philosopbie du Droit, XVII, 1 9 7 2 ;
pp. 99-113).
Prof.Dr. Jaime Cunha
1
FCS/IFCH/UFPA ,
CAPITULO VIII 225
A instituição do monopólio
18
Cf. P. Bourdieu, Ce que parler veut dire, Paris, Fayard, 1982, sobre o
efeito de «pôr-em-forma», pp. 2 0 - 2 1 , e sobre o efeito de instituição,
pp. 1 2 5 e segs.
226 /1 FORÇA DO DIREITO
19
Ph. Vissert Hooft, «La philosophie du langage ordinaire et le
droit», Archives de Philosophie du Droit, XVII, 1 9 7 2 , pp. 2 6 1 - 2 8 4 .
CAPÍTULO VIII 227
20
É o caso, por exemplo, da palavra causa que não tem, de forma
alguma, no uso comum, o sentido que lhe dá o direito (cf. Ph. Vissert
Hooft, art. cit.).
228 /1 FORÇA DO DIREITO
i
CAPÍTULO VIII 235
O poder de nomeação
A força da forma
3S
A relação dos habitus com a regra ou a doutrina é a mesma no caso
da religião em que é tão falso imputar as práticas ao efeito da liturgia ou do
dogma (por meio de sobreavaliação do juridismo) como ignorar este efeito
imputando-as completamente ao efeito das atitudes e ignorando ao mesmo
tempo a eficácia própria da acção do corpo de clérigos.
3t>
A propensão para apreender sistemas de relações complexas de
maneira unilateral (à maneira dos lingüistas que procuram neste ou naquele
sector do espaço social o princípio da mudança lingüística) conduz alguns a
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA
CAPÍTULO VIII 241
A
" Estas afinidades foram sem dúvida reforçadas, no caso da França, com a
criação da E N A , que assegura um mínimo de formaçáo jurídica aos altos fun-
cionários e a uma boa parte dos dirigentes das empresas públicas ou privadas.
Jean-Pierre Mounier, La définition judiciaire de la politique, tese,
Paris I, 1 9 7 5 .
CAPÍTULO VIII 243
4
" Alain Bancaud e Yves Dezaly mostram bem que mesmo os mais heré-
ticos dos juristas críticos, que invocam a caução da sociologia e do marxismo para
fazerem avançar os direitos dos detentores de formas dominadas da competência
jurídica, como o direito social, continuam a reivindicar o monopólio da «ciência
jurídica» (cf. A. Bancaud e Y . Dezalay, L'economic clu droit. Impérialisme des
economists et resurgence dun juridisme, Comunicação ao «Coiloque sur le Modèle
Economique dans les Sciences», Dezembro de 1980, p. 19 em especial).
41
J . Ellul, «Le problème de I'émergence du droit», Annates de
Bordeaux, I, 1, 1976, pp. 6 - 1 5 .
4J
Cf. J . Ellul, «Deux Problèmes Préalables», Annates de Bordeaux, I,
2, 1 9 7 8 , pp. 6 1 - 7 0 .
* "indigène» no texto original (N.T.).
Prof.Dr. Jaime Cunha
FCS/IFCH/UFPA CAPÍTULO VIII 245
45
Entre os efeitos propriamente simbólicos do direito, há que dar um
lugar especial ao efeito de oficialização como reconhecimento público de
normalidade que torna dizível, pensável, confessável, uma conduta até então
considerada tabu (é o caso, por exemplo, das medidas que dizem respeito à
homossexualidade). E também ao efeito de imposição simbólica que a regra
explicitamente publicada e as possibilidades que ela designa, pode exercer,
ao abrir o espaço dos possíveis (ou, mais simplesmente, ao «dar idéias»),
É assim que os camponeses mais agarrados ao morgadio, na longa resistência
que opuseram ao Código Civil, adquiriram' o conhecimento dos procedi-
mentos, violentamente recusados, que a imaginação jurídica lhes oferecia. E
se muitas destas medidas (freqüentemente registadas nas escrituras dos tabe-
liães em que os historiadores do Direito se apoiam para reconstituírem o
«costume») são totalmente desprovidas de realidade, como a restituição do
dote em caso de divórcio — quando, de facto, o divórcio está excluído —
não é menos verdade que a oferta jurídica não deixa de exercer efeitos reais
sobre as representações e, neste universo como em outros (em matéria de
direito do trabalho, por exemplo), as representações constitutivas daquilo a
que se poderia chamar o «direito vivido» devem muito ao efeito, mais ou
menos deformado, do direito codificado: o universo dos possíveis que este
faz existir, no próprio trabalho que é necessário para os neutralizar, tende,
verosimilmente, a preparar os espíritos para as mudanças aparentemente
brutais que surgirão quando forem dadas as condições de realização desses
possíveis teóricos (pode-se supor que há aí um efeito muito geral da
imaginação jurídica, o qual, por exemplo, ao prever, por uma espécie de
pessimismo metódico, todos os casos de transgressão à regra, contribui para
os fazer existir, numa fracção maior ou menor do espaço social).
CAPÍTULO VIU
46
R. Lenoir, Lá Securité Sociale et 1'Evolutm des Formes de Codification
des Structures familiales, tese, Paris, 1985.
248 /1 FORÇA DO DIREITO
Os efeitos da homologia
www.lumenjuris.com.br
EDITORES
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
CONSELHO EDITORIAL
CONSELHO CONSULTIVO
i
E D I T O R A L U M E N JURIS
Rio de Janeiro
2009
I
PRODUÇÃO EDITORIAL
Livraria e Editora Lumen Júris Ltda.
Tradução:
Geraldo de Carvalho
Eliana Valadares Santos
Revisão
Amadeu Moreira Fontenele Neto
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos
Individuais e Direitos Coletivos em Habermas
^ , - .
Gisele Cittadino*
Prof.Dr.Jow Cunha
FCS/IFCH/UFPA
t
A relação entre identidade pessoal e ^agrupamento coletivo ou, de outra
forma, entre mecanismos de individualização e processos de socialização, é
tema central no pensamento habermasiano. Ao analisar a maneira através da
qual cada u m de nós se constitui como sujeito, Habermas nos descreve como
seres inicialmente imaturos para quem a figura do outro é condição de sobre-
vivência. Não conseguimos nos desenvolver como pessoas senão na qualidade
de membros de uma comunidade cultural. Fora de uma rede de significados e
práticas intersubjetivamente compartilhadas, ou seja, fora de algum padrão de
socialização, não há como se falar em processo de individualização. Nossa
identidade pessoal é constituída, portanto, através da internalização e da ado-
ção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valo-
res e tradições concretas. Se tal constatação pode atualmente parecer por
demais óbvia, é preciso lembrar que Habermas, com a idéia de intersubjetivi-
dade, supera o modelo dos primeiros representantes da Teoria Crítica para
quem os indivíduos eram capazes de refletir criticamente sobre o seu lugar no
mundo, mas o faziam através de uma razão subjetiva individual. 1 Habermas
rompe com essa filosofia do sujeito, apelando para um pragmatismo que toma
o indivíduo como um ser ontologicamente social que, através da palavra e da
linguagem, atua e conforma culturalmente o mundo da vida.
169
Gisele Cittadino - Autodeterminação e identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Habermas
2 Ver, a respeito, Marta R. Fouz. Jiirgen Habermas y la Memória dei Guemica. Madrid: ClS/Siglo
XXI, 2004, p. 14 e segs.
170
Jiirgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira
outro, igualmente se ignora que provas fáticas não são relevantes diante de
modelos teóricos contrafáticos.
A modernidade é o território que torna possível essa autodeterminação
humana. Mesmo que não possa garanti-la, é no interior do projeto moderno
que se configura o modelo do sujeito autônomo. Em face das múltiplas redes
da interação, esse indivíduo capaz de auto-reflexão e crítica, constitui sua
identidade no interior de uma forma de vida compartilhada. Ao associar inter-
subjetividade e sujeito autônomo, Habermas descarta qualquer interpretação
do imundo da vida como lógica de aprisionamento, pois cada um de nós tem a
capacidade de se comportar reflexivamente em relação à própria subjetivida-
de,! endossando valores ou se libertando de compromissos, ilusões ou fantasias.
Evidentemente, não há dúvida de que só podemos questionar as normas do
miindo em que vivemos a partir de convicções que integram o nosso próprio
coiitexto cultural. Ainda que isso possa nos levar a imaginar que estamos colo-
cando em questão a nossa própria existência quando criticamos as formas de
vida nas quais nossa identidade foi constituída, não devemos dramatizar os
lirrites que a eticidade do mundo da vida nos apresenta. Ter a capacidade de
refletir criticamente sobre a faticidade das instituições e normas presentes no
rrnindo da'vida certamente não se traduz no questionamento da própria exis-
tência. Em outras palavras, uma ação reflexiva sobre a própria subjetividade
pode simplesmente significar autonomia.
I Para garantir a autonomia desse sujeito capaz de auto-reflexão e crítica,
Habermas recorre àquela idéia que é central no pensamento de Rousseau e
Kant, ou seja, a de que o ordenamento normativo é resultado da autonomia de
sujeitos de direito associados. Em outras palavras, estamos diante de um
mojdelo que supõe um debate público no qual pessoas livres e iguais definem
quáis direitos devem mutuamente reconhecer se pretendem legitimamente
regular sua vida em comum através do direito. Dessa idéia de que os cidadãos
se associam por sua própria vontade para formar uma comunidade de sujeitos
de direito livres e iguais resulta uma concepção de Estado de Direito que é
inseparável dos conceitos de direito subjetivo e de indivíduo como sujeito por-
tador de direitos. Há, portanto, na origem das Constituições modernas, uma
teoria do direito formulada em termos individualistas. De outra parte, a histó-
ria da universalização dos direitos - a luta por uma cidadania igualitária - foi
escrita, como sabemos, no interior dos próprios procedimentos do Estado de
Direito. Nem mesmo os direitos sociais - cuja função é compensar condições
sociais desiguais - são incompatíveis com essa teoria dos direitos formulada
em termos individualistas, pois os bens sociais podem ser ou individualmente
distribuídos ou individualmente desfrutados. Nesta perspectiva, portanto, já
Gisele Cittadino - Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Habermas
7 Idem, p. 18.
8 Idem, p. 20.
9 Ver, a respeito, Jürgen Habermas. Struggles for Recognition in the Democratic Constitutional
State, in Multiculturalism, Amy Gutman (ed ), Princeton University Press, 1994.
10 Utilizei anteriormente a expressão direito de pular fora no texto Liberdade, Identidade e Direito.
Sobre a indelével marca humana em Philip Roth (Direito e Literatura, André K. Trindade.
Roberta M. Gubert e Alfredo Copetti Neto (orgs.), Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2008). No romance A Marca Humana, de Philip Roth, o protagonista rompe com os valores que
unem coletivamente os membros de sua própria comunidade de origem e acredita que pode rein-
ventar a si mesmo como um simples membro - sem filiações - da raça humana.
*
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg St Luiz Moreira
175
i
Gisele Cittadino - Autodeterminação e Identidade. Sobre Direitos Individuais
e Direitos Coletivos em Haberraas
14 idem.
176
Jiirgen Habermas, 8 0 anos. Direito e Democracia. Org. Günter F r a n k e n b e r g & Luiz M o r e i r a
sos. Como o ordenamento normativo não pode ser visto como u m mero dis-
tribuidor de liberdades de ação de tipo privado, a distribuição dos direitos
subjetivos só pode ser igualitária se os cidadãos - como legisladores - esta-
belecem u m consenso acerca dos " c r i t é r i o s conforme os quais o igual vai
receber um tratamento igual, enquanto que o desigual, um tratamento desi-
gual'^. No entanto, a defesa, em Habermas, das múltiplas formas de ação
afirmativa não representa qualquer compromisso com direitos coletivos que
venham a exceder os limites de uma teoria do direito formulada em termos
individualistas, ou seja, a partir da noçãol de sujeito de direitos. Em outras
palavras, se o compromisso com o ideal de igualdade não é incompatível
com a garantia de direitos culturais demandados e introduzidos sob o signo
das políticas de reconhecimento, isso não significa dizer que estamos trans-
formando a raça em fundamento da cidadania. Os direitos coletivos derivam
dos direitos individuais precisamente porque a identidade política do sujei-
to de direito - e não a raça ou a inserção em um m u n d o de cultura - é o f u n -
damento da cidadania nas democracias contemporâneas.
Referências Bibliográficas
Este antigo, cujo título original é "Jürgen Habermas, Faktizitat u n d Geltung", foi traduzido do ale-
m ã o por Geraldo de Carvalho e revisado por Amadeu Moreira Fontenele Neto.
Professor de Ciência Política da Universidade de Frankfurt, Alemanha.
179
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade
182
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r Frankenberg & Luiz Moreira
183
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade
tivarnente por que "qualquer um" tem direito a liberdades "iguais" e "as maio-
res possíveis" (p. 157); assim, a explicação é normativa, e não puramente con-
ceituai. Mas para que estes direitos fundamentais possam ser politicamente
realizados e desenvolvidos de forma legítima, faz-se necessário um quarto tipp
de direitos fundamentais que garantam a participação igualitária em processes
de formação de opinião e vontade. Segundo Habermas, estes quatro tipos de
direitos fundamentais podem ser justificados "de forma absoluta", enquanto
um quinto tipo só o é de forma relativa, a saber, os direitos sociais, os quais
asseguram materialmente a possibilidade de utilização dos quatro primeiros.
Segundo Habermas, a gênese destes direitos mostra a relação interna
entre direitos humanos compreendidos liberalmente e a idéia da soberania
popular: Estado de Direito e Democracia remetem, do ponto de vista teóricd-
discursivo, um ao outro. Assim, os direitos para o exercício da liberdade
comunicativa são justificados da mesma forma que direito» de se retirar de
comunicações e relações de justificação (p. 164; cf. Günther, 1991).
O pensamento mais importante desta abordagem reside indubitavelmen-
te em interpretar, de forma abrangente e a partir de uma perspectiva horizon-
tal do reconhecimento recíproco, como partícipes em uma prática de autode-
terminação política o duplo papel de cidadãs e cidadãos como autores e desti-
natários do direito, não apenas normativamente, mas também sob o aspecto
teórico-juridico e teórico-institucional. Tomando isto como base, Habermas
fomece, a seguir, uma teoria discursiva do Estado Democrático de Direito.
192
Jiirgen H a b e r m a s , 80 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r F r a n k e n b e r g & Luiz Moreira
culantes, para serem legítimas", têm "que ser dirigidas por fluxos comunica-
cionais que partem da periferia" e transpõem "as eclusas dos processos demo-
cráticos e de Estado de Direito" (Habermas, 1992, p. 432). Só assim, de acord9
com esta concepção, pode ser gerado dentro do sistema político poder comu-
nicativo suficiente a fim de reagir contra uma autonomização de poder sócia;
ou administrativo. Com isto, desloca-se o ponto principal da argumentação
teórico-democrática para a produtividade e abertura de foros não institucio -
nalizados da comunicação pública e suas possibilidades em passar atravéü
daquelas eclusas institucionais posições produzidas discursivamente e enji
exercer influência.
Para tanto, faz-se mister uma esfera pública crítica atuante - não "domi-
nada" (438) ou manipulada - (com o que Habermas retoma seu antigo tema);
ela forma um espaço social de intercâmbio de opiniões contraditórias entre si,
no qual estas podem se reunir em "opiniões públicas", desenvolvendo, assim,
força comunicativa. Analogamente, é necessária uma certa infra-estrutura
deste espaço (por exemplo, no que se refere à disposição sobre o poder da
mídia), em especial uma ancoragem social nas associações e movimentos autô-
nomos, reunidos sob o termo "sociedade civil" (cf. Cohen/Arato, 1992).
Relações associativas em sociedade civil não são parte formal do sistema polí-
tico, mas necessitam, por um lado, de uma proteção jurídico-fundamental de
sua autonomia e, por outro, constituem um lugar irrenunciável de discussão
de questões sociais e possíveis respostas, a partir do qual o sistema político
pode ser influenciado, por exemplo, com referência ao que cabe à pauta polí-
tica, como e em qual local isto ocorre (Habermas, 1992, p. 458).
No último capítulo do livro, Habermas combina suas teorias discursivas
do direito e da democracia em uma discussão dos três diferentes "paradigmas
do direito". Enquanto o paradigma liberal do direito enfatiza a garantia formal
da autonomia privada, mas não levando suficientemente em consideração
desigualdades e não-liberdades fáticas, o paradigma do Estado social tenta
compensar este fato por intermédio de um enriquecimento material do con-
ceito de autonomia (e respectivos direitos a prestações positivas), mas perma-
nece vinculado igualmente à noção de autonomia privada, abrigando o perigo
de uma fixação juridicizante e paternalista deste status. Por meio de uma aná-
lise de discussões feministas de políticas de equiparação, Habermas mostra
como um paradigma procedimental e reflexivo do direito - tendo presenteia
origem comum de autonomia privada e pública - consegue conceber direitos
individuais (ou coletivos) não como resultados de atribuições estatais, e sim de
forma relacionai: discussões acerca de equiparação, por exemplo, hão de ter
um viés reflexivo, de modo que os interessados sejam colocados primeiramen-
Jürgen H a b e r m a s , 8 0 anos. Direito e Democracia. Org. G ü n t e r F r a n k e n b e r g & Luiz M o r e i r a
6. Controvérsias
"3 ^
Subentende-se que uma obra com tal abundância de temas, teses e argu- o ^
mentos, que reúne diversos discursos científicos, formando a partir deles uma "£
T> ^
moderna síntese, está exposta a uma série de críticas. Far-se-á aqui uma breve >
alusão às mais importantes dentre elas. i -
Sob o aspecto político-filosófico, a questão central é se Habermas logrou
apresentar com a tese da "origem comum" de autonomia privada e pública o
nexo interno e não antagonista entre direitos humanos e soberania popular.
Isto foi colocado em dúvida por diversas partes. Do ponto de vista liberal, falta
uma fundamentação moral autônoma dos direitos humanos, os quais estariam
sempre antepostos ao exercício do poder democrático (cf. Hõffe, 1993;
Larmore, 1993), enquanto, por outro lado, nota-se que Habermas freou moral-
mente a radicalidade de uma idéia procedimental de soberania popular (cf.
Maus, 1995). Rawls (1997, p. 230-231), em contrapartida, é da opinião de que
Habermas não pode evitar uma construção dos direitos "em dois níveis",
segundo a qual estes podem ser fundamentados normativamente em u m pri-
meiro passo e, só posteriormente, institucionalizados político-juridicamente.
Em suma, estas críticas remetem aô fato de que Habermas, por u m lado,
não duvida de que direitos humanos sejam de natureza moral e de que tam-
bém assim podem ser fundamentados (cf. Habermas, 1994, p. 670; 1992, p.
118, 136, 137); por outro, porém, a fundamentação favorecida por ele em
Facticidade e Validade não esgota este conteúdo, a fim de evitar que direitos
basilares (como na tradição do direito natural) "sejam paternalisticamente
impostos" a u m legislador soberano (Habermas, 1994, p. 670). Mas isto tam-
bém seria evitado se fosse eleita uma via de fundamentação que reconstrua de
189
i
I
Rainer Forst - Jürgen Habermas: Facticidade e Validade
forma diferente o nexo entre moral, direito e democracia (cf. Forst, 1999).
Com base em u m princípio da justificação, de fundamentação teórico-discur-
siva e de autoentendimento normativo, segundo o qual normas reivindicado-
ras de validade universal e recíproca têm que ser justificadas de modo discur-
sivamente universal e recíproco, resulta a possibilidade de uma construção
moral "autônoma" de direitos humanos (como pretensões mutuamente não
rejeitáveis); estes constituem o conteúdo central de uma construção, constru-
ção esta de característica discursiva, política e a ser institucionalizada juridi-
camente, de direitos fundamentais e respectivas normas de uma estrutura
política básica. Estes direitos fundamentais são, assim, implicações necessárias
de uma soberania política exercida legitimamente e nos moldes do Estado de
Direito, o que Habermas salienta, da mesma forma que são, conforme sua
essência e seu próprio vigor, direitos morais que são configurados dentro de
instituições políticas pelos próprios interessados, conferindo-lhes aí validade.
A realidade jurídico-política não se defronta com normas morais "exter-
nas", e sim tão-somente com aquelas que uma estrutura política básica teria que
poder apresentar ela mesma a fim de reivindicar legitimidade. Assim, tal pro-
grama respeita a diferença entre direito e moral, deixando aos direitos funda-
mentais, todavia, sua pretensão crítica e transcendente, a qual, por sua vez, é
transformada na exigência por uma forma mais adequada de justificação demo-
crática, especialmente frente a minorias. Seu "direito à justificação" é violado
quando são excluídas de processos políticos ou, porém, quando, em processos,
sua reclamação é preterida por justificações ou deformada ideologicamente.
Assim, o "valor intrínseco" (Habermas, 1996, p. 300) de direitos subjeti-
vos de liberdade pode ser salientado, sem o colocar em uma falsa oposição à
idéia da soberania popular, pois a esta interessa, por fim, o estabelecimento
autônomo de u m a estrutura básica da sociedade justificada recíproca e univer-
salmente. Dessa maneira, pode também ser reformulada, finalmente, a tese da
origem comum, pois agora não é oiprincípio do discurso combinado com uma
forma do direito de fundamentação^ não continuada que constitui a(s) fonte(s)
- heterogênea(s) na teoria de Habermas - do sistema dos direitos, e sim uni-
camente o princípio da justificação diferenciado por contextos (cf. Forst,
1994). Só então existe uma origem da diversificação e do nexo entre autono-
mia moral, jurídica e política.
A partir de semelhante atalaia, a questão da justiça social pode também
ser incluída no programa de uma estrutura básica abrangentemente justifica-
da, mais intensamente do que ocorre na teoria habermasiana, na qual "direi-
tos sociais" possuem u m status apenas derivado, o que é criticado por
Frankenberg (1996). O princípio da justificação permite até uma reformula-
Jürgen Habermas, 80 anos. Direito e Democracia. Org. Günter Frankenberg & Luiz Moreira
Referências Bibliográficas
www.lumenjuris.com.;
EDITORES
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeic
CONSELHO EDITORIAL
CONSELHO CONSULTIVO
n1
FILOSOFIA DO DIREITO
NA ALTA MODERNIDADE
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
3 3 edição revista e
c o m Estudo C o m e m o r a t i v o
±4,.
2i edição - 2007
1a edição - 2005
Categoria: Filosofia
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Imagem da cajja:
Jacques-Louis David, Les Sabines (detalhe).
\
indenizações diversas (Lei na 9.610/98).
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
>í
i
;
Capítulo 2
Do Direito como Sistema Social de Função:
contribuições (e limites) à observação
do Direito através da Teoria da Sociedade
de Niklas Luhmann
1 A expressão "construtivismo operacional" é cunhada por Luhmann. Em seu último livro sobre o Direito -
Das Rechc der Geseltschafc- LUHMANN traz a expressão no segundo capitulo. Interessante ressaltar é que
г exposição que vai se seguir acerca da Teoria da Sociedade de N. LUHMANN toma como ponto central esta
obra que, em sendo de 1993, fora editada após o livro fundamental de J. HABERMAS para as questões aqui
tratadas (Faktizitãt und Gelcung). Isto permitiu a LUHMANN, falecido em 1998, estabelecer um diálogo com
as proposições habermasianas de modo que aqui serão apontadas somente as que entendemos mais rele-
vantes para O desenvolvimento do tema proposto; todavia, continua sendo necessário um estudo sério que,
partindo de PARSONS, permita um enfoque tanto da Teoria dos Sistemas de LUHMANN quanto da Teoria do
Discurso de HABERMAS. Por fim, vale ressalta que utilizaremos a tradução ao castelhano coordenada por
TORRES NAFARETTE no México E que, apesar de não editada, À época em que escrevemos este texto, nos
foram gentilmente cedidos seus manuscritos pela Professora JULIANA NEUENSCHWANDER MAGALHÃES. Em
frente à indicação da tradução castelhana, seguem as indicações no original alemão.
89
Lúcio Antônio Chamon Júnior
2 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Manuscritos. LUHMANN,
Niklas. Das Recht der GesellschaR. Frankfurt: Suhrkamp, 1993, p. 39.
3 Acerca do decisionismo a que chega a teoria kelsenina cf.: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria
Constitucional do Direito Penai contribuições a uma reconstrução da Dogmática penal 100 depois, cit.,
p. 89 et seq.\ Carvalho NETTO, Menelick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica
do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis
no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, v. 01,
março, 2 0 0 1 , pp. 1 9 - 2 0 ; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucionaL Belo
Horizonte: Mandamentos, 2001, pp. 31ss; NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação
jurídica. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 03, pp. 4 2 9 - 4 5 0 , 1 9 9 8 .
4 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gcsellschaft, CÍL, p. 39.
90
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas era Kelsen, Luhmann e Habermas
Assim é que LUHMANN parte de uma distinção para proceder a uma observa-
ção do Direito. Entende que devamos compreender o Direito como um sistema,
não como um sistema coerente de regras, não como uma ordem de normas orien-
tadas por uma superior (KELSEN), mas antes como uma rede de operações fáticas;
operações estas que, sendo sociais, são comunicações. Ora, se o sistema é esta
rede de operações sociais e que, enquanto tais, são comunicações que se verifi-
cam através do meio que é a linguagem, temos um ponto de partida estabeleci-
do, qual seja, a diferença entre sistema e seu ambiente. A crítica de LUHMANN se
dirige às teorias do Direito que determinam o Direito a partir de estruturas jurí-
dicas - regras, normas - como a "regra do reconhecimento" de H A R T ou a "norma
fundamental" de KELSEN.
A proposta do autor é de inovar superando este pensamento e partindo do
entendimento de que o que determina o que é Direito são operações sociais, ope-
rações do próprio sistema jurídico que, assim, visam determinar o que é Direito
e o que não é Direito, i.e., determinar o sistema e o seu ambiente. Embora o
Direito tenha estruturas que lhe são indispensáveis, não são estas mesmas estru-
turas estáveis - "idealidade estável" como a norma fundamental de KELSEN -
aquilo que permite determinar o Direito. Enquanto as estruturas são indispensá-
veis para a própria operacionalidade do sistema, elas não têm o condão de, por si,
por seu conteúdo (ainda que "neutro"), determinar o que venha a ser observado
como Direito. Este, enquanto sistema, é determinado pelas operações que se dão
no seu interior e que, todavia, não se confundem com as estruturas das quais
depende - normas, regras, etc. 5
E é assim que parte LUHMANN rumo à construção de sua teoria, diferencian-
do inicialmente sistema e ambiente. O fato de se afirmar que o Direito seja um
sistema diferenciado de seu ambiente, isto é, que tenha operações referidas a si
mesmo e que não se confundem com eventuais operações do seu ambiente,
implica afirmar que o sistema é operacionalmente fechadofi isto eqüivale afirmar
que este fechamento operacional implica uma recursividade das operações do
sistema no interior ao próprio sistema. Isto nos permite entender que as opera-
ções de um sistema social de função - no caso o Direito - se orientam por dire-
ções construídas internamente ao próprio sistema que, assim, se apresenta como
fechado frente a um ambiente altamente complexo.
Mas este fechamento operacional, enfim, esta clausura das operações não
deve ser entendida enquanto isolamento. Existe uma dependência entre o siste-
j ma e o seu ambiente que pode, inclusive, ser observada através da relação entre
i
5 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., p. 41.
6 LUHMANN. Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geseüschift, cit., p. 42.
91
Lúcio Antônio Chamon Junior
causa e conseqüência - ainda que a Teoria dos Sistemas reoriente esta distinção
em termos bem "próprios", ainda que absorvendo todas as contribuições da Físi
desde HEISENBERG. O que vale ressaltar é que por sistema aqui se tem entendido
um sistema operacionalmente fechado que, para a produção de suas operações -
o que implica uma reprodução do próprio sistema se remete a toda rede de suas
próprias operações havendo, portanto, uma reprodução do sistema por qle
mesmo. A referência às próprias operações não implica uma vinculação de uma
operação com todas as demais, mesmo porque pode haver operações simultâneas.
E é nesse sentido, enfim, de que o sistema recorre a si mesmo para efetuar suas
operações, que podemos afirmar que esta recursividade, além do corolário do fecha-
mento operacional, é aquilo que nos permite concluir que é o próprio sistema quem
determina o que pertence a si mesmo e o que pertence ao ambiente, enfim, àquilo que
não pertence ao sistema. Assim é que se afirma que o sistema é autopoiético: ele não
somente se auto-organiza; o sistema se auto-reproduz, isto é, produz a si mesmo a par-
tir daquilo por ele mesmo já produzido, o que, na verdade, tem um impacto na obser-
vação da relação entre estrutura e seu processo de produção (operação).7 A autopoiesis
surge como algo a ser pressuposto como invariável, no sentido de que não afirma qual-
quer ponto no que se refere ao conteúdo das estruturas, ou ainda sequer sobre os efei-
tos a serem observados como decorrentes do acoplamento entre sistema e ambiente.
A autopoiesis, e sua semântica, é a mesma para todo e qualquer sistema social
de função, pois seu sentido é de que tão-somente se pode falar em elementos e
estruturas de um sistema na medida em que este mesmo sistema continue existin-
do, isto é, operando-se autopoieticamente. O fato de o Direito ser um sistema par-
ticular - autopoiético e fechado operacionalmente - tem referência a seu próprio
código (licitude/ilicitude). Mas, como o próprio LUHMANN esclarece, a noção de
autopoiesis não serve para esclarecer quais serão os programas que constituirão, ou
constituem, o sistema.8
Assim, temos que a distinção entre sistema e ambiente se dá no presente na
exata medida em que as operações do sistema ocorrem somente no presente -+ o
que implica uma simultaneidade na determinação do passado e do futuro que,
enquanto tais, somente podem ser conjuntamente assim definidos no presente.
Isto implica a constatação de que o sistema também se move, operacionalmente,
somente no presente, ainda que assim marque simultaneamente o passado q o
futuro. A "segurança" na reprodução do sistema por si próprio se dá na insegu-
rança: em um cenário altamente complexo em que o nível de tolerância das inse-
guranças deve ser referido ao próprio processo de produção - operação - do
7 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sodedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht dei Gesellschaft, CÍL, pp. 44-;45.
8 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, dt., p.;45.
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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
Direito. Estas assertivas têm a ver com o fato de que o que ocorre no sistema se
dá na atualidade, no presente, eqüivale dizer, a distinção entre sistema e ambien-
te é determinada no presente e também de maneira simultânea, 9 co-implicada.
Mas se já afirmamos que o Direito, enquanto sistema social autopoiético,
reproduz a si mesmo através de operações sistêmicas, como devem ser entendi-
das, ou melhor, como devem ser inicialmente enfocadas referidas operações?
r~Não devemos supor que sejam as consciências individuais aquelas que permitam
a operação, ou melhor, que realizam a operação através da qual o sistema jurídi-
1
co reproduz a si mesmo. Enquanto sistepas psíquicos, as consciências individuais
não têm este condão. Assim é que estas'consciências não podem ser - e não são
efetivamente - consideradas como elementos ou estruturas do sistema do
| Direito. Na verdade nada impede que os sistemas psíquicos observem o Direito;
mas esta afirmação será bem distinta da que se referir à capacidade de produção
do próprio sistema jurídico. 10
Os sistemas autopoiéticos devem ser encarados enquanto vinculados ao seu
próprio tipo de operação tanto no que tange a) à própria produção de operações
como b) no concernente à construção de estruturas. Assim conclui LUHMANN que
não há uma diferença material entre operação e estrutura. Esta afirmação somen-
te pode ser compreendida na medida em que o Direito opera comunicativamente.
Em sendo a operação através da qual o Direito opera, a comunicação não permite
compreender as próprias normas - enquanto estruturas - como não sendo, tam-
bém, comunicações. As comunicações no campo do Direito sempre apresentam,
para LUHMANN, uma dupla função: a) ser fator de produção e b) ser conservador das
estruturas. É assim que podemos afirmar que se trata de um sistema histórico: ope- j
racionalmente o Direito, enquanto sistema, parte de uma definição, um quadro sis-
têmico imediatamente anterior àquele novo por ele mesmo criado. As comunica-
ções referidas ao sistema do Direito que, enquanto tais, permitem fazer a diferen-
ça entre sistema e ambiente estabelecem condições de enlace para as operações i
subseqüentes, seja confirmando ou modificando as estruturas já dadas.11 ——
Como já apontado, portanto, a» comunicação é a operação através da qual o
sistema jurídico reproduz a si mesmo de maneira enclausurada, isto é, estabele-
cendo a distinção entre sistema/ambiente. Enquanto comunicação devemos,
todavia, entender que não se trata de uma operação exclusiva do sistema jurídi-
co. Se é através da comunicação que o Direito opera, é verdade que a Sociedade,
9 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., pp.
46-47.
10 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., pp.
47-48. Afinal, os sistemas psíquicos operam a si mesmos a partir de sua operação "pensamento" e não a
partir da operação do Direito e da Sociedade, qual seja, "comunicação".
11 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GeseUschafc, cit., p. 48.
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Lúcio Antônio Chamon Júnior
12 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., p. 55.
13 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rncht der Gesellscbaft, cit., p. 55.
14 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscbaft, cit., pp.
57-58.
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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
Já que estamos nos referindo a um aspecto temporal, vale ressaltar que para
LUHMANN as operações, enquanto amalizações de possibilidades de sentido - em
úm contexto complexo e contingente - , não têm qualquer duração (permanên-
cia) enquanto acontecimento; e na medida em que não têm duração não podem
áer alteradas, isto é, não podem sofrer qualquer mudança. A estrutura, enquanto
algo que sistemicamente tem uma duração, bem como sua condensação e sua
confirmação, através de operações do sistema, somente pode ser entendida
enquanto referida a operações que não têm duração dilatada no tempo. Isto não
significa que a operação não possa ser observada; e que para tal observação seja
necessária uma mínima duração: como exemplo o próprio autor se refere à obser-
vação de operação cuja duração mínima seria o tempo que se leva para procla-
mar uma sentença.' 5
Faz-se, então, necessária a diferenciação entre operação e observação. A
observação também é uma operação do sistema, mas que, enquanto operação
Beste, produz um novo estado no próprio sistema observador. As próprias opera-
ções de base do sistema pressupõem uma observação, pois se não houver uma
;'auto-observação" simultânea o sistema não é capaz de operar a si mesmo auto-
jpoieticamente. Assim é que podemos entender os sistemas autopoicticos como
jsendo sistemas auto-referenciais. E enquanto sistemas auto-referenciais esta
jcaracterisitica "referencial" deve ser entendida em termos de "descrição", i.e.,
como uma descrição capaz de ser levada adiante em um dado contexto frente a
p W t r a s possibilidades. É desta forma que o sistema constrói a si mesmo: se distin-
' guindo dos demais, enfim, descrevendo a si mesmo como algo diferenciado do
ambiente. Dessa maneira é que o sistema leva adiante a observação com a ajuda
da auto-referência e, também, portanto, da hetero-referência. Isto porque obser-
vação e auto-referência se implicam mutuamente, pois somente se pode falar em
V i observação e observador na medida em que este seja, e se enxergue, como algo
diferente e distinto de um ambiente observado. O sistema somente se torna
observável na medida em que descreve a si mesmo. 16 tf
l
A operação do sistema jurídico está intimamente ligada à auto-observação: /
o sistema que se observa como diferente do ambiente acaba se reproduzindo, jus-
tamente, a partir desta observação que, aliás, possibilita a autopoiesis. A observa-
ção somente pode ocorrer na medida em que também se pode vislumbrar uma
auto e uma hetero-referência. E esta auto-referência - enquanto autodescrição -
se dá na medida em que o Direito se descreve como algo que se auto-realiza. A
15 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit„ p. 50.
16 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 52.
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Lúcio Antônio Chamon Junior
17 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.: LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, rit., p. 53.
18 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, cit., p. 60.
19 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LumtANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíi, cit., p. 65.
%
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
20 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Cesellschafi, cit., p. 67.
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21 LUHMANN, Niklas. ElDeiecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rccht der Geselkchaft, cit., p. 70.
22 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 72.
23 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 72.
Isto não impede que um mesmo comportamento possa ser "valorado" pelo código de outro sistema ainda
que simultaneamente.
24 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 73.
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i Filosofia do Direito na Alta'Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas
46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.
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í I
Lúcio Antônio Chamon Júnior
entendida, em síntese, como sistema de saber de normas válidas com base no prin •
cípio da universalização, para LUHMANN a Moral se apresenta como sendo algo
particular, embora ambos reconheçam - ainda que de pontos de vista diferencia -
dos - que na Modernidade a Moral não é capaz de cobrar cumprimento imediata
- e LUHMANN vai afirmar que esta impossibilidade se dá, justamente, dentro do sisj-
tema do Direito como maneira de forçar o reconhecimento da clausura operacioj-
nal: o Direito deve consistentemente decidir juridicamente e não moralmente.].
Somente quando se toma o Direito, como funcionalmente diferenciado, enfim,
enquanto sistema dotado de unidade e fechamento operacional é que se pode perj-
mitir levar adiante uma delimitação entre Direito e seu ambiente.
E aqui cabe ressaltar que a diferença entre clausura operacional e abertura
cognitiva tem a ver com a diferença com que são esperadas as expectatival
Desde um ponto de vista da observação de primeira ordem o sistema jurídico
somente pode esperar a expectativa normativamente, enfim, de maneira contra-
fática, pois do contrário haveria uma abertura operacional do próprio sistemE,
Mas desde uma observação de segunda ordem, que será melhor esclarecida
adiante, pode-se perceber - em razão da auto e da hetero-referência - uma dis-
tinção entre expectativas normativas e cognitivas, respectivamente.
A clausura operacional não significa somente que se deve manter estáveis zs
normas jurídicas frente a decepções (expectativa normativa) - isto, enfim,
somente pode ser explicado em termos de seqüência de operações que gera a prc-
pria estabilidade marcada por uma determinada praxis. Aqui podemos também
1
ressaltar que, em sentido mais amplo, e também abrangente do anteriormente
exposto, a clausura consiste no fato de que a auto-observação se orienta pelp
código do próprio sistema, enfim, que no caso do Direito a auto-observaçãjo
segue o esquema licitude/ilicitude. Com isto, em razão da hetero-referêncià,
pode-se observar através de suas próprias operações um contexto cognitivo qüe
possibilite a modificação de normas - como, por exemplo, quando já não mais
sejam aceitáveis determinadas conseqüências jurídicas, ou ainda mesmo em
razão de valorações acerca das normas específicas. 28 Mas a percepção desta aber-
tura cognitiva somente pode ser compreendida enquanto hetero-referência: para
tanto isto não implica uma clausura neste mesmo contexto cognitivo originário
da própria observação, mas há a necessidade da criação de um contexto norma-
tivo: a abertura cognitiva se dá em um sistema fechado operacionalmente
somente sob a condição de se integrar, v.g., a norma modificada e que, assim, fora
fruto de uma irritação pelo ambiente, à própria praxis.
28 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cie.: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaír, cit., p. 81.
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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
29 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 81.
30 Mais adiante explicitaremos o que venha a ser programa condicional.
31 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 86.
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Lúcio Antônio Chamon Júnior
32 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der Gesellschaft, cit., p. 88.
33 Sobre nossas considerações a essa temática, igualmente cf. CHAMON JÚNIOR; Lúcio Antônio. Teoria da
Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes no Direito
moderno. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009, cap. 05.
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Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
34 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHJÍIANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/t, cit., p. 92.
3? LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 124.
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Lúcio Antônio Chamon Junior
36 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchafi, cit., p. 125.
37 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GesellschaJi, cit., pp.
126-127.
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Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas
46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.
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41 LUHMANN, Niklas, El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recbt der Gesellscbaã, rit., p. 131.
42 Acerca das noções de confiança e risco na Teoria dos Sistemas, cf. nosso: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio.
Imputaçio objetiva e risco no Direito Penal: do funcionalismo à teoria discursiva do delito. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2005.
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I
43 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rccht der Gesellschaã, cit., pp.
132-133.
44 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der GeseUschaft, cit., pp.
134-135.
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Lúcio Antônio Chamon Júnior
45 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
136-137.
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Incursões Teóricas em Kelsen, Lnhmann.e Habermas
te no marco de suas operações internas. Disto conclui o autor - sem muito expli-
citar as justificativas para tanto - que, na medida em que temos u m sistema auto-
poiético, este se vê estimulado a garantir sua função, e isto implicaria uma capa-
cidade de prever internamente a continuidade das operações que garantam a sua
função. Pode-se perceber, então, a presença de uma tautologia - reconhecida
pelo autor enquanto tal: o Direito é aquilo que o Direito diz que é Direito.
O que LUHMANN, neste sentido, pretende é explicitar que, se deslocarmos
esta tautologia para a consideração das expectativas normativas, teríamos a
observação de uma relação reflexiva e que as próprias expectativas normativas
seriam esperadas normativamente pelo sistema do Direito. Entender este ponto
reflexivo, enfim, uma operacionalização reflexiva implica, para o autor, uma
não-indiferença do Direito frente a si mesmo, eqüivalendo afirmar que isto
somente é possível na medida em que o modo da expectativa acaba já sendo pre-
determinado no sistema do Direito mesmo, o que garante, inclusive, a diferen-
ciação frente a outros sistemas. 46
E é assim que, frente à Política, LUHMANN defende que o Direito não se afir-
ma em razão de uma prestação ou um "poderoso apoio político", mas, antes, é
dependente da própria maneira com que se aguardam as expectativas normati-
vas: o Direito será "mais Direito" quando mais ainda puder esperar que a própria
expectativa normativa possa ser esperada normativamente. 47 1
46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.
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49 LUHMANN, Niklas. El Derecbo de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recbt der Gesellschaft, cit., p. 150.
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sob esta ótica: aliás, nem mesmo o uso da força é, muitas vezes, capaz de impor
o comportamento - que sequer é função do Direito - que seria de se esperar:
basta pensarmos no próprio exemplo de insolvência que o autor explicita.
Mas, para além da específica relação do Direito com a Política, vale ainda
ressaltar que outros sistemas dependem do Direito na medida em que este estabe-
lece uma subvenção, segundo LUHMANN. Então é necessária a distinção fun-
p ção/prestação. A função do Direito é uma só, qual seja, manter a segurança das
expectativas que se constroem normativamente. Mas as prestações que o Direito
pode oferecer têm a ver com a questão dos equivalentes funcionais: nesta hipóte-
se o Direito surge como uma possibilidade, no sentido de segurança última para a
"-"t liberdade. 50 Um determinado sistema, nestes termos, pode procurar solucionar
um conflito de inúmeras formas: no campo familiar os conflitos podem ser resol-
vidos de variadas maneiras, mas a saída jurídica encontra um certo limite na
I medida em que a "juridicização" destes conflitos pode ter conseqüências desastro-
I sas para aqueles que, porventura, pretendam continuar mantendo suas relações.51
Neste sentido é que se afirma que o Direito pode prestar aos demais siste-
mas subvenções-, na exata medida em que sua função se mantém inalterada, o
Direito é capaz de oferecer um equivalente funcional para a solução do conflito
pelo fato de que pode ser considerado como "segurança última" para a liberdade.
Destarte, ao tomar, conjuntamente, a função do Direito com as suas possibi-
lidades de prestações a outros sistemas, podemos considerá-lo como uma espécie
de sistema imunológico, 52 isto é, de sistema que, em assim operando - desde uma
| perspectiva interna, mas possibilitando a outros sistemas determinadas prestações - ,
| imuniza a sociedade. Aqui, em um ponto importante e que HABERMAS também se
preocupa - embora de outra maneira - , LUHMANN entende que a evolução social, e
seu conseqüente aumento de complexidade, nos leva, inevitavelmente, a também
ficarmos atentos ao aumento das divergências no que se refere às projeções das
| normas/- o que o autor deveria ter melhor conectado frente à questão da tensão
que ele edifica frente às dimensões temporal e social. Uma solução "pacífica" -
segundo o autor - haveria que estar apontada para um desenvolvimento do Direito
- a isto regressaremos adiante.
46 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rech: der Gesellschafc, cit., p. 147.
47 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 145.
48 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 146.
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53 A teoria luhmanniana, em linhas gerais, entende que DWORKIN estabelece uma des-diferenciação entre
Direito e Moral. Neste sentido interpretativo temos outros teóricos da Teoria dos Sistemas como DE'
GIORCI, Raffaclc. Semântica da idéia de direito subjetivo. Trad. Juliana Neuenschwander Magalhães.
Direito, Democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1 9 9 8 ; NEUENSCHWANDER
MAOAI.HÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios Gerais do Direito
pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-observação: percursos
da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997;
NEUENSCHWANDER MACALHAES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.
Ambos teóricos, se orientando pelas conclusões de LUHMANN, oferecem uma leitura que entendemos ina-
1
dequada da teoria de DWORKIN. Por uma leitura que entendemos mais consistente da obra deste, na medi-
da em que tomo a sério a dimensão deontológica, cf.: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el
dorecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria dei discurso, cit., p. 263; CARVALHO
NEITO. Menclick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para
uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das Leis no Brasil: um pequeno
exercício de Teoria da Constituição. Fórum Administrativo, cit.
54 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaíi, cit., pp.
95-96.
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Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
55 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cie.; LUHMANN, Niklas. Das Rechi der GesellschaA, cit., pp.
96-97.
56 LUHMANN. Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafi, cit., p. 98.
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|
tação da comunicação do ponto de vista interno ao sistema, isto é, a noção de vali-
dade implica a própria autopoiesis do Direito. Neste sentido, não haveria, para
LUHMANN, qualquer impropriedade em afirmar que uma lei inconstitucional seria
válida porque a questão não deve ser enfocada, nos termos expostos, desde uma
visão que leve em conta a qualidade "intrínseca" da norma, mas antes tão-somen-
te deve fazer referência a quais condições o Direito prescreve aquilo que pode ser
qualificado como validade jurídica. 57 O "símbolo da validade" é algo interno, por-
tanto, ao próprio Direito, um símbolo que circula internamente;58 e esta noção de
circulação somente pode ser entendida no sentido de que ela se transfere às opera-
ções seguintes do próprio sistema.
Absorvendo contribuições de PARSONS - segundo o próprio LUHMANN 5 9 - , o
símbolo não é algo estático e que se encontra fora, mas antes é algo interno que,
H"*~no sentido de ser o Direito uma máquina histórica, implica sua transferência às
operações seguintes: a validade, enquanto símbolo da unidade do sistema, será
transferida pelo fato de que as operações subseqüentes, enlaçadas às anteriores
2> (máquina histórica), cumprem as condições de validade estabelecidas pelo pró-
prio Direito. Com isto, alcança a teoria a possibilidade de, em razão desta simbo-
lização da unidade do sistema, qual seja, a diferença Direito válido/Direito invá-
lido, 60 afirmar que uma norma é válida exaltando a conectividade no e ao siste-
| ma jurídico.
Estabelecendo uma crítica a HABERMAS, LUHMANN diz que entender a ques-
tão como referida à "legitimidade da validade", introduzindo uma necessidade de
referência a "qualificações normativàs", bem como o estàbelecimento de uma
"premissa fundamental" - princípio do discurso que, todavia, LUHMANN diz ser
trabalhada em uma "ética do discurso" por HABERMAS, não observando a modifi-
cação no pensamento deste - , não poderia ser capaz de estabelecer a comprova-
ção da não-validade em sede jurisdicional 61 - certamente porque, para LUHMANN,
isto refletiria uma não-conectividade ao sistema, o que, portanto, não caberia ao
próprio sistema jurídico decidir acerca da validade ou não-validade.
Esta postura sistêmica somentè pode ser assumida se se parte de um ponto
de vista de uma descrição ohjetivaiite do Direito e que indaga somente as condi-
ções "formais" de validade do Direito - ainda que com altos custos teórico-ope-
racionais. Não nega o autor que, do ponto de vista de uma descrição interna,
57 LUHMANN, Niklas. H Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der GesellschaJt, cit, p. 98.
58 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GeseUschaA, cit., p. 101.
59 LUHMANN, Niklas. B Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchaft, cit, p. 107.
60 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Trad. Héctor Fix Fierro. Teoria de los sistemas sociales: artícu-
los. México: Universidad Iberoamericana, 1998, p. 161.
61 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaít, cit., p. 100.
114
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
I
possa haver a necessidade de se ressaltar outras condições sem as quais não se
poderia aceitar a própria validade.62 Mas, se a proposta é entender a validade
como aquilo que nos possibilita vislumbrar a unidade do sistema, esta mesma
unidade somente se pode perfazer, nestes termos, quando observado o siste-
ma/ambiente de uma proposta objetivante e alheia a uma dimensão normativa.
LUHMANN entende que a validade, apesar de descrita de um ponto de vista
externo, necessariamente está implicada internamente ao próprio sistema, pois,
do contrário, não seria possível imaginá-lo como uma rede recursiva de opera-
ções. Se referindo ao positivismo de KEISEN e HART, LUHMANN entende que estes
autores tiveram a equivocada necessidade de, todavia, remeter ao "exterior" a
questão da validade postulando metanormas como a "norma fundamental" ou a
j "regra do reconhecimento" 63 respectivamente.64
R A validade para LUHMANN há que ser compreendida em termos tão-somen-
te internos e operacionais: a validade é simplesmente a forma através da qual se
pode afirmar que as operações aparecem como conectadas ao sistema, isto é, às
operações anteriores; enfim, a forma com que as operações fazem referência à
sua participação no sistema jurídico na medida em que se encontram adjudica-
das em um contexto possibilitado por operações anteriores e do mesmo sistema.
Implica, enfim, conectividade e recursividade interna das operações, represen-
tando, por fim, a unidade do sistema. A validade, portanto, não pode ser "perso-
nificada" em uma norma fundamental - a validade não é norma, mas um símbo-
lo que, como já explicitado, circula de operação em operação.
* | Devemos, antes, entender, segundo o autor, a validade não como n^rma, ou
conseguinte a uma norma, mas como uma distinção, como uma forma que, em
sendo uma forma no sentido que LUHMANN toma de SPENCER BROWN, marca dois
lados; um positivo e outro negativo. Assim é que a validade é o lado intemo da
forma enquanto a não-validade é o lado externo; esses lados somente podem
cumprir o papel enquanto referidos à operacionalidade do sistema: são asj>ró-
rias-operações internas ao sistema que resultam na distinção entre valida;_,
de/mvalidaidfi^Isto somente pode ser adequadamente concatenado à teoria do
autor na medida em que o Direito, enquanto sistema social de função, é que
determina as suas condições de validade do Direito.66 Isto implica a necessidade
de referência a um símbolo que "gera", enfim, "simboliza" mesmo, a própria uni-
62 L u h m a n n , Nildas. La validei dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 1 5 6 .
63 Acerca das posições de KELSEN e HART, cf. nosso: CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Gcral.do Direito
Moderna por uma reconstrução crítico-discursiva na Alta Modernidade, cíl, cap. 02.
64 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 1 5 9 ; LUHMANN,
Nildas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recht der Gesellscllaft, cit., p. 101.
65 LUHMANN, Nildas. El Derecho dc la sociedad, cit; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 101.
66 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit, p. 161.
115
Lúcio Antônio Chamon Junior
67 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., p. 104.
68 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaíc. cit.,ip.
101. As aspas o autor não as utiliza no texto e aqui referimos a direito com "d" minúsculo somente no sen-
tido de que não o Direito, enquanto sistema, mas somente um determinado direito "subjetivo" - ainda que
seja problemática esta noção para a Teoria dos Sistemas - é que pode não ser válido em razão de uma
modificação que, enquanto tal, se liga a uma operação do próprio sistema.
69 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., pp.
104-105.
70 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los siscemas sociales: artículos, cit., p. 164.
116
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
71 Referencia feita em LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos,
cie., p. 165.
72 LUHMVJN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 106.
73 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaít, cit., p.
106; LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 165.
74 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 106.
75 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 166.
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Lúcio Antônio Chamon Junior
76 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 167.
77 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 167.
78 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 168.
118
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
Aqui já se percebe que se não faz, ao menos nestes termos, pretender inse-
rir uma distinção como a esclarecida por KLAUS GÜNTHER - e assumida por
HABERMAS - entre justificação/aplicação porque, indistintamente, e sem qualquer
preocupação de especificação das situações, LUHMANN simplesmente se refere à
disposição como algo a ser observado na argumentação.
Enquanto observação de segunda ordem, a argumentação também é algo
que se percebe no interior do sistema. Na medida em que a disposição é capaz de
modificar o que venha a ser Direito válido, isto não implica que o símbolo da
validade deixe de circular no campo da argumentação: a conectividade da argu-
mentação ao sistema somente pode ser aceita quando esta mesma argumentação
se oriente pelo Direito válido, enfim, apresentando argumentos que se refiram ao
Direito vigente e não a questões "ético-morais".79
Muito interessante notar é que o autor, afirmando que a argumentação não í
realiza qualquer modificação no sistema, entende que, por outro lado, pode ser
excepcionalmente incorporada a determinadas condições de validade no sentido /
de que, somente tomando a argumentação em conta - excepcionalmente! - , é
que se poderia referir à disposição como sendo válida, ou não - e exemplifica ,
com a hipótese da fundamentação e motivação das sentenças judiciais. 80 J
Adiantando algumas construções da Teoria do Discurso, poderíamos, todavia,
afirmar que somente se pode falar em "validade" se se considera, sempre, uma
atividade argumentativa que se conforma a determinados procedimentos garan-
jtidores da autonomia jurídica - pública e privada - e que nos permitiriam falar
iem legitimidade - na verdade, para a Teoria do Discurso há uma tensão entre o
jDireito vigente e o que pode ser considerado como legítimo;_o Direito vigente, ^ ^
enquanto tal, permitir-nos-ia sustentar pretensões de coercibiíidade que podem, ^
ou n ã o ^ s e r legítirnasj aquilo faticamente vejificávej^ n ã o necessariamente é, ^
então, considerado racionalmente válido.
Mas retomando uma discussão com o positivismo, LUHMANN afirma que
entender a validade em termos temporais, como ele mesmo procede, implica
afirmar que a validade é, ela mesma, um produto do sistema que se dá na recur-
sividade de suas operações capazes de, somente assim, permitir vislumbrar a uni-
dade dq sistema. Afirmando que a única base de validade se encontra no tempo,
se recusa a entendê-la como referida a uma norma superior pressuposta. Isto
implica a inexistência de uma razão última e superior, mas antes uma limitação
do modo de produção da validade que se dá circularmente - e não piramidal-
mente - no próprio sistema.81
79 LUHMANN, Niklas. La valide? dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 169.
80 LUHMANN, Niklas. La validez dei Derecho. Teoria de los sistemas sociales: artículos, cit., p. 169.
81 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., pp.
108-109.
119
Lúcio Antônio Chamon Junior
82 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cie.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafc, cie., pp.
1 lOss.
83 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaít, cit., p. 10.
84 Cf. NEUENSCHWANDER MAGALHAES, Juliana. Women and Human rights. Human Righcs, Minority rights,
women s rights: proceedings of the 19th World Congress of the International Association of Philoso jhy
of Law and Social Philosophy (IVR). New York; Franz Steiner, 2001, p. 78; "Even though the Systems
Theory does not have a normative purpose, that does not mean it cannot change reality." (itálicos nosios)
120
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.
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Lúcio Antônio Chamon Junior
103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., 190-pp.
191.
122
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
88 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 166.
89 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
60-61.
90 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 70:
"El código - conforme con el derecho/no conforme con el derecho -, solamente puede ser manejado en el
plano de la observación de segundo orden, es decir, en el nivel de la observación de los observadores. Esta
observación es indiferente respccto al hecho de si los observadores de primer orden - actores o víctimas - ,
clasifican su relación con el mundo de acuerdo al derecho o en desacuerdo a él. Si se imaginan que a ellos
les asiste la justicia o que son vlctimas, el observador de segundo orden puede juzgar eso mismo de otra
manera. Y si en absoluto han pensado una referencia al derecho, el observador de segundo orden puede apli-
car para ellos los valores: conforme a derecho/no conforme a derecho. A diferencia de la normatividad de
Ias expectativas (indiscutiblememe indispensable en la operación) y a diferencia de Ias estrueturas histórica-
mente existentes, interpretables como derecho, el código tienc dos particularidades: es universalmente
manipulable independientemente dei contenido presente de cada comunicación, y posibilita la clausura dei
sistema por medio de la reformulación de su unidad como diferencia."
I 1
123
Lúcio Antônio Chamon Junior
91 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der CesellschaJi. cit„ p. 168.
92 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. cit., p. 169.
124
I
93 LUHMANN, Niklas, EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 176.
125
J 1
Lúcio Antônio Chamon Junior
A licitude - mas algo que ocorre também com a ilicitude - há que ser com-
preendida como "valor contrário do valor contrário". Antes pretendemos é res-
saltar que o estabelecimento da distinção entre licitude/ilicitude em nível do
código somente é levada adiante no lado interno da forma do sistema; do ponto
de vista do código, a questão há que ser enfocada tomando em conta uma sime-
tria sem a qual não poderíamos entender o crossing e o tratamento da ilicitude
no próprio Direito enquanto sistema.
Enquanto o sistema - em sua clausura operacional - pode ser enfocado como
unidade que, para tanto, lança mão de uma assimetria, o código, por outro lado,
na medida em que dissolve o paradoxo, somente pode ser entendido simetrica-
mente, isto é, deve ser praticado não como unidade - que representa o sistema -,
mas sim como distinção de dois valores opostos - que permite desenvolver o para-
doxo que somente volta de maneira problematizante quando o código o submete
a si próprio. Os códigos surgem, então, como estruturas possíveis somente em um
nível de segunda ordem, tendo em vista que podem ser simplificados em uma dis-
tinção bivalente na medida em que alcançam uma bi-estabilidade.94
E aqui devemos tomar todo cuidado, pois estas assertivas podem ser extre-
mamente úteis para uma reconstrução da Dogmática jurídica95 - ainda que sob
uma orientação teorética fundamentalmente diversa. Mediante este código ofe-
recido enquanto uma simetria, enquanto algo bivalente e esquematizado em ter-
mos de licitude/ilicitude, podemos vislumbrar uni valor positivo (licitude) e um
valor negativo (ilicitude). O valor positivo é aplicado - obviamente pelo sistema
- quando haja tuna coincidência com as normas do próprio sistema. Por outro
lado, o valor negativo "ilicitude" é atribuído, também pelo sistema, quando se
infringe as normas do sistema jurídico.
Como ressalta o próprio autor, o que venha a ser tomado como "assunto", além
das condições para que ao mesmo sejam referidos valores positivos ou negativos, são
questões a serem, todas elas, trabalhadas pelo próprio sistema. A atribuição do valor
positivo ou negativo somente se podei dar em termos internos e quando se toma em
conta a recursividade das próprias operações conectadas do e ao sistema.96
Mas uma questão há que ser ressaltada: por que não houve qualquer referên-
cia ao "indiferente jurídico" no plano do "Unrecht" enquanto lado negativo da
forma do código - e não da forma do sistema? A questão há que ser explicitada no
seguinte sentido: para o código, enquanto estabelecimento simétrico, não faz qual-
94 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 176.
95 Sobre nosso esforço em propor e levar adiante uma reconstrução da Teoria Geral do Direito, cf. CHAMON
JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: por uma reconstrução crftico-discursiva na Alta
Modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.
96 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 178.
126
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.
127
Lúcio Antônio Chamon Junior
cidas no sistema e que, por este mesmo, são entendidas como decisivas: daí, basta
tomá-las em conta a fim de permitir tuna dada "atuação" no mundo. O interessan
te de ser bem marcado é que o autor esclarece o código como algo capaz de ser esta-
belecido como condição e também como estímulo à decisão racional, o qué,
enquanto codificação bivalente, reduz as pretensões de racionalidade - segundo ás
expressões do autor — mediante a forma do código: haveria, portanto, no campo
específico do Direito, uma dada "racionalidade jurídica".98
O código, e aqui a teoria se faz importante para um enlaçamento dogmá-
tico da questão, pode ser entendido, primeiramente, como uma divisão ein
duas metades, enfim, como estabelecimento de uma indicação que implicà,
simultaneamente, uma distinção que se traduz no estabelecimento da mareja
entre licitude/ilicítude, isto é: entre o conforme e o discrepante ao Direito
(quando tomamos a forma referente ao código).
Isto somente pode ser entendido em termos de que há, assim, uma especifi-
cação do lado positivo da forma do sistema: o lado interno, ou o lado positivo 4a
forma do sistema é, antes, especificado como maneira de marcar a distinção c.o
"mundo" em duas metades, já que o lado externo da forma do sistema - o não-
Direito, enquanto ambiente - surge como sendo algo residual, como o "unmar-
ked space" de SPENCER BROWN, pelo fato de que é o lado positivo que especifi
assimetricamente o próprio Direito e, consequentemente - ou residualmente
também o não-Direito.
Mas isto permite ainda um outro raciocínio: o lado interior da forma do s.
tema (o sistema, na forma sistema/ambiente, ou o Direito na forma Direito/nã
Direito, enquanto referente ao Direito como unidade da diferença), em razão do
re-entry da forma do código na forma do sistema no lado positivo desta, opera,
enquanto sistema, com os valores licitude e ilicitude (RechtAJnrecht) uma v e z
que são valores do código (conforme/discrepante ao Direito). Por sua vez, o lado
exterior permanece enquanto lado negativo e restante: isto_somente pode ser
compreendido se alcançarmos o entendimento adequado d<3 re-entry.
Mas, a determinação daquilo que possa, em~õcõírén3õ, ser atribuído coijio
"conforme" ou "discrepante" ao Direito, depende de uma variação de condiçpes
estabelecidas pelos sistemas em termos programáticos, i.e., através de programas
do sistema. Isto leva o autor a uma conclusão - que ele mesmo reconhece como
simplista - de que os programas podem estabelecer, enfim, basear suas determi-
98 "Con ello se vuelve problemático el uso dei término 'razón' en este contexto. Lo que s( se puede lograr
es la posibilidad de determinar al inte-rior de zonas borrosas de tolerancia, si se ha come- tido un error
(o no) ai asignar los valores derecho/no-derecho. Y esto es, a su vez, la condición de posibilidad de que
tenga sentido organizar dentro dei sistema una jerarquía dei control de los errores, es decir, una instancia
especializada." LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cie.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der
Gesellschafi, cit., p. 184.
128
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
99 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Geselkchaft, cit., pp.
185-186.
10Ò LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., pp.
187-188.
101 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaJt, cit., p. 189.
129
Lúcio Antônio Chamon Junior
102 LUHMANN, Niklas. £7 Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht dei Gesellscbaft, cit., pp.
189-190.
103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp.
190-191.
130
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
ma tem que ganhar em operacionalidade, isto é, não obstante ser meio, o código há
também, justamente por isto, poder ser operacionalmente articulado. E é justa-
mente neste ponto que se faz imprescindível a referência aos programas do siste-
ma. Enquanto sumplementos da codificação - e L U H M A N N diz que emprega o termo
"suplemento" no mesmo sentido que J. DERRIDA - , afirma a teoria que os progra-
mas têm o papel de oferecer uma direção, uma direcionalidade ò semântico que
vem submetida, porque condicionada, a um código:105 o código licitude/ilicitude.
Na medida em que o código é dotado de dois valores, podemos também per-
ceber que é exatamente nisto que está erradicada a contingência sistêmica; mas o
sentido de correção - no plano operacional e de atribuição de um ou outro valor
- somente pode ser buscado com os programas que, enquanto tais, fixam qual
valor há que ser atribuído. E é no próprio nível dos programas que devemos bus-
car solucionar a questão da compatibilidade de programas: entender que novos
programas se sobrepõem aos antigos e que o Direito Constitucional tem primazia
sobre os demais não eqüivale a qualquer solução para além dos programas, mas
antes uma referência aos próprios programas do Direito enquanto sistema.106
E interessante é a conjugação que o autor estabelece entre código e progra-
ma: apesar do sistema constantemente estar em movimento, enfim, se apresen-
tar como contingente e variável, esta capacidade de adequação sistêmica - sua
variabilidade - é perfeitamente compatível com sua invariabiliade. O sistema,
apesar das mudanças, permanece, enquanto sistema do Direito, em razão da
manutenção do código; este permanece invariável, o que, todavia, não impede
que o^ diversos programas que, em se referindo a um nível programático, podem
oferecer inúmeras possibilidades de mudança na atribuição dos valores. As modi-
ficações programáticas, no campo do Direito - enquanto modificações normati-
vas - , não retiram do sistema sua unidade e identidade. Assim é que a invariabi-
lidade e incondicionabilidade sistêmica tem a ver com o código - sempre o
mesmo: licitude/ilicitude - enquanto a metamorfose e a variabilidade estão refe-
ridas ao nível dos programas.107
Assim é que o código e os programas hão que ser entendidos como, de certa
forma, co-dependentes. Isto somente pode ser entendido na medida em que são
os programas que complementam, suplementam, o código pelo fato de que o per-
mite ser atribuído através de uma densidade semântica viabilizada e oferecida
pelos programas.
Mas qual é o tipo de programa é ao Direito referido? L U H M A N N explica que,
superado - e não obstante - todo o entusiasmo do período de Bem-Estar Social,
105 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 192.
106 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 192.
107 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 193.
131
Lúcio Antônio Chamon Junior
103 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaft, cit., p. 190.
104 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 190-191.
132
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
110 LUHMANN, Niklas. ElDerecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 197.
111 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 198.
133
Lúcio Antônio Chamon Júnior
112 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
198-199.
113 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Nildas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 201.
134
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
expõem quem decide a uma crítica empírica, mas que, todavia, em ocorrendo,
tão-sÁmente a autoridade de cargo do juiz e a obrigatoriedade de tomar uma
decisão validariam a sentença. J 1 4 - retomaremos a este aspecto mais à frente.
Não obstante esta assertiva - que somente se enquadra no coipo aqui recons-
truído na medida em que o autor se propôs a uma teoria descritiva, enfim, se pro-
pôs a uma observação, largando mão de uma dimensão normativa -, afirma-se que
o marco a partir do qual se deve julgar é sempre um programa condiciona] que
leve em conta o esquema "se isto/então isto" - e nem é preciso muito esforço para
ressaltar as semelhanças com a proposição kelseniana "se é A, deve ser B"...
Já adiantando uma questão que será melhor articulada posteriormente,
quando se apresentarem problemas na interpretação do "texto autorizado", refe-
rido ao programa condicional, o juiz pode indagar acerca de finalidades, o que
abre a possibilidade de se decidir a questão com base naquilo que se apresenta
como um futuro incerto. O autor, absurdamente, acaba por afirmar que, em casos
extremos, o estabelecimento de condições se reduz a uma norma de competên-
cia: o Direito é aquilo que o juiz, em razão de seu cargo, e como instância deter-
minante, considera, toma em conta, como sendo um meio adequado para um
fim!! Mas, surpreendentemente, afirma o autor - em uma concessão a um, diría-
mos, decisionismo-funcionalista, ou até mesmo a uma discricionariedade - que
se seguimos tal enlace finalístico como programa condicional, isto se dá porque
a decisão só é "Direito" se ele, juiz, a realiza enquanto juiz. A autopoiesis do sis-
tema estaria garantida pelo fato de que, mesmo esta decisão judicial, se orienta-
ria pelo código licitude/ilicitude.115
Aqui, encontramos a impotência teórica da proposta luhmanniana.
Enquanto KELSEN tentou delimitar a questão se recorrendo ao fundamento de
validade da norma - norma hierarquicamente superior - , tal limitação em
LUHMANN não se justifica em termos escalonados, mas antes em termos de recur-
sividade. Mas esta saída não oferece qualquer limitação, pois a recursividade é
usada pelo autor para justificar a decisão do juiz, simplesmente por ser juiz, como
sendo válida - como sendo conectada ao sistema. A justiça para LUHMANN é que
poderia oferecer uma possibilidade de delimitação do poder discricionário do
juiz - e aqui estamos utilizando "discricionariedade" nos termos empregados por
DWORKIN.116 A ela referiremos somente depois de adequadamente enfocar não só
a problemática que é entender o Direito como um "sistema de regras" - descon-
114 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 203.
115 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.,- LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesells/!hafi, cit., pp.
203-204.
116 Cf., especialmente a partir do segundo capítulo em diante: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Trad.
Marta Guastavino. Barcelona: Ariel, 1999.
135
Lúcio Antônio Chamon Junior
117 LUHMANN, Niklas. La argumentación jurídica. Un análisis de su forma. Trad. Héctor Fix Fierro. Teoria de
los sistemas sociales: artículos. México: Universidad Iberoamericana, 1998, p. 179.
136
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
137
Lúcio Antônio Chamon Junior
121 A leitura que a Teoria dos Sistemas optou do Direito da Common iawchoca, definitivamente, com a com-
preensão mais adequada, ao nosso ver, que DWORJÜN desenvolveu e mais tarde é resgatada por HABERMAS
numa tentativa - bem diferente da funcionalista - de buscar a integração das tradições da Common Law
com a tradição européia-continental.
122 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Euiopéia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 277. Desconsidera, assim, todo o aporte
filosófico e constitucional desenvolvido descíe DWORKIN até HABERMAS e que, no marco de uma Teoria da
Constituição, implica os esforços para uma superação das chamadas "normas programáticas" como preten-
dida em CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Modemo: por uma reconstrução criti-
co-discursiva na Alta Modernidade, cit.; CHAMO!1) JUNIQF, Lúcio Antônio. Teoria Constitucional do Direito
Penai contribuições a uma reconstrução da Dogmática pena] 100 anos depois, cit.; CATTONI DE O U V E I R A ,
Marcelo Andrade. Direito processual constitucionaL Belo Horizonte: Mandamentos, 2001; CATTONI DE
OUVEIRA, Marcelo Andrade. Direito ConstitucionaL Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. Cf. ainda os
importantes escritos: CARVALHO Nrrro, Menelick de. Teoria da constituição: os marcos de uma doutrina
constitucional adequada ao constitucionalismo. In: MAGALHÃES, José Luiz Quadros, et ai. Direitos huma-
nos e direitos dos cidadãos. Belo Horizonte: PUC Minas, 2001.
123 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observaçâo: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 277.
138
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
que deveria, enquanto norma, ser descrita pela fórmula geral "Se é A, deve ser B"
- é relevante também aqui: os princípios não são entendidos como elementos do
sistema pelo fato de não se encaixarem na perspectiva adotada de programa con-
dicional (norma): "se isto/então isto".
A isto retornaremos outras vezes, mas aqui vale ainda indicar um ponto que
também será relevante: os princípios, apesar de não serem estruturas do sistema,
são, como já dito, úteis ao mesmo na superação do paradoxo ao qual o Direito está
preso e que, enquanto paradoxo, é pelo sistema ocultado. Como já referido, para
a Teoria dos Sistemas os princípios surgiriam como dispositivos que permitiriam
a superação da dificuldade aparecida no sistema por supostamente serem criados
pelo juiz. Antes, tais princípios não existiriam no sistema, mas, uma vez que o
juiz os "cria" e os utiliza, passariam a ter relevância/existência no sistema no qua-
dro daquela decisão - o que não impediria que estes princípios voltassem a ser
utilizados.124
Essas afirmações são melhor compreendidas quando entendemos, em prin-
cípio, o papel que os tribunais têm no Direito, e na Sociedade, para a Teoria dos
Sistemas. Coerente com seu entendimento de que os programas são condicionais,
LUHMANN afirma que estes mesmos programas são incapazes de determinar com-
pletamente as decisões a serem tomadas no campo jurisdicional. Se os programas
hão que ser operacionalizados mediante uma lógica dedutiva - como outrora já
explicitado - , e em razão dos programas serem insuficientes, entende o autor que
o sistema, em assim percebendo, não pode operar exclusivamente com üma lógi-
ca dedutiva - embora esta tenha um grande papel no contexto de aplicação.125
Isto leva o autor a propor que, na inexistência de "jurisprudência mecâni-
ca", deveriam os tribunais constituir novas decisões, diferenciar casos que devem
ser diferenciados - e aqui entraria a forma igual/desigual - enfim, o tribunal
assim criaria um "Direito judicial" que deveria, todavia - algo também afirmado
por N E U E N S C H W A N D E R MAGALHÃES - , ser testado quanto à sua consistência e coe-
rência frente ao Direito vigente. Os casos, pela impossibilidade de previsão legis-
lativa - diríamos, através da programação "se/então" - , devem permitir aos jui-
zes que criem o Direito ali onde o próprio Direito não ofereceria qualquer solu-
ção. Em razão de não se poder denegar a decisão, haveria que se reconhecer, con-
juntamente, ao juiz, uma liberdade na construção/criação do Direito126 - ainda
que a métrica da diferença não seja explicitada...
124 NEUENSCHWANDER MAGALHAES, Juliana. Interpretando o Direito como um paradoxo: observações sobre o giro
hermenêudco da ciência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo.
Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas cm contextos imperfeitos, cit„ p. 154.
125 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Ajuris. Porto AlegTe, v. 48, pp. 149-168,
1990, p. 162.
126 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico, cit., p. 163.
139
Lúcio Antônio Chamon Junior
127 LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico, cit., pp. 164-165.
128 NEUENSCHWANDER MACAI.HAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princíp:
Gerais do Direito pela Cone de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da aui
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273, especificamente referindo i "rac
nalidade limitada".
129 Cf. também em seu artigo: NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Interpretando o Direito como lim
paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica. ÍN: BOUCAULT, Carlos Eduardo de
Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em con|extos imp
feitos, cit., p. 149.
140
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
130 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.,
p. 444.
131 Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista dç Direito Comparado, cit.,
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES,
p. 446.
132 NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, cit.,
p. 448.
141
Lúcio Antônio Chamon Junior
em que os códigos dos sistemas hão que se manter diferenciados, bem como os
próprios sistemas. Os princípios, assim, tomados em conta pela decisão - na
medida em que entram no sistema tão-somente para superar o paradoxo - , ao
serem politicamente instrumentalizados - , podem representar um risco para a
própria operatividade do Direito, ainda que se demonstrem como de alto poten-
cial operacional,133
Este risco, de des-diferenciação funcional, é apontado por LUHMANN desde
seu Ausdifferenzierung des Rechts, quando afirmou que uma orientação às con-
seqüências poderia acabar por dissolver a jurisdição em uma espécie de social
engineering aos moldes do Estado Social.134 Mais adiante - e agora já no plano
de Das Recht der Gesellschaft - veremos que, apesar da sinalização dos riscos, a
Teoria dos Sistemas, ao encontrar com seus próprios limites, não fornece uma via
capaz de superar esta dificuldade de orientação às conseqüências; muito antes,
afirma esta alternativa como uma saída para a confrontação com o paradoxo,
ainda que, incessantemente, reclame a necessidade de submissão a uma "coerên-
cia" que precisa ser melhor problematizada, todavia. 135
Nestes termos é que se faz extremamente relevante delinear aqui a preocu-
pação que LUHMANN demonstra no que dfe respeito ao non liquet. Em KELSEN a
questão da "lacuna do Direito" é superada através da referência à aplicação do
Direito: quando nenhuma norma particular oferece solução, o Direito, negativa-
mente, permitiria uma dada conduta. LUHMANN vai afirmar - em uma constru-
ção bastante inspirada na teoria da interpretação kelseniana - que, uma vez veri-
ficada a falta de programas capazes de serem tomados em conta - certamente do
ponto de vista de uma lógica dedutiva e que leva em conta o conteúdo destes
mesmos programas ao juiz não é permitido deixar de tomar a decisão: o siste-
ma solucionaria este impasse - de superação do paradoxo - em razão de uma pre-
visão institucional que tornaria o juiz como universalmente competente e capaz
de decidir a questão.
Isto estaria articulado com a impossibilidade de "denegação de justiça",136 e
que teria, diretamente, a ver com'.uma certa insinuação que o autor faz da ade-
quada formação que a um juiz é, requerida para que possa cumprir com esta
133 NEUENSCHWANDER MACALHAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos
Princípios Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos
da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273; p. 275; p. 277.
134 LUHMANN, Niklas. La diõerenziazione dei diritto: contributí alia sociologia e alia teoria dei diritto. Trad.
Raffaele de Giorgi. Bologna: II Mulino, 1990, p. 75.
135 Sempre indicando a necessidade de "coerência", cf., exemplificadamente, NEUENSCHWANDER
MAGALHÃES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios Gerais do
Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-observa-
ção: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit., p. 273; p. 277.
136 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 312.
142
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
137 Cf.: HAíEJtLE, Peter. Henienêutica constitucional: a sociedade aberta dos intéripr<-tes da constituição: con-
tribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre, Safe, 1997.
110 LUHMANN, Niklas. ElDerecho de Ia sociedad,cIT.;LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 197.
111 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 198.
143
Lúcio Antônio Chamon Jonior
140 Em um paralelo funcional surpreendente com KELSEN, cf. KOSEN. Hans. Teoria Pura do Direito, cit., cap. VIII
141 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Nildas. Das Recht der CesellschaA, cit., p. 316
142 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Niklas. Das Recht der CesellschaA, cit., p. 316
143 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., pp,
316-317.
144 LUHMANN, Nildas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN. Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., p. 317.
145 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der CesellschaA, cit., Ç.
316; "Esto hace que la inclusión de consecuencias en la búsqueda y fundamentación de la decisión sea ino-
144
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
fensiva y, a la vez, riesgosa -inofensiva porque en el momento de la decisión válida Ias consecuencias están
todavia en un futuro desconocido; riesgosa, precisamente por eso. Las consecuencias que se llevan a cabo
(o no) en contra de las expectativas, ya no pueden cambiar la decisión. Puede que ésta posteriormente se
evidencie como especulación errônea, sin embargo es válida y, distinto a lo que pasa con las leyes, ya no
se puede cambiar en vistas a una nueva mezcla de consecuencias".
146 LUHMANN, Niklas. El Derecho de ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 379.
147 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit.. p. 326.
145
Lúcio Antônio Chamon Junior
148 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 332.
149 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p.
205.
150 NEUENSCHWANDER MAGAUIAES, Juliana. O uso criativo dos paradoxos do Direito: a aplicação dos Princípios
Gerais do Direito pela Corte de Justiça Européia. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-
observação: percursos da teoria jurídica contemporânea, cit.
151 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaSt, cit., p. 205;
"En el caso extremo, el establecimiento de condiciones se reduce, entones, a una norma de competencia.
Derecho es lo que el juez considera, como instancia determinante, un médio adectiado para el fui. Pero aun
eso sigue siendo un programa condicional, porque sólo es derecho si el juez realiza su competencia dentro
dei derecho, es decir, sólo en tanto juez." (itálicos nossos)
146
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^ \ Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
\ ;
; nos, portanto, investigar se dita "consistência" é capaz de superar a discriciona-
X riedade até então reconhecida ao juiz.
t
Л
7. O problema da justiça em Luhmann: mais uma reverência a Kelsen?
.
<5 .
- • O problema da justiça na teoria luhmanniana se faz central não de uma
j perspectiva moral, nem a partir de um enfoque valorativo - mesmo porque para
i o autor a justiça é um valor que não goza de qualquer status superior. Л centra-
lidade do tema da justiça se faz na exata medida em que os tribunais também
gozam"d<Tiírq.a centralidade no sistema do Direito: a partir do momento em que
о пол liquet não pode ser declarado pelos tribunais - em razão de, mesmo quan-
do "não seja possível" decidir, serem obrigados a decidir -, isto leva a uma neces-
sidade de se "criar" uma alternativa que não será continuamente questionada em
razão da "força do Direito"- por mais questionável, todavia, que seja dita criação
jurisprudencial.
O tema da justiça, e seu delineamento oferecido por LUHMANN, é tratado
em termos funcionais, sendo uma decisão justa não aquela que se rende a
valores ou a padrões morais, mas antes uma decisão consistente. A consistên-
cia, enquanto algo a ser verificado internamente como referente ao próprio
sistema, permitiria um certo grau de racionalidade que, no sentido de
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, e do próprio L U H M A N N , se apresentaria como
limitada em determinadas situações como estas em que se teria uma defini-
I ção e criação - de princípios - por parte dos tribunais.
Neste sentido, vale trazer aqui um ponto que, embora já ressaltado anterior-
mente, deve se fazer ainda vivo neste momento: a diferença entre igualda-
de/desigualdade. Como já visto, LUHMANN - superando A tautologia de que o igual
é igual ao igual - pretende envolver tal distinção em um manto normativo, res-
gatando o "princípio" da igualdade como dotado de normatividade: os iguais
devem ser tratados igualmente e assim por diante. A insuficiência desta argu-
mentação se faz presente novamente neste ponto quando da problematização
em torno da "justiça": enquanto programa normativo, ela se vale diretamente do
conteúdo normativo sacado da diferença igual/desigual. ^
| Todavia, e aqui entrando na discussão travada no quinto capítulo de Das j
Recht der Gesellschaft, LUHMANN resgata uma construção oferecida no início
do livro e que se faz frutífera neste ponto: a noção de generalização. A noção
de generalização tem a ver com os sistemas: o próprio sistema social de fun-
ção é capaz de reconhecer suas próprias operações reiteradamente realizadas,
identificando-as - não somente em contextos idênticos - nas mais diferentes
situações, razão pela qual deve apresentar, assim, uma capacidade de genera-
147
Lúcio Antônio Chamon Junior
175 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 237.:
176 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc derGesellschaã,cit.,pp.:
374-375.
148
* Filosofia do Direito na Alta Modernidade
^\Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
154 KOSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, cit., 19: " 0 juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser,
de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor posi-
tivo. Significa que a conduta real é 'boa'. O juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como de acor-
do com uma norma válida, deveria ser, por que é o contrário de uma conduta que corresponde à norma, é
um juízo de valor negativo. Significa que a conduta real é 'má'."
155 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad. cit.; LUHMANN. Niklas. Das Recht der Gesellschaã, cit., p. 216.
156 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 216.
149
Lúcio Antônio Chamon Junior
( justa ou que o próprio código seja justo:160 antes, a justiça somente se pode dar
em contextos autopoiéticos e codificados...
Enquanto observação, podemos proceder à análise da justiça, ou não, de
determinada decisão tomada em conta no interior do sistema jurídico. O justo
não mais pode ser entendido, segundo a Teoria dos Sistemas e como LUHMANN
expressamente ressalta, como uma "justa medida" ou "virtude", pois, do contrá-
rio, estaríamos caindo em uma discussão moral. Na medida em que já ressalta-
, mos que os casos jurídicos podem ser comparados no marco de uma generaliza-
ção, temos que a métrica desta comparação, no que interessa à justiça, é o fato de
determinados casos no sistema terem sido tratados como iguais ou desiguais. Isto
somente pode ser levado em conta se, naquela situação, há uma delimitação do
caso frente a diferentes outras hipóteses que, para tanto, para tal delimitação, há
157 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de h sodedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit, p. 217.
158 LUHMANN, Niklas. ElDerechode lasodedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 217.
159 LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaR, cit., p. 216.
160 LUHMANN, Niklas. EI Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p. 218.
150
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
que ser levado em conta, enfim, aquilo relevante para a própria delimitação do
caso.161
A justiça aparece, então, como um ponto fundamental no sistema que nos
permite afirmar acerca da consistência por se relacionar à forma da igualdade,
dando pois, um matiz normativo à igualdade e também à desigualdade.
Isto permite uma superação da noção de justiça - em termos operacionais e
transferidos em termos teóricos - enquanto valor (em uma dimensão moral) para
sua compreensão enquanto fórmula de contingência (em termos jurídico-norma-
tivos). Enquanto somente um observador externo pode observar a justiça
ènquanto "fórmula de contingência", o sistema, no seu operar, tem necessidade
de se vislumbrar como justo, ou melhor, de se auto-organizar e de se autocontro-
lar a fim de possibilitar, através desta possibilitada capacidade de generalização,
a autopoiesis do sistema. Isto leva à afirmação de que, internamente, a fórmula
ia contingência hájjue ser entendida, apmo "canonizada", irrefutável. 162
à função daá fórmulas de contingência^ presentes também noutros siste- j
mas sob diferentes designações"- é a estabelecer limites que permitam uma pon- j
tualização entre a determinabilidade e a indeterminabilidade do sistema. O
rebaixamento deste limite somente se pode dar se se toma em conta, segundo o
autor, fatores historicamente dados, algo que será adiante retomado. O fato de se >
afirmar uma dimensão de determinabilidade/indeterminabilidade não se refere ;
ao passado, mas antes se abre ao futuro que, vinculado ao presente, pode ser .
determinado de outra maneira: daí o nome "fórmula de contingência", na medi-
da em que o sistema, no seu operar, leva em conta sempre outras e variadas pos-
sibilidades. Mas esta função, de gerar a operacionalização do sistema no marco
dos programas estabelecidos e frente a uma dupla possibilidade de determinabi-
lidade/indeterminabilidade, se cumpre de maneira latente, pois, do contrário, a
resposta é um retorno ao paradoxo "Recht ist Unrecht",163
Isto leva à compreensão da justiça como referente a uma dimensão norma_-
tiva. AJustiçajjeve ser entendida enquanto norma, mas não como uma norma
capaz' de oferecer um^critério de seleção - enquanto programa determinado
ipois se isto acontecesse a norma se colocaria "junto a outros critérios de seleção
|do sistema e perderia sua função de representação do sistema e no sistema".164
|~ Não deixa, no mínimo, de ser intrigante - sobretudo quando lembramos
KELSEN - o estabelecimento de tuna norma diferenciada e que^não se coloca ao
161 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit„ pp.
227-228.
162 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaã, cit., p. 215.
163 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 220.
164 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/i, cit.. p. 221.
4
Lúcio Antônio Chamon Junior
lado das demais, ainda mais em uma teoria como a luhmanniana, que não esta-
belece hierarquia entre normas. Anorma da justiça não estabelece qualquer cori-
dicionamento; deve ser aceita somente enquanto funcionalmente irrefutável,
sem quecom isto haJà~quãlqueFprevisão ou estabelecimento^ futuro de decisões;
norma esta que permite a observacão_de justiça ou injustiça de certas detisões. 1 >5
Tudo deve ser entendido, ressalta-se, em termos funcionais, o que leva a
uma necessária a) separação entre "fórmula de contingência" (justiça em termos
luhmannianos) e o próprio critério normativo de seleção estabelecido. A fórmu-
la de contingência - enquanto densidade normativa da igualdade - b) afasta
qualquer orientação "desejável" ao sistema, o que confirma uma diferenciação
ética frente a uma busca em termos operacionais do sistema. Enquanto norma, a
justiça, assim entendida, c) pode estar sujeita a decepções: todas as normas (estrji-
turas) e operações do sistema devem ser pretendidas como justas. Isto porquej a
justiça surge d) como um princípio que funda a si mesmo - obviamente em tejr-
mos funcionais, ainda que não explicitado - e se evidencia enquanto igualdade,
enquanto princípio formal da igualdade que nada diz acerca acerca da validade
do sistema - antes entendida como conectividade das operações - , muito menos
acerca do conteúdo do Direito. 166
Mas esta formalidade.e aparência abstrata da justiça, enquanto fórmula de
contingência, há que ser tomada na operacionalização recursiva do Direito
enquanto sistema faticamente verificado. Isto leva à consideração das circuns-
tâncias históricas no manejamento da fórmula de contingência. Mas como há
uma relatividade histórica - o que inclusive leva a uma re-especificação do
igual/desigual, enfim, da pauta de justiça - , e em um contexto de alta complexi-
dade, - tanto do sistema e ainda mais do ambiente - , enfim, em um contexto de
sistemas diferenciados, temos que o sistema não consegue responder a toda esta
complexidade. O sistema, portanto, realiza uma redução interna de complexida-
de que, em assim ocorrendo, demarca um ambiente através de "altos muros de
indiferença" - claramente o autor se refere ao Unrecht como ambiente do siste-
ma, como "unmarked space", i.e., como aquilo "fora" do sistema do Direito. Mas,
retomando a questão em termos já delineados, a redução desta complexidade
interna tem que levar em conta o fato de que somente haverá justiça se houver
consistência na decisão,}67
Na medida em que se refere à "indiferença", e no marco de uma discussão
acerca da igualdade, se faz oportuno uma abertura para a discussão entre varia-
bilidade/redundância tomada pelo autor no capítulo oitavo de sua obra aqui
165 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellscha/t, cit„ p, 221.
166 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, cit., p, 222.
167 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., p. 226.
152
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen. Luhmann e Habermas
to
H
168 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschafi, cit., pp.
352-353.
174 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.
153
Lúcio Antônio Chamon Junior
O que vale ressaltar é que, neste sentido, uma percepção ou uma concepção
teórica de justiça não pode ser alcançada desde um ponto de vista isolado, pois a
partir do momento em que se pretende superar uma perspectiva ético-moral de
justiça, esta, ao serconcebida como consistência das decisões do sistema, somen-
te se pode apresentar como prevenção de erros, o que implicaria uma prevenção
frente a inconsistências reconhecíveis. A injustiça, como valor contrário, signifi-
caria, portanto, a própria inconsistência. É desde uma observação de segunda
ordem que se pode indagar acerca das condições que permitem a verificação
daquilo que, em um nível de primeira ofdem, se observa como erro; no segundo
nível é que está a possibilidade de se perguntar acerca da redundância, e sua
manutenção, enquanto condição básica de verificação da justiça.' 70 .
Mas a consistência depende ainda de outra condição da autopoiesis sistêmi-
ca^a variedade. Enquanto a redundância se apresenta enquanto informação que
já sè~possui para processar informações ulteriores - o que implica, para o autor, a
possibilidade de se partir de um caso concreto para se alcançar ò dispositivo legal
("parágrafo') correspondente171 - , por outro lado a variedadè)se apresenta como
a informação que faz falta exatamente para isto, enfíüirpara processar outras
informações. Isto não significa a impossibilidade de a redundância e a variedade
aumentarem simultaneamente. Para tanto, o emprego da analogia serve, segundo
LUHMANN, não somente para que haja uma generalização das regras já incluídas e
existentes no sistema (redundância), como também serve para a criação de regras
em situações aparecidas como novas e ainda não incluídas (variedade). Isto
somente se pode dar simultaneamente no sistema a partir do momento em que
cada operação decisional se apresenta como indiferente às outras do ponto de
vista do presente, o que, todavia, não impede uma conectividade destas com
outras - mas não com todas! - operações do sistema.
A relevância da variedade está, justamente, no fato de o sistema jurídico
poder organizar sua memória não somente a partir de casos tipo, mas também a
partir de princípios- e então cheganços ao ponto central - como maneira de pos-
sibilitar repetições ulteriores - em ní\jel jurisdicional - , o que implicaria, no caso
dos princípios, uma participação da variedade na manutenção de consistência do
sistema:172 uma regra criada para uma situação nova implica a busca de supera-
ção e desenrolar do paradoxo, mas m o uma injustiça, a partir do momento em
que se nratando de..uma jituação nova não poderia a mesma ser_comparada à
nenhuma outra informação do sistema; embora, todavia, possa ser incluída e pro-
170 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklks. Das Rechcder Gesellschaít, cit., p. 357.
171 LUHMANN, Niklas. La ciência de la sociedad. Trad. Silvia Pappe; Brunhilde Erker; Luis Felipe Segura.
México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 313.
172 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafi, cit., p. 360.
154
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen. Luhmann e Habermas
cessada pelo sistema a partir de decisões^ e princípios criados para tanto!! Isto
desembocaria no fato de que o Direito "criado" pelos tribunais viria a adquirir
status de variabilidade quando fossem os "princípios" sacados em razão de um
contexto novo.
Mas nada impede que uma reutilização dos princípios então "inventados"
possa ser generalizada e aplicada em outras situações. O próprio LUHMANN reco-
nhece tais condensações e confirmações como princípios. Estes princípios, trazi-
dos a partir de razões sacadas quando da decisão de um caso em que o juiz não
•pôde decretar o non liquet, são entendidos como definitivo para tais decisões,
ajnda que para amadurecerem careceria tempo e experiência de inúmeros
:casos...i73 Afinal, somente em razão da redundância/variedade é que se poderia
alcançar uma constante adaptação do sistema a um ambiente sempre altamente
complexo a sempre irritar o sistema.174
Podemos, então, observar que, a partir da concepção de que os princípios
não são programas normativos condicionais, não significa, para a Teoria dos
Sistemas, que os mesmos não sejam relevantes para o sistema: permitiriam a solu-
ção de determinados casos quando, na qualidade de catalizadores de variações,
fossem introduzidos para permitir a operacionalização do sistema e a manuten-
ção da latência do paradoxo. Mas, a partir do momento em que fossem introdu-
zidos, poderiam ser úteis em situações posteriores: para tanto o sistema deveria
deles se "lembrar" quando já se apresentassem como condensados e confirmados
em situações sempre distintas.
O mais interessante é que LUHMANN afirma que esta generalização desem-
bocaria na concepção dos princípios como úteis na solução de casos novos, desde
uma perspectiva também funcional, o que permitiria a superação da dificuldade
de julgamento através de uma criação jurisprudencial - ainda que estes princí-
pios não fossem considerados como normas! Embora pudessem ter relevância na
busca da consistência das decisões...
A partir do momento em que a justiça se atrela à forma igual/desigual, isto
não significa que uma repetição contínua - e típica de períodos tradicionais
i historicamente precedentes - das soluções venha a gerar uma corrupção das
! decisões: se a redundância gera indiferenças, ela também é capaz de garantir
| um aumento de sensibilidade do sistema a fim de permitir uma distinção entre
situações similares, e capazes de serem resolvidas por uma regra já incluída - a
partir do momento em que o recorte normativo é sempre pontual a fim de per-
173 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.
174 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der GesellschaA, cit., pp.
360-361.
155
Lúcio Antônio Chamon Junior
mitir tal generalização e novas situações que, para tanto, exigiriam do siste-
ma uma capacidade para processar esta novidade, superando-a em termos sis-
têmicos, oferecendo ao juiz a possibilidade de, perante tal novidade, introdu-
zir novas decisões que, inclusive pelo uso reiterado, pudesse significar uma
aplicação justa disto que fora condensado sob o molde de "princípios". A fór-
mula de contingência serve não para reconstruir o Direito e o caso concreto
perante um juízo, mas para garantir uma correção comparativa através da
forma igual/desigual, sendo, então, possível, a verificação de repetições.175
Isto não implica que o sistema tenha que se "enclausurar internamente" no
sentido de sempre pretender repetir decisões já tomadas: a complexidade moder-
na exige que, em determinadas situações, o sistema introduza variedade, o que,
inclusive, é possível em razão do lado desigual da forma. E aqui, pretendendo
resgatar algo que já fora anteriormente apontado, somente quando se indica algo
como desigual é que se permite formar novas igualdades e desigualdades. O re-
entrar da forma na forma permite, assim, o estabelecimento de novas redundân-
cias ao mesmo tempo em que abre espaço e possibilidades para novas variações, j
Ná medida em que a justiça implica consistência sob a batuta da forma i
igual/desigual, podemos, então, com L U H M A N N compreender justiça como redun- 1
dância. A variedade apareceria não como algo funcionalmente incapaz de operar
sistemicamente, mas antes se apresentaria como aquilo que, em certo sentido,
impede o "império da justiça". Como diz o autor, a variedade chama nossa aten-
ção para o fato de que há "um outro lado da questão": a variedade existe não em
razão de decisões sem fundamento, mas antes de uma exigência funcional que
toma em conta a alta complexidade da Sociedade, o que, todavia, poderá poste-
riormente ser transformado em redundância, enfim, em possibilidade de justiça
- cm novas igualdades. A variedade surge como que para permitir que o sistema
aprenda, em diferentes situações, diferentes alternativas.176
E, assim, e no que aqui interessa, oferece L U H M A N N uma concepção de jus_-
tiça funcionalmente estabelecida como maneira de garantir ao Direito seu fecha-
mento operacional. Embora haja uma surpreendente sofisticação frente às teo-
rias tradicionalmente tidas como positivistas, é inevitável introduzir algumas crí-
ticas que, apesar de não atacarem todos os pontos necessários, levam, justamen-
te, a uma aproximação entre a Teoria dos Sistemas e a Teoria Pura de KELSEN.
Além dos pontos já delineados anteriormente, devemos pretender agora
enfocar a questão da justiça.
175 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschafc, cit., p. 237.:
176 LUHMANN, Niklas. El Derecho de Ia sociedad, cit.; LUHMANN, Niklas. Das Rechc der Gesellschaã, cit., pp.:
374-375.
156
Filosofia do Direito na Alta Modernidade
Incursões Teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas
177 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes.
1998, p. 21.
178 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, cit., p. 22.
R
T»
s
Lúcio Antônio Chamon Júnior
158
ntviiu CriUa dl Oindu Socilii 65. M«]o 3003; 3 - 7 6
1. Introdução
Vivemos n u m período avassalado pela questão da sua própria relatividade.
0 ritmo, a escaJa, a natureza e o alcance das transformações sociais são de
tal ordem que os momentos de destruição e os m o m e n t o s de criação se
s u c e d e m uns aos outros numa cadência frenética, sem deixai t e m p o nem
e s p a ç o para momentos de estabilização e de consolidação. É precisamente
p o r isso que caracterizo o período acrual como sendo um período de transição.
A natureza da transição define-se pelo facto de as questões complexas
p o r ela suscitadas não encontrarem um ambiente sócio-cultural conducente
às respectivas respostas. De um lado, aqueles que lideram as seqüências de
destruição e criação social - normalmente pequenos g r u p o s sociais domi-
n a n t e s - estão tão absorvidos no automatismo da seqüência q u e a pergunta
p e l o que fazem será, na melhor das hipóteses, irrelevante e, no pior dos
casos, ameaçadora e perigosa. D o outro lado, a esmagadora maioria da
p o p u l a ç ã o que sofre as conseqüências da intensa destruição e da intensa
criação social está demasiado ocupada ou atarefada com adaptar-se, resistir
ou simplesmente subsistir, para sequer ser capaz de perguntar, q u a n t o mais
de responder a questões complexas acerca d o que fazem e porquê. A o con-
trário d o q u e pretendem alguns autores (Beck, G i d d e n s e Lash, 1994), este
n ã o é u m t e m p o propício à auto-refiexão. É provável que esta seja exclu-
sivo dos que gozam do privilégio de a delegar nos outros.
1
O presente texto reproduz no esiencial, com algumas adaptações, o capitulo nono da minha
obra Touiird i New Legal Common Senie. Law, GlobaliiMion, jtiJ Emtncipatian. London:
Butterwonh» LexitNexis, 2002.
4 | B o a v e n t u r a i;9 S o u s a S a n t o s
to
Poderá o direito ser emsncipatòrío? | 5
servidos por constituições liberais mas com práticas políticas que, entre
outras coisas, apoiavam a escravatura e intensificavam o genocídio dos povos
nativos. Ao longo do século XIX e do século XX, estes Estados oscilaram
entre períodos de governação minimamente democrática e períodos de
ditadura, como foi cfectivamcnte o caso de alguns Estados da Europa Oci-
dental como, por exemplo, Portugal, Espanha e Grécia. A compntibilidade
entre democracia e capitalismo, tentada tanto pelo demoliberalismo como
pelo demo-socialismo, foi de facto exclusivo de alguns países apenas -
e, mesmo na Europa, teve que ceder: cedeu ao fascismo na Itália, ao nazis-
mo na Alemanha, ao franquismo na Espanha, ao salazarismo em Portugal,
etc. As formas indusivas de cidadania político-social (os Estados-providên-
cia) têm sido mais a excepção do que a regra. Do mesmo modo, e a uma
escala global, o direito, entendido como direito estatal, desempenhou um
papel mínimo na gestão da tensão entre regulação e emancipação, rosse
como estratégia política de oposição ou como forma de um Estado não-
•liberal, a revolução desempenharia, ao longo de t o d o o século XX, um
papel bem mais importante.
A peculiaridade histórica da minha pergunta - uma pergunta e uma inda-
gação aparentemente tão exaustiva - já deve, neste momento, ter-se tornado
clara. Porquê, então, prosseguir? E, a fazê-lo, como o devo fazer? Primeiro,
o porquê. Penso que a história da minha pergunta é talvez mais ocidental
do que o seu futuro. Nos últimos vinte anos, e cada qual a seu modo, a
globalização hegemônica neoliberal e o desabamento do bloco socialista
vieram interromper as histórias político-jurídicas tanto ocidentais como não-
-ocidentais, criando desse modo um vazio institucional hoje em vias de ser
globalmente preenchido por uma versão específica da política ocidental
- o conservadorismo. Quer o reformismo legal quer a revolução social se
viram desacreditados, o mesmo sucedendo com outras formas político-legais
exteriores à Europa Ocidental e à região do Atlântico Norte. Além disso,
todas as tentativas de articular alternativas ao consenso hegemônico foram
rápida e eficazmente suprimidas. Tal consenso é, d e facto, composto por
quatro consensos sectoriais relacionados entre si: o consenso econômico
neoliberal, o consenso do Estado fraco, o consenso dcmocrático-libcral, e o
consenso do Estado de direito e da reforma judicial.
Para poder desenvolver aqui a meu argumentação - ou seja, para respon-
der à questão de porquê prosseguir com a presente pergunta sobre se o
direito é emancipatório - , e importante ter em mente que a globalização
jurídica neoliberal em curso está a substituir a tensão altamente politizada
entre regulação e emancipação por uma concepção despolitizada da mu-
dança social cujo único critério é o Estado de direito e a adjudicação judicial
Pcótri o direito ser emandpatório? f 11
Uma vez que a minha indagação tem por premissa exactamenre a distin-
ção entre, p o r u m lado, uma globalização neoliberal hegemônica, ou globali-
zação a partir de cima, e por outro lado uma globalização contra-hegemónica,
ou globalização a partir de baixo, creio que a questão do potencial emanei-
364 | Boaventura de Sousa Santos
quência disso é morto pelo pedinte, o que aí temos é uma explosão impre-
vista da escala do conflito: um fenômeno aparentemente trivial sofre uma
escalada repentina, passando a um outro nível e assumindo contornos de
fenômeno dramático com conseqüências fatais. Esta mudança de escala
dos fenômenos, abrupta e imprevisível, verifica-se hoje em dia nos domínios
mais diversos da prática social. Concordo com Prigogine (Prigogine e
Stengers, 1979; Prigogine, 1980) quando este afirma que as nossas socie-
dades estão a viver um período de bifurcação, quer dizer, uma situação de
instabilidade sistêmica em que uma mudança menor pode, de uma maneira
imprevisível e caótica, dar origem a transformações qualitativas. A turbulên-
cia das escalas destrói seqüências c meios de comparação, reduzindo assim
as alternativas, criando impotência e promovendo a passividade.
A estabilidade das escalas parece confinada ao mercado e ao consumo
- e mesmo aí, com radicais mutações de ritmo e de âmbito que impõem aos
actos de comércio constantes mudanças de perspectiva. A hipervisibilidade
e a grande velocidade que caracterizam as mercadorias, por norma já inten-
samente publicitadas, transformam a intersubjectividade exigida aos con-
sumidores em interobjectualidade entre actos de consumo, Dizendo de outro
modo, os consumidores transformam-se em apoios nômadas das mercado-
rias. Idêntica transformação constante da perspectiva está a ocorrer na
informação e nas tecnologias de telecomunicações, onde, de facto, a tur- .
bulência da escala é simultaneamente acto gerador e condição da funcio-
nalidade. Neste caso, a crescente interactividade das tecnologias dispensa
cada vez mais a inventiva dos utentes, o que leva a que a interactividade vá
subrepticiamente dando lugar à passividade. O zapping é talvez um exemplo
eloqüente de passividade disfarçada de interactividade.
Por fim, o tempo-espaço do Estado nacional está a perder o seu primado
devido à importância crescente dos tempo-espaços globais e locais, que
com ele agora competem. Esta desestruturação do tempo-espaço do Estado
nacional dá-se também relativamente aos ritmos, às durações e às tem-
poralidades. O tempo-espaço do Estado nacional é feito de quadros tempo-
rais diferentes mas compatíveis e articulados entre si; o quadro temporal
das eleições, o quadro temporal da negociação colectiva, o quadro tempo-
ral dos tribunais, o quadro temporal da burocracia da segurança social, o
quadro temporal da memória histórica nacional, etc. É a coerência entre
escas temporalidades que dá ao tempo-espaço do Estado nacional a sua
configuração própria. Acontece que esta coerência se está a tornar cada vez
mais problemática, uma vez que o impacto gerado pelo tempo-espaço glo-
bal e local varia de u m quadro temporal para outro. Assim, por exemplo, o
quadro temporal dos tribunais tende a ser menos afectado pelo' tempo-
368]Boaventura de Sousa Santos
fia '
' C o m vista ao objecrivo específico de abrandar o tempo-instante d o s mercados financeiros de
maneira a dar t e m p o para as deliberações democráticas, é que os movimentos sociais da globaliza-
ção contra-hegemónica têm vindo a p r o p o r a a d o p ç i o d l taxa Tobin.
Poderi o direito ser emancipatórlo? 117
08
i » | Boaventura de Sousa S a n i o i
* Uma boa ilustração desta dinâmica é o estudo de Caldeira sobre as clivagens geográficas e sociais
existentes em São Paulo (Caldeira, 2000). t
I
' É esse o caso, por exemplo, das milícias populares de Medellín. ne Colômbia, t dos grupos
de mineiros de esmeraldas n i região ocidental de Boyací, também naquele país (Gullírrcn e Jara-
mülo, 200)1.
a Poderá o direito ser emancipstório? | 23
1
A Moody's e uma das seis agendas de rating credenciados peja Securities and Exchange Commisuon;
is ouiras sso: Standard and Poor's, Fitch Investors Services, Duff and P h e l p s , Thomas HanJc Watch,
«[BCA.
Poderá o direito seremancipatório?|377
12
26 | íloaventura de Sousa Santos
A tipologia das sociedades civis atrás referida permite mostrar que, não
obstante a retórica ideológica de sinal inverso, os discursos e as práticas
político-jurídicas permitidos pela globalização neoliberal revelam-se inca-
pazes de enfrentar o fascismo social e, por conseguinte, de dar rcsppsta à
"questão social" que é o crescimento dramático da sociedade civil incivil.
Com efeito, e como demonstrei na primeira secção, o ressurgimento agres-
sivo do conservadorismo tem tido um impacto decisivo nas duas outras
ideologias sancionadas pelo Estado liberal: o liberalismo e o dcmo-socia-
lismo. Essa evolução levou à fusão dos dois, sob a égide do liberalismo.
Poderá o direito ser emanclpatórto? | 2 7
A tomada do poder? Não, apenas algo muito mais difícil: um inundo novo.'
A tônica não vai para a destruição daquilo q u e existe, mas sim para a
criação de alternativas. Tal como são muitos os rostos da opressão, assim
t a m b é m são variadas as lutas e as propostas de resistência. T ã o variadas
elas são, de facto, q u e n e n h u m a vanguarda as unificará:
N ã o d e s e j a m o s n e m p o d e m o s o c u p a r o lugar q u e m u i t o s e s p e r a m q u e o c u p e m o s , o
l u g a r d e o n d e e m a n a m t o d a s as opiniões, todas as respostas e todas as verdades.
Não o faremos.'
7
Subcomandante Insurgente Marcos, apud Cecena, 1999: 103.
' Subcqmandante Insurgente Marcos, apud Cecena, 1998: 145.
384|íloaventurade Sousa Santos
com as suas raízes concretas c com a sua realidade empírica própria. Vivendo,
como vivem, num mundo largamente governado pelo capital global, eles
são, por definição, compatíveis com este, e sempre que representarem um
corte mais radica] com um dado estado de coisas poderão facilmente ser
minimizados como sendo uma iJha de diferença, como um microcosmo de
inovação social, igualmente fácil de "encaixar" no quadro globnl da gover-
nação hegemônica. A questão da compatibilidade resume-se, por,conse-
guirite, a saber se o mundo vai ficando cada vez menos cômodo psra o
capitalismo global por força das práticas subalternas rebeldes, ou se, pelo
contrário, o capitalismo global conseguiu cooptar aquelas práticas e trans-
formá-las em meios da sua própria reprodução.
A questão da compatibilidade é substituída, na prática, pela questão da
direcção política dos processos cumulativos de mútua aprendizagem e de
recíproca adaptação e transformação entre práticas sociais hegemônicas
dominantes e práticas subalternas. Trata-se, efectivamente, de uma questão
crucia], uma vez que da resposta a ela depende o futuro das globalizações
em disputa. A forma de globalização que conseguir aprender mais e mais
depressa, conseguirá vantagem no confronto. Se a história se repetisse, seria
mais de prever uma situação em que a globalização hegemônica iria pro-
vavelmente aprender mais e mais rapidamente d o que a globalização
contra-hegemónica do que o cenário inverso. Com efeito, não obstante a
diferença de contextos, de épocas e dos interesses em presença, será útil
recordar o aviso feito por Debray quando afirmou que os E.U.A. e a sua
estratégia contra-revolucionária na América Latina aprenderam mais'de-
pressa com a Revolução Cubana do que os outros grupos revolucionários
então activos noutras partes do continente - Venezuela, Brasil, Bolívia,
Argentina, Peru, etc. (Debray, 1967).
As características do novo paradigma de um cosmopolitismo subalterno
tal como aqui se reconstrói teoricamente com base no movimento zapatista
abrem caminho a um manancial de criatividade política por parte de movi-
mentos e organizações. A avaliação dessa criatividade deverá orientar-se
pelo mesmo princípio pragmático que veio substicuir-se à idéia dos estádios
da luta. A pergunta a fazer, portanto, é se uma tal criatividade tornou o
mundo menos cômodo para o capitalismo global ou não. Como sucede
com qualquer outro paradigma, os traços do novo paradigma político não
são inteiramente novos. Eles são, acima de tudo, bastante vagos. Por isso,
terão queserobjecto de reflexão, de ponderação minuciosa, e de uma even-
tual adaptação às realidades históricas de cada país Íju lugar por parte das
diferentes organizações e movimentos interessados. Só assim poderão con-
tribuir efectivamente para alargar as vias da globalização comra-hegrmónica.
Poderá o direito ser emancipatório?|387
19
P a r a a apresentação da agenda de investigação e do mapa d o s lugares da legalidade cosmopolita
subalterna, baseio-me cm grande p a n e nos resultados de u m projecto d e investigação colcctivo
t e c é m - c o n d u í d o , o qual - sob a minha direcção e com a participação de mais de sessenta acadê-
micos e activistas da índia, Brasü, Portugal, Áiricfl do Sul, Moçambique e Colômbia analisou
ai formas de globalização contra-hcgcmónica do Sul. O s estudos de caso e 01 resultados gerais
do projecto encontram-se publicados em português [Santos (org.) 2002a, 2002b, 200)», 2003b,
2003c] e irão estar disponíveis também em inglês e espanhol. Ver também o website do projecto,
em http://www.ce3.fc.uc.pt/cmancipa/.
388 | íloaventura de Sousa Santos
11
Há décadas que estudiosos dos E.U.A. vêm discutindo a questão d e saber se as estratégias dos
direitos Facilitam a "mudança social de sentido progressista" ou se legitimam e reforçam as desi-
gualdades sociais. Para um balanço geral desse debate, ver Levúslcy,2001. N o s termos estreitos em
que tem sido tratada - como um debate no interior d o demoliberalismo a questão não é passível
d e resposta. N o presente artigo, avanço com uma alternativa analítica e político.
Poderá o direito ser emancipatório? | 37
7.1. O d i r e i t o n a s z o n a s d e c o n t a c t o
As zonas de contacto são campos sociais em que diferentes mundos da vida
normativos se.encontram e defrontam. 1 1 As lutas cosmopolitas travam-se,
muitas vezes, em campos sociais deste tipo. Para além de fornecerem pa-
drões de experiências e de expectativas político-econômicas legítimas ou
autorizadas, os mundos da vida normativos apelam a postulados culturais
de tipo expansivo e, por isso, os conflitos que existem entre eles tendem a
envolver questões e a mobilizar recursos e energias que extravasam em muito
aquilo que pareceria estar em jogo na versão manifesta dos conflitos. As
zonas de ( contacto de que aqui me ocupo são aquelas em que diferentes
culturas jurídicas se defrontam de modos altamente assimétricos, quer dizer,
em embates que mobilizam trocas.de poder muito.desiguais. Assim, por
exemplo, os povos indígenas envolvem-se em conflitos assimétricos com
culturas nacionais dominantes, tal como sucede com os imigrantes ilegais
ou os refugiados que vão em busca da sobrevivência em países estrangeiros.
11
C o m o já referi atrás, esta minha tentativa de traçar o mapa das práticos jurídica?cosmopolitas é
fortemente informada pelo proiecto de investigação "Para Reinventar a Emancipação Social", que
eu p r ó p r i o dirigi de 1995 a 2002 e cujos resultados saíram publicados em Santos (org.) 2002a,
2 0 0 2 b , 2003 a, 2003b, 2003 c. Não obstante o proiecto não evidenciar uma dimensão sóclo-jurfdica
expUáta, muitos dos estudos de caso levados a cabo pelos participantes - o r i u n d o ! do Brasil, índia,
Colômbia, Moçambique, África do Sul e Portugal - documentam lutas subalternas travadas nesses
países nas quais se verifica o recurso a estratégias jurídicas Internacionais.
11
M a r y Louise Pratt (1992: 4) define zonas de contacto como "espaços sociais em que culturas
díspares se encontram, enfrentam e emrechocam, muitos vezes em relações de dominação e subor-
d i n a ç ã o altamente assimétricas - como no caso do colonialismo, da escravatura ou das respectivas
seqüelas tal como são hoje vividas em toda a face do planeta". Nesta formulação, as zonas de
contacto parecem implicar recontros entre totalidade; culturais, mas, d e facto, não tem que ser
assim. Com efeito, a zona de contacto pode envolver diferenças culturais selecdvas e parciais,
precisamente aquelas que n u m dado tempo-espaço competem entre si para conferir sentido a uma
determinada Unha de acçáo. Além disso, as trocas desiguais estendem-se hoje em dia multo para li
do colonialismo t das suas seqüelas, ainda que - como os estudos pós-coloniais vieram revelar -
a q u e l e continue a desempenhar um papel muito mais importante d o que gostaríamos de admitic.
44 | íloaventura de Sousa Santos
H
Nütj me deterei, neste momento, na questEo dos direitos humanos e do multiculturalismo, que
já fienu tratada em Santos, 2002s: cap. 5.
Poderá o direito ser emancipatório?|399
" Stefanic, 1998, oferece uma útil panorâmica destes e d o u t r o s temas no c o n t e j i o do debate
sobre a "LatCrit".
Poderá o direito ser emancipatório?|401
" £ vasta a bibliografia relativa a estes temas, Ver, p o r exemplo, Brush e Stablinsky (org.), 1996;
5hiva, 1997; Vtsvanathan, 1997; Posey, 1999. Para uma apresentação de diversos estudos de caso
de conflitos e possíveis diálogos entre saberes, ver os resultados do projecto "Para Reinventar a
Emancipação Social", e m www.ces.fe.uc.pt/emancipa/ e também em Santos 2003a e 2003b.
í
402 | íloaventura de Sousa Santos
17
P o d e m encontrar-se estudos da caso sobre lutas c o m o estnj em Posey, 1999; Meneses, 2003;
Xeba, 2003; Escobar e Pardo, 2003; Flórez Alonso, 2003: Coelho, 2003: Laymert Gurria i los Santos.
2003; Randeria, 2003.
I Poderá o direito ler emanclpatórlo? | 53
11
Para uma discussão genérica de estratégias que visam crinr laços dc solidariedade entre os sindi-
0
calos de rodo o mundo, ver G o r d o n e T u m e r , 2000. '
Poderá o direito ser emancipatórlo? | 55
' P a r a uma panorâmica destas diferentes estratégias, ver Compa e Diamond, 1996.
56 | Boaventura de Sousa S i n t o s
10
Para uma visão gerai das estratégias jurídico-políticas adoptadas pelas associações t r a n s a c i o n a i s
na defesa dos direitos dps trabalhadores, ver Ross, 1997. Para uma discussão das vantagens e
ileyvantagens dos códigos d e conduta como meio de combater ss suitatshopt, v e r F u n g r r t f / . , 2001.
" O funcionamento deste tipo de associações na América Centrai foi estudado, e n t r e o u t m s autores,
por Anner, 2001.
Poderá o direito ser emancipatório? | 57
global não consiste apenas na extensão a todo o mundo dos mercados livres
e numa produção de bens e serviços tão isenta quanto possível de regu-
lação pelo Estado, mas também na mercad.orização da maior quantidade
possível de aspectos da vida social. A tfiercadorização significa não só a
criação de mercadorias ab ovo- isto é, a criação de produtos e serviços
avaliados e transaccionados de acordo com as regras de mercado - como
também a transformação em mercadoria de produtos e serviços antírior-
mente criados e distribuídos com base em regime alheio ao mercado. Este
aspecto significa, por exemplo, que as instituições sociais, como a educação,
os cuidados de saúde ou a segurança social, são convertidas em mercadorias
da área dos serviços e tratadas como tal, freqüentemente de acordo com
forças concorrenciais e com os ditames tanto do mercado como dos inte-
resses comerciais.
No campo social convencionalmente conhecido por economia, o cósmo-
politismo apresenta um objectivo com quatro vertentes. A primeira refere-
•se às condições e relações da produção de mercadorias, nomeadamente à
relação salarial. É este o alvo das estratégias que visam a redescoberta demo-
crática do trabalho, e que foram atrás analisadas. O segundo objectivo é a
desmercadorização, isto é, procurar que os bens e os serviços públicos e as
instituições sociais não sejam privatizados ou, no caso de o serem, que não
sejam inteiramente sujeitos às regras do mercado capitalista. Esta é a luta,
por exemplo, das comunidades empobrecidas de todo o mundo - e de forma
especialmente notória, nos últimos tempos, na Bolívia - contra o domínio
de formas comunitárias e acessíveis de distribuição de água por parte das
grandes empresas transnacionais (TNCs). O terceiro objectivo consiste na
promoção de mercados não-capitalistas subalternos, isto c, de mercados
norteados pela solidariedade e não pela ganância. Por fim, o quarto objec-
tivo é desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, mas de
uma produção não-capitalista, tanto para mercados capitalistas como não-
-capitalistas. Como afirmei noutro local, analisando estudos de caso sobre
iniciativas empreendidas de acordo com estas quatro vertentes, 22 as econo-
mias alternativas combinam presentemente idéias e práticas provenientes
de variadas tradições, desde o cooperativismo ao desenvolvimento alterna-
tivo, passando pelo socialismo de mercado.
u
Santos e Rodrfguez, 2002. Este e outros estudos contidos no projecto "Para Reinventar a Emanci-
pação Social" encontram-se disponíveis em inglês no endereço w w . c e s . f e . u c . p t / c m a n c i p a /
1
Poderá o direito ser emancipatório? | 59
" Sobre a experiência do orçamento participativo em Porto Aiegre. ver, entre outros, Santos, i 998a,
2002b.
Poderá o direito ser emancipatório? | 67
8. Conclusão
O presente artigo foi escrito a partir da lógica da sociologia das emergên-
cias. O objectivo que lhe presidiu foi o de expor os sinais da reconstrução
da tensão entre regulação social e emancipação social, bem como o papel
reservado ao direito nessa reconstrução. A credibilidade dos sinais assen-
tou no trabalho de escavação dos alicerces do paradigma da m o d e r n i d a d e
- um trabalho que confirmou o esgotamento do paradigma ao mesmo t e m p o
que pôs a descoberto a riqueza e vastidão da experiência social que ele
inicialmente tornou possível e posteriormente veio a desacreditar, a mar-
ginalizar ou, simplesmente, a suprimir.
A reconstrução da tensão entre regulação social e emancipação social
obrigou a sujeitar o direito m o d e r n o - um dos mais importantes factores
de dissolução dessa tensão - a uma análise crítica radical e mesmo a u m
despensar. Este despensar, no entanto, nada teve q u e ver com o m o d o
desconstrutivo. Pelo contrário, foi seu objectivo libertar o pragmatismo de
si próprio, quer dizer, da sua tendência para se ater a concepções domi-
nantes da realidade. U m a vez postas de lado essas concepções dominan-
tes, torna-se possível identificar u m a paisagem juridica mais rien e ampla,
uma realidade que está mesmo à frente dos nossos olhos, mas q u e mui-
tas vezes não vemos p o r nos faltar a perspectiva d e leitura ou o código
adequados.
Essa falta p o d e ter a sua explicação nas disciplinas convencionalmente
votadas aos estudo do direito, desde a jurisprudência à filosofia d o direito,
passando pela sociologia do direito e pela antropologia do direito. Estas
disciplinas são responsáveis pela construção do cânone jurídico modernista -
um cânone estreito c redutor, que arrogantemente desacredita, silencia ou
nega as experiências jurídicas de grandes grupos populacionais.
Uma vez recuperada toda esta experiência sócio-jurídica, tornou-se pos-
sível entendê-la cabalmente na sua diversidade interna, nas suas muitas
escalas, e nas suas muitas e contraditórias orientações político-culturais
(Santos, 2002a). Restava, contudo, ainda uma outra tarefa: aferir o poten-
cial dessa experiência tendo em vista a reinvenção d a emancipação social.
Foi sobre essa questão que se debruçou o presente artigo. Uma vez formu-
l a d a - p o d e r á o direito ser é m a n c i p a t ó r i o ? - , ela foi submetida ü análise
crítica no sentido de lhe clarificar tanto as possibilidades como os limites.
Pôde, assim, conferir-se credibilidade a uma ampla variedade de lutas, ini-
Poderá o direito ser emancipatório?|423
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LIBERALISMO IGUALITARIO
E MULTICULTURALISMO*
(Sobre Brian Barry, Culture and Equality)
ÁLVARO DE VITA
' Este texto foi escrito durante u m pós-doutontmento na C o l u m b i a University, que contou
c o m o apoio, pelo qua] sou grato, da F A P E S P e da Fulbright.
1
Charles Taylor, ' T h e Politics o f Recognition", in A m y Gutmann (org.), Multiculturulism
and "Tht Politics 0/Recognition" (Princeton. Princeton University Press, 1994), pp. 25-73.
2
A formulação mais completa desse ideal politico, no século X X , é a de John R a w l s em A
Theory of Justice (Cambridge-Mass., Harvard University Press, 1971) e em outros de seus
textos, mas d go semelhante a isso pode ser econtrado nos escritos de inúmeros teóricos li-
beraj-igualitários e nas Declarações de Direitos da O N U e em textos constitucionais de diver-
sós países do mundo. Trata-se essencialmente da mesma concepção de cidadania expressa por
T.H. Marshall em seu clássico Citizenship and Social Class ( L o n d o n , Pluto Press. 1992).
6 LUA NOVA N- 55-56— 2002
3
U m a formulação influente dessa p o s i ç i o , bastante mais extremada do que a de Taylor, é a
de íris M a r i o n Y o u n g em Justice and llie Potillcs of Difference (Princeton, Princeton
Univerpity Press, 1990). W i l l K y m l i c k a , em f4uhiculiural Citizenship: A Liberal Tlieory of
Minonry Riglus (Oxford, Cla.-er.dor. Press. 1995) formulou uma teoria que objetiva conciliar
o liberalismo c o m as exigências de reconhecimento de minorias nacionais.
4
Taylor. " T h e Politics of Recognítion", pp. 39-40, 43-44. 60-61.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 7
5
Esclareço adiante de que forma este termo deve ser entendido.
6
lbid., p. 43.
7
C o m o Barcy observa ( C E , pp. 15-16). i parte tudo aquilo a que o lluminismo se opunha,
nunca houve u m "projeto iluminista" claramente discemfvel. M a s se há algo que os herdeiros
do lluminismo ( B a i r y entre eles) aceitam é a idéia de que deve ser possível justificar as insti-
tuições sociais, nfio c o m base em costumes ancestrais ou identidades culturais, mas s i m c o m
base em princípios gerais tais c o m o o b e m público ou a equidade, S e é isso que se entende
por "racionalismo iluminista", não há nenhuma razSo para os liberais igualitários rejeitarem
o rótulo.
433 LUA NOVA N- 55-56— 2002
8
A lista dc Y o u n g de grupos discriminados é longa. N o caso dos E U A , essa lista incluiria
"entre outros, as mulheres, os negros, os chicanos, o s portorriquenhos e outros americanos de
língua espanhola, os índios americanos, os judeus, as lésbicas, os gays; os árabes, os asiáti-
cos, o s idosos, as pessoas da classe trabalhadora e os deficientes físicos o u mentais" ( J u s t i c e
and ilus Politics of Difference, p. 40). C o m o se vê, resta c o m o "cultura dominante" aquela d o s
homens brancos, heterossexuais e de status social elevado.
9
B r i a n Barry, Culture and Equality: An Egalitarian Critique of Mulliculturalism
(Cambridge-Mass., Harvard University Press, 2001).
10
Theories of Justice (London, Harvester-Wheatsheaf, 1989) e Justice as impartiality
(Oxford, Clarendon Press, 1995).
" A o passo que essas normas exigem que os animais sejam desacordados antes de serem sa-
crificados, judeus e muçulmanos muitas vezes querem fazer valer normas religiosas segundo
as quais animais só podem ser sacrificados quando estão em estado de consciência.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 9
12
O leitor já deve ler percebido que não sou uma parte neutra nessa discussão. M e u próprio
trabalho tem sido dedicado à defesa de u m a perspectiva liberal-igualitária sobre a justiça
social. Ver o meu A justiça igualitária e seus críticos ( S ã o Paulo, Editora Unesp, 2000).
10 LUA NOVA N- 5 5 - 5 6 — 2002
' ^ Essa lese é claramente endossada por Íris Y o u n g , para quem um grupo se define c o m o " u m
coletivo de pessoas diferenciado de pelo menos u m outro grupo por formas culturais, práticas
ou pela forma de v i d a " ( Y o u n g , Justice and tlie Politlcs of Difference, p. 43). M e s m o
K y m l i c k a , que critica Y o u n g por não diferenciar as exigências de "reconhecimento" de mino-
rais nacionais das exigências de minorias étnicas e daquelas de gíupos em desvantagem (tais
c o m o as mulheres e os negros), parece endossar uma versão dessa tese ( K y m l i c k a .
Multicultural Citizensliip, pp. 18-19).
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 13
20
Chandran Kukathas, conhecido por suas posições contrírias a direitos culturais, aponta u m
número significativa de minorias discriminadas no mundo que não se encaixam bem na classifi-
cação proposta e c o m respeito às quais, por isso, a teoria de K y m l i c k a não oferece muita orien-
tação sobre o que deveria ser feito (reconhecer "direitos poli-étnicos"? Reconhecer direitos de
autogovemo?). Chandran Kukathas. " M u l t i c u l t u r a i i s m as Faimess: W i l l K y m ! i c k a ' s
Multicultural Citlzenship', The Joumal of Polilical Philoloplty, 5, 1997,4: pp. 406-427.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 440
DIREITOS DE GRUPO
21
Kukathas, op. cit., p. 4 1 6 .
22
Íris Y o u n g , Justice and the Politics of Difference, cap. 1. É u m a outra discussão a de
avaliar o que Y o u n g denominou "paradigma distributivo" :
LUA NOVA N® 5 5 - 5 6 — 2002
23
tbid.. p. 161.
24
E m a l g u n s estados d o s E U A , ainda há leis que c r i m i n a l i z a m a h o m o s s e x u a l i d a d e .
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 17
25
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Reproduction", ín A m y Gutmann (org.). Multiculturalism: Examining llie Polilics of
Rccognitlon (Princeton University Press, 1994), pp. 162-63.
18 LUA NOVA N- 55-56— 2002
A política d o r e c o n h e c i m e n t o p o d e ter i m p l i c a ç õ e s m u i t o
m e n o s p a l a t á v e i s a i n d a d o q u e e s s a p r e s s ã o m a i s ou m e n o s d i f u s a , da
qual A p p i a h se q u e i x a , p a r a a f i r m a r p u b l i c a m e n t e u m a i d e n t i d a d e coleti-
va n e g r a ou gay. Isso diz respeito à q u e l a s e x i g ê n c i a s e m que, c o m o diz
B a n y , a cultura é o p r o b l e m a , m a s n ã o é a s o l u ç ã o (CE, p. 318). E s s e s
são os c a s o s n o s q u a i s os g r u p o s (ou o s q u e f a l a m e m seu n o m e ) a p e l a m
a d i f e r e n ç a s c u l t u r a i s ou r e l i g i o s a s para tratar s e u s m e m b r o s d e f o r m a s
q u e v i o l a m princípios liberais d e j u s t i ç a e q u e e n v o l v e m d e s i g u a l d a d e s
p r o f u n d a s . O p r o b l e m a é q u e direitos c u l t u r a i s d e g r u p o s c o s l u m a m ser
r e i v i n d i c a d o s j u s t a m e n t e e m c a s o s d e s s e tipo. A o c o r r ê n c i a m a i s f r e -
q ü e n t e é a d e m i n o r i a s c u l t u r a i s , e m v á r i o s países o c i d e n t a i s , q u e q u e r e m
discrição para d a r j l i v r e c u r s o a p r á t i c a s tais c o m o a c l i t o r i d e c t o m i a , a
recusa a g a r a n t i r o p o r t u n i d a d e s e d u c a c i o n a i s iguais para a s m e n i n a s , o
c a s a m e n t o f o r ç a d o d e m e n i n a s d e 13 ou 14 anos, as n o r m a s d e s i g u a i s d e
divórcio (em q u e as m u l h e r e s i n v a r i a v e l m e n t e l e v a m a pior), a recusa a
a u t o r i z a r t r a n s f u s õ e s d e s a n g u e para c r i a n ç a s e m s i t u a ç ã o d e risco d e
vida, o s a c r i f í c i o ritual d c a n i m a i s d e f o r m a s q u e v i o l a m n o r m a s d e trata-
m e n t o h u m a n i t á r i o d o s a n i m a i s e p o r af a f o r a . C o m a e x c e ç ã o parcial d o
ú l t i m o ( e m q u e o q u e está e m q u e s t ã o é o b e m - e s t a r d o s a n i m a i s não-
h u m a n o s ) , e m t o d o s e s s e s e x e m p l o s a r a z ã o o f e r e c i d a para o r e c o n h e c i -
m e n t o d e direitos c u l t u r a i s é a v i o l a ç ã o d e n o r m a s d e respeito igual p e l o s
m e m b r o s i n d i v i d u a i s d e s s e s g r u p o s . C o n c e d e r direitos d i f e r e n c i a d o s a
entidades coletivas significa admitir que quaisquer formas de tratamento
d i s p e n s a d a s a o s m e m b r o s i n d i v i d u a i s d o s grupos p o d e r ã o ser j u s t i f i c a d a s
c m n o m e da p r e s e r v a ç ã o da i d e n t i d a d e coletiva.
Isso p o d e s e r p e r c e b i d o até m e s m o n a q u e l e q u e p o d e r i a pare-
cer o c a s o m a i s i n ó c u o dc r e c o n h e c i m e n t o q u e c o s t u m a ser d i s c u t i d o por
teóricos c o m o T a y l o r e K y m l i c k a : o d o Q u e b e c . C o n f e s s o q u e n ã o c o n s i -
g o e n x e r g a r m u i t o b e m o n d e r e s i d e o interesse teórico m a i s geral pela
sorte d o Q u e b e c , quer a m a i o r i a d e s e u s h a b i t a n t e s d e c i d a q u e é m e l h o r
conquistar u m âmbito maior de autogoverno dentro do Estado canadense,
quer a o p ç ã o final a c a b e s e n d o m e s m o a da s e c e s s ã o . C o m o B a r r y o b s e r -
va, n ã o há u m a teoria e s p e c i f i c a m e n t e liberal para lidar c o m os p r o b l e -
mas d e f r o n t e i r a s políticas de u m a f o r m a f u n d a m e n t a d a ( C E , p. 135).
N ã o e x i s t e algo c o m o u m direito m o r a l d c u m a minoria n a c i o n a l se a u t o -
g o v e r n a r . Em q u e m e d i d a p r o b l e m a s de d i v e r s i d a d e religiosa, étnica ou
n a c i o n a l d e v e m ser e n f r e n t a d o s p o r m e i o de a r r a n j o s i n s t i t u c i o n a i s tais
c o m o o c o n s o c i a c i o n a l i s m o e o f e d e r a l i s m o , ou p o r m e i o de s e c e s s ã o ,
essas s ã o q u e s t õ e s à s quais só é p o s s í v e l d a r r e s p o s t a s p r a g m á t i c a s , t e n d o
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 19
e m vista qual é a s o l u ç ã o q u e m a x i m i z a as p o s s i b i l i d a d e s d e i m p l e m e n -
tação de princípios liberal-igualitários na(s) u n i d a d e ( s ) política(s) resul-
tante(s). Essa p o s i ç ã o é e s s e n c i a l m e n t e a m e s m a d e Robert Dahl e m
Democracy and Its Critics.26 EJara D a h l , c o m o para B a r r y , a teoria
d e m o c r á t i c a não o f e r e c e n e n h u m a s o l u ç o para e s s a s q u e s t õ e s no â m b i t o
d o s princípios. Só 6 possível avaliar as d i f e r e n t e s alternativas d e u n i d a d e
política p r o p o s t a s c o m b a s e nas p e r s p e c t i v a s q u e c a d a u m a d e l a s o f e r e c e
para a s o b r e v i v ê n c i a da d e m o c r a c i a .
M a s há u m a s p e c t o da política d o Q u e b e c d e p r e s e r v a ç ã o da
cultura f r a n c e s a q u e constitui u m e x e m p l o d o p r o b l e m a q u e e s t a m o s
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a n g l ó f o n o s (residentes no Q u e b e c ) e n v i e m s e u s Filhos a e s c o l a s d e língua
inglesa, m a s p r o í b e os c a n a d e n s e s f r a n c ó f o n o s c i m i g r a n t e s estrangeiros
de f a z ê - l o . E m " T h e Politics of R e c o g n i t i o n " , C h a r l e s T a y l o r critica o
" l i b e r a l i s m o c e g o a d i f e r e n ç a s " p o r n ã o a c o m o d a r políticas d e s s e teor,
concebendo u m a variante de liberalismo ("hospitaleiro a diferenças") que
dispensaria a n o r m a de n e u t r a l i d a d e estatal diante d e c o n c e p ç õ e s da b o a
vida e q u e aceitaria q u e " u m a s o c i e d a d e c o m o b j e t i v o s coletivos fortes
p o d e ser liberal". 2 7 U m p o u c o adiante, neste m e s m o ensaio, T a y l o r afir-
ma que, para a v e r s ã o de l i b e r a l i s m o praticado p e l o g o v e r n o d o Q u e b e c ,
e q u e ele p r ó p r i o d e f e n d e , "a s o c i e d a d e política n ã o é neutra e n t r e aque-
les q u e v a l o r i z a m se m a n t e r e m fiés à cultura d e n o s s o s ancestrais e aque-
les q u e p o d e m q u e r e r se liberar disso e m n o m e d e a l g u m o b j e t i v o indi-
vidual de autodesenvolvimento".28
É difícil concordar c o m Taylor q u e ele realmente tenha con-
f r o n t a d o os méritos relativos de duas variantes distintas de liberalismo. O
liberalismo igualitário aceitaria e até m e s m o r e c o m e n d a r i a a intervenção
pública n o sentido de tomar a opção pela língua f r a n c e s a e pela cultura
f r a n c ó f o n a a o alcance de todos aqueles q u e desejassem fazer uso delas n o
Quebec. U m a política desse teor seria p e r f e i t a m e n t e c o m p a t í v e l com a
f o r m a d e neutralidade perante as c o n c e p ç õ e s d o b e m q u e u m E s t a d o libe-
ral j u s t o d e v e garantir. O q u e não é compatível c o m a neutralidade liberal
é a suposição d e q u e é legítimo coagir os f r a n c o - c a n a d e n s e s e imigrantes
que prefeririam u m a e d u c a ç ã o e m inglês (ou talvez bilingüe) a m a n d a r seus
filhos a escolas d e língua francesa, c o m b a s e na suposição d e q u e essa
26
Robert D a h l , Democracy and lis Critics (New Haven, Y a l e University Press, 1989).
27
Charles Taylor. " T h e Politics of Recognition", p. 59.
28
Ibid., p. 58.
20 LUA NOVA N " 5 5 - 5 6 — 2002
29
" F i c t í c i a " porque uma individualidade coletiva n ã o tem n e n h u m dos atributos nos quais
usualmente n o s baseamos para atribuir s i g n i f i c a d o moral eo bem-estar de i n d i v í d u o s : a
capacidade de decidir o que 6 certo e o que 6 errado, de sentir prazer e dot, de fazer planos,
de sentir frustração o u h u m i l h a ç ã o e a s s i m p o r diante.
LlBf.HALlSMO E MLTLTICUl.TmAi.ISMO 21
50
Q u e excluem a violação de direitos fundamentais dos membros dos grupos, c o m o ocorre
em vários dos exemplos que foram considerados acima.
22 LUA NOVA N- 55-56— 2002
A s e g u n d a idéia b á s i c a d c y e n f o q u e p r o p o s t o p o r B a r r y d i z
r e s p e i t o à c l á u s u l a q u e a p a r e c e n o t r e c h o q u e citei n o p a r á g r a f o - é p r e -
c i s o q u e a filiação a o g r u p o seja voluhfária. Afirmar que a participação
d e v e ser voluntária não significa dizer, c o m o m u i t o s s u p õ e m , q u e os li-
berais i g n o r a m a c e n t r a l i d a d e q u e v í n c u l o s d e n a t u r e z a n ã o - v o l u n t á r i a
têm na v i d a d e m u i t a s p e s s o a s . O b v i a m e n t e , u m a p e s s o a n ã o a d e r e v o -
l u n t a r i a m e n t e à f a m í l i a o u à c o m u n i d a d e étnica ou n a c i o n a l e m q u e
nasceu c f o i criada.! M a s d o p o n t o d e vista político, a p a r t i c i p a ç ã o e m u m
g r u p o c o n t a c o m o [ ' v o l u n t á r i a " se o p o r t u n i d a d e s s u f i c i e n t e s e a p r o p r i a -
d a s d e saída s ã o a s s e g u r a d a s . E s s a não é u m a p r e o c u p a ç ã o p r o e m i n e n t e
e n t r e os a d e p t o s djo m u l t i c u l t u r a l i s m o , j á q u e s u a s r e c o m e n d a ç õ e s d e
política a c a b a m e n f o c a n d o s o m e n t e a l i b e r d a d e ( d o g r u p o ) de r e c u s a r
a s s o c i a ç ã o . M a s é j p r e c i s o q u e seja, s u s t e n t a Barry, u m a p r e o c u p a ç ã o
p r o e m i n e n t e para os liberais igualitários, q u e p r e z a m n ã o s o m e n t e a
a u t o n o m i a d o g r u p o d e g e r i r s e u s a s s u n t o s internos d e a c o r d o c o m s e u s
próprios valores e normas mas também a proteção de m e m b r o s indivi-
duais contra a opressão do grupo.
Sustentar q u e a o p ç ã o d e " s a í d a " d e v e estar disponível tem impli-
c a ç õ e s que vão além do q u e dizer q u e e m u m a sociedade liberal a apostasia
não é tratada c o m o u m crime. H á circunstâncias e m q u e os custos d e saída
são inaceitáveis para u m dissidente, para u m e x c o m u n g a d o ou para u m
apóstata. Isso ocorre q u a n d o a saída d o g r u p o p õ e e m risco a própria sobre-
viência d o e x - m e m b r o . E minimizar tanto q u a n t o possível esses custos, e m
casos desse tipo, constitui u m objeto apropriado de ação pública. Barry f a z
u m e s f o r ç o para identificar os diferentes tipos de custo q u e u m a pessoa p o d e
enfrentar q u a n d o abandona ou é expulsa de u m grupo, c o m o propósito d e
discernir aqueles para os quais deveria haver alguma f o r m a d e c o m p e n s a ç ã o
(CE, pp. 150-54). Essa discussão tem implicações importantes para a políti-
ca pública e para as decisões judiciais, mas c o n c e n t r e m o - n o s aqui s o m e n t e
na idéia central. Esta p o d e ser percebida tendo-se p o r referência aquele
grupo q u e c o m freqüência é t o m a d o c o m o protótipo d e c o m u n i d a d e : a
família. N o s casos de violência doméstica, não basta a s s e g u r a r às m u l h e r e s
o direito legal de se separar d o marido (em a l g u m a s sociedades, n e m m e s m o
isso é garantido); para q u e os custos d e saída n ã o sejam inaceitáveis, é pre-
ciso q u e as mulheres tenham u m a f o r m a d e sobreviver fora d o g r u p o f a m i -
liar. Isso requer políticas públicas n o sentido de propiciar albergues e renda
substitutiva para mulheres espancadas. S e m isso, n ã o se p o d e dizer q u e a
o p ç ã o d e saída de fato esteja disponível e q u e a participação n o g r u p o f a m i -
liar d e fato seja voluntária.
LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO 23
%
tei
NACIONALIDADE CÍVICA
33
L e v a n d o - s e e m c o n t a t a m b é m o q u e foi d i t o a c i m a s o b r e as f o r m a s d e d e s v a n t a g e m social
e n v o l v i d a s na d i s c r i m i n a ç ã o d e n e g r o s , m u l h e r e s e h o m o s s e x u a i s , eu m e arriscaria a d i z e r q u e
as q u e s t õ e s típicas d e r e c o n h e c i m e n t o f i c a m c o n f i n a d a s , n o Brasil, à f o r m a de lidar c o m o s
grupos indígenas. Isso não significa dizer q u e não tenham importância, mas sim que não
d i z e m r e s p e i t o à i n t e r p r e t a ç ã o das f o r m a s m a i s i m p o r t a n t e s d e d e s v a n t a g e m social da main-
stream d a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a .
34
E x a m i n o e s t a c o n c e p ç ã o e m d e t a l h e e m m e u A justiça igualitária e seus críticos (São
P a u l o , E d i t o r a da U n e s p , 2 0 0 0 ) , c a p . 6.
26 LUA NOVA N- 55-56— 2002
35
V e r , p o r e x e m p l o , Brian Ватту, " I n t e r n a t i o n a l S o c i e t y f r o m a C o s m o p o l i t a n P e r s p e c t i v e " in
D a v i d M a i p c l с Т е п у N a r d i n ( o r g s . ) , Inlcmational Society ( P r i n c c t o n , P r i n c e t o n U n i v e r s i t y
Press, 1998). p p . 1 4 4 - 6 3 .
36
l b i d . , p . 153.
LIBERALISMO E MULT1CULTURALISMO 27
Danilo Martuccelli
Department de Sociologie, Université de Bordeaux II
A noção de "sociedade multicultural" depen- diferenças culturais, tanto regionais quanto comu-
de essencialmente de duas grandes perspectivas. nitário-classistas. 3
Para certos autores, designa um modelo prescritivo O interesse em examinar a idéia da sociedade
de integração, por vezes pós-nacional. Assim, di- multicultural é outro. Está no dilema moderno das
versos trabalhos, notadamente nos países anglo- identidades que a noção revela, nos problemas po-
saxões, visam a mostrar como uma sociedade pode líticos e nos impasses que ela põe em evidência. O
colocar sob controle a diferença cultural desde que problema determinante de uma sociedade multi-
proclame uma vigorosa separação entre o privado cultural é sempre a busca de uma nova articulação
e o público, 1 ou dela tire vantagens, 2 graças a me- entre a identidade e o político.
didas legislativas favoráveis à adoção da diversida-
de na escola ou na moradia. Para outros autores, Multiculturalismo e democracia
a sociedade multicultural é menos um modelo do
que uma propriedade das sociedades modernas, O multiculturalismo não adquire todo o seu
caracterizadas pela coexistência de diferentes gru- sentido a não ser ligado ao processo de moderni-
pos culturais ou étnicos. Isto constitui uma defini- zação e às suas conseqüências sobre a matriz de-
ção sem grande alcance: as sociedades nacionais de mocrática. 4 De fato, ele põe em questão a respos-
classe sempre foram, elas também, cruzadas por
3
Um caso extremo dessa distância encontra-se em
Hoggart, 1970.
4
1
Desta perspectiva, o debate entre o universalismo e
Cf. Rex, 3986. o pluralismo, de tão numerosas conseqüências, notadamente
2
Por exemplo, os debates apresentados em Britain: a no que diz respeito à integração das populações imigradas,
plural sociey, 1990. não é senão uma das dificuldades (e certamente não a mais
18 Mai/Jun/Jul/Ago 1996 N» 2
As contradições políticas do multiculluralismo
I |
ta democrática tradicional ao dilema identitário, a consciência institucional do triunfo de uma mo-
que ela garante sobretudo mediante seus dois prin- dernidade identificada com a Razão universal.
cípios que são a liberdade e a igualdade. Por um Nada de importante separa as grandes concep-
lado, supõe-se que a liberdade, indissociável da se- ções da democracia clássica: o ideal da democracia
paração entre público e privado, permite a expres- enquanto divergência consensual de opiniões; o ideal
são das identidades particulares fora do domínio que acreditava na possibilidade de pôr em evidên-
público. 0 espaço público, identificado com a ra- cia uma vontade unitária dos homens mediante re-
zão, protege as identidades eliminando-as da esfe- ' curso à livre deliberação; e a concepção "sociológica"
ra pública. Por outro lado, a igualdade, quaisquer ' ( que dela faz a representação institucional de relações
que sejam seus vínculos com a problemática da li- sociais antagônicas. A primeira concepção insiste na
berdade democrática, visa a uma repartição justa possibilidade de preservar um espaço público pro-
da riqueza produzida socialmente, independente- tegido da luta de classes, um espaço de discussão em
mente dos traços peculiares aos indivíduos. 5 que a concórdia dos homens se torne possível pela
Não há melhor resumo da articulação entre es- construção comunicacional de uma verdade harmo-
ses dois princípios do que o caráter universalizável niosa superior. A segunda dá ênfase às divisões es-
dos direitos. A democracia é o sítio por excelência truturais do corpo social, à existência de uma ten-
do universal, do Cidadão, no fundo uma das concep- são não eliminável que faz do conflito uma verdade
ções mais abstratas que se pode imaginar do vínculo permanente na vida coletiva. Duas posições contes-
social, em cujo seio todo substractum particular é tadas por todos os que não vêem na democracia mais
abandonado em favor de uma representação univer- do que um formalismo, ou uma trégua, portanto, no
sal, É próprio à democracia, em um país como a Fran- fundo, sempre uma espécie de fratura a ser supera-
ça, sua indiferença pelo problema identitário: clas- da. Ora, tanto a democracia-procedimento, quan-
sicamente, sempre se considera que ele se possa tra- to a democracia-divisão e a democracia-superação
duzir, via direitos universais, em problema civil ou concordam quanto ao caráter universal das deman-
em problema social. Nos dois casos, e não há nisso das sociais.' O burguês esclarecido ou o proletário
excesso de linguagem, os indivíduos possuem "perti- desumanizado não se opõem senão no interior de
nências", mas nunca "identidades". Ou, melhor di- uma concepção universal da política: considera-se
zendo, as formas pelas quais foram construídas as que ambos, um por encarnar a Razão, o outro, por
identidades sociais na democracia clássica têm sido estar privado de toda a identidade, ajam em nome
sempre subordinadas e informadas pela universa- da humanidade inteira. 7
lização das linguagens. N o fundo, a çlemocracia, em O multiculturalismo questiona, prática e inte-
sua acepção tradicional, notadamente na França, é lectualmente, esse implícito democrático, uma vez
que reivindicações particularistas têm por objeto
importante) de uma sociedade multicultural. De fato, o de- direitos que parecem dificilmente universalizáveis,
bate é uma versão secularizada e fin-de-sièçle da "guerra dos e que as demandas por elas formuladas questionam
deuses" weberiana. Certamente, o problema é de grande im- os limites institucionais fixados pela liberdade ne-
portância na medida em que, afinal, implica uma reflexão
sobre a existência ou não de Direitos do. Homem de cará-
ter universal. Mas esse debate, apesar de seu caráter dramá- 6
Cf. Macpherson, 1985.
tico e dc sua visibilidade atual, é apenas um dos pontos que 7
Unicamente às "margens" do sistema mundial é que
devem ser lembrados.
o problema identitário perturbou verdadeiramente a univer-
s
Dualidade de princípios que volta a encontrar-se nas salidade do jogo democrático. Desse ponro de vista, pode-
três dimensões da democracia admitidas por Touraine: ci- se entender o multiculturalismo como a importação para os
dadania, limitação do poder absoluto e representatividade; países "centrais" do antigo dilema identitário das "mino-
cf. Touraine, 1994. rias" colonizadas.
gativa. Os indivíduos já não se satisfazem com uma nas diversas fases da história democrática, ou seja,
identidade privada e, a partir daí, a extensão do se a justiça consiste em dar aos homens em função
processo de individualização é acompanhada da de suas capacidades ou de suas necessidades, an-
afirmação pública das identidades. tes de se chegar a levar em conta o estilhaçamento
Durante muito tempo, a democracia alicerçou- dos princípios de justiça na sociedade moderna. 1 0 O
se, na França, no recalque das identidades particula- essencial é que a idéia da igualdade entre todos os
res e na construção de sujeitos coletivos universais, homens significa que os indivíduos são considera-
a liberdade e a igualdade, que supõem o abandono dos iguais e tratados como tais com referência a
de toda a demanda identitária não universalizável qualidades consideradas constitutivas da "nature-
no domínio público. 8 O que ela propunha não era za" humana — a razão, a responsabilidade moral,
negar a diversidade social (toda a política moder- a liberdade. Essa idéia é reguladora. Historicamen-
na é consagrada a opor-se a esse processo), mas sim te, ela jamais ignorou as diferenças de "natureza",
impor uma linguagem institucional que obrigasse mas tornou-se a exigência moral segundo a qual
sua tradução em termos universais. Mas, a partir todos os homens devem ser tratados, enquanto ci-
de então, mudanças importantes de orientação são dadãos, da mesma maneira. De sua perspectiva, as
postas em ação. desigualdades de natureza existem, trata-se de eli-
miná-las, Ou de corrigi-las, mediante um tratamen-
Da igualdade e da eqüidade to igualitário. A igualdade democrática, em sua
visão maximalista, refere-se à substituição da de-
Quando a política é assimilada ao universal, a sigualdade natural (e do tratamento a esta reserva-
própria identidade é pensada através do prisma da do pelos Antigos Regimes) pela igualdade moral,
universalidade, concebida como definidora das re- para retomar as palavras de J.-J. Rousseau. O iti-
lações entre os indivíduos a partir de uma represen- nerário da noção de igualdade no seio da história
tação da sociedade como totalidade. A igualdade é, social da democracia pode ser reduzido à imagem
assim, um conceito genérico, extrai seu sentido da de uma progressiva consideração das diferenças e
referência a um indivíduo genérico, membro de uma ao tratamento delas mediante a equação igualitá-
sociedade e, portanto, com o tempo, sempre uni- ria. Na história, as diversidades objetivas freqüen-
versalizado. Por certo, a diversidade individual nunca temente foram percebidas, mas para muitos elas
é concretamente eliminada de maneira completa, e não se destacavam de um ponto de vista político,
o problema clássico da "equivalência" entre os in- até o momento em que eram traduzidas numa lin-
divíduos, ligados a situações de vida em comum, ali guagem universal.
se encontra para que isso não seja esquecido. N o De fato, as diversidades só podem tornar-se
entanto, na definição clássica de igualdade, todas as politicamente significativas no interior de uma con-
diversidades, mais cedo ou mais tarde, acabam por
exprimir-se mediante conceitos universais.' 10
Cf. Walzer, 1983] Boltanski e Thévenot, 1991. Fica
Pouco importa, pelo menos para nossos atuais claro que o problema da medida (a "humanidade comum"
propósitos, qual o critério de justiça conservado dos contratantes, de que falam Luc Boltanski e Laurenr Thé-
venot) c, portanto, da equivalência das "coisas" é impor-
tante sobretudo no seio de uma sociedade em que a incomen-
> Cf. Mouffe, 1994. surabilidade das práticas é rigorosa. No entanto, o proble-
9 ma pode limitar-se aqui a uma variação de grau e não de
No tocantc a isso, a história do feminismo é para-
digmática. Não foi senão após estar na posse da lingua- natureza. Sendo sempre a questão, de um lado estabelecer
gem do sufrágio universal e de universalidade dos interes- as equivalência entre as "coisas" e, em seguida, de preconi-
ses de classe que pôde constituir verdadeiramente um dis- zar a aplicação igualitária de um tratamento determinado
curso identitário. a todas as "coisas".
20 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo
cepção liberal. Esta exige que se pare de pensar na cidade de um indivíduo de agir ou não sem entra-
igualdade no interior de uma concepção global da ves e, diante do crescimento do Estado, de dispor
injustiça, a qual remete a uma situação estrutural de um "foro privado" e protegido defendido de toda
de dominação e de exploração, e que se desloque intervenção pública. A "liberdade positiva" é a ca-
na direção de uma concepção de justiça social en- pacidade de agir de maneira autônoma sem ser in-
quanto igualdade de oportunidades. Conseqüente- fluenciado pela vontade dos outros. 13 A primeira
mente, a sociedade deixa de ser concebida como um faz referência à ação, a segunda, à vontade: como
lugar de conflito, para tornar-se o lugar de uma diz Norberto Bobbio, uma remete aos direitos ci-
14
corrida social. Daí para diante, trata-sc de garan- f vis, a outra, a manifestações da liberdade política.
tir uma participação igualitária no seio da compe- ' Observe-se que, com o desenvolvimento dos tota-
tição social. A crise da visão da igualdade social sob litarismos ao longo do século, o primado da liber-
influência de uma concepção totalizante da socie- dade negativa sobre a liberdade positiva tornou-se
dade acarreta uma mudança profunda, formulada elemento consensual para muitqs autores.
pela noção de eqüidade. Em sua formulação clás- Ora, o multiculturalismo traz uma mudança de
sica, a igualdade enfatiza os elementos comuns aos orientação importante. Historicamente, a liberdade
indivíduos genéricos e não suas diferenças, seus par- negativa era uma liberdade individual, enquanto que
ticularismos coletivos, ela remete sempre a uma con- a liberdade positiva era, no fundo, a liberdade de um
cepção global e comum da sociedade. É diferente sujeito coletivo, por exemplo, a liberdade de um povo
o que se dá com a noção de "eqüidade" 1 1 que re- à autodeterminação. No multiculturalismo, a liber-
conhece a pertinência política das especificidades dade positiva torna-se a liberdade de um sujeito in-
culturais dos indivíduos e dos grupos, aceitando a dividual, desde que se compreenda que esse proble-
idéia de um tratamento diferenciado dos membros ma não é mais um problema filosófico (a indeter-
dessas coletividades. 12 minação da vontade humana) mas, ames, o da au-
A origem dessa mudança de direção no inte- todeterminação de um sujeito individual enquanto
| rior da matriz democrática deve ser buscada no pro- membro de um grupo. Porém, e este é um ponto es-
cesso de racionalização e, mais precisamente, no sencial na modernidade, pode a partir de então tra-
desenvolvimento de um saber social sobre as razões tar-se de uma autonomia pessoal e não mais da ex-
das desigualdades e sobre os resultados das políticas pressão de uma comunidade. De fato, a nova liber-
sociais igualitaristas. A antiga denúncia da "igual- dade positiva, expressa no multiculturalismo, é o re-
dade formal" teve continuidade e se estendeu sob sultado de uma mescla, no momento teoricamente
novas formas e princípios. A eqüidade é o encon- instável, entre a liberdade negativa e a liberdade de
tro entre a metáfora da "corrida" e do saber sobre auto-afirmação.
os handicaps dos competidores. Aqui também, a análise política deve prolon-
gar-se, mediante a tomada em consideração da si-
Da liberdade e da diferença tuação social. A antiga acusação feita aos liberais,
a saber, que, com o tempo, seu projeto político pre-
Um debate clássico contrapõe duas concepções judica a coesão social, volta a se encontrar nos fa-
de liberdade. A "liberdade negativa" define a capa-
13
Esse p o n t o é c o n t r o v e r s o , mas a o p o s i ç ã o entre a s
11
Em relação a o e m p r e g o dessa n o ç ã o na F r a n ç a , cf. noções t e m origem na distinção estabelecida p o r Benjamin
A f f i c h a r d e de F o u c a u l d , 1 9 9 2 ; e o R e l a t ó r i o a o Primeiro- C o n s t a n t e n t r e a liberdade d o s antigos e a d o s m o d e r n o s .
Ministro, 1994. Uma apresentação crítica dessas noções encontra-se e m Ber-
12 lin, 1 9 8 8 .
Charles T a y l o r coloca o " r e c o n h e c i m e n t o " n o cen-
t r o m e s m o de suas análises; cf. T a y l o r , 1992. " Cf. Bobbio, 1 9 7 9 .
" Cf. Simmel, 1988, c Touraine, 1992. à t r a d i ç ã o republicana serve sempre à diabolização
22 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo
mente, enviadas aos próprios professores que, em se têm em vista especificidades culturais e identitárias,
função das orientações e dos recursos locais, são obri- é sempre enquanto problemas sociais (expressos por
gados a improvisar "sua" reação. Mas eles estão pre- meio de linguagens universais). 24 Esta é uma das ra-
sentes na concepção mesma da política das ZEP. zões porque as políticas de ZEP não são acompanha-
As ZEP são de fato um bom exemplo de polí- das por pedagogias específicas.
tica pública a meio caminho entre a igualdade e a A não consideração do tema identitário esta-
eqüidade. Elas partem de uma abordagem global do belece os limites das ZEP. A racionalização se ope-
fracasso escolar e levam em conta a correlação en- ra no sentido de uma eventual aproximação das
tre este e a origem social modesta, assim como a in- especificidades dos mercados de trabalhos locais e
tensificação do fracasso em função de disparidades no sentido de uma maior descentralização, 25 mas
21
espaciais. A definição dos estabelecimentos esco- a diferença cultural permanece, na verdade, fora
lares classificados como ZEP combina critérios esco- do processo. Sempre se supõe que os docentes,
lares propriamente ditos (taxas de repetência, núme- apesar de suas divergências reais, aplicarão instru-
ro de alunos imigrados, idade e retardo...) com crité- ções idênticas e transmitirão ensinamentos unifor-
rios externos à educação nacional. A "nova" concep- mes. A "abertura" da escola para o bairro é, pois,
ção do problema conduz, então, a políticas públi- um projeto mutilado já em sua origem: a escola
cas compensatórias, pedagógicas e até urbanas, para leva em conta desigualdades sociais, até mesmo
alcançar, por uma dotação desigualitária (portanto 1 concebe o handicap esdolar ligado a uma diversi-
mais eqü itativa) de meios, um reequilíbrio em termos dade cultural, mas não pensa verdadeiramente a
de justiça social. Em suma, "dar mais aos que têm diferença. Assim, as ZEP não constituem mais do
menos". N o entanto, e uma das grandes insuficiên- que uma dose de "eqüidade" no interior de um sis-
cias das ZEP encontra-se neste nível, a reconversão tema educativo alimentado, em seu conjunto, por
da eqüidade só se realizou pela metade. De fato, as sólidos princípios igualitários.
ZEP, que operam uma síntese da eqüidade diferen-
cialista e da igualdade republicana, não visam a uma Igualdade versus diferença
categoria de população distinta, mas a um território.
As ZEP inscrevem-se num processo de racio- A igualdade implica recriar, muitas vezes pelo
nalização crescente da ação pública, 2 2 do qual pro- viés de uma dinâmica conflitual entre diversos gru-
vém sua vocação de utilizar uma abordagem ao mes- pos, um espírito de solidariedade e passa por uma
mo tempo mais global e melhor centrada da assis- linguagem política cuidadosamente universalista:
tência social. 23 Mas esse levar em conta das espe- quer porque a gramática dos agentes sociais acaba
cificidades locais verifica-se dentro do quadro de uma fazendo emergir o universal, quer porque o univer-
concepção igualitarista e republicana: os particula- sal, como ocorre freqüentemente, se identifica com
rismos locais só são considerados na medida em que uma dessas vozes. Em contraposição, a diferença
podem ser pensados em termos universais. O prin- consiste em estabelecer um princípio de reconheci-
cípio de eqüidade visa, pois, déficits sociais, e quando mento entre os indivíduos. Neste caso, a linguagem
política é particularista: toda pertinência não é to-
21
Sobre as apostas sociológicas das ZEP, cf. Henriot- 24
No fundo, esta é a versão bem arrumada da peda-
van-Zanten, 1990. gogia diferenciada que se encontra na escola republicana.
u
Para uma reflexão mais ampla a respeito das no- 25
Neste sentido, as ZEP têm sua origem antes numa
vas competências do Estado, cf. Donzelot e Estèbe, 1994. crise, do que num projeto de renovação escolar. A incapa-
23
Para uma reflexão crítica neste sentido, cf. Roman, cidade ou a dificuldade do "centro" em fornecer diretrizes
1993. únicas preconizando uma autonomização local.
24 Mai/JurVJul/Ago 1996 N° 2
As contradições políticas do multiculluralismo
trada nos direitos universalizáveis, supõe, de u m a da, a teoria das relações objetais) visam, cada qual
pessoas diferentes c o m o equivalentes (mas n ã o for- í forme o caso, mas foi sempre obrigatória.
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As contradições políticas do multiculluralismo
deve ser interpretado, para além de suas significa- governos, dá lugar a sentimentos de frustração na-
ções estritamente escolares, em seu cerne político, queles que se identificam com os modelos culturais
como a oposição entre duas concepções de indivi- dominantes, sobretudo quando sua situação social
dualidade moderna. Os defensores de uma concep- é instável ou precária. 25
ção laica da escola, lugar neutro protegido do mun-
do e de suas divisões, defendem a versão francesa Liberdade versus eqüidade
e escolar da liberdade negativa. Para eles, supõe-se
que o indivíduo deva desprender-se de suas carac- A tensão entre esse dois princípios pode ser en-
terísticas diante de uma instituição que nele vê ape- u^im, extrema. Ambos trazem consigo preocupações
nas um cidadão a ser formado e que não pode ad- diversas. A liberdade negativa, cujo valor não é pre-
mitir a intrusão da diferença. Do outro lado, há ciso demonstrar, supõe o estabelecimento de uma
todos aqueles para os quais a afirmação identitária, fronteira entre o privado e o público. Certamente,
e o conjunto das significações apregoadas por essa essa fronteira é histórica e mutável, mas exige sem-
manifestação, 28 fazem parte (ou são vividos ou cap- pre a existência de um domínio que escapa da in-
tados) como provindos do desejo moderno de mos- tervenção estatal. A eqüidade, ao contrário, e a sua
trar sua individualidade e sua resistência em admi- preocupação em levar cada vez mais em conta di-
tir imagens desencarnadas deles. Com o tempo, o ferenças individuais, preconiza a produção de con-
véu é, ou pode ser, interpretado num sentido multi- cepções cada vez mais globais que acabam por ocu-
culturalista, como manifestação de um rosto dife- par esse espaço.
rencialista no seio de uma instituição despersona- Vale dizer que, apesar de seu aparente acor-
lizadora — o que, evidentemente, não impede que do em torno de uma concepção "liberal" da socie-
revele outras significações. dade, esses dois princípios conduzem a tensões mui-
Muitas vezes, o debate conclui, então, nos im- to intensas: a vontade de oferecer aos homens mais
passes invocados anteriormente: quer se trate de eqüidade, na medida em que esta exige uma consi-
operar uma "volta" a uma concepção que remete deração aprofundada das situações particulares,
ao privado as manifestações das diferenças (mas, torna-as também mais expostas em suas liberdades
então, torna-se permanente, aos olhos das minorias, individuais. Não é preciso ser partidário da "mi-
a suspeita quanto ao caráter discriminatório dessa crofísica do poder" para compreender o risco, para
liberdade negativa), quer se trate de operar uma as liberdades individuais, que está inscrito nas po-
"volta", sob a forma de endurecimento para com líticas de eqüidade.
posições diferencialistas extremas, onde com o tem- Sob esse aspecto das coisas é preciso lembrar
po o indivíduo é dissolvido no coletivo. dos dilemas produzidos, a fim de questionar os efei-
Mas essa tensão também pode estar na base tos "não desejados" das discriminações institucio-
de sentimentos de frustração por parte de membros nais. Esse tema ainda não atraiu a atenção que me-
"majoritários" duma sociedade. Com efeito, sendo rece, na França, mas tem sido amplamente discuti-
sua identidade, na maioria das vezes, tomada im- do em outros países da Europa. N o Reino Unido, há
plicitamente como modelo cultural dominante, eles todo um conjunto de trabalhos que questionam as
só podem sentir toda reivindicação diferencialista injustiças ligadas à não consideração das necessida-
como um questionamento de sua identidade. A agi- des particulares de certos grupos da população, ou
tação diferencialista das minorias^ n o t a d a m e n t e a uma representação estereotipada das demandas
quando encontra eco na opinião pública ou nos potenciais. Para impedir a exclusão institucionali-
zada não deliberada que atinge certas minorias, as Há, pois, um conflito ente os defensores de u m
políticas públicas são responsáveis, desde sua con- liberalismo minimalista e os partidários de um so-
cepção, por levar em conta as necessidades reais e cialismo liberal (ou de um liberalismo diferencia-
específicas dos diferentes grupos sociais ou culturais. lista). Mesmo que a intervenção se faça sempre em
Por exemplo, a concepção de um parque público deve nome da igualdade de oportunidades, a racionali-
levar em conta o t a m a n h o das famílias das diversas zação da ação pública está sempre ameaçada a cons-
minorias. 3 0 Por um lado, essas políticas levam a uma pirar contra a liberdade negativa.
eqüidade crescente e real para os indivíduos, na me-
m **
dida em que o Estado leva melhor em conta os par-
ticularismos culturais. M a s , de outro lado, essas po- As quatro tensões que acabamos de apresen-
líticas recorrem à extensão de um saber social, à pro- tar mostram, certamente de modo esquemático, as
dução de uma engenharia social que pode chegar a dificuldades ligadas à penetração do tema identi-
uma intensificação do poder. Acresce a isso o peri- tário na política. Os debates assim provocados, nos
go de u m enrijecimento das políticas públicas. Segu- quais se misturam, à mercê das circunstâncias, ques-
ramente, a oposição nunca é rígida na medida em tões culturais, sociais e políticas, estruturam, de
que as necessidades sociais consideradas são diver- maneira renovada, quatro grandes questões.
sas e onde noções como " r a ç a " ou "etnia" não são, A primeira diz respeito aos grandes princípios
em sua significação social, traços imutável dos in- da justiça social e à melhor maneira de levar em conta
divíduos, mas sim construções sociais sempre se mo- desigualdades ou diferenciações sociais (igualdade-
vendo n u m espaço relacionai. M a s como evitar es- eqüidade). A segunda diz respeito aos princípios de
ses desvios quando os agentes portadores dessas rei- coesão e de integração culturais da sociedade, varian-
vindicações, eles próprios, deslizam tão freqüente- do as posições desde uma ruptura radical entre o
mente para uma naturalização de suas identidades, privado e o público (e, pois, a identificação dos in-
portanto, finalmente, de suas necessidades? divíduos com a razão) até a expressão acabada e mul-
Dois riscos estão, pois, inscritos nesse proces- tiforme dos particularismos culturais (igualdade-di-
so. O primeiro é que assumir a responsabilidade ferença). Uma terceira questão tem a ver com a cons-
política das "necessidades" particularistas permite tituição dos indivíduos pela política e na política, seja
que um grupo de peritos amplie seu poder. E o se- mediante um espaço pessoal irreprimível e protegi-
gundo é que essa política "particularista", tornan- do de toda intervenção estatal, seja mediante a ca-
do públicos elementos "privados", isola ainda mais pacidade de auto-afirmação pública das diferenças
os indivíduos em suas identidades coletivas. Este identitárias (liberdade-diferença). Enfim, uma quarta
último aspecto provocou muitas vezes as reações de questão diz respeito aos limites do poder na socie-
membros de minorias, e de maneira muito diferen- dade, estabelecendo-se uma oposição entre duas ten-
te segundo sua posição social: de fato, a origem dências importantes da modernidade, a consolida-
étnica, se proporciona vantagens aos trabalhado- ção política da liberdade negativa e o processo de ra-
res imigrados ou a alguns membros das camadas cionalização do Estado (liberdade-eqüidade).
médias que se tornaram verdadeiros "notáveis" po-
líticos da imigração, representa obstáculo para a A dialética identitária
assimilação definitiva dos outros. 3 1 do multiculturalismo
pública), que corresponde à necessidade de centrar tro. Esta é toda a dificuldade que existe e m "afir-
m e l h o r as políticas p ú b l i c a s , e o p r i n c í p i o d a dife- m a r " uma identidade que rompe com toda depen-
m u l t i c u l t u r a l i s t a p a s s a m u i t o r a p i d a m e n t e e m si- e s g o t a - s e a si m e s m o D e f i n i d a a i d e n t i d a d e , a f i r m a -
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As contradições políticas do multiculluralismo
n ã o ser e m t e n s ã o está na raiz desse p r o c e s s o de BOBBIO, Norberto, (1979). Liberia. In: Enciclopédia dei
constante retomada das reivindicações identitárias. Novecento. Roma: Istituto dell'Enciclopedia Italiana, v.
Daí, em certa medida, os ritmos históricos pecu-
III, p. 994-1004.
mo, q u a n t o o m o v i m e n t o das minorias étnicas pa- BRITAIN: A PLURAL SOCIETY, (1990). Londres: CRE.
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T e n d o a p r e o c u p a ç ã o da identidade tendência
Minuit.
a afirmar-se na democracia, a dinâmica política de- DONZELOT, Jacques, ESTÈBE, Phillipe, (1994). L'Etat
verá cada vez mais levá-la e m c o n t a , m e s m o q u e na animateur. Paris: Esprit.
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ráter irreprimível das d e m a n d a s de identidade, en- mann-Lévy.
q u a n t o elas p a r t i c i p a m d o p r o c e s s o de m o d e r n i z a - FUKUYAM A, Francis, (1992). La fin de 1'histoire et le der-
ção, e sobretudo das conseqüências de sua vitória
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Danilo Martuccelli