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Rádios

Organizadores
NILS BROCK
JOÃO PAULO MALERBA

Comunitárias
em Tempos
Digitais!
Reflexões sobre as transformações,
inovações e desafios da mídia participativa

Edição

Com textos e colaborações de:


Adriano Belisário, Ana Martina Rivas, Bruno Vianna, Brunz,
Camila Novaes, Clara Robayo, Claudia Nuñez Arango, Dilliany
Justino, Gui Iribarren, Guilherme Gitahy de Figueiredo,
Programa de Legislação e
Jaqueline Deister, João Paulo Malerba, Loreto Alejandra
Direito à Comunicação
Bravo Muñoz, Marcelo Saldanha, Miriam Meda González,
Nils Brock, Rafael Diniz, Rotulistas, Thiago Novaes. CC 2017
AMARC Brasil
Programa de Legislação e Direito a Comunicação
Organização: Nils Brock e João Paulo Malerba
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais
Rio de Janeiro, 2017

Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Ford.

Coletivo editorial: Denise Viola, Dilliany Justino, João Paulo Malerba, Luciana Zanotto,
Luiza Cilente, Natalia Azevedo, Nils Brock, Paulo José O. M. Lara.
Tradução para o Português: Denise Viola, Nils Brock, João Paulo Malerba.
Revisão: João Paulo Malerba
Design e diagramação: Rotulistas

Esta publicação pode ser reproduzida total ou parcialmente para fins não comerciais desde que citada a fonte.
Creative Commons - Atribución-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional

Mais informações:
AMARC Brasil
www.amarcbrasil.org
www.facebook.com/amarcbrasil
coordenacaoamarcbrasil@gmail.com
secretariaamarcbrasil@gmail.com

ISBN 978-85-69099-07-9
Agradecimentos
A publicação deste livro não teria sido possível sem uma ampla rede de apoio. Primeiramente,
agradecemos a Fundação Ford por acreditar no projeto. Agradecemos também às organizações
e iniciativas que nos abriram as portas e contribuíram para a realização de três seminários
temáticos, correspondentes a três capítulos deste livro - a toda a equipe da Comradio do Brasil,
em Teresina, ao Memorial Zumbi dos Palmares e à Universidade Federal de Piauí; à Casa de
Cultura Tainã, ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor), ao Plenário José
Matosinho, à Rádio Oxigênio, à Rádio Muda, à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Em Olinda (PE), destacamos o Sindicato dos Servidores Públicos de Pernambuco (SINDSEP),
Associação de Rádios Populares de Pernambuco (ARPPE) e o Centro Cultural Coco de Umbigada.
Nossa gratidão também a Achyles de Oliveira, Cantídio Souza Filho, Célia Rodrigues, Cleyton
Torres e Costa Junior, Denise Xavier, Jessé Barbosa, Marta Mourão Kanashiro, Mãe Beth de
Oxum, Milena Andrade da Rocha, Paulo José O. M. Lara, Rosmari de Castilhos e Simone Pallone
por ajudarem a ampliar a missão da AMARC Brasil.

Lembramos ainda das pessoas dos coletivos e organizações que entraram na troca de
experiências, ideias e propostas durante esses encontros, seja nas mesas de debate, seja
nas oficinas: às associadas da AMARC Brasil e à Rede de Mulheres da AMARC Brasil, AMARC
Internacional, AMARC ALC e AMARC Chile, ABRAÇO - São Paulo, Aparecidos Políticos, Artigo19,
Associação Brasileira de Rádio Digital (ABRADIG), Centro de Cultura Luiz Freire, Ciranda
Internacional da Informação Independente, Coletivo Nordeste Livre, Comunidade Jongo Dito
Ribeiro da Casa de Cultura Fazenda Roseira, Decentro.org, Empresa Brasil de Comunicação –
EBC, Fórum Pernambucano de Comunicação (FOPECOM), Rádio Amnésia, Rádio Xibé, RadioTube,
Rede Mocambos, Ilê Mulher, Instituto Bem Estar, Coletivo Intervozes, Laboratório Telemídia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), MediaLab da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Observatório de Mídia, Pororoca.red, Projeto Fonias Juruá,
Pulsar Brasil, Repórteres Sem Fronteiras e Rhizomatica. À Adriana Veloso, Adriano Belisário,
Alessandra Ribeiro, Ana Veloso, Bia Barbosa, Camila Marques, Claudia Nuñez Arango, Claudio

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Del Bianco, Denise Viola, Diego Vincentin, Dilliany Justino, Emmanuel Colombié, Francesco
Diasio, Francisco Caminati, Guilherme Gitahy de Figueiredo, Ian Carvalho, Ismar Vale, Ivan
Moraes Filho, Jaqueline Deister, Jerry de Oliveira, Jhacunam (Jonas Duarte Cruz), João Paulo
Malerba, Karina Quintanilha, Lígia Kloster Apel, Mãe Beth de Oxum, Marcelo Saldanha, Marcos
Martins, María Pía Matta, Nils Brock, Pedro Martins, Peter Bloom, Piter Junior, Rafael Diniz,
Rafael Evangelista, Ricardo Franco Llanos, Ricardo Ruiz, Stella Pacheco, Tais Ladeira, TC Silva e
Tchimaucu (Sílvio Almeida Bastos), agradecemos pela contribuição.

Também cabe destacar o compromisso de todas as pessoas envolvidas diretamente na


produção desse livro. Obrigado ao grande grupo de autorxs que dimensionaram os três eixos
temáticos em espaços plurais de diálogo. Às ilustradoras Camila Novaes e Luciana Zanotto, que
através de imagens originais traduziram questões complexas de comunicação. Indispensável foi
também a ajuda de Sofia Hammoe e Natalia Azevedo na transcrição e edição de três mesas de
debate. Por último, agradecemos especialmente ao coletivo que editou a publicação, composto
por diferentes programas da AMARC Brasil e com o apoio constante de um colaborador do Labjor
e do coletivo gráfico Rotulistas.

Obrigado a quem participou do esforço que deu luz aos seminários e à edição das seguintes
páginas nas etapas iniciais - Andreas Behn, Vanessa Cruz, Daniel Fonseca, Luciene Medina,
Claudia Nuñez Arango - e a quem está à frente da Coordenação Executiva e da Secretaria
Financeira no momento da publicação – Denise Viola e Daniel Sousa.

Que sigamos juntos fazendo mídias mais livres, comunitárias e democráticas.

AMARC Brasil

Programa de Legislação e Direito a Comunicação

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índice Apresentação
Prefácio - Entradas e saídas para as rádios comunitárias e livres em tempos digitais
10
12

ENTRADA 1: CONvERgêNCIA 20
Convergência midiática - a história de uma apropriação popular. 22
Nils Brock
Convergência midiática: uma realidade de todas e todos? 26
Dilliany Justino
Resignificando a tecnologia. 30
Loreto Bravo
Cartografia mental - Mídia comunitária e livre. 34
Camilia Novaes
Rádios comunitárias e Software Livre. 36
Clara Robayo
Percepções do desenvolvimento de práticas sociais e políticas no entorno da 42
radiodifusão comunitária e livre na América Latina.
Claudia Nuñez Arango
Trajetórias, palavras e silêncios indígenas na "key note" da AMARC. 51
Guilherme Gitahy de Figueiredo
Mesa de debate I - Seminário Convergência midiática e as rádios comunitárias 59

ENTRADA 2: REDES E ESPECTRO 78


A Gestão Dinâmica da Esfera Pública e o Espectro Livre. 80
Thiago Novaes
(Re)Construindo redes comunitárias em Motor City, Detroit. 92
Ana Martina Rivas
Telefonia comunitária: uma nova possibilidade no setor da comunicação. 97
Jaqueline Deister
Infográfica – Espectro electromagnético. 102
Rotulistas, Nils Brock e Rafael Diniz
Espectro e Vigilância. 104
Adriano Belisário
Mutirão para redes_A experiência de Fumaça. 117
Bruno Vianna
Espectros feministas no panorama de rádios comunitárias e livres. 124
Bruna Zanolli
Rádios Comunitárias - potenciais provedores de Internet não comerciais. 131
Nils Brock e Marcelo Saldanha
Redes comunitárias, rádios comunitárias. 141
Gui Iribarren
Mesa de debate II – Espectro e Redes Livres 146

ENTRADA 3: RáDIO DIgITAL 164


O Rádio Digital no Brasil. 166
Rafael Diniz
Breves notas sobre a radiodifusão comunitária e as tecnologias do rádio digital. 171
Miriam Meda Gonzalez
Rádio digital e a importância de tecnologias abertas. 180
Dilliany Justino
Algo está no ar. 186
Camilia Novaes e Nils Brock
Mesa de debate III - Futuro das rádios comunitárias em tempos digitais 194

Anexos 209
Dados sobre a face tecnológica de uma hipotética crise nas rádios comunitárias. 210
João Paulo Malerba
Carta aberta sobre o futuro das rádios comunitárias em tempos digitais AMARC 222
Brasil
Outros Colaboradores 225

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Apresentação
E ste livro atravessou muitos corações,
mentes e mãos desde a sua primeira ideia até
merxs usuárixs e/ou consumidorxs de
produtos midiáticos, não mais que isso. O
a publicação. Os pensamentos e práticas aqui grande risco para a sociedade é a perda total
reunidos vão além dxs autorxs que assinam os do controle da infraestrutura comunicacional,
artigos, mas incluem também coletivos de mídia já marcada pela privatização e pela vigilância,
comunitária e livre, pesquisadorxs, jornalistaxs que tem ampliado a desigualdade de poder
e militantes de diversas causas como: a luta e a injustiça na sociedade. Pois é a favor do
pela terra, antivigilância, feminismo, identidade aprofundamento da autonomia, da democracia
cultural, desenvolvimento de tecnologias e das igualdades (racial, sexual, étnica etc.) que
participativas, políticas rurais, direito à cidade, somamos nossos esforços e compartilhamos
sustentabilidade, dentre outras. o forte desejo de fazer mídia de uma forma
libertadora, comprometida e lúdica. Queremos
E o que aglutina esta ampla gama de lutas falar e anunciar fechamento de presídios, e
e agendas? Procurando um denominador não o fechamento de rádios comunitárias!
comum, poderíamos dizer: nossa condição
de comunicadorxs e nossa capacidade de A morte do rádio, historicamente, tem sido
comunicar. Enfrentamos os monopólios anunciada a cada ascensão de uma nova
comerciais de mídia, onde se reproduz tecnologia. Mas nunca aconteceu. Muito menos
um jornalismo cada vez mais excludente, acontecerá nesses tempos digitais. Porém, o
conservador e voltado para os interesses da rádio sempre passou por transformações. É
minoria da população. Vivenciamos também a reinventado e ajustado às demandas e sonhos
ascensão das redes sociais, espaços que vêm dia a dia, desde a Amazônia até Timbuktu. A
possibilitando que as pessoas se manifestem pergunta, então, é: como reforçar o diálogo
e que podem se configurar como um canal com a Internet, a telefonia e redes digitais?
para todas as vozes. Mas, até o momento, Não precisamos especular sobre o “pós-
em se tratando de comunicação em rede, a rádio”. Precisamos organizar uma troca: por
grande maioria das pessoas está se tornando um lado, levar suas potências como o acesso

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universal, a sua mobilidade e o baixo custo até
outras mídias. Por outro, fazer da radiodifusão
um meio mais dialógico, com novos conteúdos
e formas de se expressar.

As rádios comunitárias e as rádios livres


têm um papel específico nesse processo.
São espaços onde o rádio já é participativo,
mesmo na tecnologia analógica. Microfones
abertos, reuniões de locutores, gestão
participativa e sem fins lucrativos, tomadas
de decisão coletivas, diálogos e colaborações
constantes entre as comunidades. Sabemos
que é um desafio conseguir garantir tudo isso,
sem dúvida, mas está embutido em nosso
pensamento comunicacional. O mesmo não
se pode dizer da mídia comercial, ou mesmo
das redes sociais e outras plataformas digitais,
já que elas ainda não alcançam o grau de
participação necessário para que a sociedade
tenha o controle sobre o seu fazer-mídia.

Será que a nova mídia e seus apologistas estão


dispostos a entrar nessa conversa? Achamos
que seja a hora de lançar a primeira pedra.
Tomara que haja retorno e que no confronto
de argumentos surja o que poderia ser o
melhor legado das experiências participativas
radiofônicas: mídias plurais e diversas, mais
livres e verdadeiramente comunitárias, no
caminho de uma prática plena do Direito à
Comunicação.

Coletivo editorial

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Prefácio
Entradas e saídas para as
rádios comunitárias e livres
em tempos digitais
A s rádios comunitárias e livres surgiram
na América Latina, em meados do século XX,
educação, moradia, terra etc.). Porém, como
justiça social não se faz sem disputa política,
para dar conta de desafios sociais e políticos, um segundo momento das rádios comunitárias
não de desafios tecnológicos. Promover e livres latino-americanas – sem abandonar
alfabetização à distância, lutar por condições suas pautas iniciais – foi abarcar causas mais
dignas de vida, restabelecer a democracia em diretamente ligadas à reconfiguração do poder
contextos ditatoriais: as motivações das rádios em suas comunidades e/ou na vida nacional:
consideradas pioneiras estavam mais ligadas à ativar a consciência crítica da realidade, educar
garantia de direitos sociais básicos (liberdade, a partir de uma pedagogia libertadora, auxiliar

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na organização de movimentos sociais de base: dois motivos: um de natureza político-social,
gradativamente, elas foram se conformando o outro, econômica. Aquilo que é a verdadeira
em atores políticos mais ou menos autônomos, razão de ser das mídias comunitárias – a
ligados ou não a macroprojetos de sociedade. disputa de ideias – é mais e mais protagonizada
Frente à perseguição do Estado e dos poderes nas redes sociais, listas de emails, através
locais, a tecnologia era mais possibilidade que de celulares, de aplicativos de mensagens
desafio: fechava-se uma rádio aqui, abriam-se instantâneas: as vozes e visões de mundo das
outras duas ou três acolá, incansavelmente: o rádios comunitárias e livres têm que passar
baixo custo, a universalidade e a simplicidade da (também) por aí se quiserem continuar vivas
tecnologia rádio eram (e ainda são) os trunfos nesse novo tecido político-social ou, ao menos,
das rádios comunitárias e livres para garantir dialogar com estes espaços. Acontece que
sua apropriação, penetração e multiplicação não somente os acordos sociais e políticos
popular no campo e nas cidades. É claro passam pela estrutura da rede: ela é hoje a
que a própria (re)existência dessas rádios própria infraestrutura de produção de valor
já anunciava uma reivindicação permanente e riqueza na sociedade. É quando chegamos
(o direito à comunicação) e denunciava uma à natureza econômica da diferença entre as
ausência estrutural (falta de diversidade e rádios comunitárias e livres dos séculos XX e
pluralidade midiática) diretamente ligadas à XXI quanto à questão da disputa tecnológica:
uma questão tecnopolítica (acesso ao espectro o controle da infraestrutura da rede passa a
eletromagnético). Mas seus oponentes eram estar no centro de uma disputa de dimensões
definidos e delimitados mesmo pela disputa gigantescas. Àqueles tradicionais inimigos
política e social: o Estado nacional, que as nacionais, somam-se agora às corporações
fechavam e lhes negava direitos; as oligarquias transnacionais de telecomunicações e blocos/
locais e regionais, que as deslegitimava acordos econômicos que buscam privatizar
socialmente; as empresas nacionais de até a última faixa de frequência do espectro
radiodifusão, em sua ânsia capitalista pelo eletromagnético. Daí que, para as rádios
monopólio e lucro. comunitárias e livres, não basta apenas se
adaptar ou mesmo migrar para a infraestrutura
Em se tratando das rádios comunitárias e da rede: definitivamente, o novo desafio no
livres do século XXI, não seria errado repetir horizonte está em ocupá-la e apropriar-se dos
o que foi dito início do parágrafo anterior: seus códigos e ferramentas, a fim de reverter
a diferença é que, hoje, mais que nunca, os seu rápido processo de privatização.
desafios sociais e políticos não podem mais ser
separados e estão atravessados por disputas Sem dúvida, já sabemos que, historicamente,
tecnológicas. E isso se deve a, pelo menos, as rádios comunitárias e livres (e o próprio

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

1
Principalmente em DELEUZE, veículo rádio) atravessaram firmes e, elas e nelas interagir com o sempre mesmo
G.; GUATTARI, F.. Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia. Rio inclusive, se fortaleceram nas turbulências objetivo último de fazer valer o direito pleno
de Janeiro, Ed. 34, 1995 (v. 1 a 5). tecnológicas: com a chegada do FM, se à comunicação e defender direitos. Nesse
libertaram das escolas radiofônicas católicas sentido, a presente coletânea deve ser
AM em favor da autonomia; com a chegada entendida menos como um mapa do que um
da TV, reafirmaram seu caráter instantâneo conjunto de cartografias das transformações,
e local, tornando-se insubstituíveis nas inovações e desafios das rádios comunitárias
comunidades; com o barateamento dos e livres em tempos digitais. A partir do que
equipamentos, multiplicaram-se de forma foi proposto por Deleuze e Guattari1, se o
exponencial e horizontal, até tornarem-se a mapa busca representar um território, a
forma mais popular e democrática de mídia cartografia quer inventá-lo no momento
comunitária na América Latina. Mas, se em que o esboça. Aliás, esboçar é verbo
sabemos de tudo isso, estamos ainda apenas pertinente por ressaltar o caráter de abertura
tateando os impactos que a comunicação e inacabamento da cartografia, que pode ser
em rede tem para as rádios comunitárias e modificada constantemente, comporta muitas
livres, quais são as respostas que elas já têm entradas e está afeita a múltiplas conexões. A
dado e onde elas têm sido ausentes frente aparência caótica da cartografia vem de sua
às transformações tecnológicas (e políticas) urgência em analisar e acompanhar processos
em curso. A constatação dessa perspectiva em seus efeitos, enquanto saídas possíveis
ativa, dinâmica e também crítica importa na são precariamente esquadrinhadas: uma
medida em que nos impede do equívoco de paisagem que muda no momento em que é
vir a, meramente, enumerar e julgar de forma desenhada, a partir de ângulos distintos. Por
binária (como correta ou errada, fatal ou isso, mesclamos artigos, quadrinhos, análises,
passageira, adequada ou insuficiente etc.) cada gráficos, fotos, entrevistas, seminários
uma daquelas respostas e ausências. Por se transcritos, comentários e relatos de pessoas
tratarem de atores políticos ativos na História, que falam de muitos lugares do mundo, usam
suas respostas são sempre provisórias e diferentes estilos e trazem concordâncias
suas ausências nunca são apocalípticas: elas e controvérsias: em comum, todas vivem
interferem na realidade que as transforma e e sonham diferentes aspectos da luta pela
vice-versa. democracia no ar.

O mesmo deve ser dito sobre as análises Organizado como cartografia, esse
que se seguem: nada imparciais ou livro contém três entradas, consideradas
desinteressadas, elas não se prestam a importantes eixos temáticos para pensarmos
somente catalogar mudanças, mas com os principais desafios e possibilidades

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apresentados às rádios comunitárias e livres Bravo (Resignificando a tecnologia) demonstra
no contexto das mais recentes mutações que a primeira desmistificação é a de gênero
tecnológicas: Convergências; Redes e espectro; (“Você sabe como consertar um transmissor de
Rádio digital. Elas coincidem com os temas das rádio?!”) e a segunda é convencer que qualquer
três mesas de debate realizadas pelo Programa tecnologia pode ser apre(e)ndida por quem
de Legislação e Direito à Comunicação da quer que seja (como ela, uma antropóloga de
AMARC Brasil, em 2015 e 2016, intituladas formação). Da apropriação do hardware para
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais: a do software, a equatoriana Clara Robayo
suas falas – de especialistas e radialistas (Rádios comunitárias e Software Livre) discute
comunitários, técnicos e ativistas, convidados a urgência do uso de códigos abertos pelos/as
e público – finalizam cada uma das entradas comunicadores/as populares. Ela inicia falando
sem, contudo, fechá-las: sua leitura revela da similaridade de princípios (autonomia,
portas, janelas e túneis subterrâneos entre os horizontalidade, colaboração) entre os dois
três temas. movimentos e de como a intensificação do
diálogo é imprescindível para a promoção de
Logo no primeiro texto da entrada uma comunicação verdadeiramente livre: isso
Convergências, Nils Brock (Convergência significa quebrar as caixas pretas impostas
midiática: a história de uma apropriação popular) pelas corporações de tecnologia, inclusive por
põe em xeque os ufanismos em torno de um razões de segurança e privacidade para atores
processo que tem sido capitaneado pelas sociais sensíveis como as rádios comunitárias
empresas de mídia e de telecomunicações: se, e livres, em frequente embate com os poderes
por enquanto, a maioria tem experimentado estabelecidos. Já a colombiana Cláudia Arango
a convergência midiática como fetiche (Percepções do desenvolvimento de práticas
tecnológico e mais opções de consumo, o sociais e políticas no entorno da radiodifusão
pesquisador alemão conclama que as rádios comunitária e livre na América Latina) parte de um
comunitárias façam uso do seu potencial panorama legal regional para tratar das lutas e
organizativo para que as comunidades conquistas recentes do movimento pelo direito
ocupem todas as demais tecnologias de à comunicação, com foco nos casos brasileiro
comunicação, criando TVs, provedores de e colombiano. Sob uma (até hoje vigente) lei de
Internet e telefonia celular comunitárias. radiodifusão de 1962, as nascentes rádios livres
Porém, a total apropriação das possibilidades e comunitárias brasileiras amargaram anos
da convergência só é possível com uma na “alegalidade” até que uma lei específica
necessária desmistificação e apropriação da surgisse em 1998: suas duras restrições
técnica: a partir de sua experiência com oficinas terminam por desconfigurar a radiodifusão
de manutenção de rádios, a chilena Loreto comunitária no país. Já na Colômbia, apesar

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de ter a lei mais antiga da região e contar Camila Novaes. A desenhista reagrupa, em duas
com políticas públicas para o setor, as rádios páginas, diferentes meios de comunicação,
comunitárias sobrevivem com dificuldades atividades e formatos, desde a rua até o estúdio
financeiras e num contexto de guerra interna, de transmissão, para demonstrar a riqueza de
no qual, inclusive, podem desempenhar um intersecções e convergências comunicacionais
papel central na (re)construção da paz. O texto possíveis.
do professor Guilherme Figueiredo (Trajetórias,
palavras e silêncios indígenas na “key note” da A segunda, Redes e espectro, é a mais
AMARC) antecede as falas da mesa de debate extensa dentre as três entradas, talvez por
sobre Convergências duplamente, já que tratar da própria infraestrutura (rede) e da
comenta a participação de dois indígenas no base tecnológica (espectro) através das quais
seminário promovido pela AMARC: o texto são realizadas a convergência e a digitalização.
é uma oportunidade para conhecermos a Uma das intenções foi reunir apropriações
experiência da livre Rádio Xibé, da qual eles três criativas das redes e visões inovadoras sobre
participam. Trata-se de uma rádio itinerante o espectro. E, de cara, para quem acha o tema
no coração da Amazônia, que vive a circular por difícil, Luciana Zanotto bolou um infográfico
aldeias, escolas e comunidades das cercanias autoexplicativo para ajudar na leitura dos
da cidade de Tefé, já considerada um polo de debates sobre o espectro. Em seu texto, Bruna
comunicação livre na região: é quando nos Zanolli (Espectros feministas no panorama de
deparamos com outros significados para rádios comunitárias e livres) disseca o espectro
convergência: de culturas, saberes, etnias. a partir de perspectivas feministas que
Nos debates entre os sete convidados da buscam ampliá-lo através dos feminismos:
referida mesa de debate (mais as intervenções uma lógica circular para quebrar uma outra:
e perguntas do público) realizada em Teresina a participação de mulheres nos meios de
são apresentados outros muitos significados comunicação e tecnológicos com a mediação
possíveis e, principalmente, os limites e a referência de homens. O artigo de Thiago
da convergência midiática. Na entrevista Novaes (A Gestão Dinâmica da Esfera Pública e
concedida à jornalista Dilliany Justino o Espectro Livre) trata de uma nova concepção
(Convergência midiática: uma realidade de todas de gestão do espectro: refutando o usual
e todos?), a afro-empreendedora Negra Linda argumento da escassez e da interferência,
fala de lugares onde o rádio analógico é ainda o pesquisador discute a novíssima situação
a principal tecnologia para as convergências. de tecnologias (como rádio cognitivo e
Por fim, uma conclusão pouco comum dessa rádio definido por software) que partem do
primeira entrada é representada no mapa princípio de compartilhamento do espectro
(cartografia?) mental artístico elaborado por eletromagnético para proporcionar sua

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abundância. Tal ocupação eficaz constituiria as apropriação/ desmistificação da tecnologia
bases para um novo paradigma de construção seja condição necessária, não é a única:
da esfera pública, mediada por equipamentos vem antes e é imprescindível o componente
eletrônicos, além de reabrir a discussão sobre organização/ mobilização da comunidade ou
a função do Estado na gestão do espectro. coletivos. Ora, não é outro o chão comum de
Aí, como alternativas, tem-se ouvido falar de todas as mídias comunitárias: a tecnologia que
duas: Espectro Aberto e Espectro Livre, e quem a encarna é somente questão do momento, da
discorre sobre elas é Adriano Belisário (Espectro necessidade e do desejo dos próprios sujeitos
e Vigilância). Ainda que ambas contestem o coletivos envolvidos. É bem isso o que pensa
modelo monopolístico estatal tendo como base o argentino Gui Iribarren (Redes comunitárias,
as novas técnicas de uso do espectro, elas rádios comunitárias) ao afirmar que “rádios e as
partem de lugares políticos distintos: enquanto redes comunitárias, o software livre, a música
o Espectro Aberto tem tido mais amparo dos livre e até os bancos de troca de sementes são
arautos do livre mercado (como modelo de todas expressões diversas da mesma lógica”:
negócio desregulado) e de pesquisas militares ele remonta suas próprias experiências em
(pró-vigilância), a abordagem latino-americana toda a América Latina para demonstrar as
do Espectro Livre tem como foco a autonomia, muitas simbioses possíveis. Uma delas é
a descolonização tecnocultural e o direito à a iniciativa (já considerada emblemática)
comunicação e expressão, normalmente em que viabilizou telefonia celular comunitária
contextos comunitários. Ao final, Belisário para 16 comunidades ao redor do estado de
elenca exemplos de sucesso do Espectro Livre Oaxaca, no México: seu idealizador, Peter
no continente americano e a nossa coletânea Bloom, na entrevista que concedeu à jornalista
mergulha em dois deles, a partir de relatos em Jaqueline Deister (Telefonia comunitária: uma
primeira pessoa: Ana Martina ((Re)Construindo nova possibilidade no setor da comunicação),
redes comunitárias em Motor City, Detroit) declara que sua “maior inspiração partiu da
descreve sua experiência no Detroit Community organização das pessoas para montar suas
Technology Project, com comunidades pobres rádios comunitárias”. E para aquelas que
da cidade estadunidense de mesmo nome, ficaram interessadas em levar a convergência
enquanto Bruno Vianna (mutirão para redes_a midiática ao limite da infraestrutura de
experiência de Fumaça) detalhadamente comunicação, Nils Brock e Marcelo Saldanha
documenta o processo de implantação de (Rádios Comunitárias – potenciais provedores
redes comunitárias (Internet e celular) na de Internet não comerciais) oferecem um
vila de Fumaça, no interior do estado do politicamente contextualizado manual prático
Rio de Janeiro. Das experiências, ela e ele de como se tornar provedores locais de Internet:
chegam a conclusões similares: ainda que a desde informações sobre a infraestrutura

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

troncal de fibra ótica até a previsão do custo O texto da espanhola Miriam Meda Gonzalez
para o usuário final, passando por requisitos (Breves notas sobre a radiodifusão comunitária
legais, equipamentos necessários, modelos e as tecnologias do rádio digital) complementa
de gestão etc. E, finalmente, o último texto o anterior a partir do panorama europeu:
dessa entrada demonstra que a força de no Velho Mundo, a maioria dos países que
um tema está mesmo em sua capacidade de digitalizaram seu rádio escolheu um padrão
gerar dissensos: pesquisadoras/es e ativistas (DAB) que está fora da disputa brasileira, mas
convidadas/os da mesa de debate realizada seus resultados (positivos e negativos) podem
em Campinas convergem e divergem, entre si trazer elementos para nossa escolha. Mais
e com o público, sobre os posicionamentos e insumos traz a jornalista Dilliany Justino (Rádio
(des)caminhos que as mudanças tecnológicas digital e a importância de tecnologias abertas)
impõem às rádios comunitárias e livres do ao entrevistar Fabs Balvedi, professora e
século XXI. pesquisadora em mídias livres, que coloca
como condição a escolha de um padrão aberto e
Enquanto essa coletânea era finalizada, livre para a digitalização do rádio democratizar
recebíamos a notícia sobre o primeiro país em vez de aprofundar a desigualdade de
a desligar o FM analógico2. Mas, enquanto acesso midiático no país. Por fim, vale a pena
a Noruega abraça de vez o digital, por aqui a conferir como todos os detalhes desse tema
decisão sobre o padrão a ser adotado para a interagem na fala dos participantes da última
digitalização do rádio se arrasta há mais de dez mesa de debate, realizada em Olinda. Daquele
anos. O tema da nossa última entrada, Rádio encontro também nasceu a Carta Aberta sobre
digital, levanta tanto possibilidades quanto o Futuro das Rádios Comunitárias em Tempos
dúvidas para as rádios livres e comunitárias. Digitais, em que a AMARC Brasil declara a sua
Rafael Diniz (O Rádio Digital no Brasil) consegue posição frente à digitalização da radiodifusão
dar conta, num texto conciso e claro, dos partindo dos seus princípios institucionais, por
principais pontos a serem considerados na acreditar que essa é a melhor forma de garantir
adoção entre as tecnologias em disputa no e aprofundar a diversidade e a pluralidade na
país, HDRadio ou DRM: a sua escolha por comunicação.
um padrão aberto é embasada por fortes
argumentos políticos e estratégicos (já outra No anexo, João Paulo Malerba (Dados sobre
estratégia política, que tem como base a a face tecnológica de uma hipotética crise nas
defesa ampla de princípios e não de um ou rádios comunitárias) disponibiliza parte dos
outro padrão, pode ser conferida na fala de resultados de sua pesquisa de doutorado
Francesco Diasio, da AMARC Internacional, “Rádios comunitárias no limite: crise na política
mais acima, na mesa sobre Redes e espectro). e disputa pelo comum na era da convergência

18
midiática”, recentemente defendida e em Disponível em http://
2

www1.folha.uol.com.br/
fase de publicação. A partir de dados de uma mercado/2017/01/1849179-
pesquisa quantitativa e outra qualitativa com noruega-e-1-pais-do-mundo-
a-parar-com-transmissoes-de-
cem comunitárias e livres de diversos tipos e radio-em-fm.shtml. Acesso em
de todas as regiões do Brasil, temos acesso a 27 de janeiro de 2017.

um conciso panorama da atual infraestrutura


tecnológica, do grau de apropriação e dos
usos que elas têm feito de recursos como
webrádio, podcast, redes sociais, software
livres, aplicativos e celulares. Em diálogo
com os textos antecedentes, os resultados
apontam um futuro incerto, mas aberto das
rádios comunitárias e livres: ao modo da
cartografia, um futuro cuja potência está na
indeterminação, na vontade de recriação e na
capacidade de transformar cada nova entrada
em uma nova saída possível.

Nils Brock e João Paulo Malerba

19
Entrada 1

Convergência
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Nils Brock

Convergência midiática
- a história de uma
apropriação popular
P or que falar de convergência das mídias
no ano de 2017? Não foi esse o conceito que
curtem e compartilham ideias, fotos, matérias
e produtos sem se dar conta de que eles
alimentou as ingênuas utopias tecnológicas há também viraram produtos. Foi também antes
uns dez anos, quando a Internet se apresentou do Wikileaks e de Edward Snowden revelarem
como uma promessa de comunicação para um público mundial o nível de vigilância
democrática “imaculada”, a “rede das redes”, online em curso, para espiar Dilma Rousseff,
onde convergiriam todas as mídias? Certo, isso Petrobras e cada um de nós, em potencial.
foi bem antes de o Facebook e companhia terem
convertido todo mundo em consumidores que Curiosamente, num dos documentos

22
Convergência

secretos publicados por Snowden, aparece se durante muito tempo de dialogar com as 1
Mídia Ninja define-se
como “Uma rede [sic] de
também a ideia da convergência, só que, esta iniciativas sociais que começaram a explorar o comunicadores que produzem
vez, etiquetada como “social”. Ele refere-se potencial de novos meios de comunicação. Em e distribuem informação
em movimento, agindo e
ao preocupante interesse da Agência Nacional consequência, perderam o protagonismo. comunicando.” https://ninja.
de Segurança (NSA), dos Estados Unidos, em oximity.com/partner/ninja/
Os protestos da “Primavera Brasileira”, no about A iniciativa chama atenção
analisar o upload de fotos com um sofisticado pública durante os protestos
processo no qual convergem dezenas de ano de 2013, aconteceram primeiro na rua, sociais do ano 2013. Desde
seguiram pelas transmissões via twitcam da então não deixam de polarizar:
informações sociais sobre um usuário. Ou seja, enquanto alguns elogiam a Mídia
a convergência perdeu toda a sua inocência – Mídia Ninja1 e, somente depois, ganharam Ninja como o novo caminho
espaço nos programas de debate dos canais do jornalismo participativo,
em todos os sentidos. outros acham pretensiosa a
comunitários. Não foi diferente na Espanha, sua ambição de ser o ponto
Porém, é difícil alegar que não haja uma onde num primeiro momento o movimento nefrálgico da mídia livre.

convergência, mesmo que os aplausos tenham dos indignados (15-M) se articulou contra a
sido silenciados. Convergem, por exemplo, política de austeridade do governo, sobretudo
diferentes plataformas midiáticas pertencentes nas redes sociais. Aparentemente era mais
à Rede Globo, para que ninguém escape da um caso para demonstrar aonde terminará
última temporada do BBB (Big Brother Brasil), toda a convergência: em plataformas digitais
um evento que não somente ocorre na TV, comerciais que, por um lado, oferecem
mas também em programas radiofônicos, no participação e uma convergência midiática,
impresso, em portais online, hotsites, tweets, mas, pelo outro, controlam os meios de
postagens ou mensagens tipo push. Esse produção, como proprietários ou mediante
“grande irmão” onipresente, filho da Globo, normas e regras impostas unilateralmente. Um
talvez cause ainda mais medo que a NSA, exemplo disso são as fotos “bloqueadas” pelo
porque demonstra o grau de uma propriedade Facebook. Por que uma mulher amamentando
cruzada, insana, algo que o pesquisador dos o seu filho é considerado “inapropriado”?
impérios de comunicação, Tim Wu, chama de
“super monopólios”, que penetram e dominam A distopia parece ser perfeita. Mas
diferentes mercados com o potencial de ficar igualmente existe uma convergência na
nesta cômoda posição por décadas. “contramão” e não somente em nichos de
aficionados por tecnologia. Na Espanha, o
Sabemos que a comunicação não é um produto candidato à presidência do partido da esquerda
de varejo. E deixar a convergência tecnológica Podemos, Pablo Iglesias, ganhou força através
e cultural nas mãos da mídia comercial, da sua participação histórica no programa
empresas de telecomunicação e serviços diário La Tuerka (a porca), emitido desde 2010
secretos será um grande erro. As rádios e por duas emissoras de TVs independentes
TVs comunitárias, por exemplo, esqueceram- e difundidas depois, com muito sucesso, na

23
Convergência

Internet. Podemos, formado apenas no ano de Afinal, com a sua infraestrutura (estúdios, Para mais informações: http://
amarcbrasil.org/amarc-brasil-
2014, hoje é a terceira força parlamentar do antenas, computadores), as rádios serão realiza-seminario-sobre-
país. um ponto de partida muito interessante, não convergencias-midiaticas-no-
piaui/
somente para a digitalização da radiodifusão, Uma versão abreviada foi
Também no Brasil, a mídia independente atua mas também para a exploração de mais meios publicada no Jornal Brasil de
num papel importante para dar novos impulsos de comunicação que possam ser organizados Fato no dia 14 de março de 2016:
https://www.brasildefato.com.
ao debate político. Milhares de rádios livres e pelas comunidades, iniciando uma verdadeira br/node/34427/
comunitárias ampliaram o seu alcance com democratização da comunicação: TV
páginas na web e transmissões ao vivo online. comunitária, Internet comunitária, Telefonia
São práticas emergentes ainda em busca de celular comunitária. Tudo isto já existe e é hora
ampliar a audiência, mas são fundamentais de se apropriar destas possibilidades.
para estimular uma convergência midiática
participativa, baseadas em necessidades e
ideias de comunidades específicas e não em
análises de mercado.

Há dois anos, a Associação Mundial de


Rádios Comunitárias (Amarc Brasil) formulou
uma reivindicação programática: Rádios
Comunitárias em todas as faixas! O tema era
um questionamento da contenção dessas
emissoras em um só canal da banda FM.
Era também o começo da militância para a
introdução do padrão da radiodifusão digital Nils Brock
DRM (Digital Radio Mondiale), uma decisão jornalista e doutor em ciências
políticas (Universidade Livre de
estratégica para frear a introdução de um Berlim). Atualmente, trabalha
modelo exclusivo e feito para atender aos como colaborador internacional
interesses do rádio comercial e, sim, em defesa na AMARC Brasil para apoiar
os Programas de Legislação
de plataformas de comunicação abertas. Nos e Formação. Além disso, é
anos 2015-2016 continuaram estes esforços a consultor para mídia livre e
partir de uma série de seminários intitulados independente e realiza pesquisas
no marco da digitalização da
“O Futuro das Rádios Comunitárias em Tempos mídia colaborando como autor
Digitais”. O primeiro ocorreu no final do ano e correspondente em revistas
2015, em Teresina (PI), e reascendeu a questão (Jungle World, welt-sichten),
produtora Pool de Notícias de
da convergência e das estruturas das rádios America Latina (NPLA) e no
comunitárias. Podcast bilingue +1Café.

25
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Dilliany Justino


jornalista da Pulsar Brasil

Convergência midiática: uma


realidade de todas e todos?
A convergência midiática, atualmente, faz
parte do dia a dia da comunicação. Rádio,
por exemplo, o rádio ainda é o protagonista.
Em muitas comunidades, ele é o único meio
internet, televisão e meios impressos se de comunicação. Ribeirinhos, indígenas e
misturam cada vez mais num processo tanto quilombolas, muitas vezes, só conseguem ter
tecnológico quanto cultural. acesso à internet quando vão para a cidade.

Porém, se pararmos para pensar na Para conhecer mais dessa realidade, a


realidade de regiões mais afastadas dos Pulsar Brasil conversou com Rejane Soares,
grandes centros, que ainda não têm acesso mais conhecida como Negra Linda. A
fácil à internet, fica a pergunta: será que o afroempreendedora e afrodesigner tem o rádio
fenômeno da convergência midiática já chegou como uma de suas paixões. Nesta entrevista,
nesses lugares? Negra Linda fala sobre a importância do rádio
no estado do Amapá.
Quando a questão é a forma de se comunicar
de povos tradicionais que vivem na Amazônia, Pulsar: Como é a sua experiência com o rádio?

26
Convergência

Negra Linda: Eu conheci o rádio através de quilombola, as pessoas têm o seu rádio e elas
um projeto chamado “Fala Juventude” nas acabam sabendo o que acontece através do
escolas, em 2002. O objetivo era despertar o rádio. Você chega na comunidade ribeirinha,
uso da comunicação, o uso do rádio na escola, que aqui tem comunidade quilombola e
e eu fui selecionada a participar do projeto e foi ribeirinha, tem rádio na casa das pessoas
quando eu conheci o rádio e me apaixonei. É da comunidade, quem faz a farinha, quem é
meio difícil sair do rádio depois que tu é picado pescador, quem é desse mundo usa o rádio. De
pelo bichinho do rádio. Eu vim pra uma outra repente, não sei se no Sul, no Sudeste o rádio
vertente, por ser mãe, por ser mulher, por ser tem essa mesma necessidade, essa mesma
ativista, mas o rádio é uma ferramenta que presença, mas aqui no estado do Amapá, no
ajuda a fazer divulgação dos trabalhos que a interior, nas comunidades, as pessoas que
gente tem, das lutas que a gente abraça no dia moram afastadas têm uma comunicação muito
a dia, das experiências, na verdade. grande, uma ligação muito grande com o rádio.
O rádio acaba sendo amigo das pessoas. E, às
Pulsar: Para você, qual a importância da vezes, a gente chega numa comunidade e a
comunicação, do rádio, para o fortalecimento pessoa sabe exatamente tudo que aconteceu
da identidade cultural de um povo? no programa de rádio, sabe o dia da vacina,
sabe o dia da consulta, sabe o dia que vai ter
Negra Linda: O rádio é instantâneo, o rádio
uma chamada escolar, sabe tudo. Então o rádio
entra em lugares onde a internet não entra,
aqui, onde eu moro, pra fortalecer a identidade,
onde não tem Wi-Fi, onde não tem WhatsApp.
pra contribuir no dia a dia, pra entreter, ele é
Às vezes, você vai na casa de farinha dentro de
uma figura presente e importante. Eu acredito
uma comunidade e o rádio está lá, acompanha
que por mais que a internet vá se modernizar
tudo que acontece na cidade, no mundo.
cada vez mais, que o acesso seja cada vez
Apesar de o mundo estar muito moderno,
mais forte na vida aqui, na capital, o rádio na
pra gente que vive aqui na Amazônia o rádio
Amazônia, aqui no Norte, ele tem uma raiz,
é primordial pra essa comunicação, pra essa
uma ligação muito forte com as pessoas.
troca de conhecimento e esse fortalecimento
da identidade. Às vezes, quem está no meio do Pulsar: Então, mesmo nos dias hoje, o rádio
mato não tem noção do que está acontecendo continua sendo muito mais importante que a
aqui na cidade, das questões políticas, das internet na Amazônia?
questões econômicas, mas o rádio consegue
levar pra essas pessoas informações super Negra Linda: Com certeza. Aqui, por
importantes, por exemplo, de saúde, educação, exemplo, pra chegar nas comunidades, ou você
de comunicação, de troca, de encontro. Aqui, vai de canoa, ou de barquinho, ou pela estrada
onde eu vivo, o rádio chega na comunidade de chão. Aí você chega numa comunidade

27
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

quilombola, todo mundo tem seu radinho, prol desse fortalecimento da nossa identidade,
eles sabem quem são os apresentadores, eles e desse cuidado com a ancestralidade através
sabem quem são as pessoas que atendem disso. No momento que as pessoas falam,
o telefone, eles sabem os assuntos que são no momento que as pessoas comunicam, no
tratados, eles perguntam: mas aquela situação momento que as pessoas divulgam, a gente
que a gente escutou no rádio é verdade mesmo? está trabalhando especificamente pra nós, a
Então, o rádio é muito presente na nossa população negra, mas está trabalhando com
realidade por conta de como nós convivemos as pessoas que não têm conhecimento, na
aqui, como nós nos comunicamos, como nós verdade, do que é essa ancestralidade. Além
chegamos às áreas mais distantes. Isso não de ser essa energia maravilhosa, além de
é uma realidade só aqui do Amapá, é uma ser fruto de lutas e lutas, nós sabemos que
realidade da Amazônia como um todo. O nosso vamos morrer, outras pessoas vão vir e ela
sistema aqui de convivência, de comunicação, vai estar presente, algumas pessoas não têm
ele é feito muito, muito mesmo por rádio. noção disso. Nem todo mundo conhece a nossa
história, nem todo mundo conhece a nossa
Pulsar: Você acredita que os meios de luta. Então o rádio, por ser de fácil acesso, por
comunicação são importantes para fortalecer ser instantâneo, por mexer com a imaginação,
a questão da ancestralidade nas comunidades ele tem um papel que a gente diz aqui que, com
quilombolas? certeza, é fundamental pro cuidado específico
da nossa ancestralidade e, automaticamente,
Negra Linda: Pelo menos aqui no Amapá, nós
da nossa identidade, da nossa luta, da nossa
tínhamos um programa chamado “Tambores
resistência, da nossa sabedoria, o nosso saber,
do Meio do Mundo”, ele era um programa
o nosso fazer, o nosso ser população negra em
específico pra essa população. As pessoas
pleno século XXI, enfrentando cada vez mais a
conseguem compreender hoje a realidade
questão do racismo, a questão do preconceito,
da população quilombola, da população de
a questão da exclusão. Sem a ancestralidade
terreiro, das mulheres negras. Existem dados
nós não conseguiríamos ter essa organização,
que mostram que a nossa população negra
essa estrutura, essa postura política que a
tem, sim, dificuldade de acesso e esse acesso,
gente tem no dia de hoje.
essa luta toda por acesso, ela é ancestral,
ela não começou hoje, ninguém acordou hoje Pulsar: Com a falta de representatividade de
de manhã e disse “vamos lutar”, essa luta boa parte da nossa população na grande mídia,
vem acontecendo há muito tempo. Então, o você acredita que as rádios comunitárias são
nosso povo consegue se fortalecer através do importantes no sentido de preservar essa
rádio? Consegue sim. As pessoas acabam se identidade?
comunicando e sabendo do que acontece em

28
Convergência

Negra Linda: Verdade, não tem mesmo. É não é vista no eixo Sul, Sudeste, aqui, na região
muito bom pautar esse assunto porque a gente Norte, o rádio acaba sendo parceiro.
está acostumado com Sul e Sudeste, e o povo
esquece Norte e Nordeste, principalmente Pulsar: E qual é a relação dessas comunidades
a Amazônia. A mídia livre, a comunicação com os outros meios de comunicação?
comunitária, ela é feita através da população, da Negra Linda: Aqui a gente tem o acesso à
própria comunidade, ela tem uma importância internet, WhatsApp, Facebook, às redes sociais
porque não deixa morrer isso tudo. A grande como um todo, e Wi-Fi na capital e alguns
mídia pode vir e abafar, encher a cabeça municípios. Aqui, no Amapá, por exemplo,
da gente com as coisas que eles querem, nós temos 124 comunidades quilombolas,
que o mercado pede, que é o que vende, é o nem todas as comunidades têm a questão
que eles precisam, que o capitalismo, na da telefonia, nem todas as comunidades têm
verdade, impõe, mas a comunicação popular acesso à internet, então as pessoas têm que
e comunitária ela tem um papel muito bacana vir pra capital pra ter acesso. É por isso que
porque ela sai desse eixo e ela vai pro dia a dia quando eu digo que o rádio aqui é importante,
das pessoas, ela consegue mostrar a realidade, é que o rádio, além de ser um parceiro antigo, é
coisas que a gente não vê na televisão e escuta de fácil acesso pra gente aqui, as comunidades
nas rádios comunitárias, músicas que a gente conseguem utilizar o rádio muito mais do que
não vê na grande mídia e a gente escuta na a internet. A gente está numa capital, mas ao
rádio comunitária, assuntos que a gente redor dessa capital tem um povo que só tem
não vê na grande mídia, a gente vê na rádio acesso à internet quando vai pra cidade. Em
comunitária. E essa liberdade que a gente tem
relação às outras tecnologias, o rádio aqui
na comunicação popular e comunitária, de falar ainda é vencedor.
de assuntos que são nossos e do nosso jeito é
muito importante. A gente tem um universo
que é muito nosso e que a grande mídia não vai
conseguir mostrar, mas com o rádio a gente
consegue isso, e nem precisa mostrar com
imagens, é mostrar de uma forma que entre
na cabeça das pessoas, vai pro coração, vai Dilliany Justino
é jornalista formada pela
pra alma e as pessoas conseguem entender e Universidade Federal
respeitar. E acaba ajudando na transformação. Fluminense. Ela vai da fotografia
Comunicação é uma palavra muito pertinho de ao rádio, sempre com foco nos
direitos humanos. Atualmente,
transformação. Então o rádio pra gente que faz parte da equipe da Agência
tem o dia a dia, que tem uma realidade que Informativa Pulsar Brasil.

29
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Loreto Bravo

Resignificando a
tecnologia
"V ocê sabe como consertar um
transmissor de rádio?” Essa é a pergunta
ver se é verdade”. O que me incomoda na
pergunta é que, logo depois, eu tenho que
típica que me fazem, em tom de surpresa e provar que sou capaz.
descrença, quando eu chego em uma rádio
comunitária para consertar o equipamento. Claro que é fácil para mim. Basta começar
Mas não é a pergunta que me incomoda, e sim a fazer algumas perguntas sobre as
o tom, e, principalmente, a expressão em seus possíveis causas da quebra do transmissor e,
rostos. imediatamente, a situação se reverte.

Geralmente, as mulheres expressam alegria Os homens percebem que eles não sabem
e curiosidade quando me veem chegando com responder e as mulheres começam a relatar
as minhas ferramentas e minha segurança, acontecimentos isolados, que parecem não
enquanto os homens fazem cara de dúvida, ter importância, mas acabam sendo mais
sobretudo com uma atitude desafiante “para precisas: “Naquele dia, choveu durante a

30
Convergência

tarde e ouvimos um barulho na rádio”. para diagnosticar um problema e, em muitos


casos, corrigi-lo. Quando as pessoas me
Enquanto isso, os homens procuram perguntam como eu aprendi, respondo que
argumentos mais técnicos, que geralmente são aprendi fazendo, perguntando, estudando
frases que ouviram e repetem sem realmente por conta própria e com outras pessoas que
saber o que estão dizendo: “não, não, não, o compartilham seu conhecimento. Então,
que aconteceu é que existem muitas antenas para mim, não se trata de um negócio,
de radioamador acima do edifício municipal e mas de um conhecimento fundamental a
que causam interferências”. ser compartilhado. O curioso é que, após o
reparo do computador, me batizam como
Aí, a confusão começa. Eu dou razão às
“engenheiro” (note o gênero!), não menos
mulheres e explico aos homens porque
que isso. Na realidade, minha formação
não faz nenhum sentido o que eles estão
profissional é como antropóloga - apaixonada
dizendo: “Certamente caiu um raio e queimou
por rádio comunitária!
o transmissor, porque os equipamentos de
radioamador transmitem em frequências Já estou há oito anos nisso, e aprendi que a
completamente diferentes da rádio FM, coisa mais importante não é ensinar alguém a
portanto, é impossível causar interferência e soldar ou calibrar uma antena, mas transmitir
danificar o transmissor”. segurança de que tudo pode ser aprendido,
sem a necessidade de ir para a faculdade e
Depois disso posso começar a trabalhar,
ter um diploma de engenharia. Outra coisa
sempre explicando o que estou fazendo para
que eu aprendi é que os conhecimentos sobre
ver se alguém se anima a perguntar e olhar
radiofrequência são como um buraco negro
ao redor sobre os aspectos técnicos da rádio,
no universo, cercado por mitos difíceis de
porque o que precisamos em uma rádio
derrubar. Como exemplo, conto um deles.
comunitária não é apenas de bons locutores
e apresentadores, mas também pessoas As pessoas sempre me perguntam qual é
treinadas em “’tudologia’ de rádio comunitária”: o maior transmissor que eu posso construir.
programar, locutar, operar equipamentos, Elas se referem à potência, à quantidade de
fazer a gestão de rádio, reportagem, trabalhar Watts, mas eu só trabalho com equipamentos
com a comunidade, saber alguma coisa sobre de baixa potência, de menos de 300 Watts.
eletricidade e eletrônica - coisas básicas. Foi Em seguida, me dizem que querem um assim
assim que começou a se desenhar a oficina de porque eles querem chegar longe, cobrir sua
primeiros socorros para rádios comunitárias. comunidade e todos ao redor, e ainda cobrir
o sinal de outra rádio, de outro povoado. Mas
Eu não sei muito, mas o que sei é suficiente
a questão não é essa. Eu já vi equipamentos

31
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!
Convergência

de 8 Watts que cobriam cidades inteiras, com projetar como mulher capaz de viver do que Trata-se da Oaxaca Women
1

Radio Platform [Plataforma de


mais de 200 mil habitantes, e equipamentos gosta de fazer. Agradeço a todas as mulheres Rádio das Mulheres de Oaxaca,
de mil Watts que só cobriam 15 quilômetros radialistas. em tradução livre]: https://
palabraradio.org/
quadrados. Parte deste trabalho é derrubar
esses mitos. Mas o maior desafio tem sido
o de fazer o que eu gosto sendo mulher.
Quando eu seguro uma broca ou uma serra,
imediatamente aparecem três homens para
me ajudar, como se eu não fosse capaz de
fazê-lo.

Muitas vezes eu tive que realizar oficinas


para construir transmissores de rádio FM
e antenas a partir do zero. O interessante é
que os homens sempre acabam fazendo a
antena porque é uma obra de brocas e serras,
enquanto as mulheres ficam com a soldagem
de centenas de pequenos componentes num
circuito impresso. Aí entendemos porque
a divisão de trabalho é opressora para as
mulheres. A primeira imagem que me vem à
mente são as grandes fábricas de eletrônicos
na Ásia, onde milhares de mulheres perdem
a visão depois de anos soldando as partes Loreto Alejandra
Bravo Muñoz
internas de televisores, aparelhos de som, se autodefine comunicadora
ou realizam atividades semelhantes, porque feminista e hacker, é conhecida
acredita-se que nós, mulheres, só servimos como Maka Muñoz e mãe de uma
menina de 4 anos. Tem formação
para fazer o trabalho mecânico, que não em Antropologia Social, Arte
envolve pensamento. Comunitária e Comunicação
Popular e Comunicação e
Então, para mim, a Plataforma1 é um sonho Gênero. Em 2006, fundou
Palabra Radio. Atualmente,
transformado em realidade. É o espaço que vive no México e tem atuado
precisamos para não nos sentirmos sozinhas. como consultora, produtora
Para construir alianças e consolidar as de conteúdos radiofônicos,
facilitadora de processos de
experiências de todas as outras companheiras comunicação comunitária e de
radialistas. É este espaço que permite me capacitações em software livre.

33
Ilustração: Camila Novaes
Texto: Nils Brock
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Clara Robayo

Rádios comunitárias
e Software Livre
Nós quisemos propor espaços pra escutar e conversar; e isso
nos permitiu a rádio1.

F alar das rádios comunitárias não é falar


de um grupo isolado de pessoas que ficam no
construção coletiva horizontais, fala quem tem
algo a dizer.
meio do nada, fazendo rádio. No II Encontro
de Rádios Comunitárias e Software Livre, Comecemos, então, por identificar termos:
conheci algumas experiências que permitem a construção coletiva, horizontal e o falar. O
definição e, inclusive, a fusão da comunicação que isso tem a ver com rádio? A melhor forma
comunitária e do Software Livre. de permitir a participação é sair às ruas com
um microfone; permitir às pessoas que nos
Nathalie Espitia, que faz parte do Noise Radio, contem suas histórias, anedotas, relatos,
na Colômbia, afirmou que, nos espaços de versões da sua realidade.

36
Convergência

Cria-se um discurso, vai pelas ondas de conhecimento. Como chegar a exercer 1


Nathalie Espitia, de Noísradio,
deu essa declaração no
hertzianas e, assim, mais ouvintes podem uma comunicação livre? Existem formas II Encontro de Rádios
conhecê-lo e mais bocas, difundi-lo. Inclusive de investimento coletivo que permitem aos Comunitárias e Software Livre,
Quito, Equador.
o nível de construção pode ir além de, meios comunitários funcionar sem ter que se
simplesmente, dar voz, pois a comunicação comprometer uma linha editorial.
popular e comunitária deveria:
Uma rádio comunitária do Equador, na
• Possibilitar que cidaadãos conheçam Amazônia, pediu colaborações dos seus
ferramentas (físicas e digitais) que lhes ouvintes para enviar saudações e para fazer
permitam se expressar de uma maneira anúncios importantes. Recebia doações
livre; dos seus ouvintes. Conseguiram que as
comunidades se apropriassem da rádio.
• Permitir o acesso à informação pública
para dar transparência ao trabalho das Estudantes de Comunicação Social do
instituições públicas; Equador, ao não ter recursos para fazer
pesquisas sobre os meios comunitários
• E, sobretudo, envolver as pessoas na nacionais, organizaram eventos ou venderam
construção da agenda midiática. comida para juntar dinheiro.
Juan Pablo Gayá, Rádio Cuym, na Argentina, É possível sustentar projetos comunitários
comentou que seu coletivo nasce da que não dependam de empresários para
necessidade de que cada pessoa tenha o produzir conhecimento e compartilhá-lo com
direito de relatar-se e não de ser relatado. os ouvintes. Tal como faz o movimento da
Pois comento que nos grandes meios de Cultura Livre.
comunicação aparecem expertos contando a
realidade, nossa realidade, sem perguntar- No Software Livre, os programas são
nos o que nós pensamos. criados em comunidade, de forma colaborativa
e compartilhados para que mais pessoas
Somemos mais termos: direito a se relatar, possam aproveitar seus conhecimentos e
a se expressar, contar. A comunicação códigos e, inclusive, corrigi-los.
comunitária, sem dar-se conta, pratica e
exerce os princípios do Software Livre. Este No modelo tradicional de comunicação,
é um assunto político, mais do que técnico. A olha-se para o receptor como alguém que
democratização da palavra tem muito a ver aceita a informação e a processa. Embora
com a democratização da tecnologia. Mas, vários teóricos reconheçam que o modelo E
sobretudo, tem a ver com a maneira de trocar (emissor) > M (mensagem) > R (receptor)
o modelo tradicional de negócio e produção caducou, os meios de comunicação ainda

37
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

não incorporaram as pessoas como parte da a comunicação seja um direito que possa ser
construção das notícias, vendo-as como um exercido sem ter que pedir licença.
mero número no seu ranking de audiência.
No Software Livre se fala de comunidade.
Fala-se que a Internet permite que mais “Não nos liberamos sozinhos, o fazemos com
pessoas participem e alguns portais pedem ao a comunidade” afirmou Juan Pablo Gayá, da
usuário que compartilhe suas opiniões pelas Radio Cuyum, da Argentina; já Xavier Macas,
redes sociais, que mande suas fotos ou que produtor da Flacso Radio, falou de se sentir
baixe seus conteúdos. Que diferença tem isto como numa família.
com a possibilidade de telefonar para algum
meio de comunicação tradicional, enviar–lhe O Software Livre forma uma grande família,
cartas ou mensagens? Onde está a verdadeira composta por muitas redes de trabalho
participação da audiência? coletivo: uns criam os programas e outras
pessoas os usam, outros fazem tutoriais e,
A fortaleza do Software Livre é a claro, os comunicadores e jornalistas são os
que os difundem.
comunidade
A sociedade não está composta de fontes
Na internet as pessoas são chamadas
e, sim, de pessoas criativas que podem
de usuários, quer dizer, alguém que usa
contribuir. A comunidade de radialistas do
informação. Outros autores já falam do termo
Software Livre não é quem usa um ou outro
prosumidores, que consomem-produzem
programa, não são técnicos. São os que lutam
o conteúdo. Porém, ainda que o meio de
por democratizar o discurso.
comunicação tenha uma página web ou redes
sociais, isso não democratiza a participação. Santiago Garcia, coordenador de Radios
Isso acontece quando se permite que mais Libres – um projeto de Radialistas Apasionadas
vozes participem na construção do conteúdo. y Apasionados, um espaço de formação e
Os meios comunitários fazem isso, como os de debate em torno das tecnologias e da
que existem em muitos cantos da América cultura livre – explicou que a democratização
Latina, e um exemplo disso é a Wambra Radio. da comunicação começa pela prática da
É uma rádio comunitária feita por jovens em comunicação livre. Começa pela defesa dos
Quito, Equador, que, como diz Jorge Cano, bens comuns digitais: o espectro radioelétrico,
estão pesquisando como implementar o que está privatizado ao longo de toda a América
pensamento livre no seu ambiente. Falam Latina.
em estabelecer pontes entre as diferentes
atuações das organizações sociais do país. Um exemplo claro disso é El Salvador.
Por sua vez, estão na luta constante para que No ano de 2016, reformou-se a Lei de

38
Convergência
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Telecomunicações e os meios comunitários Ferramentas para proteger a sua


e públicos começaram a ser reconhecidos. segurança
Angélica Cárcano, da Rede ARPAS, El Salvador,
afirma que a comunicação comunitária Um médico que, depois de cada procedimento,
implica em oferecer o direito à comunicação não troca a agulha utilizada, seguramente, é
às comunidades as quais esse direito tem multado ou demitido do hospital, pois põe em
sido negado. Reconhece as rádios como risco a vida de seus pacientes. Um jornalista
sujeitos políticos, uma alternativa ao sistema que não protege suas fontes as está colocando
hegemônico de comunicação. As rádios em perigo.
comunitárias denunciam e acompanham as
lutas dos movimentos sociais. Quando um serviço é gratuito é
porque você é o produto
Incorporado já ao discurso, a filosofia da
liberdade é a luta por espaços onde possamos A defesa de nossa informação digital é uma
expressar-nos. A luta seguinte é a da liberação luta pendente. Empresas como Facebook ou
primeira dos equipamentos com os quais nos Gmail lucram com os dados de seus usuários
expressamos, como os computadores. Os e os vendem.
grandes monopólios da tecnologia, durante
Comunicadores comunitários que
anos, têm acostumado as pessoas a ter uma
manejam informação sensível deveriam
caixa preta com a qual trabalham. Poucas
usar ferramentas que protejam seus
pessoas sabem como é feita, tampouco a
comunicadores para evitar a espionagem.
adaptam às suas necessidades. Muitos dos
jornalistas se conformam com que não tenham Existem alternativas, como o projeto Tor.
vírus. Existe uma distribuição para levar em USB
chamada Tails, um sistema operacional
A gente não pode esquecer que, como
que permite navegar anonimamente, de
jornalistas e como comunicadores, manejamos
qualquer computador. Basta conectar o USB
informação sensível. Às vezes, conseguir uma
e o computador funcionará com um novo
entrevista demora meses. Porém, mantemos
sistema operacional: https://tails.boum.org/.
os dados num computador com um sistema
Desse modo, tem-se todas as ferramentas
operacional que não sabemos quem terá
para bater papo, enviar correios seguros e
acesso à informação. É como se déssemos
navegar pela Internet. Para conversar sobre
nossos dados bancários a todo mundo.
temas sensíveis, existem páginas que geram
um correio eletrônico temporário para ser
descartado depois do uso.

40
Convergência

Seu correio eletrônico também pode cifra- tradicional, pensam a comunicação desde 2
http://rafael.bonifaz.ec/
blog/2013/10/encriptar-correos-
lo com um sistema de senhas. Rafael Bonifaz, a sociedade. Envolvem a audiência/ouvintes con-pgp/
ativista do Software Livre, explica o processo em todos os seus processos de produção
passo a passo de como aproveitar o sistema de conteúdo, desde levantar dados sobre os
GPG, para cifrar a comunicação:2 problemas com as pessoas de seu bairro.
Percebem a Internet como uma ferramenta,
O mais importante é gerar senhas seguras. não como a única fonte de conteúdo. Protegem
Uma boa senha é longa, tem número, suas comunicações com ferramentas livres de
caracteres especiais, maiúscula. O melhor é segurança digital.
criar senhas que não tenham nada a ver com
você. Nunca escrever a data de seu aniversário As rádios comunitárias são os meios
ou o seu nome, por exemplo. de comunicação que mais lutaram pela
democratização da terra, do ar, da água, dos
Para o radialista comunitário, existe uma bens comuns; é hora de que, no terreno digital,
alternativa perfeita: EterTics/GNU. Esta os meios comunitários, as organizações e a
distribuição pode ser baixada da internet e vem sociedade em geral exijam a democratização
com todas as ferramentas para fazer rádio da tecnologia para, assim, promover o fluxo
de um jeito seguro, além de contar com uma constante do conhecimento.
comunidade grande muito ativa que resolverá
qualquer problema que você tenha. No seu
portal, liberaturadio.org, você encontrará
uma lista de tutoriais sobre:

• Como estabelecer uma comunicação


digital segura;

• Como produzir um áudio com Software


Livre;

• Como montar uma rádio em linha online; Clara Robayo


é jornalista digital livre e
capacitadora em novas
• Automatização da emissora; tecnologias livres de informação
e comunicação. É integrante da
• Tecnologia radial. Red de Radios Comununitarias y
Software Libre e ocasionalmente
As iniciativas que envolvem o público dos escreve para Radios Libres.
meios comunitários hackeam o jornalismo

41
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Claudia
Nuñez Arango

Percepções do desenvolvimento
de práticas sociais e políticas
no entorno da radiodifusão
comunitária e livre na América Latina
N ós, que estamos na mobilização social
pelo Direito à comunicação e a Liberdade de
A consciência social impulsionada pela
força arbitrária dos monopólios econômicos
Expressão, reconhecemos que é a própria e políticos empurra os pequenos grupos
força das pessoas que potencia e motiva os sociais à mobilização pela reivindicação
diversos desenvolvimentos comunicativos. de seus direitos. A concepção das políticas
As comunidades e os grupos organizados são locais e a articulação de uma continental têm
produtores de práticas que nascem do desejo uma interessante interferência na forma de
por alcançar algum ideal social que lhes inclua construir coletivamente uma nova visão de
ou lhes permita construir outros mundos comunicação, inclusive, e isso está se refletindo
possíveis. no movimento pelas rádios comunitárias e

42
Convergência

livres da América Latina. Joaquin Salcedo, criador fundador de uma das 1


http://www.banrepcultural.org/
radio-sutatenza
escolas de rádio de maior sucesso no mundo.
É no espaço, no antes e no durante dessa http://smpmanizales.blogspot.
2

Para a sociedade colombiana em áreas rurais com.br/2014/06/50-anos-de-


mobilização que as práticas radiais têm um e em meio ao conflito armado2 esta era uma conflicto-armado-alfredo.html
impulso criador e justificador pela produção de maneira de aprender questões básicas, como
(sobre a história do conflito
armado na Colômbia).
novas ou tradicionais formas de radiodifusão. matemática, saúde, economia e trabalho 3
http://www.banrepcultural.org/
Portanto, esta será uma reflexão um pouco espiritual. O projeto terminou em 1994, quando radio-sutatenza
mais levada a estimular novos conteúdos que a Rádio Sutatenza foi fechada e as suas
nos permitam gerenciar um projeto de rádio instalações vendidas à rede de emissoras
com outras habilidades a partir da inclusão, comerciais da Colômbia, Cadena Caracol.
dos Direitos Humanos e da arte, no contexto
das novas tecnologias de informação e dos Outras propostas incluem, por exemplo, a
novos desafios sociais. Fundação Rádio Escola para o Desenvolvimento
Rural (Freder), em Osorno, Chile; o Instituto de
Fica claro que, para a América Latina, foi todo Cultura Popular (INCUPO), em Reconquista,
este processo de mobilização social a partir Argentina; as escolas radiofônicas populares
de determinadas demandas o que deu origem no Equador (Erpe); Rádio Onda Azul, em Puno,
a diversas práticas dentro da radiodifusão. Peru; a Associação Cultural Loyola (ACLO), em
Na produção radial basicamente educativa e Sucre, na Bolívia; Rádio Ocidente, em Tovar,
para o desenvolvimento rural, estes processos Venezuela, e as rádio escolas de Nicarágua3.
tiveram uma relação direita com a proposta
popular frente à desigualdade e deficiências O efeito de toda esta mobilização é um
legislativas exclusivas da base social dentro do elemento importante para gerar, por meio de
projeto neoliberal do século XX. reivindicações populares, uma nova maneira
de comunicar com o resto da população,
Experiências como as rádios educativas1 usando o rádio, que tem sido reconhecido
que, na sua primeira década de operação, como um dos meios de mais fácil acesso para
usavam mais de 30 mil receptores, um total as pessoas por sua técnica e produção.
de nove mil escolas de rádio e 19 horas por
dia no ar com 50 transmissores em todo o Ao colocar esta pauta de comunicação com
território colombiano no ano de 1955, sendo ampla força dentro do ambiente estadual,
uma potencial mobilização de conhecimento se abriria a controvérsia com as empresas
para aqueles que não têm acesso à educação privadas de comunicação. Novas propostas,
e conhecimento. possivelmente, seriam colocadas dentro dos
marcos legislativos e na prática radiofônica,
Este projeto é conhecido como Radio como parte dos requisitos estabelecidos pelas
Sutatenza, criado em 1947 pelo padre José

43
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

novas tecnologias de comunicação. Costa Rica, Venezuela e Bolívia na última


década.
A possibilidade de fazer uma divisão dentro
do espectro radioelétrico, lugar onde a Essencialmente, de todas as emissoras
informação viaja através de ondas hertzianas que buscam um espaço dentro do serviço
geradas a partir de uma antena, cujo de comunicações com o objetivo de incluir
monopólio estava condicionado por múltiplos nestes processos pessoas, especialmente
poderes, agora poderia beneficiar diversos de setores vulneráveis. Na maioria dos
atores. Várias empresas de comunicação ainda processos, foi indispensável a participação
têm acesso a esse espectro e ao uso contínuo de líderes comunitários, estudantes,
que está sendo padronizado em uma zona empresas de comunicação, produtores
de controle sobre ela ou, simplesmente, um independentes, reitores de universidades,
monopólio sobre o acesso à informação para diretores, professores de departamentos de
a sociedade civil. comunicação, líderes religiosos, associações
de rádio e televisão comunitárias, que
Por outro lado, o advento de novas tecnologias apresentaram as suas ideias e sugestões.
que foram incorporadas na radiodifusão
sonora, como a Internet, o telefone celular, os A partir deste processo de democratização
transmissores novos e potentes transmitindo dos meios de comunicação e as tecnologias
com alto custo, colocaria a radiodifusão de informação e comunicação, se organiza
em outro plano. Diversas plataformas de o combate mais duro ao monopólio. A
divulgação via Internet permitem guardar divisão equitativa do espectro4 envolveria a
e transmitir programações sobre diversos participação de produções nacionais e locais,
tópicos em todos os cantos aonde chega um além de povos indígenas para que estes
possível sinal. Sem contar também que um dos acedessem a outorgas e concessões de Rádio
serviços de comunicação com mais alcance e TV, bem como universidades públicas.
dentro da população é a telefonia celular, a
Pensaríamos que, com toda esta visão de
maior parte das pessoas têm seu próprio
mundo imposta pelos grandes monopólios
telefone e é um símbolo de status.
de comunicação, implicaria o impulso para a
Como resultado de toda essa nova paisagem, produção de novas práticas na radiodifusão
surgiram propostas e políticas da e pela sonora. Em defesa de seus próprios interesses,
sociedade civil, incluindo a democratização os meios de comunicação privados calcificaram
dos meios de comunicação em alguns países como “lei da mordaça” e alegaram a violação
da América Latina. Foram trabalhados e da liberdade de expressão no Equador.
executados na Argentina, Uruguai, Equador,
Dissociar todo poder econômico e bancário

44
Convergência

da mídia é o marco para um novo modelo vigor até hoje enquanto foram feitas mudanças 4
Um dos pontos mais
destacados está o combate
constitucional no qual a sociedade civil seria significativas. Essa lei basicamente restringe e ao monopólio através de
chamada para fazer parte. O objetivo é a controla o uso do espectro, onde viaja qualquer uma proposta na Argentina
(sendo esta uma das mais
ativação de práticas autônomas, a promoção da tipo de sinal codificado de mensagens escritas, destacadas) que dispõe que
liberdade de expressão, o direito à comunicação imagens, sons ou outras informações, e nenhum operador poderá
prestar serviços a mais de
e à informação usando a linguagem adequada favorece aos meios privados donos de grandes 35% da população, tampouco
para motivar as comunidades ou grupos para orçamentos para transmitir informações gerar concessões por mais de
dez anos e, além do mais, deve
se organizar politicamente. dentro do território nacional. ser reservado 33% dos sinais
radioelétricos, em todas as
Considerando todo o impulso criativo O efeito de todo este impedimento é faixas de radiodifusão, para as
organizações sem fins de lucro
dentro das produções radiofonias, tanto as simplesmente a desobediência. No caso das e onde os povos originários
rádios comunitárias indígenas, dos bairros, rádios, no início dos anos 80, foram capazes possuem do direito a uma
faixa do AM, FM e de televisão
de estudantes, experimentais, entre outros, de organizar-se clandestinamente, graças a aberta, bem como universidades
criaram outras formas de fazer rádio, mas facilidade para obter e construir equipamentos públicas.
também levaram o modelo de negócio às econômicos e, além disso, graças a
comunidades e isso será um desafio para articulações que ocorreram entre a sociedade,
a construção de outras rádios em outros bem como com a universidade, o que gerou
mundos possíveis, como vamos entender mais um grande movimento de radialistas livres,
para frente. que nasceu com força. Depois de um tempo a
opinião pública os colocou como criminosos e
Atualmente, temos uma riqueza de começaram a ser perseguidos pelo governo.
experiências de democratização dos meios Nós as conhecemos hoje como rádios livres.
de comunicação e, ao mesmo tempo,
as consequências do modelo imposto à No Brasil, isto deu origem à lei 9612, no
comunicação em geral. Os efeitos em médio ano 1998, para a radiodifusão comunitária na
prazo têm sido muito importantes e nos deixam banda FM como uma forma de inclusão, mas
um legado de boas e más práticas dentro das também de controle e punição. Na prática,
organizações e grupos de rádio. esta lei colocou as rádios comunitárias dentro
do espaço dos meios de comunicação, mas não
Experiências como a da Colômbia ou do lhes deu força para garantir a conformidade
Brasil, duas histórias bem diferentes quanto com as necessidades das comunidades e
à aplicação das suas leis para a comunicação, organizações. A lei botou todos os jogadores do
levam-nos à mesma pergunta: o que é ou o que espectro dentro de um local de desigualdade
queremos fazer para manter vivo o rádio? e em uma relação assimétrica que obrigou
No Brasil à legislação criada para as os mais “fracos” em termos econômicos a
telecomunicações em 1962 ainda está em procurar diferentes maneiras para manter uma

45
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!
Convergência

concessão – isso sem contar que a lei também foi possível reduzir o número de requisitos
regula o uso de equipamentos e da potência para obter uma concessão, isto é, menos
de transmissão, custos elevados para muitas burocracia. As práticas radialistas não
comunidades nas quais existem necessidades esperam, elas continuam a trabalhar apesar
fundamentais que, como a água ou a saúde, da criminalização das emissoras e do confisco
são quase impossíveis de sustentar. de aparelhos de transmissão. Os grupos são
organizados para manter as informações
A consequência deste tipo de regulação é ativas e a rede é grande. O próprio FNDC
desconfigurar a expressividade e o caráter (Frente Parlamentar pela Liberdade de
genuíno da rádio comunitária, pois muitas são Expressão e o Direito à Comunicação com
forçadas a desistir de suas concessões frente Participação Popular), organizações como
a ordens religiosas e políticas que pagam a AMARC-Brasil e outros grupos ativistas
para pautá-las. Isso descarateriza o sentido estão constantemente organizando a rede e
comunitário, cultural e educacional da rádio debatendo uma representação democrática da
tornando-as semelhantes às comercias. sociedade brasileira dentro das áreas políticas.
Outra questão que dificulta o exercício, Por outro lado, a Colômbia, com a sua lei
mas que também propicia a ilegalidade na 1447, nascida em 1995, foi pioneira na América
radiodifusão é o atraso na burocracia para Latina ao propor reconhecer e conceder
aceder uma outorga e em outros sentidos. licenças a estações de rádio, até aqueles dias,
A possibilidade de usar apenas 25 watts de consideradas “piratas” ou “ilegais”, apesar
potência para funcionar basicamente num raio de estarem desenvolvendo um trabalho de
de 1 km em territórios extensos e acidentados comunicação nas comunidades. O plano técnico
geograficamente é limitante. nacional de radiodifusão, que regula o espectro
A forma de exercer controle sobre de radiofrequências e faz classificação do
as “pequenas” radiodifusoras, que são uso do mesmo, no âmbito das disposições do
estigmatizadas como criminosas, denota uma Ministério da Tecnologia da Informação e das
carga violenta nesta disputa pelo espectro. Comunicações da Colômbia, que, por sua vez,
Os movimentos sociais e vários grupos se regula o sistema de meios de comunicação
organizaram para que uma revisão desta públicos, tem um capítulo especial que se
legislação por parte do governo brasileiro dedica a regulação do espectro radioelétrico
seja feita. Tem sido uma tarefa complexa para rádios comunitárias em todo o território
e que tem tido pouca resposta. O processo nacional.
avança a passos lentos, no entanto, foram A lei prevê a utilização do espectro, a banda,
ganhas pequenas batalhas. Por exemplo, as normas técnicas para o equipamento

47
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de transmissão, os custos operacionais e onde é possível gerar coisas diferentes.


princípios objetivos para a informação. A
radiodifusão comunitária na Colômbia é Na Colômbia como no Brasil, os monopólios
entendida como um serviço público sem fins também têm forte influência sobre a população
lucrativos, de alcance local, considerada como civil e a opinião pública. O seu poder de
atividade de telecomunicações. Está ao cargo do compra lhes permite ficar no ar com todos os
Estado quem presta o serviço no marco de um parâmetros exigidos por lei.
gerenciamento indireto através de comunidades O principal problema das rádios comunitárias
organizadas devidamente constituídas na na Colômbia é essencialmente ligado à
Colômbia5 e têm direito ao uso por um período liberdade de expressão por sua parte no conflito
máximo de concessão de 10 anos. político interno do país. Ao longo dos últimos
Este caráter especificamente comunitário, 37 anos, foram mortos mais de 142 jornalistas,
social, cultural e educacional para o para não mencionar as constantes ameaças
desenvolvimento da cidadania, da promoção e ataques contra empresas de comunicação
da paz e da participação social pode parecer privadas. A manipulação da informação,
muito bom, mas se manter dentro das práticas criminalizando os movimentos sociais e
e produções de rádio comunitária tem sido defensores dos direitos da população, inibe
outra história. o direito das comunidades de se desenvolver
politicamente no seu território.
A desigualdade econômica das rádios faz
com que as produções realizadas dentro da O resultado de muitos anos de guerra interna
comunidade em geral sejam muito semelhantes aponta que, até o dia 1 de Dezembro, a Unidade
às produções de rádios comerciais, tudo com o de Vítimas havia registrado 7,8 milhões de
propósito de colocá-las no mercado, o que lhes vítimas do conflito, entre os quais havia quase
permite sustentabilidade. A necessidade de 6,6 milhões de vítimas de deslocamento forçado,
permanecer dentro de todas as especificações mais de 45 mil vítimas de desaparecimento
e normas exigidas pelo ministério coloca em forçado e aproximadamente 263 mil mortes
segundo plano o objetivo da radiodifusão. As relacionadas com o conflito; a grande maioria
rádios comerciais são mais poderosas porque das vítimas era civil6.
elas são apoiadas por empresas privadas, mas Efetivamente, o governo colombiano e as
isso não significa que a forma de produção FARC EP consideram nas negociações de paz
radiofônica seja determinada unicamente realizadas em Havana, Cuba, no ponto 2 do
pela força econômica, pois também o acesso acordo final7, sobre a participação política e
à informação e ao conhecimento é importante a abertura democrática para a construção da
para a criação de outros universos radiofônicos paz, certos direitos e garantias plenas para

48
Convergência

o exercício da oposição política em geral e e quanto à divulgação sobre o progresso da 5


Decreto 1447 de 1995.
particularmente para os novos movimentos implementação. A campanha educativa inclui https://www.amnesty.org/es/
6

countries/americas/colombia/
que surgem após da assinatura do acordo final, peças educativas para comunicar o conteúdo report-colombia/
como o acesso aos meios de comunicação e do acordo final durante seis meses através da 7
http://static.iris.net.co/semana/
upload/documents/acuerdo-
prontamente a criação de novos espaços para mídia institucional (rádio e televisão) e um ano final-con-las-farc.pdf
dar acesso na mídia aos partidos e movimentos extra para a divulgação e a pedagogia do início 8
2.3.8 Criação de um novo
sociais8. da implementação do acordo final. A Comissão espaço para dar acesso midiático
a partidos e movimentos
de Acompanhamento, Verificação e Resolução político como complemento
Uma estratégia de comunicação será lançada de Diferencias -CSVR- coordenará de maneira ao acordado no marco dos
para promover os acordos de substituição e expedita a ativação de 31 estações de FM
pontos 2.2 e 2.3 sobre acesso
a meios para organizações
motivar as comunidades a construir confiança para que operem no interesse público para e movimentos sociais e para
para participar nos processos de construção apoiar o ensino dos acordos. Uma vez que seja
partidos e movimentos políticos,
respectivamente, o Governo
conjunta aos planos integrais municipais e finalizado o processo de abandono de armas e se compromete a habilitar um
comunitários de substituição, que devem entre em operação ECOMÚN, as 31 estações
canal institucional de televisão
fechada orientado aos partidos
contribuir para melhorar as condições de vida serão geridas por esta cooperativa10. e movimentos personalidade
e do bem viver e uma solução definitiva para jurídica, para a divulgação de
suas plataformas políticas,
o problema de cultivos ilícitos; bem como A base deste ponto sobre a participação no marco do respeito pelas
para destacar o compromisso do Governo democrática, incluindo os meios de ideias e diferenças. Esse
canal também servirá para
e as FARC-EP a contribuir e apoiar esta comunicação, especialmente os comunitários, a divulgação do trabalho das
finalidade. A propagação do PNIS (Programa é a garantia de compreensão deste acordo organizações e movimentos
sociais, para a promoção de
Nacional Integral de Substituição de Cultivos que, por sua vez, permite tanto que a uma cultura democrática de
Ilícitos) e dos mecanismos de participação sociedade civil como o governo garanta a paz e reconciliação e de valores
não sexistas e de respeito ao
comunitárias nas diferentes fases será feita aplicabilidade dos pontos dentro do que foi direito das mulheres a uma
diretamente através de reuniões comunitárias chamado de pós-conflito. Muitos coletivos vida livre de violências, assim
como a divulgação dos avanços
e, indiretamente, através dos meios de de meios de comunicação comunitários, na implementação dos planos e
comunicação, especialmente a mídia local e os jornalistas, mídia em geral foram convocados programas acordados no marco
deste Acordo.
comunitários9. pelo governo para ser parte do processo e 9
http://static.iris.net.co/semana/
garantir a sustentabilidade em longo prazo, upload/documents/acuerdo-
Como ferramentas de divulgação e mas é certamente um convite a repensar as final-con-las-farc.pdf. (p. 102).
comunicação, o rádio desempenha um políticas públicas de comunicação dentro do 10
http://static.iris.net.co/
papel fundamental no que diz respeito “cartel de desinformação” que tem colocado
semana/upload/documents/
acuerdo-final-con-las-farc.pdf
a gerar confiança e credibilidade frente a opinião pública contra este processo, com (p. 191).
ao Acordo Final. O Governo Nacional e informações diferentes ao acordado entre os
as FARC-EP concordaram quanto ao dois atores do conflito dentro do processo de
estabelecimento de um sistema Conjunto de diálogo. A inclusão de meios de comunicação
Comunicações e Pedagogia do Acordo Final alternativos é uma garantia necessária para

49
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

lidar com o desaparecimento dos jornalistas e chegando com tecnologias que não têm rádio
estigmatização do trabalho comunicativo. em sua forma convencional, mas eles podem
oferecer aplicativos que nos permitem colocar
Cada uma dessas legislações confirma as pautas comunitárias em rede.
a dificuldade das comunidades para a
comunicação a partir da perspectiva dos Finalmente, é considerável que a integração
direitos humanos como política de meios de entre as nações para trabalhar como uma rede
comunicação. Expressar os seus desejos, de apoio envolve um desafio ao pensamento e
interesses, informar sobre questões locais, a ação para promover o seu trabalho. Os novos
exteriorizar a sua língua e saberes é a luz que dá espaços de radiodifusão estão lá, nascem de
vida ao processo e aos meios de comunicação todas estas pistas e nos ajudam a fortalecer
como um espaço para a realização, a criação e o movimento entre as rádios comunitárias
difusão de todos os valores locais. e livres no cenário complexo de violação de
direitos. O dever de todos os que compõem
A organização política move todas essas essa rede de desejos, necessidades e sonhos
histórias de vida que conduzem a luta pela é produzir um novo panorama para os dias que
comunicação, mas, paralelamente, deve fluir chegam.
a produção e a criação de outras formas de
fazer e ouvir rádio. Outras aptidões e outras
artes devem ser integradas no processo da
radiodifusão, encontrando a estética própria
para ser colocada dentro desse processo
político.
A convergência dos meios de comunicação
na era da Internet é uma discussão que
deve estar dentro desse movimento. Não
se pode fechar a possibilidade de colocar o Claudia Nuñez Arango
é Colombiana, mestre em
rádio em plataformas em rede, comercias Educação, Comunicação e
ou não comercias, principalmente porque o Cultura pela Universidade
que faz forte um movimento de rádios são, do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e pesquisadora sobre
precisamente, a interação e a convergência rádios comunitárias e livres na
midiática para compartilhar informações América Latina. Atualmente,
com o resto do mundo. As pessoas devem está desenvolvendo pesquisas
e trabalhos práticos em
compartilhar ao máximo as informações e arte sonora para Escola
se fortalecer, os telefones inteligentes estão de Artes Visuais no Rio de
Janeiro e na Rádio Mutirão.

50
Convergência

por guilherme
gitahy de Figueiredo
(Rádio Xibé)

Trajetórias, palavras
e silêncios indígenas na
"key note" da AMARC
“Nossas festas são o movimento da agulha que serve para
ligar as partes do telhado de palha, para que haja um único teto,
uma única palavra”
Nova-Caledônia – Melanésia (MAUSS, 2003)

E ra dezembro, quente e seco, em Teresina.


Em um amplo auditório climatizado da
e Jonas Duarte da Cruz, dois indígenas da
rádio Xibé, partilharam com Beth de Oxum1,
(Foto) Tchimaucu (Sílvio Almeida
Bastos) e Jhacunam (Jonas
Duarte Cruz), na key note do
Seminário.
Universidade Federal do Piauí, a AMARC da rádio Amnésia, a “key note” ou “nota chave” Crédito: Guilherme Figueiredo.
deu as boas vindas aos seus associados/as do evento: o comentário que introduz o tema 1
Saiba mais sobre ela em
e convidados/as do Seminário Convergências central, o tom que afina o debate do evento. https://pt.wikipedia.org/wiki/
Beth_de_Oxum. Consultado em:
Midiáticas. Em seguida Sílvio Almeida Bastos Na programação impressa havia um “ato 09/10/2016.

51
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

falho”, pois nela os indígenas não estariam lado de assembleias e viagens de barco em
na nota chave, e sim antes dela e realizariam que as lideranças visitavam as aldeias ao
um ritual. Felizmente, a falha foi corrigida a longo de extensas áreas) para a ampliação
tempo e tanto as falas quanto o ritual indígena do espaço de articulação do movimento. Ele
foram anunciados como parte da key note. contribuiu para a afirmação de uma nova
As diferenças culturais não entraram no camada de lideranças indígenas “geralmente
evento como enfeite exótico, e sim pautando mais jovem, que dominava mais a língua
a sua comunicação. Os indígenas e mãe Beth portuguesa e claro que estava próxima da
afinaram o Seminário com palavras, ritual cidade de Tefé, da coordenação do Movimento
miranha, canto ticuna e batucada de coco Indígena e da própria Pastoral Indigenista”
de umbigada: mídias e linguagens de um (MACIEL, 2009, p. 122-3). Com o tempo, essas
Brasil nem sempre lembrado convergiram lideranças passaram a dominar as técnicas
no palco da AMARC2. Este texto é uma breve de programação da rádio e assumiram o
apresentação da metade amazonense desta programa.
nova afinação: os indígenas da rádio Xibé, rádio
livre criada em 2006 na cidade de Tefé (AM), Sílvio chegou a Tefé em 2002, vindo da
localizada no curso médio do rio Solimões. aldeia ticuna Porto Cordeirinho do município
de Benjamin Constant, no Alto Solimões. Em
O movimento indígena do Médio Solimões 2004, num contexto de refluxo do movimento da
tem uma longa experiência com o rádio. No década anterior, fundou a Associação Cultural
começo dos anos 1980, a Pastoral Indigenista do Médio Solimões e Afluentes (ACPIMSA),
de Tefé criou o programa “A Voz do Parente” que passou a atuar sobretudo nas quatro
na rádio Educação Rural de Tefé, emissora AM aldeias da Terra Indígena Barreira da Missão.
fundada em 1963 pela Prelazia de Tefé para Em entrevista concedida em 18/11/2007 ao
promover a evangelização e o Movimento de Centro de Mídia Independente de Tefé, Sílvio
Educação de Base que, nessa região, durou afirmou que a Associação buscava fortalecer
cerca de 40 anos. O programa indigenista ia ao as lideranças locais que não se sentiam
ar uma vez por semana e, durante 30 minutos, representadas pelas lideranças regionais:
apresentava músicas, notícias da mídia
relacionadas com a questão indígena, histórias Sua visão, hoje, é de caminhar a comunidade
e mitos, entrevistas e pronunciamentos com suas próprias pernas, com seus próprios
das lideranças indígenas, dramatizações pés. Porque havia pessoas, às vezes, que
e avisos para as aldeias. Segundo Maciel queriam dizer que a comunidade não tinha
(2009), na década de 1990 o programa foi representatividade. Porque, às vezes, eles
uma das ferramentas mais importantes (ao querem representar: uma pessoa dizia “deixa que
eu represento sua comunidade”. Hoje, não. Hoje,

52
Convergência

têm lideranças próprias e vão buscar sua própria show, a rádio pra estar divulgando diretamente. É 2
A notícia dessa abertura
está disponível em: http://
autonomia. Às vezes, já têm liberdade para ir uma coisa muito importante pra nós” (Entrevista xibe.radiolivre.org/content/
falar com uma autoridade, políticos, vereadores do CMI-Tefé com Sílvio Almeida Bastos, ind%C3%ADgenas-da-
xib%C3%A9-abrem-
ou outras autoridades eclesiásticas da cidade. 18/11/2007). Nos últimos nove anos, Sílvio tem semin%C3%A1rio-da-amarc-
Então, isso é uma coisa muito importante para participado das reuniões do coletivo da Xibé e em-teresina. Consultado em:
09/10/2016.
nós, da Associação, que estamos trabalhando ajudou a instalar a rádio livre na universidade. 3
Entrevista publicada em: http://
para que tenham mais o seu valor, resgatar Sua participação mais intensa tem sido voltada prod.midiaindependente.org/
todos seus valores. Porque muita gente diz que à articulação para levar as oficinas de rádio pt/blue/2007/11/403905.shtml.
Acesso em: 15/08/2016.
nós, indígenas, não temos nossos valores. Mas, livre para inúmeras aldeias, assembleias e 4
O projeto A Nave Vai foi uma
entre nós, se não dermos valor a nós mesmos, festas indígenas. Ajudou a aproximar a Xibé expedição composta por 12
vai ser difícil termos valor. Então, em termos da AMARC quando participou do projeto A comunicadores, quase todos
indígenas, de três países, que
disso aí que eu entrei com as lideranças, para Nave Vai4 em 2015 e, em 2016, se uniu à rádio saiu de Quito, em abril de 2015,
eles enxergarem que eles também têm valor, Gralha5 na realização de oficinas de rádio livre no Equador, e atravessou o Peru
e o Brasil até chegar a Tefé,
eles têm seu direito de adquirir tudo aquilo que entre povos indígenas do Paraná. em maio. Nocaminho, o grupo
as comunidades precisam (Entrevista do CMI- foi apresentando e conhecendo

Tefé com Sílvio Almeida Bastos, 18/11/2007)3. A família de Jonas é originária da aldeia as comunidades, regiões,
projetos de mídia e problemas
Benezer, município de Maraã. Bem mais socioambientais enfrentados
Através da ACPIMSA e de outras associações jovem que Sílvio, Jonas começou a participar pelos participantes da viagem,
já que foi possível passar pelas
formadas depois, Sílvio contribuiu, sobretudo, do movimento de rádios livres de Tefé em localidades de quase todos
para o desenvolvimento de projetos e lutas 2014, quando o mesmo estava promovendo eles. O projeto foi facilitado
por AMARC-Brasil, Instituto de
ligadas ao fortalecimento da cultura e da o programa “Juventude em Ação” na Defensa Legal, do Peru, e a ONG
identidade indígena. Promoveu a língua, as rádio Educação Rural de Tefé. Em 2010, a Radialistas Apasionadas, do
Equador. Leia aqui uma notícia
danças, a educação escolar indígena, o cultivo repressão da ANATEL (Agência Nacional de sobre o final da expedição:
de plantas usadas no artesanato tradicional e Telecomunicações) levou à saída da rádio Xibé http://xibe.radiolivre.org/
content/nave-vai. Consultado em
foi também a primeira liderança que levou as da universidade e à expulsão da recém-criada 9/10/2016.
oficinas de rádio livre da Xibé para as aldeias, rádio livre Voz da Ilha da Escola Estadual 5
A rádio Gralha é uma rádio
livre de Curitiba que surgiu em
assembleias e festas do movimento a partir Getúlio Vargas. Logo em seguida, a rádio da 2012, conseguiu seu primeiro
de 2007. Enquanto o programa “A Voz do Prelazia, em solidariedade e buscando renovar transmissor em 2013, desde
2014 vem realizando oficinas em
Parente” era transmitido de Tefé e alcançava a sua programação, passou a oferecer espaço ocupações urbanas e, em 2015,
todos os municípios da região, a rádio Xibé era para esses coletivos de rádio livre que estavam passou a facilitar a criação de
rádios em terras indígenas do
itinerante e podia ser instalada diretamente organizados em torno do Centro de Mídia Paraná. Conheça esta e outras
nas aldeias e assembleias, tornando possível Independente de Tefé. Foi assim que começou, rádios livres em: http://www.
radiolivre.org. Consultado em
a expressão direta das comunidades e de em 2011, o Programa “Xibé” na Rádio Rural, 9/10/2016.
seus representantes locais: “nunca em nosso experiência que teve continuidade em 2014 com
trabalho, desde que eu comecei a lutar, entrei na o Programa “Juventude em Ação”. Na rádio
luta dos povos indígenas, nós tivemos um data AM os coletivos livres improvisaram um estilo

53
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

próprio de programação, que buscou reduzir ao Jonas: Lá a gente compara o homem branco
máximo a fronteira entre locutores e ouvintes. com o homem selvagem, que não tem capacidade
Indo ao ar ao vivo durante uma hora ao final de entender o que é isso e aquilo. Eu já estudei,
das tardes de sábado, quase todo o programa já terminei o meu estudo, e tenho a capacidade
era feito de relatos, debates e, principalmente, de ver que o homem branco é... não vou criticar
entrevistas. Eram lançados no ar convites vocês...[participantes do programa, mas...]
para os ouvintes irem até a rádio, mas o porque vários homens brancos são um pouco
que funcionava mesmo era o “boca a boca”. estúpidos, com preconceito contra todo tipo de
Praticamente qualquer pessoa que aparecesse raça: índio, negro (Programa “Juventude em
se tornava entrevistado do programa, sem que Ação”, 12/04/14).
houvesse uma preocupação muito grande em
Desde então, Jonas não deixou mais de
selecionar pessoas “importantes” ou com
participar do movimento de rádios livres.
algo “especial” a dizer. O mais importante era
Continuou no “Juventude em Ação”, levando
fomentar a liberdade de expressão. Depois
rituais indígenas, declarações de amor e até
da entrevista, o participante era convidado a
entrevistando um visitante norte-americano
se tornar “membro” do programa e, logo em
sobre suas percepções a respeito dos
seguida, já era incentivado a passar ao papel de
indígenas. Depois que o programa acabou,
entrevistador. Foi assim que Jonas apareceu e
continuou participando no coletivo da rádio
se integrou ao programa, apropriando-se dele
Xibé. Atualmente, é um dos seus mais
para combater o racismo e afirmar sua cultura
ativos oficineiros, já tendo levado a rádio
e a identidade miranha. Sua estreia foi em abril
para aldeias e comunidades dos rios Tefé,
de 2014:
Japurá e Solimões, além de ter contribuído
Jonas: (...) Eu tenho orgulho de ser índio numa com as oficinas da rádio Gralha, no Paraná.
aldeia. Acho que esse é que é o problema deles. Tem participado de cursos de rádio livre e
Eles não aceitam isso. Cabe a mim ficar quieto comunitária, demonstrando um interesse
pra não ter que brigar, discutir com eles. especial nos conhecimentos técnicos para a
construção de minitransmissores, estruturas
Felipe Catão: Em geral, as pessoas têm para captação de energia solar para rádios,
medo do que é diferente. Quando elas vêm algo etc. Em 2015 também ajudou a aproximar a
diferente delas, elas têm um certo receio de rádio Xibé da AMARC ao participar do projeto
entrar em contato, de procurar conhecer, o que A Nave Vai.
poderia ajudar a evitar esse tipo de racismo,
esse tipo de preconceito. Como é que lá dentro Jonas e Sílvio ajudaram a dar o tom em
da aldeia vocês vêm as pessoas da cidade, (como Teresina, mas uma ausência pode ser
vocês chamam) o homem branco? ainda mais eloquente. Faltou Darlene dos

54
Convergência

Santos Cavalcante, indígena mayoruna da o primeiro a levar a Xibé ao Marajaí. Desta


aldeia Marajaí, município de Alvarães, e que experiência nasceu a rádio poste da aldeia,
conheceu a Xibé depois de se tornar estudante cuja história Darlene começou a pesquisar.
de Pedagogia em Tefé. Por que ela não foi ao Em 7 de setembro 2015, com a ajuda de
seminário? Para cuidar das duas filhas? Por Sérgio Fonseca e Jonas, levou a rádio Voz da
atenção ao marido? Porque o rádio, para muitos, Ilha para uma nova oficina em sua aldeia. Em
é masculino? Porque é preciso acumular 2016, a oficina promovida por ela e Jonas no
as lutas até que as barreiras comecem a Marajaí com a Xibé durou um mês inteiro, e
ser rompidas? Quando os imponderáveis do uma atenção especial foi dada à participação
machismo cotidiano se perdem na “cultura das mulheres e crianças. Já com a primeira
do silêncio” (FREIRE, 2011), o mais produtivo oficina, começou a ser tratada como liderança
é acompanhar a resistência da guerreira. comunitária:
Ela se envolveu com a Xibé em 2015, quando
procurava orientador e tema para começar A partir desse momento em que a rádio foi
o seu trabalho de conclusão de curso. Logo pra lá... porque anteriormente já tinha ido, né? O
descobriu a história de Geovani, um professor que aconteceu? As pessoas começaram a criar
que, em 2008, quando estudava Biologia, foi uma visão: “não, nós vamos conseguir mais

55
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

equipamentos para a nossa rádio lá do Marajaí”. o meu projeto, não. E, agora, em janeiro, a minha
Eu sei que foram surgindo várias ideias dos caminhada foi retornar de novo para o Marajaí e
professores mesmo: “nossa, a gente vai se reunir, surgiu uma proposta. Não sei se você sabe dessa
vai comprar um equipamento, vai construir uma proposta do Jonas, que é de a gente fazer uma
casa pra ficar a rádio nossa, aqui, na frente da oca lá no Marajaí... (entrevista com Darlene dos
casa de festa”. Então, eu sei que foi interessante. Santos Cavalcante, 13/03/2016).
Agora, eles estão vendo se constrói a casa, para
colocar ela no lugar dela, assim, para qualquer Quando um consumidor conectado com
um chegar lá e dar o seu aviso... Através da as “tendências de mercado” ouve falar em
rádio Xibé teve muito assim... muitas pessoas “convergência midiática”, automaticamente
que gostaram muito. Outro relato também que o imagina aparelhos cada vez mais versáteis
meu tio disse pra mim é que ele estava doente vindos diretamente do futuro para a vitrine
naquele dia, não pôde ir lá ver, né? Ele ouviu pelo do shopping mais próximo. A expressão
rádio o pessoal falando lá na escola o que estava e o silêncio dos indígenas da rádio Xibé,
acontecendo, assim, “deu pra mim ouvir tudo”, partilhados com a batida forte de Beth de
ele disse, “que bom seria se [a rádio] ficasse aqui Oxum, trouxeram ao Seminário uma outra
para continuar aqui, né? Não é como a nossa [rádio convergência possível: aquela feita de homens
poste] que nós temos aí”. E disse “é, bora ver, e mulheres que se apropriam de tecnologias
daqui a uns tempos a gente consegue”. Achei bem ancestrais e novas para tecer o verdadeiro
interessante o sete de setembro, assim. Nossa, encontro humano, que se faz das vozes que
eu me surpreendi mesmo. Eu fui tão elogiada! Eu saem do coração como nascentes, que correm
nunca tinha sido elogiada! As pessoas começaram o mundo iguais a rios e que se encontram com
a me olhar assim, de outro olhar. Porque sempre todas as outras águas nos oceanos.
eu vou pra lá e eu não ando na comunidade toda.
Só fico, assim, na casa dos meus tios... pessoas Referências:
assim... Eu recebi depois um convite do secretário CMI-Tefé. Entrevista com Tchimaucu da
de educação de Alvarães, que queria conversar ACPIMSA para o CMI-Brasil (18/11/2007),
comigo, como é que estavam os meus projetos... publicada em 28/11/2007. Disponível em:
Só que, infelizmente, não deu para mim sentar
com ele e conversar, porque a gente vive numa FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio
correria! Depois de sete de setembro foram de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
muitas pessoas, assim, que me procuraram para
sentar, que eu me surpreendi, que não olhavam MACIEL, Benedito Pena. Da proa da canoa:
pra mim assim, né? Eu me surpreendi, mas eu por uma etnografia do movimento indígena
nunca sentei para conversar com eles, falar sobre de Tefé. Revista Somanlu, ano 9, n. 2, jul/dez
2009. Disponível em: <http://www.periodicos.

56
Convergência
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

ufam.edu.br/index.php/somanlu/ar ticle/
view/281>. Acesso em 12/10/2016.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In:


______. Sociologia e antropologia. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003.

GUIA Geográfico. Disponível em: <http://


www.guiageo.com/amazonas.htm>. Acesso
em: 10/10/2016.

PROGRAMA Juventude em Ação 14, áudio da


transmissão ao vivo de 12/04/2014.

guilherme gitahy
de Figueiredo
é voluntário da rádio Xibé, do
Rizoma de Rádios Livres, do
Centro de Mídia Independente
e associado da AMARC. É
doutor em Antropologia
Social pelo Museu Nacional
e professor do curso de
Pedagogia e do Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas no
Centro de Estudos Superiores
de Tefé da Universidade do
Estado do Amazonas.

58
Convergência

Seminário Convergência
midiática e as rádios
comunitárias
N ossa primeira mesa de debate, realizada
no dia 4 de dezembro de 2015, na Universidade
apropriação da convergência ou, melhor dizendo
(já que apropriação remete à propriedade) uma
Federal de Piauí (UFPI), em Teresina, pretendia “ocupação” emancipadora.
(nada menos que) revisar conjuntamente o
Participaram Jessé Barbosa, da Escola Técnica
amplo conceito de convergência midiática. É
Profissionalizante em Comunicação do Estado
um termo que divide opiniões: para uns, é uma
do Piauí (ComRadio); Rafael Diniz, da Telemídia
noção desgastada, já que, por muito tempo,
PUC-Rio; Marcos Martins, do Aparecidos
ignorou a mídia livre e comunitária, além de ser
Políticos; Sílvio Almeida Bastos, da Rádio Xibé;
marcada por uma afinidade a um pensamento
Jonas Duarte Cruz, também da Rádio Xibé; Ian
evolucionista com relação à Internet; para
Carvalho, do CRIAR Brasil; Ricardo Ruiz, do
outros, a revisão crítica permitiria uma

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Coletivo Nordeste Livre, e; Mãe Beth de Oxum, da sinalizar algumas imagens pra você abrir. O
Rádio Amnésia. rádio digital vem chegando, o rádio é o único
meio de comunicação que não foi digitalizado.
A mesa foi mediada por Jaqueline Deister da
Vocês devem estar acompanhando a TV
Agência Pulsar Brasil e Nils Brock, cooperante
digital. Agora está começando o desligamento
internacional da AMARC Brasil. Foram feitas
das transmissões analógicas, vão ficar só as
intervenções por: Irailton Conceição, Associação
digitais. Com o rádio vai acontecer a mesma
de Rádios Livres de Salvador, Bahia; Rose
coisa, o rádio vai ser digitalizado. “O que
Castilhos, Ilê Mulher; Guilherme Gitahy de
muda?” O paradigma não muda nada, o rádio
Figueiredo, Rádio Xibé; Ligia Apel, Rede de
digital é igual ao rádio analógico: você instala
Mulheres da AMARC Brasil; Tony Marques, Célia
tua antena, teu transmissor, faz teu programa.
Rodrigues e Pedro Martins, da AMARC Brasil;
A diferença é que, em vez de transmitir
entre outrxs.
somente voz, você pode transmitir imagens,
Como primeira (e óbvia) pergunta, texto, aplicações interativas. Meu trabalho
questionamos: o que se entende por é com relação a isso, você enviar aplicações
“convergência” no mundo do rádio? pelo teu sinal de rádio. Então, você tem o
transmissor e lá você pode configurá-lo para
Rafael Diniz (PUC-Rio): É quando o rádio se enviar uma aplicação. O que pode ser essa
vale de outras redes de comunicação para aplicação? Qualquer coisa. Qualquer conjunto
complementar a informação que você quer de elementos multimídia que você vai enviar
passar pela sua emissora. Um exemplo de naquele fluxo do rádio. Pode ser imagem,
convergência é o site da Internet da emissora. texto, jogo educativo, uma informação de onde
Isso é a convergência mais pobre que existe, a polícia está numa manifestação, e toda essa
você não tem nenhum tipo de sincronia, de informação multimídia é passada pelo sinal
associação do programa que está sendo de rádio digital. Isso não é Internet, isso é
feito na rádio com aquele sistema hipermídia rádio. Acho que a digitalização do rádio é, de
que é o site. Há outros tipos de convergência longe, a coisa mais importante que a gente
mais poderosos, como por exemplo, você tem tem para ser discutida no que tange à área
um programa na rádio e junto com aquele técnica. O rádio digital permite mais do que
programa você olha na tela do celular e você só transmitir o áudio, assim como permite
tem informações complementando aquele multiprogramação. Você com um transmissor
programa: você pode ler mais informações de rádio pode transmitir 4 rádios comunitárias
sobre aquilo que está sendo falado, pode ver ao mesmo tempo, na mesma frequência. Há
imagens que ilustram o que está sendo falado. inúmeras vantagens.
Isso já é possível no rádio FM, tem como

60
Convergência

Nils Brock: Vamos perguntar ao Jessé: vocês conforma nessa retransmissão, ele tem que
têm um trabalho com vários projetos, com participar. Por acaso lá tem um ponto de cultura
vários aplicativos aqui na ComRadio. Como que tem Internet e toda a produção é feita pelo
você está vendo essa convergência acontecer? WhatsApp: manda o áudio, volta e, se precisar,
entra ao vivo. O Nilson já fez entrevista com
Jessé Barbosa (ComRadio): O Instituto gente que estava na Groenlândia, utilizando a
ComRadio trabalha com vários projetos, desde Internet. Há a visão de convergência a partir
formação de cegos para rádio, que é uma de dois focos: uma é a questão tecnológica
convergência interessante, que vai além dos e como isso tem contribuído com o rádio. O
conceitos normais, porque o rádio também é WhatsApp, hoje, é uma ferramenta essencial
cego e a gente vai juntando. E quanto a essa na produção radiofônica, os softwares e
convergência a gente extrapola um pouco, aplicativos de transmissão e recepção. E uma
tira de dentro dessa caixa o conceito de outra coisa: nós construímos um aplicativo
convergência apenas como a junção de mídias, chamado o “Observatório do Semiárido”, que
mas também como o rádio pode contribuir é um aplicativo do celular em que, naqueles
com o avanço de debates e políticas públicas, lugares que tem Internet, as pessoas podem
como ele pode contribuir com a solução de documentar, fazer monitoramento das
problemas. No caso dos cegos, isso é bem políticas públicas: acesso à água, educação
evidente. Nós temos que extrapolar um pouco contextualizada, a questão da mulher, muito
esse conceito para a convergência no sentido grave no semiárido, a juventude... Esses temas
de que alguns temas ganham força quando podem ser apanhados. Os temas com mais
chegam ao rádio, é uma convergência meio apoio, eles viram matéria na rede ComRadio.
diferente. Mas concordando com Rafael, E aquele tema que durante seis meses foi
hoje o Instituto ComRadio tem uma rede de mais debatido, que virou matéria, vira um
rádios. A gente tentou muito fazer essa rede seminário pra ser discutido com a comunidade
via Internet. No Piauí, aqui em Teresina, a e encontrar solução. Então extrapolando um
gente tem Internet razoável. Quando sai de pouco esse conceito de convergência que vai
Teresina e desce pro sul do Estado, a Internet além da convergência dos equipamentos, mas
é péssima. Se for mais um pouquinho, você a gente procura extrapolar na convergência
pode dizer “tenho Internet”, mas não tem. dos temas, e esses temas passam pelo rádio,
Demora pra baixar um áudio, o Radiotube lá eles ganham força, e eles convergem de novo
não teria sucesso nenhum. A gente resolveu no rádio.
fazer via satélite. Aqui mesmo tem o Nilson,
que é de uma rádio que fica a 500 km daqui. Jaqueline Deister: Acho que, puxando esse
Ele retransmite a rede, mas a gente não se gancho do Jessé, a convergência não diz

61
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

respeito só aos aparelhos. Queria falar com de política pública, das leis, para, além disso, a
o Marquinho, porque eles têm um trabalho gente tem que construir mais, provocar mais e
muito interessante lá, em Fortaleza, com o que mais rádios livres aconteçam. Talvez esse
Coletivo deles que é o Aparecidos Políticos, processo da democratização da comunicação
justamente por resgatar a memória e mostrar demore, existe uma resistência muito grande.
o que a ditadura militar trouxe aqui pro país. A gente já sabe o porquê, a gente já tem inimigo
E é através de intervenções artísticas, então, declarado, então acho que enquanto a gente
utilizam o rádio, o grafite e o “escracho”, debate, vamos transmitindo.
que é muito popular entre os movimentos
sociais. Então, eu queria, Marquinho, que você Nils Brock: Você falou da expressividade... A
colocasse como vê a convergência dentro do ancestralidade, acho que ela é uma parte da
seu coletivo, como utilizam essa convergência. convergência também. Existe não somente
Vocês tem essa visão mais diversa além da uma tecnologia radiofônica senão também
parte técnica? um formato em nossas cabeças muito
influenciado pelo rádio comercial. Acho que
Marcos Martins (Aparecidos Políticos): A a rádio comunitária e rádio livre também
convergência, pra gente, também é nessa são uma desconstrução e uma apropriação
perspectiva de além da técnica: a gente dessas linguagens. Sílvio, o que vocês
converge em linguagens. O teatro – que já transmitem, quais conteúdos vocês levam
esteve no rádio com as radionovelas e que já nesses programas, como construíram esses
não existe mais, a não ser nas comunitárias ou transmissores?
livres – a gente voltou a fazer na Zoada Rádio
Livre, que é a rádio dos Aparecidos Políticos; Sílvio Almeida Bastos (Rádio Xibé): Na
as intervenções urbanas, porque a gente tem verdade, a rádio Xibé faz várias oficinas em
encarado a Zoada Rádio Livre pra além de ser diversas comunidades periféricas da cidade
um ponto de transmissão, mas ser um ponto de de Tefé, transmitindo os conhecimentos,
interferência, porque, antes, era nos moldes levando todos aqueles movimentos, juntando
da Xibé. A gente vai sair e fazer uma oficina de jovens. Faz eventos também e participa de
rádio livre, fazer uma provocação e, na medida eventos de algumas organizações de jovens
em que a gente vai fazendo, vai transmitindo e que se encontram. No momento do movimento
corrigindo tudo. Trazendo todas essas pautas deles, nós divulgamos o que eles gostam de
importantes, a gente também traz a fala dos fazer e, mesmo assim, nas comunidades
povos de terreiro, indígenas, da galera que indígenas, quando fazemos uma assembleia
está na periferia. A ideia é que a rádio livre é para que os amigos possam ouvir, através
cumpra esse papel. A gente tem falado muito do rádio e da Internet. Nós já transmitimos
pelo México diretamente a nossa assembleia.

62
Convergência

Demonstrando tudo aquilo que a gente faz na através de pessoas, mostrando que a rádio
comunidade, discutindo a nossa força, a nossa não é só minha, a rádio é de todos e qualquer
realidade, a nossa língua, nossa tradição, pessoa pode falar na rádio.
fortalecendo outras comunidades vizinhas que
fazem parte das comunidades. Isso pra nós é Jaqueline Deister: Qual o papel do Radiotube
importante. Então, a realidade da rádio Xibé, nessa convergência midiática, sendo um
que ela não tem lugar fixo pra ficar, de vez em espaço comunitário, democrático? Porque aqui
quando, nós carregamos a antena em canoa, a gente vê diversas iniciativas e o Radiotube
remando o barco pela própria comunidade. E é o local onde todas essas iniciativas podem
lá já transmitimos pro município e o município se encontrar, se conhecer e compartilhar
joga pro site que temos. Hoje, estamos conteúdos e informações.
discutindo convergência midiática que é a Ian Carvalho (Radiotube): O Radiotube é
maior vantagem pra nós se pudéssemos fazer um ponto de convergência bem na cara. Lá
mais rádio diretamente com a comunidade. encontra sempre material de rádio, vídeo,
Jonas Duarte Cruz (Rádio Xibé): Tem o texto, a transmídia mostra todo tipo de
preconceito não só indígena, negro, mas comunicação. E é uma das coisas mais bonitas.
também com as mulheres. A gente quer mais Vou falar um pouco da convergência: a gente
mulheres pra divulgar o que elas sofrem, viu o pessoal do Sul do país trocando ideia,
o que elas pensam. A rádio livre não é só falando que está passando um programa que
radiodifusão, a gente grava áudio, a gente foi feito no Nordeste ou no Norte. O pessoal
filma vídeo, tira foto e coloca no email pra ver a trocando esse conteúdo diferente é uma
realidade da mulher do interior do Amazonas, forma de fazer comunicação como faz lá em
por exemplo. Tem essa crise, mulher não é cima, como se faz mais pra baixo do Brasil, o
pra estar só na cozinha, pois elas podem fazer pessoal fala de temas diferentes. O Radiotube
qualquer coisa. É isso o que a gente tenta fazer ajuda a transferir a comunicação do Norte pro
com rádio livre: mostrar que não é uma rádio Sul do país e isso é muito bonito de ser ver.
fixa, é uma rádio sem fronteira, a gente pode As pessoas se conhecendo, fazendo o projeto
ir em qualquer canto, basta que nos convidem. Radiotube, unindo rádios diferentes que não se
Falar qual o objetivo que a rádio traz, coisas conheciam e passam a se conhecer lá dentro,
da comunidade, da cidade, a rádio traz coisas começam a contribuir, formam parcerias.
que a gente quer buscar, falar sobre racismo, Acho um ponto de convergência bem legal e
sobre preconceito contra mulheres. Sobre a acho que pode crescer muito mais.
cidade, como ela está sentindo, o que a cidade Nils Brock: A gente ouviu falar que tem
precisa melhorar. A gente divulga nossa rádio rádio e a gente conhece a tecnologia do rádio,

63
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

mas depois a gente fala da Internet como se meu inimigo que eu conheço visivelmente, que
fosse uma coisa só, quando eu acho que tem é o Eduardo Cunha. Agora você conhecer seu
diferentes dinâmicas e também diferentes inimigo te dá possibilidade de traçar quais
tecnologias: o WhatsApp, por exemplo. Eu são os planos que você quer percorrer nessa
queria entrar nessa questão de convergência aliança democrática possível. Aí acho que
dentro do conceito rádio livre e comunitária e a resposta é essa: a trilha dos vários meios
num caminho falando do software. que você vai usar, os formatos das linguagens
que vai usar, necessariamente tem a ver com
Ricardo Ruiz (Coletivo Nordeste Livre): Três “onde você quer chegar com aquilo?” Nosso
questões misturadas: a primeira tem a ver amigo tem um inimigo claro e tem um objetivo
com o que o Rafael Diniz falou de o rádio claro pra trazer pra essa democracia. Então,
ser o físico. Acho que a gente, o ser humano, pra traçar esse caminho de convergências pro
tem algum tipo de vício quiral, o magnetismo seu meio, depende saber de quem você quer
que faz a experiência com a radiodifusão ser se defender.
muito plena quando você tem uma pepita de
urânio perto de você. Tem a frase clássica Jaqueline Deister: A relação da
“toda poesia vive no rádio na pepita de ancestralidade com a convergência de mídias
urânio”. Você saber ouvir o que você está e de linguagens que existem dentro do povo
trabalhando fisicamente ajuda você a refletir negro... Porque o atabaque, me contaram, ele
nele. Continuando a questão da mesa, acho é um instrumento que já era uma tecnologia,
que tem um caminho único, eu não quero na sua época, utilizada pelos povos na
falar de convergência frente ao uso pouco comunicação. Eles têm uma tecnologia que
democrático oferecido pela legislação etc., a precede um pouco o que eram os tambores
convergência midiática da comunicação vai ser para o povo negro.
uma ferramenta pra enfrentar essa questão.
Mas aí vem nosso amigo de Fortaleza “qual o Mãe Beth de Oxum (Rádio Amnésia):
uso pouco democrático da legislação?” “Essa O tambor, a gente sabe que pros povos
convergência midiática tem a possibilidade africanos, é tecnologia. Queria fazer uma
de alterar fluxos de uma democracia mal pergunta em relação a essa convergência
apresentada?” “Quais são esses fluxos midiática. Quem conhece Exu? A gente tem
democráticos que não funcionam bem antes um observatório chamado Observatório de
de você pensar quais são as convergências Mídia e Religiosidade, o Ojuran [https://ojuran.
que você quer alterar nesse caminho, que você wordpress.com/], a gente faz um estudo nesse
vai fazer sua rádio?” Então você conhece seu observatório sobre as mídias e a religiosidade
inimigo. Eu fiquei até curioso porque eu tenho de rádio e TV. Hoje, a gente tem uma rádio e
uma TV que promovem o ódio. Há três dias foi

64
Convergência

queimada uma casa lá, em Brasília, a Casa vezes, as pessoas chegam lá no terreiro, “mas
de Mãe Baiana. Quando vocês chegarem lá, vocês estão desenvolvendo game?!” Parece
sua casa vai estar queimada pelo simples fato até que tecnologia é de fato propriedade de
de você ser um cidadão de matriz africana classe. Conhecimento não é propriedade
e que cultua a religião africana, mas é um de classe nenhuma. E o tambor sempre foi
direito seu! E a rádio e a TV nesse país estão e sempre será a nossa grande tecnologia
estimulando pessoas a queimar suas casas. porque ele alimenta nossa alma. Porque se
É muito grave. Acho que nossa convergência a gente não tem a alma alimentada, a gente
tem a perspectiva de trazer Exu, Ogum, Odé. não fica em pé na terra. Então, tecnologia,
A gente tá desenvolvendo o software, não pra gente, é convergência de mídia, é trazer
é só o rádio. É uma narrativa com matriz o tambor secular. Trazer esses elementos,
africana com games. A gente tem um projeto trazer o prazer e entretenimento sem
de 150 jovens negros da periferia estudando violência. Com a narrativa de game a gente
na escola pública. Passamos a desenvolver está resignificando isso. E protagonizar, dar
o software livre. Mas a gente ganhou tablets visibilidade, dar voz àquele ou àquela que, no
num projeto eleitoreiro e não sabíamos usar, caso, estão escondidos nos nossos povos. Pra
porque não rodava nem o Facebook, dada a sua visibilizar o nosso povo preto e a nossa matriz
configuração. Então, trocamos por software africana em convívio contra a intolerância.
livre e pretendemos desenvolver tecnologia. Essa é a perspectiva da convergência de nossa
Entramos com curso de programação e mídia. A Rádio Amnésia, ela existe também
desenvolvemos games. E, ao invés de trazer pra trazer protagonismo aos povos indígenas,
um boneco americano, matando todo mundo, porque a gente tem ação no terreiro. A gente
a gente trouxe Exu, a gente trouxe Ogum, foi convidada pra desenvolver lá no Alto Xingu,
Odé, Oxóssi. Convergência da mídia, pra com as mulheres, inclusive, e trazer todo
gente dizer que o papel da mídia não é matar esse universo da matriz africana que está
ou criminalizar, como acontece com mais de escondida. Então vem pra tirar essa cortina de
40 mil jovens negros e a mídia não coloca fumaça que existe aqui no nosso país.
seu papel de denunciar por que esses jovens
estão morrendo. Porque tem cor, é preto, tem Nils Brock: Existe a ideia de que mais
endereço, é pobre, mora nas periferias. E tecnologia significa mais liberdade. De que
quem mata? Quem mata é o Estado brasileiro forma essa apropriação de novas tecnologias
e a mídia não faz nada. Convergir mídia, pra e essa convergência de mídia fala do potencial
tratar de fato a realidade que está acontecendo para liberar o nosso status?
no país. Na nossa convergência é dizer que
Ricardo Ruiz (Coletivo Nordeste Livre): No
o tambor, que é Ogum, que é tecnologia. Às
princípio foi o verbo: a gente se libertou na

65
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

linguagem. Mas eu fico até com medo porque essas novas tecnologias, elas estão vindo com
talvez não: talvez a gente tenha se escravizado o acesso à informação. E a gente vê o menino
na linguagem. É uma questão do ser humano lá no meio do nada sem acesso e a pergunta
que não dá pra resolver. Em 1800 e final, perto é: “o que fazer?” Talvez cada um de nós seja
da suposta abolição, surgiu uma empresa a peça mais importante nesse quebra-cabeça.
chamada IBM. Desde 1885 que a gente come Não há mais necessidade de conteúdo, de
o mesmo futuro pra poder ficar comprando passar conteúdo. A gente está dentro de uma
quinquilharia. Então, a gente ainda acredita, Universidade em que, provavelmente, esse
depois de cem anos, que a gente vai ter uma debate também venha andar por aqui. Acho
inteligência artificial em nossa casa que vai que a principal necessidade hoje é de saber o
cuidar de nossa vida, isso a gente acredita que fazer com esse conteúdo e também como
só faz 120 anos. A gente acredita que vai ter ter acesso a isso. O que fazer com o conteúdo?
energia de graça, seja nuclear ou solar, ou o A gente tem por aqui, mas e lá no interior, lá
que for, porque precisa sustentar os fogões na roça? A gente ainda precisa chegar nesse
lá em casa. E a gente acredita nisso só há primeiro estágio que é o acesso ao conteúdo.
120 anos. E a gente acredita que a gente vai
morar no espaço, porque o espaço é um Rafael Diniz (PUC-Rio): Acho que a
lugar tão legal e tal, porque precisa vender tecnologia, por si só, ela não é nem libertadora
quinquilharia. Ou seja, precisa comprar o nem aprisionadora, a gente que vai dizer o que
outro. Olha o computador de Rafael Diniz, ô ela vai ser. Acho que a coisa mais importante
que nojo, entendeu? Essa é a questão. O que em nossa interação com a tecnologia é olhar
você pode fazer é o que já tem disponível. pra aquela tecnologia não como uma caixa
Criam uma ilusão de futuro, quem é que cria? preta. Acho que uma coisa é que todas essas
A academia norte-americana, administração tecnologias que a gente usa hoje foram feitas
norte-americana, que precisa de engenharia por empresas com a ajuda de governos. A
e tantos funcionários e uma empresa que Internet foi feita pelos militares, pra controlar,
vende tecnologia pra esse casal. E há 120 anos não pra libertar. Talvez a gente consiga
ensinando você, que vai acreditar nisso pra transformar isso. Se a gente não tomar as
você continuar comprando. Peraí, né? rédeas da tecnologia pensando que estamos
na Universidade Federal do Piauí, a gente
Jessé Barbosa (ComRadio): Tem um debate criar nossas tecnologias, desenvolver o que
que a gente faz normalmente nas atividades é bom pra gente. Por exemplo, se eu ligar
do ComRadio, no interior do Piauí, que é pra um celular, por que o meu celular não
até anterior a tudo isso que a gente está fala direto com o da Thaís? Meu celular vai
discutindo. Que é o próprio acesso. Certo que falar com a torre de celular mais próximo, vai

66
Convergência

passar dentro de um sistema da operadora e as folhas voltam porque elas obedecem a


para eu falar com ela, porque tem a cobrança, quem as cuida. Cada orixá passou a ter sua
por isso que as redes são todas verticais folha, mas Ossanha ainda passou a dominar.
hierarquizadas e não são descentralizadas E nesse contexto pensamos fazer um boneco
e horizontais. As tecnologias são feitas por que cada folha que processe serviria para um
empresas pra ganhar dinheiro e a gente problema que nos foi tirado porque essa é a
não quer isso. A gente está fazendo rádio, medicina popular. Como a gente foi espoliado,
então tem que pensar nisso. Ele é libertador, como fomos desapropriados de conhecimento,
porque não tem intermediário, não tem como principalmente da medicina popular! Cheio
controlar, não tem como você falar “a onda de universidade, cheio de estudante, cheio
de rádio vai pra aqui”. é muito diferente da de farmácia, mas nem de longe a gente
Internet. Importante pensar e fazer nossas conseguiu, porque está fora daqui. E esse
tecnologias, olhar pra nossas máquinas e game está resignificando isso, trazendo essa
entender o que está acontecendo lá dentro. cultura. Se sua dor é aqui, a partir dali, esse
jogo vai te dar essa ciência. Essa tecnologia vai
Mãe Beth de Oxum (Rádio Amnésia): trazer o que nos foi roubado, o conhecimento
Concordo. Daqui a pouco, a gente vai ter natural, popular. Hoje qualquer coisinha
Internet no Brasil todo pro pessoal dentro tem que ir para UPA [Unidades de Pronto
do ônibus. Mas o grande problema é esse: Atendimento], para o SUS [Sistema Único
quando não for interessante esse brother se de Saúde] e passar pela miséria escrota,
afasta e esse sinal não vai ao ar. O problema porque na realidade esse conhecimento nos
da dominação, de quem tem o domínio disso, é foi tirado. Então, a tecnologia tem que ser
que daqui a pouco se afasta, não é interessante nossa para isso, para resignificar, para trazer
ouvir aquele coletivo daquela cidade, daquele de volta o que nos foi tirado. E dentro desse
movimento. A gente tem que se ligar nessa contexto também mais social a gente tem uma
coisa de autonomia que o rádio propicia. experiência. Por exemplo, lá em Olinda, que
Desde essa perspectiva você também traz é uma cidade cosmopolita, cheia de turista,
nesse game que a gente está desenvolvendo, os caras ficam assediando as mulheres. E as
a gente traz orixás, essa narrativa de matriz mulheres de Olinda falam “vamos tomar uma
africana, tem o orixá que é Ossanha, o orixá providência, vamos mudar essa situação”.
das folhas, quando a gente foi discutir qual Carnaval, chapado, e o beijo tem que ser
história a gente colocaria, porque a gente uma coisa espontânea, não pode ser abuso.
tem uma oralidade “Por que todas as folhas E aí a gente chamou os artistas para começar
são de Ossanha? Eu também quero minhas a desenvolver músicas que tratassem da
folhas!”. E as folhas vão, e ele fica alucinado; violência contra as mulheres.

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Sílvio Almeida Basto (Rádio Xibé): Para Jonas, de Tefé, pela preocupação da questão
a nossa etnia, povos, essa tecnologia é da participação das mulheres, de trazer as
importante. É pra quebrar barreiras de mulheres para a comunicação. E quando se
todos os povos que vivem ali, no Médio fala de convergência midiática, quando se
Solimões. Porque é uma ferramenta nova e, fala em rádio digital, de novas tecnologias
na verdade, atualiza esses tempos em nossas nos deparamos com uma realidade que é a
comunidades. Porque nós não sabemos antes, realidade em qualquer espaço de poder, que é
10, 20, 30 anos atrás, a comunidade não sabia a falta de mulheres. É a falta de oportunidades
se realmente existia rádio. É por isso que eu para as mulheres. Muitas vezes falam “mas
falo que é uma tecnologia nova e estamos vocês que não querem!”. As mulheres querem
abraçando para fortalecer a nossa realidade. sim, querem aprender, querem ser formadas
E que os jovens possam criar sua própria nisso. A gente percebe, mesmo na Rede de
fala, sua mídia, sua programação e por isso é Mulheres da AMARC, como a gente está
importante pra nós. Que eles mesmos possam distante do aprendizado das tecnologias.
falar a língua que possam usar: na língua Quanto, pra nós, é um processo ainda muito
Tikuna, Piranha, Cocama, Kambebas e depois lento e é muito lento. Estamos preparando
possam transmitir em Língua Portuguesa. uma atividade no Projeto Emergências no Rio,
E isso é uma diferença muito grande para a nenhum dos homens para os quais eu mandei
nossa sociedade. a solicitação de informação do que a gente
precisava, ninguém respondeu. Eu tive que ir
Jaqueline Deister: A gente abre pra vocês à cata, descobrir isso. E isso é uma realidade.
colocarem perguntas. Porque não nos passam a informação. Acho
que está na hora das rádios, das pessoas, dos
Irailton Conceição: Sou de Salvador,
homens que estão na rádio tomar consciência
represento a associação de rádios livres
de que as mulheres precisam estar também
daquela capital, 178 rádios. A gente volta e
por dentro desses espaços, como disse a
pergunta: dentro da tecnologia a radiodifusão
mãe Beth, e evitar a questão da violência e a
de que forma ajuda ou atrapalha? A informação
questão dos abusos.
não pertence a ninguém?
Silvan: Sou da Bahia, da cidade de
Guilherme Gitahy de Figueiredo: Sou da
Nordestina e estava olhando essa discussão
rádio Xibé e eu queria saber mais sobre a
que vocês estão fazendo e quando o colega
experiência do Rizoma de rádios livres.
da comunidade indígena falou daquilo tudo.
Rose Castilhos: Sou de Porto Alegre e, como Eu olhei vocês falando sobre a diversidade,
mulher e feminista, quero comentar a fala do e a rádio é isso. Eu acho que a rádio tem que

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Convergência

ter espaço pra o candomblé, ter espaço pro autopromover com essa mina que descobriram
evangélico, tem que ter espaço pra Igreja ou há uns tempos. Não está preocupado com as
Católico, tem que ter espaço pro índio. E a necessidades que o município precisa.
gente enfrenta isso. A gente tem um grupo
de rádios na região do Sisal onde a gente fez Sandra: Sou atriz e diretora de teatro. Estudo
uma grade de programação e cabem todos comunicação com rádio, mas é um universo
os espaços. Não vamos dizer que cabe todo que não conheço muito. Fico pensando que
mundo, mas que tem horário diversificado. cada um de vocês tem uma missão dentro
Para o candomblé, para o indígena. E a gente do trabalho que realizam. Me chama muita
estava trabalhando isso daí que vocês falaram. atenção ouvir um homem falar de mulheres.
O presidente da associação de rádio onde eu E queria saber se lá na Xibé as mulheres
trabalho é evangélico, mas ele não tem poder participam do conteúdo e na programação da
nenhum de dizer que candomblé não pode rádio? De que forma se dá a participação delas?
entrar, o índio não pode entrar, o negro não Queria saber a vivência que cada um de vocês
pode entrar no espaço da rádio. Acho que a tem com rádio, qual a maior transformação
gente tem que ter isso e se apoderar. Se existe que vocês já viram na vida dessas pessoas
uma diretoria, ela tem que ter poderes e, às através dos conteúdos e trabalhos que vocês
vezes, talvez o fracasso maior das rádios, fazem?
comunitárias ou educativas, ou seja, qual Jonas Duarte Cruz (Rádio Xibé): As mulheres
for, é uma determinada entidade se apoderar não tem um plano de falar. Mas podem fazer
dela e tomar todo o poder que ela tem. De tal seu próprio plano para falar e divulgar. A gente
maneira que vocês falam sobre a preocupação grava isso e ajuda a divulgar nos áudios e
e divulgação da mídia. Nordestina, hoje, acho vídeos. Estávamos na FLONA, de Tefé, fazendo
que vocês já ouviram falar dessa cidade e uma reunião e mais de sessenta mulheres
por que ela está sendo conhecida? Não foi a apareceram do nada, do interior, perguntando
mídia que botou ela lá em cima. É porque “o que é a rádio, o que é essa tecnologia?” Hoje
descobriram a maior mina de diamante da em dia, nem todos, mais a maioria dos homens
América Latina. Mas as pessoas que estão não deixa elas escutarem rádio, porque rádio
interessadas nisso não estão pensando nas é só ouvida por homens, e não por mulheres.
dificuldades que a cidade tem, eles fizeram Esse é o maior preconceito que tem. Eu defendo
pouca questão de divulgar o que a cidade todas as culturas, inclusive as mulheres, pois
tem, não se precisa. Acho que a gente precisa a minha mãe é mulher. Por que não deixaria a
divulgar o que precisa, não ficar vendo por aí. minha mãe ouvir rádio e criar a própria ideia
O prefeito é um dos maiores perseguidores da dela? A Xibé, ela não é fixa, tem em qualquer
rádio e está divulgando o quê? Querendo se canto do Amazonas. Eu já subi em ladeiras

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de lama, fomos sob chuva. Não importa década de 90, que tampouco atende ao mínimo
a distância, importa é que as mulheres, o que a gente precisa para fazer a nossa
os ribeirinhos sejam felizes em todos os rádio. Fazendo esse gancho, o Guilherme fez
momentos. As mulheres que valorizam a si a pergunta do Rizoma das rádios livres. As
mesma com cultura e com palavras. A gente rádios livres no Brasil existem desde a década
quer quebrar o preconceito com todas as de 80 e nossa rádio foi criada nesse contexto.
mulheres, sobretudo as indígenas. Eu estou No começo da década de 2000, que é da nossa
ensinando através do rádio, mas também geração de rádio, as rádios livres estavam
através da dança, mostrando que a dança é meio esparsas. Em 2002, a gente criou nosso
uma arte. Na dança tem mais de 170 mulheres, rizoma de rádios livres e decidiu também
mas só 35 homens. Eu acho maravilhoso que sobre o portal das rádios livres. O radiolivre.
elas queiram avançar não só na dança, mas org, nesse ano, por exemplo, só para dar um
também na sociedade. exemplo mais recente, a gente colaborou com
uma oficina de transmissores em Campinas.
Ricardo Ruiz (Coletivo Nordeste Livre): Faz Foram feitos mais de 10 transmissores de 100
um tempo que eu participei de várias oficinas watts. Então, a gente tenta sempre difundir
e, normalmente, a oficina começa na hora que essa cultura do “faça você mesmo”, de a gente
você liga o botão E você deixa claro que está fazer um transmissor e colocar a rádio no ar
cometendo um crime federal e acho que essa e incentivar a horizontalidade das emissoras
é a maior transformação: trazer à pessoa a e sempre tentar levar a nossa ideia de rádio
consciência de que agora ela é uma criminosa, livre. A gente não quer ser o intermediário da
por estar lutando pelos seus direitos. É uma população para a gente falar o que as pessoas
transformação sem igual. querem, mas, sim, a gente tem uma rádio em
que as pessoas possam ir lá e se apropriar da
Rafael Diniz (PUC Rio): A gente nem conversou
rádio e falar o que quiser e transmitir. A gente
muito hoje sobre isso... É importante, como o
no Rizoma tenta articular encontros de rádio,
Ricardo falou, que várias pessoas que estão
fazer transmissões, principalmente falar
fazendo rádio sem outorga saibam que a lei
de como resistir à Polícia Federal. A gente
que rege a radiodifusão e de telecomunicações
sempre tenta trabalhar com transmissor
no Brasil é uma lei extremamente punitiva,
reserva, então, se a polícia vai, a gente tenta
baseada numa lei da década de 60, da ditadura,
botar no ar no dia seguinte. É difícil, mas a
do Código Brasileiro de Telecomunicações.
gente tem certeza que essa lei vai mudar.
A gente de rádio livre não concorda com a
lei e nem se dá o trabalho de pedir outorga. Mãe Beth de Oxum (Rádio Amnésia): Na
A gente não se enquadra nem na legislação questão da comunicação é que é o gargalo.
da rádio comunitária, que foi feita no final da

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Convergência

A lei do jeito que está, está posta com inventa e reinventa a cada dia, resignificando
distância. Nosso tambor atende muito mais essa perspectiva da cultura da infância, que
do que o piloto permitido para se ter essa de fato está tão perdida. Mais do que nunca,
legalização. E as mulheres ainda não estão acho que essa cultura perdeu completamente
ocupando, basta ver aqui, na faculdade, as referências, porque as mulheres brancas
e observar os diretores e professores do da classe média alta não tem identidade
departamento. Você chega nas grandes nenhuma com a gente, eu não me reconheço
mídias e a mulher ainda é um objeto para ser nesse programa, nem mesmo meus filhos.
emancipado, para ocupar esses lugares e nas Acho que está na hora do “pau comer”, da
rádios não é diferente disso. Eu queria entrar gente virar o jogo e hackear essa mídia e fazer
na questão da programação infanto-juvenil, rádio. Acho importantíssimo essa proposta
que é um caos. Num país em que a Xuxa e de a gente desenvolver oficinas de confecção
Angélica são a referência do programa infantil, de transmissores, pois não podemos ficar
a gente vê como a gente está, tanto na questão reféns de um transmissor só, que vai comprar
de gênero como na questão da criança. A gente lá em Campinas, então, precisa desenvolver.
tem um programa chamado “brincar para E essa oficina tem que sair da caixa, criando
o sonho alimentar”, lá eu faço o programa um perspectiva e inclusive esse encontro de
para trazer à criançada uma perspectiva de fazer essas oficinas aí, pelo Brasil, para que a
brincar. A gente faz uma pesquisa com os gente possa transmitir um programação que
maracatus mirins, a congada mirim, vários dê lugar a essa diversidade, mas também à
grupos tradicionais que têm essa preocupação questão da mulher e da criança nesse país.
com o infanto-juvenil. Temos oficinas para
resgatar a referência de brincar. Isso é muito Ricardo Ruiz (Coletivo Nordeste Livre): A
importante para alimentar o sonho da criança questão do acesso. Quando você tem um
que ela perdeu, pois ligando a TV é só boneco problema de acesso, tem um problema ao
dando porrada. Um absurdo o que acontece quadrado, porque incluir pessoa... Lembra
com a cultura da infância do ponto de vista aquela historinha que a gente veio conversando
das mídias brasileiras. É uma agressão e esses tempos, no Recife: um tempo atrás,
uma violência. Cadê as referências de mídia, quando você era um escravo numa fazenda
de comunicação de rádio com as crianças? e você fugia, iam mandar te buscar para te
Lá a gente está fazendo assim, no programa incluir de novo, entendeu? Então, essa inclusão
“brincar para o sonho alimentar”, reunindo para quem que é? Esse acesso é pra quê?
os meus filhos e outros da comunidade: “Precisa dar acesso pra galera”. O Facebook
quando a gente brinca de roda, tem aquela fez um internet.org, está dando acesso à
coisa da velha brincadeira de roda e a gente galera. Você entra ali, a Índia toda tem acesso

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

ao Face e ao Twitter. Quênia, Nigéria. Internet nos foi tirado, a essa essência de um povo que
no Quênia é Facebook e Twitter a 56kps, eles cultua a natureza.
estão incluídos, conseguiram acesso. “Vamos
ocupar a onda do rádio”. Aqui é um país Sílvio Almeida Bastos (Rádio Xibé): Com a
ocupado. Há 500 anos está ocupado, a gente rádio Xibé é a mesma coisa. Não tem qualidade
precisa desocupar esse país. Como diz o outro para dizer está na igreja x e está na igreja, não.
“lá em casa já não é qualquer um que entra”. Então, toda classe de pessoas que querem
Só para comentar do problema do acesso, que chegar lá e dizer “quero fazer a programação”:
o problema é pior. as comunidades, povo, festa... seja festa
evangélica ou não. E assim é um grupo que
Mãe Beth de Oxum (Rádio Amnésia): Para leva esses conhecimentos para produzir
a gente não parecer essa coisa assim: de conhecimentos. Leva a mais participação
ocupar rádios e mídias, aí tem evangélico, tanto com crianças, jovens, mulheres,
candomblecista, ciganos, índios... A gente lideranças, nas comunidades, para divulgar o
precisa entender também a questão dos povos que as pessoas possam ver, é treinar a própria
tradicionais. A cantiga que eu cantei mais cedo, língua Portuguesa, indígena e outras. Isso é o
por exemplo, que quer dizer? É com a força conhecimento nosso. E que seja transmitido
espiritual que foi perdida, que não está posta. na rádio.
É com seus axés, com a força espiritual que ela
dá jinjé, que é o alimento, mas não só pro corpo, Ricardo Ruiz (Coletivo Nordeste Livre):
cabeça e alma. Ela dá a riqueza, mas não esse Continua ali a história sua. Ó que vergonha,
dinheiro maldito, não esse dinheiro capitalista, cara, e vem um cara que vive aqui há uns 10
essa riqueza financeira que conduz o país e mil anos e fala a língua nativa que a gente
diz como tem que ser. Mas é a água, a terra, que mora no mesmo país que ele, não sabe.
a comunicação, outros valores: é a riqueza da Agora, se tivesse um programa na Record que
natureza, porque povo tradicional que não tem fosse para ensinar língua, olha que bacana,
água, que não tem terra nem comunicação, entendeu? Falou duas línguas que a gente não
não se estabelece. Ela quer resignificar uma sabe falar. Mãe Beth, ainda falou uma terceira,
outra sociedade. Ela traz jinjé, ela traz o ouro, africana, mas que veio pra cá, que a gente não
vento, fogo, terra, cada vez mais é extirpada sabe falar, porque vendem pra gente uma
desses povos tradicionais. Ela traz a água que língua carioca ou paulista.
agora virou um gargalo. O que a gente quer Jaqueline: Vamos abrir para as provocações
é espaço na comunicação que resignifique a da plateia
sociedade. Não é só botar a cara preta e dizer
ali é Jesus, ali é oxalá, não é isso: é tirar o que Ligia Apel: Então, apesar da representação

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Convergência

da Mãe Beth, eu, como conselheira da tendo bons frutos que são os Planos Nacionais
AMARC, faço aqui a mea culpa, a gente de Outorga para rádios comunitárias. Um
não ter contemplado o equilíbrio de gênero tratamento diferenciado para comunidades
nessa mesa. A gente há 2 anos fez um tradicionais, com tratamento diferenciado na
seminário em Belém com a presença do MST, hora de distribuir as concessões, na hora de
das comunidades ribeirinhas, indígenas e aceitar essa papelada. Vocês sabem que a
quilombolas, porque uma das preocupações papelada para obter a rádio comunitária caiu de
da AMARC é com os povos tradicionais. O dono 33 para 7 documentos? Mesmo assim, mesmo
dessa terra, dessa natureza, rio, de todas com 7 documentos ainda é muito difícil esse
essas coisas, a etnia ticuna é a maior etnia acesso. E a gente vai fazer um trabalho para
do Brasil. São mais de 70 mil. Ali no Médio aquela comunidade que quis ter a concessão
e no Alto Solimões. Lá em Tabatinga, por de rádio comunitária, para que ela tenha
exemplo, não é só na Record, não. As rádios esse processo facilitado. Queria deixar esse
públicas brasileiras, quais são os programas informe, porque nós, da AMARC, percebemos
indígenas que as rádios públicas brasileiras que nos meios urbanos está “tudo lindo, muito
têm na sua grade de programação? Por que bem, obrigado”. Todos sabem a regra do jogo:
a Rádio Nacional da Amazônia não tem um vai fazer rádio, vai ser preso, vai ser julgado, e
programa falado na língua indígena? Por que a a gente está batalhando para mudar essa lei,
Rádio do Alto Solimões não tem um programa mas o problema é aquele quilombo que esta
falado na língua indígena? Essa é uma batalha, lá em Freixal, na Baixada Maranhense, que
porque a gente faz rápido a forma como nos não consegue ter a concessão. Então, a gente
ensinaram. E a gente precisa romper com conhece esse pessoal, aquele que quer ter,
essas métricas, com essa forma de fazer as precisa ser ajudado a tempo. Quem não quer
cosas. Primeiro jornalismo, como disse o Ruiz, continuar sendo uma rádio livre com o apoio
agora é hora de música, agora é hora de rezar, da AMARC? Estamos de braços abertos, como
como se a gente fosse compartimentalizando, disse o Rafael, estamos brindando a esse
como disse Mãe Beth: você vai num hospital, reencontro e que bom que aconteceu, e que
cardiologista, oftalmologista e você vira um bom que é agora.
ser todo despedaçado, quando ninguém sabe
que nós somos muito mais integrados do que Sarah: Eu vivo da poesia, que é um programa
isso. Então, uma saudação a todas as línguas coletivo político-poético, que a gente tenta
indígenas que ainda resistem e persistem. falar de revoluções da forma mais poética
E, por conta disso, a AMARC fez um trabalho possível. A questão da igualdade de gênero é
junto ao Ministério das Comunicações para uma coisa que a gente tem que se ligar muito
que a gente continue esse trabalho, estamos no nosso cotidiano, pois, por exemplo, até a

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

parte técnica, muitas vezes, quem detém são privados que se apropriavam das concessões
os homens, no Vira Poesia a gente já passou públicas e aí passaram a usar. O MST fez em
por muitas dificuldades, porque os homens relação à terra, conseguiram fazer com que
tinham as técnicas e diziam que sabiam, mas fosse distribuída muita terra e o Estado viesse
não queriam repassar as técnicas para as depois com os benefícios: área de plantio
mulheres que estavam entrando. Acho que a individual, coletivo, com as casas com a água,
gente tem que avançar muito nesse sentido. com a energia e por aí vai. Essa analogia é um
Outra coisa que me chamou muita atenção, pouco parecida com a rádio comunitária. O
a regionalização. Isso faz parte da minha espaço continua sendo concentrado e a gente,
pesquisa e, aqui, olhando o resto da mesa, quando consegue botar uma rádio, ela é muito
mesmo faltando mulheres, você vê o quão burocrática, os documentos são difíceis para a
é diverso, o quanto o Brasil é diverso. Cada gente viabilizar. E tem o quadro cultural: o fato
um tem uma perspectiva regional não só no de se passar muito tempo com os meios de
sotaque, mas pela experiência que traz. Então comunicação concentrados, colocou no nosso
quando a gente vê isso, uma reivindicação imaginário que o fazer radiofônico não pode
histórica dos movimentos sociais: mais ser feito numa perspectiva mais original, dos
participação das regiões. Aqui no Piauí, por povos que deram origem ao Brasil. A gente
exemplo, tem várias TVs regionais e até esquece isso e termina reproduzindo o rádio,
independentes, mas a gente não vê mais quando a gente faz rádio comunitária, muito
democratização. Desde a década de 90, vários numa perspectiva cultural de quem sempre
investimentos nessa comunicação regional, trabalhou rádio duma forma concentrada
onde a gente não vê o quilombola, não vê o e duma forma não inclusiva. Então, fica o
indígena, não vê as mulheres da periferia, que a desafio da gente usar um pouco o que se fala
gente não vê os povos de terreiro... Então acho em relação a tecnologia, a gente poder usar
que é uma reivindicação também, que a gente a tecnologia e ela poder ser libertadora, mas
deveria retomar. A gente quer participação no ela pode ser também manipuladora. Ela pode
orçamento também, se a gente for ver quantos reproduzir aquilo que grande parte da mídia
milhões que vão para a Globo, quanto vai para já faz em relação à cultura brasileira, cultura
a EBC, ou para a TV Brasil... popular e de raiz no Brasil. Então, a gente
precisa ficar como vigilante, porque o rádio
[Homem não identificado]: Nos anos 80, a empodera e, ao mesmo tempo, principalmente,
gente tinha como principal lema das rádios nas comunidades, nossa experiência fala que
comunitárias e das rádios livres a questão da os locutores, às vezes, querem ser estrela
Reforma Agrária do Ar. A gente via que o espaço do mesmo jeito dos assalariados da grande
era todo ocupado pelas empresas de grupos mídia. Rádio não funciona sem dinheiro e o

74
Convergência

Estado tem dinheiro. Não é só vendedor de As entidades, tudo bem, tem as entidades, tem
galeto lá da comunidade que pode dar dinheiro Igreja Católica, Sindicato, evangélicos que, vez
para alimentar uma programação radiofônica, e outra, tem uma mulher que participa. Dessa
a prefeitura tem dinheiro e o Estado também, forma, está incluído, mas os colaboradores
o governo Federal também. Então, essa da emissora, aqueles que vão lá para fazer
legalização, além dela ser dificultada para o programa, a gente tenta as mulheres, mas
as rádios comunitárias, depois a luta vai ser como é que poderíamos fazer para atrair
também para a gente participar das verbas essas mulheres? Porque acho que a mulher
publicitárias. E se você não participa, deixa tem que ter um espaço dela no rádio também.
só para os grandes meios disputarem, nós
vamos continuar como aquele agricultor que Tony Marques: O problema não é só um
conseguiu um pedaço da terra, o governo deu... sentimento político feminino, é de todos os
deu não, é fruto de conquista, aquele pedaço segmentos políticos. Os outros movimentos
da terra, mas aí não se usufrui da terra de jeito políticos de esquerda em nosso país são
nenhum, porque não tem a tecnologia, a grana muito complicados. Para quem está na
para movimentar, não tem a participação nem Amazônia, talvez no Nordeste seja diferente,
movimento da comunidade para participar. mas a nossa região é muito mais complicada.
E aí o que eu falo com o pessoal de Tefé. Eu Eu sou jornalista condenado e meus meios
quero insistir nessa pergunta: as mulheres foram disponibilizados para poder pagar
produzem programas? Quais das rádios que as multas que foram geradas durante o
tem aqui que as mulheres são produtoras de processo. Então é o seguinte, precisamos de
programas? uma estratégia urgente. Se não estivermos
sensibilizados em comunicação e na melhor
Wado Teixeira: Sou de Itapipoca, no Ceará. maneira de fazer política libertária nesse
Nós somos uma rádio comunitária legalizada, país, não vamos andar. Enquanto alguém vai
homologada pela Anatel, pelo Ministério das para a universidade fazer, o homem vai entrar
Comunicações, temos cerca de 15 locutores. Aí lá para fazer jornalismo e substituir o William
se você me perguntar quantos são mulheres Bonner, a mulher precisa substituir a Fátima
– nenhuma. Cada realidade, cada local tem Bernardes, então, não vamos avançar em
uma realidade. Elas dizem que não querem. comunicação. As experiências que eu tive, as
A gente tenta de todas as maneiras. Pra mim, mulheres ainda têm muito medo de assumir
eu como comunicador que sou, com 16 nos de uma responsabilidade. O problema do rádio é
rádio, tem que ver a questão de que a gente a mitificação que a direita faz. A direita faz um
percebe que as mulheres tem muita iniciativa estúdio, tranca, pega a chave e ninguém entra.
, mas eu não sei o que acontece em Itapipoca? Vamos fazer as nossas rádios e vamos fazer ela

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

na rua, pois é uma coisa que todo mundo sabe envolvidíssimas nesse seminário. Interessante
como funciona. Agora a gente está querendo que o seminário não trata apenas religião. Eu
ver se põe em prática que á trabalhar com a acho que é uma questão da pessoa humana,
criança, o adolescente, a gente quer ver se da cultura, do estado laico, do descaso e
consegue plantar essa semente neles, para desconhecimento do poder público ocidental.
que a gente comece certo. Essa questão
da rádio comunitária, pra mim, ela forma [Mulher não identificada]: Sou de Queimados,
locutores: vamos fazer esse comunicador? interior da Bahia. Com relação às represálias
que as rádios comunitárias sofrem, eu
Célia Rodrigues: Um toque para falo porque estou há quase 10 anos nessa
você companheiro: muda o conceito de experiência de rádio comunitária, não sou
programação da sua rádio. Eu acho que as formada em Comunicação ainda. A gente
rádios, não as rádios comunitárias, porque percebe de perto essa realidade que é a lei que
não tenho conhecimento de todas, ainda dá uma outorga para elas funcionarem, mas
mantém um ranço muito machista. Como se que não atingem o limite que gostariam de
faz comunicação de gênero? Cumprimentando atingir, que é chegar mais longe. As represálias
o público feminino, quando você fala bom de tratar o comunicador-radialista como um
dia, “queridos ouvintes da rádio tal”, só que criminoso, a gente viu comunicadores saírem
quem está ouvindo rádio naquele momento das rádios algemados. Outra questão, a
são as mulheres donas de casa. Absurdo pressão popular: eu já presenciei, na hora de
uma rádio só ter homens. Convida a Rede de uma rádio ser fechada pela Anatel e pela PF,
Mulheres da AMARC Brasil, que a gente ajuda. “a rádio é nossa, nós queremos a rádio aqui” e
Eu queria compartilhar um acontecimento, essa pressão precisa continuar. Outra questão
eu gostei tanto da fala da Mãe Beth que é a da programação: eu vindo ontem, da Bahia,
reclama da invisibilidade e desvalorização do interior pra capital para pegar o avião vi um
das religiões afro. Está acontecendo, a frente outdoor enorme na cidade de Feira de Santana
de mulheres do Movimento dos Cariri, de com aquela cantora que foi pro The Voice Brasil,
onde eu venho, está realizando nesse final de Paula Sanffer, fiquei olhando aquele outdoor e
semana o primeiro seminário de diversidade imaginando: caramba, nós, comunicadores e
religiosa, são mulheres feministas. Algumas comunicadoras, nós fazemos rádio no interior
delas estudiosas das religiões, o legal é que e a rádio comunitária deixa de divulgar a
as mulheres de terreiro, as comunidades e música regional e só começamos a divulgar
todos os demais conceitos religiosos da nossa depois que aparece na grande mídia: aí todo
região, que é muito carregada pela religião mundo aparece querendo ser padrinho, então
Católica por causa do padre Cícero, estão temos que avaliar o contexto de musicalidade.

76
Convergência

O que estamos fazendo com esse papel de convergência do que divergência. É a disputa
rádio comunitária? pelo bem público, que é da humanidade, não
tem dono. Por exemplo, ganharam uma liminar
Pedro Martins: Primeiro, o conceito de de nos proibir de ter publicidade estatal, tinha
comunitário, quando a gente fala em rádio sido aprovada uma Portaria do Ministério
comunitária, ainda é um conceito em disputa. das Comunicações. Fizeram o lobby para
Nós, da AMARC, não defendemos o conceito de continuar a criminalização da rádio abaixo
comunidade da lei 9.612, a gente defende que de 100 watts e a gente tinha ganhado, mas
cada comunidade possa se autodeterminar eles fizeram lobby e ganharam no Congresso
enquanto comunidade; que não é só um espaço e, segundo a votação, agora a gente tem um
territorial que aquela rádio vai ocupar, pra inimigo que tem um poder transnacional que
quem ela vai transmitir. Aí tem a comunidade são as operadas de telecomunicação: elas
de mulheres LGBT, índios, quilombolas, que vão disputar espectro conosco, a gente deve
se apresentam de diversas formas. Então ter em mente que não se resume mais aquele
a gente acha que, nesse sentido, a gente vai velho discurso das seis famílias proprietárias
caminhar para esse debate sobre o conceito dos maiores veículos de rádio e TV, no Brasil.
de comunidade, quando a gente fala da Agora, a gente tem que inibir também a
participação das mulheres, eu acho que mais Oi, Vivo, Tim, Claro... Estão aí disputando
do que as mulheres apresentarem programas espaço para vender banda larga e serviços de
nas rádios, elas também precisam fazer parte Internet, por isso a gente acredita também que
da gestão das rádios. As mulheres definirem as rádios comunitárias possam ser centros
os rumos que as rádios vão tomar e fazer de referência de Internet. É uma discussão
parte de toda a discussão, porque quando a que eu acho importante, é uma disputa que a
gente fala em rádio comunitária, não é porque gente está cada vez mais focando, construindo
ela se comunica para uma comunidade, mas coletivamente e nos movimentos sociais que
porque ela tem uma gestão comunitária reivindicam a comunicação.
também. E isso é importante a gente frisar que
as mulheres façam parte e que elas definam
as suas formas de participação: se vão ter
espaços separados para as discussões, isso
é importante, a autodeterminação desse
coletivo e, por fim, eu acho que a grande
disputa política com relação ao conceito de
rádio comunitária, espectro, que envolve
também as lutas das rádios livres, tem mais

77
Entrada 2

Redes e
Espectro
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Thiago Novaes

A Gestão Dinâmica da
Esfera Pública e
o Espectro Livre “O Espectro é do Povo! Como o céu é do Condor!”1.

N ão é certo que o espectro seja um


recurso, como a água e o ar. Nem é de sua
dominante na gestão do espectro na virada
para o século XXI2.
natureza ser escasso, finito ou controlável,
como as avenidas sem espaço para os tantos O convite para escrever este artigo
carros que por elas transitam. Eis a discussão aconteceu justamente quando, no Brasil,
teórica que orienta a atual mudança técnica está se discutindo um novo regulamento
para sistemas digitais, proporcionando uma para gestão do espectro, na Anatel3. Os novos
nova concepção de uso do espectro, dinâmico, equipamentos de radiação restrita foram
superando a limitação da interferência, objeto de uma consulta pública própria, a

80
Redes e Espectro

CP23, e o apagão da televisão analógica é bases de um novo paradigma de construção da 1


Recombinação do famoso verso
do poeta Castro Alves: “A praça
prometido para 2018, devendo ser distribuídos esfera pública. Fragmentando o indivíduo, que é do povo! Como o céu é do
dezenas de milhões de receptores digitais para se conecta multiplamente a novos aparelhos condor!”.
2
Na verdade, “as ondas de rádio
garantir a liberação das faixas utilizadas pela convergentes de comunicação, submetido a não passam através de um meio
televisão analógica para os novos serviços um emergente regime digital, arriscamo-nos, etéreo chamado espectro; elas
são o meio. O que é licenciado
digitais de celulares. Todas essas mudanças como sugere Peter Pál Pelbart, a “maneira de por governos não é um pedaço
trazem novos equipamentos, mas estão sendo pensar alternativas no interior desse caldo, do bolo, mas o direito de dispor
de transmissores e receptores
ainda realizadas sob a lógica da escassez do onde se dissolveram os corpos compactos, para operarem de determinada
espectro, que é controlado para evitar uma como classes, ideologias, todas essas figuras maneira”. Ou seja, definido
enquanto uma continuidade
suposta interferência e concedido pelo Estado simplificadas que já não agregam qualquer humano-máquina, uma ação
para exploração de serviços comerciais de constelação de acontecimentos, de ações, de que converge dois potenciais
de diferentes naturezas, uma
comunicação. projetos”4. humana e outra pertencente ao
mundo dos objetos técnicos, o
O desafio aqui proposto é o de atualizar os espectro está muito mais para
as cores do arco-íris, com suas
marcos jurídicos da comunicação social em um nuances, regidas por estéticas,
novo contexto sócio-técnico onde queremos A Constituição Federal de 1988 e a concluindo David Reed que a
“interferência é uma metáfora
relacionar arranjos tipicamente digitais que Empresa Brasil de Comunicação que mascara uma velha
aumentam a tensão entre o poder midiático e o limitação da tecnologia como um
que se convencionou chamar de esfera pública Entre os dispositivos constitucionais que fato de natureza”. Ver também
“The end of spectrum scarcity –
da comunicação. Assumindo duas vias de orientam esse texto, destacam-se: o pleno new technologies and regulatory
análise, iniciaremos considerando a presença exercício dos direitos culturais, da liberdade reform will bring a bandwidth
bonanza”. Disponível em: http://
crescente dos discursos outrora marginais na de expressão e a complementaridade spectrum.ieee.org/telecom/
disputa dos valores da opinião pública, como dos serviços privado, público e estatal de wireless/the-end-of-spectrum-
scarcity. Acesso em 20 Jul. 2016.
um fenômeno que acompanha o consumo comunicação social. 3
ANATEL. “Seminário de Gestão
massivo de aparelhos de comunicação digital. do Espectro”, 30 de abril de
Diante do desafio de teorizar sobre a passagem • “O Estado garantirá a todos o pleno 2015. Disponível em: https://
www.youtube.com/
do analógico para o digital, intentaremos exercício dos direitos culturais e acesso 4
Ver http://www.revistacinetica.
caracterizar as sociedades democráticas às fontes da cultura nacional, e apoiará e com.br/cep/peter_pal.htm
incentivará a valorização e a difusão das Acesso em 10 jul. 2016.
informatizadas aludindo à ideia de gestão
dinâmica da esfera pública: uma forma de manifestações culturais” (Art. 215);
combinar a mudança tecnológica que os novos • “é livre a expressão da atividade intelectual,
equipamentos digitais proporcionam para artística, científica e de comunicação,
ocupação mais eficaz do espectro radioelétrico independentemente de censura ou licença
ao processo de aceleração das trocas de (Art. 5o, inciso IX);
informação entre as pessoas, constituindo as

81
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

• “Compete ao Poder Executivo outorgar e Executivo ou outorgados a entidades de sua


renovar concessão, permissão e autorização administração indireta”. Ao criar a EBC na
para o serviço de radiodifusão sonora e de mesma lei, incorporando-se a Radiobrás ao
sons e imagens, observado o princípio da seu patrimônio, e dedicando 11 parágrafos
complementaridade dos sistemas privado, com referência ao seu financiamento, incluiu-
público e estatal (Art. 223); se também o Art. 32, que versa sobre uma
“Contribuição para o Fomento da Radiodifusão
Quando o então presidente interino do Pública”, o que permitiria à EBC arrecadar
Brasil, Michel Temer, exonerou o presidente fundos junto às 49 modalidades de exploração
da Empresa Brasil de Comunicação – EBC, comercial dos serviços de comunicação, em
Ricardo Melo, o escolhido para seu posto foi valores atribuídos em um anexo à lei.
o jornalista Laerte Rimoli, indicado para o
cargo no dia 20 de maio de 2016. A medida Inserindo-nos em um momento histórico
causou muita controvérsia, pois Temer agiu politicamente conturbado, parece prudente
como se a EBC fosse uma emissora estatal, adotar com clareza um posicionamento em
e não pública. A primeira reação do Supremo defesa da emissora, de suas trabalhadoras e
Tribunal Federal, em 2 de junho, trazia o trabalhadores que cumprem uma importante
seguinte argumento do ministro Dias Tóffoli: função social ao fazerem circular conteúdos
fora da padronização comercial. No entanto,
Observo da leitura dos dispositivos – expressos a investida contra a EBC, ignorando a
quanto à existência de mandato ao diretor- reforma geral em curso no quadro político -
presidente pelo período de quatro anos e expresso com dezenas de autoridades investigadas e
também quanto às hipóteses de destituição presas por corrupção pela Polícia Federal -,
do cargo (dentre as quais não se insere a livre e sua defesa inconteste, não devem ofuscar
decisão da presidência da República) – que há a necessidade de investigarmos outras
nítido intuito legislativo de assegurar autonomia mudanças, as que questionam paradigmas
à gestão da Diretoria Executiva da EBC, inclusive tecnológicos e apontam para a revisão de
ao seu diretor-presidente. conceitos caros às democracias, como o
A confusão sobre em que categoria situar a fomento ao debate público, o interesse público
EBC, porém, poderia ter raízes nas condições e a liberdade de expressão na esfera pública.
de surgimento de uma empresa pública Parte do argumento que aqui pretendo
bastante atrelada ao Estado, que no texto desenvolver está presente em um artigo que
da Lei 11.652, de 7 de abril 20085, decretava publicamos na coletânea Mídias Digitais, sob
“os princípios e objetivos dos serviços de o título “Sinapse XXI: novos paradigmas em
radiodifusão pública explorados pelo Poder comunicação” (Caminati, Novaes e Prado

82
Redes e Espectro

2005), e destacado no prefácio do mesmo distanciar da comunicação estatal, e o Ver http://www.planalto.gov.br/


5

ccivil_03/_ato2007-2010/2008/
livro pelo prof. José Marques de Melo: a aumento das vozes na esfera pública, o intuito lei/l11652.htm Acesso em 20
digitalização dos conteúdos, dos meios de é chamar a atenção para a possibilidade Jul. 2016.
6
Para saber mais sobre a
transmissão, e a emergente possibilidade de técnica de ampliação do debate público, história das Rádios Livres,
comunicação de todos com todos estão entre fomentando o interesse público e tomando sobretudo as europeias, ver
a tradução do livro As Rádios
as características técnicas que ampliaram como base a liberdade de expressão individual Livres, escrito pelo Coletivo
e modificaram as condições de produção do das pessoas, não das empresas. Ao se Rádios Livres Populares, em
1978: http://www.radiolivre.org/
debate público na medida em que passaram referirem ao Art. 223 da Constituição Federal sites/radiolivre/files/radios_
a incorporar diretamente vozes diversas, de 1988, os defensores da EBC destacaram livres_traduzido.pdf. Acesso em
20 Jul. 2016.
geralmente à margem do debate público. Ou na emissora sua curadoria eleita pela
seja, multiplicando a circulação das vozes que sociedade civil, sua preocupação com uma
antes eram majoritariamente controladas por programação educativa, e sua capacidade
meios de comunicação social proprietários, de canalizar uma produção independente
e reverberavam os interesses das famílias que só faz crescer. Defendiam, por fim, seu
proprietárias dos meios, acrescentamos papel contra-hegemônico, capaz de disputar
a hipótese de um novo regime digital de com os meios privados as narrativas sociais
formação da esfera pública de comunicação que tradicionalmente refletem a opinião de
onde a diversidade, e não apenas a pluralidade, uma minoria mais rica, em detrimento das
participariam na recomposição do sentido de necessidades de uma maioria mais pobre.
representação nos meios, associada à ideia Porém, para efeito deste texto, se assumimos
de limitação do espectro. Hoje, dispomos que a EBC não é estatal, que ela é pública, que
de tecnologias como rádio cognitivo e rádio outras formas de comunicação pública podem
definido por software, que proporcionam a ser fomentadas em uma abordagem sobre
gestão dinâmica do espectro, partindo-se do o espectro onde sejam possíveis emissões
princípio do compartilhamento do espectro, de comunitárias, livres, nem comerciais nem
sua abundância, não da escassez que autoriza estatais?
a poucos emissores ocuparem, muitas vezes
sem nem mesmo utilizar efetivamente, Historicamente, o outro grande ator a
grandes porções de espectro, em um momento ocupar o lugar do “público” sob o princípio
de demanda crescente de mais espaço para jurídico da complementaridade no provimento
novos serviços de comunicação. dos serviços de comunicação são as Rádios
Comunitárias e Rádios Livres6, com distintas
Ao comparar a noção de público empregada abordagens sobre a necessidade ou não de
na defesa da Empresa Brasil de Comunicação, prévia autorização para se comunicarem.
que reivindica sua autonomia e quer se Enquanto as Rádios Comunitárias são

83
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

previstas na lei 9.612, de 1998, e definidas pelo enganosa, sugerindo um risco para a aviação
Estado como emissoras que devem ocupar sem qualquer fundamento técnico, como o
uma única frequência no dial analógico, as demonstrou no Senado brasileiro o pesquisador
Rádios Livres partem do pressuposto de que Marcus Manhães (2006)7. Mais profundamente,
o Espectro é um Bem Comum (res communis o mito da interferência (WEINBERGER, 2003)
omnium), e que o Art. 5o da Constituição justifica historicamente uma apropriação do
Federal e o Art. XIX da Declaração Universal Estado sobre a gestão do espectro, “para que
dos Direitos Humanos, de 1948, asseguram as emissoras não se interfiram mutuamente”,
que se ocupem as frequências livres, sem e a Agência Nacional de Telecomunicações tem
prévia autorização ou licença, pois entendem a incumbência de fiscalizar se os equipamentos
que a sociedade não só não condena sua ação utilizados são adequados, devidamente
como também se beneficia dela. calibrados e se transmitem dentro de suas
margens de alcance previstas em lei (no caso
O maior obstáculo para a ocupação plena das Rádios Comunitárias, o raio previsto é de
do espectro é atribuído à interferência. 1 km, como se uma comunidade pudesse ser
Sabemos que ela tem sido utilizada de maneira definida com esse tipo de delimitação).

84
Redes e Espectro

No entanto, a radicalidade da mudança A Subversão do Princípio de “Desmitificando as


7

Interferências de radiodifusão
técnica em curso impõe não apenas um Publicidade FM em Comunicações
desmonte crítico dos regulamentos em vigor, Aeronáuticas”. Disponível em
http://muda.radiolivre.org/sites/
mas que busquemos amparos constitucionais Desde a metade do século XIX, quando muda/files/Interferencia%20
em outros capítulos além do dedicado à os primeiros jornais ingleses publicavam radio%20FM.pdf. Ver também
a apresentação: http://www.
comunicação social, incluindo o direito à em suas edições diárias opiniões políticas senado.gov.br/comissoes/
cultura e à educação, e dedicando especial voltadas para assuntos de interesse geral, os cct/ap/AP20080709_Radios_
Clandestinas_pesquisador.pdf.
atenção à possibilidade de incrementar a conhecidos editoriais de hoje, vem ganhando Jul 2016.
prática de transparência pública por meios espaço o fenômeno nomeado por Habermas
digitais de transmissão de dados, também (1978) como a subversão do princípio de
prevista em lei. Todas essas possibilidades publicidade promovida por meios privados.
concernem ao atual contexto de digitalização Essa subversão consiste basicamente na
dos meios de comunicação. Com a tecnologia modelação do trabalho publicitário sob a
de Rádio Cognitivo, no entanto, o paradigma forma de representação, fazendo com que
muda: ao tornar a gestão dinâmica muito esta se autonomize em relação à vida interna
mais eficiente que a provida na atribuição de da organização, notadamente empresarial,
janelas exclusivas pelo Estado, uma vez que retirando do funcionamento mesmo da
o próprio equipamento é capaz de encontrar publicidade o debate público (HABERMAS,
uma frequência disponível para transmitir, 1978, p. 209). Assim, a concentração da
a possibilidade é de aumento vertiginoso da propriedade das empresas detentoras
distribuição da infraestrutura necessária para de direitos de exploração do serviço de
se comunicar, experiência social que uma comunicação social, organizada em cartéis
recente relação humano-máquina de consumo e monopólios no Brasil (BELISÁRIO, 2015),
de tecnologias estabelece primordialmente facilita o controle das máquinas de circulação
sob os parâmetros de oferecimento de dos comunicados de interesse público,
serviços comerciais. Porém, além das resultando em um único objetivo, confundido
conhecidas tecnologias de rádio e televisão, com o processo eleitoral: realizar a campanha
são os convergentes e portáteis aparelhos de publicitária (HABERMAS, 1978, p. 219).
comunicação que deram o maior impulso para
a emergência da gestão dinâmica da esfera No Brasil, o surgimento do rádio esteve
pública. associado à ideia de promover a educação à
distância em um país continental, mas essa
missão permanece ainda atribuída a poucos
radiodifusores, sobretudo com interesse
comercial (REBOUÇAS E DIAS, 2016, p.

85
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

43). Uma das maneiras de tentar evitar a Art. 223, o respeito aos direitos culturais e,
concentração dos meios que canalizam o sobretudo, a garantia à liberdade de expressão
debate público é realizada, em vários países, nem de longe refletem as mudanças trazidas
interditando-se a propriedade cruzada sobre com as novas práticas envolvendo o digital.
as empresas que veiculam as opiniões e Como define Peter Pál Pelbart:
conteúdos de interesse público. Argumenta-
se que “quando a mídia não reflete a O lugar de formação da esfera pública se
diversidade e o pluralismo das informações transferiu da dimensão do confronto entre
e opiniões, isso constitui uma ameaça à opiniões ideologicamente fundadas para o
democracia e à sociedade” (op. cit., p. 49). magma do oceano neurotelemático, no qual
as coisas se determinam fragmentariamente,
Ora, se uma tal preocupação com a imprevisivelmente, por efeito de tempestades
propriedade cruzada sobre os meios possui psicomagnéticas e cada vez menos referidas a
uma clara justificativa face ao controle que esquemas políticos definidos.
poucas empresas possuem na veiculação
massiva dos conteúdos fomentadores do E complementa:
debate e do interesse público, parece-nos,
Assim, essa mutação não pode ser apreendida
por outro lado, que o objetivo de garantir a
com as categorias da democracia moderna
diversidade deveria avançar no sentido de
ou representativa, com o reino da opinião, das
promover a complementaridade entre tipos
regras. Diante da decomposição da mente
de emissoras, públicas, comunitárias ou
moderna, resultante dessa mutação do ambiente
privadas. A investida sobre a propriedade
em que se forma essa mente, do adensamento da
cruzada tem se mostrado inócua frente às
crosta infoesférica, da expansão do ciberespaço,
manobras exercidas pelos donos, e seus
não cabem mais as modalidades lógico-críticas.
parentes, além dos sócios que se configuram
Assistimos à integração da mente no processo
cotistas de emissoras privadas, contornando
de produção capitalista, à incorporação da
leis imprecisas, mantendo-se na direção das
inteligência na lógica do capital. Não há mais
políticas editorais e veiculação de conteúdos
sentido em falar da restauração das condições
com interesse maior de produção de lucro
democráticas da política, pois a formação livre de
para as empresas. Contudo, para além da
opinião, condição necessária para o exercício do
disputa de conteúdo entre tipos de emissoras,
que nos acostumamos a chamar de democracia,
quais são os parâmetros para assegurar que
tende a diluir-se8 .
de fato o debate público reflita o pluralismo
e a diversidade de uma sociedade? Tal como Partimos do pressuposto de que a implosão
formulados até o momento, a atenção ao das categorias implica em uma revisão sobre

86
Redes e Espectro

o que entendemos por espectro, este lugar comunicação e para a esfera pública, a disputa Ver http://www.revistacinetica.
8

com.br/cep/peter_pal.htm
invisível, onde convergem as novas mídias, sobre o espectro implica também uma luta Acesso 20 Jul. 2016.
implicando na reformulação da esfera pública contra a abordagem do Estado, que deveria ser
de opinião que operava com as noções de o agente que garantiria o direito das pessoas,
representação e escassez. Nesta passagem, à cultura, à educação, à livre expressão, mas
velhas empresas atuam como grande se apropria do espectro de modo a receber
latifundiários donos do espaço agora ocupado grandes montantes de dinheiro em troca
com novos dispositivos de comunicação e do direito de uso e exploração comercial
novas relações humano-máquina, que se de serviços. Eis o real motivo que explica a
realizam em uma nova forma neurotelemática. dificuldade das emissoras sem fins lucrativos
Se as categorias mudaram, mas persistem os em se utilizarem mesmo da menor fatia
mesmos problemas, como, afinal, realizar a disponível de espectro.
reforma agrária do ar no século do digital?
Considerando o Art. 225 (“Todos têm direito
Do ponto de vista jurídico, o espectro ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
constitui um bem público. O inciso XXI do bem de uso comum do povo e essencial à
artigo 4o da Resolução n.o 259/2001/Anatel sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
define o espectro de radiofrequências como Público e à coletividade o dever de defendê-
“bem público, de fruição limitada, cujo uso é lo e preservá-lo para as presentes e futuras
administrado pela Agência, que corresponde a gerações”), poderíamos ainda especular
uma parte do espectro eletromagnético abaixo sobre a necessidade de uma avaliação mais
de 3.000 GHz, que se propaga no espaço sem cuidadosa sobre o uso potencialmente
guia artificial e que é, do ponto de vista do danoso do espectro à saúde humana, que
conhecimento tecnológico atual, passível de deveria considerar limites e parâmetros
uso por sistemas de radiocomunicação”. técnicos claros de propagação de ondas para
recebimento em televisões, rádios e celulares,
Os bens públicos podem ser divididos em res geralmente acessados bem perto do cérebro.
publicae ou em res comunis omnium. Como res A alternativa jurídica para uma gestão
publicae, o espectro seria um bem público de ecologicamente adequada do espectro aponta
propriedade do Estado e por ele disciplinado e para sua municipalização, combina o direito
regulado. No sentido romano de res communis de antena à gestão de bens ambientais, como
omnium, ao contrário, o espectro seria um o ar e a água, e assume como premissa de
bem pertencente a todos, a toda a coletividade gestão a apresentação de um relatório técnico
(KISS, 1985: 423-441 apud PINHEIRO, 2013, p. de impacto ambiental onde se queira instalar
190). Ou seja, além da dificuldade de darmos a emissora de comunicação (FIORILLO, 2000).
materialidade a esse lugar tão crucial para a

87
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Em suma, ao considerar o advento de uma • Equador: “As frequências do espectro


esfera pública mediada por equipamentos radioelétrico destinadas ao funcionamento de
eletrônicos, e a necessidade de regular estações de rádio e televisão de sinal aberto
dispositivos constitucionais, muito há que ser se distribuirão equitativamente em três
discutido e contemplado para uma gestão partes, reservando 33% destas frequências
democrática do ambiente digital. para a operação de meios públicos, 33% para
a operação de meios privados e 34% para
Voltando ao argumento sobre a operação de meios comunitários” (Art. 106).
complementaridade dos serviços privado,
público e estatal, como previsto no Art. 223 Observemos que, embora distintas e
da CF88, ainda muito precariamente regulado considerando diferentes conceitos, as três leis
no Brasil, cumpre registrar as recentes leis visam garantir o fomento ao debate público a
promulgadas na Argentina, na Bolívia e no partir de emissoras que não sejam apenas
Equador. comerciais. No caso argentino, é explícita a
referência a emissoras sem fins de lucro; para os
• Argentina: a Lei 26.522 de serviços de bolivianos, inclui-se uma perspectiva étnica de
comunicação audiovisual, de 2009, reserva propriedade sobre os meios, onde a diversidade
33% dos espaços radioelétricos disponíveis, parece ser defendida a partir de uma definição
em todas as bandas de radiodifusão sonora e de social-comunitário que se preocupa com as
de televisão terrestres, em todas as áreas de visões de mundo e questionamentos trazidos
cobertura, para pessoa jurídicas sem fins de por campesinos, povos indígenas, afro-
lucro. (Art. 89, f); bolivianos e comunidades que entendemos
serem miscigenadas. E, finalmente, no Equador,
• Bolívia: Lei Geral de Telecomunicações,
há uma defesa explícita de que a maior parte
Tecnologias de Informação e Comunicação,
do espectro, 34%, seja dedicada aos meios
Lei Nº 164, 8 de agosto de 2011; c) distribuição
comunitários. Porém, no Brasil, além de uma
do espectro: a distribuição do total de canais
divisão do espectro, algo que seria aplicável e
da banda de frequências para o serviço
com parâmetros estabelecidos por países em
de radiodifusão em frequência modulada
semelhante situação constitucional e histórica
e televisão analógica em nível nacional
de construção dos meios de comunicação
onde exista disponibilidade, se sujeitará ao
social, que propostas há para atualizar leis e
seguinte: Estado, com até 33%, Comercial,
assegurar um interesse público que considere
até 33% e Social comunitário, com até
um debate público o mais amplo possível no
17% para povos indígenas originários,
contexto digital?
campesinos, e 17% para as comunidades
interculturais e afro-bolivianas (Art. 10, I);

88
Redes e Espectro

O Espectro Livre Uma outra maneira de entender o “livre”


pode ser referida no entendimento que deu
Chegamos ao momento de responder ao o juiz federal Jair Fagundes, em 6 de abril
menos a dois questionamentos trazidos de 2009, rejeitando a denúncia contra a rádio
ao longo do texto: “que outras formas de Filha da Muda, uma rádio livre instalada na
comunicação pública podem ser fomentadas Universidade Federal do Acre. Afirmou em seu
em uma abordagem sobre o espectro onde despacho:
sejam possíveis emissões livres, nem
comerciais nem estatais?”, e “quais são A conduta de quem, desafiando um status quo
os parâmetros para assegurar que de fato que a própria Constituição brasileira quer mudar,
o debate público reflita o pluralismo e a democratiza a radiodifusão, retirando esta
diversidade de uma sociedade?”. dos domínios exclusivos dos grupos políticos e
religiosos, não se mostra punível penalmente.
A primeira resposta deve considerar o Porque não é algo que a moral comum
legado que o uso da palavra “livre”, que se compreenda como criminoso
remete à liberdade de expressão de todas as
pessoas, e tem, para o movimento histórico de Na verdade, o juiz acatou o argumento
rádios livres, a forma de “livres do dinheiro e elaborado pelo advogado da rádio, Ariel Foina,
livres do poder”. Some-se ainda a importância que sustentou a seguinte tese:
que o software livre tem na digitalização dos
Uma vez que as rádios livres não se separam
meios de comunicação, seja na forma de um
de um público para servir a ele, mas são meios
midleware de interatividade para a televisão
para a comunicação direta entre as pessoas,
digital, o Ginga, ou rodando nos novos
como os telefones públicos, elas não estão
equipamentos de rádio definido por software.
previstas na legislação atual, a não ser no Art.
O “livre” tem ainda uma importância para os
V da Constituição Federal, que versa sobre a
estúdios livres, onde a produção multimídia
Liberdade de Expressão.
é realizada em software livre. Quando se
fala em emissões livres, dentro de espaços Com isso, a rádio deixou de ser considerada
públicos no espectro, estamos nos referindo “clandestina”, pois sua sede nunca fora secreta
ao direito fundamental de qualquer pessoa nem de “funcionamento oculto”, mas, mais
em transmitir, sem fins lucrativos, sem importante para fins deste texto, entendeu-se
proselitismo político-partidário ou religioso, que uma rádio livre não é “provedora de serviço
critérios consolidados junto ao movimento de de comunicação”, pois não separa emissores
rádios que zela pela livre expressão individual de receptores, ao contrário, estimula que todos
das pessoas. se comuniquem pelo rádio.

89
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

9
Ver http://openspectrum.info/ Se o princípio de complementaridade países em desenvolvimento”9. Se a defesa
Acesso 20 Jul. 2016.
10
Ver o vídeo: http://
presente no Art. 223 parece ser atendido com a da livre expressão já prescindia de qualquer
www.ibe.tv/es/canal/ reserva de espaços para emissões comunitárias permissão do Estado para transmitir pelo
laaventuradeaprender/849/
Nuvem-Esta%C3%A7%C3%A3o-
e livres, inspirando-nos em leis promulgadas espectro, com as novas tecnologias de rádio,
Rural-de-Arte-e-Tecnologia.htm por nossos vizinhos da América Latina, resta a gestão deste bem público passa a ser muito
Acesso 20 Jul. 2016.
argumentar em defesa da pluralidade e da mais eficiente de forma dinâmica, amparada
diversidade, agora no contexto digital, tema por tecnologias que localizam as frequências
que resumo de um artigo já publicado (NOVAES, livres, tornando o Estado obsoleto na alocação
2013): se de um lado a pluralidade é um de faixas exclusivas, que nem sempre estão
conceito importante para buscar o equilíbrio sendo utilizadas (basta considerar o apelo
na cobertura de notícias, tentando abordar econômico necessário para atrair a instalação
as diferentes versões de um acontecimento, de infraestrutura de comunicação nos
sobretudo de caráter jornalístico, a diversidade interiores do Brasil)10. Porém, na esteira dos
é um valor ligado às culturas presentes em um movimentos que se organizam para defender
país, que levaram a Bolívia a reservar parte do a ampliação do acesso ao espectro, a opção
espectro para a expressão dessas minorias. Em pelo Livre se impõe sobre o Aberto, separando
nosso entendimento, a diversidade somente claramente o direito à livre expressão da
é contemplada se as pessoas têm acesso possibilidade técnica de desenvolvimento
direto ao meio, sem intermediários, o que econômico utilizando faixas não licenciadas,
se tornou possível com as novas tecnologias como traz o modelo liberal. Surgido em terras
digitais, reconfigurando a maneira pela qual se brasileiras, o conceito de espectro livre tem um
estruturava a esfera pública, conforme vimos alcance global, irrompendo sobre fronteiras,
tratando. fomentando a autonomia tecnológica de
comunicação no contexto digital, em defesa da
Ao propormos a noção de espectro livre, diversidade, da experimentação, da liberdade.
uma primeira inspiração certamente advém Basta de escravidão midiática, o espectro quer
da proposta de open spectrum (HORVITZ, ser Livre.
2005), que propõe: “um ideal de liberdade
no uso de radiofrequências; uma crítica à Bibliografia
gestão tradicional do espectro; uma proposta
decorrente de tendências em design de BELISÁRIO, Adriano [2015]. “Espectro Livre
rádio;”. Em suma: “Queremos eliminar o como alternativa tecnopolítica à vigilância”.
atual papel do governo em conceder licenças Rev. Politics, n. 22. Disponível em: https://
a indivíduos e organizações para o uso politics.org.br/edicoes/espectro-livre-como-
inofensivo do rádio, particularmente em alternativa-tecnopol%C3%ADtica-%C3%A0-
vigil%C3%A2ncia Acesso em 10 de jul. 2016.

90
Redes e Espectro

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rss-journal/index.php/rssj/article/view/24/23 Thiago Novaes
Acesso em 10 jul. 2016. É pesquisador em
Telecomunicações, participou
WEINBERGER, David [2003]. “O Mito da do desenvolvimento do Sistema
Brasileiro de Televisão
Interferência no Espectro de Rádio”. Tradução Digital (2003). É Bacharel em
livre de Guilherme Barcellos. Disponível em: Ciências Políticas (UNICAMP).
http://culturadigital.br/josemurilo/2014/11/10/ Colaborador da Rádio Muda
FM (muda.radiolivre.org)
o-mito-da-interferencia-no-espectro-de- e do portal radiolivre.org,
radio/ Acesso em 10 jul. 2016. espectro.org.br, além de outros
coletivos. Secretário Geral
da Associação Brasileira de
Rádio Digital (ABRADIG).

91
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Ana Martina Rivas,


Radicante.Media

(Re)Construindo
redes comunitárias em
Motor City, Detroit
D ez anos atrás, eu realizei oficinas de
produção radiofônica com jovens de Atlapulco,
trovoadas. Eu me lembro que, para mandar um
email, demorava uma hora, às vezes mais, no
uma pequena cidade a duas horas da Cidade caso de a gente ficar impaciente e clicar, sem
do México, como parte de um projeto para a querer, um botão que direcionava para outra
criação de uma rádio comunitária. Naquela página. Era tão frustrante que eu acabava
época, a conexão à internet da cidade era decidindo dar conta das minhas comunicações
literalmente dolorosa, já que a gente tinha via internet na cidade grande mais próxima, a
que trabalhar com uma conexão discada que uma hora dali. Simplesmente não valia a pena
caía toda vez que a cidade era acometida por perder meu tempo olhando para uma tela que

92
Redes e Espectro

demorava minutos sem fim para carregar a conheço alguns daquele pessoal por colaborar
página. e participar na Allied Media Conference. Todo
ano eles lançam uma faixa de mídia que foca na
Uma década depois daquela experiência, eu desmistificação da tecnologia através do fazer/
tenho a sorte de estar próxima e participar ensinar. Este ano eu entrevistei Diana Nucera,
de projetos que envolvem a criação de redes que atualmente trabalha no Detroit Community
comunitárias de diferentes capacidades, Technology Project, em colaboração com Allied
algumas das quais abarcam rádios Media Projects, Grace in Action Collectives,
comunitárias, outras buscam criar conexão via Rádio Comunitária WNUC e o Programa
Intranet e redes de celular usando tecnologia Boulevard Harambe, da Igreja do Messias. O
GSM combinada com wifi e VoPI. Eu tenho programa foi lançado em julho de 2016 e vai
tentado entender tanto a tecnologia que estou até 2018. É uma iniciativa que busca levar
aprendendo quanto as melhores formas de tecnologias digitais para o desenvolvimento
fazer a comunidade se engajar na criação e na econômico e social em comunidades de baixa
manutenção de redes. Em outras palavras: a renda em Detroit, uma cidade em que 40% da
acreditar na importância de redes autônomas e população não está online e 30% vive abaixo
autogeridas. Eu verdadeiramente acredito que da linha estadunidense de pobreza. Eles usam
a tecnologia tem uma pequena porcentagem o software Commotion Wireless para fazer
nessa equação, quando comparada ao funcionar suas redes.
componente organização da comunidade. Ao
longo desses muitos anos envolvida nesses Há dois programas: um é o grupo de pessoas
projetos, tenho visto muitos transmissores que constrói as redes sem fio compartilhando
de rádio pegando poeira, pessoas exaustas a conexão Gigabit para cinquenta domicílios,
tentando arrastar jovens para seus estúdios e há um segundo grupo trabalhando nos
a fim de produzir um programa de rádio, isso aplicativos para aquelas redes sem fio, já que
sem falar daquele técnico experiente que, dentro delas é possível acessar a Intranet.
sozinho, vive etiquetando equipamento na A própria ideia de levar redes Gigabit para
tentativa de evitar que a comunidade bagunce cidades onde nem todos têm acesso a Internet
sua configuração, por estar cansado de ser é uma ideia, em si, doida. Isso me impressionou
chamado para resolver problemas na sala dos muito, como disse Diana:
equipamentos.
Com Gigabit é um novo mundo, você pode fazer
Nos últimos cinco anos, eu tenho coisas como chats de vídeo, editar vídeos ao vivo
acompanhado o trabalho do Detroit Community se as pessoas quiserem coproduzir um vídeo
Technology Project, que tem construído/ ou música via rede. Então, a ideia é permitir as
ensinado tecnologias de rede mesh. Eu muitas colaborações potenciais que as pessoas

93
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

1
Entrevista com Diana Nucera, podem ter com essa Internet de alta velocidade. sobre quão longe essas tecnologias evoluem
diretora do Detroit Community
Technology Project.
Com Gigabit você pode fazer seu próprio serviço para se manterem de ponta? Ou, antes,
de email. O que diabos as pessoas vão fazer com devemos nos focar em aprender quais são os
isso? Eu não sei. A gente achou que precisava modos mais efetivos para reivindicar essas
mesmo implementar isso, porque o país está tecnologias em colaboração mútua com as
adotando Gigabit. Penso que em alguns lugares pessoas que dela necessitam? Em outras
está causando um tipo de classicismo. Acho que palavras: devemos realmente parar e tomar
a primeira rede de fibra ótica do Google foi em o tempo necessário para sermos efetivos e
Charlotte, onde havia literalmente uma divisão construirmos essas tecnologias juntos, desde
racial entre os que usavam e os que não o usavam. a base, de mãos dadas com os usuários? O
Eu tenho me atentado a isso e pensado que, se que quer dizer que, realmente, precisamos
esse é o futuro da Internet, isso vai gerar ainda ter tempo de desenvolver mecanismos
mais problemas como: a gente se preocupava de compartilhamento de habilidades
em que as pessoas estivessem online, a gente suficientemente significativas para as
precisa se preocupar com a velocidade também. pessoas, porque elas próprias participam
Porque uma vez estando online você pode fazer do processo de moldá-las e adotá-las. Por
tanto, sua velocidade depende do que você exemplo, como podemos assegurar que essas
realmente pode fazer. É só um modo de tratar tecnologias serão sustentáveis no futuro, no
disso, em se tratando de acesso e alfabetismo que se refere à manutenção e transmissão de
digital. Ter moradores de bairro é o que cria o experiência para os demais com um modelo
futuro de Detroit, mais do que esses bilionários de educar educadores?
que vêm para a cidade e constroem um monte de
coisas. Velocidade é a nova fronteira da igualdade O Detroit Community Technology Project tem
digital, você já não consegue fazer mais nada pensado nisso, atualmente seu programa
com 10 megabytes.1 consiste em um treinamento de 20 semanas,
4 delas com foco em tecnologia, o restante
O modo pelo qual a tecnologia se move focando em habilidades de organização
mais rápido que nós, definitivamente, é comunitária. Ensinam o pessoal a fazer
um desafio para todos que trabalham pelo pesquisas sobre como as pessoas usam a
fim da divisão digital. Como podemos nos Internet e para quê, ver quais problemas
apropriar dessas tecnologias e transformá- há na vizinhança, habilidades para facilitar
las em ferramentas sociais para as pessoas, processos etc. Garantindo que a sala esteja
para que ajudem a desenvolver economias, cheia de pessoas motivadas pela tecnologia e
sociedades e comunicações radicais sem que por sua construção e se organizam por terem
se tornem obsoletas no momento em que as se dado conta de que é preciso um grupo para
implementamos? Devemos nos preocupar

94
Redes e Espectro

realizar isso: assim como é preciso todo um mesmo usar somente uma parte que faça
povoado para criar uma criança, o mesmo se sentido para eles. Você pode conferir online
dá aqui. Eles pensam que a fórmula certa para em communitytechnology.github.io.
redes sustentáveis são líderes comunitários,
uma pessoa tecnológica e uma galera que se Desse modo, trabalhar com lideranças
sinta confortável no telhado, para fazer direito. comunitárias, promover alfabetização
Trabalhar com pessoas que são líderes na digital, trabalhar com líderes locais para
vizinhança, em outras palavras, o domínio leva construir, planejar, organizar e manter as
a sustentabilidade. redes. Em cada localidade há grupos que
ajudam a promover capacidade digital em
Eles também sabem que demorar muito cada vizinhança. Sem aceitar que a tecnologia
para organizar esse processo coletivo de nos seja dada. Entender como a tecnologia
aprendizado/construção, às vezes, pode funciona, desmistificá-la. Atualmente, eles
levar as pessoas a desistirem, então eles têm três projetos de treinamento em Detroit,
têm tentado desenvolver diferentes modelos. algumas redes em Red Hook, Nova Iorque e 11
Estão documentando a experiência para redes-semente internacionais em 10 países.
aqueles que queiram adotá-la, replicá-la ou A Red Hook Initiative, em Nova Iorque, por

95
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

2
http://techpresident.com/ exemplo, surgiu um ano antes de o furacão experiência, precisam ser compartilhadas e
news/23127/red-hook-mesh-
network-connects-sandy- Sandy atingir Nova Iorque. Quando todas as construídas com a comunidade.
survivors-still-without-power infraestruturas de comunicação colapsaram,
3
Entrevista com Diana Nucera,
a rede veio como uma ferramenta bem útil a As soluções mais holísticas frequentemente
diretora do Detroit Community
Technology Project. ser usada em caso de emergência. vêm dos lugares que estão na intersecção entre
a marginalização e a opressão, aqueles que
Os nós cobriram a quadra circundante com estão lidando com a opressão frequentemente
Wi-Fi conectado à Internet global através de têm as soluções mais inovadoras para prevenir
uma conexão Verizon FiOS. Quando as pessoas que ela ocorra no futuro. Este é o motivo pelo
vieram ao RHI para se aquecer, eles também qual estamos começando em localidades que
carregaram seus celulares, ligaram para atualmente não têm acesso a Internet em
parentes preocupados com eles e checaram Detroit.3
seus email.2

Há muito a aprender com o trabalho que


essa galera tem feito e de sua experiência.
Claro, é importante lembrar que a tecnologia
se move mais rápido em alguns países. Mas
também é verdade que, infelizmente, muitas
leis e modelos opressores são os favoritos a
serem adotados nos assim chamados países
do terceiro mundo. O que, obviamente, leva
ao monopólio de tecnologias, como grandes
conglomerados como Google e Facebook Ana Martina Rivas
tentando levar iniciativas de acesso a membro do Radicante
Media Collective. faz parte
Internet para algumas regiões ainda sem do movimento de mídia
acesso. Penso em algo que aprendi da independente há mais de 10
experiência em Detroit: a importância da anos, no México e Estados
Unidos. Ex-membro do
inclusão de líderes comunitários no processo Prometheus Radio Project, Ana
de desenvolvimento de infraestruturas de auxiliou dezenas de organizações
tecnologia e comunicações. Por serem eles a solicitar licença de rádio FM
de Baixa Potência (Low Power
os que sabem exatamente as necessidades FM) nos EUA. Tem larga e
de suas comunidades. E saber que, às vezes, diversa experiência em produção
nós temos grandes expectativas de construir audiofônica. Atualmente, atua
como Diretora de Associação
modelos para inclusão participativa, visando da Federação Estadunidense de
ao domínio. Tais expectativas, a partir da minha Cooperativas de Trabalhadores.

96
Redes e Espectro

por Jaqueline
Deister, jornalista da
Pulsar Brasil

Telefonia comunitária:
uma nova possibilidade no
setor da comunicação
U ma experiência no estado de Oaxaca, no
México, tem permitido que comunidades rurais
operar os sinais na rede de telefonia móvel.

antes isoladas tenham acesso à emissão e Ao todo, 16 comunidades indígenas da


recepção de som e mensagem por aparelhos região estão sendo beneficiadas pelo projeto
de celulares simples. que já conta com cerca de três mil usuários. A
experiência ganhou status legal por parte do
A iniciativa do coletivo Rhizomática governo depois da luta de rádios comunitárias
usa a tecnologia GSM (Sistema Global de e movimentos indígenas para fazer valer
Comunicação Móvel) e 2G, ambas utilizadas o direito à concessão social do espectro
pelas grandes companhias de celular, para

97
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

1
A rede Mesh é composta eletromagnético para povos ou grupos sociais. Peter: Sim. Somos um grupo com sede
de vários nós/roteadores,
que passam a se comportar em Oaxaca, no México, mas, na realidade,
como uma única e grande O pedido das comunidades foi encaminhado trabalhamos de diferentes partes do mundo,
rede, possibilitando que às autoridades e concedido em caráter
o cliente se conecte em somos uma equipe pequena, quatro pessoas,
qualquer um destes nós. experimental por quinze anos. O caso foi e nos dedicamos a questões ligadas ao acesso
pioneiro no México e traz uma nova perspectiva à informação e telecomunicações. O projeto
sobre o uso das tecnologias do setor de começa com um trabalho pessoal que eu
telecomunicação. estava realizando na Nigéria nos anos de 2009
e 2010. Logo, me mudei para o México e o
Peter Bloom é o coordenador geral do
projeto se instalou e seguiu somando ativistas.
coletivo Rhizomática. O ativista e idealizador
da iniciativa esteve em Campinas, São Pulsar: Peter, na Nigéria você chegou a
Paulo, durante o Seminário Internacional iniciar algum sistema de telefonia comunitária
sobre Espectro e Redes Digitais, realizado como em Oaxaca?
em 2016, pela Associação Mundial de Rádios
Comunitárias (AMARC Brasil). Bloom concedeu Peter: Não. Na Nigéria, foi mais no sentido de
uma entrevista à Agência Informativa Pulsar trabalhar com certos ativistas em uma cidade
Brasil e explicou mais detalhes a respeito do que se chama Port Harcourt. Nesse momento,
projeto de redes comunitárias no México. usávamos outra tecnologia, que era buscar
criar uma rede mesh1 entre telefones móveis
Pulsar: Peter, o coletivo Rhizomática sem passar por nenhuma infraestrutura. Mas,
mostrou que a telefonia comunitária é um nessa época, a tecnologia estava em fase
caminho possível. Como começou o trabalho experimental e o resultado não foi tão bom,
com as redes de telefonia móvel? mas foi uma grande experiência para aprender
Peter: Na verdade, o trabalho começou como repensar a estrutura de comunicação a
na Nigéria com um projeto que eu estava partir do ponto de vista comunitário.
fazendo sobre como pensar a infraestrutura Pulsar: E como começou o trabalho no
de telecomunicação de outra maneira. E, México? E quantas comunidades utilizam o
desde então, precisamente 2010, eu venho com serviço de telefonia?
outras pessoas pensando, dentro do contexto
latino-americano, o assunto sobre a telefonia Peter: O trabalho no México faz parte de
comunitária que vem da inspiração das rádios experiências que eu estava tendo com rádios
comunitárias. comunitárias em Oaxaca. Lá eu conheci as
rádios comunitárias, pessoas e apoiei certas
Pulsar: E a partir desta experiência surge o questões técnicas com uma organização que
coletivo Rhizomática no México?

98
Redes e Espectro
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

se chama Palavra Rádio e daí foi surgindo trabalhar em cinco estados do México e temos
a ideia de como usar a telefonia para fins o direito de operar ou apoiar a operação de
comunitários. A nossa maior inspiração redes comunitárias sem fins lucrativos. Essa
partiu da organização das pessoas para é basicamente a limitação. Temos um acordo
montar suas rádios comunitárias. Hoje, nós com o governo para implementar a rede
temos uma associação civil que se chama comunitária somente em lugares que não
Telecomunicação Indígena e Comunitária e tenham cobertura telefônica. Não buscamos
trabalhamos com 16 comunidades ao redor do competir ou instalar redes onde já há um
estado de Oaxaca. sistema de telefonia operando.

Pulsar: Mas a questão da telefonia Pulsar: Como funciona o trabalho com a


comunitária esbarra num fator crucial: o comunidade para dar sustentabilidade ao
espectro eletromagnético. Como tem sido trabalho de telefonia comunitária?
para vocês lidar com essas questões políticas?
Peter: O papel da comunidade é fundamental
Peter: Esse desejo de trabalhar com telefonia no modelo que temos. A comunidade tem
móvel, obviamente, apresenta desafios quanto que fazer o investimento. Eles pagam os
ao acesso, ao espectro e às frequências que equipamentos que fazem a transmissão do sinal
utilizam os telefones celulares. Temos tido e participam na manutenção e administração
muita sorte, nos somamos a pessoas que se do sistema. Eles estão bem envolvidos com a
encarregaram das questões jurídicas, que operação. E o papel do coletivo Rhizomática
começaram a buscar estratégias de como é dar assessoria, capacitação, apoiar em
tornar legal o que fazemos. Atualmente, questões de suporte técnico.
contamos com uma concessão experimental
e estamos a ponto de já obter uma concessão Pulsar: E você pode explicar como funciona o
permanente. trabalho de administrar a rede? Por exemplo,
como seria para uma pessoa que quer falar
Hoje, temos uma concessão social que é de com alguém fora do seu país?
15 anos. Quando começamos tudo isso, em
2010 e 2011, os preceitos legais nem existiam, Peter: Nós trabalhamos com uma tecnologia
então seguimos construindo e participando desenvolvida recentemente que se chama
deste processo junto com movimentos sociais rádio definido por software2. Os equipamentos
e com o governo. de transmissão devem estar instalados
em algum lugar alto com linha de vista da
Pulsar: E como é a concessão experimental? população e sobre estes aparelhos devem
rodar certos softwares, programas que fazem
Peter: A concessão experimental nos permite

100
Redes e Espectro

a gestão da rede. Todos os softwares são comunicarem e gastarem menos dinheiro Rádio definido por Software:
2

Rádio Definido por Software


livres. Temos um sistema que usa programas e recursos de energia. Isso é bem positivo. ou SDR (em inglês: Software
que nós desenvolvemos e permite que a Creio também que há uma parte do projeto Defined Radio) é um sistema
de radiocomunicação no qual
rede opere normalmente. A gestão local da que reforça a iniciativa autogestionada e isso os componentes tipicamente
rede permite adicionar e excluir usuários, mostra a capacidade das comunidades se implementados em hardware
(misturadores de frequência,
inserir crédito para alguma conta. As pessoas organizarem independente de uma grande filtros, amplificadores,
localmente podem fazer certos movimentos companhia. moduladores/desmoduladores,
detectores, etc) são
dentro da rede sem entrar no terminal e nos implementadas em software,
comandos. Basicamente, qualquer celular que Pulsar: E como está o processo de expansão utilizando um computador
desse serviço? pessoal ou outros dispositivos de
recebe esse sinal pode se conectar e, logo, computação embutidos.
registra e já podem usar a rede. Peter: Em termo de expansão, a ideia é
3
VOIP é o roteamento da
conversação humana usando a
Pulsar: É possível ligar para outra pessoa crescer com esse serviço para que outras Internet ou qualquer outra rede
de computadores baseada no
em outro país? comunidades que ainda não têm acesso ao Protocolo de Internet, tornando a
serviço possam ter. Enquanto Rhizomática, transmissão de voz mais um dos
serviços suportados pela rede
Peter: É possível, mas os telefones terão estamos interessados em compartilhar esta de dados.
que ter o mesmo sinal. Mas, especialmente experiência em outros países também.
em lugares rurais, é muito importante poder
ligar e receber chamadas de longa distância.
Para poder fazer isso, os equipamentos
se conectam a internet e estas chamadas
se conectam a partir de um serviço de voz
chamado VOIP3. É possível ligar para quase
qualquer lugar do mundo. Estávamos vendo
que para falar de uma rede comunitária no
México até aqui em Campinas custaria uns
dois centavos de dólar por minuto. Já para
chamar aos EUA, comparado com as opções
Jaqueline Deister
que existem, as chamadas podem custar uma é formada em jornalismo
fração do que normalmente custariam. pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Amante de
Pulsar: E como que você vê os pontos rádio com ênfase na área de
Direitos Humanos, atualmente é
positivos que a rede tem dado à comunidade? integrante da equipe da Agência
Informativa Pulsar Brasil.
Peter: Eu creio que o efeito mais importante
é o aumento da possibilidade das pessoas se

101
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Adriano Belisário

Espectro e
Vigilância 1

E m tempos de vazamentos, grampos e


revelações bombásticas sobre complexos
armazenados e o fato de o usuário permanecer
subjugado a um modelo voltado a maximizar o
aparatos de monitoramento em massa, a lucro de poucos, em detrimento da qualidade
vigilância assemelha-se a um fantasma do serviço prestado ou da cobrança de tarifas
que ronda o cotidiano da população, justas. Refletir sobre a vigilância hoje sem levar
especialmente aquela conectada à Internet em conta o controle sobre as infraestruturas
ou a outras infraestruturas de comunicação de comunicação é um erro grave. Prova disto
privadas, como as redes de telefonia. Quase é a displicência mostrada pelo governo Dilma
sempre, a falta de privacidade é uma das Rousseff com o tema, que mesmo após a
consequências da ausência de autonomia descoberta de espionagem norte-americana,
sobre os meios e infraestruturas utilizadas tornou possível a então mandatária máxima do
para a telecomunicação. Outros prejuízos país ser novamente grampeada, desta vez pela
incluem a ausência de controle sobre os dados própria polícia brasileira2. Para esconjurar o

104
Redes e Espectro

1
Este texto trata-se de uma
fantasma da vigilância, urge fortalecermos as o precursor da telefonia celular, e o teletiton, versão do artigo originalmente
iniciativas construção de infraestruturas de pai da telegrafia sem fio. Dizia ele: “Dai-me publicado na Revista Liinc, em
2016.
comunicação mais autônomas e democráticas. um movimento vibratório tão extenso quanto 2
Sobre o assunto, recomendo a
à distância que nos separa desses outros leitura de carta que subscrevi,
O espectro eletromagnético constitui- mundos que rolam sobre nossa cabeça, ou junto a outros pesquisadores
se como um recurso central para as sob nossos pés, e eu farei chegar minha
da rede LAVITS. Cf.: http://
outraspalavras.net/brasil/
telecomunicações no século XXI. Em termos voz até lá” (apud ALENCAR et al., 2012). À intimidade-devassada/>.
econômicos, seria razoável sugerir que o época, esta “catequização interplanetária” e
3
Se considerarmos o espectro
de forma mais ampla, incluindo
espectro esteja para as telecomunicações, outras de suas ideias foram completamente também as ondas sonoras,
no século XXI, como as ferrovias estiveram rechaçadas por seus colegas paroquianos. devemos mencionar também a
noção - recorrente nas culturas
para as indústrias, no século XIX. No entanto, Landell foi considerado feiticeiro, louco e tradicionais - de que tambor é a
as analogias param por aí. Ao contrário das teve os equipamentos de seu laboratório “primeira Internet” (BELISÁRIO,
2016). De fato, o tambor é
ferrovias, o espectro eletromagnético, em destruídos, sendo transferido para outra notoriamente um dos primeiros
si, não foi construído por humanos. De fato, paróquia, no interior. Felizmente, não foi sistemas humanos de circulação
de informação a longas
certas faixas do espectro são fundamentais o suficiente. Já no ano seguinte, o padre distâncias, sendo largamente
para a nossa espécie e nos garantem, por reconstruiu suas máquinas e fez a primeira utilizado na África, muito antes
da Europa desenvolver qualquer
exemplo, a visão (frequências entre 400 ou 750 demonstração pública de uma transmissão tecnologia do gênero (cf.
terahertz) e a audição (entre 20 hertz e 20 mil por ondas eletromagnéticas do alto da Avenida GLEICK, 2013, p. 24-32).
hertz). Além disto, o espectro eletromagnético Paulista para outro ponto a 8 km de distância.
para telecomunicações só ganha concretude
a partir de objetos técnicos construídos Infelizmente, por outro lado, as tentativas
por humanos, que extraem dele suas de destruição de laboratórios de rádio
potencialidades. Mesmo assim, o espectro seguem atuais. Funcionando em Campinas,
eletromagnético é antes uma característica desde meados dos anos 1980, a Rádio Muda
do universo que, historicamente, demoramos é vítima de sistemáticas investidas de órgãos
a compreender e tirar pleno proveito de seus governamentais e estatais, via denúncias de
potenciais para a telecomunicação. Apenas meios comerciais, de repressão à mídia livre
no final do século XIX e início do século XX, e independente na cidade. Além disto, há
surgem as primeiras tecnologias humanas de ainda a tentativa de criminalização através de
transmissão pelo espectro eletromagnético processos judiciais de seus colaboradores,
utilizando ondas de rádio3. pesquisadores notórios com trabalhos
reconhecidos internacionalmente. Para além
Padre Landell de Moura avançava em seus da mera coincidência, importa aqui identificar
experimentos pioneiros com transmissões a persistência dos mecanismos de repressão
por rádio, quando se mudou para Campinas, que, por ignorância ou conservadorismo,
em 1893. Landell é o criador do anematófono,

105
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

dificultam práticas inovadoras e potentes primeiros passos na sua digitalização, uma


do campo da tecnologia e da comunicação. variedade de outras transmissões digitais
Neste contexto, tanto Landell quanto a já trafega massivamente, hoje, no espectro.
Rádio Muda, cada qual em sua época, são Deste modo, além de uma característica
protagonistas icônicos no desenvolvimento de física do universo, o espectro eletromagnético
infraestruturas de comunicação autônomas, tornou-se também importante ativo, um
que fazem uso do espectro eletromagnético, recurso econômico essencial na chamada
mesmo em situações hostis. “sociedade da informação”. Nele, enreda-
se em uma complexa trama tecnopolítica de
De Landell para cá, temos mais de um interesses sobre seu controle, uso e gestão.
século de conhecimento acumulado sobre Em linhas gerais, veremos, a seguir, como se
transmissões pelo espectro, condensado constituiu o paradigma hegemônico na gestão
em teorias e tecnologias de toda sorte. do espectro eletromagnético, hoje, para, em
Em contraste com a celeridade destas seguida, apresentar os desafios postos pelas
transformações, porém, as regulações novas tecnologias, diferentes respostas e
e normas legais transformaram-se em apropriações destas possibilidades e suas
um ritmo muito mais lento. Em suma, em
implicações para o debate sobre vigilância.
relação ao espectro eletromagnético, temos
ideias e tecnologias do século XXI, mas leis e O rádio no século XX
instituições do século XX.
Como os experimentos de Landell nos
Em meios como o rádio e a televisão, que mostram, ainda que tenha sido ampliada com
dependem fundamentalmente deste tipo as recentes tecnologias, a possibilidade de
de transmissão, a centralidade do espectro usar as ondas do rádio para a comunicação
eletromagnético é evidente. Com a Internet, horizontal entre pontos já era comum no
isto é menos claro, porém, cada vez mais, início do século XX. Antes de assumir as
a comunicação sem fio torna-se pervasiva características de comunicação em massa,
na arquitetura desta rede: comunicações que predominaram no século XX, o rádio
satelitais, redes Wi-Fi e a expressiva era utilizado como uma espécie de telégrafo
quantidade de usuários conectados em sem fio, como aquele inventado por Landell:
conexões de 3G ou 4G são apenas alguns o rádio nasce como uma tecnologia peer-
exemplos. Além disto, bluetooh, telefones, to-peer. No início dos anos 1930, Bertold
controles sem fios, drones, Internet das Brecht desenvolveu algumas reflexões sobre
Coisas e uma série de outras tecnologias o rádio que antecipam os desafios atuais
dependem do espectro eletromagnético para da democratização da comunicação: nelas,
operar. Enquanto o rádio e a televisão dão os

106
Redes e Espectro

enfatiza o potencial interativo, democrático Estado-Nação proclama para si o monopólio


e democratizante do rádio. Assimilando esta sobre esta regulação e, em seguida, realiza
tecnologia a partir de sua proposta de um um loteamento do espectro eletromagnético
teatro interativo, Brecht criticou a atrofia utilizável para telecomunicações. Deste
que o rádio parecia sofrer, ao ser eliminada a modo, algumas frequências são delimitadas
capacidade de cada aparelho não só receber, e tornam-se propriedade exclusiva de uma
como transmitir informações. pessoa (física ou jurídica). Assim, contorna-se
o problema da interferência e o Estado ganha
Ou seja, o fato de o rádio ter se um ativo extremamente valioso. Grosso modo,
transformado majoritariamente em uma durante o século XX, foram desenvolvidos
mídia de comunicação de massa, tal como o dois grandes modelos de política pública para
conhecemos, deve-se menos a uma limitação gestão do espectro eletromagnético.
técnica que a um direcionamento sociopolítico,
vide os radioamadores e o movimento de O primeiro baseia-se em critérios
rádios livres que continuam a apropriar- exclusivamente políticos: o representante
se do espectro como um bem comum e do do poder público em exercício simplesmente
rádio como uma tecnologia essencialmente concede estas autorizações para uso do
interativa e horizontal. No início do rádio, espectro a partir de seus interesses pessoais
as emissoras comerciais eram apenas uma ou afinidades ideológicas. Este modelo foi
pequena fração do total. Por outro lado, havia - e é - bastante utilizado, especialmente,
um grande número de rádios não comerciais, nas concessões para emissoras de rádio e
radioamadores, educativas ou religiosas. Nos televisão, cujo papel decisivo na formação da
Estados Unidos, quando aquelas começaram opinião pública as torna aliadas preferenciais
a ganhar espaço, houve inclusive rejeição para o poder constituído. O segundo modelo é o
da população à predominância de rádios de leilões, em que a riqueza econômica torna-
comerciais (LESSIG, 2001). Devido à ausência se o critério balizador. Ganha quem paga mais.
de normas legais no início do século XX, Esta forma é frequentemente mobilizada
o espectro configurava-se como um bem no loteamento de faixas do espectro para
comum autorregulado por seus utilizadores. telecomunicações, onde os altos preços
tornam estes leilões um jogo para poucos.
No modelo que predominou ao longo do As empresas de rádio/TV e as telecom’s
século passado, ainda hoje hegemônico, as são, hoje, os principais grupos econômicos
interferências causadas por transmissões na interessados na exploração comercial do
mesma frequência serviram como justificativa espectro eletromagnético. Apesar de terem
fundamental para a estatização, loteamento interesses divergentes, estes dois grandes
e comercialização do espectro. Primeiro, o

107
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

grupos possuem em comum o fato de se Open Spectrum


constituírem como oligopólios extremamente
concentrados, cujas práticas, frequentemente, Apesar de saudar este modelo como uma
entram em choque com o interesse público. maneira mais eficiente para gerir este recurso
se comparado às concessões políticas, Eli
No entanto, em pequenas faixas do espectro, Noam dizia, em meados dos anos 1990, que
convencionou-se não aplicar este modelo “não irá demorar, historicamente falando, até
de licenciamento prévio e exclusivo para que os leilões do espectro possam se tornar
transmissões eletromagnéticas. Em geral, tecnologicamente obsoletos, economicamente
estas faixas encontram-se sob o guarda- ineficientes e legalmente inconstitucionais”
chuva da chamada banda ISM (em inglês, (NOAM, 1995). Fazendo coro a outros
Industrial, Scientific and Medical), dedicada para pesquisadores norte-americanos da época,
fins médicos, científicos e industriais. Graças o professor de economia da Universidade de
a esta abertura, foram desenvolvidas diversas Chicago propõe um “próximo passo” rumo a
tecnologias hoje amplamente conhecidas no uma “alternativa de livre mercado” concebida
campo das telecomunicações, com o telefone por pesquisadores da época como ‘espectro
sem fio, o bluetooth, as redes Wi-Fi, etc. E, aberto’ (open spectrum). Segundo ele, ao
aos poucos, percebemos que o problema da contrário dos leilões, que tenderiam a uma
interferência pode ser menos uma limitação estrutura oligopolista, o melhor seria a venda
física da natureza do que tecnológica. Em
de espectro por demanda, com os preços
outras palavras, a incapacidade de vários
controlados de forma algorítmica a partir
transmissores usarem a mesma frequência
da disponibilidade e demanda das bandas
não é um fato natural incontornável, mas,
desejadas.
sim, uma decorrência de limitações de
certas tecnologias de comunicação sem fio. Para Noam, “o fundamento do atual sistema
As potencialidades destas novas formas de de leilões tem como premissa uma analogia à
comunicação sem fio, como o rádio cognitivo, propriedade de terra (ou arrendamento a longo
rádio definido por software (SDR) e outras prazo)”, devido a “um estado relativamente
tecnologias para compartilhamento espectral primitivo da tecnologia, onde a informação era
ainda são timidamente compreendidas pela codificada (modulada) em única frequência
comunidade acadêmica e pela sociedade civil. de onda portadora ou no máximo uma faixa
A seguir, buscaremos compreender qual o de frequência de pequeno porte”. Assim,
impacto destes avanços no modelo de uso para evitar interferências, o espectro foi
e gestão do espectro forjado no século XX, a “fatiado, alocado para diferentes tipos de uso
partir de dois conceitos: espectro aberto (open e atribuído a diferentes usuários”. “É como
spectrum) e espectro livre. se uma rodovia fosse dividida em amplas

108
Redes e Espectro

4
Disponível em: http://www.disa.
faixas para cada tipo de uso [...] e depois em Protocol (hoje chamado IPv4 ou IPv6) surgiu, mil/Mission-Support/Spectrum/
faixas ainda mais estreitas, uma para cada nós não sabíamos qual tecnologia seria Emerging-Technologies.
empresa de transporte. Uma vez que se melhor construir para as redes. Hoje, nós
aceita este modelo para o espectro, pode-se estamos usando tecnologias que nunca foram
argumentar sobre como distribuir as faixas, imaginadas no final dos anos 1970, e mesmo
seja pela economia, política, sorte, prioridade, assim aquele protocolo continua a ser o
diversidade, etc. Mas é importante não tomar núcleo da Internet. […] Nós precisamos de um
este modelo como dado e se focar apenas em regime que permita redes de radiofrequência
otimizá-lo. Para ficar com o exemplo, por que interoperarem e cooperarem no uso do
não se misturam tráfico de vários usuários? E espectro de forma aberta e experimental, tal
se a estrada começa a se encher, cobrar um como a Internet fez” (REED, 2001).
pedágio para cada usuário? E tornar esta taxa
dependente do congestionamento, de modo Assim como a Internet, as tecnologias
que seja maior na hora do rush do que à meia- de compartilhamento não exclusivo do
noite?”. espectro também encontraram um berço
nas pesquisas militares. Nos últimos anos,
Outro crítico a esta abordagem tradicional o exército norte-americano desponta em
de loteamento exclusivo do espectro, David pesquisas e desenvolvimentos nesta área,
Reed, apresenta indícios de que a capacidade não só em projetos sigilosos, mas também
do espectro pode aumentar de acordo com a em iniciativas de código-aberto. Na agência
quantidade de usuários, caso se adote modelos militar responsável pelo provimento de
de redes cooperativas (REED, 2001). Ou seja, soluções em tecnologia de informação para
a capacidade de transmissão de informação o exército e alto escalão do governo (DISA -
aumenta - e não diminui - de acordo com os Defense Information Systems Agency), há um
utilizadores de determinadas frequências. “centro de excelência” para gerenciamento de
George Gilder afirma que estas possibilidades espectro, conhecido como Defense Spectrum
de transmissão via rádio já estavam previstas Organization (DSO), responsável - entre outras
na teoria da informação de Claude Shannon, coisas - por identificar, monitorar e avaliar
elaborada na década de 1940 e afirma: “Não “tecnologias espectrais emergentes que se
sabemos qual será a ‘melhor’ arquitetura coloquem como um benefício ou uma ameaça
cooperativa. [...] Então, qualquer novo regime aos acessos do Departamento de Defesa ao
deve encorajar também inovação em novas espectro eletromagnético”4. Como parte de
arquiteturas [...] Creio que hoje é hora de olhar um acordo com a Organização do Tratado do
para trás, para os primeiros dias da Internet, Atlântico Norte (OTAN), este órgão criou o
em busca de inspiração. Quando o Internet Standard Spectrum Resource Format (SSRF),

109
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

um padrão para facilitar a interoperabilidade “Connecting the next billion”5 tornou-se um


de tecnologias em diferentes frequências. O lema, a preocupação central para não só para
SSRF foi desenvolvido em colaboração com o as empresas interessadas em arregimentar
Wireless Innovation Forum, entidade composta novos clientes e consumidores, como também
por órgãos de governo, associações industriais para os Estados e órgãos de governança em
e empresas, como o Google, Nokia, Ericsson, prol da universalização do acesso à Internet.
Huawei, Qualcomm, entre outras. Ainda é cedo Para isto, o espectro eletromagnético surge
para prever qual o impacto de longo prazo que como um recurso fundamental para garantir
esta primazia de investimentos militares terá esta conectividade ubíqua.
para as futuras comunicações sem fio em
termos de vigilância, porém, é evidente que há Os chamados “white spaces” constituem
uma grande assimetria de saber e poder sobre hoje uma disputa central nesta fronteira: são
o tema entre Estado e grandes corporações de frequências de rádio e TV não utilizadas, que
um lado e a sociedade civil de outro. passam a ser destinadas para o tráfego de
dados digitais. Assim, diversos defensores
Para muitos defensores do “espectro do “open spectrum” opõem-se radicalmente
aberto”, o desafio posto é a superação do ao broadcast, não só como topologia de rede
Estado como ente regulador das concessões de comunicação, mas, principalmente, como
para uso do espectro eletromagnético, pois arquétipo de uma sociedade centralizadora
seus critérios e procedimentos para regulação (WEINBERG, 2003). De acordo com Silvio
deste recurso são burocráticos e ineficientes. Rhatto, “o espectro aberto em uma concepção
Para sustentar sua posição, apoiam-se técnica prevê um rádio cognitivo, ou seja, um
em novas possibilidades tecnológicas, rádio que seja esperto o suficiente para achar
especialmente em novas técnicas de as melhores frequências de transmissão,
comunicação espectral e nos rádios definidos para identificar outros rádios que estão
por software. Neste contexto, os rádios são transmitindo”. Isso é um lado técnico, mas
“inteligentes” e podem se autorregular, se você levar o princípio do open spectrum
encontrando a melhor frequência e modulação para o limite mercadológico, o que teremos
para as transmissões, de acordo com a é este “uso racional, eficiente e automático
disponibilidade de cada momento. A questão de concessões” (RHATTO, 2013). Ou seja, no
central aqui é garantir a conectividade. limite, o open spectrum poderia levar a uma
Observamos poucos questionamentos ou generalização de um modelo de negócio
críticas quanto à vigilância ou centralização baseado em uma suposta neutralidade do
da infraestrutura física e privada da Internet: “livre mercado”, que garantiria conectividade
importa antes conectar toda a humanidade. ubíqua e acesso ilimitado ao espectro. Por

110
Redes e Espectro

5
Conforme: http://www.
vezes, o open spectrum remete ao que Barbrook pelas operadoras? Neste sentido, há uma intgovforum.org/cms/policy-
e Cameron (1995) chamam de ideologia disputa entre protocolos de comunicação options-for-connection-the-
next-billion.
californiana: uma fusão da contracultura descentralizada, como o Wi-FI, e novas 6
LTE-U é uma tecnologia de
norte-americana dos anos 1960 com uma tecnologias de banda larga móvel, como o transmissão de dados via 4G
tecnoutopia liberal, conciliada com os ideais LTE-U6. Assim, como os white spaces, temos desenvolvida pela empresa
Qualcomm, que faz uso de
de um comunismo cibernético. Para eles, aqui outra controvérsia e uma disputa de bandas do espectro não
tal ideologia concilia aspectos usualmente interesses milionários, onde a participação - e licenciadas.

relacionados à esquerda com outros mesmo a compreensão - das organizações da


atribuídos à direita, conseguindo a proeza sociedade civil no debate é quase nula.
de conciliar condições materiais capitalistas
com uma retórica comunista. O comunismo Por outro lado, há outro campo de reflexão
cibernético torna-se compatível com o sobre a noção de “open spectrum”, menos
capitalismo pontocom: a ideologia californiana vinculado aos interesses e retóricas militares
promete a substituição da burocracia estatal e ou comerciais - e mais interessado nas
do capitalismo corporativo por uma economia potencialidades da efetivação deste bem
da dádiva em uma sociedade colaborativa, comum como um direito de todos. Aaroz
organizada espontaneamente por seus Swartz mobilizou a noção de “open spectrum”
participantes hiperconectados. Sua ênfase para propor a criação de uma “Internet
está no libertarianismo e no individualismo, radio” completamente autônoma e livre das
considerando o espectro eletromagnético o infraestruturas proprietárias da Internet, pela
locus e o meio perfeito para o surgimento de um qual trafegam nossos dados. Sua proposta
mercado verdadeiramente livre (BARBROOK; é uma rede em malha (mesh) que opere em
CAMERON, 1995). todo o espectro, a partir da interconectividade
entre pontos próximos: “na Internet, você não
Movimento semelhante é apontado por precisa da permissão de ninguém para falar,
Diego Vincentin (2016), em pesquisa sobre o você necessita apenas de uma conexão de
uso de redes móveis. Sua pesquisa aponta um Internet. O mesmo é verdade para esta Internet
movimento crescente de grandes empresas em rádio (Internet radio), basta você começar a
de telecomunicação em direção ao uso enviar mensagens para seus vizinhos - e eles
de tecnologias baseadas no espectro não passam adiante”. Segundo ele, a FCC deveria
licenciado, como uma maneira de reduzir parar rapidamente qualquer plano de tornar o
custos. Ou seja, ao invés de se pagar pelo espectro uma propriedade privada e incentivar
espectro, como no modelo de leilões, por que pesquisas no uso eficiente e compartilhado do
não defender sua abertura (open spectrum) espectro eletromagnético. “Nós precisamos
para, então, torná-lo um ativo controlado definir as ferramentas para uma Internet

111
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

7
SWARTZ, Aaaron. Open
Spectrum: A Global Pervasive cooperativa em rádio (cooperative radio justamente uma “baixa tecnologia” - não por
Network. Disponível em: \\ Internet, em inglês). Assim como o Protocolo da ser menor, mas por ser minoritária, desviante
logicerror.com/openSpectru.
Internet (IP) agregou várias redes na Internet, ou resistente aos modelos hegemônicos,
O Rizoma de Rádios Livres
8

é uma rede que atua desde nós precisamos das mesmas ferramentas que voltados para o lucro.
2003, formada inicialmente por irão agregar as várias bandas do espectro em
colaboradores do Centro de Aqui, não se trata exatamente de uma ideia
Mídia Independente (Indymedia), uma Internet em rádio”7.
que reúne dezenas de rádios nova. Nos primórdios da rede Metareciclagem9,
livres em todas as regiões do em julho de 2002, Daniel Pádua fez uma
Brasil. http://radiolivre.org/. Espectro Livre
9
https://metareciclagem.github.
provocação seminal, para a criação de uma
io. No contexto latino-americano, as questões rede local sem fio, independente da internet,
10
fonias.submidia.org. sobre vigilância e espectro eletromagnético, “usando placas Wi-Fi de segunda mão, antenas
11
http://www.altermundi.net/. evidentemente, devem ser colocadas em novas repetidoras feitas com latas de batatas Pringles”
12
http://www.rnma.org.ar/. e computadores reciclados rodando softwares
perspectivas, devido às particularidades
13
http://wiki.rhizomatica.org.
sociais, econômicas e tecnológicas, bastante livres para servirem de pontos de acesso em
14
http://nuvem.tk/.
distintas da realidade norte-americana escolas públicas e associações comunitárias:
ou europeia. Neste sentido, é importante “criando um ‘backbone de lixo’ usando Wi-fi
destacar algumas experiências e iniciativas dá pra pelo menos conectar você com aqueles
recentes neste âmbito que fortalecem seus amigos lá do outro lado da cidade. Porque
práticas autônomas e de descolonização o lance nem é a Internet, mas a criação de
tecnocultural. Introduzimos assim o “espectro uma rede local” (apud FONSECA, 2009, p. 31).
livre”, que emerge como uma rede e um De lá para cá, diversas iniciativas sugiram na
conceito, a partir do acúmulo de debates do América Latina, a fim de prover infraestruturas
Rizoma de Rádios Livres8 e do seminário de comunicação autônoma sem fio.
ESC - Espectro, Sociedade e Comunicação.
Além da trajetória da rede Espectro Livre e
Apesar de compartilhar das críticas ao
do Rizoma de Rádios Livres, já mencionados,
atual modelo privatista e oligopolista que
no contexto brasileiro, cabe destacar
rege a regulamentação do uso do espectro
outras referências importantes. Não nos
eletromagnético, feitas pelo movimento
propomos aqui um mapeamento exaustivo
de “open spectrum”, por exemplo, a noção
das iniciativas, mas apenas uma pequena
de “espectro livre” diferencia-se desta por
amostra da vitalidade e do potencial deste
enfatizar menos o aspecto mercadológico
campo hoje: o Rizoma de Redes Livres agrega
do que o direito à comunicação e expressão.
discussões e iniciativas voltadas para Internet
Neste contexto latino-americano não
comunitária e redes mesh; o projeto pioneiro
encontramos o tema cercado por uma retórica
Fonias Juruá10, que instalou transceptores
high-tech: ao contrário, parece estar em jogo
em Marechal Taumaturgo (Acre) capazes

112
Redes e Espectro

de realizar transmissões de dados digitais desenvolve um projeto de rede, em parceria


ponto a ponto em longa distância por ondas com o Rhizomatica, evidenciando também o
curtas, sem depender da infraestrutura da intercâmbio de experiências e práticas entre
Internet. Combinando estas possibilidades tais iniciativas.
com a utilização de criptografia, temos,
então, autonomia praticamente completa Tendo em vista as particularidades de tais
sobre um meio de comunicação, infinitamente experiências, bem como a polissemia da noção
mais seguro e resiliente a ataques contra de espectro (open spectrum), o conceito de
privacidade do que qualquer solução que espectro livre é útil, a fim de evitar confusões
dependa da Internet tal como a conhecemos. entre propostas que buscam de fortalecimento
de bens comuns (commons) e novas iniciativas
Na Argentina, vale citar a experiência da rede mercadológicas de apropriação privada
Altermundi11, que atua com o desenvolvimento destes recursos. A distinção evoca outra,
e implementação de redes mesh; e a Red clássica, bastante reforçada pela Fundação do
Nacional de Medios Alternativos12, que reúne e Software Livre para apontar as diferenças com
estimula iniciativas comunitárias e populares as iniciativas ligadas ao código-aberto (open
de rádio e televisão, com atenção especial para source). Em geral, apesar de compartilharem
o saber-fazer envolvido na implementação de muitos pressupostos, como indica o
e manutenção das infraestruturas físicas movimento FLOSS (free, libre, open source
de comunicação. No México, há a iniciativa software) que abarca ambos, os defensores
pioneira do Rhizomatica13, que atua em áreas do software livre costumam apontar uma
rurais de Oaxaca provendo uma operadora inflexão mercadológica no discurso e nas
de telefonia móvel comunitária na região, práticas dos defensores do open source. No
desprovida de alternativas comerciais, pois caso do espectro eletromagnético, parece-
estas alegram a inviabilidade do negócio nos que se passa algo semelhante. Enquanto
para o local. Após o início bem sucedido e a a noção de open spectrum parece se associar
adesão da população ao projeto, o serviço majoritariamente ao discurso empresarial
de GSM comunitário ganhou autorização que vê o espectro não licenciado como uma
governamental para utilizar as faixas do oportunidade de mercado, o espectro livre
espectro demandadas pela população local. é forjado entre debates de pesquisadores e
A partir desta experiência, organizou-se, em ativistas, muitos deles ligados ao movimento
2015, uma iniciativa para implementar um de software livre na América Latina.
serviço semelhante no distrito de Fumaça, em
Visconde de Mauá (Rio de Janeiro). O encontro Aqui, trata-se de compreender a liberdade
foi organizado pela Nuvem14, hacklab rural que menos a partir da gratuidade ou não do uso
do espectro eletromagnético, mas, sim, em

113
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

termos de liberdade de expressão em todos brasileiro de telecomunicação, incluindo


os meios, tal como garante a Declaração novos atores no jogo econômico, rapidamente
Universal dos Direitos Humanos em seu artigo são capturadas por políticos e oligarcas locais,
19. Neste sentido, o conceito de espectro como demonstrou a série de reportagens
livre remete também aos ideais e práticas publicada pela Agência Pública sobre
do movimento de rádios livres, que, desde o retransmissoras de TV em municípios pobres,
século XX, já se apropriava do espectro como na Amazônia Legal16. Nestes locais, são
um bem comum, sofrendo forte repressão e comuns canais de televisão sem concessão,
vigilância por parte das forças institucionais. operados pelo próprio prefeito; pagamentos da
Prefeitura às empresas afiliadas de grandes
Considerações finais redes; terceirizações ilegais, entre outras
irregularidades.
Comparada aos cabos submarinos, fibras
ópticas ou satélites em órbita, a transmissão de De modo semelhante, brechas e
dados pelo espectro eletromagnético necessita oportunidades criadas com as recentes
de um investimento consideravelmente tecnologias digitais de comunicação sem
baixo, uma vez que bastam transmissores e fio podem facilmente serem capturadas por
receptores para tal: a propagação das ondas grandes corporações. Neste sentido, parece-
pelo espectro encarrega-se do resto. A nos fundamental fomentar o amadurecimento
adoção no Brasil de um padrão aberto para de ideias e propostas ligadas à noção de
o rádio digital (DRM) no Brasil15 e a liberação espectro livre em termos de uma tecnopolítica
de faixas do espectro eletromagnético para do comum - e não apenas como uma mera
o uso não licenciado e sem fins de lucro possibilidade tecnológica. As garantias quanto
são questões urgentes e cruciais para a à privacidade e autonomia da comunicação
soberania tecnológica do país, bem como certamente não irão decorrer da adoção de
para a democratização e construção de padrões tecnológicos ou arquiteturas de rede
infraestruturas autônomas de comunicação. abertas e descentralizadas, no entanto, sem
Em tempos de mineração de dados e vigilância estas últimas, qualquer iniciativa meramente
em massa, reinventar o rádio a partir do política que busque garantir aqueles direitos
digital pode ser um caminho eficaz de garantir irá esbarrar no controle privado sobre os
autonomia para uma comunicação livre. meios e as infraestruturas de comunicação.
Na ausência de políticas públicas efetivas
Referências
para a democratização do espectro,
mesmo iniciativas que poderiam favorecer ALENCAR, Marcelo S. et al. O fantástico
minimamente a descentralização do mercado padre Landell de Moura e a transmissão sem

114
Redes e Espectro

15
A escolha do padrão norte-
fio. [S.l: s.n.], 2012. Disponível em: http://www. the case for an entirely new regime of wireless americano de rádio digital (HD
memoriallandelldemoura.com.br/imagen/ communications policy. 2001. Disponível Radio) foi prometida pelo ex
Ministro das Comunicações
documentos/fantastico_landell.pdf. Acesso em: http://www.reed.com/dpr/locus/ Hélio Costa como um “prêmio
em: 17 jun. 2016. OpenSpectrum/OpenSpec.html. de consoloção”, uma vez que
o país optou por um modelo
nipo-brasileiro para a TV Digital
BARBROOK, Richard; CAMERON, Andy. __________. How wireless networks scale: (Cf.: http://apublica.org/2011/06/
THE CALIFORNIAN IDEOLOGY . [S.l: s.n.]. the illusion of spectrum scarcity. Boulder, CO, wikileaks-helio-costa-garantiu-
adocao-de-padrao-dos-eua-
Disponível em: http://www.hrc.wmin.ac.uk/ 2002. Trabalho apresentado no International de-radio-digital-como-%E2%80
hrc/theory/californianideo/main/t.4.2.html. Symposium on Advanced Radio Technology. %9Cconsolacao%E2%80%9C/).
Além de ser uma tecnologia
1995 Disponível em: http://www.reed.com/dpr/ fechada, propriedade privada de
locus/OpenSpectrum/ree_slides.pdf. uma única empresa, o HD Radio
BELISÁRIO, Adriano. Tecnomagia e não funciona em Ondas Curtas.
Apesar de o DRM levar vantagem
tecnoxamanismo: genealogias possíveis. RHATTO, Silvio. 2013. GT Regulação, neste e em outros quesitos
Dissertação de Mestrado em Comunicação Compartilhamento e Uso do Espectro - ESC técnicos, sendo o único que
atende plenamente à portaria
e Cultura. Programa de Pós-Gradução 2. Disponível em: https://archive.org/details/ que institui o Sistema Brasileiro
em Comunicação e Cultura, da Escola adrianobf_gmail_Esc2. Acesso em: 21 nov de Rádio Digital, a adoção do
padrão brasileiro de rádio digital
deComunicação, da Universidade Federal do 2016. até hoje não foi definida.
Rio de Janeiro, 2016. 16
Cf.:http://www.apublica.org/
SWARTZ, Aaaron. Open Spectrum: A Global tvsdaamazonia
FONSECA, Felipe. Os primórdios da Pervasive Network. Disponível em: logicerror.
metareciclagem. 2012. Disponível em: https:// com/openSpectrum.
mu tgamb.gi thub. io /met al i v r o / his tor ia /
primordios.html. Acesso em: 21 nov 2016. VINCENTIN, Diego. A reticulação da banda
larga móvel: definindo padrões, informando
GLEICK, James. A informação. São Paulo: a rede. Tese de doutorado em Sociologia.
Companhia das Letras, 2013. . Instituto e de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade da Universidade de Campinas,
LESSIG, Lawrence. The Future Of Ideas – 2016.
The Fate Of Commons In A Connected World.
2001. WEINBERGER, David. Why Open Spectrum
Matters - The End of the Broadcast Nation.
NOAM, Eli M. Taking The Next Step Beyond 2003. Disponível em: http://apps.fcc.gov/
Spectrum Auctions: Open Spectrum Access. e c f s /d o c u m e n t / v i e w ; E C F S S E S S I O N = W
1995. Disponível em: www.columbia.edu/dlc/ 0 s F WJ V W D 7 7r h 5 H X d g Ly L J n B G 6 k V V 1Z
wp/citi/citinoam21.html. x 2r P Pk1nR 2pmshd v Wnbnd!310 9 216 3 5!-
543955373?id=6513404739.
REED, David. Why spectrum is not property:

115
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Adriano Belisário
desenvolve pesquisas e ações
com tecnologias livres e
comunicação há mais de 10
anos. Jornalista com mestrado
pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, foi organizador
da publicação Tecnomagia e
do Copyfight, ciclo de eventos
e livro sobre cultura livre.

116
Redes e Espectro

por Bruno vianna

Mutirão para redes_


A experiência de Fumaça
E ste artigo quer trazer uma documentação
possível do processo de implantação da rede
preocupando-se com questões de ativismo,
livre expressão pessoal, sustentabilidade e, 1
Redes mesh (ou em malha)
mesh1 comunitária para acesso à internet principalmente, a autonomia das pessoas e de são um tipo especial de redes
de dados. Nas redes tradicionais
e do sistema de telefonia celular, também suas comunidades. hierárquicas, cada ponto de rede
comunitário, na vila de Fumaça, no interior está ligado a um ponto central,

do estado do Rio de Janeiro, em 2015. Essa Em 2012 e 2013, através de um patrocínio que por sua vez pode estar ligado
a outro ponto hierarquicamente
documentação vai refletir meu ponto de vista da empresa de telecomunicações Vivo, a superior. Já nas redes mesh,

e experiência pessoal como organizador do Nuvem recebeu os laboratórios colaborativos cada ponto tem a mesma
importância e está conectado a
evento. Interactivos3, com foco no desenvolvimento outros pontos. Se um ponto deixa
de tecnologias para a autonomia no campo. de funcionar, a informação pode
encontrar outro caminho para
Antecedentes da Nuvem Um dos projetos selecionados em 2013 foi chegar a sua destinação. Pela
proposto por um representante do coletivo característica de horizontalidade
e pelo fato de todos os pontos
A Nuvem - Estação Rural de Arte e Tecnologia - Guifi.net, da Espanha. O Guifi.net é uma rede serem iguais, a rede em malha é
é a entidade responsável pelo projeto Nascentes de telecomunicações autônoma, instalada e fácil de expandir.
de Dados de Fumaça. Atuando desde 2011, na gerida por seus próprios usuários, e que já
região da Serra da Mantiqueira fluminense, conta com dezenas de milhares de pontos
a Nuvem mistura um espaço de residências de acesso por toda a Espanha. O projeto
artísticas com ações de hacklab2 rural, consistia em estudar maneiras de iniciar um Rede mesh Rede
hirárquica

117
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

movimento similar no Brasil, começando pelo Financiamento


compartilhamento de acesso na região onde a
Nuvem atua. Os resultados foram mais notáveis A partir de 2014, a Nuvem não teve mais
entre os participantes do laboratório do que na acesso ao financiamento da Vivo e começamos
comunidade do entorno. Mas estava plantado a buscar outras formas de viabilizar atividades.
o desejo de uma rede autônoma, onde o Assim, enviamos o projeto Nascentes de Dados
acesso e compartilhamento de informação não à convocatória da Commotion Wireless, entidade
dependam de empresas, mas de seus vizinhos. mantida pelo Open Technology Institute, dedicada
à difusão de redes autônomas. A chamada
Fumaça oferecia um auxílio financeiro no valor de
dez mil dólares para a construção de redes
Fumaça é um distrito eminentemente rural comunitárias.
do município de Resende, com população de,
aproximadamente, 800 habitantes. Sua área Apesar de a Commotion ter sua própria
urbana tem cerca de 120 casas, em 10 ruas. tecnologia para redes mesh, a chamada não
Muitas dessas casas não têm uso permanente, exigia que essa mesma fosse adotada no
uma vez que os habitantes se deslocam para projeto. Foi então escrita uma proposta que
trabalhar na sede do município, a uma hora e usava o firmware4 Libremesh, desenvolvido
quinze de distância, e voltam para vila somente em conjunto pelos coletivos Altermundi5, da
nos fins de semana. O êxodo temporário ocorre Argentina, e Guifi.net, da Espanha, uma vez
também pelo fato de a escola local só atender que eles teriam representantes no mutirão de
até o quinto ano. Mesmo assim, os moradores implantação. Além da rede mesh, propusemos
têm uma conexão muito forte com o local; também um sistema comunitário de telefonia
muitos pertencem a uma ou duas famílias, que celular, baseado na plataforma desenvolvida
são as mais numerosas e tradicionais, como pelo coletivo Rhizomatica6, em Oaxaca, no
os Barcelos. Os que permanecem se dedicam México.
principalmente ao gado leiteiro. A vila tem um
tanque comunitário para resfriamento de leite No decorrer do processo, também foi obtida
e, pelo menos, um tanque privado além desse. uma bolsa de cinco mil dólares do Institute of
Seu nome se deve à cachoeira homônima International Education, através da Fundação
existente na região. O local da vila, no séc. XIX, Ford, que possibilitou a compra de mais
foi para onde foram deslocados os últimos equipamentos e infraestrutura.
indígenas remanescentes da nação Puri. Até
hoje, os habitantes se referem à vila como “a Preparação
aldeia”. Uma instalação de rede comunitária

118
Redes e Espectro

depende, em primeiro lugar, da participação vez, o de construção de uma rede de acesso Os hacklabs são espaços
2

abertos de trabalho
da comunidade: não somente como executora, à internet e telefonia celular gerida pelos colaborativos, dedicados à
mas também como protagonista e proprietária. moradores. ciência e tecnologia feita por
cidadãos. Em geral utilizam
Voltaremos a essa questão central, do software e hardware livres,
protagonismo e apropriação dos projetos Desde o começo, ficou claro que o abertos. São também espaços de
equipamento havia sido obtido como doação ensino e troca de informação.
comunitários nas conclusões; por ora, frisamos 3
Os laboratórios colaborativos
que a localização do sítio Nebulosa, em Fumaça, e que não haveria custos para os moradores. Interactivos seguem uma
onde são realizadas diversas atividades da Os custos em que poderiam incorrer seriam metodologia criada pelo Media
Lab Prado, espaço de ciência
Nuvem, nos torna parte integrante e ativa da da manutenção posterior, de substituição cidadã localizado em Madri,
comunidade. de equipamentos danificados ou da conexão Espanha. Essa metodologia
consiste em selecionar um
da vila com a internet, caso se optasse por número de projetos ao redor
Desde 2014, o governo do Estado do Rio de não usar o Wi-Fi público. Naturalmente, isso de um tema e, em seguida,
convocar colaboradores para,
Janeiro, através da EMATER - órgão estadual de tornou o projeto muito mais atraente, mas não em um período de 10 a 15 dias,
apoio à agricultura - vinha fazendo reuniões com estimulou a sua autossuficiência. desenvolver esses projetos de
forma colaborativa.
a comunidade local para realizar um projeto de
proteção de nascentes. Nessas reuniões foram Outra questão interessante que o 4
Um firmware é o sistema
que controla um determinado
feitas dinâmicas de identificação de problemas financiamento trouxe foi a concorrência – equipamento - como um sistema

na comunidade. O principal problema detectado de certa forma, desleal – com um provedor operativo em computadores.
Nesse caso, os equipamentos
foi a infraestrutura de telecomunicações: não incipiente local, Ramon, que começava a são os roteadores de rede,

há telefones fixos (além de alguns telefones oferecer seus serviços. A oferta de acesso dispositivos que distribuem o
sinal para usuários finais e se
público com funcionamento irregular) e não grátis à internet poderia soar como uma conectam a outros pontos de

há cobertura de celular, mesmo após vários ameaça para um pequeno empreendedor, mas, redes. O Openwrt é um exemplo
de firmware de código aberto,
abaixo-assinados feitos pelos moradores desde o começo, o projeto se posicionou como enquanto o AirOS e o DD-WRT

junto às operadoras de telecomunicações. uma colaboração e não como uma competição, são firmwares proprietários.

dividindo equipamentos, informações e


5
Coletivo argentino dedicado
A instalação do Wi-Fi público na praça, pela às tecnologias livres de
prefeitura, melhorou essa situação; porém, soluções. Ramon foi convidado e participou telecomunicação, em especial as
ativamente das reuniões preparatórias. redes comunitárias de acesso à
esse acesso era limitado fisicamente à praça internet.
da vila, tornando-o inviável em caso de chuva Ao todo, foram realizadas três reuniões,
6
Coletivo dedicado às
tecnologias livres de
ou para estudos em casa. Além disso, boa com cerca de um mês entre cada uma delas, telecomunicação, em especial
parte da população não sabe usar os recursos além da reunião final do projeto de nascentes
ao sistema de telefonia celular
comunitária.
de comunicação via internet ou não tem e das assembleias convocadas durante a
equipamento para isso. instalação. As reuniões eram divulgadas
Assim, no fim desse processo, no começo através de cartazes espalhados em pontos
de 2015, aproveitei a reunião para propor aos estratégicos: a igreja, principais mercados
moradores que participassem de outro; desta e escolas. Simultaneamente à preparação

119
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

local, estávamos pesquisando e comprando sustentabilidade, mantendo a limpeza da


o equipamento necessário, e lançando a casa, cozinhando coletivamente os alimentos,
convocatória para colaboradores. Na vila, documentando as ações e tomando as decisões
foi cedido o uso do salão comunitário para as para gestão coletiva dos processos. A principal
reuniões, além do seu uso como base para diferença fica por conta da hospedagem:
guardar equipamentos e trabalhar. enquanto a casa da Nuvem, em Mauá, podia
abrigar quase 20 pessoas, o sítio tinha uma
No início do mês de julho, começamos a casa muito simples, com seis camas. Assim,
preparar a parte técnica. O sítio está localizado os colaboradores tiveram que ficar acampados
a 4 km da Vila de Fumaça, e serviu de base durante os nove dias do mutirão.
para o projeto – era onde os participantes
de fora dormiam, comiam, trabalhavam. Foi Foram oferecidos os alimentos a serem
feita a instalação de cabeamento elétrico de preparados e transporte, uma vez que o acesso
300 metros até um ponto estratégico para ao sítio é precário. O número de participantes
instalação de um ponto de rede entre o sítio foi limitado pelo fato de só haver um banheiro
e a vila, de onde se podiam avistar os dois e cozinha pequena; porém, a partir das
lugares. Com esse ponto seria possível acessar experiências anteriores, sabíamos que seria
a rede de Fumaça a partir do sítio. Esse ponto possível convidar todos que se inscrevessem.
passou a ser chamado de morrinho. Além disso, A quantidade de pessoas também certamente
começou-se a preparar a BTS – estação base iria oscilar, dependendo do dia; muitos só
de telefonia celular. puderam participar durante o fim de semana.

Uma semana antes do encontro, no dia 18 A chamada foi divulgada pela lista de mailing
de julho, sábado, foi feito um dia de reuniões e da Nuvem, nossa página de Facebook e listas de
oficinas na vila, com o objetivo de familiarizar trocas de emails afins (como Metareciclagem,
os moradores com a tecnologia de redes. MidiaTatica, etc.). Houve um total de 19
participantes: programadores, trabalhadores
Convocatória sociais, pesquisadores acadêmicos, ativistas
das comunicações. Também tivemos dois
O chamado para colaboradores seguiu integrantes da Cooperativa Maria Luisa, de
quase à risca o padrão das convocatórias da Mulukuku, na Guatemala, convidados pela
Nuvem. Convidamos voluntários para ajudar, Commotion para participar do processo de
aprender, ensinar e vivenciar uma experiência aprendizagem e colaboração.
de produção colaborativa. Ao mesmo tempo
em que realizam as tarefas necessárias para
o projeto, os participantes garantem a sua

120
Redes e Espectro

Encontro Assim, foram definidos os locais de


instalação dos primeiros pontos de rede. A
O evento começou no sábado, dia 25 de julho cada dia eram instalados dois ou três pontos.
de 2015. No primeiro dia, foi feita uma oficina Uma questão técnica a ser resolvida era o
interna para os participantes, uma reunião ponto de conexão à rede pública de acesso à
para apresentação de cada um e planejamento internet; em princípio, a conexão era feita por
das atividades. Wi-Fi, a partir de um de nossos roteadores.
Mas, quando foi localizado o roteador público,
Cabe destacar que, no primeiro fim de instalamos nosso roteador no mesmo poste
semana, houve uma participação voluntária, e fizemos a conexão por cabo de rede, mais
a partir da convocatória, de ativistas de rádio estável. Curiosamente, o roteador instalado
livre. Eles montaram uma emissora de rádio pela empresa de acesso a serviço da
no morrinho, com cobertura na vila, que esteve prefeitura tinha um limite de número de IPs
ativa durante todo o mutirão. que fazia com que o sistem/a não desse conta
Para o domingo havia sido convocada uma de novos acessos da comunidade, congelando
reunião aberta a todos os moradores, cujo periodicamente. Tomamos a liberdade de
objetivo seria definir o desenho da rede de mudar essa configuração para prover um
acesso à internet– a partir da participação serviço de melhor qualidade.
e do interesse de cada um – e uma oficina O dia 29, quarta-feira, foi dedicado a oficinas
para capacitação técnica. O desenho de rede internas de preparação de firmware e de
também foi feito através de uma oficina, construção de antenas (a partir das parabólicas
desenvolvida pela Commotion e traduzida desenvolvidas pelo coletivo Altermundi). Além
durante a semana de preparação do evento. disso, foram instaladas aplicações no servidor
Houve baixo quórum e a reunião foi transferida local que ficaria disponível na rede local e
para a parte da tarde, quando, então, sim, terminamos de preparar a BTS. Nesse dia, o
chegaram entre 10 e 20 pessoas e houve grupo não desceu à vila.
conversas interessantes sobre o cuidado com
o bem comum (como o telefone público na A estação de telefonia celular foi instalada
praça). Foi marcada uma reunião para o dia e testada, com participação de alguns
seguinte e uma parte do grupo se dedicou a moradores, no dia 30. Mantivemos o
ir de casa em casa fazendo a divulgação. Essa funcionamento de modo restrito até o último
tática se mostrou muito eficiente, e provocou a dia do mutirão. O sistema operou muito
participação de mais de 20 pessoas. bem; os celulares locais, que normalmente
só funcionam em Resende, se conectavam
automaticamente à rede aberta local. Ligamos

121
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

a BTS novamente, brevemente, na sexta, A tecnologia usada também se mostrou


dia 31, para divulgar a reunião do último dia muito estável. Em um ano de uso, somente
através do envio de SMS aos telefones que deram problema dois roteadores que ficaram
conectaram à rede. desligados - suponho que devido à umidade.
Os que ficaram ligados aqueceram um pouco,
No dia 31, instalamos mais nós da rede, evitando esse problema. Um outro parou
de maneira colaborativa, com os vizinhos porque formigas fizeram ninho na caixa
aprendendo partes técnicas da instalação. hermética, um problema bastante comum.
Surgiram ideias para aplicações locais, como Com uma limpeza, ele voltou a funcionar.
a do morador que gerencia o tanque de leite
coletivo, que propôs que a produção de leite Os dois roteadores que falharam eram parte
de cada criador – e seu retorno financeiro da instalação do morrinho. A fiação elétrica que
– estivesse disponível na rede. Também havia sido estendida foi cortada por galhos que
dedicamos tempo à documentação técnica no caíram nas primeiras chuvas depois do mutirão.
site da Nuvem e no servidor local. Somente oito meses depois os sócios do sítio
se cotizaram e a fiação foi substituída por uma
A última reunião, dia 1º de agosto, foi de instalação com placa solar e bateria, que não
avaliação e decisão dos rumos a seguir. Optou- teve problemas até agora. Nesse meio tempo,
se por não deixar a estação de telefonia celular os roteadores ficaram no exterior, dentro de
funcionando, enquanto não for obtida a licença caixas herméticas, porém desligados.
da ANATEL. Também foi feita uma avaliação
interna, pelo grupo de colaboradores. A competição com o provedor local de acesso
comercial à internet, Ramon, também nunca foi
Conclusões e desdobramentos um problema. Os moradores que são atendidos
por ele continuam a pagar pelo serviço. Outros
O mutirão, enquanto método para instalação podem continuar usando a internet grátis “da
de uma rede comunitária, se mostrou um rua”, como é conhecida a rede comunitária. Sua
grande sucesso. A presença de várias pessoas cobertura, assim como a da rede comunitária,
que vieram voluntariamente de diversas partes não tem como chegar a todo o distrito - seria
do mundo fez da instalação um evento visível e uma tarefa que exigiria grandes investimentos
apoiado pela comunidade. As reuniões abertas e manutenção constante.
e as atividades de instalação, que uniam
voluntários com a comunidade, ajudaram a O que talvez ainda falte é uma apropriação
desmistificar a tecnologia e empoderar os da tecnologia. Nenhum morador tentou fazer,
moradores. por conta própria, a expansão da rede, mesmo
que tenham aprendido as técnicas. A conexão

122
Redes e Espectro

entre a rede mesh e a internet falha muitas avançando. É um projeto em eterna evolução,
vezes, já que depende do ponto de Wi-Fi grátis sem data para terminar e que esperamos ver
da prefeitura, que é mantido por uma empresa. replicado e melhorado em outros lugares.
Quando essa conexão falha, alguns moradores
ainda tentam contato comigo - o que vejo de http://nuvem.tk /wiki/index.php/Fumaça_
maneira bastante positiva - enquanto outros Data_Springs
simplesmente esperam que o problema se
resolva. Uma das possibilidades levantadas
durante a instalação era que os moradores se
cotizassem, por exemplo, para contratar outra
empresa, como a do Ramon, para prestar esse
serviço. Mas isso não voltou a ser cogitado por
nenhum deles.

Uma dúvida que surgiu durante a instalação


foi a de que a falta de apropriação tenha surgido
do fato dos equipamentos terem sido doados,
ao invés de comprados pela comunidade. É
uma pergunta a se responder em experiências
futuras. Faltaram também - da nossa parte,
já que não houve treinamento para isso -
aplicações que tirassem proveito do servidor
local. Se houvesse uma página de boas-vindas,
como um portal cativo, a comunicação entre e
Bruno vianna
para a comunidade melhoraria muito; e isso só é formado em cinema pela
depende de uma configuração local. Universidade Federal Fluminense
(UFF) e tem mestrado pelo
Está também na lista de afazeres, a obtenção programa de Telecomunicações
Interativas da New York
da licença junto à ANATEL para a operação da University (NYU). Atualmente,
telefonia GSM comunitária. É um processo que é gestor da Nuvem - estação
envolve outras entidades - uma universidade rural de arte e tecnologia, e
educador na Oi Kabum! - escola
para embasar o pedido de licença experimental, livre de arte e tecnologia. Já
uma ONG para o pedido de licença sem fins assinou curadorias e participou
lucrativos e um engenheiro para fazer anotação de projetos e exposições
artísticas. Seus longas e curtas
de responsabilidade técnica. Mas, lentamente, já ganharam diversos prêmios
na velocidade dos processos voluntários, vamos nacionais e internacionais.

123
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por brunz
(Bruna Zanolli)

Espectros feministas
no panorama de rádios
comunitárias e livres 1

A ntes de começar: sobre a difícil tarefa de


falar sobre feminismos...
sobretudo, por mulheres, para mulheres!

Esta é a visão passada nas entrelinhas do


Um pequeno desabafo: escrever sobre silêncio que relega a um lugar decorativo as
feminismo para o público geral é escrever questões dos feminismos3. E por isso, a gente
num ambiente não receptivo; é tratar escreve assim, com o estômago embrulhado,
do supostamente desinteressante ou com muitos receios: de que nos considerem
menos importante, do que não se quer menos por cutucar as feridas e insistirmos
falar acreditando que este assunto já foi nas mudanças, de sermos colocadas naquele
suficientemente abordado por pessoas bem lugar de mulheres que só falam de feminismo
instruídas e libertas, que lutam por uma e que veem problemas em tudo... tudo pra não
comunicação livre; é assunto de outras2... se darem ao esforço do autoquestionamento.
panfletos, blogs, sites e páginas roxas e lilases, Nosso sonho é viver numa sociedade em que
que devem ser feitas, lidas e propagadas, já não tenhamos mais que pautar as faltas de

124
Redes e Espectro

equidade de gênero (entre tantas outras) no contadas como histórias das tecnologias. 1
Agradeço a Debo pela revisão
inicial e incentivo.
acesso à comunicação e à tecnologia. Essas tecnologias são modos de vida, ordens 2
Ao longo do texto, escolhemos
sociais, práticas de visualização. Tecnologias utilizar o feminino genérico
E a gente muitas vezes se cala, entendendo são práticas habilidosas: Como ver? De onde como uma alusão ao substantivo
pessoa(s). Pensamos que são
que a necessidade de comunicação popular, ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? necessários esforços para fazer
comunitária e livre é maior. Mas o que Ver com quem? Quem deve ter mais de um um uso não sexista da língua.
E, ainda que tais esforços não
queremos combater com a comunicação ponto de vista? Nos olhos de quem se joga se esgotem com a estratégia
popular? Acho que a maioria diria, logo de areia? Qual outro poder sensorial desejamos aqui adotada, consideramos
que a incluem e, portanto, a
início – direta ou indiretamente – que lutamos cultivar, além da visão?” (1988, p.28). Essa assumirmos também como uma
contra os abusos do capitalismo e aí recordo fala ilustra as Teorias das Perspectivas, postura política no processo de
escritura de textos, sejam eles
uma fala da cantora franco-chilena, Ana Tijoux, desenvolvidas por feministas a partir da de índole acadêmica ou não
num show no Rio de Janeiro, em dezembro de afirmação de que o lugar de onde se vê (e se (Definição de Araújo Mendes,
Rizzatti, Zanolli, artigo no prelo).
2015: “Não há nada mais capitalista que o fala) – a perspectiva – determina nossa visão 3
Somos conscientes da
machismo!”. (e nossa fala) do mundo.5 E o que acontece se pluralidade tanto do movimento
como da teoria feminista e da
trocamos a palavra “perspectiva” pela palavra impossibilidade de abarcá-
Pra começar: “espectro”? “o espectro de onde se vê (e com las aqui, assim como da
impossibilidade de alinhar-nos
o qual cada pessoa se baseia para falar) –
“Eu vejo o feminismo como uma ferramenta a tão somente uma corrente
determina nossa visão (e fala) do mundo”, feminista, pois nos nutrimos
analítica que é cedida para discussão.” de tal pluralidade (Definição de
também é verdadeiro? Araújo Mendes, Rizzatti, Zanolli,
JIZZ LEE, pornstar genderqueer artigo no prelo).
A palavra espectro tem um significado 4
Nas palavras de Donna
Utilizaremos uma visão de feminismo para que podemos aproximar ao de perspectiva Haraway, em Saberes
Localizados: a questão da ciência
delinear questões tecnopolíticas das práticas e, inclusive, faz alusão a campos ora físicos, para o feminismo e o privilégio
tecnológicas, considerando pontos de vista ora semânticos. A perspectiva, para a óptica, da perspectiva parcial (1988): “A
corporificação feminista, assim,
não hegemônicos. Falamos de vidas que abarca métodos de representação dos objetos não se trata de uma posição fixa
ficam às margens do status quo da criação, em seus diferentes tamanhos e posições, se corpo reificado, fêmeo ou outro,
mas sim de nódulos em campos,
fabricação e distribuição das tecnologias no utilizando de projeções e ilusões para tanto, inflexões em orientações e
mundo atual (logo, não somente o recorte de considerando sempre algum ponto de vista. Já responsabilidade pela diferença
nos campos de significado
gênero está presente, mas outras alteridades, o espectro, como um termo científico, abarca material semiótico” (p.29).
tais quais racial, social, de orientação sexual, diversos tipos de intervalos, considerando 5
Tal como foi colocada a
de identidade de gênero...).4 amplitudes ou intensidades, podendo estar explicação das Teorias das
Perspectivas acima, trata-se
associado a frequências de acontecimentos de uma nota de rodapé do texto
Invocamos a visão mais ampliada de ou sequência de eventos. Aproveitamos para Saberes Localizados, de Sandra
Azeredo (p.14). Disponível em
tecnologia de Donna Haraway, onde: “As lembrar que, especificamente, espectro junho de 2016 em: http://www.
histórias das ciências podem ser eficazmente eletromagnético é o intervalo completo de clam.org.br/bibliotecadigital/
uploads/publicacoes/1065_926_
hARAWAY.pdf.

125
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

A feminista interseccional bell todas as possíveis frequências da radiação Da necessidade de se ampliar o


6

hooks reitera muitas vezes no


texto, de 1989, ‘Choosing the eletromagnética, desde as ondas de baixa espectro através dos feminismos
Margin as a Space of Radical frequência, nossas queridas ondas de rádio,
Openness’ como “language is also
a place of struggle”. Agradeço passando pelo espectro visível – a luz – até as O uso da palavra feminismo nos abre
a Raphi Soifer pela ajuda em de maior frequência como os raios gama. espectros para tratar dessas questões e
encontrar a tradução para esta
frase. Acessado em junho de ainda reitera um campo em disputa onde,
2016 em: https://sachafrey.files. No campo dos significados, as relações recordando bell hooks, “a linguagem é também
wordpress.com/2009/11/choosing- são mais evidentes: utilizamos a palavra um lugar de luta”6 e trata-se de insistir em falar
the-margin-as-a-space-of-radical-
openness-ss-3301.pdf espectro para definir uma amostragem e da voz quebrada … Mas o que seria essa voz
7
Edward George é membro do assim, podermos fazer comparações dentro quebrada? A ativista e acadêmica – que faz
Black Audio Film Collective, um
coletivo de artistas multimídia
de determinado parâmetro; quando dizemos questão de utilizar letras minúsculas para
ingleses fundado em 1982 e ativo espectro biológico, por exemplo, estamos nos seu nome de autora – descreve o termo “voz
até 1998, responsáveis por uma
serie de filmes documentais e
referindo aos diferentes níveis de organização quebrada” a partir de uma conversa com Eddie
textos. onde existe vida: desde moléculas, passando George (membro do Black Audio Film Collective7)
No livro Elementos para
8
por células, tecidos, órgãos, sistemas, em que ele diz algo como “a nossa é a voz
uma teoria dos meios de
comunicação, escrito em 1970. organismos, populações, comunidades, quebrada” e a resposta de bell hooks foi de
Disponível em junho de 2016 ecossistemas, biomas... até chegar a biosfera. que “quando você escuta a voz quebrada, você
em: http://minhateca.com.br/
janaoliv/Documentos/Livros/ Já a perspectiva se trata de definir/explicitar também escuta a dor que está contida nessa
Enzensberger*2c+Hans+Magnus+- quais são os parâmetros utilizados para quebra”. Como feminista interseccional, que
+Elementos+para+uma+teori
a+dos+meios+de+comunicac avaliar uma situação: sob a perspectiva de pauta gênero, raça, classe e seus cruzamentos,
ao,279735215.pdf uma abelha, por exemplo, o pólen é uma hooks fala da necessidade de ‘maneiras de
nutritiva refeição, mas pode causar um ataque falar que descolonizem as nossas mentes’, em
de asma em pessoas com rinite alérgica. que o discurso privado possa existir em falas
Mas realmente precisamos pensar espectro públicas e enunciados carreguem também
e perspectiva separadamente? E se essas múltiplas vozes, individualidades, pontos de
duas grandezas puderem se complementar? O vista e maneiras de ver o mundo.
espectro abarca uma amplitude e a perspectiva Os meios de comunicação nunca foram
aprofunda o conteúdo delimitado. E por que não neutros, assim como as pessoas não o são e
pensarmos em novos espectros para nossas cada tomada de decisão carrega uma visão
perspectivas? E, assim, ampliarmos nossos de mundo que se reproduz (para além das
pontos de vista e também o fundamental possibilidades de objetividade das mensagens):
que queremos discutir neste texto: novas desde a escolha das pautas, dos entrevistados,
perspectivas para o espectro eletromagnético. das fotos, dos ângulos, de que sujeitos são tidos
como “especialistas”. O teórico Hans Magnus

126
Redes e Espectro

Enzensberger já ressaltava, nos anos 70, como espectral dentro da já tão escassa faixa de
a mídia é inerente à manipulação, não em um frequência das mídias comunitárias e livres;
sentido pejorativo, mas no sentido de que se e nos questionarmos quais são as vozes e
trata de ações manuais, que serão manipuladas influências que seguem com pouco, quiçá
por alguém, indicando a impossibilidade de até nenhum, acesso aos meios comunitários.
dissociação entre as mãos de quem faz e o Em outras palavras, a mesma lógica de
produto final8. Afinal, por trás de cada câmera, escassez e finitude do espectro é vista quando
software de edição de áudio, imagem ou se trata não somente do acesso ao espectro
vídeo, operador de conteúdo, tem mãos – e eletromagnético por meios de comunicação
perspectivas- atuando. E se a falta de equidade populares e sem fins lucrativos, mas do
social entre homens e mulheres (dentre tantas espectro de acesso de outras perspectivas
outras) nunca passou pelas mãos/perspectivas aos meios de comunicação comunitária e às
de quem decide, escreve e publica as matérias, suas tecnologias. E esta medida se dá por
estas, consequentemente, irão ignorar mecanismos de exclusão mais complexos
aqueles questionamentos tão essenciais. que outorgas de faixas de frequência. Afinal,
Em outras palavras, o espectro de acesso quantas mulheres vemos ocupando posições
das mulheres aos meios de comunicação, de decisão políticas e técnicas nas rádios
às tecnologias de se fazer comunicação, aos comunitárias e livres?
espaços de decisões e horários expressivos
nas programações sempre foi mais restrito e, É urgente que tenhamos mais acesso ao
consequentemente, se tem um silenciamento espectro eletromagnético, eu também almejo
das nossas perspectivas. Mas, então, quais são e luto por isso. Acreditamos na necessidade
as possíveis relações que podemos e devemos de uma política que nos assegure acesso
fazer entre acesso ao espectro e espectro de desburocratizado ao espectro, proposta
acesso? encabeçada pelo espectro livre, que entende
o ar como um bem comum e que deve ser
É muito sabido e difundido entre partilhado por todas. Mas, para além dessas
comunicadoras populares que o espectro questões elementares que vêm sendo
eletromagnético brasileiro é um oligopólio nas pautadas, é também de suma importância
mãos de poucas famílias – e, vendo de mais que se ampliem as perspectivas de visões
perto, essas são mãos de homens, brancos, na do comum! Existe a necessidade de que
sua maioria, herdeiros e heterossexuais. Mas outras perspectivas se sintam também
é possível – e muito necessário – ampliarmos livres o suficiente para ocuparem o nosso
ainda mais esta visão a fim de enxergarmos espectro, de que criemos as condições para
também a reprodução da disparidade que se sintam motivadas e empoderadas para

127
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

9
No youtube procure por Mãe Beth utilizá-lo, de que não existam barreiras de do poder midiático no Brasil ao trazer as
de Oxum, Rádio Amnésia e Coco
de Umbigada, e acesse: https:// subentendimentos ou restrições de acessos. questões de “a quem interessa as pautas dos
sambadadecoco.wordpress.com/ É preciso estar sempre atenta e buscar a telejornais?” e de como esse cenário tende
mae-beth-de-oxum/.
10
A citação e os posicionamentos
democratização dos meios de comunicação, a se perpetuar e, inclusive, até a piorar com
da deputada foram retiradas do também dentro do espectro dos meios a digitalização dos meios de comunicação.
programa espaço público na TV Entusiasta do software livre, traz ainda em sua
BRASIL | 18/08/2015. Disponível
comunitários e livres. É urgente que estes
em: https://www.youtube.com/ sejam ambientes seguros e convidativos para fala a urgência destas novas perspectivas e da
watch?v=OykwLqGgZLs. libertação dos meios tecnológicos de velhos
todas e que não haja ainda mais barreiras no
acesso à comunicação comunitária. paradigmas: “é preciso que os jovens deem o
pulo do gato nessa história de tecnologia, não
Perspectivas feministas sobre o fiquem na mesmice... que entenda a dimensão
espectro: mermo, e a dimensão é você hackear mermo, é
você fazer o software, é você entender que esta
Mãe Beth de Oxum é um exemplo linguagem pode estar a nosso favor! ”.
extraordinário de novas perspectivas atuando
no espectro... Numa de suas muitas falas A comunicadora traz nas suas palavras que
disponíveis na internet9, traça um paralelo temas tecnopolíticos são assunto para todas
explicando que “o átomo da comunicação é e também serve de referência viva de suas
Exu, o orixá do pantheon africano que abre falas, sendo uma das primeiras mulheres a
os caminhos, que traz a comunicação, é o tocar maracatu, a participar das direções dos
espectro, o ar... (...) é o elemento que faz com primeiros afoxés em Pernambuco e a ocupar o
que a nossa voz seja ouvida, nossa cultura espaço de percussão, rompendo a intolerância
conhecida e é o que nos falta!”. Ao pensar à participação de mulheres... lembrando
a comunicação “para trazer pertencimento, que estes processos, muitas vezes, não são
identidade e alegria”, a comunicadora da harmônicos e que existe a necessidade de se
Rádio Livre Amnésia, em Olinda - PE (“a lutar para conquistar espaços.
rádio que esqueceu do seu dinheiro”) traz a Outra inspiração é a deputada federal
perspectiva de que práticas culturais podem Luiza Erundina (PSOL-SP), uma das poucas
ser responsáveis por mudar a autoestima de figuras políticas que têm coragem de peitar
uma comunidade, aproximando o universo do o monopólio da mídia em rede nacional.
cuidado emocional, tido como feminino, dos Erundina enxerga a mídia como um partido
meios de comunicação e das tecnologias. Ao político, que propicia a submissão do poder
mesmo tempo em que coloca estes processos político ao poder econômico, e é firme em
de empoderamento de nível mais local, pensa suas posturas em relação à urgência da
também na emergência da descentralização revisão nas defasadas leis e concessões das

128
Redes e Espectro

telecomunicações no Brasil, onde não existe e tecnológicos ainda se dá majoritariamente


nenhum tipo de controle e praticamente com a mediação e referência de homens
nenhuma participação social. Ela defende e, muitas vezes, num ambiente doméstico
a importância do Marco Civil da Internet – justamente por mulheres estarem
e sintetiza como chegou ao pensamento acostumadas com estigmas, piadinhas e
estratégico de que a principal reforma política com o uso do conhecimento como mais uma
a ser realizada é a dos meios de comunicação ferramenta de poder no contexto já desigual
social: “No dia em que a gente democratizar a de relações de gênero. Por isso, se faz muito
informação, a comunicação e garantir a liberdade necessário que essa perspectiva de ocupação
de expressão a todo mundo, nós teremos força e de descentralização destes poderes se dê
política para fazer todas as reformas, inclusive a de maneira constante, atenta e inclusiva. Não
reforma agrária, a reforma urbana, a reforma do estamos dizendo que pessoas só podem ou
Poder Judiciário, a reforma tributária, a reforma conseguem acessar lugares/conhecimentos
do Estado brasileiro”10. através de seus pares de mesmo gênero,
raça, classe, identidade e afinidades; mas que,
Luiza Erundina analisa conjuntu-ralmente sim, representatividade importa e que se faz
o controle cultural e ideológico que a mídia necessário – por todas – fortalecer a presença
comercial exerce na sociedade, atacando a dos feminismos nos meios de comunicação e
leniência dos governos em relação ao tema, tecnológicos. Felizmente, vemos, hoje em dia,
citando para tal o emblemático vergonhoso cada vez mais pessoas com a compreensão de
apoio confesso da rede Globo à ditadura que o espectro de acesso não é o mesmo para
militar no Brasil. A deputada denuncia todas e atuando de forma a diminuir as lacunas
também a destinação de recursos públicos de de acesso, mas o caminho ainda é longo...
publicidade concentrados em um único veículo,
fortalecendo a atual inversão lógica do papel Para finalizar, é bom lembrar que não
do Estado em relação a garantia constitucional existe uma fórmula mágica ou receita fácil
de liberdade dos meios de comunicação - onde para diminuir disparidades de acesso, mas a
existe perseguição aos meios de comunicação escuta, incentivo, cuidado e paciência sempre
autônomos e comunitários, enquanto o virão a calhar! Levar sempre em conta as
subsídio é direcionado aos grandes meios. diferenças de perspectivas como ponto de
partida, mas encontrar aproximações por
…por último e mais importante: onde ampliar espectros, criar ambientes onde
ampliando o espectro desde dentro! o questionamento em relação a estes temas
seja visto como assunto de suma importância
A entrada das mulheres (e outras sujeitas e que vozes não sejam silenciadas. Na prática:
não hegemônicas) nos meios de comunicação

129
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

incentivar todas as pessoas a ocuparem


posições de responsabilidade política nos
meios de comunicação livres e comunitários;
a protagonizarem suas próprias histórias
sob seus pontos de vista; a compartilhar e
tentar desmistificar, com paciência e sem
estereótipos, os conhecimentos técnicos; e,
muito importante, buscar representatividade
através de múltiplas vozes, programas e
eventos que contemplem outras perspectivas,
além de valorizar e confiar em decisões e
pautas vindas de outros espectros...

brunz
é artista visual, ativista e
educadora envolvida com
comunicações autônomas
por ideal, tecnologias livres
por curiosidade e feminismos
por necessidade. Atualmente,
pesquisa a reprodução
de hierarquias através de
tecnologias em um mestrado na
linha de pesquisa Tecnologias
da Comunicação e Estética,
da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).

130
Redes e Espectro

por Nils Brock e


Marcelo Saldanha

Rádios Comunitárias -
potenciais provedores de
"O
Internet não comerciais
rádio é o meio de comunicação mais ao rádio. Argumentos, por favor! Aqui estão as
autoritário de todos.” O quê? “Blasfêmia!” vão duas razões principais usadas pela OSF:
gritar muit@s d@s radialistas comunitári@s,
no Brasil inteiro. Infelizmente, não é tão fácil • Fazer rádio é excludente porque, para
refutar a citação como mais uma infâmia da transmitir sem viver sob o medo de visitas
grande mídia - porque vem de outra alçada. das agências reguladoras, você precisa de
uma licença ou outorga. E, obter uma dessas,
Conhecem Robert Horvitz? Não? É o fundador não é coisa fácil…
da Open Spectrum Foundation (OSF), uma
organização dedicada há anos a liberar o uso das • O rádio não conta com um canal de retorno.
ondas eletromagnéticas para qualquer cidadão É um típico meio massivo: uma pessoa fala,
e cidadã. Surpreende, então, a severa crítica milhares estão na escuta.

131
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Enquanto a primeira razão é modificável, Provedores comunitários – o próximo


a segunda deficiência do rádio, pelo menos passo na apropriação tecnológica
em modo analógico, parece não ter solução. popular
Porém, para criar um acesso mais democrático
ao espectro eletromagnético, o rádio não Desde os anos 1980, primeiro, as rádios
precisa morrer. As rádios comunitárias e livres e, logo, as comunitárias desmitificaram
livres mostram que uma estação pode ser o uso da tecnologia radial. Mostraram que
organizada de forma participativa, em que os um bairro, uma comunidade ou um coletivo
poderiam sustentar uma estação de rádio, no
papéis de radialista e ouvinte se tornam mais
melhor dos casos, organizada sem chefões
flexíveis. Além disso, por que gastar toda a e com uma ampla participação - tanto na
energia só em reestruturar o modelo do rádio? programação como nas questões técnicas. É
Hoje, já é possível multiplicar os usos do possível, então, organizar o fornecimento da
espectro. Limitar a democratização da mídia Internet de um jeito similar?
somente ao rádio até normaliza a organização
comercial de outros canais comunicativos. O Instituto Bem Estar Brasil (IBEBrasil) atua
desde 2008 na questão de como diversificar
Parece um pouco abstrata essa ideia, mas o acesso à Internet. Já colaborou com
não é. Nas próximas páginas, vamos perseguir organizações sociais, escolas e telecentros,
a seguinte pergunta: como se podem abrir em diferentes regiões do Brasil, para apoiar
ou criar provedores de Internet comunitária.
outros canais de comunicação através de
Isto poderia acontecer perfeitamente bem
uma rádio comunitária? Para imaginar isso, é numa rádio livre ou comunitária.
sempre bom começar com uma reivindicação
concreta. É um fato que o acesso à Internet Pensando num acesso sem fio (Wi-Fi),
em grande parte do Brasil é caro e lento existem até fatores que facilitam e barateiam
em comparação com outros países em tal projeto: quando já existe um espaço físico
desenvolvimento, como Chile, Uruguai e Peru1. comum e participativo, muitas vezes já existe
também uma associação inscrita organizando
Mais uma vez, se evidencia que a famosa mão
a rádio. Logo, já há eletricidade, torre para
invisível do mercado não é capaz de organizar antena, computador, etc. - enfim, muitas
uma demanda social. Então, porque não levar vantagens. Mas quais seriam os passos
adiante a experiência de organizar uma rádio necessários para converter este potencial
comunitariamente junto com a organização de numa prática sustentável?
um acesso não comercial à Internet?
O IBEBrasil desenvolveu, em parceria com a

132
Redes e Espectro

1
Ver: State of the internet/
Artigo 19-Brasil 2, um “Manual de como criar telefonia fixa também ficaram encarregadas do Akamai 2016 https://www.
um provedor comunitário”.3 A publicação desenvolvimento da rede de fibra ótica, ou seja, akamai.com/es/es/multimedia/
da infraestrutura troncal para levar a Internet documents/state-of-the-
resume todas as questões chaves. Porém, nas internet/akamai-state-of-the-
próximas linhas, vamos mais a fundo da criação de alta velocidade a todas as regiões do Brasil. internet-report-q1-2016.pdf
de um provedor de Internet, especificamente Mas isso nunca aconteceu porque não é tão 2
Ver: http://artigo19.org/
do ponto de vista d@s radialistas livres e lucrativo colocar centenas de quilômetros de 3
Ver: http://www.redeslivres.
org.br/legal/
comunitárias. Vamos lá, então. fios no sertão ou na Amazônia quanto o é numa 4
“Last mile (tradução literal
região metropolitana, densamente povoada e para “última milha” ou, também,
A volta da Telebras e o problema da com uma renda relativamente alta. O Estado, “último quilômetro”) acontece na
rede, quando, por exemplo, uma
“última milha”4 então, decidiu retomar o controle. operadora de telecomunicações
é contratada, mas não possui
Com a introdução da Lei Geral de No ano 2010, o Governo Brasileiro decidiu rede para entregar o serviço,
Telecomunicações (Lei N° 9.472), no ano utilizar as redes de fibra ótica estatais e então ela contrata a última milha
de uma empresa que possua o
1997, o Estado Brasileiro abre as portas lançou o Plano Nacional de Banda Larga meio físico ou faça isso através
para a privatização da infraestrutura que (PNBL). A meta do projeto, nas mãos da “Nova de conexões wireless” (Em:
wikipedia, https://pt.wikipedia.
ele havia organizado até aquele momento. Telebras”, consistia em ampliar rapidamente org/wiki/Last_mile).
Na época, a doutrina neoliberal governou no o acesso à Internet em regiões rurais e em 5
Veja neste link o projeto
mundo com pouca resistência. No caso das todas as instituições estatais, como escolas, completo, ainda em execução,
da Telebras. http://docplayer.
telecomunicações, o precursor na América bibliotecas e postos de saúde. Porém, a com.br/docs-images/20/947376/
Latina foi o Chile, onde a privatização dos fios da Telebras não presta um serviço que chegue images/8-0.png

telefonia fixa – e, posteriormente, de todas as até os domicílios, promovendo somente a


demais redes de dados – foi decretada já no ano venda do serviço no atacado, apesar do decreto
1982. Ou seja, o Brasil e muitos outros países presidencial do PNBL prever, em seu artigo
da região adotaram o programa econômico de 4o, várias ações que envolvem o provimento
uma ditadura civil-militar vendendo isso como na rede de última milha (ver rodapé 4). O
uma política moderna e uma maneira eficiente que se organiza, sobretudo, são quatro vias
de organizar a comunicação. de dados rápidas, quatro anéis de fibra ótica
que comunicam a parte oriental do país (ver
A empresa estatal Telecomunicações mapa)5.Além disso, via satélite, também se
Brasileiras S.A. (Telebras) não escapou da pode aceder à chamada “Banda larga popular”
onda das privatizações. No ano 1998, no no interior e no norte do Brasil. Mas, para
marco de um leilão internacional, as redes da realmente se beneficiar dessa oferta estatal,
Telebras foram vendidas. Eram quatro lotes precisa-se certa infraestrutura. Poderia ser,
de empresas da rede de telefonia fixa, oito por exemplo, uma antena parabólica com
lotes de empresas de rede de telefonia móvel a qual um telecentro cria acesso à Internet
e a operadora de longa distância Embratel. via satélite ou uma empresa comercial que
As empresas que ficaram com as redes de

133
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

6
Ainda que os autores achem
viável se basear nessa
resolução, Laura Tresca, da ONG
Artigo19, é cética: “A ARTIGO
19 considera que, mesmo
atendendo as especificações
todas previstas na atual
Resolução 506, esse caminho
cobra para distribuir a conectividade na já Ou seja, a esta altura nossa proposta é óbvia:
é inseguro juridicamente. É mencionada “última milha”. tornar as rádios comunitárias provedores
inseguro, porque a ANATEL
entende que provimento de Fica óbvio, então, que o engajamento estatal de acesso à Internet na rede de “última
acesso à internet é um serviço
passa por um gargalo: como o governo milha”, fazendo o link entre a rede de fibra
de telecomunicações e serviços
de telecomunicações precisam não conseguiu alcançar o seu ambicioso ótica da Telebrás (ou outras operadoras)
de outorgas para serem
plano inicial de levar a Internet de forma em certa comunidade e os seus lares, lojas
realizados. Nossa experiência
de trabalho com rádios acessível para todo mundo, hoje, cada lar e organizações. É uma proposta discutível:
comunitárias e movimentos
paga individualmente a uma empresa tipo dessa forma os provedores comunitários
sociais nos leva a crer que toda
e qualquer possibilidade de NET, que não faz mais do que comercializar não assumiriam tarefas que deveriam ser
criminalização vai ser usada
a conexão na última milha. Ou seja, a missão resolvidas pelo Estado? Sem dúvida, há que se
contra eles e, por isso, não
recomendamos operar com de universalizar e democratizar o acesso à cobrar do governo facilitar a democratização
base na resolução 506. A SLP é Internet não foi concluída no marco de uma das telecomunicações, porém, é justamente
uma outorga acessível do ponto
de vista financeiro e burocrático. política pública. Mas quem diz que a gente não a experiência das rádios livres e comunitárias
Não se justifica correr o risco de pode ajudar um pouco para chegar lá? que demonstra uma grande vantagem em
um eventual processo criminal e
ter equipamentos apreendidos,
organizar os meios de comunicação de
se existe uma opção viável que As comunidades como protagonistas forma coletiva e independente. A autogestão
traz mais segurança jurídica” permite articular e defender os interesses
(posicionamento via e-mail, da sua conectividade
17.11.2016). da comunidade de forma bem mais eficiente,

134
Redes e Espectro

também em situações em que o Estado não se Outra possibilidade seria legalizar o serviço 7
O Wi-Fi é um padrão com o
qual certificam-se dispositivos
mostra como o grande irmão bonzinho e capaz através do processo associativista informal, para redes locais sem fio
de atender às demandas sociais do direito via contrato particular entre os usuários, (WLAN). Wi-Fi é uma marca
registrada da WiFi Alliance, uma
à comunicação. Expressar-se livremente conforme também consta no manual. organização sem fins lucrativos
sempre atinge também as infraestruturas (ver: http://www.wi-fi.org/). O
Logo, existem, grosso modo, duas formas de patrão WLAN, que abrange mais
comunicacionais. dispositivos e bandas, é mantido
proceder: pelo Institute of Electrical and
No caso de uma rádio livre ou comunitária, Electronics Engineers (IEEE) e
para pretender virar uma protagonista na busca definido pela norma IEEE 802.11
• Compartilhar o sinal (ver abaixo “Requisitos (ver: https://pt.wikipedia.org/
por conectividade, o primeiro passo é verificar tecnológicos”) sem licença prévia, baseando- wiki/IEEE_802.11).
se o seu município já está sendo atendido pelo se na prerrogativa da Resolução 506/2008.6 8
Para saber mais como pedir a
licença SLP, acesse os seguintes
Plano Nacional de Banda Larga ou se tem links Dessa forma, a prestação do serviço se links: como usar o Sistema
com acesso viável técnica e economicamente. realiza dentro da norma de redes Wi- MOSAICO https://www.youtube.
com/watch?v=8bXJxme6dwQ
Fi, via processo associativista formal ou ou https://www.youtube.com/
A Telebras oferece dois mapas em que se informal, conforme descrito acima. Vale a watch?v=2dlvJ4Jw9zI; Manual da
pode conferir: Anatel sobre o SLP http://www.
pena sublinhar que estas bandas sempre anatel.gov.br/setorregulado/
• Municípios atendidos: http://www.mc.gov. foram abertas e as regras estão embasadas servico-limitado-privado.

br/acoes-e-programas/programa-nacional- em padrões internacionais7. Estas regras 9


Em seu portal, a ANATEL
oferece mais informações sobre
de-banda-larga-pnbl/municipios-atendidos exigem que o provedor não tenha fins a solicitação dessa licença:
lucrativos e deve ser organizado através http://tinyurl.com/orb4hc3
• Municípios com previsão de atendimento: de um processo associativo. Também
http://www.telebras.com.br/munic_ obriga-se que sejam usados equipamentos
atendidos_08042015.pdf homologados e que se respeitem os limites
de potência da Resolução 506/2008.
Caso a sua rádio fique em um desses
municípios, nada impede que ela possa oferecer • Obter uma licença de Serviço Limitado
acesso à Internet. Porém, há alguns requisitos Privado (SLP), na Anatel, conforme a
legais, tecnológicos e organizacionais a serem resolução 617/20138. Nesse caso, a entidade
pensados no seu coletivo: formal sem fins lucrativos precisaria dispor
Requisitos legais de um engenheiro para assinar o projeto
técnico. Uma licença SLP permite mais
Para se transformar num provedor liberdades do que a atuação dentro das
comunitário de Internet você precisa fundar normas (Wi-Fi) da Resolução 506/2008,
uma associação (formal). Muitas rádios já como, por exemplo, usar redes híbridas, ou
cumprem com este requisito; as demais seja, sem fio (com uso de outras faixas de
podem se informar no seguinte manual: http:// frequências) e com fibra óptica.9
www.redeslivres.org.br/legal/.

135
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Quando for solicitar uma licença, o que, no mensal de 80% da banda contratada. Porém,
caso das rádios comunitárias, corresponde a em lugares com maior competitividade, os
uma outorga, a experiência comum é de esperar custos podem ser bem menores. Por exemplo:
meses, senão anos, para obtê-la. Porém, no um link de 60 megabytes de velocidade em
caso das licenças SLP, a promessa da ANATEL Campos custava R$ 151,00,em Janeiro de 2017,
é de liberá-las em cinco dias, embora, na e a velocidade média era satisfatória. Porém,
prática, demore em torno de 30 a 45 dias. com um upload reduzido a 10% da banda
contratada, a velocidade era de somente 6
O custo de uma licença SLP é de R$ 400,00. megabytes por segundo!
Existe também uma taxa para cobrança
de licenciamento de estações, que é paga Os custos dos equipamentos de enlace
anualmente. No site http://www.solucom. também variam, desde um roteador (dispositivo
com.br você pode se informar sobre os valores para aceder a uma rede sem fio) pequeno até
de licenciamento. sistemas de antenas direcionais, permitindo
uma comunicação ponto a ponto. Esse
Requisitos (quais) e custos tecnológicos último tipo de equipamento é usado quando
não existe um provedor de Internet ou uma
Para ter acesso à rede de fibra ótica da
oferta economicamente acessível dentro da
Telebras, é necessário virar um cliente e
comunidade. Ou seja, ao invés de aproveitar
registrar-se online10. Ser cliente normalmente
um serviço local, você acede à internet através
tem um custo. Também nesse caso, o valor
desse equipamento de longa distância. Hoje,
varia dependendo tanto da região quanto da
o mais comum para trabalhar na banda de
distância entre a rádio e o ponto de acesso
Wi-Fi de 5.8 Ghz e distâncias de até 50 km são
(POP) da Telebras. No município de Campos
rádios com antenas direcionais de 30 dBi11.
dos Goytacazes (RJ), o preço para uma
O valor médio desses equipamentos é de R$
conexão acima de 10 mbps e num raio de 50
3.000,00, incluindo um par de antena e rádios.12
km do POP da Telebras tem um custo mensal
No entanto, para distâncias menores de enlace
de R$ 900,00, ou seja, R$ 90,00 por mega
de rádio entre os pontos, existem equipamentos
contratado. Porém, este é um link dedicado,
mais baratos, em torno de R$ 1.500,00 (o par de
ou seja, com taxas de upload e download iguais
antenas com rádio) para distâncias de até 20 km.
e com garantia de qualidade de 99%. Já em um
link comprado de uma operadora comercial de Numa zona com um perfil geográfico
última milha, ou seja, no varejo, a velocidade do relativamente plano, instalando um
upload geralmente é de 10% da velocidade de equipamento ponto a ponto de enlace com
download e o contrato permite que a empresa uma antena de 20 metros de altura, garante-
só entregue o mínimo de 40% e uma média se uma cobertura de 80% do território, num

136
Redes e Espectro

raio para distribuição do sinal aos usuários salário da categoria está entre R$ 1200 a R$ 10
Ver: http://www.telebras.com.
br/clientes.php
finais em até 3 km. Caso sejam terrenos 1800 por mês (2016). Outro contexto é fazer um 11
A unidade dBi refere-se ao
com montanhas, prédios altos e obstáculos contrato de meio salário mínimo por mês para ganho da antena em relação
manter somente a torre funcionando, através a uma antena isotrópica. Para
naturais será necessário pensar em criar mais se fazer um enlace de rádio é
enlaces de rádio para transpor os obstáculos de um MEI (Micro Empresário Individual), preciso ter um par de antenas
e agregar valor na sua renda através dos com rádios, sendo uma apontada
ou simplesmente agregar redes mesh (em para a outra e com visada sem
malha).13 Pensar numa rede em malha tem chamados técnicos individuais para instalação obstáculos entre elas.
várias vantagens porque cria uma participação e manutenção do micro e da internet na casa 12
O preço calculado refere-se
ao seguinte equipamento: Rádio
ativa da comunidade e baixa os custos. do usuário, bem como permitir que estes Rocket M5 5.8 Ghz Ubiquiti
Porque, no caso ideal, os pontos de fixação forneçam os equipamentos para os usuários, Antena Rocket Dish 5.8 Ghz de
30 dbi Ubiquiti.
para espalhamento distribuição do sinal criando um ambiente de fidelização entre 13
“Uma rede mesh é composta
são instalados nos tetos dos próprios lares, eles. Em muitas rádios já existem pessoas de vários nós/roteadores, que
reduzindo a necessidade de construção de encarregadas da manutenção técnica que passam a se comportar como
uma única e grande rede,
torres altas. Logo, o valor de cada equipamento poderiam ser capacitadas para tomar conta possibilitando que o cliente
numa rede em malha 14 é de aproximadamente desta infraestrutura e logo compartilhar os se conecte em qualquer um
destes nós. Os nós têm a função
de R$ 280,00. Como uma rede em malha seus conhecimentos. de repetidores e cada nó está
consiste em muitos nós interligados, ela é mais conectado a um ou mais dos
resiliente que outras redes, ou seja, é mais Além disso, pode ser interessante organizar outros nós. Desta maneira é
possível transmitir mensagens
tolerante em relação a falhas. No entanto, a um site na Internet que sirva tanto como um de um nó a outro por diferentes
qualidade das transmissões pode diminuir portal de acesso para os usuários quanto como caminhos” (wikipedia: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Redes_
caso haja muitos saltos entre um ponto e um site informativo. Muitas rádios já contam Mesh).
outro. Em comparação com os equipamentos com um site próprio que poderia ser convertido 14
Um dispositivo muito
em tal portal. O custo da reestruturação ou comumente usado é, por
ponto a ponto, a sua distância para repetir o exemplo, tp-link. No caso do
sinal é menor, podendo se limitar a 300 metros criação do site depende das capacidades uso de equipamentos de enlace
da rádio (algumas rádios conseguem fazer ponto a ponto (até 20 km), os
dependendo da potência de cada dispositivo. custos podem chegar até ao
Já nos equipamentos de enlace direcional, a isso sozinhas). A hospedagem do site (num preço de R$ 1.500,00 (o par das
servidor) é outro valor anual a considerar. Se antenas com rádio).
qualidade é maior e, com o custo mencionado,
pode ser repetido o sinal por até 20 km ou mais. houver tais habilidades, é interessante pensar
em instalar um servidor local ou compartilhar
Tornar-se um provedor de internet um com outras rádios comunitárias.
comunitária exige também pensar na
manutenção do equipamento. Teoricamente, Organização e sustentabilidade
para uma torre de distribuição de sinal de As regras de operação devem ser definidas
Internet necessita-se, no mínimo, de um democraticamente pelos usuários – afinal,
técnico em Telecom e Informática. O valor do é uma associação. Um bom começo para

137
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

15
É a ocorrência que gera a criar um provedor comunitário é organizar detalhes, pensando em 180 usuários, a taxa
obrigação de se tributar. Ou
seja, em resumo, se é um um debate inicial entre os membros da rádio única para cada um será de R$ 353,99 e o custo
serviço prestado em vias e da comunidade buscando, inicialmente, os mensal R$ 35,00 com um fundo comunitário.
comerciais, este deve ser
tributado e logo quem presta protagonistas sociais na localidade para ajudar
o serviço deve pagá-lo. Por na mobilização geral. Vale a pena estabelecer É evidente que um provedor comunitário
isso, é importante que, ao se pode agregar serviços. Se poderia pensar
criar a figura associativista uma agenda e pautar ponto a ponto todas as
sem fins lucrativos, se coloque ideias, questões e dúvidas. É importante falar em diferentes perfis de usuários, ou seja,
claramente nos objetivos que as e os associad@s contribuirão com preços
tais serviços fazem parte das das responsabilidades, dos custos e definir um
obrigações daquela associação código básico de conduta, inclusive em respeito diferenciados dependendo dos benefícios que
(formal ou não). querem. Por exemplo, usuários que queiram
às leis vigentes (por exemplo, não usar a rede
para crimes definidos em lei, etc.). transmitir áudio/vídeo por streaming, organizar
servidores de arquivos, telefonia VOIP ou
Enfim, um provedor comunitário, outros serviços podem contribuir com taxa
necessariamente, é uma associação de mensal maior.
usuários que também devem buscar a
manutenção sustentável da rede. Isso se faz, Mais algumas dicas: Um provedor
normalmente, através da cobrança de uma taxa comunitário, por não ter fins lucrativos, tem
que, por sua vez, nada tem a ver com o Código facilidade para fechar convênios junto às
do Consumidor e não se confunde com o fato universidades e órgãos de fomento à pesquisa
gerador15, ou seja, não é tributável. Entidades e extensão para alocação de estagiários e
sem fins lucrativos não pagam impostos sobre bolsistas. Em parceria com universidades e
prestação de serviços que se encontrem em outras entidades parceiras, consegue-se o
seus objetivos estatutários (associação formal) apoio para a realização e o acompanhamento
ou definidos em contrato particular entre os do projeto técnico e outras formas de parceria.
mesmos para fins de uso comum (associação
informal), pois são caracterizados como Liberando o ar
benefícios aos associados, como num clube de Sem dúvida, as condições para desenvolver
lazer, por exemplo. provedores comunitários não são ideais. O
Quanto aos custos mensais para cada usuário, Estado, até agora, não criou incentivos para
isso depende de vários fatores: o número de facilitar a sua emergência e sustentação. Ao
usuários, a tecnologia utilizada, o plano da mesmo tempo, as condições para organizar
manutenção e manejo, etc. Para dar uma ideia a última milha de conectividade de forma
básica criamos uma tabela (ver abaixo) com sem fins de lucro não são ruins. Em termos
uma taxa única de criação do provedor e as organizativos, as rádios livres e comunitárias
despesas e receitas mensais. Sem entrar em já contam com eficientes modelos de gestão

138
Redes e Espectro

Fonte: Instituto Bem Estar Brasil Agradecemos a


colaboração de Artigo 19.

139
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

coletiva (exemplos: assembleias semanais,


tomadas de decisão por consenso, etc.).
Organizando também um acesso comunitário
à Internet, estes meios poderiam ajudar
a sustentar a programação radiofônica e
até transformar a estação num laboratório
permanente pelo uso participativo de novas
Nils Brock (Alemanha)
tecnologias. Quer dizer: por que não pensar jornalista e doutor em ciências
em agregar a uma rádio a função de prestar políticas (Universidade Livre de
acesso à Internet dentro de um plano Berlim). Atualmente, trabalha
como colaborador internacional
comunitário? Fazendo bem os cálculos, isso na AMARC Brasil para apoiar
não será mais uma carga senão uma forma os Programas de Legislação
de sustentar os gastos da radiodifusão. e Formação. Além disso, é
consultor para mídia livre e
Poderia ser um caminho para ganhar mais independente e realiza pesquisas
independência e estabilidade econômica, no marco da digitalização da
além de criar um ambiente de convergência mídia colaborando como autor
e correspondente em revistas
midiática com muitas potencialidades. (Jungle World, welt-sichten),
produtora Pool de Notícias de
As redes se fazem e desfazem. O movimento America Latina (NPLA) e no
das rádios comunitárias tem todo o potencial Podcast bilingue +1Café.
para virar novamente um ator central na
convergência midiática. Milhares de estações
no Brasil inteiro poderiam se converter nas
sementes de uma rede comunitária que Marcelo Saldanha
é presidente do Instituto Bem
organize tanto programas de rádio como Estar Brasil e integrante de
também a base de uma rede participativa e diversos movimentos ligados
interativa, abrangendo diferentes meios de ao ativismo digital. Desde 2008,
atua no debate tecnopolítico,
comunicação. O que é “autoritário”, portanto, articulando propostas junto aos
não é o rádio, mas, sim, a gestão vigente e o uso governos em prol da existência
de grande parte do espectro eletromagnético. de provedores comunitários
e da adoção de políticas
Redes digitais, rádio, sistemas de telefonia – ligadas a cidades digitais. Pelo
tudo pode ser organizado livre do lucro e de Instituto Bem Estar Brasil, já
forma comunitária. Vamos começando… criou mais de 10 provedores
comunitários pelo país,
realizando oficinas de redes
livres e ajudando comunidades
a montarem suas redes locais.

140
Redes e Espectro

por gui Iribarren

Redes comunitárias,
rádios comunitárias
E mbora não possa dizer que faço parte do
movimento de rádios comunitárias, me senti
No meu caso, essa perspectiva foi se
gestando organicamente desde meus
sempre muito próximo: considero que as primeiros passos no mundo do Software
rádios e as redes comunitárias1, o software Livre, quando, em 2002, estava procurando
livre, a música livre e até os bancos de troca um LUG (Grupo de Usuárias de Linux) em
de sementes são todas expressões diversas Buenos Aires, e acabei chegando numa
da mesma lógica (vamos dizer “Cultura reunião da Buenos Aires Libre2: promotoras da 1
“Redes comunitárias”, nesse
Livre”). Nem todo mundo, ainda, tem essa ideia de formar uma rede wireless comunitária texto, referem-se a redes
visão abrangente, mas eu acredito que é na cidade, várias integrantes eram também informáticas de tráfego de
dados, geridas coletivamente
muito importante visibilizar as similitudes e usuárias de Linux, e falavam cotidianamente Elaboramos uma definição
consonâncias, a fim de fortalecer os grupos não só de antenas e software, mas também em http://blog.altermundi.
net/article/argentina-digital-
sociais e facilitar articulações que aprofundem das licenças Creative Commons, das diversas fomento-a-las-redes-
a colaboração. expressões de arte livre e outras lógicas comunitarias.
2
http://buenosaireslibre.net/

141
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

3
http://www.vialibre.org.ar/ colaborativas. A síntese conceitual, porém, • “Biotecnologia: Impactos sociais
http://www.vialibre.org.
4

ar/proyectos/monopolios-
me chegou em 2007 das mãos de Lila Pagola, e econômicos das técnicas de uso e
artificiales-sobre-bienes- da Fundación Via Libre3, em formato de um manipulação de organismos vivos”
intangibles/
livro em copyleft: Monopolios Artificiales sobre
5
http://fmlatribu.com/
Bienes Intangibles4. Repassando a história • “Oficina de Arduino: introdução ao
6
http://fmlatribu.com/tag/
toda do copyright e do sistema de patentes, hardware livre para desenvolver objetos
fabrica-de-fallas/
7
http://www.vialibre.org. para entender o “status quo” do software, interativos autônomos”
ar/2010/09/10/argentina-
copyleft-la-crisis-del-modelo-
música e livros, mas também com um capítulo • “SuperCollider: Síntese de áudio e
de-derechos-de-autor-y-las- dedicado à “Privatização da Vida” (referente composição algorítmica em tempo real, para
practicas-para-democratizar-la
cultura/
a plantas) e outro intitulado “Convergência artistas, músicos, cientistas e amantes do
8
http://derechoaleer.org/ de Movimentos”, me senti muito identificado som”
blog/2010/11/noviembre-arde- com a visão almejada e naturalmente fui me
otra-vez.html/
aprofundando cada vez mais nesse mundo. • “Amor Livre, formas de se amar e suas
9
https://es.wikipedia.org/
wiki/Ley_de_Servicios_de_ consequências”
Comunicación_Audiovisual O contexto me ajudava muito: lembro que já
10
http://lavecindaria.org.ar/ no ano de 2006 frequentava a rádio FM La Tribu5, • “O glifosato mata. Consequências
11
http://rnma.org.ar/ onde aconteciam as reuniões do mencionado ambientais e sociais dos agroquímicos.”
12
https://altermundi.net/ projeto de rede Buenos Aires Libre. A rádio era
13
https://pueblo.libre.org.ar/ um espaço aonde confluíam diversas pessoas • “Meu corpo sou eu: espaço com o
sempre relacionadas, de um jeito ou de outro, coletivo de Lésbicas e Feministas pela
com a Cultura Livre. Ali se celebravam os descriminalização do aborto”
festivais de Fábrica de Fallas6, materializando
Desse universo, porém, sempre percebi
essa convergência de movimentos. No
uma proximidade especial entre rádios e
livro Argentina Copyleft7, Sebastián Vazquez
redes comunitárias. Por aquela mesma época
menciona um “momento luminoso” do
estava se debatendo na Argentina a “Ley de
primeiro Festival: a conversa paradigmática
Servicios de Comunicacion Audiovisual”9. Com
entre um matemático desenvolvedor de
envolvimento da AMARC Argentina, o texto
software e um líder campesino a respeito da
da lei definiu as emissoras comunitárias pela
apropriação de bens tangíveis e intangíveis.
“característica fundamental de participação
Já na terceira edição, em 20108, o mosaico da
da comunidade tanto na propriedade do meio,
programação incluía:
quanto na programação, administração,
• “Experiências de Autonomismo ao redor operação, financiamento e avaliação”. Salvo
do mundo. Palestina, Chiapas, País Vasco, alguma diferença semântica, essa exata
Território Mapuche” frase poderia ser usada para descrever
as redes comunitárias. Além da definição,

142
Redes e Espectro

acho que essa semelhança natural pode ainda sair pela Internet para o mundo todo. Por
ser aproveitada como porta de entrada para outro lado, a rádio acolheu a rede no seu espaço
entender comparações mais sutis (embora físico e virtual, disponibilizando o jardim para
igualmente importantes) com outros coletivos, oficinas e reuniões organizacionais da rede e
como, por exemplo, o movimento agrícola. anunciando as chamadas no ar, assim como
Para facilitar essa percepção, não só para entrevistas e qualquer tipo de divulgação
ativistas das rádios e das redes, mas também necessária.
para a população em geral, nada melhor que o
convívio de ambas as iniciativas, numa sinergia Esses tipos de iniciativas, combinadas
que tentarei exemplificar. e articuladas, geram um impacto notável
especialmente em vilas pequenas, evidente
Em 2012, construímos uma rede quando chega o momento de colaborar em
comunitária em José de la Quintana, novas frentes. Um exemplo simples em José
Córdoba, impulsionada pelo mesmo pessoal de la Quintana é a participação de alguns
que dava vida à rádio comunitária local, La integrantes da rede numa Cooperativa de
Vecindaria10. Cada rádio tem sua história, e Consumo de produtos orgânicos. Sim, a
aquela tinha a particularidade de funcionar conectividade à Internet é um fator quase
com um transmissor feito colaborativamente indispensável na organização das compras.
(junto com outras 50 rádios) numa oficina Mas, além disso, a confiança construída em
dinamizada pelo pessoal da RNMA11. A rede cada encontro na rádio como espaço social
de Internet, logicamente, foi desenhada num durante as emissões, em cada visita ao lar
hackaton colaborativo, convocada por Nico mútuo para resolver problemas da rede ou
Echániz reunindo antigos membros da Buenos instalar software livre em um laptop, sem
Aires Libre num ambiente rural e foi montada dúvida, é um fator determinante na hora de
com a ajuda da vizinhança do vilarejo, ao longo destinar tempo e dinheiro para uma compra
do mês de janeiro. Aquele acabaria sendo o coletiva e desafiar a cultura do supermercado.
pontapé inicial da linha de trabalho de redes
comunitárias sob o nome de AlterMundi12. Muito recentemente, a vila inteira (que se
destaca na região pelo fato de carecer de governo
A nova infraestrutura da rede QuintanaLibre local e de os serviços de água e eletricidade
possibilitou que a rádio pudesse transmitir serem fornecidos por uma cooperativa local)
não só pela banda de FM, mas também fazer teve que se organizar para resistir à instalação
um streaming através da rede local, chegando de um empreendimento mineiro13. Se bem que
a cantos afastados da vila onde a antena FM o conflito está ainda em andamento, fica claro
não tinha alcance (mas onde a rede mesh, que o atual processo de organização coletiva
descentralizada, conseguia se estender) e (que já aglutina uma admirável quantidade e

143
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

14
https://pueblo.libre.org.ar/ diversidade de habitantes da região) é nutrido montassem a rede com as suas próprias mãos,
soundtrack/audiencia-publica-
sintesis-y-convocatoria/ e fortalecido por todas essas construções comigo só acompanhando o processo como
15
https://www.youtube.com/ sociais prévias. Naturalmente, é na radio observador ou facilitador de uma dinâmica
watch?v=T9QqE-h3HpQ
La Vecindaria onde produzem e transmitem de aprender-fazendo. Após minha curta
16
http://blog.altermundi.
net/article/una-semana-en- sínteses das audiências públicas14 e, graças passagem, continuaram montando pontos da
mulukukulibre/ a rede QuintanaLibre, conseguem visibilizar rede e enfrentando problemas técnicos inéditos
17
http://www.manfut.org/RAAN/ a campanha na web, coordenar esforços e com a mesma força com a qual sustentam a
mulukuku.html
http://www.elnuevodiario.
18
ampliar o impacto. rádio há 10 anos.
com.ni/nacionales/273761-
organizadas-violencia-machista/ No começo do ano 2016, fui convidado por Um último exemplo aconteceu em julho de
19
http://communitytechnology. Grethel Siqueira, da Cooperativa Maria Luisa 2015, na vila da Fumaça, Rio de Janeiro, durante
github.io/files/downloads/
ReBuildingTech-Zine2.pdf Ortiz15, para capacitar um pessoal a fim de o encontro Nascentes de Dados20, organizado
20
http://nuvem.tk/wiki/index. ampliar uma rede comunitária em Mulukuku16, por Bruno Vianna, da Nuvem21, espaço rural
php/Convocatória_-_Fumaça_ Nicarágua. A Cooperativa foi fundada no catalisador de nexos interdisciplinares.
Data_Springs
21
http://nuvem.tk/
ano 198917 por um grupo de mulheres que Juba, Novaes e Belisário, do movimento de
22
http://www.radiolivre.org/ produziam tijolos de adobe para reconstruir a Rádios Livres22, trouxeram uma emissora
23
https://libremesh.org/ vila, que tinha sido devastada por um furacão. temporária pela qual anunciaram ao povo
24
https://rhizomatica.org/ Desde então, foram somando atividades de as oficinas de construção dos pontos da rede
25
https://codigosur.org/ carpintaria, uma clínica médica, assessoria e nos surpreenderam com a simplicidade
legal para vítimas de violência machista18 e, da montagem técnica da FM. Em troca,
finalmente, uma rádio comunitária em 200419. observaram de perto a potencialidade de
Foi uma experiência belíssima, especialmente uma rede mesh baseada em LibreMesh23,
pelo fato de ver as mesmas pessoas que dão tecnologia que conheciam, mas nunca tinham
apoio para mulheres oprimidas, disponibilizam visto cobrindo uma vila inteira. Desde então,
medicamentos essenciais ao povo e operam a multiplicaram-se projetos combinando não
rádio, de repente, tomando conta da montagem só essas pessoas e essas duas ideias, mas
da rede informática, levando Internet até as também somando redes GSM comunitárias
próprias casas, sem ter experiência prévia (componente pioneira no Nascentes de Dados),
no tema. Entendi que tinham uma sólida aproveitando o modelo desenvolvido pela
confiança em si mesmas, ganhada através da Rhizomatica24.
longa trajetória de iniciarem os projetos mais
diversos sempre com a lógica cooperativista. Esses três relatos pretendem dar só um
Essa seguridade sem dúvidas foi a chave ponto de partida: animar cada ativista de
para que acreditassem na sua capacidade rádio a entrar em contato com uma rede e a
quando (logo no primeiro dia) propus que elas cada ativista das redes a se articular com uma
rádio; fazer sua própria experiência, que, com

144
Redes e Espectro

certeza, será ainda mais rica que as descritas


aqui e achará muitos mais pontos de contato
e simbioses possíveis do que as que comentei.

Cada novo vínculo enriquece essa esfera da


Cultura Livre para benefício de todo mundo,
claro, mas, acima de tudo, favorece a vida de
quem vincula. No meu caso, faz muitos anos
que sou parte de Código Sur25, mantendo
remotamente a infraestrutura de servidores,
através da qual provemos tecnologias web
livres para movimentos e organizações sociais.
Mas também faz anos que escolhi abandonar
a cidade e morar em ambientes rurais ou
suburbanos, onde a conectividade seria
normalmente escassa ou nula. No começo
dessa transição urbano - rural, continuar
o trabalho online ficou muito difícil, até
impossível. Então, animado pelo sucesso da
rede em José de la Quintana, repliquei a ideia
no bairro onde morava na época (no Delta de
Tigre, região de Buenos Aires) e fiz a Internet
chegar na minha casa. Hoje em dia, a maior
parte do tempo que estou online é graças a
gui Iribarren
uma rede comunitária, provida em maior ou tem se envolvido, desde 2012,
menor grau a partir da AlterMundi. E, com a na elaboração do modelo de
infraestrutura da Código Sur, tenho resolvidas rede comunitária da AlterMundi
(Argentina), nos aspectos sociais
as necessidades de serviços pela Internet, das redes e no desenvolvimento
como websites, streaming e emails das redes do firmware LibreMesh. Através
e rádios comunitárias. dessa experiência, aprendeu
as necessidades e desafios de
pessoas não técnicas de diversas
Vale muito a pena relacionar as diversas culturas. Atualmente, dedica-se
áreas da Cultura Livre, começando pelas mais a desenvolver o LibreRouter,
próximas como rádios e redes e, a medida que um hardware open-source para
construir redes mesh, desenhado
avançamos, veremos como tudo vai ficando de acordo com os requerimentos
cada vez mais fácil. das redes comunitárias.

145
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Seminário Espectro
e Redes Livres
R ealizado na Universidade de Campinas
(UNICAMP), durante os dias 31 de março e 1°
gente o caso da rádio em que atua e que sofre
com a perseguição do Estado, violando o direito à
de abril, nosso segundo seminário foi guiado liberdade de expressão no ar. Francisco Caminati,
pela pergunta “como defendemos e definimos professor de Antropologia da Universidade
o uso de espectro eletromagnético em tempos Estadual Paulista (UNESP), de Presidente
digitais?” Prudente, nos leva pela Amazônia, falando de
reapropriações das tecnologias radiofônicas
A mediação ficou por conta de Karina e software livre no contexto de comunidades
Quintanilha, uma advogada comprometida com a indígenas. Diego Vicentin, doutorando e mestre
mídia comunitária e movimentos sociais. Foram em Sociologia pela Universidade Estadual de
convidadxs pesquisadorxs e ativistas envolvidxs Campinas (Unicamp), nos mostrará de perto
em projetos e políticas de comunicação em um agudo conflito tecnopolítico acontecendo
diferentes cantos do Brasil. Píter Júnior, da entre diferentes padrões tecnológicos que
Rádio Coité FM da Bahia, compartilha com a fazem uso de ondas eletromagnéticas. Em

146
Redes e Espectro

seguida, Peter Bloom, ativista comunitário e não só democrática como democratizante.


coordenador da Rizomática, nos fala como a sua Recentemente, teve um acontecimento que
organização, junto com as comunidades rurais demarcou um antes e um depois nessa
e indígenas no Sul do México, reinventou o uso história, que são as revelações do Snowden
social da telefonia celular. Francesco Diasio, a respeito do funcionamento da internet,
Secretário Geral da AMARC Internacional, alertando sobre o perigo de se tornar uma
avalia criticamente o potencial do rádio digital máquina de vigilância e controle. Para quem
e fala da sua experiência na criação de redes participa ou participou dos movimentos dos
radiofônicas via satélite na Região Mediterrânea. ativistas, da internet, do software livre, eu
Fecha a roda o articulador nacional da Rede gostaria de lembrar do grupo Saravá [https://
Mocambos, TC Silva, Presidente da Casa de sarava.org/] que não foi citado na recuperação
Cultura Tainã, onde se desenvolve, entre outras do processo.
coisas, a rede social Baobáxia, que pretende
reforçar a comunicação e identidade cultural Desde 2013, a gente teve a confirmação com
das comunidades afrodescendentes. Seguem documentos, com dados, e eles comprovam
intervenções lançadas por Rafael Diniz, do que a internet se converteu nisso. A internet,
Laboratório Telemídia da Pontifícia Universidade aparentemente, é um meio que proporciona
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Camila comunicação horizontal, qualquer pessoa
Marques, do Artigo19; Ikebantos, do coletivo pode criar um site, sendo assim, o meu site,
Quilombagem e Rosane Steinbrenner, da chico.com, vai ocupar o mesmo espaço do globo.
Universidade Federal de Pará (UFPA). com como se eles fossem um canal 5 e um
canal 6, respectivamente. Mas a colonização
Francisco Caminati (UNESP): Eu acho que a gente observou do digital nos levou a
muito interessante o caráter de ativistas um momento em que poucas corporações de
e movimentos sociais que quebram com poucos países concentram o conteúdo do que
aquela coisa dos pensadores e acadêmicos, é produzido e as interações entre as pessoas.
proporcionando encontros entre diferentes Então, não há horizontalidade.
tipos e formas de saber e de produzir
conhecimento. Queria contribuir com um Quando protestamos no Twitter e no
conceito para a gente pensar, que é a ideia Facebook, por exemplo, parece que estamos
da ressaca do digital. Ressaca geralmente é ocupando um espaço público, expressando as
um momento de tomada de consciência após nossas ideias, mas não é um espaço público.
um período anterior de entrega, euforia. A Os feeds são definidos por algoritmos. É como
gente viveu um momento de euforia e entrega, se a gente estivesse dentro de uma jaula,
adesão à internet, ao digital, que num primeiro gritando, achando que a gente está dentro de
momento apareceu como uma tecnologia um espaço público, mas a gente está dentro

147
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de uma jaula, que a gente escolheu entrar, ambiental que não excluem a presença de
ninguém obrigou, porque ninguém é obrigado uma comunidade tradicional que habita
a entrar no Facebook, ninguém coloca uma esse lugar, pois a presença dessa população
arma na sua cabeça e fala “entra aí”. não atrapalha, pelo contrário, promove a
conservação ambiental.
Em relação ao espectro, esse é um tipo de
debate que sempre ficou em segundo plano Uma das grandes questões do problema
dentro dos encontros de rádios comunitárias, ou limites do ambientalismo é justamente
porque parece que é uma discussão que quando querem construir reservas ambientais
deveria ficar restrita aos técnicos, mas os e expulsar as populações responsáveis pela
movimentos da democratização preferiram existência e manutenção desses territórios.
fazer a disputa dos conteúdos e das narrativas. Isso é muito comum, aqui no litoral de São Paulo
Isso acabou implicando numa adesão total às tem o caso da Jureia, que tem a população
redes proprietárias, aos meios concentrados de caiçaras que sempre moraram ali, estão
e controlados. E há o abandono da tentativa de há várias gerações e, de repente, surge uma
construir alternativas, por isso é um avanço proposta de criar uma reserva ambiental,
estarmos discutindo isso, agora. A maneira com as melhores das intenções. Só que para
como o espectro eletromagnético, no Brasil, criação dessa reserva você precisa expulsar
está regulamentado e dividido em serviços os moradores tradicionais, e não é que, por
remonta a um momento tecnológico anterior um acaso, estavam lá e não destruíram?! O
ao que a gente vive. A gente já devia ter modo de vida deles favorece a manutenção e a
feito essa discussão anteriormente, porque própria construção da biodiversidade no lugar.
estamos na véspera das decisões de como o
espectro vai ser reorganizado. Entre 2009 e 2010, esse plano de
desenvolvimento sustentável foi elaborado.
Além disso, eu queria compartilhar uma A população da reserva colocou como uma
experiência prática de um projeto que de suas demandas para o desenvolvimento
eu participei recentemente, que está em dessa população a necessidade de uma rede
andamento. É um projeto realizado no Acre, de comunicação. Essa rede foi pensada para
na reserva extrativista do Alto do Juruá, que atender essa demanda, mas a gente queria
fica no município de Marechal Taumaturgo, na fazer algo que fosse próximo das experiências
fronteira do Acre com o Peru. O conceito de que eles já tinham, nos anos 90, com
reserva extrativista remete aos anos 80, à luta radiofonia, que são rádios que transmitem
do Chico Mendes e de outros seringueiros, Ondas Curtas. É diferente do que a gente
e é uma espécie de Reforma Agrária sem os conhece como rádio FM e comunitária. Seria
lotes individuais. São áreas de conservação como rádio amador, rádio que aperta, fala,

148
Redes e Espectro

transceptor, você recebe e fala pelo mesmo E a gente está usando uma comunicação
aparelho de rádio, então a gente propôs uma que é antiga, analógica, a gente fez uma rede
rede com estações de radiofonia. Decidimos e um teste de transmissão de dados digitais
por instalar essas estações nas comunidades nessa rede analógica, que vai ser objeto da
mais distantes, nas cabeceiras dos rios, onde a oficina. Esse projeto tinha duas opções. A
comunicação é mais custosa, pois o único meio gente podia tentar conseguir uma licença de
de comunicação é o rio, e os deslocamentos serviço privado para criar uma rede e ter um
demoram muito tempo. Então, a gente falou: canal, uma frequência que seria destinada
“vamos começar a instalar pelas cabeceiras, a essa rede de comunicação. Só que se a
pelos locais mais distantes”. gente quisesse fazer o certo, que seria isso,
provavelmente o projeto teria dado errado.
Instalamos cinco estações dentro da Ficaríamos restritos a uma frequência que
reserva, em diferentes rios, e uma estação seria designada pela Anatel e pelo Ministério
na cidade, que acaba atuando como o ponto das Comunicações, e a gente não tinha como
de convergência. Tivemos uma resposta saber se outras pessoas já estavam utilizando
muito positiva, pois no momento em que a essa frequência, porque no momento em que
gente instalava o segundo rádio já servia você liga um rádio na Amazônia, você vê a
para conectar os parentes de quem estava na importância desse meio ali. Como tem dezenas
reserva ou na cidade. A gente instalou uma de pessoas utilizando terras indígenas, a gente
estação no posto de saúde, na fronteira com o podia ser contemplado com uma frequência
Peru, num lugar em que de um lado do rio é o que ou já teria alguém utilizando, ou não seria a
Brasil, do outro o Peru, e esse posto de saúde, melhor frequência para o nosso equipamento.
que é o mais distante da cidade, tem o médico Então, a gente optou por fazer como sempre
sem CRM [registro no Conselho Regional de fizemos, simplesmente ocupando o espaço.
Medicina]. Os enfermeiros acabaram ocupando Pode chamar isso de desobediência civil, mas
o lugar dos médicos, porque lá não tem médico, partimos do pressuposto que se tratava de
inclusive o único que tinha era um cubano, do um território de 500 mil hectares rodeados
Programa Mais Médicos, e é esse o doutor sem por terras indígenas com uma internet talvez
CRM. O enfermeiro já tinha uma habilidade pior que a de Tefé [Amazonas], porque ela
de usar o rádio e, no momento em que a simplesmente não funciona. Por exemplo,
gente instalou essa estação, ele já contatou o tem um monte de antenas da Oi espalhadas e
médico da cidade para fazer consultas sobre nenhuma funciona. E a gente, simplesmente,
como encaminhar determinados casos, quais foi pra campo, mapeou quais eram as
remédios receitar... Ficou evidente o potencial melhores frequências para o equipamento,
desse tipo de comunicação. viu as que não estavam sendo utilizadas e

149
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

estamos ocupando essas frequências há um tentei perseguir o processo de evolução da


ano. Eu acho que é a melhor via, porque a rede de telefonia celular em direção ao que
gente consegue consolidar algo que é concreto a gente chama hoje de banda larga móvel.
e, depois que isso está de pé e funcionando, a A telefonia celular não é mais telefonia, ela
gente pode fazer outros tipos de discussão e é transmissão de dados sem fio, aliás, “sem
não querer ter a licença. fio” é uma expressão importante porque, na
verdade, a gente não chama celular de “sem
Então, pra encerrar, só enfatizo a fio”. A gente chama celular de “móvel”. E
importância de que a gente continue não nesse processo de perseguição da evolução
só falando sobre espectro, mas que a da telefonia celular em direção à banda larga
gente comece a estudar mais. O espectro móvel, eu fui descrevendo à passagem de uma
eletromagnético, a própria fisicalidade dele geração à outra: então a gente conhece 1G,
é de difícil compreensão, então é importante que era a telefonia analógica, depois vem 2G,
a gente conhecer o funcionamento. Porque que já é digital, 3G tem internet, 4G, em tese
os meios não são neutros, a diferença não é tem internet rápida, devia ter...
que a Globo usa para o mal e a gente vai usar
para o bem. No instante do desenvolvimento Nesse processo de evolução acabo dando
técnico as escolhas políticas são feitas, elas de frente com a convergência entre a rede
são inscritas nas estruturas de funcionamento de telefonia celular, de um lado, que a gente
das tecnologias, então a sociedade civil, os chama de móvel, ou em inglês, mobile, e,
movimentos sociais, os ativistas, os povos do outro lado, a rede wi-fi, sem fio, LAN, ou
tradicionais precisam ganhar conhecimento seja, a rede local. Essas duas redes estão
sobre funcionamento, lutar para ter esse convergindo, virando uma coisa só, porque no
conhecimento, para que a gente possa, de fato, limite elas se prestam ao mesmo serviço. Em
influenciar as próximas etapas e participar do termos de estrutura de mercado isso também
desenvolvimento técnico, fazendo a disputa está acontecendo, então, há pouco mais de
política das suas definições e das suas um ano houve a junção da NET, da Embratel
aplicações. e da Claro. Tudo vira um bloco só, é a América
móvel, com o nome da Claro.
Diego Vicentin (UNESP): Vou falar,
especificamente, sobre o espectro não Nesse processo de convergência entre, de
licenciado, o espectro aberto, como, às vezes, um lado, a rede móvel, do outro lado, a rede
é chamado. Mas, antes, eu vou dar um pano sem fio, a gente chega nesse conflito aqui.
de fundo. A minha pesquisa de doutorado Tem dois blocos, no lado esquerdo de vocês,
começou observando as redes de telefonia tem o bloco da internet sem fio, wireless; do
celular, aliás, isso, ainda no mestrado, eu outro lado, o bloco da internet móvel. É claro

150
Redes e Espectro

que esses dois blocos, eles não são estanques, o quê seria o espectro não licenciado? Vou
eles são fluidos, as coisas passam de um lado fazer uma pequena digressão dentro da minha
para o outro. Do lado de cá, você tem o IE 802, fala e vou fechar, de novo, com o conflito
que é o grupo que define os padrões do Wi- para tomada, para ocupação do espectro
Fi. Do outro lado, você tem o 3GPP, que define não licenciado. O espectro não licenciado é
os padrões da tecnologia ou o que a gente um modo relativamente informal, mas ele
chama de família GSM, que vem desde lá da foi instituído por uma canetada da FCC –
segunda geração até agora, à quarta geração que é a Anatel dos EUA, a Agência que toma
de telefonia celular, que é o LTE. Esse conflito conta do mercado de telecomunicações e,
é um conflito que eu chamo de tecnopolítico. especificamente, do espectro nos EUA – e
São corpos internacionais de padronização, essa canetada foi em 1985, autorizando o uso
eles não são exatamente ligados a nenhum de uma técnica chamada de espalhamentos
governo, quer dizer, são associações. No espectrais nas bandas, que, até então, eram
caso, aqui, do IEEE, Instituto de Engenheiros conhecidas como ISM, quer dizer que eram
Eletrônicos e Eletricistas. E, do outro lado, o destinadas para uso médico, científico e
3GPP, que é uma associação formada a partir industrial. Então, eram bandas que não tinham
da segunda geração de telefonia celular, muito valor econômico porque a capacidade de
quando a Europa tentou unificar os padrões, alcance delas é relativamente baixa, porque
porque existiam, até então, diferentes redes elas são de alta frequência.
de telefonia celular, então tinha uma no bloco
lá da Escandinávia, no bloco nórdico; tinha O espalhamento espectral foi inventado
outro, na França; outro, na Alemanha. E aí eles durante o esforço de guerra nos anos 40 como
precisaram juntar para fazer um mercado uma espécie de criptografia na transmissão
único, isso dentro do movimento de unificação dos dados. Então, você está transmitindo
da União Europeia. E montaram esse bloco numa frequência x, depois pula para y, volta
para definir qual seria o nosso padrão da para z e assim vai, de modo que se alguém está
segunda geração, terceira geração e, agora, tentando interceptar sua comunicação, essa
da quarta. interceptação fica mais difícil. Essa técnica
foi inventada nos anos 40 e só foi se tornar
Então, são dois blocos que representam pública, nos anos 80. Até então era monopólio
interesses econômicos distintos, mas do exército dos EUA e, na medida em que isso
correlacionados e que estão definindo é aberto para funcionar nessas bandas de
esses dois padrões que vão disputar espaço frequência conhecidas como ISM, começa a
pra ocupar, para colonizar o espectro não ter um monte de inovação técnica, entre elas
licenciado. Vocês devem estar se perguntando: o Wi-Fi. Mas não é só o Wi-Fi que funciona aí:

151
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

vai desde o aparelho auditivo até o forno de colocando a lógica da escassez, que funciona no
micro-ondas. Quer dizer, tem várias coisas espectro fechado, licenciado, para o espectro
que funcionam nessas bandas, mas, uma vez aberto. Esse processo de convergência está
que o Wi-Fi começou a funcionar e começou a ligado com a intenção das operadoras de
se espalhar, ele ganhou essas bandas, tendo telefonia móvel [que estão] desenhando uma
uma importância econômica e política. E aí solução para essa convergência entre wireless
saio da minha digressão sobre espectro não e mobile, que vai submeter o espectro aberto
licenciado para voltar para o conflito, porque ao espectro fechado. Mas, como isso? Vou
nesse meio tempo se tornou uma coisa muito dar um exemplo. Como é que a Vivo vai fazer
importante para as redes comunitárias. para usar o espectro aberto conectado com
o espectro fechado dela? Em áreas densas,
Elas começaram a distribuir a internet sobretudo, onde tem muito usuário, ela vai
porque o espectro não licenciado não requer instalar a LTEU, ou seja, uma nova tecnologia
licença. Então, quando a FCC deu aquela que ainda não existe que é o LTE unlicensed,
canetada em 85, ela autorizou o uso de justamente, o LTE funcionando no espectro
qualquer um que quisesse emitir ou receber não licenciado. Ela vai colocar o LTEU para
sinal dentro dessas faixas de frequência, não funcionar do seguinte modo: eu tenho o
precisava pedir nenhuma autorização para espectro fechado, eu, a Vivo, e aí, se o meu
a FCC. Até então, os aparelhos auditivos, usuário está, por exemplo, querendo assistir
essas coisas que disse antes, precisavam a um vídeo por streaming, eu vou alocar uma
de autorizações específicas. Entravam com parte no espectro aberto, porque eu vou ter
um processo, ganhava-se a autorização, também a Vivo, vou ter também implementado
começava a funcionar. Depois da canetada, ali um hotspot de LTEU, a partir do espectro
esse processo da autorização específica não fechado, então vou fazer uma leitura do
precisa mais, então você vai direto e começa a espectro aberto, ver se tem banda disponível
funcionar dentro dessas faixas de frequência, e vou alocar.
desde que o aparelho tenha sido aprovado
pela FCC, e isso, claro, se replicou na Europa, Bom, mas isso estabelece uma relação de
no Brasil, sendo que aqui o aparelho precisa desigualdade entre o modo como a turma do
ser autorizado pela Anatel. lado de cá e a turma do lado de lá acessam
o espectro. Porque o Wi-Fi acessa o espectro
Eu comecei a fala discorrendo sobre a a partir do que eles chamam de mecanismo
convergência entre wireless e mobile, entre LBT, que é listen before talk, ou seja, “escute
redes móveis e redes sem fios. Na medida em antes de falar”. Então Wi-Fi vai lá, escuta,
que essa convergência está acontecendo, as vê se o espectro está ocupado ou não, se
redes móveis estão imprimindo ou obrigando,

152
Redes e Espectro

estiver ocupado ele espera um tempo que que é preciso olhar para ele.
é randômico, ou seja, definido de maneira
aleatória, e tenta de novo. Está ocupado?, Peter Bloom (Rizomática): Temos escutado
vai de novo esperar um tempo e tentar de o suficiente sobre espectro, democracia e
novo. Ou seja, se esse espectro estiver sendo desigualdade. Creio que é importante, ao
utilizado pela tecnologia LTEU, o Wi-Fi não pensar sobre o espectro, assumirmos que ele
consegue acessar. E, como a tecnologia é algo socialmente construído. Toda técnica,
LTEU vai definir o mecanismo de acesso ao toda a burocracia são detalhes. E são detalhes
espectro a partir do espectro fechado, ou seja, no sentido de que se não entendemos do que
a partir de um canal de controle que é definido estamos falando, quando falamos espectro,
centralmente pela operadora, ele pode ficar perdemos um pouco a pista, a possibilidade de
usando continuamente ali e deixar o Wi-Fi sem montar argumentos, de montar resistência de
acessar o espectro. lutar pela comunicação.

Então, para fechar com um exemplo bastante Quando digo que o espectro é construído
pragmático que tem a ver com os problemas socialmente, refiro-me a algo que não podemos
que essa mesa tenta enfrentar, se tiver uma tocar, que é imaterial. Então, estamos falando
rede da Vivo, de LTEU, no mesmo lugar em de um conceito, de uma gama de frequências
que tem uma rede aberta da rede Mocambos, que são úteis para nos comunicarmos. Muito se
ali, na casa Tainã, muito provavelmente a rede perde em discussões técnicas, mas, afinal de
Mocambos não vai funcionar bem, porque contas, estamos falando de comunicação, de
esse espectro está sendo usado de modo nossa possibilidade de comunicar em certas
controlado pela rede da Vivo. frequências. E, em seguida, esse espectro se
torna um bem econômico, porque tem algum
A FCC, lá nos Estados Unidos, a Anatel, aqui valor, e o valor que tem é a potencialidade
no Brasil, e a EIT, na Europa, disseram “bom, de comunicação de todos os usuários deste
beleza, usa aí, está aberto”. Só que o fato de espectro.
estar aberto agora começa a criar conflitos
para ver quem é que tem precedência na Logo começamos a ter as disputas sobre
utilização desse espectro. A má notícia é que regulação, quem vai ter acesso, quem não
isso pode influenciar negativamente a galera vai, e, por haver transformado o espectro em
do lado de cá, o Wi-Fi, que vai tentar fazer bem econômico, se perde muito, se pensa
alguns dos gostos das grandes operadoras em agir por uma lógica que vai cada vez mais
para que elas também tenham controle sobre longe do que deve ser. Que é como o espectro
o modo como o Wi-Fi acessa o espectro. Esse vai facilitar a comunicação de todos e todas.
é um conflito que está aberto e que eu acho Basicamente, não é assim só no Brasil, não só

153
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

no México, mas também nos EUA e na Europa. construir nossos territórios, nossa cultura e
a sociedade em geral. Então, quando vemos
Estamos falando, por exemplo, do espectro partes do espectro com ou sem licença, é
não necessitar de licença. No México, por importante não esquecer que temos o direito
exemplo, isso representa 2% do espectro útil a todo o espectro, não a algumas partes dele.
para telecomunicação e radiodifusão. 98% do
espectro útil para nossa comunicação requer O movimento de rádios comunitárias, em
uma licença quase impossível de obter. Então, vários países da América Latina, obteve um
nos deixam com 2%. Agora, no México, no acesso ao dial. Em muitos casos, temos as
Brasil, na América Latina estamos obviamente faixas harmonizadas GSM 1900 MHz, 2.4MHz,
muito acostumados a viver num mundo cada 5.8 MHz e, logo, fomos pegando 33% do dial
vez mais privatizado, onde o acesso aos FM, que é um pedacinho pequeno do que é o
recursos naturais e comuns são cada vez mais espectro em sua totalidade. Cada vez mais vai
difíceis. Mas eu creio que se privatizassem avançando a tecnologia, cada vez mais se vai
98% de nossa água, estaríamos todos nas vencendo as patentes de diferentes tecnologias
ruas e seria quase uma revolução. e, portanto, vai abrindo a possibilidade de, nós,
sendo ativistas, acadêmicos ou povos, termos
É importante compreender como os Estados a possibilidade de usar diferentes partes do
assentam jurisdição sobre o espectro. Essa espectro para nossa comunicação.
é outra parte: como é que chegamos nessa
situação? A situação no México, por exemplo, No México, estou desenvolvendo uma
a legislação mexicana diz que o espectro experiência, onde conseguimos obter
faz parte do espaço aéreo sobre o território acessibilidade ao espectro GSM, que é o padrão
nacional. Isso, do ponto de vista dos fatos e mais importante para a Telecomunicação
do ponto de vista científico, é uma mentira. Móvel, telefonia celular. Mais de 80% dos
O espectro eletromagnético e o espectro telefones celulares no mundo usam esse
radioelétrico não fazem parte do espaço aéreo. padrão. Obtido o acesso a este espectro, é
importante compreender que vem de uma
O controle do espectro por parte do Estado longa luta, que provém, principalmente, de
é algo falso. Através desses processos de povos indígenas e das rádios comunitárias e,
privatização transferem esse espectro à muitas vezes, são a mesma luta no México.
companhias privadas que são responsáveis O projeto foi iniciado e está operando num
por nossa comunicação. Então, às vezes, Estado chamado Oaxaca, ao Sudeste do país.
temos que questionar, a fundo, tudo o que tem
a ver com espectro e de onde tudo isso vem. Lá temos mais de cem rádios comunitárias.
A comunicação é vital, é o que nos permite Uma população de três milhões de pessoas, as

154
Redes e Espectro

quais quatro pediram permissão e obtiveram Se uma comunidade decide lançar um satélite, 1
Meses depois da fala de
Bloom, em julho de 2016,
uma licença. Então, as outras noventa e seis tem o direito de fazê-lo. Se uma comunidade Rizomática viria a conseguir
têm zero permissões. Oaxaca é um Estado quer operar o serviço de telecomunicações, a concessão. Disponível em
https://www.theguardian.
com mais população indígena, possui seis que pode ser GSM, LTE, que pode ser o que for, com/world/2016/aug/15/
etnias diferentes. Então, as pessoas viram tem direito. Existe a concessão social, então, a mexico-mobile-phone-network-
indigenous-community (em
em que momento entregamos o nosso direito luta que tivemos aí foi como criar as diretrizes. Inglês). Acesso em 17 de janeiro
ao espectro para o Estado, quando isso Aqui está a lei, mas como se aplica? Como as de 2017.

aconteceu? Em nenhum momento. O governo pessoas de baixa renda vão poder realmente
vai argumentar que, por razões territoriais, fazer uso dessas concessões sociais? É tão
tem domínio sobre o espectro, mas nós difícil obter a licença, requer tantos recursos
também temos o direito legítimo de uso do que ninguém faz.
espectro e de utilizar o espaço aéreo, porque
está em cima do nosso território e está ligado A organização com a qual eu trabalho já emitiu
à reprodução de nossa vida cotidiana, nossa nossos papéis para sermos concessionários
cultura e nossa língua. com permissão de uso do espectro GSM, que
vai durar anos. Este pedaço de espectro nós já
Dois anos atrás, o governo do México começou estamos ocupando não é de hoje, e nos deram,
a passar por muitos processos de reformas nesse momento, uma licença experimental,
estruturais. Privatizaram o petróleo, o que me porque quando os povos indígenas foram ao
parece também estar passando aqui, e fizeram governo dizer: “precisamos nos comunicar”, o
um montão de outras reformas estruturais governo disse: “não existe um mecanismo para
que, basicamente, são privatizações de todas que façam uso desse espectro”. Infelizmente,
as diferentes esferas da vida. Porém, uma das não se encaixa na lógica do Estado que um
reformas estruturais que fazem no campo das serviço como GSM, como a central de celular,
telecomunicações abre, pela primeira vez, o pode ser algo que uma comunidade, ou
precedente para a concessão social. Então, a melhor, algo que quem vai fazer uso não seja
lei atual de telecomunicações do México, que uma empresa privada.
já tem dois anos em vigor, reconhece o direito e
cria diretrizes para que uma organização social Mas agora isso já mudou: já está quase 99%
ou comunidade, em qualidade de comunitária, certo que vão nos dar essa permissão por
não tenha que se constituir como Organização anos1, então qualquer comunidade que não
da Sociedade Civil, mas como Comunidade, tem nenhum serviço celular terá o direito,
tendo o direito de ser concessionária de agora, de ser concessionário social e fazer
qualquer serviço de telecomunicação ou uso do espectro para oferecer este serviço.
radiodifusão. Sinto que este exemplo é algo que temos que
compartilhar no Brasil.

155
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

TC Silva (Casa de Cultura Tainã): Falando comunicação está aí, mas e os valores? O que
de espectro eletromagnético, espectro aéreo, importa para a nossa evolução humana?
eu quero falar de outros espectros, que é o
social, que é o espectro humano, que nem A Rede Mocambos existe há mais de 10 anos e
sempre a gente se remete a eles. Claro que a gente está há uns cinco anos, desenvolvendo
a gente está num mundo que é controlado por um sistema de poder falar de tudo isso, que
essas tecnologias. Mas até que ponto a gente é o baobáxia, um sistema que é uma rede
também recorre a outras tecnologias, como de servidores, que chamamos de mucuas,
por exemplo, à tecnologia do tambor que trago o fruto do baobá. A gente planta baobáxia,
aqui? Pensando na lógica dos irmãos lá do que é uma árvore africana conhecida como
México, da Rhizomatica, a rota do escambo, árvore da sabedoria, onde se compartilha
que nós chamamos, pode fazer o mundo todo conhecimento, se celebra a vida, se troca
mais do nosso jeito, desde que a gente se experiências com os velhos e as crianças. Isso
dedique para isso. Então, às vezes, a gente se tudo foi começado, na Tainã, que é um nome
prende dentro de grandes pautas e acabamos indígena e significa caminho das estrelas, e
sendo levados por elas. Estou chamando a gente acha bom esse nome porque ele nos
essa atenção, por isso trouxe o tambor aqui. remete a pensar no impossível.
É para a gente também se reconectar com A gente pensa na questão do off-
nós mesmos, nos prendermos mais à nossa line. O tambor, aqui, ele pode funcionar
própria humanidade, ao sentido da nossa perfeitamente off-line, ele não precisa de Wi-
existência: “Qual o significado de estarmos Fi, então ele carrega valores, e isso pode ser
aqui?” compartilhado com todos, imediatamente,
A violência vem de formas muito sutis. Por pois onde o tambor toca, todo mundo sente.
exemplo, hoje, aqui, tudo é industrializado. Notem, sempre ao pegar algum instrumento
Você bota o filho numa escola que você não africano, observem bem, não tem marca, não
sabe qual que é. Imagina a vida de uma criança tem uma forma padrão como tem esse copo. É
negra dentro de uma escola, qual educação para todos. Você conhece o código, o mestre,
tem para ela ali? Como ela se reconhece ele te compartilha, ele te ensina como fazer o
como sujeito? Como ela potencializa a sua teu tambor, então, isso são valores que a gente
identidade? De repente, vem essa grande mídia acha que é de um mundo mais do nosso jeito.
e nos influencia, e todo mundo votou “Eu sou Conectem o baobaxia.mocambos.net, então
Charlie”. E a polícia vai lá, no Rio de Janeiro, vocês vão conseguir conhecer, ter contato
e fuzila cinco moleques negros e não falamos com muita gente que produz seus conteúdos
nada, mas “Eu sou Charlie”, entendem? A localmente, e armazenem e compartilhem
aquilo que acham que é de compartilhar.

156
Redes e Espectro

Então, a gente também pensa nessa questão satelital em toda a região mediterrânea,
do espectro social e o espectro humano como sobretudo apoiando rádios que começavam a
uma alternativa que devemos potencializar se organizar depois da Cúpula Mundial sobre
nas nossas discussões. a Sociedade de Informação que aconteceu
em Tunis, três anos antes. A saída de sinal
Francesco Diasio (AMARC Internacional): por satélite era uma ajuda para elas, porque
Gostaria de falar de outro aspecto do espectro: permite circular informações locais mesmo se
a passagem do analógico para rádio digital você não tem uma emissora FM.
terrestre que estamos vivendo atualmente.
Eu não me refiro ao rádio via internet ou via A Internet era uma tecnologia que se podia
satélite, que já existem há anos. Estou falando cortar facilmente, mas um sinal por satélite,
de uma mudança radical da tecnologia que não. É quase impossível porque quando você
vai mudar por completo nossa visão do rádio, corta um canal vai afetar todo um conjunto
seja na tradicional banda FM ou em outras de sinais. Então, foi uma experiência muito
frequências. Este é um debate muito atual, interessante, já que a plataforma satelital,
sobretudo na Europa, onde tem muitas rádios naquele momento, se usava principalmente
comunitárias que deixaram de transmitir na para a televisão. E para receber nosso
banda FM e se mudaram a outras frequências sinal de rádio a gente já contou com os
digitais terrestres. receptores, porque nos países onde existe
censura, sobretudo no Mediterrâneo, os
Vejo o espectro como um bem comum e lares têm antenas parabólicas para ouvir
não apenas como um bem público. Por isso canais estrangeiros. Então, nosso sistema,
é importante que a gente o articule como um na verdade, já estava nas casas, somente
direito fundamental. O espectro é o Direito à precisava uma mudança cultural para ouvir
Comunicação. O uso digital do espectro não é rádio através do sistema televisivo.
algo completamente novo na Europa nem nas
rádios comunitárias. Eu sou italiano, comecei Voltando ao debate sobre a transição do
a trabalhar numa emissora em Roma que rádio digital. Acho muito interessante tudo o
se chamava Cittá Futura. Era parte de uma que já foi dito sobre a colonização do espectro,
grande rede nacional que tinha uma estação- mas acho que é hora de introduzir um novo
mãe, a Radio Popolare de Milão. Era uma rádio conceito. Fala-se muito do land grabbing
popular , desde os anos 1990, usava satélites [privatização da terra] ou da privatização da
para distribuir as suas notícias e boletins em água. Acho que devemos falar do frequency
nível nacional entre as rádios associadas. Com grabbing também porque é algo que está
a nossa pequena agência radial, no ano 2007 começando em nível mundial. Num monte de
entramos também numa outra experiência países, os serviços públicos de radiodifusão

157
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

europeia, como a Rádio França Internacional organizações que apoiam um dos dois padrões.
[RFI], a BBC, a Deutsche Welle [DW], têm os Nós, como AMARC Brasil, que como muitas
seus canais e frequências locais. Se você for iniciativas públicas, como o Parlamento
pela selva do Congo, provavelmente, você não Europeu, fazemos uma reflexão de base bem
vai ouvir nenhuma rádio local comunitária, já simples: a tecnologia muda. A tecnologia de
que o acesso ao espectro é muito limitado, mas hoje pode-se chamar DAB+, DRM+, mas, em
você pode ouvir a RFI. Isso é um absurdo. Então, anos, provavelmente, vai mudar. Então, para
acho importante sempre levar em conta os nós, não é importante dizer que estamos
três elementos básicos do rádio FM tradicional apoiando um padrão ou outro. Para nós, o
quando falamos da passagem ao digital: que mais importante é garantir uma utilização
o FM garante uma rádio gratuita, anônima e racional do bem público às vezes com uma, às
móvel. A Internet, que oferece, sem dúvida, um vezes com outra tecnologia DAB+ , que é uma
monte de oportunidade para fazer rádio, não é tecnologia que permite transmitir de forma
gratuita porque temos que pagar pelo acesso multiplex, ou seja, até canais com uma só
antes de ouvir rádio lá. Também não é anônima antena. O DRM+ permite menos canais, mas
porque nosso IP permite uma identificação pode ser eficiente da mesma forma. Então, uma
importante para a publicidade e a venda de tecnologia pode ser mais apropriada onde tem
serviços adicionais. E a Internet é móvel mais produção e mais ouvintes que justificam
somente graças a nossos telefones celulares. o uso de uma antena com canais – coisa que
Não surpreende então que são as companhias num ambiente rural, onde provavelmente
de telecomunicação que têm um fome feroz não tem tantos produtores, seria absurdo.
para acumular frequências. Existe um estudo Ao mesmo tempo, usar DRM+ , nas grandes
feito pelos radiodifusores públicos europeus cidades, não faz sentido porque não permite
que deixa claro que em dez anos, desde 2006 uma utilização racional do espectro. Então,
até agora, as frequências em uso para o nossa posição é muito política e não técnica
rádio e a televisão diminuíram em relação às porque a tecnologia muda. Mas a política é o
companhias privadas de telecomunicação, que acesso, sobretudo às bandas de frequência no
ficaram com os outros 50% das frequências. marco de uma aquisição racional.

Agora, falando do rádio digital, na Europa Existem alguns países, como, por exemplo,
existem dois grandes padrões técnicos, o a África do Sul que introduziu dois padrões
DAB+ e DRM+. São dois consórcios, dois de maneira paralela. É possível, já que usam
consórcios comerciais, claramente2. Cada bandas diferentes. Na França, nesse momento,
um tenta tomar uma posição dominante no tem mais de trinta rádios comunitárias que
mercado e a isso correspondem diferentes já estão transmitindo por DAB+. Por quê?

158
Redes e Espectro

Porque na França foram emitidos 150 novas 50 dólares enquanto um rádio transmissor 2
Ambos os consórcios
são reconhecidos como
licenças de transmissão digital terrestre e tradicional para ouvir FM custa 5. Então, organizações sem fins
o Sindicato Nacional de Rádios Livres [uma a batalha acontece nesse contexto, muitos lucrativos. Para mais
informações e outros pontos de
das duas grandes organizações de rádios países estão mudando ao digital, outros se vista sobre o tema ver Breves
associativas da França, muito parecidas à opondo a este. A Noruega, por exemplo, notas sobre a radiodifusão
comunitária e as tecnologias
formula comunitária] garantiu uma parte cancelou por completo a transmissão em do rádio digital, por Miriam
delas para as rádios comunitárias. DAB+ dizendo que economicamente não era Meda Gonzalez; O Rádio Digital
no Brasil, por Rafael Diniz;
viável3. O problema sempre está do lado dos Rádio digital e a importância de
Acho que mais importante que a tecnologia receptores. Na Europa estamos fazendo uma tecnologias abertas, entrevista
é a questão da infraestrutura: sempre evitar de Dilliany Justino, e; o texto
campanha, não somente a AMARC, mas juntos do seminário Futuro das rádios
que se transforme em privada, em algum com uma organização dos serviços públicos comunitárias em tempos
momento, pois uma companhia privada digitais, todos desta coletânea.
que se chama EBU [European Broadcasting 3
Na verdade, em janeiro de
simplesmente vai dizer “tchauzinho” se você Union]. 2017, a Noruega viria a iniciar
não tem o dinheiro para pagar o acesso. Isso o desligamento do rádio FM
analógico. Disponível em http://
se reflete também nas diferentes políticas Estamos a favor de receptores com um www.drm-brasil.org/content/
públicas dos Estados nacionais. Às vezes, multichip, que permite ouvir FM tradicional, noruega-inicia-desligamento-
do-rádio-analógico-fm-última-
até tem duas políticas no interior do mesmo DAB+ e DRM+ e, por que não, rádio por etapa-da-migração-para-o-
Estado. Na Bélgica, por exemplo, na parte Internet? Afinal, ouvinte mediano não é rádio-digi. Acesso em 18 de
janeiro de 2017.
francófona, a passagem digital será garantida interessado em ouvir DAB+ ou DRM+, ele
pelo serviço público, na parte flamenca tudo gosta de ouvir rádio de qualidade e de maneira
ficou completamente nas mãos dos privados. gratuita. Esta é a batalha que estamos
É por isso que é importante estabelecer levantando como AMARC. Acho também
regras claras para aceder transmissões, fantástica a experiência [da Rizomática] no
mais que para transmitir. E é essa a batalha México. É única, sobretudo porque coloca em
que estamos fazendo na Europa. A questão contato a radiofonia tradicional com o mundo
é muito escolástica se a gente não leva em da telefonia. Vamos trabalhar nesse sentido
conta a audiência. Porque acesso somente também, com a AMARC, e escrever uma carta
vai ter através de um receptor para ouvir política aos reguladores exatamente sobre
DAB+ ou DRM+ etc. Então, isso, de novo, esse tema de como regular corretamente no
vira uma questão de mercado, e o mercado ambiente rural entre telefonia móvel e rádio
neste momento não está convencido dessa O fato é que é muito difícil obter este tipo de
tecnologia. Os preços ficam muito altos, por frequências, um fato mundial.
isso também na Europa quase ninguém tem
um receptor digital. Mesmo se tiver uma Na Itália, as rádios comunitárias, ou melhor
queda de preços, sempre ficaria em 30, até dizendo, as rádios livres nasceram nos anos
1970-1975. Naquele momento quase não tinha

159
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

regulamentação. Hoje tem, mas quase não público e estamos prontos para fazer o que for
temos acesso às licenças. Quando uma rádio necessário ser feito.
fecha não se devolve a frequência que usava
ao Estado, ela a vende diretinho, tal como se Comentários do público
vende um carro ou um apartamento. E uma
frequência hoje custa entre um e dois milhões Rafael Diniz: Gostaria de fazer dois
de dólares. Recentemente, teve um caso com comentários. Um sobre rádio digital. Aqui, no
uma rádio histórica de Roma que começou Brasil, a gente defende o DRM. Primeiro que
nos anos 1970, sob o nome Rádio Proletária. o DAB não dá para ser implantado no Brasil,
Depois de 30 anos de transmissão, foi forçada porque a banda A3 é usado para televisão.
a fechar e vender a sua frequência a uma rádio Inclusive TV digital. E isso é uma discussão
comercial. Quer dizer que não vai ter uma nova longa, a gente vai conversar mais sobre isso,
rádio comunitária em Roma. Este espaço se enfim, aqui a gente defende o Digital Radio
perdeu porque ninguém tem dois milhões de Mondiale, e, com relação à TV digital, que foi
dólares para comprá-lo. Isto é a grande perda uma grande luta da década de 2000, ontem
que se vive por falta de regulamentações e talvez tenha ocorrido a maior perda da TV
legislações. digital de todos os tempos. Não sei quantos aqui
estão acompanhando as reuniões do Gired, que
Então, para mim, a passagem em direção é o grupo que discute a implementação da TV
ao digital é simplesmente a redefinição digital no Brasil. A toque de caixa foi decidido
do perímetro da liberdade de expressão. que os receptores para os beneficiários do
Se garantimos uma passagem à liberdade cadastro único em Brasília vão receber um
de expressão poderá ser expandida; se conversor, sem interatividade, sem o Ginga,
não trabalhamos bem, pode causar mais então isso talvez seja uma das maiores perdas
concentração e mais restrições. Porém, de todo mundo que trabalhou com TV digital
para a AMARC, a vocação não é ocupar no Brasil. Talvez isso se expanda para as
frequências. Mas já vi em Tunis, depois outras cidades, a gente sabe que em Brasília o
da revolução, nasceram rádio livres e foi apagão vai ser em outubro. Então, isso é bem
porque primeiro ocuparam frequências. Nós urgente. A gente está pensando em chegar
apoiamos, de manhã estivemos com gravata, na Casa Civil, falar com o Berzoini, Jacques
falando com as autoridades, e de noite no Wagner, porque isso, de fato, talvez, a única
porto para transmitir de forma ilegal. Mas coisa brasileira da TV digital, esse Ministério
funcionou, nesse momento, em Tunis, tem das Comunicações ridículo conseguiu tirar.
rádios comunitárias licenciadas. Então, nossa
vocação não é piratear o ar. Porém, é um bem Ikebantos: Participo de um coletivo,
Quilombagem, um colaborador lá na rede

160
Redes e Espectro

Mocambos e na Tainã. Participo de um coletivo acontecer no futuro próximo?


de mídia chamado Varjão. Acho que quando
o Peter traz essa questão de entender que Diego Vicentin: Suponho que seja algo próximo
o espectro, ele é socialmente construído é a 2% o percentual de espectro não licenciado
fundamental. Nesse sentido, a gente precisa em relação ao licenciado. Geralmente eles
perceber também o valor econômico que ele ficam na casa dos 900, dois e meio e cinco
está agregado e como e o quê esse pressuposto e alguma coisa. Isso é estabelecido como
econômico media nas relações sociais em norma com poucas variações, mundialmente.
que a gente está inserido. E, a partir daí, A questão importante, eu acho, que mesmo
nessa relação com o Estado, perceber como esses 2% representam muito pouco e esse
essa legislação se dá. Como o Estado media pouco vai ser tomado ou está sendo tomado.
o direito da propriedade, mas também essa Eu já conversei com a Anatel a respeito disso,
relação com os movimentos sociais? Acho que mas eu não sei exatamente como é que isso
é preciso ver um conjunto de leis que vem antes reverberou lá dentro. De qualquer modo, o
da apropriação dos próprios movimentos, quadro regulatório tanto no Brasil quanto nos
entender quais são esses valores que a gente Estados Unidos não estabelece critérios para
está levando nessas discussões. Já que a o uso do espectro não licenciado. Então, o uso
gente está na Universidade, nessa perspectiva da tecnologia LTEU, como eu estava dizendo,
de pressuposto da universalização do que funciona conjugando um espectro não
conhecimento, fazer circular pesquisa, fazer licenciado ao licenciado, ou submetendo o
com que essa discussão chegue nas pautas. espectro não licenciado ao licenciado, pode
funcionar tanto no Brasil quanto nos Estados
Perguntas e respostas Unidos. A discussão regulatória está aí. Onde
Camila Marques: Fazendo uma conexão com o é que não pode? Não pode na Europa e no
que Peter falou, ele mencionou que, no México, Japão, pois a regulação deles estabelece
2% somente do espectro total é destinado a alguns critérios básicos de funcionamento
espectro aberto. No cenário brasileiro a gente em que o LBT não está na legislação, mas o
tem esse índice? Uma segunda pergunta, você modo como a legislação é construída indica
mencionou de forma muito clara que existe que é preciso usar o LBT como meio de
uma disputa em andamento, um provável coexistência dentro daquela faixa específica,
cenário de regulação desse espectro não especificamente no dois e meio giga, no cinco,
licenciado. Em sua opinião, há sinalizações não. E o cinco é a faixa com menos hotspot
já da Anatel e de outros atores no cenário de Wi-Fi funcionando. É a que está mais
internacional de como essa regulação pode livre, então, isso pode acontecer também
na Europa. Esse movimento regulatório me

161
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

parece que vai vir atrás, no sentido de atrasado concessão experimental. Em junho de 2012,
mesmo, das implementações. Tanto que as reuniram-se 35 autoridades de 35 comunidades
implementações nos Estados Unidos já iam e escrevemos uma carta ao Governo Federal,
começar no começo do ano passado e foram ao Ministério das Comunicações, dizendo que,
brecadas por um movimento da FCC de dizer, pela exclusão sistemática à comunicação, de
“olha, tudo bem, vocês podem usar o espectro celular, em particular, nós iríamos tomar posse
não licenciado, vocês estão dentro da regra. do espectro. “Vocês, governo, não fizeram nada
Mas não se esqueçam de que quem carimba para assegurar as comunicações nas nossas
o aparelho em si, quem faz a autorização do comunidades”. Anexamos também cartas de
aparelho para ser lançado no mercado, somos negação por parte das empresas privadas
nós. E se chegar aqui e a gente achar que vai e, em seguida, as comunidades diziam que,
ter um tipo de coexistência que não é justa nós dentro do nosso direito, dentro da Constituição,
vamos negar essa autorização”. Então a FCC a partir da lei de telecomunicações anterior,
fez essa pressão e a indústria deu um passo nós teríamos o direito de tomar posse, porque
atrás e falou, “bom, então vamos negociar não havia outra opção. Então, este processo
e tudo mais”. Então, para responder a sua foi muito curto, eles disseram “vamos dar
pergunta, eu não sei como a Anatel, como uma concessão experimental, vamos dar para
é que em termos regulatórios o Brasil vai 5 estados para não fragmentar o espectro,
reagir a isso, mas eu imagino que a regulação ok?” Mas isso significa que agora que está
no Brasil está esperando esse conflito ser se tornando uma conversão social, que é um
resolvido lá para depois pensar o que nós pouco mais padronizado, nós, como projeto,
vamos fazer aqui, mas é só uma suposição. teremos direitos inalienáveis sobre estas
frequências, o que significa que ninguém mais
Camila Marques: Primeiro, você disse que pode usar, a menos que estejamos dispostos
existe a possibilidade de ter uma concessão compartilhar. Na concessão social atual
experimental, temporária, mas eu queria que estamos pedindo o governo tem seis
saber: demora muito esse processo da meses para responder. E se você tem alguma
concessão social, existem restrições, por dúvida, esses 180 são interrompidos até que
exemplo, se já tem uma concessão social em respondam, e então segue. A nossa concessão
determinado local pode haver outra? Gostaria experimental inicial de dois anos, nos deram
que você falasse um pouco sobre esse cenário em maio de 2014, o que significa que expira
de uso de processos judiciais para restringir a em maio de 2016. E é provável que ainda não
voz das rádios comunitárias? tenhamos em mãos o papel, mas segundo
nos indicam, pelo tamanho do projeto, é muito
Peter Bloom: Quando começamos, por
difícil que cheguem a dizer que “enquanto
falta de outro mecanismo, nos deram uma

162
Redes e Espectro

vocês não tiverem sua licença, tem que parar Mas, pela forma como o projeto está planejado,
de fornecer o serviço” – o que não vamos fazer, o mesmo governo nos disse: “olha, nós não
ainda que nos digam que temos que fazer. vamos causar problemas a vocês. O problema
é do nosso governo que não sabe o que fazer”.
Quanto à criminalização das rádios, 96% E, no final de contas, esse processo passou por
das rádios em Oaxaca não têm licença para uma questão de que o governo mexicano, por
funcionar. Há um certo nível de criminalização conta de suas políticas de cobertura social, de
e, ocasionalmente, o governo fecha uma acesso à Internet e à informação, não sabe o
rádio, mas apenas onde podem. Eu acho que que fazer. Eles jogam dinheiro pela janela, uma
daí vem uma parte importante: quando uma montanha de diferentes projetos que nunca dão
rádio está bem fundamentada na comunidade, resultado. Colocam um satélite aqui, outro lá,
quando está legitimada, é muito difícil que e nunca envolvem as pessoas. No caso, para
o governo se meta a fechar, pois cria-se um eles era como, “ah, as mesmas pessoas vão
conflito social que pode se transformar num resolver esse problema para nós”. Por isso,
conflito armado. Então, o que normalmente desde o início, nunca houve um conflito com o
acontece em Oaxaca e no México, em geral, governo, apesar de ter ou não ter uma licença,
é o uso da violência extrajudicial, matam os apesar de experimental ou não experimental.
companheiros e companheiras das rádios ao E eles podem se desligar de alguma maneira
“estilo mexicano”. da sua responsabilidade, o que é favorável
para eles. E para nós, como nós sabemos que
Rosane Steinbrenner: Você diz que foi
eles não vão fazer por eles, sabemos que eles
concedido como um projeto experimental o
não vão fazer bem, então é melhor partirmos
uso desse espectro, que já vinha sendo usado
da nossa autonomia e fazermos nós mesmos,
há três anos. Então, eu queria entender de
da maneira que queremos, certo?
que maneira ele era usado e a partir de agora,
com a licença, outras formas, outros modos
de utilização, o quê, de que forma? Essa
experiência da concessão social, ela se deu e
está acontecendo no México. Eu acho que é uma
experiência impressionante para todos nós.

Peter Bloom: Nós tomamos posse dessas


frequências antes de ter a concessão
experimental e antes mesmo de ter concessão
social. Ao longo de um período de seis meses,
talvez, não tínhamos nenhuma permissão.

163
Entrada 3

Rádio Digital
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Rafael Diniz

O Rádio Digital
no Brasil
R adiodifusão Digital é o sistema de
comunicação que utiliza as ondas de rádio,
• Menor consumo de energia - entre 20% a
30% do consumo da transmissão analógica;
assim como o rádio analógico AM ou FM, para
transmissão de sons e também de dados, • Permite a utilização do mesmo sistema
de forma digital. Todos os outros meios de irradiante já utilizado no analógico (OM, OT,
comunicação eletrônicos (TV, telefone, redes OC ou FM) e, dependendo do modelo do
de computador) já são digitais, sendo o rádio transmissor, o mesmo também pode ser
o último meio eletrônico de massa ainda utilizado no digital, necessitando apenas
operando em modo analógico. trocar o excitador;

Introdução • Permite a multiprogramação – mais de um


programa de áudio no mesmo canal físico;
Entre as vantagens técnicas do rádio digital
com relação ao rádio analógico, estão: • Melhor qualidade de áudio - grande
melhoria com relação ao AM e eliminação de

166
Rádio Digital

ruídos no FM; utilizado nos Estados Unidos, e o Digital Radio


Mondiale (DRM), padrão aberto (podendo ser
• Transmissão de aplicações e serviços facilmente implementado tanto pela indústria
interativos e multimídia; como por entusiastas, sendo que existem
implementações em software livre das partes
• Otimização do espectro – maior proteção
digitais do sistema), desenvolvido por um
contra interferências, resultando num maior
consórcio com sede na Europa, tendo sido
número de canais utilizáveis.
adotado inicialmente na Índia.
Vale lembrar que o rádio digital nada
Em 2010, o Ministro das Comunicações Hélio
tem a ver com as chamadas web rádios ou
Costa publicou a portaria 290, que instituiu o
rádio transmitida pela Internet (streaming).
SBRD (Sistema Brasileiro de Rádio Digital),
A Internet é um meio de comunicação
dando disposições sobre os pré-requisitos
de acesso controlado e monitorado, que
que o sistema deveria atender. No entanto,
identifica o ouvinte, é pouco resistente a
diferentemente do decreto que estabeleceu
catástrofes naturais e cobertura restrita
a TV Digital, não estabeleceu prazo para a
(aproximadamente 50% da população
apresentação dos relatórios que embasariam
brasileira não tem acesso à Internet),
a escolha do padrão. Outro ponto importante:
principalmente devido a um complexo sistema
a portaria menciona somente as faixas de
de servidores, fibras ópticas e roteamento, o
rádio de Ondas Médias (OM) e FM (VHF).
que implica em um serviço necessariamente
pago. A radiodifusão digital nada tem a ver Em agosto de 2012, o Ministério das
também com o fato de a emissora utilizar Comunicações criou o Conselho Consultivo
mesa de som e equipamentos de reprodução do Rádio Digital (CCRD), que contava com
de músicas digitais, mas, sim, com o fato de representantes da radiodifusão, indústria
o sinal transmitido pelo ar ser digital (assim e governo. Testes foram realizados e
como na TV Digital). importantes fatos ocorreram: a EBC (Empresa
Brasil de Comunicação) demonstrou interesse
História na digitalização das bandas de Ondas
No Brasil, a história do rádio digital tem Tropicais e Ondas Curtas e associações de
início em meados da década de 2000, com rádios comunitárias também demonstraram
testes tanto por empresas privadas como interesse na digitalização das mesmas,
universidades e governo. Dois padrões estavam defendendo o direito de se digitalizarem em
em jogo, o HD Radio, padrão propriedade de qualquer banda de rádio.
uma empresa norte-americana (Ibiquity), O debate tinha as grandes associações

167
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de radiodifusão, como ABERT (Associação agenda das associações de radiodifusores


Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) comerciais a migração das emissoras do AM
e AESP (Associação das Emissoras Rádio analógico para outro sistema analógico, o FM.
e Televisão do Estado de São Paulo), A empresa norte americana Ibiquity, detentora
favoráveis à adoção do HD Radio, além de da tecnologia HD Radio foi comprada pela
algumas organizações da sociedade civil e gigante do cinema DTS e o futuro do HD Radio
indústria, pequenos grupos de radiodifusores é questionado por muitos, inclusive dentro dos
favoráveis ao DRM, dentre outras forças que Estados Unidos.
ou defendiam um padrão 100% nacional ou
estavam esperando o sistema de rádio que Apesar do aparente marasmo com relação
oferecesse mais “vantagens monetárias” aos ao rádio digital no país, pesquisas com o
envolvidos na decisão. Após testes nas bandas Ginga, sistema que permite a transmissão e
de OM e VHF, a produção de diversos relatórios, execução de aplicações multimídia interativas
audiências públicas e um evento acadêmico na no receptor de TV Digital, foram realizadas e
PUC-Rio (Conferência Espectro, Sociedade e uma adaptação do Ginga para o sistema DRM
Comunicação II) sobre rádio digital, de forma foi feita na PUC-Rio, permitindo, caso seja
“melancólica”, o Ministério de Paulo Bernardo adotado, a interoperabilidade das aplicações
simplesmente não encerrou nem produziu interativas da TV Digital e Rádio Digital.
qualquer relatório conclusivo, sendo que a Testes por radioamadores utilizando o DRM
última reunião do Conselho aconteceu no final vêm sendo realizados com sucesso aclamado
de 2014. por muitos radioamadores brasileiros como
Após o período de existência do Conselho, “fantástico”, permitindo que sinais com 20
alguns fatos relevantes ocorreram: a W sejam recebidos perfeitamente a mais de
empresa que representava o HD Radio no 600 km de distância, com som estéreo de alta
Brasil, a TellHD, fechou as portas, sendo que fidelidade. Ao mesmo tempo, acadêmicos e
um dos seus diretores executivos, Alexandre hobistas começam a desenvolver seus próprios
Romando (o Chambinho), chegou a ser receptores DRM utilizando equipamentos
preso por corrupção, em 2016. Um pouco como a Raspberry Pi e receptores USB
antes, tanto AESP quanto ABERT mudaram baseados no chipset RTL2832 (receptores
o discurso e passaram a propagandear SDR de baixo custo).
que o rádio digital estava morto, tendo sido Outro fato importante de 2016: foi criada
superado pela Internet. Também outro fato a Associação Brasileira do Rádio Digital
relevantíssimo eclipsou a atuação do CCRD (ABRADIG), formada principalmente por
– a migração do AM para FM, que colocou na integrantes da plataforma DRM-Brasil, que

168
Rádio Digital

defendem a adoção do DRM com evoluções faixa de OM permite também que as emissoras
brasileiras para o Sistema Brasileiro de Rádio explorem a recepção de longa distância à noite,
Digital. Em parceria com o Ministério da graças à propagação por ondas celestes, assim
Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações como nas faixas de OT e OC.
(novo Ministério das Comunicações do governo
de Michel Temer) e EBC, novos testes com o Para o caso do FM, a questão é mais
DRM em Ondas Curtas estão sendo realizados complexa, pois em muitas capitais do país
este ano, do mesmo local de transmissão da não existe espaço na faixa tradicional do FM
Rádio Nacional da Amazônia OC, com o objetivo para se colocar o sinal digital em um canal
de demonstrar que o rádio digital em Ondas adjacente ao canal analógico. Na verdade, em
Curtas é um excelente meio de comunicação muitas capitais não existe espaço nem mesmo
para transmitir áudio de boa qualidade e para a migração das emissoras AM para o FM,
informação digital para enormes e distantes o que levou a criação da faixa estendida do FM,
áreas do território nacional. que compreende os canais 5 e 6 de TV (76MHz
– 88MHz). No entanto, nenhuma emissora de
Desafios rádio está operando nesta faixa e pouquíssimos
receptores podem sintonizá-la, já que a banda
Alguns temas relevantes para pensar de FM atualmente vai de 87,4 até 108 MHz.
a digitalização do rádio são o modelo da
digitalização e como será a etapa de transição Uma das grandes possibilidades para a
da transmissão analógica para a digital. digitalização do FM é exatamente a utilização
Partindo do princípio que o padrão adotado da faixa dos canais 5 e 6 de TV para as
seja o DRM com modificações na camada de transmissões digitais, em canais de 100kHz de
serviço nacionais, será necessário um período largura, de forma semelhante à digitalização
de transição em que os sinais analógicos e da TV, em que o canal digital da emissora é
digitais estarão no ar, assim como acontece alocado em outra banda. Portanto, é necessária
com os canais de TV digital e analógica. uma modificação urgente, por parte do
governo, na alocação desta faixa de frequência
Pelo fato de muitas emissoras que operam para o rádio digital, ao custo da criação de uma
na faixa de OM estarem migrando para a faixa nova faixa analógica para a radiodifusão em
de FM, a mesma ficará muito mais desocupada, 2016 (possivelmente natimorta) e de dificultar
permitindo um rearranjo da banda, de forma que a digitalização do rádio no país.
será possível que o sinal digital fique adjacente
ao sinal analógico ou, ainda, em outra parte Para além das questões técnicas, o rádio
da faixa, a gosto da emissora OM que optar digital é uma necessidade da sociedade
por não migrar para o FM. A desocupação da brasileira, que carece de meios de comunicação

169
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

digitais mais potentes e convergentes para


o exercício da liberdade de expressão e para
a radiodifusão pública e comunitária, com a
multiprogramação (imaginemos, por exemplo,
uma boa infraestrutura de transmissão
sendo compartilhada por quatro emissoras
comunitárias ou públicas) e o provimento de
serviços públicos pelo rádio. Para a indústria
nacional seria muito bom, visto que todos os
equipamentos para o rádio digital poderiam
ser manufaturados aqui, lembrando que,
possivelmente, o padrão do Brasil será
adotado, a reboque, ao menos por toda
(ou quase) a América do Sul, assim como
aconteceu com a TV Digital. Rádios comerciais
e possíveis novos modelos de negócios
também irão se beneficiar muito com as novas
possibilidades que o rádio digital traz através
dos recursos multimídia e de outras aplicações
de nicho (informações de trânsito, alerta de
emergência e conteúdos direcionados, por
exemplo), potencialmente tornando o mercado
da radiodifusão mais dinâmico e contribuindo Rafael Diniz
para a entrada de novos atores. é bacharel em Ciência da
Computação pela UNICAMP
(2009) e mestre pela PUC-
A radiodifusão brasileira, que está se Rio (2015). É doutorando em
aproximando de seu centenário, merece Informática na UnB. Tem
evoluir e se digitalizar, permitindo que a experiência na área de TV e Rádio
Digital, sistemas hipermídia e
história do meio no país avance em consonância multimídia, middleware Ginga
com as tecnologias digitais mais eficientes e de questões ligadas à gestão
e relevantes para o Brasil e região, em um do espectro eletromagnético.
Participa do Conselho
ambiente aberto para todos os tipos de rádio, Consultivo do Rádio Digital do
principalmente aqueles que potencializam a MiniCom. É pesquisador do
comunicação entre as pessoas. Lab. Telemídia da PUC-Rio e
do Grupo de Processamento
Digital de Sinais da UnB.

170
Rádio Digital

por Miriam
Meda Gonzalez

Breves notas sobre a


radiodifusão comunitária e as
tecnologias do rádio digital
E nquanto em muitos países estamos
vivendo os apagões da televisão analógica
Modulada (FM), e muito menos definir uma
data. A Noruega é o caso paradigmático porque
para abrir caminho para a Televisão Digital afirma categoricamente que suas emissões
Terrestre (TDT), no caso do rádio este análogas no ambiente sonoro terminarão em
processo de digitalização ainda não parece 20171, mas os demais países que timidamente
ser tão claro. Não só isso, mas “o rádio é o se pronunciaram sobre este assunto (como a 1
CHOWDHRy, A. (20 de abril
último meio de comunicação a digitalizar seus Alemanha, Reino Unido, Suíça e Dinamarca) de 2015). Norway is switching
processos de distribuição” (GARCÍA-LASTRA, ainda não se atrevem a avançar com uma off FM radio, starting in 2017.
Forbes. Disponível em http://
2012, p. 167). Muito poucos países ousaram previsão anterior a 2025. bit.ly/29loLw2. Acesso em 11 de
marcar oficialmente o fim da Frequência julho de 2016.

171
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!
Rádio Digital

Temos que esclarecer, no caso de qualquer pessoas vão para os seus empregos. Seria
leitor ou leitora ainda ter dúvidas, que o rádio necessário adaptar cada um desses veículos
digital não é o mesmo que rádio por Internet. e os que chegam ao mercado quando chegar
Enquanto o segundo usa uma transmissão de o momento.
dados que podem ser recebidos através de
uma ligação à Internet via um computador ou A mudança tecnológica do analógico para
um receptor de rádio especial (como rádios o digital pode beneficiar, em grande parte, a
com conexão a wlan), rádio digital não precisa remoção do álibi que, desde o nascimento de
dessa conexão. É uma conexão chamada rádio, tem sido utilizado pelos países para
terrestre, como o FM, para o qual estamos outorgar licenças a meios de comunicação: o
acostumados. Para acedê-la precisamos de espectro radioelétrico é escasso. Esta mantra
um desses receptores de rádio digital que, fez que, num início, se desse uma prioridade
uma vez adquirido, não gera uma despesa quase absoluta aos meios de comunicação
além da eletricidade ou baterias para a sua públicos, até a desregulamentação dos anos
operação (ou seja, não há necessidade de 80 em toda a Europa, quando começaram a
pagar mensalmente a uma operadora, como ganhar peso as iniciativas privadas. E, agora,
no caso da Internet). com a digitalização, o que podemos dizer é
que o espectro radioelétrico é limitado, mas
Por parte do ouvinte, este deve estar munido não escasso (cada vez menos) e, portanto,
de uma “máquina que serve para comunicar” o que é essencial é uma gestão correta e
(FLICHy, 1982), se quiser continuar a ouvir seus transparente por parte dos Estados que
programas favoritos depois de um hipotético beneficie igualmente as iniciativas públicas,
switch off das transmissões analógicas. E privadas e sem fins lucrativos (como a mídia
nós temos que estar conscientes do que isso comunitária).
significa: não só, por exemplo, a compra de
um novo receptor por cada residência. O que Entendendo as tecnologias do rádio
aconteceria com a indústria automóvel na digital
Europa? Enquanto nos EUA, onde se usa o
sistema digital HD Radio e a empresa que Quando falamos de rádio digital, falamos
distribui esta tecnologia tem cooperado sobre diferentes possibilidades e padrões,
bastante com a indústria automobilística enquanto ao falarmos de FM somente existiu e
para popularizar este sistema no carro, na existe um padrão. Nosso fiel receptor de rádio
Europa ainda não existe um roteiro para tal, portátil, mesmo do tamanho de um cartão
ainda que o rádio seja um companheiro fiel de visita, funciona tanto na Espanha como na
nos engarrafamentos de manhã, quando as Bélgica e no Brasil. E é aí onde reside parte
do problema: ter várias opções para distribuir

173
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

o sinal também significa que existem vários disso, os países que estão testando o serviço
grupos de pressão que podem estar mais ou já tem alguma regulamentação sobre ele
interessados em que a balança se incline encontram-se principalmente na Europa
para um lado específico. Especialmente e Ásia, incluindo a Áustria, China, Turquia,
se falamos de fabricantes de aparelhos. Israel e Hungria; mas também na África, como
Não é apenas a tecnologia que é finalmente Tunísia e África do Sul (entre outros).
escolhida, mas há que se levar em conta
diferentes investimentos prévios, diferentes Mas nem todos os autores concordam com
especializações programáticas e, inclusive, esta “autopublicidade” da organização e
diferentes modelos de negócio mesmo. acreditam que ela “esteja difundindo alguns
Falando no âmbito do mundo globalizado, se fatos enganosos através dos seus membros”
eu quero que o meu receptor, como agora, (HEDERSTRÖM, 2014, p. 10). De acordo com
funcione em todos os lugares, o padrão deve Hederström, as manifestações de World Dab
ser o mesmo em todas as partes. são exageradas já que, além de quatro países
(Reino Unido, Dinamarca, Noruega e Austrália),
De todas as tecnologias digitais que estão a audiência semanal de DAB não excede uma
sendo contempladas em diferentes países percentagem muito pequena da população.
há uma que está ganhando muito peso
pela pressão (ou lobby) da sua organização Então, por que falar somente do DAB quando
mais importante: a World Dab (http://www. existem outros padrões? Qual seria o padrão
worlddab.org). Estamos falamos do Digital mais beneficente (em termos de qualidade
Audio Broadcasting (DAB). Referir-se ao rádio e preço) para as rádios comunitárias?
digital na Europa, atualmente, é falar do DAB Devemos primeiro fazer uma pequena lista de
como sinônimo. Esse padrão nasceu sob os possibilidades:
auspícios da União Europeia, em 1986, com • Família de padrões de DAB ( DAB, DAB+,
o desenvolvimento de dois grupos principais DMB -Digital Multimedia Broadcasting-,
de pesquisa: o Institut für Rundfunktechnik DAB-IP, DxB, DRB, eDAB, T-DMB, S-DMB,
(IRT, Alemanha) e do Centre Commun d’Études DMB-T);
(CCETT, França). Segundo dados oficiais da
World Dab, os países com serviços regulares de • DRM (Digital Radio Mondiale, também
DAB são Austrália, Bélgica, República Checa, DRM+);
Dinamarca, França, Alemanha, Gibraltar,
Hong Kong, Indonésia, Irlanda, Itália, Malta, • O padrão japonês, o ISDB-T (Integrated
Holanda, Noruega, Polônia , Coreia do Sul, Services Digital Broadcasting – Terrestrial);
Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido. Além
• O sistema IBOC (In-Band-On-Channel) que

174
Rádio Digital

é um rádio híbrido analógico e digital que se em conta estes dois últimos fatores, um DIGI.TV. (2011). Guidelines for
2

the funding framework for the


encontra principalmente nos Estados Unidos, precipitado apagão analógico poderia ser um digital switchover. Disponível em
mas também no Panamá e no México. passo para trás em relação às emissões e http://www.southeast-europe.
net/document.cmt?id=585.
coberturas de rádios comunitárias em todo o Acesso em 16 de outubro de
Adaptação das rádios comunitárias mundo, e mais ainda considerando que: 2016.
EPRA (24 de octubre de 2012).
aos padrões do rádio digital
3

CMFE publishes first mapping


• A pressão feita em favor do mencionado of community media in Europe
Até agora, dizemos que as mudanças de apagão e o uso de apenas uma família de (itálico). News. Disponível em
http://bit.ly/2a5NBnW. Acesso
tecnologia implicam uma mudança em relação padrões, do DAB, é motivada principalmente em 23 de julho de 2016.
aos receptores e à disponibilidade de espectro pelos fabricantes e pelos governos ansiosos 4
McCabe, M. (21 de septiembre
radioelétrico. Mas, obviamente, também para liberar espectro radioelétrico em favor de 2011). Local radio groups
question Ofcom on DAB
envolve uma mudança no equipamento de do dividendo digital (HEDERSTRÖM, 2014, p. swichtover (itálico). Campaign
transmissão de cada estação de rádio, ou seja, 4); Live. Disponível em http://bit.
ly/2a4wlAD. Acesso em 25 de
um forte investimento econômico para mudar julho de 2016.
todos os equipamentos de transmissão. Como • Mesmo a maior autoridade do mundo em 5
EBU (2012). Digital radio
serão afetadas as rádio comunitárias por telecomunicações, a União Internacional de distribution in Europe. Génova:
Telecomunicações (UIT), ainda não indicou EBU. Disponível em https://tech.
um apagão analógico? No caso da televisão ebu.ch/docs/r/r138.pdf. Acesso
digital foi oferecida uma série de subsídios nenhuma necessidade de substituir o rádio em 25 de julho de 2016.

para facilitar a transição de uma tecnologia FM por um outro sistema. (Ibid.);


para outra, mas a grande maioria foi gasta no • Em 2011, uma referência como a agência
serviço da televisão pública, para facilitar a reguladora audiovisual inglesa (Ofcom)
compra de receptores pelos usuários e para realizou uma consulta sobre o DAB com
escrever relatórios de pesquisa... Embora numerosos grupos de rádio e disse que
seja verdade que em alguns países a compra “o DAB claramente não é adequado - em
de equipamentos foi financiada por emissores termos de custos de transmissão, cobertura
privados (principalmente na Áustria). 2 robusta e ou recepção do consumidor -
Um informe feito em 2012 pelo Community para se tornar a plataforma principal para
Media Forum of Europe (CMFE), com sede estações de rádio locais em muitas áreas”.4
em Bruxelas, na Europa, estudou um total Neste sentido, também a União Europeia
de 2.237 estações de rádio comunitária de Radiodifusão (UER) reconheceu em 2012
em 29 países e estima um total mundial que o DAB pode não ser adequado para uma
de 17mil estações sem fins lucrativos.3 A transmissão em pequena escala e, quando a
maioria dessas rádios opera de forma não cobertura DAB não é possível, recomenda o
governamental e sem fins lucrativos, com uso de DRM.5
estruturas e orçamentos limitados. Tendo

175
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Por essas razões, organizações DAB+, resultado da cooperação e interação


internacionais, como a Associação Mundial de entre essas estações. Tal é o exemplo da
Rádios Comunitárias (AMARC) e o CMFE região de Marseille (França) onde nove rádios
comunitárias usam o mesmo multiplex (8C).
Apoiamos fortemente a retenção do FM Estes rádios são Radio AYP, Radio Culture Outre
analógico. Nós não vemos a urgência de uma Mer, Radio Gralère, Radio Grenouille, Radio
transição iminente para o digital ou um switch Gàlere, Radio Garlaban, Radio Lina, Radio Neo
off. Sem as devidas considerações com as rádios e Radio Zinzine. O operador deste multiplex é
comunitárias e locais, uma transição similar a Societé de Diffusion Numérique e o emissor
pode ser prejudicial tanto para os indivíduos e é da Association de Diffusion Numérique de
as organizações que operam estações de rádio Marseillles.
comunitárias como os seus ouvintes, já que o
equipamento deve ser substituído em ambas as Num e-mail enviado por Klaus Hindelkein,
direções. Para uma futura transição, o DRM+, Presidente da Association de Diffusion
como um sistema transparente e de baixo numérique, à autora, ele afirma que o custo da
custo deveria estar disponível para as rádios radiodifusão para eles em DAB+ (transmissor
comunitárias na Europa, juntamente com o mais de 4Kw) ronda os 400 Euros mensais. Do
caro e complexo sistema DAB+ para alguns casos mesmo modo, afirma que ainda há poucos
(CMFE, 2013). ouvintes em sua onda porque cada ouvinte tem
de adquirir um aparelho de rádio compatível
Nesta declaração, notamos que o que se com essa tecnologia (aspecto que apontamos
recomenda para a radiodifusão digital desde em parágrafos anteriores).
as rádios comunitárias é outro tipo de família
de padrões, o DRM. Autores como Ala-Fossi Também na França encontramos exemplos
(2008) consideram o DRM+ como “o melhor em Paris (Radio Paris Pluriel), que usa o
candidato para um sistema de transmissão operador do multiplex SCIC Radiocoop.
digital razoável para emissores de pequena
escala, tal como as comunitárias, dentre os Por outro lado, na Suíça existe um operador
que temos no momento.” chamado Limus / DIGRIS que está autorizado
a prestar serviços para DAB-multiplex,
O rádio digital comunitário na Europa incluindo “ilhas DAB” especialmente
pensadas para emissões locais e para aqueles
Contudo, é verdade também que no contexto sem fins lucrativos. Desses serviços estão
de cidades com alta interação entre as rádios se beneficiando, atualmente, rádios como
comunitárias podem ser criados casos de a Radio MAXXIMA (Gênova) e Radio Lora
emissões contínuas de sucesso com o padrão

176
Rádio Digital

(Zurique). Os custos são minimizados porque a cortar a ajuda de 1,4 bilhões de dólares
a infraestrutura é muito simplificada, usando australianos (cerca de um milhão de Euros)
um único lugar de transmissão com todos os por ano e muitas rádios admitiram que, sem
processos de codificação, multiplexagem e o financiamento público, seria praticamente
modulação acontecendo em um computador impossível transmitir.6
e usando os fluxos de som (streaming) que
produzem essas rádio na Internet como fonte Além disso, já há antecedentes nos quais,
de áudio. Além disso, no caso de software é para implementar um sistema DAB, foi
usado um de código-fonte aberto (open source) necessário recorrer à ajuda do Estado, mesmo
disponível no site www.opendigitalradio.org. no caso do setor comercial então, nem se
fale do setor comunitário), como no caso da
É possível fazer rádio comunitária em Espanha, onde, em 2005, foi subsidiado um
DAB sem investimentos públicos? plano no valor de 260 milhões de Euros para
trazer a televisão digital terrestre para as
Essa é uma das grandes questões regiões mais periféricas (2,5% da população)
cuja resposta depende do progresso e e para operar e manter a infraestrutura da
da transição das rádios comunitárias TDT. No entanto, devido à circunstância de
analógicas para o ambiente digital. Como este auxílio ter se destinado exclusivamente a
vimos na seção anterior, certas organizações operadores terrestres, a Comissão Europeia
internacionais e especialistas defendem concluiu, em 2013, que esta prática era
uma multitecnologia que permita tanto incompatível com as normas da União Europeia
emitir como receber em DAB+ (para o qual, sobre ajudas estatais ao favorecer a tecnologia
aparentemente, se aposta atualmente) e digital terrestre em detrimento de outras.
DRM+ (muito menos desenvolvido, mas muito Finalmente, a Comissão Europeia forçou os
melhor economicamente para rádios sem operadores a devolver o dinheiro recebido.7
fins lucrativos), além de continuar com a
manutenção do FM. A Austrália pode ser um Além das organizações internacionais já
exemplo que ilustra essa preocupação. Nesse mencionadas, AMARC e CMFE, associações
país, o DAB foi combinado com o FM a partir de nacionais, como a Confédération National des
2009 e o governo estabeleceu uma ajuda para Radios Associatives (CNRA, França) afirmam,
as rádios comunitárias para facilitar essa no momento, acharem muito mais complicado
transição nas grandes cidades, como Sydney, emitir no digital sem contar com um apoio
Melbourne, Brisbane, Perth e Adelaide. No explícito do sistema público.8
entanto, pouco depois, essa transição foi posta As perguntas, portanto, são numerosas e
em risco quando, em 2012, o governo começou das suas respostas depende a sobrevivência

177
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Henry, H. (2016). Keep the


6
de todo um sistema de rádios comunitárias CMFE (2013). Digitalization policy for
community in your radio
campaign launches in response que levou décadas para ser construído. community radio in Europe. Statement for the
to Federal Budget funding Existe alguma maneira de evitar que na Working Group on Communication Broadcast
shortfall. Alexandria: CBAA.
Disponível em http://bit. transição do analógico para o digital não Issues (CBISS) meeting in Brussels, October
ly/1Ol0yHP. Acesso em 31 de apenas perdam-se ouvintes, mas também 23, 2013. CMFE: 2013. Disponível em http://bit.
julho de 2016.
7
Comisión Europea (2103).
milhares de Euros / Dólares que colocam ly/29V3h1q. Acesso em 25 de julho de 2016.
Ayudas estatales: Los em risco a existência dessas rádios? Haveria
operadores de plataformas
a possibilidade de “voltar atrás” caso as COINCHON, M. (2014). DAB+ for local and
de televisión digital
terrestre en España deberán rádios tomem a decisão de dar um salto para community radio stations. Issue 24: Digital
reembolsar unas subvenciones
o digital e sua aventura não ter sucesso? A Radio - The momentum is growing
incompatibles. Bruselas:
Comisión Europea. Disponível ajuda pública para a digitalização significaria COMISIóN EUROPEA (2103). Ayudas
em http://europa.eu/rapid/
press-release_IP-13-566_
uma forma de controlar a atividade dessas estatales: Los operadores de plataformas de
es.htm. Acesso em 31 de julho rádios comunitárias e livres? Poderiam os televisión digital terrestre en España deberán
de 2016.
operadores das transmissões digitais, por sua reembolsar unas subvenciones incompatibles.
Direction Générale des Médias
8

et des Industries Culturelles vez, exercer algum controle? Bruselas: Comisión Europea. Disponível em
(2012). Synthèse de la
http://europa.eu/rapid/press-release_IP-13-
consultation sur les normes de
la Radio Numérique Terrestre.
Bibliografia 566_es.htm. Acesso em 31 de julho de 2016.
París: DGMIC. Disponível em
http://bit.ly/2arnkRc. Acesso em ALA-FOSSI, M. (Octubre de 2008). Future of
31 de julho de 2016. DIGI.TV. (2011). Guidelines for the funding
Community Radio in the Digital Era. En Nordic
framework for the digital switchover. Disponível
Community Radio Conference. Congreso
em http://www.southeast-europe.net/
llevado a cabo en Turku, Finlandia. Disponível
document.cmt?id=585. Disponível em 16 de
em http://sockom.helsinki.fi/commedia/ala_
outubro de 2016.
fossi.pdf. Acesso em 25 de julho de 2016.
DIRECTION GÉNÉRALE DES MÉDIAS ET
BONET, M. (2012). Distribución: analógica o
DES INDUSTRIES CULTURELLES (2012).
digital, lo importante es llegar al oyente. En
Synthèse de la consultation sur les normes de
Gallego Pérez, J. y García Leiva, T. (coord.),
la Radio Numérique Terrestre. París: DGMIC.
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Disponível em http://bit.ly/2arnkRc. Acesso
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em 31 de julho de 2016.
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CHOWDHRy, A. (20 de abril de 2015). Norway
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multicanal. En Gallego Pérez, J. y García
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Leiva, T. (coord.), Sintonizando el futuro: radio y
Acesso em 11 de julho de 2016.
producción sonora en el siglo XXI (pp. 167-188).

178
Rádio Digital

Madrid: Instituto Radio Televisión Española. julho de 2016.

EPRA (24 de octubre de 2012). CMFE REPúBLICA FRANCESA (2013). Décision nº


publishes first mapping of community media 2013-694 du 25 septembre 2013 autorisant la SARL
in Europe. News. Disponível em http://bit. SDN à utiliser une ressource radioélectrique pour
ly/2a5NBnW. Acesso em 23 de julho de 2016. le multiplexage des programmes des éditeurs de
services de radio par voie hertzienne terrestre en
FLICHy, P. (1982). Las multinacionales del mode numérique à Marseille. París: Legifrance.
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HEDERSTRÖM, C. (2014). Community radio:
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HENRy, H. (2016). Keep the community in your


radio campaign launches in response to Federal
Budget funding shortfall. Alexandria: CBAA.
Disponível em http://bit.ly/1Ol0yHP. Acesso
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HINKELDEIN, K. (2016). Re: Digital radio


experiences / Radio numérique expériences. Miriam Meda González
Doutora em Jornalismo
[email]. (Universidad Complutense
de Madrid) e Mestra em
MCCABE, M. (21 de septiembre de 2011). Comunicação com Fins Sociais:
Local radio groups question Ofcom on DAB Estratégias e Campanhas
(Universidad de Valladolid).
swichtover. Campaign Live. Disponível em http:// Membro fundadora da Red de
bit.ly/2a4wlAD. Acesso 25 de julho de 2016. Medios Comunitarios de España
(ReMC), Red de Investigación
REDACCIóN (s/f). Community Digital Radio. en Comunicación Comunitaria,
Alternativa y Participativa
Australia: Keep Community Radio. Disponível (RICCAP) e Citizens Media
em http://www.keepcommunityradio.org.au/ Hub (CMH). Membro do Expert
community_digital_radio. Acesso em 26 de Group del Community Media
Forum of Europe (CMFE).

179
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por Dilliany Justino,


jornalista da
Pulsar Brasil

Rádio digital e a importância


de tecnologias abertas
E ntre os meios de comunicação eletrônicos,
o rádio é o único que ainda opera em modo
Defensores do segundo padrão acreditam
que existe um enorme potencial de o rádio
analógico no Brasil. Enquanto televisão, digital ser um divisor de águas quando se
telefone e redes de computador já são digitais, pensa em democratização da comunicação,
o processo de transição do rádio ainda não e a escolha do padrão brasileiro pode ser
tem data para acontecer. determinante neste sentido.
Uma das questões que atravessam esse Além disso, a exemplo da TV Digital, é possível
caminho é a escolha do padrão a ser utilizado: que boa parte da América do Sul siga o padrão
HD Radio ou DRM? Enquanto o primeiro é de adotado pelo Brasil. Ou seja, esse processo
propriedade da empresa norte-americana pode resultar em um salto na liberdade de
Ibiquity, o segundo é mais aberto1 e foi expressão em nível continental, ou podemos
desenvolvido na Europa. ficar reféns de um padrão proprietário.

180
Rádio Digital

Para entender melhor esse panorama Pulsar: O que a transição do analógico para 1
O formato atual do DRM
também implica Royalties,
brasileiro e as vantagens do rádio digital, a o digital muda na prática do rádio? porém, diferente do HR Radio,
Pulsar Brasil conversou com Fabs Balvedi, ele permite modificações em
Fabs: Da questão técnica eu não posso falar direção a um padrão totalmente
professora do curso de Design da PUC/PR aberto.
(Pontifícia Universidade Católica do Paraná) muito, mas, sim, da parte mais empírica, da
e pesquisadora em mídias livres. Fabs é uma questão do acesso. A mudança do analógico
grande defensora das tecnologias abertas e pro digital pode permitir que o rádio chegue
livres e realizou o filme “Olhar Contestado” com mais facilidade em locais remotos, pode,
somente com este tipo de ferramenta. principalmente, e eu acho que aí é o grande
ganho do digital, transmitir dados. O rádio
Pulsar: Como está o rádio digital nesse no digital passa a permitir que você consiga
momento no Brasil? transmitir não somente o áudio, mas dados
e, a partir daí, ele passa a ser um meio de
Fabs: Ele está sofrendo muito lobby, muita transmissão de muito mais informações. Então,
pressão para que um modelo proprietário se pensarmos em um lugar que só acessava as
seja adotado, o HD norte-americano. A ondas analógicas, com o digital você consegue
situação atual parece que está meio que em transmitir pacote de dados, mandar arquivos.
stand by, parece que as pessoas não estão O que você consegue transmitir via internet
falando muito sobre isso, as grandes mídias você consegue transmitir via rádio também, só
e veículos de comunicação não falam sobre que é outro tipo de arquitetura. O rádio não é
o assunto e não esclarecem a população em igual a internet e o diferencial está justamente
geral sobre essas novas tecnologias e sobre na arquitetura da informação diferente, de
todas as possibilidades que elas têm. O rádio você conseguir transmitir através das ondas
digital poderia alavancar muita coisa no do digital coisas que você não conseguiria
Brasil, chegar até lugares muito distantes, na transmitir via internet para locais mais
Amazônia, por exemplo. Os nossos terrenos ermos. Suponha que tenha algum problema
são mais indicados para o padrão DRM, eu de catástrofe natural, que algumas linhas
prefiro usar a sigla RDM, porque é Rádio sejam cortadas. O rádio consegue transmitir
Digital Mundial. O DRM é uma sigla que pode muito melhor em situações de catástrofe, por
remeter a Digital Rights Management, que é exemplo. O rádio tem mais poder de suportar
uma coisa que a gente combate, porque é adversidades.
aquela restrição colocada na tecnologia pra
você não conseguir copiar, é um impeditivo Pulsar: Se pensarmos em lugares afastados
pro acesso comunicativo. Ainda não saiu essa e nos povos tradicionais o rádio digital traria
decisão, então é uma batalha que está se muitas vantagens então?
arrastando por causa dessas questões.

181
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Fabs: Com certeza. O rádio digital traria poder da comunicação. Mas eu não vejo isso
muitas oportunidades e muito poder de como negativo, seria negativo pra eles, mas eu
difusão. Só que aí a gente entra numa seara acho que para o país como um todo isso seria
que tem que ser mais discutida também, extremamente positivo.
que é a questão da liberdade das rádios,
da famosa reforma agrária no ar que é Pulsar: Pensando em democratização da
pregada pelas rádios livres. A rádio, ela comunicação, o futuro é o rádio digital?
tem que ser um meio também de difusão, Fabs: Eu acredito que passa necessariamente
não só de recebimento. O grande potencial pela escolha do rádio digital, com um padrão
da rádio claro que está nesse recebimento, aberto e também pela democratização do uso
mas também na possibilidade de que cada das bandas, que isso seja feito de uma maneira
comunidade possa fazer a sua radiodifusão. muito mais democrática do que é feito hoje
Isso tem que ser mais democratizado, porque em dia, e também por essa distribuição mais
se não houver essa democratização vai ficar equilibrada do poder que está embutido nesse
novamente aquela coisa de o cidadão passivo tipo de mídia. E, principalmente, pela escolha
somente como receptor da informação. Então do padrão correto, mais democrático, mais
os meios têm que ser democratizados para ético, que seria um padrão aberto. Isso daria
que as pessoas nesses povos, nesses lugares, um poder muito grande de democratização da
também consigam ter poder de transmitir a mídia. Se você não escolhe um padrão aberto
sua informação e não serem meros receptores fica muito refém de um padrão proprietário,
de informação. você não tem nem poder de melhorar a
Pulsar: Existe algum ponto negativo no rádio tecnologia, nem de se apropriar, nem do país
digital? produzir mais tecnologia e implementar. Você
fica com aquela caixa preta, refém de uma caixa
Fabs: Eu não consigo ver um ponto negativo. preta, que você não pode olhar o que tem dentro,
Limitar a banda como eles tão querendo fazer não pode melhorar, não pode estudar. Como
isso seria bem ruim, colocar uma potência um país pode se emancipar tecnologicamente
muito baixa faria com que o alcance não se fica importando tecnologia de fora e, ainda
atingisse a região necessária pra ter algum por cima, uma tecnologia fechada? Ser de fora
efeito, efetivamente uma distribuição de não é o problema, o RDM é uma tecnologia que
comunicação. Talvez um ponto negativo seria veio de fora, mas ela é aberta, então ela pode
pra quem detém atualmente o poder da mídia, ser apropriada pelo país.
poderia ser negativo pra esses conglomerados
que dominam atualmente a mídia, eles Pulsar: Então existe um potencial muito
passariam a não ser mais os detentores do grande para democratizar a mídia, mas de

182
Rádio Digital
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

acordo com as escolhas tudo pode continuar com tecnologias abertas. O Edward Snowden
como é hoje? fala que isso necessariamente passa pelas
tecnologias abertas, pelas mídias livres,
Fabs: Exatamente. Dependendo da escolha pelo software livre. Porque se você tem uma
que se faz, a gente vai continuar refém tecnologia fechada é muito fácil colocar um
de tecnologias proprietárias, sem poder backdoor, alguma coisa que filtra isso daí e que
se emancipar tecnologicamente. Essa passe dados, que transmita dados para coisas
arquitetura de informação é essencial para que você não quer. Eu acho que as pessoas têm
a construção democrática do conhecimento. o direito de saber por onde que os dados delas
Particularmente eu não consigo ver a estão passando, é um direito fundamental
democratização da mídia acontecer de do ser humano saber por onde que os dados
forma sustentável, a médio e longo prazo, se que a pessoa fornece em determinado meio,
utilizando apenas de tecnologias proprietárias. a pessoa tem o direito de saber pra onde que
A democratização necessariamente precisa esses dados estão indo e pra onde que esses
passar por um modelo aberto justamente para dados tão sendo fornecidos, isso tem sido
que a regulação da mídia seja feita de forma bastante questionado hoje em dia.
democrática e não vigilantista. A tecnologia
proprietária corre o risco de vigilantista e de Pulsar: E existe alguma maneira de termos
censurar a informação de várias maneiras, controle sobre isso?
tanto pelo poder capital, quanto pelo poder
tecnológico. É a máquina servindo ao homem, Fabs: A única maneira de você conseguir
a tecnologia servindo ao homem e não o ter esse controle social sobre como os dados
homem servindo à tecnologia. do cidadão são tratados é você ter isso com
uma tecnologia aberta. Quando você passa
Pulsar: Existem outros aspectos importantes a trabalhar com esse universo do software
em relação ao rádio digital? livre, você passa a dividir essas tarefas de
regulação social. Por exemplo, eu não sou
Fabs: Eu acho que é importante também em programadora, mas eu confio em pessoas que
relação a serviços públicos que podem ser são programadoras na minha comunidade,
feitos através do rádio digital e dos dados que elas vão olhar aquele código e vão me dizer
são passados através do rádio digital. Hoje, se ali tem alguma coisa maliciosa ou não, se
a gente fala em big data, análise de big data, aquele código está mandando alguma coisa
privacidade, a única maneira que a gente tem pra um lugar que não deve. Então, é uma
de preservar um mínimo a nossa privacidade, questão ética. Pra mim, o que permeia tudo
de, no mínimo, saber o que estão fazendo isso e é ponto focal em relação às tecnologias
com os nossos dados, é ter isso também livres é a questão ética, é você conseguir ter

184
Rádio Digital

acesso pra que tudo que aconteça naquele


meio seja feito de maneira ética. O Richard
Stallman, quando fundou o movimento do
software livre, falou que era uma questão
ética, do usuário quando compra o computador
ele saber como que os dados que ele coloca
dentro daquele computador estão sendo
tratados, e do computador servir a ele e não
ele servir ao computador. Então, eu acho que
todas essas questões a gente está colocando
em relação ao rádio digital, por ele ser um
meio por onde pode passar muita informação
e por onde podem ser oferecidos serviços
essenciais a população, por onde, de repente,
alguém poderia marcar uma consulta numa
comunidade que seja mais longe, alguém de
uma aldeia possa conseguir transmitir dados
pra consultar um médico. A gente não sabe
como vai ser o futuro, mas você ter domínio
sobre as tecnologias que você coloca dentro
da tua casa é essencial.

Dilliany Justino
é jornalista formada pela
Universidade Federal
Fluminense. Ela vai da fotografia
ao rádio, sempre com foco nos
direitos humanos. Atualmente,
faz parte da equipe da Agência
Informativa Pulsar Brasil.

185
Rádio Digital

186 187
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais! Rádio Digital

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais! Rádio Digital

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Rádios Comunitárias em Tempos Digitais! Rádio Digital

Ilustração: Camila Novaes | Texto: Nils Brock


192 193
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Futuro das rádios


comunitárias em
tempos digitais
A implementação da radiodifusão digital foi
o tema do último de nossa série de seminários,
atrás, mas ainda nas sombras: o Sistema
Brasileiro de Rádio Digital (SBRD).
realizado em Olinda, Pernambuco. No dia
9 de dezembro de 2016, no Sindicato dos Participaram Cláudio Del Bianco, presidente
Servidores Públicos de Pernambuco, local que da recém-fundada Associação Brasileira
normalmente abriga as reuniões do Fórum de Rádio Digital (ABRADIG), defendendo a
Pernambucano de Comunicação (FOPECOM), importância da implementação de um padrão
juntamos cinco palestrantes para desmistificar aberto de rádio digital; o engenheiro Ismar
um grande desconhecido, anunciado 10 anos Vale da Empresa Brasil de Comunicação (EBC),
promovendo a introdução de transmissões

194
Rádio Digital

digitais nas Ondas Curtas; Adriana Veloso, Essa faixa está com utilização quase zero O engenheiro se refere
1

aos padrões HD Radio, de


doutoranda em Ciência Política pela UnB no Brasil, e é uma faixa cujo uso precisa ser propriedade de uma empresa
(Universidade de Brasília), insistindo no grande incentivado. Foi por isso que a EBC, junto estadunidense, e o DRM (Digital
Radio Mondiale), um consórcio
potencial social da tecnologia digital; Ana com o Ministério das Comunicações, resolveu internacional com sede em
Veloso, da Universidade Federal de Pernambuco entrar nessa luta para mostrar a possibilidade, Londres, que, de fato, não é
o padrão “europeu”, já que o
e do Observatório de Mídia, nos lembrando primeiramente através de testes, de que é viável adotado nos países do continente
da tarefa de organizar a tecnologia de forma fazer uso de um padrão que é o DRM, único é um terceiro padrão, o DAB
(Digital Radio Broadcast).
emancipadora, e; Ivan Moraes, do Centro de adotado em Ondas Curtas para transmissão de
Cultura Luiz Freire e FOPECOM, advertindo que rádio digital no Brasil.
a implementação do rádio digital não deveria
seguir a rota ambígua da TV digital. Para vocês terem uma ideia, a maioria das
pessoas, hoje, nem sabe que existe o espectro
A mesa foi mediada por Taís Ladeira, de Ondas Tropicais. Atualmente existem 432
associada da AMARC Brasil e integrante do canais, que eu levantei, livres e prontos para
Conselho Consultivo do Rádio Digital. Foram serem usados. São canais que poderiam ser
feitas intervenções por: Ligia Apel, Rede de usados, por exemplo, pelas rádios comunitárias,
Mulheres da AMARC Brasil; Rafael Diniz, que, hoje, estão aí brigando por um espaço,
Telemídia PUC Rio; Pedro Martins, AMARC tendo que disputar uma frequência na mesma
Brasil; Carlos Osório, Rádio Bicuda FM (RJ); e localidade, tendo problemas de interferências.
Denise Viola, AMARC Brasil.
Então, a gente tem lutado exatamente
Ismar Vale (EBC): Apresento a vocês a para que esse padrão, esse espectro seja a
experiência que a gente da EBC está tendo, até contenção. A gente imagina que ocorrerão
então, com os testes e os estudos para ver se oportunidades de negócios para muitos
conseguimos implantar o padrão de rádio digital profissionais. Os testes que nós temos feito
no Brasil. A motivação que nos fez entrar nessa progrediram bastante. A gente tem recebido
luta é que a gente estava assistindo uma guerra ajuda de parceiros, que são parceiros
muito forte entre dois padrões, o americano e interessados, que também lutam pela adoção
o europeu1, pela adoção do padrão para Ondas do padrão digital, como o Cláudio [Del Bianco],
Médias e FM. Então essa guerra ficou muito o Rafael [Diniz], que estão juntos conosco
ferrenha e o resultado dessa luta foi que o nessa empreitada. A gente já conseguiu fazer
padrão até hoje não foi adotado. Diante disso, a alguns testes, mas, no momento, está tentando
gente começou a pensar que existe uma faixa do aprovar junto à ANATEL a realização deles.
espectro de radiofrequência que está escondida,
que é a faixa de 2 MHz a 30 MHz, que é exatamente Estamos em fase final de negociação
a faixa de Ondas Tropicais e Ondas Curtas. e acredito que até o final desse mês de

195
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

dezembro a gente consiga uma autorização técnica, da academia, de experimentadores e


formal para fazer a transmissão, fazer os o fizemos bem misturado, com variedade bem
testes em DRM, em Ondas Curtas, a partir do grande de área, que é justamente para poder
parque de transmissão do roteador, que é um dar suporte, como nós fizemos com a EBC.
parque que possui antenas de alto ganho e alta Montamos equipamentos e instalamos... O que
eficiência, único na América Latina. Então, a a gente puder fazer para implementar o rádio
gente está fazendo uso dessa infraestrutura e digital no Brasil a gente vai fazer. E a intenção
acreditamos que, em breve, vamos transmitir é auxiliar os poucos setores desenvolvidos – os
sinais de Onda Curta para provar que é viável fabricantes de equipamentos; o governo, para
fazer uso dessa frequência. adoção da norma; os broadcasters, que são
importantes nessa cadeia; os fabricantes de
Cláudio Del Bianco (ABRADIG): A origem transmissores, e; todos que têm interesse na
da ABRADIG vem da iniciativa da Plataforma digitalização do rádio. Basicamente, essa é a
DRM Brasil, fundada em 2009 e 2010. Pessoas finalidade da associação, não fazemos acepção
interessadas nesse padrão, no digital e no de potência nem de classe, de licitação, se é
DRM, eram pessoas que ouviam rádio em casa, classe A, B ou comunitária. O nosso foco é fazer
trocavam informações pela Internet e, um dia, a rádio digital funcionar no Brasil, como já tem
nós resolvemos nos reunir e falamos “vamos funcionado em muitos países com sucesso.
ser alguma coisa, estabelecer uma plataforma,
vamos fazer algo”. Criamos a plataforma Adriana Veloso (UnB): Vou fazer uma fala
brasileira da rádio digital – DRM Brasil e mais geral, mas, primeiro, queria destacar
viemos até agora, final de 2015, quando surgiu o papel do rádio enquanto instrumento de
a necessidade de a gente se tornar oficial, uma democratização da comunicação, pois, dentre
entidade com estatuto e CNPJ. A principal todos os meios de comunicação, talvez ele
finalidade da ABRADIG é, num português bem seja o mais democrático. É muito fácil escutar
claro, forçar a barra de quem está com a caneta rádio e fazê-lo com muita facilidade, ele tem
na mão para que seja adotado um sistema de papel muito importante na sociedade por
rádio digital no Brasil, o quanto antes. Já tem conta da sua perenidade e da sua efetividade e
10 anos que foi adotado o padrão na TV digital alcance. Pode ser utilizado como instrumento
e, hoje, já estamos colhendo os frutos. Já tem a de resistência, a gente tem, por exemplo, o
indústria, já se sabe o quê produzir, os produtores histórico das rádios livres, desde lá da França,
de conteúdo já deveriam, se não estão sabendo, mas aqui no Brasil também.
saber dos recursos que essa TV digital oferece
e a mesma coisa acontece com o rádio. A Dentro da discussão do rádio digital é
Associação é composta de membros da parte importante pontuar que, hoje em dia, existe
um lobby para qual será o sistema adotado no

196
Rádio Digital

sistema brasileiro. As opções em curso são o porque você pode gerar modelos de negócio, Na verdade, o surgimento
2

do DRM está ligado a um


HD Radio, que é um padrão de uma indústria por exemplo, para as rádios comunitárias, e trabalho amplo do consórcio
estadunidense, e o DRM, que é o Digital Radio eu acho que é importante que seja definido o sem fins lucrativo, que mantém
esse padrão, com diferentes
Mondiale, um padrão que surgiu de estudos na padrão aberto. tecnologias nele confluindo.
França, que é aberto2. Sem prolongar muito na 3
Há aqui uma confusão entre
diferença entre padrões abertos e fechados, Ivan Moraes (Centro de Cultura Luiz Freire e os processos de digitalização
da TV e do rádio. O DRM é um
mas, analogamente, é Coca-Cola e a receita do FOPECOM): Eu estava ouvindo as falas iniciais padrão de rádio digital e não
bolo, você sabe [no segundo caso] como fazer, e me lembrando de como foi a discussão da esteve presente no debate sobre
a escolha do padrão da TV Digital
você tem como replicar, tem como desenvolver, TV digital ou de como não foi a discussão da TV no Brasil.
tem como melhorar, criar aplicações derivadas, digital. O que eu vejo as pessoas falando, que
mas, quando você tem uma receita fechada, aparentemente já existe um sistema que deverá
você não consegue saber o que tem ali dentro. ser o melhor, que é um sistema que não é
Não consegue replicar nem criar, ficando refém proprietário, que é um sistema que já tem uma
de uma empresa, então, para mim, eu acho que galera se organizando para fazer testes sobre
não tem, pessoalmente, muita dúvida, e acho isso, mas eu fico com aquele negócio... Porque, na
que até para o governo brasileiro, que tem que TV digital, no governo que foi democraticamente
tomar essa decisão, tem que colocar na mesa eleito, esse governo chegou a contratar não
também o contexto geopolítico internacional. O sei quantas instituições de pesquisa, mais de
Brasil quer ficar mesmo refém do Trump, dos mil pesquisadores para desenvolver o Sistema
EUA, ou quer desenvolver um padrão aberto em Brasileiro de TV Digital e tinha o lobby do DRM3,
conjunto com o universo de outros atores? Tem dos coreanos, dos estadunidenses, mas, aí,
esse lobby acontecendo como tinha na adoção no final das contas, no meio duma Copa do
da TV digital, mas é importante que tenham Mundo, sem nenhum processo de discussão
pessoas como o Cláudio e o Rafael defendendo prévia, se passa o decreto “Zidane”, que foi
o DRM. Importante destacar também que no aquele decreto que passou, quando estava todo
rádio digital você pode enviar qualquer tipo mundo prestando atenção na meia de Roberto
de arquivo, então isso abre um leque imenso Carlos, naquela Copa do Mundo de 98, quando
de possibilidades. Você pode mandar um MP3 a gente levou um “fumo” da França, e passa-se
pelo rádio, um arquivo PDF, você pode até o decreto “Zidane”, dizendo que o padrão agora
mandar um arquivo de vídeo, claro que ele não era o japonês fantasiado de coisa brasileira,
vai ter uma resolução muito boa, mas você dando um jabá em todos os pesquisadores
pode mandar imagens, então o potencial, tanto brasileiros. E, lá no decreto, tem uma coisa que
comercial como educativo, é muito grande. é pior do que o sistema japonês, que é quando
Acho que a gente tem que começar a defender diz assim – as concessões de televisão passarão
que o sistema seja definido o quanto antes, a ser das empresas, mas não é concessão de

197
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

um canal, era concessão da banda. E o que é eles fizeram. Então, a TV digital no Brasil, hoje,
que isso queria dizer naquela época e que serve me perdoem os entusiastas, é um fracasso
até hoje? Se você precisava de uma faixa de 6 retumbante, porque o máximo que a gente pode
MHz para transmitir televisão analógica, na TV ter, hoje, de digital na televisão é a alta resolução.
digital, já naquele tempo, há 10 anos, você podia A galera continua tratando o negócio como se
transmitir até 4 canais, o que, hoje, na mesma fosse dele mesmo, hipercomercializado, com
banda, você pode transmitir talvez até 8 ou muito pouca gente sendo dona, pouquíssima
mais, mas já há 10 anos, numa faixa de 6 MHz, democratização. Eu vou aproveitar minha
você podia transmitir até 4 canais4. E eu me passagem pela mesa para fazer perguntas. Até
lembro muito disso, porque quando o governo que ponto esse sistema pode, de fato, ser um
diz que a concessão não é do canal, mas sim sistema que será implementado? Como é que,
da banda, então ele deu para as emissoras de então, aqueles caras que sempre decidem, no
televisão a prerrogativa de usar a banda toda final das contas, eles concordam com a gente?
ou de usar um pedaço de fazer programação. E Eles precisam ser pressionados, mas como a
é o que a gente dizia naquela época: antes de gente pode fazer isso? No processo golpista, é
a gente decidir qual o sistema, a gente precisa estratégico ter discussão sobre rádio digital?
decidir o que a gente quer fazer com ele, porque Até que ponto a gente tem condição de levar essa
a gente acreditava que a digitalização da TV disputa adiante e vencer sem levar uma nova
não era apenas você melhorar a qualidade cacetada que faça com que os canais, em vez de
técnica, era uma possibilidade de se rever aumentar, diminuam? Me parece que essa é a
a própria maneira de se ver televisão. E, aí, prerrogativa do HD Radio, é você precisar utilizar
empurraram essa conversa de que o sistema mais banda, em vez de menos banda, é você ter
era bom. Primeiro, prometeram a tal da fábrica menos rádios, em vez de mais rádios. A partir
de microprocessadores... Mas alguém viu essa de 1º de janeiro, na Câmara dos Vereadores,
fábrica chegar do Japão? E outra coisa era o a gente vai participar da discussão militante,
canal de retorno, que até hoje ninguém sabe inclusive pautando aqueles parlamentares que
o que significa – era a possibilidade de você são do nosso partido, que é o PSOL. Queremos
interagir com a televisão através de um canal de discutir comunicação não como mercadoria,
retorno que você poderia, inclusive, participar de mas como um Direito Humano que precisa ser
votações, de audiências à distância, enfim, dar garantido para todo mundo.
o seu parecer sobre leis. Para os comerciantes
era um canal bom, pois você poderia comprar Ana Veloso (Universidade Federal de
roupa na novela. Quando você tiver vendo a Pernambuco e Observatório de Mídia): Nessa
artista com vestido você vai apertar um “pitoco” mesa eu tenho uma missão, que é exatamente
e comprar um vestido da artista, mas nem isso fazer algumas perguntas e trazer algumas

198
Rádio Digital

reflexões. Vou começar fazendo uma pergunta, se comunicar através do rádio, não sendo Esse cálculo é uma estimativa
4

conservadora tendo em vista


que é de Dominique Wolton, um pesquisador somente ouvintes, mas emissores-criadores, que o padrão atual de TV Digital
francês. E ele faz essa pergunta, que acho como dizia também o Paulo Freire. Brecht faz permite ainda mais canais.

fundamental para a gente compreender qual essa contribuição e vem Raymond Williams,
a dimensão que a gente quer dar quando a importante pesquisador dos estudos da cultura
gente discute rádio, televisão e digitalização. E, marxista, e ele diz que importa saber qual o uso
para mim, é uma pergunta que tem a ver com social que se faz da tecnologia. Tanto Brecht
a nossa militância e com o debate acadêmico, quanto Williams, eles dialogam com relação a
nesse momento, que precisa ser fomentado essa discussão da tecnologia, pois ela não pode
sobre essa discussão da digitalização. Precisa simplesmente ser adotada como a solução
também de um olhar da academia, mas precisa para todos os problemas. Seria como dizer “a
também de um olhar da sociedade e, aí, eu partir de agora, a gente vai ter banda larga, por
vou com a pergunta de Wolton: “como salvar a exemplo, todo mundo vai ter um computador
dimensão humanista da comunicação, quando e a gente resolveu todos os problemas da
triunfa a sua dimensão instrumental?”. A t é sociedade através da tecnologia”. Williams dizia,
hoje, infelizmente, a gente tem percebido que e ele chamava atenção no livro “Television”, que
essa dimensão instrumental ou de ferramenta, é dos anos 70, e eu estava relendo esse livro
ela ainda tem triunfado no tocante à discussão recentemente e pensando sobre a digitalização.
da comunicação no mundo. Mas é preciso que a Ele diz o seguinte, que é importante discutir
gente volte um pouco ao passado, um passado como se fará o uso social da televisão.
que se faz muito presente, porque tocou no
Direito Humano à Comunicação: e eu vou voltar A tecnologia, ela não é boa nem ruim: é o uso
para a Teoria do Rádio de Brecht, que é um dos que se faz dela. E temos uma potencialidade
pesquisadores e pensadores múltiplos, mas, incrível no Brasil, uma explosão de movimentos
na Teoria do Rádio, ele nos convoca a pensá-lo sociais, de rádios comunitárias, de movimentos
como um meio de comunicação, não como um que se articulam em rede, que já existem
meio de reprodução. há muito tempo, movimentos disruptivos,
movimentos de mulheres, de vários tipos
Brecht, nos anos 30, na Teoria do Rádio, de organização, de auto-organização, de
dizia que ele deveria ser aquele meio onde as forma horizontal, que podem aprender e
pessoas pudessem interagir ao se comunicar, ensinar a forma como a gente vai fazer essa
não apenas ficar recebendo, mas emitindo. Com comunicação; uma comunicação que deve ser
isso, hoje, pela manhã, eu vi a experiência de democrática, mas, para ser democrática, ela
lá, da Amazônia, e conheci outras experiências não pode somente se fundar na tecnologia.
também, anteriores, em que as pessoas podiam
A tecnologia é fundamental, mas é importante

199
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

esse uso social que se faz dela. Porque para sejam democráticos e que a tecnologia tenha
uma determinada tecnologia ser implementada seu uso social como previa o Brecht, como previa
ela precisa ter base social, pois se não tiver uma o Williams, se homossexuais não tem acesso à
base social e um debate, ela não vai trazer os produção de conteúdo como sujeito político,
benefícios para a sociedade, porque em seu uso como sujeito coletivo que se auto-organiza?
também se discute muito a parte técnica, mas é Como pensar o acesso à tecnologia para as
o uso político também dessa tecnologia que deve pessoas com deficiência, quando a gente tem
ser discutido. Todos aqui falavam sobre isso, uma série de experiências de acessibilidade
como, por exemplo, o Ivan – a implementação para o rádio, para a televisão, mas que isso não
do modelo digital de televisão, que, infelizmente, se transforma numa política pública no Brasil?
não vingou como a gente gostaria, mas foi uma
decisão política apressada, que atendeu a um Precisamos lutar por isso, porque na discussão
determinado lobby, embora até hoje estejamos do Direito Humano à Comunicação as pessoas
esperando o benefício social dessa tecnologia. com deficiência, elas estão alijadas até da
Dessa forma, eu vou novamente para mais discussão do processo de Direito da Informação,
uma contribuição, que é do pesquisador porque não há acessibilidade na televisão e
[Hans Magnus] Enzensberger, ele fala que é no rádio, estou falando no âmbito comercial.
preciso que a gente discuta a tecnologia, mas Como esses sujeitos coletivos, também pessoas
pensando em meios que podem ser usados para idosas, terão acesso a essas tecnologias? Como
emancipação. E é nesse ponto que eu vou trazer a sociedade vai se apropriar desse modelo? E
um debate que me foi pedido também como precisamos fazer essa discussão, devemos
fundamental: “como nós conseguiríamos fazer compreender que os meios de comunicação são
esses meios serem utilizados para emancipação dispositivos de poder e dominação, mas também
se a gente tem uma brecha digital, se a gente tem são dispositivos de resistência. São dispositivos
um fosso, se mulheres, por exemplo, não têm de produção de outras linguagens, de outros
acesso à produção da tecnologia e não podem imaginários, dispositivos que podem, inclusive,
atuar como sujeito político nessa construção?” interconectar redes, pessoas de diferentes
orientações sexuais, homens, mulheres e
Se existem barreiras que não são barreiras indígenas.
tecnológicas, mas de preconceito e de
discriminação, da misoginia, do sexismo, que Não podemos esquecer as pessoas que
impedem essas mulheres de chegar a ser sujeito trabalham nas áreas do Brasil profundo e que
político nesse campo, não só da tecnologia, mas precisam se comunicar e se interconectar.
no campo do direito à comunicação, como é que É preciso que essa tecnologia seja acessível
a gente vai conseguir fazer com que os meios para todas essas pessoas, porque, senão, a
gente não vai discutir modelos de democracia

200
Rádio Digital

na comunicação, vamos continuar fazendo O Ginga é um middleware de interatividade O FUST (Lei 9998/2000)
5

é o Fundo para a
modelos excludentes e voltados pra o mercado. na TV digital, é um sistema com o qual você Universalização dos Serviços
Então, eu quero dizer que o Observatório de inscreve um programa e transmite pela de Telecomunicações, pensado
para financiar os serviços de
Mídia da Universidade Federal de Pernambuco televisão. Quem é rico tem TV a cabo, então telecomunicação de caráter
está a disposição de todos e todas, porque a TV digital vai chegar em quem interessa, público.

essa discussão do rádio digital, técnica, não mas, a partir de agora, desse ano, vão ser
pode ficar somente nas mãos dos técnicos, distribuídos conversores de TV digital para 1/4
dos engenheiros, das pessoas que entendem da população brasileira. Eu vejo muitos falarem
da tecnologia: essa discussão precisa ser que foi um fracasso. Mas, o padrão brasileiro
capilarizada, socializada para que boa parte da de TV digital é o melhor do mundo, claro que
população possa se envolver e definir isso. poderia ser muito melhor. Tudo que foi feito
pelas Universidades, entre 2003 e 2005, com
Comentários do público gastos de milhões de reais com o FUST5 não
teve aproveitamento de muita coisa, a não ser o
Rafael Diniz: Eu acompanhei a TV digital e Ginga e as ideias de atualizar o encoder.
trabalhei para o CPqD, em 2004. Acompanhei
a TV digital, desde o começo, e, até hoje, estou Eu tive muita honra de trabalhar com o
envolvido até a cabeça. Agora fui chamado pelo professor Luiz Fernando [Gomes Soares], um
governo para dar o curso de Ginga no Peru nos dos maiores cientistas brasileiros da virada
acordos internacionais que foram fechados lá do século XX, falecido ano passado. Foi ele o
na época do Lula. E eu acho que a ideia de que a criador do Ginga, o criador da única tecnologia
TV digital foi um fracasso está errada, pois ela do Hemisfério Sul que virou lobby internacional
está começando esse ano, em minha opinião. da MPU [Media Processing Unit]. A gente, às
Aliás, porque esse ano o primeiro Canal da vezes, tem aquela mania de brasileiro de achar
Cidadania que o Lula criou lá, no decreto de que não somos importantes, que somos muito
2003, entrou no ar, em Salvador. pequenos, mas fizemos algo importantíssimo
na TV digital. Por isso, acho que a TV digital
O Canal da Cidadania, para quem não sabe, é começou esse ano.
um canal que permite usar multiprogramação,
quatro ou cinco canais, dá para colocar até oito A gente tem que falar em programação não
canais, e começou agora. Porque a TV digital, linear, Ginga, porque muita gente que pesquisa
até hoje, estava na mão dos mesmos atores, comunicação fala de Enzensberger, Brecht,
Globo, SBT, Record... Entretanto, a TV Brasil, como a professora Ana citou, mas... e falar
eu acho que é uma emissora que tem o melhor do Ginga, da programação não linear de TV?
trabalho, tem uma equipe que desenvolve Cadê a nova teoria? Aquilo é muito importante
aplicação interativa Ginga. para a gente pensar o paradigma, mas está no

201
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

passado. A gente tem que pensar daqui para Eu acho que a gente tem que lutar para
frente, o que a gente vai fazer. Então eu acho traduzir, para fazer um debate e penso que
que essa é minha provocação de volta para na conjuntura em que a gente vive, tanto
a mesa. Acho que a gente tem que aprender no Brasil quanto no nível internacional, é
com a TV para não repetir no rádio e no rádio necessário trazer um debate de grandes ideias
tudo isso que tem na TV também é possível. mobilizadoras. As ocupações de escolas, por
Mas é possível de forma, talvez, simplificada, exemplo, estão mobilizando o Brasil inteiro.
porque o rádio pega mais longe, dá para fazer Os movimentos que, em minha opinião, nas
rádio digital em Ondas Curtas, que é o que eu, últimas décadas, mais mobilizaram foram
Ismar e Cláudio estamos fazendo. Então, poxa, os que debateram realmente a função social
isso está na mão de especialista? Discordo. daquilo que eles estavam disputando.

A gente está, desde 2010, fazendo evento lá Temos que fazer um debate e aprofundar
no Rio de Janeiro, fizemos a série de seminários sobre a propriedade do espectro. Esse debate
Espectro, Sociedade e Comunicação (ESC). deve ser feito de forma séria, a gente tem que
Chamamos gente de esquerda, gente que colocar isso como um princípio nosso. Eu acho
trabalha com comunicação e que se ausentou que isso significa pensar o direito à propriedade
da discussão durante uma década sobre o rádio como um bem social e, também, devemos
digital. Eu acho que a gente tem que trabalhar lembrar que para a propriedade ser um direito,
juntos daqui para frente para, de fato, fazer o ela tem que ser um direito universal. Então
rádio digital melhor do que a TV digital foi. todo mundo tem que ter acesso à propriedade
do espectro.
Pedro Martins: Queria colocar algumas
questões que foram discutidas na mesa. Estou levantando uma ideia quase ideal, mas
Pegando um pouco a linha do Ivan e da Ana, eu acho que é a partir desses princípios que
a minha preocupação realmente é com a devemos nos pautar. Levantar questões como
conjuntura. Como a gente enfrenta esse debate por qual motivo a gente defende esse preceito
na conjuntura que a gente está? A gente faz um de padrão para o rádio digital, por que a gente
discurso que não mobiliza. Então, como é que o quer garantir que todos tenham a propriedade
nosso discurso pode mobilizar para que se veja do espectro... Precisa passar necessariamente
a importância? Porque não basta a gente ficar por favorecimento das propriedades coletivas
reclamando. Em nosso discurso, muitas vezes, de banda de espectro, de cadastro de ocupação
a gente fala de Direito Humano à Comunicação do espectro eletromagnético, em entes
e eu fico pensando: para quem não é dessa coletivos, que é a única forma desse direito
área, o que deve ser isso? ser universalizado. Então eu acho que a gente
tem que resgatar um pouco essa ideia social

202
Rádio Digital

do direito coletivo da propriedade do espectro. o assunto é: o que nós temos a ver com isso?
Qual o impacto sobre as nossas vidas? Seja na
Denise Viola: Quando ouvi a fala do Rafael e escolha do padrão, seja na questão do preço, na
depois do Pedro, eu me perguntava onde é que compreensão de quais são as potencialidades
a gente estava ao longo desses anos que não desse rádio digital. No que isso vai me
debateu em profundidade a questão do rádio beneficiar? Aí, eu estou falando para mim, para
digital? A gente perdeu o bonde da história, a o segurança que está sentado ali na cadeira, eu
possibilidade de debater junto com a questão estou falando para o motorista do ônibus, que
da digitalização da TV. Acredito também que nos trouxe e, inclusive, falando da minha mãe,
a gente perdeu muitas outras oportunidades. que, ao poder receber visita no CTI, a primeira
A possibilidade do diálogo, da sedução para a coisa que ela disse foi: “minha filha, traz o meu
mobilização. Isso tem me preocupado muito. Eu radinho”.
ouvi a fala do Ismar, do Cláudio, ficava pensando
quem hoje está participando desse debate? Minha mãe não vive sem rádio, mas ela não
Porque dez anos atrás eu sabia responder, mas, é capaz de entender sobre o rádio digital,
hoje, eu não sei quem acompanha esse debate. não é capaz de entender o tipo de benefício
Para quem estamos falando hoje? Ainda que a ou impacto que isso pode trazer para a vida
questão do rádio digital esteja sendo retomada, dela. Então as minhas perguntas são: Quem
mas como ficou a questão da distribuição dos participa da discussão hoje? Como ficou a
conversores para o rádio? questão dos conversores do rádio digital,
porque o Rafael falou da TV, mas como ficou
Eu me lembro que, lá atrás, isso era um nó, essa questão com o rádio digital? Eu lanço o
quando a gente debatia isso com pessoas do desafio para todo mundo. O que a gente vai
movimento social, e elas diziam: “sim, mas não fazer para mobilizar o debate para participação
vai poder distribuir para todo mundo, nem todo e para procriação dessa discussão?
aparelho vai suportar colocar um conversor”.
Essa conversão vai ser possível, mas em outros Comentários da mesa
não será, então isso tem um preço. Debatia-
se o preço do conversor para TV, mas tem TV Ana Veloso: A gente precisa aprender muito
que nem adianta... Aonde a gente estava é uma ainda. Inclusive aprender a fazer políticas
pergunta que eu trago para a mesa. Quem está de aliança. E estabelecer essa política é ver
participando dessa discussão hoje? Com quem até onde podemos ir, nas nossas aspirações,
isso está sendo debatido? E, lá atrás, também propostas e necessidades. Esse é um desafio
muito se falava da necessidade de traduzir. e temos potencial para isso. Eu penso que nos
E esse não é um debate técnico nem sobre movimentos sociais realmente houve essa
tecnologia: precisa ser um debate traduzido e ausência sobre a discussão do rádio, e isso

203
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

é muito presente inclusive quando a gente Isso, por mais que esteja agora começando,
participava do conselho curador da EBC. Então, precisava começar de uma forma mais
na minha concepção, eu acho que a gente forte. Não sei se as prefeituras podem pedir
precisa aprender que é um debate técnico, a concessão, mas é prerrogativa de outros
mas é político. A gente precisa entender e sujeitos pedir, caso as prefeituras não peçam.
compreender, discutir novas teorias que É um caso para pesquisar, para ver como se
possam ser mais adequadas nesse momento implementa e como se fazem esses processos.
que a gente está vivendo sem jogar o que foi
produzido anteriormente fora. A gente precisa Um negócio desse, na minha caneta, eu
se comprometer em atuar mais nesse processo peço fácil. Se for fácil assim, já está atendido.
de mobilização de outras pessoas que não estão Tem que ver como faz o “ziriguidum” da coisa,
aqui, que estão nas próprias comunidades, junto tem que ocupar, tem que ver como faz. Tem
às rádios e TVs comunitárias. E a gente sempre que ver o lance dos conversores, como serão
questionava o uso instrumental da comunicação distribuídos, de que forma serão organizados.
pelos movimentos sociais. A gente queria Como o governo vai se comportar com esse novo
discutir esse conceito em construção, que é o quadro? Será que vai dar tempo? Porque eu vejo
Direito Humano à Comunicação, mas agora a a tecnologia avançando tanto... As pesquisas
gente vive num momento extremamente difícil, brasileiras de mídia ainda apontam televisão e
e a comunicação está no centro do debate. rádio na frente da Internet, ainda, mas não sei
por quanto tempo a hegemonia da radiodifusão
É preciso que esses movimentos sociais vai continuar. Provavelmente nem tanto tempo
definitivamente incorporem essa discussão, assim. Até que ponto esse investimento, agora,
porque colocar somente no plano de dez anos depois, na TV digital, não será engolido
trabalho sem levar adiante não vai fazer pelo tempo? Porque se não passar – quer dizer,
com que a sociedade civil organizada passou de 50% de acesso à banda larga – em
possa também participar desse discussão. quanto tempo a gente chega a 80% ou 90%? Até
Estratégias, obviamente, vão ser construídas que ponto a banda larga universalizada, que a
coletivamente com quem entende, com quem gente deseja que aconteça nos próximos dez
está por dentro da tecnologia e com quem ou vinte anos, vai interferir na eficácia ou não
pode nos ajudar a fazer essa discussão e nos da TV digital? São questões que eu tenho. Está
fortalecer. Mas acho que a sociedade precisa avançando, mas vai dar tempo?
ser acordada para esse debate.
Adriana Veloso: Queria fazer algumas
Ivan Moraes: Eu concordo com tudo que pontuações. O Rafael tinha destacado a
tu disseste, mas, agora, se o negócio está questão de a TV digital estar começando
começando só depois de dez anos, como fica? agora. Acho importante pontuar que a TV

204
Rádio Digital

Minas, lá em BH, também está fazendo testes você não consegue ter um debate mais amplo
muito relevantes. Mas, de forma semelhante, sobre qual comunicação que a gente quer.
ao que aconteceu com a EBC – vocês têm Qual o uso que a gente quer ter para essa
até mais conhecimento que eu – também comunicação? Na minha primeira experiência
aconteceu um desmonte com a TV Minas, e de ativismo na vida, que foi o CMI, a gente
esses testes foram interrompidos. O que me trabalhava com Internet, com vídeo, com
leva ao segundo ponto que é a questão do rádio, com texto, era tudo ao mesmo tempo.
Canal da Cidadania. Agora, o contexto que a gente está vendo do
futuro das rádios comunitárias em tempos
Eu acho que a inovação que vai vir do Ginga, digitais, o tempo digital é a convergência: não
que vai vir desses sistemas digitais não vai ser é uma mídia independente da outra, não é
a anulação da mídia comercial e, dificilmente, uma mídia melhor que a outra. São as mídias,
vai ser a inovação de uma empresa pública de convergindo e se unindo para aumentar ainda
comunicação devido ao contexto atual. Acho mais essa interatividade.
que a inovação poderia vir das TVs públicas
brasileiras, mas na situação do desmonte, isso Claudio Del Bianco: Quem é que tem Internet
fica mais difícil. De forma que eu acho que o grátis? Todo mundo paga para ter acesso à
Canal da Cidadania é uma forma de testar, de Internet. Então, não me venha com história de
experimentar, de fazer errado e depois acertar. que Internet é um meio democrático. Outra
coisa, alguém sabe quanto da população
Eu acho que esses canais são muito mundial não tem acesso à Internet? 50%
relevantes e o canal da cidadania é muito da população mundial não tem acesso à
semelhante a uma rádio comunitária, tanto Internet. Então, de novo, não me venha falar
pelo seu ideal de funcionamento, dentre outras que Internet é democrática. E não me venha
coisas. O que me leva a fazer mais uma crítica. falar de rádio via Internet, tá? Para mim, rádio
Acho que os movimentos de democratização é uma coisa, Internet é outra. Existem pontos
de comunicação dos últimos anos se voltaram de convergência, mas nunca a Internet vai
muito para Internet e esqueceram as outras substituir o rádio. São dois focos, são duas
mídias. E aí é o que me leva à segunda discussões. Primeira discussão: digitalização
crítica, pois eu acho que o movimento de é uma coisa, mas saber qual a tecnologia deve
democratização da comunicação não tem que ser utilizada pela digitalização é outra! Nós
focar na Internet, no rádio ou na TV. O foco no estamos discutindo a digitalização do rádio. A
meio leva a isso: leva a essa perda de foco. tecnologia, nós não temos como escapar do
DRM, e eu vou explicar o por quê.
Então, enquanto alguns estão focados na
TV digital, outros no rádio, outros na Internet, Existem três tecnologias de digitalização

205
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

de rádio no mundo: O DAB, muito usado na Perguntas


Inglaterra, na Europa, em geral; o HD Radio,
que é um padrão americano, e o DRM6. O Carlos Osório: Queria perguntar ao
DAB não serve para o Brasil, porque trabalha Ismar. Somos rádios comunitárias, todos
na faixa de VHF e na frequência que, hoje, no que estão aqui, tenho certeza de que são
Brasil é utilizada pelos canais 7 ou 13: é inviável rádios comunitárias legítimas, porque tem
colocar digitalização de rádio no Brasil [com algumas que não são. Tem algumas que têm
este padrão]. O HD Radio também não serve, gente ocupando o time e o nome de rádio
porque não digitaliza Ondas Tropicais e Ondas comunitária, mas não são. Têm condições
Curtas. Então, simplesmente, esse segmento financeiras, patrões, têm amigos, padrinhos
ficaria fora da digitalização, certo? O único que etc., as rádios comunitárias que estão aqui,
digitaliza Ondas Médias, Ondas Tropicais e não têm. Temos muita dificuldade financeira:
Ondas Curtas em FM é o DRM. Então, por isso meu transmissor, por exemplo, só funciona
é que nós defendemos o DRM, é por isso que porque é um amigo nosso mesmo que
nós estamos há dez anos brigando pelo DRM. conserta o transmissor. Então, eu saio daqui
animado, porque acabei descobrindo que o
Agora vou contar uma história que nem rádio digital é um espaço de interação. Mas,
todos sabem. Se nós não tivéssemos entrado sobre as rádios comunitárias, nós falamos
nessa briga e o Brasil tivesse adotado o HD em diversos momentos aqui, de resgatar um
Radio, hoje, simplesmente, rádio comunitária movimento de resistência, de enfrentamento,
no Brasil não existiria pelo simples motivo de a gente começar a trabalhar essa lógica
de que o HD Radio não funciona em baixa de “vamos entre nós mesmos e brincar de
potência. [No caso do DRM] eu transmito na testar isso?”. Eu não sei o quanto custa. E a
minha casa com 1 miliwatt de potência em partir de que momento os técnicos, vocês e as
DRM. Pega 1 watt, que não é nada, e eu estou instituições que vocês representam, podem
ouvindo o DRM em Ondas Curtas a alguns nos ajudar a começar a abrir o cargo de fazer
metros de distância. Então não é falar que rádio digital em nossas rádios?
não tem outra solução. É que realmente não
tem outra solução. O único meio de digitalizar Ismar Vale: Já foram realizados testes em
o rádio no Brasil é com DRM, que é aberto, rádios comunitárias. Com relação à EBC, a
para atender a todas as bandas. A não ser que gente está concentrando os testes em Ondas
você queira excluir rádio comunitária. Então, Curtas, porque é um padrão que não vai
essa discussão técnica, desculpe contrariar, causar nenhum constrangimento com relação
mas essa discussão técnica tem que ser feita aos testes. A gente está fazendo com Ondas
por técnicos. Curtas, porque Ondas Curtas só têm um

206
Rádio Digital

padrão que gera, então por isso que nós, do esposa do cacique, quando fui pegar a dela, Para o aprofundamento do
6

tema, ler Breves notas sobre a


Ministério das Comunicações, concentramos me disse “eu gostei muito da senhora e me radiodifusão comunitária e as
testes, além do que aquela continuação que faz um favor quando a gente se encontrar tecnologias do rádio digital, de
Miriam Meda Gonzales, desta
eu falei no início, a quantidade de canais lá, em Tefé? Me leva até essa Internet aí que coletânea.
submersos e escondidos, sem uso, que eu quero conhecer”. Quer dizer, isso é uma
poderiam estar sendo usados. distância muito grande dessa tecnologia. Tefé
está passando por uma situação que não vai
Ligia Apel: Sou Lígia, da Rede de Mulheres ter Internet, a fibra ótica já chegou lá, mas
da AMARC. E sou sócia individual, não faço não existe circulação da Internet lá. Como é
parte de rádio comunitária, mas a gente que vamos pensar como interação, como vai
trabalha com educação em comunicação funcionar o digital, porque não existe conexão
comunitária já há alguns anos na Amazônia. em Tefé?
Eu acho que houve uma questão aqui que,
de repente, já está respondida, mas pelas Ismar Vale: Com relação à questão que você
minhas barreiras enquanto mulher, não falou da Amazônia, eu queria dizer o seguinte,
muito conhecedora das tecnologias, eu ouço que esse programa dá a possibilidade para
muito essa preocupação com a Amazônia, que haja uma disseminação da transmissão
como é que a gente faz? A grande maioria da lá, naquela região, usando a fibra ótica. Eu
população está nesses 50% que se fala. Mas não sei se é possível, por mais uma razão que
o rádio, não. O rádio está lá. A Rádio Nacional a gente está dependendo da digitalização de
da Amazônia é uma das mais importantes. E Ondas Curtas, porque a gente vai conseguir
a gente anda nas aldeias, a gente anda nas chegar lá, naquela região, e ter uma difusão
comunidades ribeirinhas e o radinho está lá, de sinal, com melhor qualidade que tem hoje
no seu lugar importante na sala da casa, né? e mais informações, porque nós podemos
E aí eu queria fazer uma ligação, com essa transmitir mais informações num mesmo par.
coisa de gênero, do rádio, do empoderamento, Não sei se a gente vai conseguir fazer com que
das tecnologias, porque eu estive lá, junto seja utilizada essa fibra ótica do Exército. Isso
com o Sílvio numa comunidade. Fiquei em é um problema que não tem como responder.
Tefé, na Comunidade Porto Praia Kokama,
onde a gente reuniu várias etnias e a ação era Raíssa Maia (da ONG Artigo 19): Sou Raíssa
a defesa dos direitos que estão sendo violados da área jurídica e gostei muito do que a Ana
nos territórios indígenas. Quando fomos falou. Acho que historicamente nós mulheres
pegar a autorização de imagens, começamos fomos privadas de estar, inclusive, com esse
a explicar que vai para a Internet, que seria microfone na mão. Eu pergunto para a Ana:
divulgado para o mundo todo. Diante disso, a o que você tem achado desses encontros, se
está sendo concretizado o fortalecimento das

207
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

mulheres radialistas? Isso é um caminho para tem essa experiência de violência, quanto às
lidar com esses problemas que é invisibilizado, produtoras, quanto à apresentadora. Nem no
porque a gente nem imagina, nem imaginava, transporte iam deixar as mulheres entrar. Até
depois que eu vi o relato dessas reuniões, esse pico que foi forte, a gente teve na Zona da
que as mulheres entraram nesse espaço com Mata, um lugar extremamente machista. Mas,
tanta dificuldade. É mesmo estarrecedor, em 2003, uma pesquisa foi encomendada. Foi
ouvir um pouco desses depoimentos. por uma empresa de mercado que a gente
conseguiu recurso, fizemos uma pesquisa
Ana Veloso: Uma experiência em rádio me qualitativa e quantitativa. Na primeira, a gente
inspira. Eu trabalhei numa ONG chamada descobriu por uma pergunta simples “o que
Centro das Mulheres do Cabo. Ajudei no você faz quando você escuta?”, me disseram
conselho diretor, trabalhando lá por 14 anos. que 67% das pessoas que responderam
Minha militância foi em Movimento Estudantil, são homens e mulheres, disseram que as
Secundarista, Universitário etc., e fui para a informações estavam fazendo mudança na vida
militância do Movimento Feminista. A gente deles. Então a gente conseguiu o impossível,
fez no centro das Mulheres do Cabo ter, até uma região extremamente machista e
hoje, a Rádio Mulher, que foi um programa patriarcal. Uma tecnologia do rádio e em AM
que a gente implementou institucionalmente e FM. Então, eu considero que para mim essa
com parceiros e parceiras, mulheres da experiência na minha vida profissional ela é
Zona da Mata, no sul de Pernambuco. A tão marcante que eu disse para mim mesma,
gente conseguiu algo que era impossível. depois do rádio, “mulher, a gente consegue
A gente botou um programa em 1997 e, em fazer qualquer coisa, nós mulheres!!!” E a
2003, esse programa tinha duzentas mil gente conseguiu se apropriar da tecnologia
pessoas, por exibição, todos os dias, entre para gravar, para produzir. Então, eu acho
11 e meio dia. Era o da Zona da Mata Sul e a que a gente tem força para fazer, construindo
gente conseguiu com mulheres organizadas, força com os movimentos, com o pessoal que
com participação, com mulheres que nunca está a frente e defendendo esse movimento
tinham entrado numa rádio e elas entravam, de rádio com todas as emissoras, de Ondas
falavam, com parteiras, quilombolas, negras, Curtas, Tropicais, enfim, acho que temos que
mulheres rurais. A gente construiu não só construir essa política de alianças.
com as mulheres, porque a gente chamou
os homens também para discussão, quando
eles entraram. Mas, primeiro, as mulheres
foram muito violentadas. Essas mulheres
que estavam se apropriando do rádio, a gente

208
Rádio Digital

Anexos

00
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

por João
Paulo Malerba

Dados sobre a face


tecnológica de uma hipotética
crise nas rádios comunitárias
A motivação primeira para minha pesquisa
de doutorado foi o que também orientou sua
ser constatada analisando as muitas rupturas,
transformações e contradições em três faces
hipótese central, a de que há “uma crise (as em itálico, mais acima) da crise, mas teria
estrutural nas rádios comunitárias, causada como base uma mudança essencial na forma
por fatores histórico-jurídicos, político-sociais de ser e de se fazer política na atualidade.
e tecnológicos e sintomática de mudanças
ontológicas do sujeito político, [mudanças essas] Ora, mídias comunitárias são, antes de tudo,
que têm afetado todas as mídias comunitárias”1. atores políticos. A partir desse entendimento,
Ou seja, a meu ver, uma hipotética crise nas minha análise teve como ponto de partida o que
rádios comunitárias latino-americanas poderia mudou no sujeito político-comunicacional que

210
Anexos

age politicamente (deslocando poder) através Acontece que as rádios comunitárias de hoje Defendida em agosto de 2016,
1

a versão final da tese “Rádios


da e/ou tendo como causa a mídia comunitária. ainda estão muito marcadas pelos modos comunitárias no limite: crise na
Quando as rádios comunitárias latino- de ser e de ação política daquela “esquerda política e disputa pelo comum na
era da convergência midiática”,
americanas pipocaram de Caracas à Patagônia tradicional”, que influenciaram a origem apresentada à Escola de
e foram se consolidando enquanto movimento individual de muitas delas e do movimento Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro,
político organizado, a partir da década de 1970, social que as representa. Porém, a urgência encontra-se no prelo.
o que as inspirava era a forma de organização, e atualidade de suas causas mantêm-nas 2
São elas: Região Norte: Rádio
Xibé (Tefé/AM) e Rádio Cidade
sistema decisório e modo de ação típicos da vivas na luta política cotidiana e alvos da FM (Altamira/PA); Região
esquerda de sua época: institucionalizadas sedução desses novos modos de ser e agir da Nordeste: Rádio Independência
FM (Independência/CE), Rádio
e representativas nas comunidades; com política: o resultado é um desencaixe que bem Esperança FM (Queimada Nova/
decisões tomadas democraticamente pela representa nosso tempo e aponta caminhos. PI) e Rádio Quixelô FM (Quixelô/
CE); Região Sudeste: Rádio Muda
maioria; em uma ação política fundamentada (Campinas/SP) e Rádio Heliópolis
num movimento unificado, organizado e Pois bem, nesse cenário de crise em (São Paulo/SP); Região Sul:
hierárquico. Sendo “spoiler” da minha própria sua base (política), o que permanece Webrádio AlmA (Londrina/PR)
e Rádio Terra Livre (Abelardo
tese, o que era ponto de partida também foi e o que muda lá, no chão (e no ar) da Luz/SC); Região Centro-Oeste:
de chegada e aquela hipótese foi refutada: rádio comunitária? Foi com essa grande Rádio Utopia FM (Planaltina/
DF). Aproveito a oportunidade
não há uma crise nas rádios comunitárias: há, pergunta de fundo que percorri as cinco desse texto para mais uma
sim, uma crise na política representativa e na regiões do Brasil para conhecer dez rádios vez (e nunca suficientemente)
agradecê-las por tão alegre,
esquerda e que atinge em cheio aquele sujeito comunitárias emblemáticas e de diferentes aberta e generosamente
político-comunicacional. tipos (livres, outorgadas, webrádio), origens receberem a pesquisa.
(sindicatos rurais, grupos partidários, Igreja,
Vivemos hoje a tensão do nascimento universidades) e contextos (grandes centros
de uma nova hegemonia na ação política urbanos, Amazônia, assentamento rural)2.
enquanto a anterior insiste em não morrer. Para ampliar e confrontar os resultados
Ainda que os elementos de ambas estejam daquela pesquisa qualitativa, foi realizada
misturados e se retroalimentem, já se nota outra, quantitativa, a partir de questionário,
uma tendência generalizada de rejeição à abrangendo cem rádios, perseguindo o
hierarquia, à representatividade e a qualquer mesmo espírito de diversidade e abertura
centralização decisória; há mais desconfiança na seleção das respondentes. Tanto a
das instituições e de qualquer grande projeto observação nos estudos de caso quanto
único; a ação política é cada vez mais marcada as perguntas do questionário obedeceram
pela colaboração e cooperação, enquanto se nossa matriz de pesquisa, sendo divididas
torna mais e mais pontual, fragmentada e dentre aquelas três faces: histórico-jurídica
(talvez só) aparentemente difusa e efêmera: (Aspectos legais; Origem, motivação e
essa é a nova face da ação política em rede. participação; Sustentabilidade econômica);

211
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

político-social (Programação; Equipe e consumir e fazer mídia, e; se relacionado com


vinculação), e; tecnológica (Apropriações e o seu público via novas tecnologias.
questões tecnológicas).
1 - Como é o acesso à internet nas
Tudo isso para explicar que, por uma questão rádios comunitárias?
de espaço e pelo foco nesse livro, os dados e
as (resumidas) reflexões que se seguem se Num contexto de convergência e mudanças
referem aos resultados de uma das faces nos hábitos de consumo midiático, ter acesso
– a tecnológica – de uma pesquisa bem mais à banda larga com velocidade razoável será
ampla. E, ainda que os frios gráficos e números (se já não o é) critério mínimo para que a
abaixo decorram da pesquisa quantitativa, rádio comunitária possa seguir relevante,
procuramos “encarnar”, comparar e
relativizar cada um deles com o que vivemos
naqueles 33 dias nas rádios, conversando e
convivendo com seus/suas comunicadores/as
populares em suas lutas cotidianas por justiça
social.

Uma preocupação inicial das perguntas


sobre apropriações e questões tecnológicas
foi diagnosticar: a) a infraestrutura de
comunicação da rádio (que, a partir da pesquisa
qualitativa, notamos ser muito influenciada por
sua localização e sustentabilidade econômica);
b) o grau de apropriação e os usos que têm
feito das novas possibilidades tecnológicas,
principalmente no que concernem três inclusive na esfera da produção. Ainda que
importantes novos caminhos do veículo rádio: saibamos das discrepâncias na qualidade
webrádio, podcast e as discussões sobre a do acesso (a velocidade contratada nem
implantação do rádio digital no Brasil, e; c) sempre é a oferecida), a grande maioria
também perguntamos sobre o uso do celular, das rádios comunitárias (88%) conta com
de softwares livres e quanto à intenção em se internet de banda larga, boa parte entre 1 e
tornarem provedores de internet. O objetivo foi 10 MB (48%); 3% conta com acesso somente
verificar se e como as rádios comunitárias têm à internet discada e 5% não tem qualquer
expandido sua ação para outras plataformas; acesso; já internet de alta velocidade (maior
acompanhado as mudanças nos modos de

212
Anexos

que 10 MB) só está acessível a 5% das rádios online (webrádio) e disponibilizar áudio para
consultadas. A abrangência territorial da consumo posterior (podcast). Acontece que,
pesquisa qualitativa nos permitiu pisar a depois da pesquisa qualitativa, verificamos
realidade das grandes diferenças de acesso à que as rádios têm cada vez mais deixado
internet no Brasil: a apropriação tecnológica de lado seus sites (ainda que quase 82%
da rádio e da comunidade em localidades possuam página própria na internet), quase
como o assentamento dos sem terra “Brigada sempre desatualizados e pesados: sua
25 de Maio” (a 25 km da urbe mais próxima), atenção e energia, como veremos, têm sido
Tefé , no coração da Amazônia (em que a direcionadas mais e mais às redes sociais.
internet só chega via satélite) e Queimada Nelas, hoje é possível disponibilizar tanto um
Nova, no sertão piauiense (aonde nem ônibus player da programação hertziana da rádio
chegam), estão influenciadas por condições quanto podcasts utilizando um repositório
estruturais de conexão. terceiro, sem necessidade de um site próprio.
Sem dúvida, o website continua sendo um
2 - As rádios comunitárias têm site importante organizador das informações
próprio na internet? e vitrine das ferramentas de comunicação
disponíveis e da própria rádio. Mas a agilidade
Quando elaboramos o questionário, nos e facilidade de manuseio das redes sociais, a
parecia que ter um site próprio era condição falta de tempo dos comunicadores sociais e a
para avaliar uma série de outras apropriações falta de recursos humanos e financeiros para a
das possibilidades da internet, como transmitir construção e atualização de páginas da internet
parecem levar a um declínio progressivo de
sua importância no cotidiano virtual das rádios
comunitárias. Analisando os sites das rádios
visitadas, notamos que somente três delas
contam com atualizações recentes (menos de
3 meses). A regra são atualizações esparsas,
havendo casos em que as últimas atualizações
aconteceram há mais de 2 anos ou estão
majoritariamente em construção, somente
disponibilizando informações básicas (contato,
programação etc.).

Talvez em parte pelo crescente desinteresse


pelos seus próprios sites, mas também por

213
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

3
Uma pesquisa realizada falta de recursos, quando questionada pelos download do aplicativo da rádio para o celular.
em 2012 pela ABERT revelou
que 84% das emissoras acessos diários, metade (49%) afirma não ter Nas entrevistas, a transmissão online aparece
comerciais brasileiras já qualquer estimativa. Do restante, boa parte como uma das prioridades: na Rádio Muda,
transmitiam sua programação
pela internet e quase 25% já (40% das que estimaram ou 20% do total) tem por exemplo, ela acontece desde 2003 e “é
obtinham receita pela web. menos de 50 acessos por dia. imprescindível para quem não está aqui”, já que
Ainda que uma diferença de
três anos separe as duas “há sempre gente em todo o mundo escutando
pesquisas, a comparação com 3 - As rádios comunitárias transmitem a Muda”, como afirma um de seus participantes.
os resultados demonstra que,
se as comunitárias não ficam online (webrádio)? Aos que responderam afirmativamente
muito atrás na transmissão à pergunta anterior, indagamos quanto à
online (76%), a brecha é maior
no aproveitamento da web estimativa de ouvintes diários da webrádio:
para receita (somente 14% das boa parte (43%) não tem estimativa e um
respondentes). Disponível em
http://www.telesintese.com.br/ respondente asseverou que “não tem estimativa
sem-padrao-digital-definido- e não nos importamos com isso”.
radios-usam-internet-para-
sobreviver/). Acesso em 16 de
abril de 2016. 4 - As rádios comunitárias obtêm
Estrangeirismo decorrente do
receita com seus sites?
4

inglês “embed”, se refere ao


ato de inserir um flash, vídeo ou
outras formas de conteúdo numa Entre alternativas para a complicada
página de site. Disponível em
www.vejasp.abril.com.br/blogs/ questão da sustentabilidade econômica na
vejinha/os-5-verbos-mais-feios- radiodifusão comunitária, vislumbra-se a
da-era-da-internet/. Acesso em
21 de abril de 2016. possibilidade de as rádios obterem algum
recurso com anúncios publicitários em seus
Três em cada quatro (76%) afirmam transmitir
online e outros 20% pretendem fazê-lo no futuro.
Podemos atribuir tal presença, principalmente,
ao barateamento (até gratuidade) desse serviço
e à necessidade de visibilidade e ampliação de
canais junto ao público da rádio comunitária.
Na análise dos sites das rádios visitadas,
exceto Rádio Xibé (também por ser itinerante)
e Terra Livre (em construção), todas oferecem
player para escutar a rádio online e apenas não
tivemos sucesso em escutar online a Cidade.
Além disso, as rádios Heliópolis, Cidade e
Muda oferecem em suas páginas link para o

214
Anexos

sites, já que a legislação nada fala sobre a de participação online para além do site,
presença desses atores no mundo virtual. reforçando o que já foi dito sobre seu foco atual
De acordo com os resultados da nossa no mundo virtual: as redes sociais. Destacam-
pesquisa, essa não tem sido uma estratégia de se o Facebook (16 ou 20% das rádios com site)
sustentabilidade adotada pelas comunitárias, e WhatsApp (7 ou 8%).
já que 86% das respondentes afirma não obter
qualquer recurso com anúncios no site3. 6 – Qual o uso que as rádios
comunitárias fazem do podcast?
5 – Quais são as ferramentas online
nos sites das rádios comunitárias?
Se superestimamos a importância dos sites,
acabamos sendo conservadores nas suas
possibilidades de ferramentas de participação
online. Sendo possível apontar mais que uma
ferramenta, a distribuição das menções foi:
email (52%), chat (22%), enquetes (22%) e
15% afirmam não ter qualquer possibilidade

Há uma importante e aparentemente


irreversível mudança em curso na forma
de consumir mídia, em favor de uma maior
customização de tempo (momento do
consumo) e plataforma midiática na recepção:
a grade de programação vai sendo substituída
online de participação. Desde aí já se percebe
pelo download e o receptor escolhe quando,
pouco investimento de interatividade nos sites,
onde e como consumir a informação. No caso
provavelmente priorizada em outros espaços.
de áudios, tratam-se dos chamados podcasts:
Foi a partir de ‘outras’, bastante acionada (40%),
programas, dos mais diversos formatos,
que as respondentes confirmaram nossa
disponibilizados em formato digital para
percepção ao fazerem uma interpretação mais
download. Ainda que seja um recurso bastante
ampla da pergunta, considerando ferramentas
acionado por rádios comerciais, não tem

215
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Tal resultado acompanha uma


5
recebido o mesmo tratamento pelas rádios se confirma na pesquisa qualitativa: exceto
tendência global desses dois
últimos serviços: de acordo comunitárias: somente um terço (33%) afirma no caso da Cidade, entrevistados de todas as
com uma pesquisa realizada disponibilizar podcast. Dentre as páginas das rádios mencionaram Facebook, mesmo que
no primeiro trimestre de
2015, houve diminuição na rádios visitadas, a webrádio AlmA é a única para ressaltar sua falta de segurança (no
quantidade média de minutos que oferece tratamento especial para os caso, as duas livres, Xibé e Muda). Bem menos
de ligações mensais e envio de
SMS’s em comparação com o podcasts (inclusive por ser um elemento chave lembrados foram o Twitter e o Radiotube
trimestre anterior. Disponível para o consumo de seus produtos): além do (ambos com 18%).
em www.psafe.com/blog/uso-
do-whatsapp-diminui-tempo- cuidado com imagens ilustrativas, descrição
medio-de-ligacoes-no-brasil. do conteúdo e palavras-chave, os episódios
Acesso em 29 de março de 2016.
são organizados por programas e por ordem
cronológica (arquivo) para recuperação
posterior. Constatamos que o editor do site fica
responsável também pela divulgação dirigida
dos programas, principalmente através do
Facebook. As demais que disponibilizam
podcasts, o fazem de forma muito incipiente.
Uma das explicações possíveis para a
baixa presença de podcasts nos sites das Para aquelas que haviam afirmado estar
comunitárias poderia ser o custo de banda larga fora das redes sociais, perguntamos o
e armazenagem, ainda que, como o Radiotube. motivo. Ainda que seja um universo pequeno
org.br, haja outros depositórios gratuitos que (14), as principais justificativas foram falta
oferecem a possibilidade de “embedar”4, sem a de conhecimento ou pessoal qualificado (5)
necessidade de armazenagem no site destino. e ausência de recursos/gestão (4) para o
Outro motivo é a (ainda) baixa popularidade do manejo das redes sociais. Duas apresentaram
podcast junto ao público das comunitárias. intenção de atuar mais nas redes sociais, mas
não se sentem preparadas e outra aponta
7 – Em quais redes sociais estão como motivo a internet ruim. Apenas uma
presentes as rádios comunitárias? respondente (rádio livre) apresentou a questão
da falta de segurança/privacidade das redes
Como as usam?
sociais como motivo da ausência. Na pesquisa
Algo que já havíamos verificado na pesquisa qualitativa, as duas livres apresentaram
qualitativa e se confirmou na quantitativa é a reservas. A Xibé, ainda que tenha fanpage no
forte presença do Facebook no cotidiano das Facebook, somente faz circular informação
rádios: 80% das respondentes o mencionam de outrem; já a Muda justifica estar fora das
quando o assunto é rede social. Isso também redes sociais pela falta de privacidade e pelo

216
Anexos

princípio da horizontalidade: “vai ser uma somente 2 emissoras afirmam fazer uso das
ferramenta que vai ficar monopolizada na mão redes sociais para o debate político. Quanto
de quantas pessoas?”. aos outros usos, na pesquisa qualitativa,
soubemos que o Facebook é utilizado pela
Já para a grande maioria que, anteriormente, AlmA para agilizar decisões da coordenação,
afirmou estar nas redes sociais, perguntamos e; pela Independência, para veicular áudios
os principais usos. Após a categorização de vídeos compartilhados e fazer ligações.
das respostas abertas, verifica-se que, Uma atividade nova e potencial para o veículo
principalmente, a utilizam para divulgação rádio notamos em duas rádios, “designer
de programas, eventos e atividades da rádio de webrádio”, que produz banners para a
(47%). Na observação das rádios visitadas, divulgação da rádio nas redes sociais.
a divulgação foi uso recorrente, mas uma
nuance verificada em várias chamou à 8 – Como se dá a utilização de software
atenção: três entrevistados mencionaram que
livre nas rádios comunitárias?
eles e diversos comunicadores usam suas
páginas pessoais para divulgar informação A questão da utilização de softwares livres
da rádio pelo Facebook, ainda que tais está no centro do debate sobre a apropriação
emissoras contem com fanpage própria: é comum e democrática das novas ferramentas
mais um domínio em que a militância/trabalho
se confunde com a vida pessoal. O segundo
motivo mais mencionado é a interação com
os ouvintes e a terceira maior ocorrência
(16%) se refere à publicação de notícias,
principalmente locais (não necessariamente
próprias, a partir do que notamos nas visitas
e nos resultados obtidos do questionário).
É interessante destacar que os 3 principais
usos mencionados se referem a utilizações
das redes sociais de forma ativa. Somente
a 4ª maior ocorrência está relacionada à
utilização das redes sociais como fonte
de informação, ainda que isso tenha sido
verificado largamente na pesquisa qualitativa. de informação e comunicação. Para as
Uma quase ausência chama à atenção no caso rádios comunitárias significa tanto a garantia
de um ator político como a rádio comunitária: de privacidade/segurança em seus dados

217
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

(para atores normalmente envolvidos em áudios enviados por ouvintes. Em muitos


embates contra o poder estabelecido) quanto casos a interação acontece através do uso
o acompanhamento de importantes inovações do WhatsApp na tela do computador, ligado à
tecnológicas da convergência midiática, sem mesa de som. Houve menções para a formação
ou com baixo custo. Os resultados revelam de grupos de ouvintes no WhatsApp, com fins
que os softwares livres estão presentes na de divulgação e interação, como verificamos
maioria das comunitárias (2 em cada 3 ou 71%) nas rádios Independência e Heliópolis. No
e em mais da metade delas (54%) é maioria ou caso da Xibé, tendo em vista a baixa qualidade
o único tipo de software utilizado (um quarto da internet em Tefé e região, o coletivo tem
delas ou 26%). Ao realizar um recorte somente feito amplo uso dos grupos de WhatsApp, que
com as emissoras que não buscam a outorga, funciona mesmo sob conexão lenta; porém, por
os softwares livres estão presentes em 85% considerá-lo não privativo, evitam a circulação
delas, em 70% é maioria ou o único tipo de de certas informações. Algo que vimos na visita à
software utilizado (43%), demonstrando ser Quixeló FM apareceu na resposta de 6 rádios da
esse um tema mais presente nas rádios livres. pesquisa quantitativa: por conta das carências
financeiras, muitas rádios não conseguem
9 – Como o celular é usado no cotidiano manter um celular do tipo smartphone e os
das rádios comunitárias? comunicadores usam suas contas pessoais do
WhatsApp durante a programação da rádio. Por
Durante a pesquisa qualitativa tínhamos fim, vale destacar a heterogeneidade no acesso
verificado um crescente protagonismo do ao celular: 6 rádios indicaram usá-lo somente
celular no cotidiano das rádios comunitárias, para ligações telefônicas e outras 8 o utilizam
desde seu uso para incrementar a interação com pouco ou de modo algum. No outro extremo,
o ouvinte (não foi raro ouvir dos comunicadores como verificamos na Rádio Esperança, o celular
que o telefone fixo tem sido cada vez mais é a principal forma de interação, pela baixa
relegado ao silêncio) até facilitar a organização penetração do fixo em algumas localidades e
da gestão interna (marcar reuniões, decisões seus custos.
urgentes etc.). O WhatsApp já está a frente (48%)
das ligações telefônicas (33%) e dos SMSs (30%) 10 – As rádios comunitárias têm
nas menções referentes aos usos que as rádios acompanhado a discussão sobre o
têm feito dos celulares5. As funcionalidades
rádio digital?
do WhatsApp têm sido utilizadas para além da
troca de mensagens multimídia, como receber Os primeiros testes de rádio digital no Brasil
ligações, pedidos de música, comentários e já têm quase dez anos. Desde então, entre
veicular participações ao vivo e através de avanços e interrupções no processo de escolha

218
Anexos

do padrão por parte do Estado brasileiro, a A última pergunta abordava um elemento Disponível em www.
6

radiodifusoresfm.com/2013/06/
sociedade civil – empresarial ou não – tem importante da convergência midiática, ainda radio-comunitaria-pode-se-
procurado manter a discussão ativa, cada qual que ela estivesse mais diretamente tratando tornar.html. Acesso em 12 de
abril de 2016.
atenta aos seus interesses em jogo. Como de uma iniciativa – não levada adiante – do
tratado em outros textos dessa coletânea, MiniCom. Em junho de 2013, o Ministério
para a radiodifusão comunitária, dependendo reuniu representantes de entidades ligadas às
do padrão tecnológico e do modelo regulatório, telecomunicações e à radiodifusão para propor
a digitalização do rádio tem implicações que que rádios comunitárias e públicas pudessem
podem ser radicais, capazes de redefinir todo o se tornar provedores de internet, sob a licença
campo. As rádios parecem estar atentas a isso, Serviço Limitado Privado. A justificativa seria
pois quase a totalidade (96%) das respondentes a simplicidade e rapidez no licenciamento
ao menos têm conhecimento sobre o tema,
ainda que 35% afirmam não acompanhá-lo.
Já 61% das respondentes estão atentas ao
desenrolar do processo de escolha do padrão
de rádio digital no Brasil.

11 – As rádios comunitárias têm


interesse em seres provedores de
internet?

para atores com forte presença em áreas


classificadas como preferenciais, casos do
Norte e Nordeste do país. Um dos entraves
discutidos na reunião foi o próprio capital inicial
necessário, calculado em torno de 4 a 16 mil
reais, valor considerado alto para entidades
já com muitas dificuldades financeiras para
manter o básico (ainda que uma das justificativas
de fundo da proposta fosse criar mais uma
fonte de recursos para as comunitárias)6.

219
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Nas respostas, somente uma respondente falta de recursos humanos (principalmente),


referenciou o projeto, criticando duramente o financeiros e tecnológicos. Em seguida, 5
que entendia ser uma iniciativa do governo para respondentes justificaram sua negativa pela
“não alterar o marco regulatório sobre apoio falta de informação sobre o tema. Outras 5
cultural e financiamento público” propondo algo apontam que tal serviço está fora do escopo/
“inviável do ponto de vista econômico”. Porém, missão da emissora, interessadas em se
ainda que aprovando ou desaprovando, foi alto concentrar aos seus propósitos iniciais.
o número de justificativas em branco (36% no
total). Considerações finais
A maior parte das respondentes (60%) aprova Cada uma dessas perguntas (e as descobertas
a possibilidade, mas a maior ocorrência de a partir de suas respostas) merece um
justificativas (depois das em branco) se refere aprofundamento que as limitações do texto
a ressalvas a ideia, muitas afirmando serem não permitem. De todo modo, tendo em vista a
necessárias mais informações. Em seguida, razão de ser (política) das rádios comunitárias,
aparecem as respostas que se apoiam na qualquer reflexão sobre a apropriação que
justificativa de angariar mais recursos para venham (ou não) fazer das novas tecnologias
a própria emissora. Os dois grupos seguintes deve ser orientada menos por um fetiche
de justificativas mencionam a possibilidade de tecnológico que por sua capacidade de incidir na
oferecer mais um serviço para a comunidade luta por justiça social. Na verdade, já sabemos
e ajudar a população carente, mas sem que, na nova hegemonia da ação política em
mencionar explicitamente o desejo de oferecer rede, essa luta em nenhum aspecto encontra-
gratuitamente esse serviço. Isso foi mencionado se desvinculada das tecnologias. E, no fim das
(“provedor livre”) por 5 respondentes, contas, não foi outro o certeiro enfoque de cada
engrossando uma ideia que ganha cada vez mais um dos textos que antecede o presente nessa
adeptos de utilização comunitária da internet. coletânea.
É essa a intenção de participantes da Xibé ao
proporem o uso do Piratebox, uma internet que A título de esboço conclusivo, no que se refere
permite conectar vários computadores sem à base tecnológica, a análise dos dados acima
estarem ligados a web. Nesse mesmo sentido nos permite verificar que boa parte das rádios
vão as respostas de 4 rádios que entendiam a comunitárias conta com infraestrutura mínima
internet um instrumento de democratização para acompanhar a tendência de incorporação
da sociedade. Dentre as 38 que responderam da luta em rede. É claro que as desigualdades
não, a maior ocorrência é de justificativas estruturais na sociedade também se refletem
em branco (45%), seguida de justificativa de na realidade entre e intra rádios comunitárias.
A abrangência territorial da pesquisa qualitativa

220
Anexos

nos permitiu sentir as grandes diferenças a atualização de sua vocação original para a Disponível em www.
6

radiodifusoresfm.com/2013/06/
de acesso à internet no Brasil: com isso, a rede e a reinvenção de suas possibilidades para radio-comunitaria-pode-se-
apropriação tecnológica de uma rádio está fins políticos o que demonstra que as rádios tornar.html. Acesso em 12 de
abril de 2016.
influenciada por condições estruturais de comunitárias continuam ativas no tecido das
conexão. Também internamente se verificam comunidades, do mundo e da História, a revelia
grandes disparidades de saberes: em muitos de todas as forças privatistas e estatais que
casos, somente uns poucos comunicadores, insistem em reprimi-las.
normalmente jovens e do sexo masculino,
aproveitam plenamente as diversas novas
técnicas para ativar multiformas de alcançar seu
público e seus objetivos. A tecnologia continua
sendo encarada como desafio justamente
por suas possibilidades: em outro grupo de
perguntas da pesquisa, quando questionadas
sobre as maiores necessidades de capacitação,
foi a atualização tecnológica a mais recorrente
das respostas na pesquisa quantitativa.

Por fim, é importante lembrarmos que


a vocação das rádios comunitárias para a
rede é de origem: muito antes da web, elas já
materializavam redes locais de organização da
luta pelos direitos humanos, dentro e fora da
comunidade. Assim, as novas possibilidades
tecnológicas vieram ramificar e potencializar João Paulo Malerba
o que já existia: criar redes virtuais com outras é professor, pesquisador e ativista
rádios, fazer uso de aplicativos multiplataforma pelo direito à comunicação. É
doutor em Comunicação e Cultura
de mensagens instantâneas para sintonizar seus pela Universidade Federal do
ouvintes, colocar o player da sua webrádio no Rio de Janeiro e pesquisador
Facebook ou simplesmente “plantar” o celular no do Laboratório de Estudos em
Comunicação Comunitária (LECC/
alto de um pé de manga para fazer link com a sede UFRJ). É associado da AMARC
rádio (como nos contou o sanfoneiro-locutor da Brasil, tendo sido representante
Quixelô FM, do sertão cearense). Não é através nacional (2009/2011),
coordenador executivo
dessas peripécias técnicas que reconhecemos (2011/2013) e conselheiro político
a vocação política das rádios comunitárias: é (2013/2015). Foi coordenador
de projetos no CRIAR Brasil.

221
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Carta aberta sobre o futuro


das rádios comunitárias
em tempos digitais
P rimeiramente, a Amarc Brasil denuncia
o governo ilegítimo de Michel Temer que, já
regulatório significativo. Agora, com ambiente
político bastante desfavorável, são impostas
nos seus primeiros dias, atacou frontalmente as barreiras para a concretização do potencial
a comunicação pública, iniciando o desmonte democratizante do rádio digital.
da Empresa Brasil de Comunicação por meio
de medida provisória. Tal atitude evidencia Neste cenário, rearticulação, diálogo
o cenário mais adverso para possíveis e ações concretas de fortalecimento das
avanços e conquistas de direitos no campo da rádios comunitárias desde suas origens são
comunicação. essenciais; bem como alianças com grupos
que lutam pelo direito humano à comunicação
As rádios comunitárias, mesmo num e liberdade de expressão, universidades,
ambiente de democracia, já sofriam com movimento sindical e social.
perseguições e criminalização, funcionando
sob uma lei restritiva, sem qualquer avanço No campo da defesa da comunicação como

222
Anexos

direito humano, destacamos a aproximação com novos atores comunitários e populares na luta
o Movimento Nacional de Rádios Comunitárias pela democracia da comunicação brasileira.
(MNRC), Fórum Nacional de Democratização
da Comunicação (FNDC), Coletivo Intervozes, No contexto da digitalização do rádio no
Artigo 19, Repórteres Sem Fronteiras e Brasil, a Amarc Brasil propõe os seguintes
coletivos de rádios livres, pois têm, como nós, princípios para o padrão a ser adotado:
a perspectiva da defesa do rádio como meio Os Estados devem assegurar que a migração
estratégico para a consolidação da democracia para as novas tecnologias de transmissão
brasileira. seja uma oportunidade para o incremento da
Ao longo de cem anos, o rádio tem sido pluralidade e a diversidade e não para manter
ameaçado de extinção. Na década de 1950, ou fortalecer a concentração de serviços de
o advento da TV trouxe previsões alarmistas comunicação audiovisual. (Princípio 39 da
sobre a sua permanência como veículo de publicação da AMARC “Princípios para garantir
massa. Os anos 2000 trouxeram a internet e a a diversidade e a pluralidade na radiodifusão e
convergência tecnológica como elementos que nos serviços de comunicação audiovisual”).
poderiam “superar” a capacidade comunicativa No planejamento da transição da radiodifusão
do rádio, em termos de interatividade. analógica à digital deve ser considerado o
Entretanto, o rádio segue se reinventando. impacto no acesso aos meios de comunicação
Mantém a credibilidade do seu conteúdo e e nos diferentes tipos de meios. Os Estados
alcance inquestionável, está em mais de 80% devem adotar medidas para assegurar
dos lares brasileiros (IBGE, 2013), sendo tantas que o custo da transição digital não limite
vezes o único meio de comunicação nas regiões a capacidade de funcionamento dos meios
do chamado “Brasil profundo”. É, portanto, públicos e comunitários. Os meios não deverão
responsável por levar conteúdos diversos sofrer discriminações e serão respeitadas
aos grandes bolsões de desinformação, as previsões necessárias para garantir a
abandonados pela mídia comercial. continuidade das emissões realizadas sobre
Apesar da grande incidência social do suporte analógico simultaneamente até esgotar
rádio, as rádios comunitárias sofrem os os processos de transição em condições
mesmos desafios de construção de políticas razoáveis. (Princípio 40 da publicação da
públicas para o amplo acesso da sociedade às AMARC “Princípios para garantir a diversidade
concessões e modos de produção. Mas este e a pluralidade na radiodifusão e nos serviços
mesmo movimento guarda, em si, a capacidade de comunicação audiovisual”).
de ser protagonista na disputa pelo espectro - Que os desafios da convergência dos meios
livre, pelo direito à antena e pela inserção de

223
Rádios Comunitárias em Tempos Digitais!

Os “Princípios para garantir e a digitalização dos suportes analógicos sejam


a diversidade e a pluralidade
na radiodifusão e nos serviços enfrentados em um contexto de adaptabilidade
de comunicação audiovisual” tecnológica e regulatória, transparência e
podem ser conhecidos
na íntegra no link: http:// equidade.
amarcbrasil.org/wp-content/
uploads/2011/08/AMARC_40P- - Que o processo de pesquisa, debate e
interior_portFINAL.pdf
definições da tecnologia digital do rádio seja
realizado com a participação e deliberação das
organizações de radiodifusão comunitária e de
todos os setores da sociedade brasileira por
todo o país.

- Que a escolha do padrão para a digitalização


do rádio no Brasil considere as diferenças
regionais do país, usando, tecnologia aberta,
adaptável e amigável para inovações que
aumentem o potencial de inclusão por meio
das ferramentas oferecidas pelo rádio digital,
proporcionando maior igualdade social.

- Que a transição da tecnologia analógica


para a digital considere a necessidade de
apoio econômico, social e político, exigindo a
construção de políticas públicas garantidoras
de direitos de acesso e acessibilidade.

Olinda, 10 de dezembro de 2016.

224
Outrxs colaboradorxs
Denise Viola
é radialista e integrante da
Rede de Mulheres da AMARC
e da Rede de Mulheres em
Comunicação, desde a sua
criação. Atualmente, está na
Camila Novaes Coordenação Executiva da
é mãe, religiosa de matriz AMARC Brasil.
africana, gestora e produtora
cultural, designer gráfica e
ilustradora. Nascida em São
Paulo, em 20 de dezembro de
1987, foi criada em Americana- Paulo José O. M. Lara
SP onde frequentou a escola é Sociólogo, Cientista Político
municipal CIEP, projeto e mestre em Sociologia da
educacional de Darcy Ribeiro, Cultura (UNICAMP). Doutorando
tendo contato com cultura em Estudos Culturais pela
popular e diversas linguagens Goldsmiths (Universidade de
artísticas. Em 2013 integra a casa Londres), é membro da Rede
coletiva e Ponto de Cultura Nina Latino-americana de Estudos
com seu filho, Enzo. Entre suas sobre Vigilância, Tecnologia e
militâncias, executa projetos e Sociedade (LAVITS), do grupo
discute o Software Livre. de pesquisa Informação,
camila.novaes.design@gmail.com Comunicação, Tecnologia e
Sociedade (ICTS), do coletivo
Espectro Livre e da Associação
Brasileira de Rádio Digital
(ABRADIG).
Rotulistas
é um coletivo conformado pelos
comunicadores visuais Luciana
Zanotto e Diego Rivarola.
Dedicados à materialização de
ideias em soluções de beleza e
comunicação. Suas trajetórias
são no campo do design Luiza Cilente
social e a sustentabilidade, é jornalista e fotógrafa.
colaborando para projetos como Atualmente, trabalha na
aproveitamento integral de formação de uma rede
alimentos, agricultura urbana e alternativa de mídia junto a
mudança climática. povos tradicionais na Amazônia,
rotulistas.web@gmail.com um projeto da AMARC Brasil.

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