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VOLUME 6

ISBN 978-85-232-1887-4

9 788523 218874

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ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO,
FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA
POPULAR

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

REITOR
João Carlos Salles Pires da Silva

VICE-REITOR
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

ASSESSOR DO REITOR
Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DIRETORA
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

CONSELHO EDITORIAL
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO I

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SUELI RIBEIRO MOTA SOUZA
LUCIANO COSTA SANTOS
ORGANIZADORES

SÉRIE ENTRE-LINHAS

ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO,
FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA
POPULAR
VOLUME 6

Salvador
EDUFBA
2019

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2019, Autores.
Direitos desta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil
desde 2009.

Capa, projeto gráfico, editoração e arte-final


Rodrigo Oyarzábal Schlabitz

Revisão e Normalização
Tikinet

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Entre-linhas : educação, fenomenologia e insurgência popular / Sueli Ribeiro Mota Souza,


Luciano Costa Santos, organizadores. - Salvador : EDUFBA, 2019.
299 p. (Entre-linhas, 6).

Linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação e Contemporaneidade da


Universidade do Estado da Bahia
Textos em português e espanhol

ISBN 978-85-232-1887-4

1. Educação - Finalidades e objetivos. 2. Sociologia educacional - América Latina.


3. Sociologia educacional - Brasil. 4. Educação - Filosofia. I. Souza, Sueli Ribeiro Mota.
II. Santos, Luciano Costa. III. Universidade do Estado da Bahia. Programa de Pós-Graduação
e Contemporaneidade.

CDD - 370.11

Elaborado por Evandro Ramos dos Santos / CRB-5/1205

Editora filiada à

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n - Campus de Ondina
40170-115 - Salvador - Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br / edufba@ufba.br

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Natanael Reis Bomfim / 9

INTRODUÇÃO
Sueli Ribeiro Mota Souza, Luciano Costa Santos / 11

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL A PARTIR


DE RAÚL F. BETANCOURT
Francis Mary S. C. da Rosa e Sueli Ribeiro Mota Souza / 17

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA: ALTERIDADE


E INSURGÊNCIA POPULAR EM ENRIQUE DUSSEL
Luciano Costa Santos / 31

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL: LA HISTORIA DE


INAKAYAL Y LO QUE LA PEDAGOGÍA NOS NEGÓ
Nadia Heredia / 57

SUJEITOS QUE OBJETIVAM, OBJETOS QUE ASSUJEITAM: INSURGÊNCIA E


FORMAÇÃO POLÍTICA
Laurenio Leite Sombra / 73

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GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA: ENTRETECERES DO PEDAGÓGICO
E DO COLONIAL
Catherine Walsh / 93

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA: A EDUCAÇÃO PARA O DIÁLOGO


INTERCULTURAL COMO VIA DECOLONIAL PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Aline Cristina Oliveira do Carmo / 121

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA: APUNTES A LA COMPRENSIÓN DE


UN CAMPO EN DEBATE
Santiago Arboleda Quiñonez / 137

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR”: VIEJAS PRÁCTICAS


PARA NUEVOS MODELOS
Maria Luiza de Castro Muniz / 163

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL: APUNTES PARA


ENTENDER EL MOVIMENTO
Enrique Téllez Fabiani / 191

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO: A UNIVERSIDADE


E A CONTRIBUIÇÃO DAS MADRES DE PLAZA DE MAYO
Ivandilson Miranda Silva e Luciano Costa Santos / 211

A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS: UM EDUCADOR INSURGENTE E


ECUMÊNICO
Elizete da Silva / 227

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“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO”: DIALOGANDO SOBRE O CORPO
INSURGENTE E A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DOS ADOLESCENTES
PRIVADOS DE LIBERDADE
Leonardo Augusto Oliveira de Santana e Sueli Ribeiro Mota Souza / 249

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA


BAHIA NO CONTEXTO DOS ANOS 1980, NARRADOS NO FOLHETO VIDA DO
PROFESSOR, DE ANA MARIA SANTANA
Gilmário Brito e Jaqueline Oliveira / 263

EDUCACIÓN, POESÍA Y PUEBLO


Juan Cepeda H. / 287

SOBRE OS AUTORES / 297

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PREFÁCIO

Caro leitor.
É um imenso prazer e uma honra apresentar esta obra, organiza-
da pelos professores, doutores, Luciano Costa Santos e Sueli Ribeiro Mota
Souza, intitulada Entre-linhas: educação, fenomenologia e insurgência. Essa temá-
tica em questão é instigante e as metáforas e significantes, que o título car-
rega, nos solicitam um exercício da subjetividade para o seu desvelamento.
Nesse sentido, antes da apresentação do trabalho, creio ser impor-
tante demarcar brevemente, no século XXI, a crise da globalização que é
caracterizada, principalmente, por um lado pela mundialização do capital e,
por outro lado, pela reprodução societal, cada vez mais crítica. Esse cenário
de barbárie ampliada retrata por exemplo, o elevado índice de desemprego,
a mobilidade, em massa, dos sujeitos no espaço geográfico, a ampliação
das distâncias sociais e a intensificação dos processos de exclusão.
É nesse contexto, sem dúvida, que a educação na contemporanei-
dade é marcada pela nova gestão pública de controle social, imposta pelas
políticas dos governos neoliberais, onde os desafios característicos desses
efeitos reivindicam do sujeito a capacidade de lidar com a crescente inte-
gração das economias transnacionais e as novas exigências de qualificação
para o trabalho.
Assim, a partir dos textos desse livro, quero convidá-lo a ler nas
“entre-linhas” dos discursos, nos campos correlatos de estudo e da prática
da Educação, da Filosofia e da Política, cuja exegese busca pela hermenêutica
analisar as contradições sociais, o cotidiano, a história e o sujeito social

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como elementos indissociáveis, constitutivos e imanentes do processo civi-
lizatório “humano-genérico”.
Diante do exposto, destaco o uso de uma excelente bibliografia,
em geral pouco conhecida em nossos ambientes acadêmicos, e reafirmo
que a contribuição dos autores é importante para a formação do ser social,
que requer um processo contínuo do aprendizado para a reformulação de
conceitos no processo educativo. Desta forma, o livro, Entrelinhas: educação,
fenomenologia e insurgência será bastante útil para professores e estudantes
pesquisadores.

Natanael Reis Bomfim

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INTRODUÇÃO

A coletânea Entre-Linhas é pensada como uma porta aberta ao diá-


logo entre as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Gradução em Educa-
ção e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Neste terceiro momento, são lançadas duas obras: Educação, feno-
menologia e insurgência popular e Educação, fenomenologia e fala – empreendi-
mento resultante de diálogos, reflexões e trabalho em conjunto.
O volume Educação, fenomenologia e insurgência popular versa sobre
as diferentes possibilidades de contribuição da fenomenologia no sentido
de compreender a educação a partir de suas aberturas para a insurgência
popular, em especial na América Latina e no Brasil. O objetivo do trabalho é
discutir, no âmbito epistemológico das ciências humanas, algumas das prin-
cipais visões sobre contemporaneidade e seus impactos na educação, bus-
cando refletir, segundo a chave crítica-propositiva da transmodernidade, a
práxis educacional na direção da responsabilidade ética face aos sujeitos
preteridos pela ordem societária hegemônica.
As discussões em torno do eixo “educação e insurgência popular”
têm sido alvo de constante preocupação para os pensadores da teoria
social, da filosofia e das ciências humanas em geral. Com a expansão cada
vez mais violenta da globalização e seu sistema civilizatório totalitário e
excludente, o debate tem se acirrado mais ainda.
Este volume Educação, fenomenologia e insurgência popular cobre um
arco temático de amplo espectro no campo epistemológico das ciências
humanas, que inclui abordagens de cunho histórico, filosófico, pedagógico,

11

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sociológico e antropológico, dando-se especial relevo a pesquisas e pes-
quisadores situados em âmbito geopolítico latino-americano e brasileiro,
com destaque para a perspectiva decolonial que os inspira de modo mais
ou menos explícito.
Passemos a uma apresentação sumária dos textos, tal como se en-
contram reunidos na publicação.
Em “Pressupostos para um ensino de filosofia intercultural a partir
de Raúl F. Betancourt”, Francis Mary S. C. da Rosa e Sueli Ribeiro Mota
Souza investigam o ensinar filosofia como proposta ética e culturalmen-
te referenciada. A partir da proposta da filosofia intercultural do filósofo
cubano Raúl Fornet Betancourt, desenvolve-se uma compreensão do ensino
filosófico como crítica e clínica na produção dos saberes e na descoloniza-
ção das subjetividades. Por meio de uma revisão da literatura e da discus-
são das teses apresentadas por Betancourt, objetiva-se apontar propostas e
desafios no ensino de filosofia em acordo com o paradigma emergente da
interculturalidade.
No texto “Filosofia da libertação como libertação da filosofia: al-
teridade e insurgência popular em Enrique Dussel”, Luciano Costa Santos
organiza uma exposição das bases filosóficas da insurgência a partir do
itinerário biográfico-intelectual do filósofo argentino Enrique Dussel, dis-
cutindo a articulação dos movimentos de insurgência popular latino-ame-
ricanos com a virada hermenêutica promovida pela Filosofia da Libertação,
a qual assume como fonte originária de sentido à interpelação ética das
figuras de alteridade excluídas/oprimidas na América Latina, propiciando a
libertação da própria Filosofia face ao colonialismo epistemológico a que
permaneceu historicamente subordinada.
Com o título “La pedagógica de la liberación de Enrique Dussel:
la historia de Inakayal y lo que la pedagogía nos negó”, Nadia Heredia
apresenta a formulação da Pedagógica Latino-americana de Enrique Dus-
sel como unidade temática específica na primeira formulação de sua Éti-
ca, publicada sob o título “Por uma ética da libertação latino-americana”,
na década de 1970. Este trabalho analisa a validade crítica dos princípios
éticos e políticos que dão origem à Pedagógica da Libertação de Enrique
Dussel, para ressignificá-los na postulação de uma educação que valorize
os historicamente excluídos. A história de Inakayal, cacique tehuelche da

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Patagônia argentina, dará conteúdo à pedagogia dusseliana, como proposta
ético-política de libertação.
Laurênio Leite Sombra, em “Sujeitos que objetivam, objetos que
assujeitam: insurgência e formação política”, reflete sobre o desafio da
emancipação e formação de sujeitos críticos, conforme pensado por Paulo
Freire. Para tanto, pondera sobre a complexidade da relação sujeito-objeto,
pensada a partir de uma base dialética. Tendo como referência uma breve
análise do posicionamento de Engels, Lukács, Adorno e Holloway, aponta
para as possibilidades e os perigos desta relação.
Em “Gritos, gretas e semeaduras de vida: entreteceres do pedagógi-
co e do colonial”, Catherine Walsh apresenta um clamor de indignação pe-
rante diversas experiências de violência vividas pelos povos, especialmente
na América Latina. Denuncia o sistema de guerra-morte que se enraíza no
projeto civilizatório ocidental, atingindo mesmo governos de esquerda.
Já Aline Cristina Oliveira do Carmo, em “Educação, descolonização
e justiça: a educação para o diálogo intercultural como via decolonial para
a realização da justiça”, parte de uma crítica à epistemologia ocidental
moderna. Os estudos sobre a descolonização (também conhecidos como
estudos pós-coloniais e decoloniais), discutidos neste trabalho, buscam evi-
denciar que o princípio da neutralidade do conhecimento ignora a diversi-
dade dos sujeitos produtores de saberes que não se encaixam no moderno
modelo civilizatório ocidental.
No texto “La etnoeducacion afrocolombiana: apuntes a la com-
prensión de un campo en debate”, Santiago Arboleda Quiñonez apresenta
trajetórias de construção e institucionalização do campo da etnoeducação
afro-colombiana, a partir da relação estabelecida entre as comunidades
educativas afro-colombianas, locais e regionais, e o movimento social afro-
-colombiano, que articula essas comunidades por associação de vários de
seus professores ao Estado, pelo Ministério da Educação Nacional (MEN).
O escopo e os obstáculos da Cátedra de Estudos Afro-Colombianos, em seu
processo de institucionalização no sistema nacional de educação, também
serão abordados.
Em seu texto “Educación y territorio en el ‘Nuevo Ecuador’: vie-
jas prácticas para nuevos modelos”, Maria Luiza de Castro Muniz pontua
elementos responsáveis pela frustração do horizonte de expectativas do

INTRODUÇÃO 13

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Estado plurinacional e intercultural do Equador após a Constituição de
Montecristi (2008), com ênfase no campo da educação e, mais especifica-
mente, no projeto de criação das Unidades Educacionais do Milênio (UEMs).
Em “El acontecimiento 68 y la insurgencia estudantil: apuntes para
entender el movimento”, Enrique Téllez Fabiani aborda o 50º aniversário
da chamada Noche de Tlatelolco, ocorrida em 1968, na qual centenas de
estudantes e a população em geral foram assassinados pelo governo me-
xicano quando realizavam um protesto pacífico. Na quinta parte, mencio-
na-se rapidamente alguns intelectuais que falaram sobre isso. Finalmente,
a justificativa do título, definindo-se o “evento” a partir da perspectiva da
filosofia política da libertação.
No texto “Educação popular e o contexto latino-americano: a univer-
sidade e a contribuição das Madres de Plaza de Mayo”, Ivandilson Miranda
Silva e Luciano Costa Santos propõem uma análise sobre educação popular
e o contexto latino-americano, focalizando a contribuição das Madres de
Plaza de Mayo. O texto apresenta um histórico da atuação das Madres du-
rante a ditadura civil-militar entre os anos 1976 e 1983, e sugere pensar a
contribuição do movimento na criação, em 2000, da Universidade Popular,
que, cinco anos depois, se transformaria no Instituto Universitário Nacional
de Diretos Humanos Madres de Plaza de Mayo (IUNMa), carregando todo o
legado da Universidade das Madres.
Numa apurada estratégica histórica, com decisivas implicações em
nível filosófico, Elizete da Silva, em “A trajetória de João Amós Comenius:
um educador insurgente e ecumênico”, reflete sobre a relação entre educa-
ção e religião a partir da trajetória do educador Comenius, bem como traz
para o debate como suas concepções pedagógicas foram capazes de conce-
ber uma sociedade plural e ecumênica, apesar da intolerância e das guerras
religiosas do alvorecer dos tempos modernos. Para entendermos as ideias
do educador tcheco, é imprescindível conhecer os discursos e representa-
ções religiosos e políticos que forjaram sua visão de mundo.
O texto “‘Bicho solto, sujeito preso’: dialogando sobre o corpo in-
surgente e a dimensão ético-política dos adolescentes privados de liberda-
de”, de Leonardo Augusto Oliveira de Santana e Sueli Ribeiro Mota Souza,
apresenta o contexto da socioeducação por meio do binômio “Bicho solto,
sujeito preso”, abordando a contradição subjacente ao processo de estig-

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matização da juventude, analisando a importância de situar os dispositi-
vos históricos constitutivos da sociedade brasileira, sobretudo no sistema
socioeducativo. Os adolescentes em confronto com a lei operam, assim,
uma reversão da tanatopolítica, ao construírem modos de resistência e de
subjetivação ancorados na potência da vida.
Trazendo a importância da insurgência dos folhetos para o campo
da educação, Gilmário Brito e Jaqueline Oliveira, em “Lutas de professores
e alfabetização de adultos no interior da Bahia dos anos 1980, narrados no
folheto ‘Vida do professor’” de Ana Maria de Santana, apresentam narrati-
vas do folheto de autoria da poetisa Ana Maria Santana, que colocou em
circulação as reivindicações salariais e a luta dos professores para regula-
mentar a profissão mediante a publicação do Estatuto do Magistério, e suas
experiências como alfabetizadora de adultos na periferia e no entorno do
município de Alagoinhas.
Por fim, em “Educación, poesía y pueblo”, valendo-se de linguagem
poética e inspirado no pensamento do filósofo argentino Rodolfo Kusch,
Juan Cepeda H. assume uma proposta pedagógica cujo sentido insurgente
radica numa “antropologia íntegra”, formada a partir da contribuição de
vários campos epistemológicos, bem como da matriz ancestral popular da
“América Profunda”, pelos quais se abre acesso a novos conhecimentos e
velhas sabedorias que nos possibilitem aprender a viver fraterna, ecológica
e pacificamente.

Sueli Ribeiro Mota Souza


Luciano Costa Santos
Organizadores

INTRODUÇÃO 15

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PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA
INTERCULTURAL A PARTIR DE RAÚL F. BETANCOURT
Francis Mary S. C. da Rosa
Sueli Ribeiro Mota Souza

INTRODUÇÃO
O questionamento em torno da tarefa de ensinar filosofia é tão perti-
nente nos dias atuais e propõe um mesmo leque de interfaces transdiscipli-
nares tal como é peculiar no próprio lócus enunciativo da disciplina.
Mesmo um olhar superficial sobre toda a história do pensamento
filosófico ocidental nos coloca em frente das mais diversas definições con-
ceituais, assim como diversas abordagens sobre o ensino da filosofia, seja
no ensino básico ou no superior. O que fica evidente é que toda e qualquer
proposta de ensino de filosofia perpassa por uma noção do que é filosofia e
como tal noção se desloca no contexto de ensino e aprendizagem.
Isso nos permite questionar a identidade da disciplina nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e nas Orientações Curriculares Nacionais
(OCNEM), entendidas até o momento com dispositivos institucionais regu-
ladores da proposta curricular do ensino filosófico na educação básica.1
Apesar de futuramente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) instituir-se
como um dispositivo fulcral na orientação curricular dessa disciplina, até o
momento das discussões aqui apresentadas sua análise interna encontra-se
em aberto (da BNCC) pelo Conselho Nacional de Educação, com prazo até

1 A recente lei de reforma do ensino médio, Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, trans-
formou o ensino disciplinar da filosofia em “estudos e práticas”.

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dezembro de 2018 para ser finalizada. Até a efetivação da BNCC, a filosofia
segue sendo ofertada nas escolas públicas baianas em seu regime disciplinar
e como componente obrigatório, tal como previsto na Lei nº 11.684/08, que
tornou filosofia e sociologia disciplinas obrigatórias e regulares no ensino
médio.
Mesmo diante do caminho irregular que a filosofia enfrentou na edu-
cação básica, e ainda diante do cenário de indefinições quanto a aplicabili-
dade da Lei nº 13.415, não devemos ignorar que o ensino de filosofia é uma
presença no ensino médio garantida pela sua inclusão na área de ciências
humanas da Base Nacional Curricular Comum2 (BNCC).
Os dispositivos e orientações institucionais supracitados não se
apresentam como um imperativo formativo estanque e determinado. Tais
orientações se coadunam com as escolhas e proposições que orientam o
próprio docente de filosofia. Como destaca Kant (1995), a filosofia não pode
ser “aprendida” se entendemos aprendizagem com uma perspectiva em seu
sentido objetivo-funcional e definitivo, como ocorre em disciplinas como o
direito e a matemática.
Um tipo de conhecimento filosófico que apresente tal natureza, que
possa ser aprendido, de forma tal que permitisse constituir à própria natu-
reza do que se entende por filosofia, para Kant, não é possível. A natureza
da filosofia, para o autor, perpassa pela investigação e instrução zetética e,
nesse sentido, se aprende a experiência do método de “refletir e fazer infe-
rências por si”, em que o conhecimento histórico da filosofia torna-se uma
consequência, não um imperativo dogmático. (KANT, 1995)
Obviamente, para Kant, a história da filosofia vista como um saber
objetivo e apenas reprodutivo, com um fim em si mesmo, não é capaz de pro-
duzir a autonomia de pensamento e a saída da minoridade (Unmündigkeit),
temas presentes no texto Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?
(1784/1995). Nesse aspecto, o sentido da autonomia é resguardado pela pró-
pria impossibilidade da transmissibilidade da filosofia, visto que para Kant
ela não pode ser transmitida ao preço de se contrapor paradoxalmente à
própria natureza da filosofia.

2 Cf. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documento preliminar à Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC, 2016. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/docu-
mentos/bncc-2versao.revista.pdf. Acesso em: 2 out. 2016.

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Silvio Gallo e Walter Kohan (2000) alimentam a questão ao destacar
que o posicionamento kantiano demonstra duas evidências, a saber: pri-
meiro, filosofar como verbo é um processo e, segundo, filosofia como subs-
tantivo é seu produto. Assim, a filosofia não pode ser ensinada porque não
há a filosofia, mas sempre um conhecimento inacabado, não passível de ser
aprendido.
Os posicionamentos expostos até aqui nos serviram de pressuposto
que permite adentrarmos em outro conjunto de lógicas argumentativas,
a saber: se não há uma filosofia, entendida como unidade fundamental e
nuclear do filosofar, por que tradicionalmente identificamos o fazer filosófico
somente com as racionalidades filosóficas eurocêntricas?
Os dispositivos e orientações institucionais,3 assim como os livros
didáticos aprovados pelo Ministério da Educação em 2015,4 conferem uma
identidade da disciplina filosófica e seu ensino associadas à história do pen-
samento ocidental. De acordo com Maria Fernanda A. G. Monteiro (2014),
se nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) e
no PCN+/Filosofia ainda existe um caráter mais flexível da identidade da
disciplina filosófica, enfatizando seu caráter interdisciplinar, as Orientações
Curriculares Nacionais (OCNEM/Filosofia) de 2006 pontuam um currículo que
tem como base uma perspectiva amparada na abordagem histórica dos con-
teúdos de Filosofia.

[…] é recomendável que a história da filosofia e o texto filosófico


tenham papel central no ensino da filosofia, ainda que a perspec-
tiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo
reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente
filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de
outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que pode
ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno.
Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que
se apresenta na forma amplamente conhecida como história da filo-
sofia, que a filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do

3 Compreende-se tais dispositivos para análise: as Orientações Curriculares Nacionais, Parâmetros


Curriculares Nacionais e PCN+.

4 No último Plano Nacional do Livro Didático na área de Filosofia (2015), os seguintes livros foram
aprovados: Filosofando: introdução à filosofia; Filosofia: experiência do pensamento; Filosofia: Por uma
inteligência da complexidade; Fundamentos de filosofia; e Iniciação à filosofia.

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 19

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conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação
do educando. (OCNEM/FILOSOFIA, 2006, p. 27, grifo nosso)

Embora não aponte como diretiva inflexível que aquilo que tradicio-
nalmente conhecemos como “História da Filosofia” seja o único compromisso
curricular possível no ensino filosófico, deixa evidente que todo e qualquer
diálogo deve ser feito a partir do que se entende como “História da Filosofia”
e seu cânone. Diante disso, cabe observar que a força de tal afirmação se
tornou o eixo direcionador dos currículos e livros didáticos de todo o país.
A grande questão é que a “história da filosofia”, tal como promovida pela
tradição, é alocada de forma monológica e pretensamente universal na
tradição de pensamento ocidental.
Dito de outra forma: há um entendimento de que o pensamento filo-
sófico se restringe ao modo e à história do pensamento ocidental, excluin-
do-se dos currículos e dos livros didáticos outras formas de produção filosó-
ficas, assim como a própria historicidade de cada modelo de racionalidade
ou, quando “aparecem”, estão embebidos em uma imagem de excentrici-
dade e exotismo. Essa forma monolítica de racionalidade, segundo Renato
Noguera (2014), está amparada em uma eurocentricidade e na continuidade
de uma colonialidade do saber, que prioriza o solo epistêmico europeu (e sua
origem grega) como território exclusivo do pensamento filosófico.
Nesse sentido, nos propusemos neste artigo a apontar pressupostos
teórico-metodológicos para um ensino filosófico que tem como ancoragem
epistemológica a filosofia intercultural tal como compreendida por Raúl
Fornet-Betancourt.

QUESTÕES E MÉTODO DA FILOSOFIA INTERCULTURAL EM RAÚL


FORNET-BETANCOURT
Crítica à exclusividade ocidental
Para Renato Nogueira (2014), está implícito na produção daquilo que
se considera “história da filosofia” uma espécie de epistemicídio que privi-
legia o lócus epistêmico ocidental como único produtor de conhecimento
filosoficamente válido. O tema da colonialidade do saber e do epistemicídio
repercute diretamente no questionamento sobre a identidade da filosofia.

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Por colonialidade do saber entendemos que houve e há uma extensão
do projeto colonial político e exploratório nas regiões invadidas e colonizadas
por portugueses, espanhóis, ingleses, entre outros, para além dos limites da
dominação econômica e políticas. Isso significa reconhecer que em meio às
especificidades e dinâmicas históricas de cada região, há uma aproximação
histórica e discursiva na maneira como cada povo originário dessas regiões
foi tratado, a saber, tendo o conjunto de saberes e práticas de vida, estética
e a própria existência classificados como inferiores, incompletos, marginais.
Essa classificação hierárquica de saberes que tipificou “mundo
europeu e civilizado” versus “mundo colonizado e selvagem” repercute
até hoje em nossas variadas formas de expressão intelectual e cultural. De
acordo com Quijano (2005, p. 229), as populações que sofreram o processo
de colonização foram alocadas a uma situação “natural” de inferioridade,
assim como subalternizadas nos mais variados aspectos, tais como sua apa-
rência e suas construções mentais e culturais.
Por meio disso, o epistemicídio surge atrelado a uma condição his-
tórica de espólio, genocídio e de práticas culturais do colonizador que mar-
ginalizam os saberes locais. Tal marginalização segue se reproduzindo e se
retroalimentando no que tange ao solo epistêmico de determinados povos.
No caso do continente americano, os saberes dos povos originários, afri-
canos e afrodiaspóricos.
A filosofia da libertação, segundo Raúl Fornet-Betancourt (1994),
marca uma virada de natureza crítica ao pressuposto da experiência filosófica
constituída apenas como saber ocidental-europeu. O discurso dos filósofos
da libertação inaugura uma crítica à posição monorracional e monológica da
filosofia ocidental, destacando que os saberes não estão associados a qual-
quer tipo de unidade universal e metafísica. Pelo contrário, o ato de filosofar
é marcado por diferenças contextuais e culturais.
Para Betancourt (2003), é preciso historicizar a produção do saber
e retomá-la como experiência de pensamento humano, e não específica
somente de uma cultura ou localidade. Tal pressuposto, para Betancourt, não
significa uma recusa isolacionista do diálogo com os variados lócus de saber.
Pelo contrário, a proposta da filosofia intercultural perpassa por uma crítica
ao modelo imperial de extermínio e marginalização dos variados logos de

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 21

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 21 29/08/2019 06:33


saber. Mas se configura predominantemente pelo desafio da comunicação e
diálogo entre os filósofos.
O projeto de filosofia intercultural de Betancourt perpassa por um
processo de desocidentalização da filosofia. A desocidentalização, ou des-
colonialidade da filosofia, significa a retomada da consciência da atividade
relacional entre as culturas. Não quer dizer a exclusão do legado ocidental
em sua diversidade, mas a colocação desse legado em diálogo com outri-
dades filosóficas.

[…] desocidentalização significa simplesmente pôr o ocidente em


seu lugar, isto é, vê-lo como um lugar de tradições complexas,
que, desde sempre, estão em relação com outros mundos e que,
enquanto tal, não é o lugar de toda Filosofia possível, mas o lugar
de certas possibilidades de Filosofia. (BETANCOURT, 2003, p. 303)

Nesse sentido, no que concerne às orientações curriculares e aos


livros didáticos de filosofia, percebe-se que o ensino dessa disciplina per-
passa somente no estudo da produção filosófica ocidental e, por meio disso,
constrói-se uma imagem do ensino de filosofia na educação básica como
uníssona e monorracional. Ou seja, a filosofia é vista no singular, e não no
plural. Entendemos a filosofia como uma experiência do pensamento fun-
dada nas culturas, como preconiza os pressupostos de uma filosofia intercul-
tural e, dessa forma, há filosofias, no plural.
Em outros termos, trata-se de recusar a ideia de que existe uma
forma de logos canônica que desponta como referencial absoluto. Betancourt
(1994) tematiza tal perspectiva como o fenômeno de “inculturação filosófica”.
Para o autor, no início da crítica ao pensamento ocidental como força motriz
do filosofar no mundo, a ideia de inculturação filosófica pareceu dar conta
da problematização histórica e das particularidades locais de cada povo. O
fenômeno da inculturação filosófica postulava que, a partir de uma origem
tradicional da filosofia (a episteme ocidental), “aplica-se à adaptação criadora
desse logos através de sua inserção e de seu enraizamento na cultura, na
história e contextos próprios”. (BETANCOURT, 1994, p. 32) Esse acordo com
esse pressuposto, a produção filosófica seria original e não simples reprodu-
tora, pois condensaria os problemas e historicidade próprios de cada con-
texto. Porém, para o filósofo cubano:

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Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 22 29/08/2019 06:33


[…] há razão para suspeitar que a ideia da inculturação da filosofia
opera com uma concepção de logos filosófico que se orienta ainda
demasiado unilateralmente na tradição ocidental dominante – isto
é, na consagrada como linha diretora nas chamadas histórias uni-
versais da filosofia – e que está deste modo determinada, no essen-
cial, monoculturalmente. (BETANCOURT, 1994, p. 33)

O que é evidenciado pela crítica do filósofo é que os pressupostos


da inculturação da filosofia revelam uma importante limitação em nível teó-
rico, pois mesmo historicizando e possibilitando a dinamicidade interativa
do logos, ainda teria como pressuposto a racionalidade ocidental como valor
normativo e limitado à sua estrutura fundamental. Isso não só limita a expe-
riência filosófica, como a impede de manifestar em sua potencialidade polifô-
nica. “Ou seja, mesmo que dê frutos próprios do país, deve ser sempre iden-
tificável com o ‘tronco’ que foi transplantado”. (BETANCOURT, 1994, p. 34)
Assim compreendida, a inculturação filosófica seria mais uma forma,
menos aparente, obviamente, de reprodução da dinâmica fincada em um
logos de pretensão universalista, que entre outras determinações atuaria
incorporando ou negando a produção epistêmica de cada cultura. Em todo
caso, a consequência termina por ser a mesma: se as identifica como conti-
nuadora de uma tradição (a ocidental), legitimando-as como filosóficas, está
ao mesmo tempo negando a possibilidade de uma polifonia do logos; se as
deslegitima por não se adequarem ao “núcleo e forma” da suposta racionali-
dade de caráter universal, também nega a possibilidade e hipótese polifônica.

Rompendo com a binaridade particular × universal


Para Betancourt (1994), a tradição filosófica ocidental a qual her-
damos busca estabelecer uma relação hierárquica entre o próprio (ou par-
ticular) e o universal. O período conhecido e justificado filosoficamente
como “mundo moderno” legitimou e reproduziu um sistema de símbolos,
signos e discursos que invoca para si o “ponto-zero” do mundo. Tal “ponto-
-zero”, como tematizado por Castro-Gómez (2007), configura-se como um
pressuposto fundacional de observação, no qual impera, ou pelo menos se
defende, uma neutralidade total e absoluta da ciência moderna (intimamente
repousada na filosofia). Essa noção de universalidade atua lado a lado com o
sexismo, o racialismo e até mesmo o especismo.

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 23

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O lugar epistêmico étnico-racial/sexual/de gênero e o sujeito enun-
ciador encontram-se, sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação
entre o sujeito da enunciação e o lugar epistêmico étnicoracial/
sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem
gerar um mito sobre um conhecimento universal verdadeiro que
encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o
lugar epistêmico geopolítico das estruturas de poder/conhecimento
colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia. (GROSFOGUEL,
2010, p. 459)

Tal sentido atribuído à ideia de universalidade, que tem sua gênese


com a ciência europeia iluminista, englobaria e justificaria tudo o que é lido
como próprio ou particular. Essa assertiva apresenta um falso problema e
produz uma dualidade entre o que seria particular e o que seria universal.
O falso problema com esse pressuposto, segundo o Betancourt (1994),
é que ele estabelece um “tronco” normativo do qual se origina uma perspec-
tiva que se identifica como transcendental e neutra. É preciso, em acordo
com esse fundamento, romper com a unicidade da ideia de uni-verso. Ou seja,
não há apenas um universal. Todos os solos epistêmicos do mundo, ou seja,
todos os troncos culturais existentes se projetam como universais. É uma
inversão, de acordo com autor supracitado, no modelo argumentativo e no
pressuposto fundante, em que é preciso contrastar e integrar a diversidade
do mundo no seu próprio ou particular. Esse “próprio” ou “tronco”, “é a
referência primeira, enquanto universo concreto de vida e de pensamento,
para dizer o próprio”. (BETANCOURT, 1994, p. 35)
Nesse sentido, para que haja a abertura dialógica da experiência filo-
sófica, o filósofo cubano sugere o “dizer contrastante”. O termo expressa
um dizer que ciente de sua casualidade no mundo estabelece um processo
de contrastar o tido como próprio, dizendo o “seu próprio dizer sobre os
problemas determinados, com outras tradições do dizer, com outros mundos
ou universos culturais”. (BETANCOURT, 1994, p. 35) Efetivamente, postular
o “dizer contrastante” refletiria a abertura de experiências dialógicas entre
todas as visões filosóficas, sem estabelecer entre elas uma hierarquia ou
algum núcleo originário baseado em um sistema autorreferenciado. A aber-
tura estabeleceria uma aprendizagem filosófica por meio e a partir de todas
elas.

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Concretamente, enxertar o mundo no próprio tronco significa,
para o que fazer filosófico, repensar não somente a compreensão
da filosofia com a qual costumeiramente trabalhamos, mas,
também repropor nossa maneira de entender a relação com a tra-
dição ocidental da filosofia ou com a filosofia que cresceu dentro
da tradição da cultura do ocidente. Requer […] um exercício de
revisão autocrítica e de nova reinstalação teórica. Este processo
de aprendizagem supõe, logicamente, a disposição a “re-definir”
a filosofia, quer dizer, liberá-la da definição monocultural que
ainda pesa sobre ela ou, pelo menos, de não elevar essa definição
ocidental à categoria de paradigma universalmente normativo.
(BETANCOURT, 1994, p. 36)

O dizer contrastante refletiria a retomada da relação dialógica e de


aprendizagem entre os troncos filosóficos. Uma atividade relacional, em que
não haveria eixos fundantes e da qual emergiria novos postulados teóricos
que modificariam radicalmente a forma como avaliávamos e nos relacio-
namos com as outras tradições ou troncos culturais. É uma espécie de poli-
diálogo entre identidades historicizadas, sem a presença da velha relação
colonial que hierarquiza o conhecimento.
Isso significa retomar o efeito da posicionalidade no pensamento.
Evidenciar seu condicionamento cultural e sua filiação articulada, de forma
explicita ou não, com as ideologias políticas, de grupos, etnias, gênero, entre
outras. Segundo Raúl Fornet-Betancourt (1994, p. 11):

[…] a filosofia intercultural é nova, porque, superando os esquemas


da filosofia comparada, aponta para a realização da filosofia no
sentido de um processo continuamente aberto no qual se fazem
citações, se vão convocando e aprendendo a conviver com as expe-
riências filosóficas da humanidade toda. Em outras palavras, é um
processo eminentemente polifônico do qual se consegue a sintonia
e a harmonia das diversas vozes pelo contínuo contraste com o
outro e o contínuo aprender de suas opiniões e experiências.

Para Renato Noguera (2014), negar uma relação polissêmica e poli-


diálogica no ensino filosófico é aceitar a reprodução de visões racistas e
preconceituosas sobre as culturas africanas, originárias e afrodiaspóricas,
assim como os demais núcleos sapienciais humanos. Nesse sentido, o ensino

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 25

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filosófico na educação básica pode contribuir de maneira significativa para
pluralizar a experiência do pensamento, assim como viabilizar uma mirada
descolonizante nas relações e referenciais de ensino de filosofia, produzindo
novas subjetividade e outros jogos de afetos no campo da aprendizagem.

Possibilitando outras vozes: abandonando o sujeito universal


O terceiro pressuposto, que está imbricado aos outros dois, é “redes-
cobrir” outras vozes anteriormente rejeitadas ou lidas sob as lentes monocul-
turais e etnocêntricas, especialmente aqui referindo-se à filosofia. Observa-se
em nosso texto que “redescobrir” refere-se essencialmente a um olhar crítico
ao projeto civilizatório que foi implementado pela colonização.
Para os pressupostos da filosofia da libertação, 14925 representou um
choque violento e desestabilizador das culturas originárias que colonizou
também as alteridades, como tematiza Dussel (1993). Para Enrique Dussel
(1993), essa sobreposição de valores no projeto civilizador europeu revela,
por sua vez, o encobrimento de uma outridade por meio de uma incursão
discursiva na criação e constituição sígnica da própria ideia de civilização.
“A América não é descoberta como uma cultura distinta, como o Outro, mas
como a matéria onde é projetado ‘o si-mesmo’ europeu. Então não é o ‘apa-
recimento do Outro’, mas a ‘projeção do si-mesmo’: encobrimento”. (DUSSEL,
1993, p. 35)
Nesse sentido, Betancourt (1994) defende e propõe a elaboração
de um modelo de filosofia intercultural por meio da experiência existente
no tronco ibero-americano. O núcleo dessa proposição, tal como adverte o
autor, não se trata pura e simplesmente da criação de um sistema ou tese.
Parte-se prioritariamente de uma nova leitura, crítica e situada, ancorada na
pluralidade polifônica de tradições presentes em nosso continente.
Em outros termos, quer dizer reescrever uma história da filosofia
ibero-americana que rejeite como ponto fundacional a perspectiva de histo-
riar o movimento e dinâmica da transplantação, recepção e adaptação das
correntes filosóficas norte-americanas-eurocêntricas, do branco, cristão e
masculino, para o nosso continente. Insistir nesse ponto é importante, pois

5 Refere-se aqui ao ano de chegada de Colombo ao continente batizado pelos europeus de


América.

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Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 26 29/08/2019 06:33


não se trata de situar a América como local de continuidade e dependência
de um tipo de filosofia que ainda resguarda suas origens na imagem mítica
grega. Mas, ao contrário, postulá-la como local e fonte de um pensamento
original e próprio, tal como a filosofia grega também o é.

Assim, sem complexos eurocêntricos, mas tampouco com desejos


antiocidentais, tratar-se-ia, neste segundo momento, de manifestar
a riqueza latente em nossa plural substância cultural e de ir fazendo
lugar, junto à legítima voz europeia-ocidental, a outras vozes pre-
sentes em nosso continente: a voz náhuatl, a voz tupi-guarani, a
voz aymara, a voz ou vozes afro-americanas, etc. (BETANCOURT,
1994, p. 47)

Por meio disso, a experiência filosófica aqui defendida ultrapassa os


monólogos e estabelece uma busca e ampliação das fontes e do contraste
solidário. Por ampliação das fontes, delimitamos que é necessário instituir
novos e outros aportes metodológicos, não somente restritos e viabilizados
pelos critérios ocidentais, assim como outras fontes transmissoras de pen-
samento, como a oralidade, os cantos, a literatura, pinturas, entre outras.
Eventualmente, com tal procedimento de pesquisa e orientação se pode
efetivamente caminhar com passos largos em busca de uma filosofia inter-
cultural. O contraste solidário garante uma proximidade com outras vozes,
com a ampliação do leque dos sujeitos que falam e das “formas de expressão
que nos interpelam desde o passado e o presente, da experiência históri-
co-cultural dos povos indígenas e afro-americanos de nosso continente”.
(BETANCOURT, 1994, p. 47)
É preciso salientar que tais aspectos não devem ser entendidos com
uma espécie de “filosofia comparada”, em que existe a filosofia com a qual
e a partir da qual outra filosofia se compara. Insistir nesse aspecto, para o
autor, é recair no equívoco de estabelecer centros, origens uníssonas da filo-
sofia por meio de uma espécie de desmantelamento reducionista do outro.
Nem tampouco parte-se de uma postura de busca por um “estado nulo da
colonialidade”. (WALSH, 2013, p. 25) O que se pressupõe é que o contraste
solidário marque uma distinção de natureza epistêmica e interaja em uma
rede solidária e dialógica de centros de saber.

PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 27

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INCONCLUSÃO: REAPRENDER A PENSAR…
Raúl Fornet-Betancourt (1994) destaca que a filosofia intercultural é
uma nova imagem da filosofia. Representa uma inovação não como sistema
filosófico fechado e monocultural, tal como a tradição filosófica ocidental
apresenta. Mas sobretudo como criação a partir dos solos epistêmicos que
vão sendo historicizados e, de forma posicional, dialogam entre si.
Diante disso, a filosofia intercultural surge como uma aposta ética,
uma alternativa metodológica e curricular diante da expressão monolítica dos
currículos e livros de filosofia na educação básica. Ela permite uma relação
de perspectivas que vão desde a multirreferencialidade do conhecimento
até a historicidade, possibilitando um polidiálogo e uma abertura relacional
que sustenta não somente uma nova possibilidade de conhecimento, com a
insurgência de outras vozes silenciadas, assim como o estabelecimento do
exercício de perspectivar nossa forma de pensar. Como salienta Catherine
Walsh (2013), é preciso (re)visitar e (re)inventar práticas e estratégias educa-
tivas que objetivem o esforço por transvalorar e subverter a colonialidade do
saber, acompanhadas pela subversão nos planos ontológico, político e exis-
tencial. Investir em outras formas de ser, existir, pensar, daí a necessidade de
destacar a experiência e existência dos povos que tiveram o direito à escuta
desarticulado, como os povos originários do Brasil – e de toda Abya Yala6 ou
América.
Um ensino filosófico mediado pelos pressupostos da filosofia intercul-
tural pode possibilitar que os discentes por meio da educação sejam capazes
não somente do diálogo com outridades, mas que também percebam a fini-
tude e os limites inerentes à sua própria cultura. É uma maneira de pensar
mediada pelo paradigma da interculturalidade, em que reaprender a pensar
qualifica-se como uma abertura para dentro, ou seja, seu próprio, seu tronco,
ao mesmo tempo em que se abre para o fora, para o outro. Para Betancourt
(1994, p. 56), essa experiência não objetifica o outro para o qual se abre o
pensamento, “mas, sim, que tem aprendido conhecer com o outro”.
A experiência da aprendizagem por meio dessa perspectiva se coloca
em contato com o lugar em que aprender é a própria dimensão pessoal

6 Abya Yala, na língua do povo Kuna, significa “terra madura”, “terra viva” ou “terra em floresci-
mento”, e é sinônimo de América. Cf. Porto-Gonçalves (2009).

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enquanto ação no mundo, em que “se descobre” “a própria fragilidade, a pró-
pria vulnerabilidade” (LARROSA, 2015, p. 41) em contato e em receptividade
com o outro; uma aposta, um risco e uma exposição.

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2008.
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PRESSUPOSTOS PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA INTERCULTURAL... 29

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FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO
DA FILOSOFIA: ALTERIDADE E INSURGÊNCIA
POPULAR EM ENRIQUE DUSSEL
Luciano Costa Santos

INTRODUÇÃO
Na contramão de uma época crepuscular, marcada pela proclama-
ção do fim das grandes narrativas, o filósofo argentino-mexicano Enrique
Dussel faz imprevista inscrição no pensamento contemporâneo justamente
como uma de suas vozes mais seminais. Quando duas guerras “mundiais”
e a imposição planetária do capital financeiro tornavam patente o esgota-
mento da civilização moderna e pareciam fechar o horizonte da história,
dando margem, quando muito, a uma “sabedoria do provisório” – com seu
“pensamento fraco”, subjetividade fragmentada, moral relativista, “Estado
mínimo” –, a filosofia de Dussel assume a proposição ambiciosa de uma
outra perspectiva civilizatória, nascida na periferia do sistema-mundo he-
gemonizado pela civilização ocidental moderna. Interpreta o “fim da his-
tória” como impasse de uma história – a dos “vencedores” – e passagem
para nova idade global, a advir da insurgência dos povos colonizados e da
instauração de um espaço mundial de convivência simétrica entre as mais
distintas culturas. Sem descartar os campos de lucidez abertos pelo lega-
do iluminista moderno e pela desconstrução pós-moderna, apropria-se de
ambos a partir da cultura popular latino-americana – periférica, oprimida,
insurgente, “bárbara”, pluricultural –, assumida como lugar hermenêutico
de gestação de outro pensamento, portador de outros sentidos de: racio-

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nalidade (analética), subjetividade (relacional), ética (da alteridade), política
(descolonial), educação (popular). A esse pensamento crítico e criador, vice-
jado na experiência histórica de resistência e afirmação dos povos coloni-
zados, em diálogo com a possível lucidez do pensamento ocidental, Dussel
denomina “filosofia da libertação”, que não é moderna, nem antimoderna,
nem propriamente pós-moderna, mas transmoderna, porque vigora além –
ou fora – do horizonte de sentido do sistema-mundo colonial.
Ao propor outro sentido à história mundial, a partir da periferia
do sistema-mundo e da ordem social hegemônica, a filosofia da libertação
assume alcance épico. Ousa uma “grande narrativa”. Ressignifica conceitos
como alteridade, povo, opressão, práxis, civilização etc., alguns dos quais,
ao menos no hemisfério Norte, quiçá pareceriam reduzidos a fósseis se-
mânticos destituídos de capacidade de mobilização coletiva. Construída
em articulação orgânica com os movimentos sociais da América Latina e
de outros contextos geopolíticos pós-coloniais, a filosofia da libertação é
fruto de processo pedagógico comunitário e dialógico, movendo-se ao lar-
go do protótipo de sujeito ocidental – proprietário, branco, macho, adulto
– que se constitui como ego cogito/ego conquiro na fundação da civilização
moderna e, no ocaso desta, tende a destituir-se em estéril insulamento e
fragmentação. Entre o sujeito soberano moderno e o sujeito atomizado
pós-moderno, a voz épica do filósofo da libertação chama o seu interlo-
cutor a um novo processo de subjetivação, a uma travessia epocal para
além da circunscrição autorreferente do eu, a partir do enraizamento no
próprio lugar, da não indiferença pelos sujeitos excluídos da ordem social,
do engajamento no projeto comunitário de seu povo e da sintonia com os
acontecimentos seminais de seu tempo. A filosofia da libertação desafia o
seu interlocutor a investir-se da estatura humana própria à civilização des-
colonizada, pluriversa e dialógica, e o chama a ajudar a trazê-la à luz.

SINGULARIDADE E ALTERIDADE
Enrique Dussel não é o primeiro a trabalhar no projeto de uma fi-
losofia a partir da América Latina se lembrarmos de Leopoldo Zea, Salazar
Bondy e outros, mas talvez seja o que tenha assumido a tarefa de modo
mais sistemático e proeminente. Chama a atenção como o percurso de sua
biografia parece imperceptivelmente conduzi-lo na direção dessa obra,

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como se um “faro” apurado o fizesse seguir o “perfume da história” (como
ele mesmo o diz), levando-o ao encontro de acontecimentos, lugares, mes-
tres, obras, que dariam contribuição substancial à decifração do sentido
civilizatório da América Latina e à apropriação hermenêutica desta para a
construção de um novo projeto filosófico. Em Dussel, a “grande história”
parece tecer a “pequena história”. A cada passo de seu itinerário, à medida
que se ampliam os horizontes geográficos e intelectuais, a visão do filósofo
dilata-se, até ganhar a amplitude “épica” que se imprimirá em sua obra.
O pensamento de Enrique Dussel oscila entre um movimento de
apropriação das raízes culturais latino-americanas e de atenção às figuras
de alteridade oprimidas/excluídas pelo sistema colonial. É uma filosofia do
enraizamento hermenêutico e do êxodo ético, de retorno à memória popu-
lar suprimida e de resposta à palavra clandestina das vítimas que clamam
por justiça. “Libertação” significa aqui, a um tempo, abrir caminho ao desa-
brochar do que é próprio e romper os grilhões da totalidade monocrática
para o advento da fecunda novidade trazida pelo Outro.
Tal oscilação já se torna patente no conceito axial de “América Lati-
na”, que ora aparece na obra de Dussel como lugar próprio, lugar de origem
e pertença, matriz civilizatória etc.; ora (com bem mais frequência e ênfase)
como “não ser”,1 “não lugar”, âmbito fora ou à margem da civilização he-
gemônica. América Latina como “nossa” morada e como lugar do “Outro”.
Por não se dar o devido destaque a essa rica tensão, prevalece a tendência
de interpretar o pensamento de Dussel tão somente à luz do segundo as-
pecto, reduzindo-o quase a uma aplicação, em contexto latino-americano,
da filosofia da alteridade de inspiração levinasiana. No entanto, embora
tenha em vista o latino-americano enquanto Outro do sistema colonial, não
se deveria esquecer que Dussel também é, ele próprio, latino-americano,
e que a filosofia da libertação, concebida em resposta à interpelação dos
oprimidos, não tem como desvincular-se de uma hermenêutica existencial
na qual o autor está implicado em primeira pessoa. Em algum sentido, por-
tanto, o filósofo é esse “Outro” a quem propõe libertação. Se isso não che-
ga a comprometer a radicalidade do sentido ético da filosofia da libertação,
pois o apelo do oprimido mantém sua potência incontornável mesmo se

1 Cf. ZIMMERMANN, R. América Latina – o não ser: uma abordagem filosófica a partir de Enri-
que Dussel (1962-1976). Petrópolis: Vozes, 1987.

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 33

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proferido em causa própria, ao menos previne contra o risco de que a filo-
sofia da libertação venha a converter-se sub-repticiamente numa filosofia
da identidade latino-americana, disfarçada em filosofia da alteridade a par-
tir da América Latina. Se fosse este o caso, já não se trataria de abrir-se, a
partir da experiência latino-americana, ao infinito ético inscrito nos tantos
rostos e povos oprimidos da Terra, mas de servir-se da máscara de alterida-
de oprimida para erigir a identidade latino-americana em suprema medida
do humano. Não se trataria de engajar-se na construção de uma civilização
planetária pluriversa, mas de encerrar-se no próprio reino identitário.
A filosofia da libertação comporta, assim, uma ontologia cultural –
libertação do sistema-mundo para a afirmação da própria singularidade –; e
uma ética da alteridade – libertação da opressão colonial para a construção
solidária da justiça junto aos “condenados da Terra”. Supõe, ademais, com
Levinas – e isto é decisivo –, a precedência de sentido da relação ética com
a alteridade sobre a pertença ao próprio território simbólico. Com efeito, a
cultura constitui a morada existencial do sujeito, mas só se legitima como
humana a partir do encontro com o rosto do Outro que a questiona e julga.
A cultura confere ao sujeito os significados de seu mundo, mas estes só se
justificam à luz do infinito de sentido comunicado pela alteridade inviolável
dos outros. A rigor, inclusive, sequer se pode falar em “cultura” como um
campo simbólico estritamente demarcável, pois toda cultura já se vê em
algum nível influenciada e interpelada, desde a sua constituição, pelas cul-
turas dos outros, sendo, pois, intrinsecamente intercultural. Eis porque, em
Dussel, o desabrochar para a própria singularidade cultural não é concebi-
do como reiteração tautológica da identidade, e a tarefa de uma filosofia a
partir da América Latina se configura propriamente como via de passagem
para a civilização pluriversa intercultural que se projeta para além dos mar-
cos da modernidade global.
Essa articulação de afirmação das raízes culturais e diálogo com a
alteridade dos excluídos aparece no próprio percurso biográfico de Enrique
Dussel, como duas paixões ou atitudes nucleares dificilmente dissecáveis.

RAÍZES SEMÍTICAS DE AMÉRICA LATINA


Nascido no pequeno povoado de La Paz, na província de Mendoza,
oeste da Argentina, para onde o pai médico fora transferido, Dussel viveu

34 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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uma infância telúrica, fruindo da natureza campestre e em franca convivência
com a gente simples do lugarejo. É, em sentido próprio, um “filho da terra”:

Sou então provinciano (no Brasil, ‘sertanejo’), de andar descalço


ou a cavalo; alguém que ama a terra, o pó, a água dos canais, a
sombra das árvores, a gente, os campesinos… Nunca me senti
estranho em meu povo; alegro-me com ele, o observo, o escuto, o
respeito… (DUSSEL, 2017, p. 18)

Essa convivência empática com a gente simples, a quem se sentia


irmanado enquanto filho do mesmo chão, não o fazia, entretanto, perder
de vista a condição de pobreza e marginalidade desse povo, marcado por
formas extremamente concretas – carnais – de privação: “La Paz era um
povoado pobre. Fora de umas poucas quadras, com ruas de terra, as choças
dos campesinos, paupérrimos, me deram desde sempre a experiência do
sofrimento, da miséria, da dificuldade do povo”. (DUSSEL, 2017, p. 18)
Desde muito cedo, portanto, desponta na consciência do filósofo
a percepção da distinção entre o sentido cultural de “povo” – como nação
ou comunidade ligada a um território – e seu sentido ético-político – como
classe excluída, vítima da injustiça. Em parte, o agudo senso social do jo-
vem Dussel se inspira no exemplo dos próprios pais, seja da mãe professo-
ra, destacada liderança benemérita local, seja do pai médico, que prestava
abnegada e diuturna assistência aos enfermos nos mais distantes rincões,
chegando a fundar a clínica social do povoado. Em parte, também, desen-
volve-se a partir de seu engajamento em agremiações religiosas com atua-
ção junto aos pobres e desvalidos, como a Ação Católica e a Ordem Terceira
de São Francisco; e da renhida militância estudantil, que, sob a repressão
do governo Perón, nos anos 1950, chegou a lhe custar a prisão durante
uma greve. A iniciação política do jovem Dussel gravita em torno da não
indiferença pela diferença dos excluídos da ordem social vigente. Em última
instância, remete a uma espiritualidade do serviço2 que mais tarde se radi-
calizará como teologia da libertação, e se vale de incipiente pedagogia da

2 “Em plena adolescência, uma profunda experiência de conversão à responsabilidade para


com o Outro. Visitávamos hospitais de crianças deficientes mentais; líamos, devorávamos
as obras de João da Cruz, Teresa D’Ávila, Bernardo de Claraval, mas integrado ao compro-
misso social, gremial, político”. (DUSSEL, 2017, p. 18-19)

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 35

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práxis que compreende a formação ética do sujeito como indissociável do
engajamento em favor das vítimas da injustiça social.
Durante cinco anos, Dussel cursa Filosofia na Universidade Nacional
de Cuyo. A fornida formação universitária o habilita a ler os clássicos do
pensamento ocidental em suas respectivas línguas, com destaque para o
campo da ética, que foi e continuou a ser a espinha dorsal de suas pesqui-
sas filosóficas. Seguindo uma mentalidade colonial de longa data, que pres-
creve a chancela da experiência acadêmica europeia, migra para a Espanha
a fim de prosseguir os estudos na Universidade Complutense de Madri, e é
então que faz a descoberta de si mesmo como “latino-americano”:

Toquei numa América Latina e Terceiro Mundo que me haviam sido


absolutamente desconhecidos. Desejava com paixão ir à Europa, e
indo a ela havia descoberto, para sempre, o mundo periférico que
havia estado antes fora de meu horizonte. (DUSSEL, 2017, p. 21)

Doravante, compreender esse “outro” lugar, esse “não-lugar” reser-


vado à América Latina na história mundial e, a partir dele, ressignificar o
sentido da história e do próprio humano, quiçá passe a ser o norte magné-
tico do itinerário existencial-filosófico de Dussel.
O projeto de tese na Complutense de Madri, em diálogo com o “Hu-
manismo Integral” de Jacques Maritain, articula perspectivas ético-políticas
sugestivas para o percurso posterior do pensamento de Dussel. No deba-
te entre individualismo liberal e comunitarismo, Maritain toma inusitada
via terceira, na qual sustenta a subordinação do bem comum à suprema
dignidade da pessoa humana, considerada como fim em si mesma; e, ao
mesmo tempo, aborda a pessoa, por sua essência relacional – interpes-
soal – em intrínseca referência à promoção do bem comum, precavendo
contra qualquer deriva individualista. Dussel vê nessa primazia da pessoa
sobre a ordem coletiva anônima certo “presságio” do que, com Levinas,
será descrito mais tarde como a “exterioridade” do Outro em relação à
“totalidade” do sistema social dos indivíduos – pedra angular de toda a
filosofia da libertação.
Em busca das raízes semitas da América Latina, durante o doutora-
do Dussel faz uma breve incursão por Israel, onde conhece o padre-operá-
rio Paul Gauthier e vive profunda experiência junto a trabalhadores manuais

36 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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palestinos: “A violência da pobreza, do rude trabalho manual, do calor do
deserto. Experiências fortes, definitivas, místicas, carnais…”. (DUSSEL,
2017, p. 23) Note-se: partilhando o cotidiano com operários palestinos, a
pobreza entra-lhe pela carne e comunica uma potência de sentido de última
instância, “definitiva”, “mística”. Aqui, o jovem doutorando faz a prova de
que, quanto mais encarnada a experiência, mais profundo o sentido. Con-
cluída a tese doutoral, a convite do Pe. Gauthier, Dussel retorna a Israel para
uma permanência prolongada, podendo dar largas à sua busca das raízes
semitas. Trabalha como carpinteiro (de “terceira categoria”) em Nazaré e
como pescador no lago Tiberíades, estuda a fundo o hebreu, peregrina pe-
las paisagens bíblicas da Palestina, recebendo em cheio a “infinita pobreza,
imensa profundidade da sabedoria de um povo explorado… mas milenar”.
(DUSSEL, 2017, p. 26) Dificilmente se conseguiria exagerar a importância
dessa experiência, cujo impacto na formação espiritual e intelectual de Dus-
sel constitui uma verdadeira metanoia: “Depois de dois anos, quando decidi
que era necessário voltar à Europa, era completamente outra pessoa, outra
subjetividade, o mundo se havia invertido… Agora o veria para sempre a
partir de baixo”. (DUSSEL, 2017, p. 26)
Uma primeira marca da experiência semítica de Dussel se imprime,
pois, em nível ético-político. É a conversão à pobreza como questão humana
radical. À luz dessa virada de perspectiva, a América Latina já é visada menos
por sua condição cultural à margem da Europa – o “outro lugar”, a outra
cultura –, do que como âmbito geopolítico de um embate assimétrico entre
opressores e oprimidos, vencedores e vencidos – o lugar das vítimas, “dos
outros”: “Agora, não era só América Latina; agora eram os pobres, os opri-
midos, os miseráveis de meu continente distante”. (DUSSEL, 2017, p. 25) De
dentro de um alojamento de operários, no coração da Palestina, escrevendo
para um conterrâneo historiador, o filósofo se vê arrebatado pelo desafio
de trazer à luz a face ocultada da América Latina: “Algum dia deveremos
escrever a História da América Latina a partir de baixo, dos oprimidos, dos
pobres!”. (DUSSEL, 2017, p. 25) Com este fim, em meados dos anos 1960,
na Sorbonne, defenderá tese de doutorado em História sobre “O Episco-
pado Americano, Instituição Missionária em Defesa do Índio (1504-1620)”.
Note-se que o índio é aqui abordado não enquanto portador de cultura au-
tóctone, mas justamente como figura do pobre ou oprimido. Não encarna a

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 37

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diferença cultural, mas a alteridade ético-política. Assim, é na condição de
civilização dos pobres que, paradoxalmente, Dussel começa a vislumbrar um
“lugar” para a América Latina na história mundial, em conformidade com o
projeto de historiografia insurgente desenvolvido pelo pensador mexicano
Leopoldo Zea em sua obra-marco “América na História”, de 1957.
A segunda marca da conversão semítica de Dussel se imprime em
nível propriamente civilizatório ou filosófico. A despeito da influência nor-
mativa do legado greco-romano, o filósofo encontra na matriz sapiencial
hebraico-semítica uma chave hermenêutica melhor apropriada para a com-
preensão do povo latino-americano, tendo em vista a sua situação de opres-
são histórica – como a do povo hebreu –, e o desafio histórico de romper os
grilhões do determinismo social para protagonizar um projeto civilizatório
libertador a partir dos oprimidos. A sabedoria hebraica migra de uma meta-
física do ser, submetida à ordem divina do cosmos, para um ethos da liber-
dade, que interpreta a construção da justiça na história como obediência à
vontade do Deus criador e redentor.

Para a reconstrução de uma filosofia latino-americana, era neces-


sário ‘destruir’ o mito grego. Para compreender a cultura do povo
latino-americano, era preciso partir de Jerusalém mais do que de
Atenas. Jerusalém falava da dignidade do trabalho, da possibili-
dade da revolução dos pobres; Atenas falava da dignidade dos
nobres livres, da impossibilidade da emancipação dos escravos.
(DUSSEL, 2017, p. 26)

Sob influxo do pensamento de Paul Ricoeur, com quem estudou em


Paris nos anos 1960, Dussel redige suas obras inaugurais “O humanismo he-
lênico” e o “Humanismo semita”, nas quais desenvolve arguta análise feno-
menológica dos núcleos ético-míticos3 das civilizações grega e semita, cujo
contraste contribui, a seu ver, para achegar-se à singularidade da própria
civilização latino-americana. Assumindo o humanismo semita como chave
paradigmática para pensar o telos de América Latina, Dussel detém-se, em

3 Com Paul Ricoeur, afirma Dussel: “Toda civilização tem um sentido, ainda que este sentido
esteja difuso, inconsciente e seja difícil de cingir. Todo esse sistema se organiza em torno
de um núcleo (noyau) ético mítico que estrutura os conteúdos últimos intencionais de um
grupo que pode descobrir-se pela hermenêutica dos mitos fundamentais da comunidade”.
(DUSSEL, E., 2017, p. 31)

38 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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especial, em sua antropologia monista, que mostra o ser humano como uni-
dade indissolúvel de corpo e espírito – ou carne (basar) –, vindo à luz toda
a densidade humana das assim chamadas carências “materiais”, a exemplo
de fome, miséria, desabrigo; e em sua ética interpessoal, que compreende
o bem agir justamente na perspectiva da relação com esse Outro cuja carne
vulnerável e violável me chama à justiça. Em contraste com a sabedoria con-
templativa grega, fundada numa razão autárquica, a sabedoria encarnada
semita parece melhor afeiçoada à “civilização dos pobres” latino-americana
em vias de libertação histórica.

[No mundo grego,] o homem tinha que fugir da intersubjetivida-


de, porque devia evadir-se do corpo para alcançar a perfeição.
Desta vez, porém, não há corpo, propriamente falando, mas sim
totalidade humana, e esta é sempre intersubjetiva. O homem só
se salva nessa intersubjetividade. O judeu salvava-se não no de-
serto, sozinho, contemplando o divino, mas pelo fato de perten-
cer ao povo de Abraão e, portanto, pelo fato de participar da
promessa e de fazer parte de seu povo em sua esperança. […]
A perfeição do grego é a do sábio ou, em última instância, do con-
templador; enquanto que a perfeição do semita é a de um homem
que na comunidade se compromete na História, e esse é o profeta.
(DUSSEL, 1997, p. 88-89)

INSURGÊNCIA POPULAR, VIRADA EPISTEMOLÓGICA


No final dos anos 1960, Dussel retorna em definitivo para a Argen-
tina, em meio a um contexto mundial de crescente efervescência política,
com insurreições descoloniais, movimentos pelos direitos civis de negros
e mulheres, rebeliões de juventude e, em nível local, o recrudescimento da
mobilização popular contra a ditadura do general Onganía. Época de insur-
gência nacional, operária, étnica, feminista, estudantil. Dussel assiste ao
“Cordobaço”, insurreição estudantil similar à de Maio de 68 na França. In-
sere-se em comunidades eclesiais do meio popular. Participa, como docen-
te, da resistência ao regime militar; articula a insurgência popular. Recém
saído de uma imersão intelectual-existencial de dez anos no Velho Mundo,
em busca das raízes da América Latina, o filósofo é lançado em cheio ao

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 39

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centro de acontecimentos que tramam o nascimento de outra era histórica,
a partir não somente do protagonismo da classe trabalhadora e dos pobres
– não obstante sua primogenitura histórica e seu caráter prototípico nos
movimentos de emancipação –, mas também de coletivos humanos oprimi-
dos e excluídos da ordem civilizatória hegemônica. A dialética econômica –
ricos × pobres, exploradores × explorados – instaura, em certo sentido, o
mais radical modo de supressão da alteridade, mas está longe de esgotá-la.
Gradualmente, a vida e o pensamento de Dussel deixam-se interpelar por
outras figuras de alteridade que não cabem na ordem social hegemônica,
relegadas a lugar subalterno ou, mais propriamente, sem lugar, sem palavra,
sem direito ao reconhecimento, sem… “ser”. A identidade da ordem so-
cial hegemônica constitui os outros da ordem como “não-ser”. De volta ao
Novo Mundo, o filósofo é batizado pelos acontecimentos protagonizados
pelos movimentos sociais, e começa a nascer – com a América Latina – para
uma outra história.
À medida que se articula com os movimentos populares, e adianta-
-se na pedagogia da práxis, Dussel intensifica o diálogo interdisciplinar com
as ciências sociais, especialmente sociologia e economia. O contágio da
insurgência popular impulsiona, assim, a ampliação das fronteiras episte-
mológicas de seu pensamento, um de cujos marcos principais é a iniciação
do filósofo na teoria da dependência, em encontro com colegas sociólogos.
Dispensando supostos fatores endógenos de ordem cultural, ou outros, a
teoria da dependência explica a crônica situação de pobreza dos países do
Sul a partir da dominação econômica exercida pelos países desenvolvidos,
que exploram seus recursos e os submetem à condição de fornecedores
de matéria-prima e mão de obra. Há, portanto, um sistema econômico em
nível internacional que estabelece relação assimétrica entre países indus-
trializados do Centro e países subdesenvolvidos da Periferia, mantendo a
estes em posição estruturalmente secundária e subordinada. O subdesen-
volvimento resulta de uma lógica do mercado internacional. A menos que o
próprio sistema seja subvertido, a emancipação dos países periféricos não
será viável somente a partir de reformas econômicas pontuais ou surtos
episódicos de expansão tecnológico-industrial. De claro viés marxizante,
a teoria da dependência já desenha a perspectiva de um “sistema mundo”
globalizado pelo capital, em chave protodescolonial, que será posterior-

40 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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mente radicalizada no pensamento de Dussel, da década de 1980 em dian-
te, em proporção direta à sua reapropriação da obra de Marx a partir da
América Latina.
Em consonância com a perspectiva crítico-emancipadora da teoria
da dependência, Dussel toma contato com a obra precursora do filósofo perua-
no Augusto Salazar Bondy – ¿Existe una Filosofía desde Nuestra América? –,
que sustenta a impossibilidade de uma filosofia autêntica em contexto de
dominação neocolonial; e com a Sociologia de la Liberación do colombia-
no Fals Borda, cujo título antecipa a consigna de seu próprio pensamento.
A filosofia da libertação de Dussel não chegaria, porém, a definir-se como
tal, sem o seu encontro fundante com a obra do filósofo Emmanuel Levinas.
Se esta não o despertou propriamente de nenhum “sono dogmático”, por
certo o ajudou a atingir a sua mais apurada lucidez.
Formado na matriz sapiencial judaica, Levinas promove uma impor-
tante subversão hermenêutica no pensamento ocidental, ao conferir à ética
– entendida como não indiferença pela diferença do Outro – a primazia na
constituição do sentido, que, na perspectiva fenomenológica, consoante a
tradição grega clássica, era atribuída à ontologia. Sob a regência da onto-
logia como “filosofia primeira”, as coisas se mostram no horizonte do ser
enquanto fundamento das possibilidades de sentido. As coisas ganham sen-
tido à luz do ser. Não se apresentam por si – não se comunicam –, mas signi-
ficam a partir de uma conjuntura universal que as abarca e constitui. Aplicar
tal perspectiva à consideração das pessoas com as quais nos relacionamos
significaria submeter sua presença a uma luz “neutra” e “anônima” que as
privaria do que lhes é mais próprio – sua fala, sua face. Indaga Levinas:

Aquele a quem se fala é, previamente, compreendido no seu ser?


De forma alguma. Outrem não é primeiro objeto de compreensão
e, depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de
outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invo-
cação. Compreender uma pessoa é já falar-lhe. Pôr a existência
de outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la
tomado em consideração. (LEVINAS, 1997, p. 27)

Não é possível achegar-se a outra pessoa sem deixar-se interpelar


por sua palavra. Qualquer tentativa de compreensão de outrem que não

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 41

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renuncie à pretensão de decifrá-lo sem, antes, escutá-lo, estará condena-
da ao fracasso. A alteridade de outrem consiste na apresentação de si por
si – é “rosto” – que transcende a totalidade do mundo e comunica uma
potência infinita de sentido. Outrem é a própria revelação do infinito,
que implode a pretensão autista de se vir a constituir o sentido a partir
do fundamento de um mundo total, fechado em si mesmo. Sobrevindo
de além do mundo, estrangeiro, o rosto de outrem expõe, ademais, uma
vulnerabilidade e violabilidade tais a que não se tem como permanecer
indiferente sem se saber em dívida. O rosto de outrem instaura a não
neutralidade do sentido: vê-lo é saber-se chamado a escutá-lo, acolhê-lo,
ou, ao invés, interditado a violá-lo e matá-lo. Em suma, ver outrem é sa-
ber-se instado a tomar uma posição a seu respeito. Levinas chama “ética”
a essa “impugnação de minha espontaneidade pela presença de outrem”.
(LEVINAS, 1980, p. 30) A ética precede a ontologia – a ética é “a ótica”
– porque nem toda a sabedoria do mundo poderia, no lugar de outrem,
comunicar a revelação de sentido e o chamado à responsabilidade inscri-
tos em sua alteridade.

ETHOS DA LIBERTAÇÃO
Uma das principais contribuições de Dussel na recepção latino-ame-
ricana do pensamento de Levinas, consiste em situar a ética da alteridade
no contexto de uma geopolítica descolonizadora. O mundo, enquanto to-
talidade imanente de sentido, não é uma entidade abstrata. A rigor, sequer
há “mundo”, mas mundos historicamente constituídos, a partir de fatores
sócio-político-econômicos, com seus respectivos fundamentos, mecanis-
mos de totalização de sentido, hegemonização de identidades e exclusão
de alteridades. No contexto (neo)colonial da América Latina, em linha com
um processo que remonta às origens do Ocidente, uma totalização euro-
cêntrica, calcada na expansão mundial do capitalismo mercantil-industrial,
submete e empurra para as margens figuras de alteridade – os “múltiplos
rostos do povo uno”, de índios, negros, mestiços, crioulos, camponeses,
operários, marginais4 – referidas ao “não lugar” do colonizado. Em última

4 Cf. DUSSEL, E. O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis:


Vozes, 1993.

42 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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instância, a filosofia da libertação se afirma como resposta insurgente, em
nível reflexivo radical, desses “múltiplos rostos do povo uno” à totalização
civilizatória totalitária que visa suprimi-los.

Quando dizemos que a filosofia da libertação é pós-moderna,5


queremos indicar a seguinte tese: a filosofia moderna europeia,
mesmo antes do ego cogito, mas certamente a partir dele, situa
todos os homens, todas as culturas, e com isso suas mulheres e
filhos, dentro de suas próprias fronteiras como úteis manipulá-
veis, instrumentos. A ontologia os situa como entes interpretá-
veis, como ideias conhecidas, como mediações ou possibilidades
internas ao horizonte de compreensão do ser. Espacialmente cen-
tro, o ego cogito constitui a periferia e se pergunta com Fernández
de Oviedo: ‘os índios são homens?’, isto é, são europeus e por
isso animais racionais? O menos importante foi a resposta teóri-
ca; quanto à resposta prática, que é a real, ainda continuamos a
sofrer: são apenas a mão-de-obra, se não irracionais, ao menos
‘bestiais’, incultos – porque não têm a cultura do centro –, selva-
gens… subdesenvolvidos. (DUSSEL, 1982, p. 9-10)

No horizonte do mundo neocolonial, cujo fundamento remete ao


poder capitalista eurocêntrico, vigora uma ontologia da produção que re-
duz o ser das coisas a instrumento a serviço do mercado. Nesse contexto,
a filosofia da libertação toma uma via metafenomenológica6 que abdica de
pronunciar o mundo de acordo com o repertório de significados consagra-
do pelo sistema vigente, para expor-se aos “múltiplos rostos” por este si-
lenciados. Sai do horizonte do mundo para receber a epifania (ou revelação)
dos outros. A filosofia da libertação aposta em nova iniciação ao sentido e,
por conseguinte, na proliferação de mundos, a partir da escuta dos excluí-
dos da totalidade totalitária neocolonial. Instaura, assim, uma subversão
epistemológica que termina por tocar nos fundamentos do pensamento
ocidental moderno.

5 Mais adiante, veremos que a perspectiva “pós-moderna”, consagrada por filósofos críticos
do Centro face aos impasses da civilização moderna, será substituída pela categoria de
transmodernidade.
6 Sobre a metafenomenologia como metodologia filosófica, cf. Souza (1999).

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 43

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A fenomenologia, como seu nome está a indicar, ocupa-se do que
aparece e como aparece a partir do horizonte do mundo, do sis-
tema, do ser. A epifania, ao contrário, é a revelação do oprimido,
do pobre, do outro, que nunca é pura aparência nem mero fenô-
meno, mas que conserva sempre uma exterioridade metafísica.
Aquele que se revela transcende o sistema, põe continuamente
em questão o dado. A epifania é o começo da libertação real.
(DUSSEL, 1982, p. 22)

À obra filosófica de superação do horizonte de sentido monoló-


gico, para a irrupção das múltiplas vozes dos excluídos, corresponde, em
campo moral, a tarefa de deslegitimação do sistema legal excludente.
À proliferação do logos, corresponde a transgressão da lei. Instituído so-
bre o fundamento de um poder hegemônico que configura a totalidade
da ordem social, o sistema jurídico vigente se legitima a partir de sua
própria positividade: porque se impõe como obrigatório de fato, acaba
autorizando-se como válido de direito. À medida, porém, que as alterida-
des dissidentes – tidas, por princípio, como ameaçadoras da ordem social
– consolidam novos consensos,7 que tornam patente o caráter imoral do
sistema legal e abrem fissuras na ordem totalizante, amplia-se o campo
para a conquista de uma nova hegemonia social, disputada pelos novos
atores sociais emergentes.

O outro se revela realmente como outro, em toda a acuidade de


sua exterioridade, quando irrompe como o mais extremamente
distinto, como o não habitual ou cotidiano, como o extraordinário,
o enorme (fora da norma), como o pobre, o oprimido; aquele que,
à beira do caminho, fora do sistema, mostra seu rosto confiante:
‘Estou com fome!, tenho direito a comer!’. O direito do outro, fora
do sistema, não é um direito que se justifique pelo projeto do sis-
tema ou por suas leis. Seu direito absoluto, por ser alguém, livre,
sagrado, funda-se em sua própria exterioridade, na constituição
real de sua dignidade humana. Quando avança no mundo, o pobre
comove os próprios pilares do sistema que o explora. Seu rosto
(pnim em hebraico, prósopon em grego), pessoa, é provocação e
juízo por sua simples revelação. (DUSSEL, 1982, p. 49)

7 Sobre a construção de novos consensos éticos a partir dos excluídos, cf. Dussel (2000).

44 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Tão logo o sistema social dominante reconheça a perda iminente
de sua hegemonia, tenderá a apelar para a dominação explícita a fim de
obtê-la de volta, ainda que o uso ostensivo da força venha pôr a nu o ca-
ráter intrinsecamente imoral de seu ordenamento legal. Antes, porém, de
recorrer ao exercício da dominação, a ordem social totalizante já se vale de
um ethos da dominação, nutrido de paixão alterocida, alérgico ao novo, que
exerce um permanente controle para manter fora da ordem social as figuras
de alteridade dela excluídas, as quais nada significam, valem ou são à luz
do horizonte do sistema vigente. O ódio ao Outro é o mais evidente sinto-
ma da esterilidade intrínseca à totalidade social monocrática, condenada
a perpetuar-se ad infinitum para reafirmar o fundamento divinizado – ou
“fetichizado”,8 como prefere Dussel – que a constitui.

No coração do ethos dominador aninha-se o ódio, anterior à in-


veja; já que se entristece pelo bem, pela felicidade ou êxito do
outro, é porque não pode suportar sua presença, sua existência, a
realidade de seu rosto exterior e interpelante. O ódio é a perver-
são das tendências; é o auto-erotismo da totalidade e da exclusão
da exterioridade. É a origem da patologia política e individual.
A enfermidade política é o totalitarismo; a patologia pessoal é a
psicose. Ambas são autocentradas e negam a alteridade; são tau-
tológicas, perversas, autodestrutivas. O ódio é o desejo perverso
que mantém unidas as partes estruturadas do todo totalizado.
(DUSSEL, 1982, p. 62)

A reprodução da totalidade totalitária tampouco seria possível sem


a pressão alienadora sobre os que estão dentro e fora de suas fronteiras,
para submetê-los, em seu ser, pensar e agir, ao fundamento fetichizado da
ordem neocolonial. A totalidade totalitária é rigorosamente impermeável à
possibilidade de transcendência. Alienar o Outro, reduzindo todos os mun-
dos a um só, é próprio de sua dinâmica totalizadora:

Totalizar a exterioridade, sistematizar a alteridade, negar o outro


como outro é a alienação. A alienação de um povo ou indivíduo
singular é fazer-lhe perder seu ser ao incorporá-lo como momento,
aspecto ou instrumento do ser de outro. (DUSSEL, 1982, p. 58)

8 Sobre a questão do fetichismo, cf. Dussel (1980).

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 45

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Em face disto, a filosofia da libertação parte de uma posição “an-
-árquica”,9 por não reconhecer, de saída, o fundamento do sistema – nes-
te caso, o deus-capital – como princípio de constituição da ordem social.
Implode, assim, a totalidade totalitária, ao recusar-lhe culto e atribuir sa-
cralidade unicamente a outrem, cuja alteridade, transcendente a todos os
sistemas – “santa” –,10 revela o infinito de sentido e obriga à justiça. A nega-
ção a-teia da totalidade alterocida é condição de possibilidade do respeito
devido à “santidade” (transcendência) de outrem. Sem a dessacralização
da ordem vigente, não é possível fazer justiça aos pobres que esta oprime
e exclui. Tal atitude filosófica, a um tempo insurgente e reverente (quando
uma filosofia exclusivamente moderna conceberia semelhante combina-
ção?), condiz com outro ethos – da libertação –, que se forma no corpo a
corpo solidário dos marginalizados pela ordem social. O ethos da libertação
é movido por uma “pulsão alterativa” distinta da mera simpatia compassiva
entre sujeitos coabitantes de um mesmo mundo, os quais se identificam
entre si por projeção especular; “pulsão alterativa” ou “justiça metafísica” –
ou ainda “comiseração” – como resposta à vulnerabilidade de outrem, que
não é, pois, nem “amizade, nem fraternidade (dos iguais), mas amor aos
oprimidos em razão de sua real dignidade como exterioridade”. (DUSSEL,
1982, p. 70) A pulsão alterativa do ethos da libertação constitui a mais crista-
lina resposta ao sentido ético inscrito na alteridade. Subversiva à legalidade
iníqua do sistema excludente, ela abre uma fissura u-tópica na ordem social
que denuncia o seu fechamento totalitário sobre si mesma.
Ademais de situar a ética da alteridade no contexto geopolítico
neocolonial, outra importante contribuição do pensamento de Dussel é
aplicá-la a âmbitos concretos de relações inter-humanas, nos quais operam
diversos níveis e modos de opressão de figuras de alteridade pela totalida-
de sistêmica, mediante as respectivas subjetividades hegemônicas com esta
identificadas. Em seu projeto de Ética da Libertação, em vários tomos, Dus-
sel desenvolve uma cartografia da opressão – e da libertação –, mostrando
como e em que sentido se dá, na América Latina, a negação dos “outros”
das ordens sistêmicas nas quais se inscrevem. Na “Erótica”, referente à to-

9 Cf. Dussel (1982, p. 67).


10 Sobre o sentido ético de “santidade”, cf. Levinas (2001).

46 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 46 29/08/2019 06:33


talidade conjugal, mostra a castração da sexualidade clitoriana da mulher
pelo sistema machista; na “Pedagógica”, referente à totalidade educacional
(familiar/escolar/cultural), mostra a domesticação da novidade geracional
do filho/jovem/educando pelo sistema patriarcal/burocrático, reprodutor da
cultura oficial; na “Política”, referente à totalidade social, mostra a explo-
ração e dominação das classes populares pelas elites detentoras do poder
econômico e político; por fim, na “Arqueológica”, que discute a totalidade
em sentido amplo, mostra a supressão da perspectiva u-tópica de projeto
histórico pela fetichização totalitária da ordem vigente.
Não nos deteremos, aqui, em cada um dos tratados, pois nos levaria
muito além da proposta do texto. Importa, porém, chamar a atenção para a
sugestiva articulação, no contexto (neo)colonial latino-americano, entre as
diversas instâncias de subjetividade hegemônica. Com efeito, já nos primór-
dios de nossa civilização, via de regra, foi um e o mesmo sujeito – branco,
adulto, macho, “cristão” – que se apropriou de territórios autóctones como
“terras de ninguém”, dominou e explorou os povos indígenas (ou africa-
nos) como “bárbaros”, subjugou as mulheres nativas como instrumentos
de gozo e reprodução, e adestrou os filhos mestiços segundo as regras do
Estado, sob as bênçãos da religião oficial. O que se diz desse contexto co-
lonial se aplicaria hoje, com alguma adaptação, em tempos de globalização
neoliberal, ao burguês, “cidadão de bem”, obediente à “ordem legal”, “cris-
tão”, modelado segundo o american way of life. Capitalismo, eurocentrismo/
norte-americanismo, machismo, patriarcalismo, fundamentalismo cristão,
formam subsistemas de uma mesma totalidade (neo)colonial, alérgica a
qualquer afirmação de alteridade que possa ameaçar seu fundamento mo-
nocrático e excludente.
Não limitando-se a pensar os âmbitos concretos de produção da
opressão, outro marcante aporte do pensamento de Dussel é articular com
rigor, em nível político, as mediações institucionais que viabilizem a cons-
trução de outra totalidade social, a partir do protagonismo dos atores his-
tóricos insurgentes. Não obstante se deva questionar se uma “totalidade
aberta” não constituiria (ao menos à luz do pensamento de Levinas) uma
contradição nos termos, parece certo que a ótica da justiça – a ética –, pre-
cisamente em seu sentido semítico mais radical, já implica uma práxis de
libertação. Esta, paradoxalmente, não tem como deter-se nas novas ordens

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 47

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institucionais que dela resultem, sendo assim atiçada por uma subversão
inaplacável, uma vez que seus horizontes u-tópicos se abrem ao infinito da
alteridade, a cuja interpelação jamais é possível dar uma resposta suficien-
te. Em certa medida, a práxis da libertação é uma insurreição permanente.

PEDAGOGIA ANALÉTICA
A práxis de libertação implica o reconhecimento da primazia da
alteridade oprimida na instauração do processo libertador. O Outro não
é objeto de libertação, aquele a ser libertado de seu “não-lugar”, “cons-
cientizado” e inserido no sistema para, enfim, tornar-se “alguém”. Não é,
tampouco, propriamente sujeito de libertação, como se sua consciência pri-
vilegiada da opressão lhe facultasse o poder de conduzir e controlar o pro-
cesso libertador. O Outro excluído é o âmbito primordial e pré-reflexivo no
qual acontece a trama insurgente – é o centro nervoso do acontecimento
da libertação. O processo libertador brota em sua carne aflita, explode em
seu grito de dor e revolta, articula-se em seus movimentos de organização,
mas nem ele saberia medir de modo transparente toda a potência insurgen-
te que o atravessa, e prever para onde caminha. Certo, porém, é que não há
como engajar-se na práxis de libertação sem ser ensinado por aquele a ser
libertado, isto é, sem escutar o seu clamor de justiça enquanto ponto zero
de irrupção do próprio sentido:

Esse projeto libertador, âmbito transontológico da totalidade


dominadora, é o mais-alto, o mais-além para o qual a palavra re-
veladora nos convida e provoca. Somente confiados no outro,
apoiados firmemente sobre sua palavra, a totalidade pode ser pos-
ta em movimento; caminhando na libertação do outro alcança-se
a própria libertação. (DUSSEL, 1986, p. 207)

Tomando distância de um pensamento de matriz hegeliana, Dussel


não aborda a alteridade do Outro a partir de seu oposto dialético, no in-
terior da totalidade sistêmica. O Outro oprimido não reduz-se à negação
da identidade opressora, mas é aquele que fala por si, ainda que permane-
ça inaudível. Nessa perspectiva, a afirmação da mulher castrada, do jovem
adestrado, do trabalhador explorado etc., não se limita, respectivamente,

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a negar a identidade do macho falocêntrico, do educador elitista e do pro-
prietário capitalista, visando, em certa medida, ocupar o seu lugar. Cada
uma dessas figuras de alteridade instaura uma novidade – ou fecundidade
– superlativa de sentido que vem de “fora” e “além” da totalidade (conjugal,
familiar, social) vigente, trazendo a possibilidade de recomeço da história.
A insurgência da alteridade oprimida não inverte o seu lugar na totalidade
dialética, mas implode o fundamento desta.
Sendo assim, se em Dussel continua a vigorar a perspectiva dialética
– porque, afinal, trata-se ainda de negar a negação exercida pela opressão –,
seu pensamento precisa valer-se de outro método – por ele denominado
analético –,11 uma vez que, doravante, trata-se, também e sobretudo, de
afirmar a fecundidade de sentido propiciada pela palavra “bárbara”, clan-
destina, dessas figuras de alteridade portadoras da novidade u-tópica. O
método analético consiste em reler o mundo à luz da palavra do Outro
acolhida como fonte originária de sentido. A analética inscreve a ética – o
respeito e a responsabilidade pelo chamado de outrem – no coração do
próprio ato de pensar. Obriga, especialmente, a filosofia, tradicionalmente
instituída como “teoria” ou “visão do todo”, a romper a clausura contem-
plativa da totalidade imanente em que esteve aprisionada, para recomeçar
a dizer o mundo a partir da resposta reflexiva e crítica à palavra seminal dos
insurgentes da história.

A filosofia latino-americana é o pensar que sabe escutar discipu-


larmente a palavra analética, analógica do oprimido, que sabe
comprometer-se com o movimento ou com a mobilização, da
libertação e, no próprio caminhar, vai pensando a palavra revela-
dora que interpela à justiça; isto é, vai acedendo à interpretação
precisa de seu significado futuro. A filosofia, o filósofo, devolve
ao outro sua própria revelação, como renovada e re-criadora, crí-
tica, interpelante. O pensar filosófico não aquieta a história ex-
-pressando-a pensativamente para que possa ser arquivada nos
museus. (DUSSEL, 1986, p. 211)

11 “O método do qual queremos falar, o ana-lético, vai mais além, mais acima, vem de um nível
mais alto (aná-) que o mero método dia-lético”. (DUSSEL, 1986, p. 196)

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 49

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O método analético radicaliza a dimensão pedagógica intrínseca à
filosofia. No pensamento da libertação, trata-se, em sentido eminente, de
reaprender a aprender. Não somente aprender pela renúncia a tomar a si
mesmo como centro e medida de todas as coisas, deixando-se ensinar pelos
fenômenos a partir do modo como estes se mostram por si mesmos; mas,
sobretudo, aprender pela renúncia a fechar-se ciosamente sobre si mesmo,
em circunspecta autarquia, para deixar-se ensinar pela palavra magistral
dos insurgentes da história. Não somente, portanto, aprender pela disposi-
ção fenomenológica de corresponder ao sentido dos fenômenos, mas pela
disposição dialógica de responder ao chamado de outrem. Em suma, a pe-
dagogia analética de libertação implica a libertação da própria Filosofia:

O filósofo, racionalidade atual, reflexa, autêntica, sabe que o co-


meço é con-fiança, fé, no magistério e na verdade do outro: hoje
é con-fiança na mulher, na criança, no operário, no subdesenvol-
vido, em uma palavra, no pobre: ele, o aluno, tem o magistério, a
pro-vocação analógica; ele tem o tema a ser pensado: sua palavra
revelante deve ser criada, ou não haverá filosofia e sim sofística
dominadora. […] A filosofia assim entendida […] é propriamente
uma pedagógica: relação mestre-discípulo, no método de saber
crer a palavra do outro e interpretá-la. O filósofo para ser o futu-
ro mestre deve começar por ser o discípulo atual do futuro dis-
cípulo. Tudo depende disso. Por isso, essa pedagógica analética
(não somente dialética da totalidade ontológica) é da libertação.
A libertação é a condição para o mestre ser mestre. Se é um
escravo da totalidade fechada, nada pode realmente interpretar.
O que lhe permite libertar-se da totalidade para ser a si mesmo é
a palavra analética ou magistral do discípulo (seu filho, seu povo,
seus alunos: o pobre). Esta palavra analógica abre-lhe a porta da
sua libertação: mostra-lhe qual deve ser seu compromisso pela
libertação prática do outro. (DUSSEL, 1986, p. 209-210)

Ao trazer à luz a exterioridade dos povos latino-americanos face


às civilizações hegemônicas do Norte, a pedagogia analética da libertação
contribui para o nascimento da filosofia latino-americana no concerto do
pensamento mundial: “A categoria de fecundidade na alteridade deixa lugar
meta-físico para que a voz da América Latina seja ouvida”. (DUSSEL, 1986,
p. 210) Aqui, “fecundidade” é uma categoria da maior importância para

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marcar a distinção do pensamento latino-americano em relação à filosofia
de matriz ocidental moderna-iluminista. Com efeito, enquanto esta opera
com a razão crítica, cuja lucidez consiste em mover uma reflexão radical
a fim de exigir a devida legitimação de crenças, ideias, valores ou insti-
tuições;12 o pensamento “fecundo” da libertação,13 situado na periferia da
totalidade ocidental, ausculta o sentido que germina na voz suprimida do
povo – como interpelação ética – e em sua memória recalcada – como cria-
ção cultural. Enquanto a razão crítica trabalha para destituir o que se esva-
ziou de sentido, demolindo ruínas (conceituais, institucionais) assentadas
sobre fundamentos frágeis; o pensamento fecundo contribui para trazer à
luz a potência de sentido velada ou reprimida. A razão crítica é desconstru-
tiva, o pensamento fecundo é gerador. A razão crítica opera com uma peda-
gogia da autonomia, que confia à reflexividade do sujeito o protagonismo
na busca do sentido. O pensamento fecundo vale-se de uma pedagogia da
relação, que confia na palavra magistral do Outro; e de uma pedagogia
do pertencimento, que se deixa formar pelo legado sapiencial recolhi-
do na memória ancestral do povo. A razão crítica é insurgente em nível
dialético – opõe-se à identidade opressora; o pensamento fecundo é in-
surgente em nível analético – transcende a totalidade totalitária. A razão
crítica livra-se do passado ultrapassado. O pensamento fecundo secunda
o advento do novo.
Não obstante a “fecundidade” – ética e cultural – seja sua marca
distintiva, a filosofia latino-americana não renuncia ao legado crítico ilumi-
nista. É fecunda e crítica, analética e dialética, criadora e desconstrutiva.
Com sua hermenêutica das “vozes latino-americanas”, segundo Dussel, a
filosofia latino-americana é um momento novo e analógico da história da
filosofia mundial. Novo, por aportar uma distinção única a partir do “nada”
de sua exterioridade histórica, fazendo o pensamento ocidental reaprender
a falar de novo. E analógica, por retomar o “semelhante” entregue pela his-
tória da filosofia ocidental, da qual, a seu modo, passa a fazer parte.

12 Sobre os limites da razão iluminista, cf. Gadamer (2011, p. 361).


13 Sobre o “pensamento fecundo” e sua distinção em relação à racionalidade moderna, cf.
Santos (2013).

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 51

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A filosofia de um filósofo autêntico, a filosofia de um povo como
o latino-americano, é analogicamente semelhante (e por isso é
uma etapa da única história da filosofia) e dis-tinta (e por isso,
é única, original, inimitável, outro de todo outro, porque pensa
a voz única de um novo outro: a voz latino-americana, palavra
sempre reveladora e nunca ouvida nem interpretada). (DUSSEL,
1986, p. 210)

TRANSMODERNIDADE
A partir de fins da década de 1970, exilado no México em de-
corrência de um atentado a bomba perpetrado pela extrema direita ar-
gentina, Dussel alarga significativamente seu horizonte de interlocução
filosófica, passando a estreitar parceria com intelectuais críticos de todo
mundo, em especial de países pós-coloniais da América Latina, África e
Ásia. A amplitude épica de seu pensamento chegará, nessa altura, ao pon-
to mais alto. Desde então, engaja-se na construção de um diálogo institu-
cional entre filósofos do Sul, prévio ao diálogo Sul-Norte, no sentido de
abrir caminho a uma filosofia futura planetária, liberta da subordinação
exclusiva à tradição ocidental moderna. Tal projeto articula-se a uma crí-
tica da colonialidade filosófica vigente nos meios acadêmicos dos países
pós-coloniais, a qual limita a produção local à mera reprodução das filoso-
fias do Norte, e deriva, por sua vez, da colonialidade do poder imposta há
séculos aos povos do Sul, consubstanciada na dominação econômico-po-
lítica metropolitana, no mito da modernidade como narrativa civilizatória
e na cultura eurocêntrica. Nessa perspectiva colonial, inserir-se no siste-
ma de mercado capitalista, organizar a sociedade segundo as instituições
modernas e pensar em conformidade com a mentalidade dos países do
Norte, seriam requisitos necessários para um povo ascender à civilização
em sentido próprio. Assim, a conquista colonial não estaria completa se,
à violência econômica, política e militar sobre os povos originários, não
se somasse a violência simbólica que os faz pensar a colonização – ou
modernização – e, portanto, a renúncia à sua própria cultura nativa, como
via de humanização.
Não obstante uma ingênua presunção “etnocêntrica” faça parte,
nalgum nível, de toda cultura humana, pela irresistível tendência a pensar

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que o mundo gira em torno de cada um, o eurocentrismo diferencia-se
por constituir um etnocentrismo em escala mundial, uma vez que a civili-
zação europeia moderna veio a extrapolar os limites territoriais do Velho
Mundo para identificar-se com o sistema-mundo. Desse ponto de vista, o
eurocentrismo parece justificar-se porque, de fato, por toda parte, a cultura
europeia/norte-americana sobrepõe-se às culturas locais, e a modernidade
ocidental cobre toda a aldeia global. Sair da cultura moderna se assemelha-
ria, então, a abandonar o próprio mundo.
O discurso filosófico não ficaria imune a essa pressão da coloniali-
dade do poder. Na periferia do Sul, a colonialidade filosófica apresenta-se
como subordinação à pretensa universalidade da filosofia europeia/norte-
-americana, em parte devido ao desconhecimento ou desvalorização das
próprias tradições regionais de pensamento, levando ao que Dussel chama
de “eclipse das filosofias do Sul” (DUSSEL, 2015, p. 85) e relegando os filó-
sofos locais ao papel subalterno de comentadores dos textos canônicos da
tradição filosófica ocidental, cuja fundação remontaria ao “milagre grego”.
Superar a visão eurocêntrica torna-se, pois, um dos primeiros objetivos a
ser alcançado pelo diálogo filosófico Sul-Sul, a fim de se inaugurar uma
nova etapa na história da Filosofia, marcada pela simetria entre os interlo-
cutores e pela autonomia criadora de suas filosofias. Para tanto, é preciso
preliminarmente desconstruir a “falácia de desubiquidade”, que consiste
em tomar o espaço de outrem como o próprio, confundindo o mundo do
colonizador com a realidade em si mesma.
Apropriar-se do mundo da vida do qual se foi alienado, pensar a par-
tir de acontecimentos sociais e narrativas sapienciais advindos do próprio
contexto, torna-se condição de possibilidade de um pensamento apto a
participar do diálogo mundial, cuja palavra tenha algo novo a dizer. Isto
não significa, segundo Dussel, recuar a um fundamentalismo anti-europeu,
nem acomodar-se à mera repetição das tradições ancestrais. A filosofia
pós-colonial do Sul, aqui esboçada, não é reativa, provinciana ou nostálgi-
ca. Não fica presa ao cerco identitário. Precisamente enquanto hermenêutica
das narrativas tradicionais, apropria-se reflexivamente destas, questionan-
do-as à luz do tempo presente e servindo-se do que há de mais rigoro-
so, lúcido, atualizado, nas filosofias do Norte. Ela dialoga com a tradição
ocidental moderna. É crítica e fecunda, descolonial e sapiencial, inventiva

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 53

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e rememorativa, moderna e tradicional – ou, a rigor, nem propriamente
moderna, nem tradicional.

Quem domina sua própria tradição regional do Sul e usa metodo-


logicamente os últimos achados da filosofia europeia ou norte-a-
mericana no esclarecimento de sua atualidade regional ou local
do Sul, aportará novas reflexões filosóficas, descreverá temas des-
conhecidos, pertinentes e poderá ser ponta de lança num pensa-
mento filosófico bem fundado e inovador. (DUSSEL, 2015, p. 98)

Ao destituir o protagonismo exclusivo das filosofias do Norte em


nível mundial, o diálogo inter-filosófico Sul-Sul promove a participação, em
condições simétricas, de vozes filosóficas insurgentes, a partir da apropria-
ção crítico-criadora das fontes sapienciais de seus povos de origem. Assume
a pedagogia analética como regime de produção intelectual. Descortina, as-
sim, em nível filosófico, um horizonte para além da universalidade unívoca
e monocultural da civilização moderna, que já anuncia a possibilidade de
uma nova idade da história humana.

Pensamos estar na antessala de uma Nova Idade da história, dado


o esgotamento das premissas da Modernidade. Não se trata de
uma situação pós-moderna (só válida para Europa), senão de um
momento de mudança radical do fundamento cultural do ethos
moderno. Propomos, então, sob a denominação de Transmoder-
nidade (na falta de outra palavra), o horizonte que se abre ante
nossos olhos. Trata-se não de uma nova etapa da Modernidade,
mas de uma Nova Idade do mundo, mais além dos supostos da
modernidade, do capitalismo, do eurocentrismo e do colonialis-
mo. Uma idade na qual os requerimentos da existência de vida na
Terra terão exigido mudar a atitude ontológica ante a existência
da natureza, do trabalho, da propriedade, das outras culturas.
Nessa transmodernidade, a humanidade não se internará na uni-
versalidade unívoca de uma só cultura – que se imporia a todas as
demais, extinguindo-as –, universalidade fruto de um processo de
identidade excludente, senão que será um pluriverso no qual cada
cultura dialogará com as outras a partir da ‘semelhança’ comum,
recriando continuamente sua própria “distinção” analógica, ver-
tendo-se num espaço dialógico, mutuamente criativo. (DUSSEL,
2015, p. 100-101)

54 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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O prefixo “trans” não indica, aqui, a pretensão de superar ou ultra-
passar a modernidade de modo linear, deixando-a para trás, tal como a pró-
pria modernidade pretendeu fazê-lo com as outras civilizações e estágios
da história que a antecederam. Isto significaria, em certo sentido, pretender
ser “ainda mais” que a modernidade, o que terminaria por consagrar o ideal
moderno de “progresso” como critério axiológico. A transmodernidade não
significa um progresso em relação à modernidade, mas, bem ao invés, jus-
tamente a recusa da modernidade como fundamento unívoco da civilização
humana, e do progresso como sentido unívoco da história. Significa recusar
a modernidade como “a” civilização para dialogar com ela enquanto “uma”
cultura – ainda que hegemônica – entre tantas outras. Assim, para que não
haja confusão sobre o que significa esse “além” da modernidade anunciado
no termo “transmodernidade”, o prefixo “trans” bem poderia ser traduzido
como “outro”, no sentido de que a transmodernidade abre um horizonte
outro que a modernidade, exterior a ela, fora de sua totalidade, aberto ao
infinito de possibilidades dos outros mundos.
Tal perspectiva transmoderna, pluriversa e intercultural, articula
de modo persuasivo a tensão entre singularidade cultural e alteridade éti-
ca, mencionada mais acima. Com efeito, doravante trata-se de assumir a
própria distinção – a própria fala – a partir do pertencimento seminal à
comunidade de origem; e de saber-se interpelado pela palavra dos outros
que questiona, ensina, ordena à justiça. Trata-se de nascer para as próprias
possibilidades, de enriquecer a pluralidade do mundo, e de transcender-se
para a alteridade de outrem, acolhendo-o na morada comum. Trata-se de
suportar a potência criadora que pede passagem através de si mesmo, e de
deixar-se transfigurar pelo infinito de sentido revelado na alteridade invio-
lável de outrem. Nessa pedagogia analética intercultural, nem a afirmação
cultural de si mesmo deriva em clausura identitária, nem a relação ética
com a alteridade implica em castração de si mesmo, como se uma mesma
fecundidade hermenêutica articulasse o diálogo entre essas dimensões e
discernisse o seu respectivo sentido. Em suma, o espaço dialógico da civili-
zação transmoderna é “mutuamente criador”.
No paradigma civilizatório de transmodernidade, encontra sua me-
lhor tradução a voz épica que inspirou a vida, o pensamento e a obra de
Enrique Dussel.

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO DA FILOSOFIA 55

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 55 29/08/2019 06:33


REFERÊNCIAS
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56 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE
ENRIQUE DUSSEL: LA HISTORIA DE INAKAYAL
Y LO QUE LA PEDAGOGÍA NOS NEGÓ
Nadia Heredia

INTRODUCCIÓN
Inicio estas páginas intentando llegar aún más allá de mis palabras.
Inicio este recorrido intentando escuchar y escucharme en las voces de
otras generaciones. Generaciones que me antecedieron, que me han po-
sicionado hoy en los lugares que estoy y que soy, siempre propensos a su
transformación. Inicio esta reflexión pensando en mis abuelas, en mis orí-
genes, en las mujeres que me conforman. Mujeres por las cuales soy.
Mestiza de manual: mitad de las raíces mapuces, la otra mitad es-
pañola. El Pueblo Nación Mapuce se hallaba localizado al Sur de América
del Sur, antes de la llegada de los españoles. Fueron corridxs primero por
los Incas en su expansión territorial y luego por los Estados Nacionales en
los genocidios militares llevados a cabo en el Siglo XIX en Argentina y Chile
bajo el nombre de Conquista del desierto y Ocupación de la Araucanía,
respectivamente. Mi familia materna, que vivía al sur de lo que hoy es la
Provincia de Buenos Aires, quedó localizada a más de mil quinientos kiló-
metros de distancia, en la Patagonia Argentina, como resultado de la huída.
Sobrevivieron comiendo piñones, el fruto de la araucaria, en cuevas de una
ciudad llamada Aluminé. Eso cuenta mi madre, que le contó su abuela.
Del otro lado de mi historia, están lxs abuelxs corridxs por el hambre
de la post guerra europea. Abuelxs españoles de Córdoba, que buscando
quizás alguna cercanía con lo que se dejaba atrás, con lo perdido, eligieron

57

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instalarse en un lugar homónimo de Argentina, la Provincia de Córdoba.
De allí, mi abuela paterna, la historia de un tío mulato porque su mamá era
de descendencia africana y una tía abuela que dicen que viajó con libros.
Eso cuenta mi padre. Mi abuela paterna, de descendencia directa española
se llamaba María, por supuesto. Y así también me llamaron.
Pensando en qué compartirles en estas líneas, la resignificación de
las categorías dusselianas propuestas en su Pedagógica de la Liberación
resuenan en mí como un horizonte y un punto de partida. Inmersa en un
entramado ético-político, la Pedagógica es postulada por Dussel como una
de las primeras experiencias humanas que se dan sujeto a sujeto. Es una
relación generacional, y, por eso mismo, es el puente que me permitirá es-
tablecer nexos entre las Totalidades, entendidas como sistemas, que com-
partimos con las generaciones que me anteceden.
Pienso en mis abuelas, pienso en mis orígenes, y me pregunto ¿Qué
relaciones establecer dentro de la Totalidad que nos tocó vivir? ¿Qué diálo-
gos entablar para resituar una pedagógica situada, de Liberación en términos
dusselianos? ¿Qué cuestionamientos podría plantearle hoy a ese sistema de
Totalidad desde las categorías de una marco teórico crítico, como es la Filo-
sofía de la Liberación dusseliana?
En las páginas que siguen, situaré el surgimiento de la Filosofía de
la Liberación como movimiento filosófico, para que se entienda luego la
especificidad del planteo dusseliano de la Pedagógica de la Liberación. Es-
tablecidos estos marcos categoriales, analizaré los puntos centrales de los
principios ético-políticos que dan origen a la Pedagógica de la Liberación
de Enrique Dussel, para resignificar cuáles serían sus aportes para recrear
hoy una Educación no eurocéntrica y, a la vez, transmoderna que nos resi-
túe en un contexto histórico crítico o al menos filosóficamente problemati-
zado. Empecemos entonces.

INTRODUCIÉNDONOS A LA FILOSOFÍA
Y A LA PEDAGÓGICA DUSSELIANA
Para situar a modo de introducción, tanto la Filosofía de la Libera-
ción dusseliana, como su Pedagógica de la Liberación, iniciaré destacando
1

1 FL de ahora en más.

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que ambas tienen su origen en un momento histórico donde reflexionar
sobre la dupla liberación y dependencia era considerada una tarea urgente
y necesaria en las academias y la intelectualidad Latinoamericana.
A principio del Siglo XX, a través de las experiencias revoluciona-
rias Latinoamericanas, la “liberación” se transforma en una posibilidad con-
creta. En 1910, se produce el triunfo de la rebelión agraria liderada por
Emiliano Zapata que abate al dictador Porfirio Díaz en México. En 1959, la
Revolución Cubana liderada por Fidel Castro y Ernesto Guevara destituye
al dictador Fulgencio Batista. Estos son algunos de los antecedentes his-
tóricos que tanto la FL, como otras disciplinas del campo de las ciencias
sociales, toman como referencia para reflexionar críticamente acerca de las
posibilidades históricas concretas de trazar un rumbo distinto al propuesto
por los imperios de turno.
En Latinoamérica y el Caribe lxs oprimidxs se levantan enfrentan-
do las injusticias de los sistemas opresores, y triunfan. Y este hecho no
es tomado como una experiencia más en el devenir histórico, sino más
bien como una ruptura capaz de torcer los destinos coloniales prefijados
desde afuera, dirá Dussel. En este contexto, argumentar filosóficamente el
rol transformador de lxs sujetos históricamente oprimidxs de la Historia se
convierte en una de las tareas fundamentales que atraviesa todos los dis-
cursos de la Filosofía Latinoamericana del Siglo XX y el de la FL en particu-
lar. Debates como el sostenido por importantes referentes como Leopoldo
Zea, desde México, o Salazar Bondy, en Perú, plantean la necesidad de la
autenticidad de un pensamiento Latinoamericano frente a la universalidad
impuesta por el occidente. Pensar si es posible la existencia de una Filosofía
Latinoamericana, genera un contexto crítico donde el horizonte de debate
es postulado con claridad y contundencia: o se hace filosofía copiando o se
hace filosofía desde lo propio, aún cuestionando lo que propio signifique.
La Filosofía, si piensa, deberá pensar desde sus propios términos, desde su
propia realidad:

La filosofía […] porque es reflexión sobre su propia realidad parte


de lo que ya es, de su propio mundo, de su sistema, de su espa-
cialidad. Lo cierto es que pareciera que la Filosofía ha surgido
siempre en la periferia, como necesidad de pensarse a sí misma

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 59

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ante el centro y ante la exterioridad total, o simplemente ante el
futuro de liberación. (DUSSEL, 1977, p. 15)

En este sentido, ya en la década del 1970, la FL se sitúa en un punto


de partida político e ideológico fundacional distinto. Desde un principio,
“no pretende pensar solo las condiciones de posibilidad de una filosofía
latinoamericana. Ella es desde su comienzo, filosofía latinoamericana”.
(DUSSEL, 1973, p. 11)
Tomando como antecedentes teóricos la Teoría de la Dependencia, de
Cardoso y Faletto (CARDOSO; FALETTO, 1969), y la Teología de la Liberación,
de Gustavo Gutiérrez (1971), la FL toma al sujeto Latinoamericano a partir
de su dolor sacrificial inicial, es decir, inmerso en las relaciones de dominio
político, económico, erótico y pedagógico – en tanto culturales – que dan
inicio en 1492, momento en el que Dussel plantea que surge realmente la
Modernidad. La FL se convierte así en la primera experiencia de un Movi-
miento Filosófico que pone de relevancia la figura del Otro históricamente
oprimido por fuera de la ontología, resituándolo a partir de las mediaciones
como centro de un proyecto filosófico de Liberación:

Hasta este momento nuestro discurso ha sido como un resumen


de lo ya sabido. Desde ahora comienza un nuevo discurso, que
cuando sea implantado en su nivel político correspondiente y con
las mediaciones necesarias, […] podremos ahora sí decir que es
un nuevo discurso en la historia de la filosofía mundial. Esto no
se debe a nuestra poca o mucha inteligencia, se debe a que sim-
plemente cuando nos volvemos a la realidad, como exterioridad,
por el solo hecho de ser una realidad histórica nueva, la filosofía
que de ella se desprende, si es auténtica, no podrá menos que ser
igualmente nueva. Es la novedad de nuestros pueblos lo que se
debe reflejar como novedad filosófica y no a la inversa. (DUSSEL,
1977, p. 55)

Crítica de los discursos filosóficos que toman a Grecia como origen


y a Europa como centro, la FL postula la necesidad de partir de un pensa-
miento geopolíticamente situado, es decir, un pensar que reflexiona la rea-
lidad desde la periferia como fundamento de sentido. Si la filosofía europea
que Latinoamérica replicaba era básicamente ontológica y metafísica, la FL

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debía diferenciarse desde estos nuevos horizontes reflexivos. Debía pro-
nunciarse desde la exterioridad que denuncia:

Contra la ontología clásica del centro, desde Hegel hasta Marcu-


se, por nombrar lo más lúcido de Europa, se levanta una filosofía
de la liberación de la periferia, de los oprimidos, la sombra que
la luz del ser no ha podido iluminar. Desde el no-ser, la nada, el
otro, la exterioridad, el misterio de lo sin-sentido, partirá nuestro
pensar. Es entonces, una ‘filosofía bárbara’. (DUSSEL, 1977, p. 26)

Si bien la deconstrucción que Dussel realiza del pensar ontológico


y metafísico europeo es exhaustiva, no profundizaremos este punto. Pero
cabe aclarar que es en este momento en el que la FL se posiciona como
discurso emergente por fuera del discurso hegemónico europeo. Partiendo
de la “experiencia originaria2 del descubrimiento del ‘hecho’ masivo de la
dominación” (DUSSEL, 1998, p. 20), las categorías centrales de la Filosofía
y la Ética Levinasiana permiten incorporar desde un rol protagónico a los
sujetos históricamente excluidxs, y este es el principal interés de la FL de las
Historias oficializadas. Es en este contexto, y otros de no menor compleji-
dad, que Dussel se pregunta y nos interpela “¿Se dan cuenta que la filosofía
tiene una tarea urgente?”.

LA GEOPOLITIZACIÓN DE LA FILOSOFÍA COMO SUSTENTO


DE LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN
Tal como se mencionó anteriormente, Levinas es quien aporta la
base categorial que la FL utiliza para “politizar la ontología”. (DUSSEL,
1993, p. 142) La reinterpretación levinasiana de categorías como Totalidad,
Otredad, exterioridad, entre otras, desde las experiencias Latinoamericanas
de opresión y dominio, se tornan centrales para argumentar la Pedagógica
como una vuelta en contexto a nuestras historias negadas. Veremos el por
qué de su relevancia.
Precisamente, la noción de Otro que plantea Levinas como aquel que
queda fuera del sistema, o de todo orden entendido como una Totalidad, es
una de las categorías éticas centrales que recupera la FL Latinoamericana.

2 Subrayado en el texto original.

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Entendiendo Totalidad como todo sistema que cerrado sobre sí mismo ge-
nera inclusiones de lo Mismo, y exclusiones de lo distinto, el Otrx es el que
está situado en la exterioridad de este sistema. El Otrx, es quien queda fijado
más allá, externo, extranjero a lo que es considerado lo Mismo.
De esta forma, si en la ética levinasiana el Otrx negado es el pobre,
la viuda o el oprimido, desde Latinoamérica la Otredad cobra materialidad
en los múltiples rostros amerindios sistemáticamente negados. En-cubier-
tos, dirá Dussel, en clara respuesta a la falsa idea de “descubrimiento”
colonial.
Es esta perspectiva levinasiana la que permite a esta generación de
filósofxs que conforman el movimiento de la Filosofía de la Liberación en
general, y a Enrique Dussel en particular, ligar la filosofía con la realidad
política desde lxs oprimidxs:

Hasta este momento nuestro discurso ha sido como un resumen


de lo ya sabido. Desde ahora comienza un nuevo discurso, que
cuando sea implantado en su nivel político correspondiente y
con las mediaciones necesarias, que faltan en los filósofos del
centro que usan estas mismas categorías, podremos ahora sí de-
cir que es un nuevo discurso en la historia de la filosofía mundial.
(DUSSEL, 1977, p. 55)

Poner de manifiesto el nexo de lo ético con el nivel de lo político,


con las mediaciones necesarias, es lo que Dussel creativamente realiza a
través de una lectura geopolítica de las categorías éticas levinasianas.
Si la FL toma la ética como punto de partida, la política se torna
necesaria para explicar los motivos filosóficos que encubren y justifican la
dominación de América Latina. (GARCÍA, 2014, p. 228) Es decir, para Dussel
la interpelación del Otro a la Totalidad, desde la exterioridad, es la irrup-
ción del Otro negado en nuestra historia amerindia:

El otro, absolutamente otro, de Levinas es concretizado por me-


dio de la analogía: el otro es el indio empobrecido, el negro segre-
gado, el judío exterminado, el africano y asiático discriminado, la
mujer como objeto sexual, el niño o el joven manipulado por una
educación ideológica, etc. (GARCÍA, 2014, p. 229)

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A partir de esta reinterpretación dusseliana, la tarea de la filosofía
se vuelve urgente: se trata de ser por fuera de que nos dijeron que éramos.
Se trata de pensarnos, pero también de sentirnos, de mirarnos, de escu-
charnos, de empezar a hablar-nos desde nuestras voces, a sabiendas que
esa construcción ya es lo suficientemente compleja como para hacernos
caer en el simplismo de un “nosotrxs’’, siempre ficticio. Se trata de:

[…] volvemos a la realidad, como exterioridad, por el solo he-


cho de ser una realidad histórica nueva, la filosofía que de ella se
desprende, si es auténtica, no podrá menos que ser igualmente
nueva. Es la novedad de nuestros pueblos lo que se debe reflejar
como novedad filosófica y no a la inversa. (DUSSEL, 1977, p. 55)

Volvernos a la realidad como exterioridad, como novedad. Irrumpir


el orden establecido y de lo establecido. Eso es precisamente lo que genera
la irrupción de una nueva voz, nuestra voz, desde enunciaciones propias.
Es, en alguna medida, la irrupción de lo político (en una Totalidad Otra,
comprendida desde Otros abordajes geopolíticos e históricos) en el plano
de lo ético (que parte del reconocimiento de la voz de todo Otro negado).
La Pedagógica de la Liberación surge en este contexto como uno de
los tres tipos de relación sujeto-sujeto que Dussel desarrolla. Es la relación
que se da entre una generación y otra, entre lo que está y lo por-venir, siem-
pre dentro de un sistema, es decir, dentro de una determinada Totalidad.
De acuerdo con la FL dusseliana, hay tres tipos de relaciones sujeto-sujeto:
la primera experiencia es la erótica, la segunda relación es la pedagógica
y la tercera es la política. Veremos en lo que sigue de qué forma estos tres
niveles están intrínsecamente relacionados.

LA PEDAGÓGICA COMO PROPUESTA Y CRÍTICA DE


LA PEDAGOGÍA MODERNA
Pues bien, para abordar La Pedagógica dusseliana, el tema central
de este trabajo, partiré de una vivencia personal. Una situación que me in-
terpeló desde la enorme injusticia que rodeaba toda la sucesión de hechos
que comentaré a continuación.

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 63

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Tal como sucede con los encuentros que se dan entre Moctezuma
y Cortés a partir de 1492 en los relatos que Dussel nos trae en sus obras,
también consta en los archivos oficiales que los militares fueron tratados
con hospitalidad en sus primeras expediciones a los territorios de los pue-
blos originarios del sur de Argentina. Este fue precisamente el caso del
encuentro entre el cacique Inakayal, tal como lo nombran los documentos
de la época, y el militar conocido como Perito Moreno.
Inakayal era una autoridad en su comunidad Tehuelche, situada al
norte de la Provincia de Chubut, y en el año 1879 conoce al Perito Moreno.
Este ya formaba parte del ejército que llevaba adelante el proceso de ocupa-
ción de los territorios que pertenecían a los pueblos originarios, impulsada
por el entonces presidente Julio Argentino Roca. Denominada Conquista
del Desierto, esta ocupación militar y corrimiento de las comunidades ori-
ginarias hacia zonas en aquel entonces inhóspitas de la Cordillera de los
Andes, se realizó entre los años 1878 y 1879, en toda la extensión de lo que
se conoce como Patagonia, al sur de Argentina.
Sobre Inakayal se cuenta que en el año 1884, ya finalizada la Con-
quista del Desierto, es capturado como prisionero cuando voluntariamente
se presenta ante el Comandante Lasciar para negociar la situación de sus
territorios, ubicados ahora en las cercanías del Lago Nahuel Huapi, actual
Provincia de Río Negro.
Cuentan también que tras su captura es llevado, junto a su familia y
otrxs caciques, a la Isla Martín García, en la Provincia de Buenos Aires, don-
de todxs son obligados a realizar trabajo forzado. Y que es precisamente
en retribución a la hospitalidad ofrecida por Inakayal al Perito Moreno, este
lo “rescata” de este destino pidiendo su trasladado al Museo de Ciencias
Naturales de la ciudad de La Plata.
Allí eran exhibidxs como rarezas. De noche dormían todxs juntxs
en un sótano cerrado con candados, donde recibían la comida. De día
debían mantener limpio el lugar, realizar tareas que iban desde la crea-
ción de tejidos por parte de las mujeres, hasta la construcción del propio
edificio del Museo, por parte de los hombres. Obviamente, y sobre todo
por ser un Museo, también formaba parte de las obligaciones cotidianas
el dejarse retratar, pintar, observar y hasta tocar por lxs adeptxs visitantes
del Museo.

64 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Vivían en medio de restos óseos animales y humanos, pero el horror
no termina allí. A medida que iban muriendo, rápidamente el personal del
museo hacía su trabajo y lxs muertxs pasaban a ser exhibidxs en las vitrinas
del lugar. O más bien, sus restos óseos. Así Inakayal vio morir a muchxs de
sus familiares y a otrxs compañerxs capturadxs, para verlxs luego exhibidxs
a través de un vidrio.
Allí, más que vivir tras el “rescate”, iban muriendo. Inakayal aguantó
semejante tortura por dos años, que seguramente le deben haber parecido
siglos. Todo fue demasiado. Está registrado que en septiembre de 1888
Inakayal se suicidó. Antes de morir pronunció palabras en su lengua, que
nadie entendió. Miró al cielo, y luego un largo rato al sur del que fue arran-
cado, para finalmente tirarse escaleras abajo en el Museo de La Plata.
Pero la historia de Inakayal no termina ahí. Recién en el año 2001,
a través de la Ley 25.517 impulsada por el gobierno del presidente Nestor
Kirchner, se establece en Argentina que:

[…] deberán ser puestos a disposición de los pueblos indígenas


y/o comunidades de pertenencia que lo reclamen, los restos mor-
tales de aborígenes, que formen parte de museos y/o colecciones
públicas o privadas. (ARGENTINA, 2010)

Es así como, en el año 2006, antropólogxs forenses abocadxs a las


tareas de restitución de identidades que aún hoy atraviesan la Argentina,
pudieron identificar restos de Inakayal, que fueron restituidos a su comuni-
dad recién en el año 2014. Casi ciento treinta años después.
Pues bien, hasta ahí el relato sobre Inakayal. En las páginas que
siguen, para desarrollar las categorías centrales de la Pedagógica de la Libe-
ración dusseliana, la relacionaré con algunos elementos de análisis que se
desprenden de la historia de Inakayal.
Dussel plantea que lo pedagógico, a diferencia de la invención, que
es lo que se descubre por si mismo, tiene que ver con Otrxs, y más especí-
ficamente con lo que recibimos de otrxs. Es decir, como miembros de una
comunidad nos conformamos en un entramado de relaciones históricas,
éticas y políticas, y a través de la pedagógica ofrecemos a otras generacio-
nes aquello que consideramos fundante para definirnos social y comunita-
riamente. Nacemos por Otrxs y de Otrxs, y este hecho establece en el plano

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 65

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ético la primera relación que Dussel llama cara-a-cara. La segunda relación
que establecemos sujeto-sujeto, para Dussel, es la Pedagógica y la tercera
la Política.
Como se puede observar, este enfoque difiere de la definición clá-
sica de Pedagogía, entendida como la disciplina que aborda los temas re-
feridos a la enseñanza o el aprendizaje. Para Dussel, la pedagogía en sus
formulaciones clásicas no ha tomado en cuenta ni problematizado el entra-
mado de relaciones de dominio que van desde el plano erótico familiar (ma-
dre-padre/hijx), al plano político institucional (maestrx/estudiante). En este
sentido, la pedagogía clásica omite problematizar que en el mundo cultural
amerindiano marcado por la conquista del europeo “el varón conquistador
se transformó en padre opresor, en maestro dominador”. (DUSSEL, 1980, p. 18)
La Pedagógica dusseliana se presenta así como una crítica a las relaciones
de dominio que establecemos entre sujetos desde un anclaje histórico y
sobre todo, desde una perspectiva amerindia.
La historia de la captura de Inakayal, como resultado de la llamada
Conquista del Desierto, sucede casi cuatro siglos después de lo que Dus-
sel denominó como encubrimiento de América, en 1492, y sin embargo
también es un proceso militar hoy considerado como genocida. De hecho,
reproduce la misma lógica de exterminio sistemático, con pretensión de
dominio y opresión económica y política de lo que quede. Tal como suce-
dió en 1492, todo y todxs quienes fueron encontrados en el embate militar
expansionista fue negado, cuando no, eliminado. Al punto de llamar “con-
quista” al robo y la usurpación territorial blanca y “desierto” a territorios
ya habitados por numerosas comunidades de pueblos originarios Mapuces
y Tehuelches.
La reinterpretación de la Historia, en los términos que propone la
FL Latinoamericana en este punto se vuelve ontológicamente fundante, en
tanto remite a una hermenéutica que cuestiona el origen mismo de nuestro
ser como resultado de un proceso histórico de aculturación. Retomando las
palabras de Octavio Paz, Dussel nos dice sobre 1492:

[e] hijo de Malinche (la india que traiciona su cultura) y de Cortés


(el padre de la conquista y las virtudes del Estado dependiente,
porque Cortés no es el Rey), “no quiere ser ni indio, ni español.
Tampoco quiere descender de ellos. Los niega. Y no se afirma

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en tanto que mestizo, sino como abstracción: es un hombre. Se
vuelve hijo de la nada. (DUSSEL, 1980, p. 15-16)

Si la primera relación que establecemos como sujetos es ética y se


da a través del encuentro cara-a-cara, la pedagógica establecida como rela-
ción de dominación genera la idea de una procedencia de la nada, lineal y
unívoca en tanto construída por un solo discurso y una sola perspectiva. La
idea de un origen que niega y omite todo relato de violencia originaria y de
opresiones, produce una base identitaria débil. No hay Historia ni relacio-
nes de poder que la enmarquen ni problematicen. Se profundiza así la idea
de que somos sujetos provenientes de la nada:

Antes del hijo mestizo, erraron por América huérfanos amerin-


dianos, objeto de la dominación pedagógica: los conquistadores
‘vienen y extienden su poder sobre los huérfanos de madre, sobre
los huérfanos de padre’. (DUSSEL, 1980, p. 17)

Sobre este punto, Dussel llama nuestra atención sobre los clásicos
relatos de la Pedagogía moderna, que generalmente recurre a la imagen de
la tábula rasa a la hora de definir al sujeto. Desde el empirismo más básico,
hasta el ideal de hombre huérfano que plantea Rousseau en el Emilio, parten
de la idea de un pasado nulo, inexistente, enfocándose en proyectos edu-
cativos que miran siempre hacia adelante, con todo un mundo de sentidos
por “construir”.
Es en este momento en el que la propuesta de la Pedagógica dusse-
liana pone de relieve, para que puedan ser sometidos a crítica, los argumen-
tos histórico-filosóficos fundantes de estas relaciones de dominio, desde
una filosofía crítica Latinoamericana. Dentro de la arquitectónica dusselia-
na, la Pedagógica constituye el pasaje de la erótica a la política. (DUSSEL,
1980, p. 15) Pero para profundizar qué significa que la pedagógica es la
convergencia de lo erótico y político, Dussel propone la siguiente analogía:

la imagen del padre (la imago del padre y la madre, también como
maestro, médico, profesional, filósofo, cultura, Estado, etc.) pro-
longa su falocracia como agresión y dominación del hijo: el fi-
licidio. La muerte del hijo, el niño, la juventud, las generaciones
recientes por parte de las gerontocracias o burocracias es física

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 67

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(en la primera línea de los ejércitos o los sacrificios humanos),
simbólica o ideológica, pero es siempre un tipo de alienación,
dominación, aniquilación de Alteridad. (DUSSEL, 1980, p. 15)

Volvamos a la historia de Inakayal, y otrxs caciques cuyo destino no


fue tan trágico, pero que también sufrieron este fraticidio y filicidio. Los
niños son separados de sus padres y sus madres. Las mujeres y las niñas
son repartidas en las casas de los militares como servidumbre. En muchos
casos, como en la Provincia de Buenos Aires, esta entrega se realiza en las
plazas públicas. En palabras del historiador argentino Osvaldo Bayer com-
partimos el siguiente relato:

El diario El Nacional, de Buenos Aires, expresa en su edición del


31 de diciembre de 1878: ‘Llegan los indios prisioneros con sus
familias. La desesperación, el llanto no cesan. Se les quitan a las
madres sus hijos para en su presencia regalarlos, a pesar de los
gritos, los alaridos y las súplicas que hincadas y con los brazos al
cielo dirigen las mujeres indias. En aquel marco humano, unos
se tapan la cara, otros miran resignadamente al suelo, la madre
aprieta contra el seno al hijo de sus entrañas, el padre se cruza
por delante para defender a su familia de los avances de la civili-
zación’. Esta crónica de esos días lo dice todo. (BAYER, 2014)

Los niños son llevados a Escuelas donde son evangelizados y se les


enseñan oficios y trabajos de distinta complejidad. “La muerte del hijo, del
niño”, implica la posterior negación de la juventud de la cultura y la histo-
ria que le eran propias antes del dominio del llamado conquistador. Es así
como la falocracia erótica por mediación del filicidio pedagógico culmina en
el fratricidio político. (DUSSEL, 1980, p. 15)
Es en este sentido que la función concreta de la Pedagógica en un
esquema de praxis de liberación estará necesariamente relacionada con la
vuelta al protagonismo de las voces de la mujer como base de la pedagógica
amerindia (porque la pedagógica hispánica es la del padre), las voces de los
jóvenes ante la gerontocracia, y las voces de lxs niñxs ante el filicidio.
La docencia que hoy ejerzo como mi singular aporte en la transfor-
mación de nuestras realidades me hace repensar-me dentro de esas relacio-
nes generacionales de dominio que evidentemente se siguen planteando

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desde una continuidad de negaciones e invisibilizaciones. Con muchos in-
terrogantes aún por responder, no puedo dejar de preguntarme ¿Qué nos
impide dimensionar los niveles de violencia que tuvieron que vivir nuestros
pueblos originarios, conformados ya en Naciones, frente a la llegada de los
ejércitos invasores cuyo único interés era el dominio económico y político?
¿Cómo nos sigue llegando, a partir de lo que ofrecen nuestros discursos
educativos, el relato acerca de nuestros orígenes?
Se nos impone un mito civilizatorio, al decir de Dussel, se nos crea
un relato que realza las bondades de un supuesto progreso que solo oculta
la cruda y cruel violencia vivida por cada genocidio, enseñado en los relatos
oficiales como conquistas.
La imposición de un relato fundador ajeno nos construye y nos fija
desde lo que Enrique Dussel plantea como exterioridad. Esta imposición in-
terpretativa de los hechos promovida en los diferentes niveles de nuestros
sistemas educativos, se instala así política e ideológicamente en nuestras
construcciones identitarias como el momento que da inicio a la civilización
negando toda la Otra historia, que también somos.
Desde un posicionamiento geopolítico Latinoamericano, me dejo
interpelar por la pregunta que realizara José Martí acerca de cómo somos,
por fuera de lo que históricamente nos dijeron que éramos. ¿Cómo somos?
¿Quiénes somos? Preguntas filosóficas si las hay. Exigencia a dar cuenta del
ser. Necesidad de decirnos, de nombrarnos con voz propia, de sabernos
Otrxs. Negadxs, invisibilizadxs, en-cubiertxs y, por eso mismo, con todo
por decir.

INAKAYAL Y CÓMO SEGUIMOS…


Conocí la historia de Inakayal en un Congreso universitario de Inves-
tigación Educativa, no podía ser de otra manera. Vi su foto expuesta en una
muestra fotográfica que formaba parte del Congreso. Vi su rostro y los de
su familia, sus lugares de vida y de muerte, como muchxs otrxs ya lo habían
hecho. Expuesto. Expuestxs ante todas nuestras miradas.
Me surgió preguntarme ¿Qué lugares siguen ocupando estos cono-
cimientos en nuestras instituciones educativas? Tal como afirma Dussel en
la Pedagógica Latinoamericana todo “pro-yecto pedagógico de dominación

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 69

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siempre es fruto de violencia, de conquista, de represión del Otro como
otro”. (DUSSEL, 1980, p. 73) Estas palabras tomaron otro sentido cuando
luego de conocer la historia de Inakayal me doy cuenta que jamás había
escuchado siquiera de su existencia en ninguna de las instancias de mi edu-
cación formal, pero sí podía dar cuenta de quién era el Perito Moreno, por
ser un militar que goza de mucho reconocimiento en Argentina y es reivin-
dicado inclusive como prócer. Eso sí me lo enseñó la escuela.
Pienso en los relatos pedagógicos que me construyeron. Como ta-
rea de ruptura y muerte de la cotidianeidad, tal como nos exige la FL, me
vuelvo a mi comunidad. Descubro que muchas de las calles principales de
mi ciudad se llaman como los militares responsables de la muerte y captura
de Inakayal, y tantxs otrxs. Ninguna calle rememora a Inakayal, ni homena-
jea su memoria, siquiera por respeto a su dolor como hermano asesinado,
como vergüenza ante el fratricidio.
Quise saber y pregunté a una amiga, referente de las comuni-
dades mapuces urbanas del territorio que habito. Siempre generosa en
su saber, Pety3 me contó más sobre Inakayal y también sobre nuestras
historias. Me contó que Inakayal era su nombre, su identidad. Que los
nombres mapuces están generalmente conformados por palabras que
evocan fuerzas de la naturaleza o nombres de animales, que conectan a
la persona con su procedencia territorial y ancestral. Que generalmente
es uno y compuesto. Inakayal, tenía la marca de la conquista, previa a
la que terminó con su vida, en su propio nombre: lo llamaron Modesto.
Pienso en Inakayal. Las imágenes de su rostro me acompañarán por
largo tiempo. Seguí buscando información, como una forma de encontrar
explicaciones al horror. Quizás también como la forma que me enseñaron
para conocer. Encontré varias notas que relataban cómo el 19 de abril de
1994 parte de los restos de Inakayal fueron entregados a su comunidad en
la ciudad de Tecka, Chubut. Y digo parte de los restos, porque como un
dolor que aún no cesa, en el año 2006 estudiantes de antropología que con-
tinuaban las tareas de identificación, encontraron el corazón de Inakayal.
Lloré al leer esta noticia. Lloré porque, tal como sostiene Dussel, detrás de
cada rostro hay alguien. Lloré porque sentí la voz de Inakayal aún exigiendo

3 Kimeltufe/educadora. Autoridad política y espiritual del Pueblo Mapuce en Newken, Argentina.

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justicia, desde la exterioridad que la historia suele materializar en muchas
formas de olvido.
Recordé nuestra conversación con Pety acerca de cómo la impo-
sición de nombres funcionó como otra forma de opresión, otra forma de
dominación. Recordé los reclamos de mi madre, a su abuela mapuce que no
le enseñó hablar mapudungún, el idioma mapuce. Recordé el reclamo de
mi padre de las no respuestas al preguntar sobre sus orígenes. Demasiados
silencios. Silencios que desde una Pedagógica de la Liberación es necesario
darles voces, rostros y conectarlos hasta sentirnos parte de esas historias
negadas, aún por nosotrxs mismxs, tanto en el plano familiar, como en el
plano institucional político.
En medio de tanto dolor, una leve esperanza me atraviesa y se las
comparto como una forma de concluir este trabajo y como una forma de
continuar en la búsqueda incansable de concretar proyectos Pedagógicos
Liberadores basados en la justicia y en el reconocimiento ético y político
de todx Otrx. Inakayal es un nombre mapuce, me dijo Pety, y la raíz de esa
palabra es Ina… Que significa el que sigue, el que continúa.

REFERENCIAS
ARGENTINA. Congreso de la Nación Argentina. Lei n. 25.517. Argentina:
Honorable Congreso de la Nación Argentina, 21 nov. 2010.
BAYER, O. La otra historia. Página 12, 8 nov. 2014. Disponible en: https://www.
pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-259378-2014-11-08.html.
GARCÍA RUÍZ, P. Geopolítica de la alteridad: Levinas y la filosofía de la liberación
de E. Dussel. Isegoría, n. 51, p. 777-792, jul.-dic. 2014.
DUSSEL, E. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1977.
DUSSEL, E. La pedagógica Latinoamericana. Bogotá: Nueva América, 1980.
DUSSEL, E. Apel, ricoeur, rorty y la filosofía de la liberación con respuestas de Karl-Otto
Apel y Paul Ricoeur. Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 1993.
DUSSEL, E. Introducción a la filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1995.
DUSSEL, E. Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión.
México: UNAM/Itzapalapa, F.C.E, 1998.
GUTIÉRREZ, G. Teología de la liberación: perspectivas. Lima: Sígueme, 1971.

LA PEDAGÓGICA DE LA LIBERACIÓN DE ENRIQUE DUSSEL 71

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SUJEITOS QUE OBJETIVAM, OBJETOS QUE ASSUJEITAM:
INSURGÊNCIA E FORMAÇÃO POLÍTICA
Laurenio Leite Sombra

No Brasil, tem sido recorrente a percepção de que temos uma de-


sigualdade fundadora, que é basilar para a explicação de diversas mazelas
de ordem política, especialmente o pacto antipopular que sistematicamen-
te boicota ações que tentam, em alguma medida, reverter essa condição.
(SOUZA, 2017) Essa percepção costuma vir acompanhada de uma angústia
pelas insuficientes reações populares, dado o histórico brasileiro que colo-
ca a maior parte da nossa população na condição de “homem espectador”,
incapaz de atitude que a permita, de modo suficiente, colocar-se como
agente ativo, crítico e transformador da realidade. (FREIRE, 1967)
O contexto dos anos 1960, diagnosticado por Paulo Freire em meio
ao golpe civil-militar, que rompeu a expectativa de transformação em cur-
so da realidade brasileira, remete ao contexto atual, apesar das profundas
diferenças. Hoje, como antes, está presente a percepção de que qualquer
tipo de projeto transformador de educação tem de estar intrinsecamente
associado a uma formação política. Foi exatamente isso o que Paulo Freire
defendeu em toda a sua vida. Para ele, esta articulação (educação e política)
nunca poderia se dar pelo modo da cooptação, mas num contexto efetiva-
mente libertador.

O processo de libertação de um povo não se dá, em termos pro-


fundos e autênticos, se esse povo não reconquista a sua palavra,

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o direito de dizê-la, de ‘pronunciar’ e de ‘nomear’ o mundo. Dizer
a palavra enquanto ter voz na transformação e recriação de sua
sociedade: dizer a palavra enquanto libertar consigo sua língua da
supremacia da língua dominante do colonizador. (FREIRE, 1978,
p. 135)

A ideia de libertação, aqui, é fundamental, e ela também permeia


toda a obra de Freire. Para ele, a condição humana é intrinsecamente asso-
ciada à liberdade, embora esta não esteja dada; precisa ser conquistada. E
esta conquista está diretamente associada à assunção do ser humano como
sujeito, em sua relação com os outros e com o mundo, processo inerente
justamente à sua formação e a uma aquisição de conhecimento. Aqui se
instaura uma complexa relação sujeito-objeto, que é fundamental para a
formação e a conscientização. Freire (1981, p. 114) fala, por exemplo, em
um “reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta)
e do objeto como situação em que está o sujeito” e diz que “este movimen-
to de ida e volta […] conduz à superação da abstração como a percepção
crítica do concreto, já agora não mais como realidade espessa e pouco vis-
lumbrada”.
A relação dialética entre sujeito e objeto é uma temática tipicamen-
te hegeliana. Apropriada ao pensamento marxista, enriqueceu fortemente
o vocabulário em torno de questões fundamentais que incluíram outros
termos de acordo com o tempo e com o autor, como a relação entre liberda-
de e determinação, agência e estrutura, identidade e diferença. Talvez sua
ênfase no pensamento marxista tenha sido iniciada por Lukács, a partir do
seu livro História e consciência de classe, de 1923, que pode ser considerado
uma espécie de livro original do chamado marxismo ocidental.1 (JAY, 1984)
O filósofo húngaro assumia a dialética como um processo eminentemente
humano e diretamente associado à relação entre sujeito e objeto. Para Lu-
kács (2003, p. 67), “a relação dialética entre sujeito e objeto no processo
da história” é justamente “o aspecto mais essencial dessa ação recíproca”.

1 Esta terminologia, algo vaga, aborda a produção intelectual de autores marxistas, principal-
mente da Europa Ocidental, em contraposição à produção diretamente associada aos países
da Europa Oriental, especialmente do mundo soviético. Pode parecer estranha a inclusão de
um pensado húngaro na origem dessa classificação, mas Lukács é profundamente vinculado
à cultura alemã e ocidental de um modo geral, tendo influenciado fortemente autores poste-
riores, inclusive da Escola de Frankfurt. (JAY, 1984)

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Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 74 29/08/2019 06:33


Sem dúvida, Paulo Freire bebeu dessa tradição iniciada por Lukács,
embora tenha ido para além dela. Só num livro como Pedagogia do oprimi-
do (1974), podemos vê-lo citando diversos autores desse campo, como o
próprio Lukács, mas também Erich Fromm, Herbert Marcuse, Simone de
Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Lucien Goldmann e Louis Althusser. Não cita,
contudo, Adorno e sua Dialética negativa (2009), livro publicado em 1966 e
que radicalizaria a reflexão sobre a relação sujeito e objeto, com importan-
tes desdobramentos posteriores, como se verá.
Colocar a questão da relação entre sujeito e objeto nesses termos já
não é apenas uma questão epistemológica, embora se desdobre nela. Como
já observara um jovem Marcuse, então aluno de Heidegger, o grande desa-
fio a se consumar é a realização de uma “fenomenologia do materialismo
histórico” (MARCUSE, 2005) que permita desvelar ontologicamente concei-
tos fundamentais da condição humana, do Dasein heideggeriano, de modo
a investigar em suas bases a relação marxista entre sujeito e objeto, e os
seus desdobramentos. É o sentido de uma investigação ontológica, sob um
fundo fenomenológico, da relação entre sujeito e objeto, que se pretende
avançar aqui. Se os pressupostos eventualmente vão além da perspectiva
filosófica de Freire, a pergunta que conduz a investigação é eminentemente
freireana: como pensar a possibilidade de uma população crítica, base para
uma insurgência popular efetivamente democrática?

OS SUJEITOS, OS OBJETOS QUE OS ATRAVESSAM,


AS RELAÇÕES QUE OS CONSTITUEM
Esta investigação deve, de início, eliminar uma equivocidade: ela
não trata as concepções de sujeito e objeto precisamente nos termos de
Martin Heidegger (2006a). Para o filósofo alemão, estes conceitos só fa-
zem sentido para pensar a modernidade (ocidental). Foi a partir dela que
o ser humano foi alçado à condição de subjectum, aquele que subjaz, que
serve de sustentação às determinações ontológicas, epistemológicas, po-
líticas, estéticas e morais. Só frente ao que se apresenta como subjetctum
nestas condições é possível pensar o que se antepõe a ele, o objeto. Como
o humano apreendido pela modernidade é a base de sustentação, o que
se apresenta como “objeto” irá se constituir em função dele, a partir dos

SUJEITOS QUE OBJETIVAM, OBJETOS QUE ASSUJEITAM 75

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seus parâmetros. Nesse sentido, o objeto tende a ser esquadrinhado, con-
trolado, dominado, mensurado. A relação sujeito-objeto, nesses termos,
inaugura um modo particular de pensar o mundo ao seu redor (natureza,
matéria, corpo, animalidade), mas também um modo particular de pensar
a condição humana, justamente por representá-la em franca oposição a
esses elementos (cultura, espírito, mente). A dualidade que decorre des-
sa visão pode, inclusive, derivar para certo monismo das “ciências duras”
contemporâneas que, esvaziando a subjetividade do seu olhar, mantêm a
pura objetividade do seu campo de observação. Ou, inversamente, para um
subjetivismo exacerbado, certo privilégio das emoções e ao mesmo tempo
certa tentativa de “humanizar” a natureza, de tratá-la “espiritualmente” e/
ou como algo inerentemente bom, aspectos que foram ressaltados a partir
do advento do romantismo, numa perspectiva que não se encerrou num
dado momento histórico, mas que é ainda presente. Assim, objetivismo e
subjetivismo são duas vertentes cada vez mais patentes da relação sujeito-
-objeto desencadeada pela modernidade. (HEIDEGGER, 2006b)
Mas, uma vez conferida a especificidade deste período histórico, é
possível ir além dele. O ser humano, em qualquer época, sempre teve uma
plasticidade cultural que o colocava numa condição de abertura para além
dos “fatores externos” que o cercam; inversamente, esses mesmos fatores
(o mundo natural e mesmo as objetivações do mundo social) foram fun-
damentais para a sua própria constituição humana. Estes dois elementos
estão profunda e dialeticamente articulados, mas há uma perda conceitual
se o desconsiderarmos em sua diferenciação. Usando-se este outro vocabu-
lário, que já não caberia na filosofia de Heidegger, pensar sujeito e objeto
em sua diferenciação é pensar na própria condição humana. A modernidade
apenas teria abstraído e cristalizado a relação sujeito-objeto, reificando-a,
mas não pode ser considerada a iniciadora dela.
Além (ou aquém) da modernidade, é necessário compreender mais
profundamente o significado dessa condição dupla e dessa relação (sujeito-
-objeto). Em certa medida, o ser humano é um ente natural, como qualquer
outro. É um animal. Como tal, tem um corpo, morre, adoece, necessita de
alimentos e tem diversas outras necessidades primárias (sono, sexo, entre
outras). Como tal, é afetado de modo permanente pela natureza, pelo cli-
ma, pela vegetação, pelos outros animais, pelo próprio corpo. Tudo isso

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influencia diretamente a própria percepção de mundo do animal humano,
constitui a sua affectio, suas emoções. Ele sente medo, desejo de lutar, de
fugir, de explorar o mundo, de compartilhar com os seus congêneres.
Mas o ser humano também é mais que isso, também é um “animal
cultural”. (PARÍS, 2002) Sem dúvida alguma, isto significa uma plasticidade
diferenciada, uma amplitude inédita de comportamento. Por mais que haja
“universais” na constituição humana, o humano é acima de tudo um ser
histórico e geográfico, a cada tempo e lugar empreende soluções diferen-
tes, desenvolve culturas diferentes, habita o mundo sob uma perspectiva
particular.
Estes dois aspectos estão profundamente imbricados. A constitui-
ção do mundo humano é sempre fruto de uma mediação com o “mundo
objetivo” que a ele se manifesta, com as necessidades que ele detecta, com
o que ele entende ser necessário para forjar um mundo possível e imagina-
do no qual possa habitar. Esta mediação propicia uma categoria própria ao
ser humano e social que Marx nomeou como práxis a partir das Teses sobre
Feuerbach: uma postura ativa do ser humano, uma atividade “prático-crítica”
que transforma a realidade. Segundo Marx (1998, p. 100), “a doutrina mate-
rialista que pretende que os homens sejam produtos das circunstâncias e da
educação […] esquece que são precisamente os homens que transformam
as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado”. Esta pos-
tura ativa, Marx se apressa em dizer, não é produto do indivíduo isolado,
mas de sua constituição social. Esses dois aspectos, a transformação ativa
da natureza e as relações sociais estabelecidas nessa transformação, for-
mam a base do pensamento marxista.
O ser humano, em permanente mediação com a natureza, constitui
“mundos” inéditos nos quais habita. A estes mundos pertence uma comple-
xidade profunda de relações: a própria natureza, os instrumentos forjados,
os sistemas linguísticos, as instituições criadas, as identidade sociais, assim
como as diversas práticas estabelecidas, as relações simbólicas, o modo de
relações humanas, o modo de operar com os instrumentos e lidar com a
própria natureza, bem como rituais e narrativas que o ajudam a consolidar-
-se neste mundo. Tudo, enfim, que comporta uma vida cultural.
Para que esses mundos sejam viáveis, é fundamental que eles ga-
nhem alguma fixidez. Os diversos elementos que o compõem, instrumen-

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tos, signos, símbolos, ritos, narrativas, bem como as relações entre eles,
devem comportar uma relativa estabilidade que permita, a cada dia, que
as pessoas vivam o mesmo mundo que no dia anterior. Esta estabilidade
propicia uma identidade a esses elementos e à relação entre eles, e propicia
uma identidade ao próprio mundo vivido sob esta condição. Claro, não é
uma identidade “natural”, mas formada socialmente por diversas relações
de poder, por um tipo de formação reprodutora que permite que se forje
um mundo e, historicamente, uma tradição, algo que pode ser legado aos
que virão e que permita a ambiência de um mundo vivido. Produz-se, assim,
um tipo de objetividade social. Não é mais apenas a objetividade do mundo
natural, mas todo um arcabouço cultural que antecede a cada indivíduo e
com o qual ele lida, na maior parte das vezes, como uma “segunda nature-
za”, como se fosse o modo possível de se viver.
Mas é uma identidade sempre passível de transformação, por al-
guns motivos diferentes e complementares. Primeiro, a objetividade que
se conforma a partir da mediação com a natureza é sempre dinâmica: a
natureza muda, as populações se transformam, novos instrumentos são for-
jados, as instituições se desenvolvem. Segundo, porque os próprios grupos
sociais que vivem sob esse mundo podem disputá-lo a partir de interesses
diferenciados e, nessa disputa, começam a rejeitar certas configurações do
mundo vigente, lutando para transformá-lo. Terceiro, porque a expansão
humana põe grupos sociais em contato com outros grupos que vivem em
diferentes configurações objetivas, o que suscita enfrentamentos, negocia-
ções, dominação, submissão.
Esses fatores reunidos podem propiciar uma negação da identidade
laboriosamente forjada, pondo em risco, a depender do grau de negação
envolvido, a estabilidade anteriormente estabelecida. Os mundos vividos
entram em crise. Esta crise exigirá outros fenômenos sociais, outras me-
diações com a natureza e com a objetividade anteriormente estabelecida,
até a eventual produção de novas identidades, nova estabilidade possível.
Em última instância, esta é uma descrição possível da transforma-
ção dialética, embora evitando o jargão típico dela. A dialética, um modo
de pensamento que tenta se apropriar dos fenômenos e suas transforma-
ções, trafega entre a estabilidade, a sua negação e a sua “suprassunção”
(Aufhebung) que produz novas estabilidades, novas negações, novas objeti-

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vidades. Este processo exige uma dinâmica complexa em torno da relação
sujeito-objeto.
Nesses termos, podemos estabelecer dois “tipos ideais”, duas
abordagens diametralmente opostas para a compreensão dos processos
dialéticos. O primeiro deles foca na “negação da negação”, na objetivação
produzida pelo processo dialético, como referência fundamental para as
contradições e a instabilidade que antecedem esta objetivação. O pensa-
mento hegeliano, especialmente na sua obra madura, deu grande ênfase
a esse enfoque, que poderíamos chamar “objetivista”. O espírito se realiza
cada vez mais em “ideia absoluta” e constitui uma totalidade sistêmica e ra-
cional que a tudo abarca. Na Filosofia do direito, Hegel (1997, p. XXXVI) dizia,
a partir de Platão: “o que é racional é real e o que é real é racional”. Nesta
formulação, não parece haver aspecto da realidade que não possa ser ra-
cionalizável, abarcado pelo grande “sistema” da dialética. Essa perspectiva
deriva, na Enciclopédia das ciências filosófica, para uma espécie de “pandialé-
tica”, que integra lógica, espírito e natureza em um grande sistema. Nesse
contexto, o desenvolvimento humano é apenas o fenômeno mais visível do
desenvolvimento da “liberdade” (que é a ao mesmo tempo necessidade) do
espírito absoluto.
Esta primeira abordagem, na qual o ápice do sujeito deriva numa
espécie de ápice da objetividade, foi apropriada pelo marxismo. Na obra
Anti-Dühring, já desenvolvida nos estertores da vida de Karl Marx, Engels
(2015) sistematiza filosoficamente o materialismo dialético, influenciando
profundamente os primeiros pensadores e militantes marxistas. Este livro
também promove uma “pandialética” que parte de uma “dialética da natu-
reza”, o que faz com que as leis fundamentais da transformação já não de-
pendam da tensão da relação entre sujeito e objeto, e sim das “negações”
inerentes a toda lei do movimento. Com isso, perde-se essencialmente a
especificidade da condição histórica humana, e o estudo da dialética torna-
-se um grande estudo “científico” das “condições objetivas”.
É contra esta perspectiva que Lukács se insurge em História e cons-
ciência de classe. Para o pensador húngaro, não há dialética da natureza,
mas uma dialética histórica que só se perfaz a partir da condição humana.
A dialética marxista é uma “dialética revolucionária” (LUKÁCS, 2003, p. 64)
em que são fundamentais as relações entre teoria e práxis, consciência e

SUJEITOS QUE OBJETIVAM, OBJETOS QUE ASSUJEITAM 79

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realidade. Mas esta virada “histórica” não foi suficiente para retirar o pri-
meiro Lukács do polo “objetivista”. Profundamente influenciado por Hegel,
ele desenvolve uma noção de totalidade que está diretamente associada
a uma “possibilidade objetiva” que se manifestará subjetivamente como
“consciência de classe”. Não uma consciência empírica, mas essencial e ra-
cional, uma consciência possível capaz de captar esta possibilidade objetiva.

Ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, tor-


na-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimentos que
os homens teriam tido numa determinada situação de sua vida,
se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente essa si-
tuação e os interesses dela decorrentes […]. [A consciência de
classe] reconhece, portanto, entre outras coisas, os pensamentos
que estão em conformidade com sua situação objetiva. (LUKÁCS,
1981, p. 141)

Esta perspectiva objetivista tem dois lados complementares: a vi-


são de totalidade que permite captá-la e os sujeitos capazes de apreender
esta totalidade. A ideia de “totalidade” é justamente uma herança de Hegel
(1992, p. 31), que já dizia na Fenomenologia do Espírito que “o verdadeiro é
o todo”, mas foi reforçada pelo pensamento marxista justamente como a
apreensão da complexa e mediada “possibilidade objetiva”. Daí a impor-
tância desse conceito para Lukács e muitos pensadores que o sucederam.
Mas quem é capaz de apreender a totalidade? Como não há, e não
pode haver, uma prova empírica das reais “condições objetivas”, esta atri-
buição sempre foi, na prática, um exercício de poder. Exercício que, no
século XX, remeteu à ideia dos “partidos de vanguarda” e de um grupo
privilegiado capaz de ser o verdadeiro porta-voz da classe revolucionária.
Essa tendência, na maior parte das vezes, conduziu a uma sectarização do
pensamento e da ação política. Como afirmava Paulo Freire (1974, p. 24),
o sectário de esquerda seria aquele que “transforma o futuro em pré-esta-
belecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis”.
Se a perspectiva objetivista pode ser elencada como um “tipo ideal”
de apreensão da relação sujeito-objeto, mesmo sob a visada mais histórica
de Lukács, há a perspectiva diametralmente oposta, que chamaremos de
“negativa”, pois vinculada diretamente à “dialética negativa” de Adorno.

80 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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(2009) Recusando a objetividade da “negação da negação”, esta perspectiva
considera que o foco central da dialética é a própria negação/contradição,
e não a objetividade que ela nega. A negação pode ser pensada como uma
permanente instabilidade na relação sujeito-objeto, que não será definitiva-
mente resolvida numa síntese futura, nem mesmo numa eventual sociedade
sem classes e sem injustiça, onde supostamente sujeito e objeto estariam
definitivamente integrados. Essa instabilidade e essa recusa à fusão de
ambos não pressupõe uma dicotomia entre eles. Ao contrário: o sujeito é
sempre constituído a partir de uma mediação fática com o “não-eu”, com
o mundo que o rodeia, com a objetividade com a qual ele tem de lidar, mas
jamais ao ponto de se fundir com eles.
Se o sujeito se constitui a partir da sua relação com o objeto, inver-
samente a própria representação do objeto também depende do sujeito
que a perfaz, a consciência contribui para esta representação. Para Adorno
(2009, p. 159), “a mediação do objeto significa que ele não pode ser está-
tica e dogmaticamente hipostasiado, mas só pode ser conhecido em sua
imbricação com a subjetividade”.
A própria ausência de identidade entre sujeito e objeto pressupõe
um estranhamento, algo que não se pretende resolvido definitivamente no
processo de intelecção. Isto significa uma profunda desconfiança em rela-
ção à própria noção de totalidade. Esta é “irrepresentável” (2009, p. 32), em
última instância. O que não significa um abandono da reflexão, de uma in-
vestigação cada vez mais complexa acerca das relações estabelecidas entre
objetividade e subjetividade. No lugar da ideia sistemática de totalidade,
Adorno prefere recorrer a um termo mais impreciso, e que já havia sido
utilizado por Walter Benjamim, “constelação”, denotando uma articulação
complexa entre diversos elementos particulares que, não formando uma
totalidade sistêmica, conformam uma articulação objetiva profunda que vai
sendo constituída pelo sujeito.
Se a formulação de Adorno se restringia notadamente a uma reflexão
teórica, ela ganhou uma perspectiva mais militante por diversos pensadores
das últimas décadas, que se utilizaram dela para repensar o marxismo e as
questões políticas contemporâneas. Entre eles, pode ser destacado o pensa-
dor irlandês radicado no México e fortemente vinculado à luta zapatista, John
Holloway. Holloway pensa a dialética negativa como uma chave para com-

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preender a produção de identidades do sistema capitalista. É uma produção
que se materializa em diversas formas que fragmentam as relações humanas
e a produção livre e singular da vida, como o Estado, a mercadoria e as iden-
tidades sociais. Todos esses mecanismos correspondem a grandes aparatos
de poder e domínio sobre a multiplicidade da vida social. (HOLLOWAY, 2003)
Nessa perspectiva, a luta política tem um papel fundamentalmente
negativo, de rompimento dessas amarras identitárias produzidas. Não pres-
supõe um grupo social privilegiado que já compreenda a totalidade do pre-
sente, muito menos uma definição clara de futuro. Ela se constitui apenas
pela certeza de se saber que não é isso o que se quer.

Nossa recusa à aceitação não nos diz nada sobre o futuro, tam-
pouco sua validez depende de algum resultado particular. […]
A certeza dos velhos revolucionários que a história (ou Deus) es-
tava do nosso lado já desapareceu […]. O grito se aferra à pos-
sibilidade de uma abertura, se nega a aceitar o fechamento da
possibilidade de uma alternativa radical. (HOLLOWAY, 2003, p. 17)

Apesar desta postura negativa, a prática política de Holloway tam-


bém tem um fundamento positivo, embora não embasado na identidade.
Inspirado no conceito marxiano de práxis, Holloway nomeia a ideia de “fa-
zer”, um processo eminentemente social e criativo, tipicamente humano,
de construção de um mundo, com uma subjetividade criativa forjada a par-
tir da resistência do objeto. “A subjetividade se refere à projeção consciente
além do que existe, […] implica um movimento contra os limites da conten-
ção, do fechamento. […] Fazer é movimento contra a natureza do que é”.
(HOLLOWAY, 2003, p. 45) Esta referência “positiva” é fundamental, porque
é contra ela que incide a força identitária da produção capitalista.

Toda sociedade de classes implica a separação do fato [a obje-


tivação da práxis] em relação ao fazer, mas no capitalismo essa
separação se converte no eixo de dominação. Existe uma rigidez
peculiar do fato, […] o capitalismo depende de lograr que essa
objetivação seja duradoura, de converter o fato em um objeto
[…], em algo que pode ser definido como propriedade. O capita-
lismo, assim, implica nova definição de ‘sujeito’ e de ‘objeto’ em
que o ‘objeto’ é separado duradoura e rigidamente do fazer do
sujeito. (HOLLOWAY, 2003, p. 52-53)

82 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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É nesses termos que a ação política de “fissurar o capitalismo”, en-
frentá-lo pelas “gretas”, por suas “fissuras” (HOLLOWAY, 2013), torna-se
uma ação essencialmente negativa, mas impulsionada pela força gerativa
do sujeito, pela sua possibilidade criativa de agir no mundo de forma me-
nos desintegrada, menos fragmentada, recusando a objetividade imposta
pelo poder.

O SUJEITO, A FORMAÇÃO E A INSURGÊNCIA


Os aspectos teóricos anteriormente delineados pretendem servir
de suporte à questão trazida no início deste artigo: como pensar a pos-
sibilidade de uma população crítica, base para uma insurgência popular
efetivamente democrática?
Muitos elementos para essa questão foram pensados por Paulo Frei-
re, desde os anos 1960. Para ele, é fundamental pensar uma formação com
(1) integração profunda entre teoria e prática, (2) um processo permanen-
temente dialógico e (3) uma reconstrução crítica e abstrata das relações de
totalidade que subjazem à experiência humana, reconduzindo-as à práxis
concreta e transformadora. Esses elementos devem ser capazes de favore-
cer uma conscientização cada vez mais ampla dos educandos como sujeitos
transformadores, sem a ingenuidade “mágica” de um processo fácil de ação
e construção do conhecimento. O que significa pensar esta questão à luz
dos aspectos acima esboçados, e o que se pode acrescentar a partir deles?
A investigação aqui delineada tenta perfazer esta reflexão a partir
de uma investigação fenomenológica em torno da relação sujeito-objeto,
pensada sob a matriz marxista. Se considerarmos que foram apresentados
dois polos de interpretação desta relação, um “objetivista”, aqui represen-
tado por Engels e Lukács, outro “negativo”, a partir de Adorno e Holloway,2
cada um deles deve ser avaliado.
Como dito anteriormente, o polo “objetivista”, mesmo na formu-
lação mais histórica de Lukács, tende a esvaziar uma possibilidade efeti-
vamente livre de construção política e do conhecimento. O pressuposto

2 Esta categorização não significa necessariamente uma ampla aproximação teórica entre os
autores de cada polo. Como dito, o pensamento de Lukács foi construído a partir de uma
crítica fundamental à “dialética da natureza” de Engels, que ele considerava pouco dialética.
Do outro lado, apesar da importante referência de Adorno para Holloway, ambos lidavam de

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de “possibilidades objetivas” a serem desveladas por uma “verdadeira”
consciência de classe, a única que teria efetivamente a capacidade de com-
preensão da totalidade, não sugere uma abertura real ao sujeito. Mas vale
aprofundar esta questão.
A categoria da “totalidade”, que emerge da filosofia hegeliana, é
central para o pensamento de Lukács e foi ressignificada por diversos pen-
sadores, inclusive Paulo Freire. É uma categoria que se opõe à imeadiaticida-
de positivista do fato e revela a necessidade de compreensão das diferentes
conexões (muitas vezes ocultas ideologicamente) entre os fenômenos, bem
como da contradição entre eles, desvelando as estabilidades fragilmente
estabelecidas para manter determinada relação de poder. A consciência da
totalidade, nesse sentido, mesmo pensada como uma “aspiração” (LUKÁCS,
2003, p. 185), é um elemento fundamental para a superação da consciência
“intransitiva” ou “semitransitiva” do sujeito (FREIRE, 1967), incapaz de se
perceber ativo e de perceber a realidade de forma concreta.
Sem dúvida, há um ponto importante aqui, não é possível se pen-
sar um processo de formação que não provoque no educando uma saída
do “imediato”. Mas, paradoxalmente, a percepção da totalidade como uma
objetividade sistêmica, ainda que incorporada pela contradição dialética,
ignora aspectos fundamentais desse processo. Se, pensando junto com
Adorno, não há uma “resolução última” na relação entre sujeito e objeto,
o que se nomeia como “totalidade” só pode ser pensado como uma re-
presentação provisória de determinados sujeitos a partir de sua apreensão
da realidade. Certamente, essa apreensão terá um caráter eminentemente
dialético se for realizada coletivamente e numa construção ativa desses su-
jeitos em diálogo com a realidade. Se partir efetivamente da práxis, por-
tanto. Nada disso garante, entretanto, que seja apreendida “a realidade nas
suas íntimas leis” e “as conexões internas, necessárias” dessa realidade,
para usar expressões excessivamente otimistas do filósofo marxista Karel
Kosik (2002, p. 41). O processo de aprendizado, numa perspectiva menos
metafísica, será tentativo, sem garantias últimas de “conexões necessárias”,

forma radicalmente diferente com a prática política, quase ausente na perspectiva frequente-
mente pessimista de Adorno e bastante radical na visão “esperançosa” de Holloway. Assim, é
importante que fique claro que a separação serve aos propósitos desta investigação, a partir
das categorias por ela estabelecidas.

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mas animado por agentes que percebem, na prática, o conhecimento ad-
quirido, produzindo sentido, transformando o seu próprio modo de agir.
Neste contexto, há outro elemento que deve ser ressaltado. Na Peda-
gogia do oprimido, ao falar na necessidade de um encontro dialógico com
as massas em todo processo revolucionário, Freire (1974, p. 151) faz uma
observação em rodapé: “sublinhemos […] que este encontro dialógico não
se pode verificar entre antagônicos”.
Aqui, é preciso contextualizar a afirmação de Freire. Certamente,
ele nomeava como “antagônicos” exatamente os grupos antirrevolucioná-
rios que precisariam ser enfrentados. Se contra eles não deve haver diálogo,
isto não será discutido aqui. Mas é preciso ampliar o sentido do conceito de
“antagonismo”. Em trabalho anterior, inspirado nas formulações de Laclau
e Mouffe, foi pensado o antagonismo como a situação em que os sujeitos
“disputam valorações e posições hierárquicas não totalmente aceitas pelos
outros sujeitos”.3 (SOMBRA, 2015b, p. 107) No âmbito das relações anta-
gônicas, “identificam-se cada vez mais diversos modos de negociação ou
enfrentamentos de sentido, ou seja, os sujeitos precisam encontrar modos
diversos de conformação de uma prática de acordo com as redes de sentido
em disputa”. (SOMBRA, 2015a, p. 108) Posteriormente, foi acrescentado
que “de um modo geral, as relações de antagonismo podem ensejar nego-
ciação ou enfrentamento de sentido, mas também processos de dominação
e submissão”. (SOMBRA, 2015a, p. 66)
Pensado o antagonismo nesse sentido amplo, não é possível dizer,
antecipadamente, que não pode haver diálogo entre antagônicos, como
fez Freire. Naturalmente, há situações em que a tentativa de dominação/
submissão exige modos mais incisivos de enfrentamento ou resistência, e
possivelmente foi a isso que o pensador brasileiro se ateve. Mas há diversas
outras ocasiões em que há a necessidade, sim, de diálogo, negociação e
aprendizado mútuo. Mais do que isso: o desconforto provocado pelos am-
bientes de contatos antagônicos evoca uma maior capacidade de reflexivi-
dade por parte dos grupos que estejam dispostos a essa abertura (SOMBRA,
2015b), o que é potencialmente rico para processos de formação. Nesse

3 A totalidade precária que constitui estas valorações e posições hierárquicas foi nomeada
como “rede de sentidos”. (SOMBRA, 2015a; 2015b) O aprofundamento a respeito desse con-
ceito, desenvolvido parcialmente nos artigos anteriores, não será possível aqui.

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sentido, o antagonismo pode ser pensado como um fator positivo para o
diálogo, e não o contrário.
Se a ideia de totalidade é pensada no contexto de uma “possibi-
lidade objetiva” e “necessária”, como tende a defender o polo “objeti-
vista”, o confronto entre grupos antagônicos deverá, inexoravelmente,
apontar para uma síntese última, que em última instância “resolva” as
contradições, seja pela submissão de um dos lados, seja por um resultado
supostamente intermediário. Caso, contudo, seja possível pensar a ideia
de “totalidade” apenas como uma representação provisória de determina-
dos sujeitos, sob as condições acima delineadas, é possível postular que
esse aprendizado mútuo não suscitará, necessariamente, um consenso fi-
nal. A perspectiva dialógica promoverá certamente aprendizados mútuos,
mas eles poderão resultar, ao final, ainda em diferentes perspectivas, dife-
rentes olhares que não encerrarão o antagonismo inicial, embora possam
transformá-lo.
Esta análise crítica remete a discussão para o outro polo investiga-
do, o polo “negativo”, representado por Adorno e Holloway. Certamente, a
desconfiança desses autores para com os perigos autoritários da noção de
totalidade auxilia na reflexão. Mas, também aqui, alguns aspectos devem
ser mais bem investigados, especialmente a partir da formulação de Hollo-
way, mais próxima de um ambiente diretamente político.
Apesar da ênfase no capitalismo, o pensador irlandês perfaz uma
crítica mais ampla às relações de poder associadas à própria constituição
estável de uma identidade. Corretamente, ele sempre vê esse processo as-
sociado a relações de poder entre pessoas. Em nome do fluxo do fazer,
Holloway (2003, p. 101) se insurge radicalmente contra essa lógica:

na perspectiva do fazer, a definição não pode ser mais do que


uma postulação evanescente de identidade que é imediatamente
transcendida. A barreira entre o que alguém é e o que alguém não
é […] não pode, portanto, ser vista como fixa ou absoluta.

Mais adiante, ele é ainda mais categórico: “Para a teoria burguesa, a


subjetividade é identidade, enquanto no nosso argumento a subjetividade
é a negação da identidade”. (HOLLOWAY, 2003, p. 111)

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Nessa perspectiva, portanto, a ênfase no caráter fluido e transforma-
dor do fazer (da práxis) deve centrar toda a força no negativo, na ideia de “ne-
gação da identidade”. Certamente, no contexto de uma permanente dialética
entre sujeito e objeto, há a aceitação da “postulação evanescente de identi-
dade”, desde que esta seja “imediatamente transcendida”. Do ponto de vista
crítico, há importantes contribuições aqui. Mas também estas formulações
levadas ao seu extremo podem ser, paradoxalmente, autoritárias.
Como foi dito anteriormente, a abertura do processo dialético pode
ser vista sob o ponto de vista de uma relação constante entre estabilidade
e a sua negação. A produção, sempre precária, de alguma estabilidade, com
as identidades a ela associadas, vai criando a ambiência necessária para a
vida humana. Marx, desde os manuscritos de 1844, já falava na “objetiva-
ção” e, ao mesmo tempo, no “estranhamento/alienação”4 como fenôme-
nos correlatos, mas distintos. Celso Frederico (2009), ao analisar o “jovem
Marx”, constata várias formas de estranhamento:

A relação entre o trabalho e os seus produtos, que escapam da


mão do produtor tornando-se a ele estranhos; a relação entre o
trabalho e o ato de produção, na qual a atividade aparece como
estranha ao homem, como uma atividade exterior, forçada e sem
finalidade; a relação alienada entre o indivíduo e o gênero, em
que a vida genérica […] passa a ser um simples meio para a reali-
zação de interesses particulares […]; e, finalmente, a relação alie-
nada do homem com o outro homem.

Não é difícil ver nessa descrição uma proximidade com o rompimen-


to do “fluxo entre o fazer e o feito”, denunciado por Holloway. A grande
questão é que o pensador irlandês não diferencia esse rompimento com
a própria produção tipicamente humana de objetividades. Em rodapé, ele
afirma: “não há, então, distinção clara a fazer entre alienação e objetivação.

4 Quando se trata aqui de estranhamento e alienação, não se investiga a distinção entre os dois
termos que Marx utiliza nos Manuscritos econômico-filosóficos, Entfremdung e Entäusserung, com
prioridade para o primeiro. Entfremdung é eventualmente traduzido como “estranhamento”
ou “alienação”. Entäusserung, como “alienação” ou “exteriorização”. Em uma passagem do
texto, por exemplo, Marx (2004, p. 80) fala da objetivação no sistema capitalista “como per-
da do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento [Entfremdung], como
alienação [Entäusserung]”. A própria associação dos termos na frase convida a aproximá-los, e
esta aproximação será mantida no artigo.

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Tanto Adorno como o último Lukács insiste nela”. (HOLLOWAY, 2003, p. 53)
Incorre assim, segundo a perspectiva de Celso Frederico, justamente no
erro que Marx já corrigira em suas obras iniciais. Marx (2009, p. 183) teria
justamente criticado Hegel por “não distinguir a objetivação (as formas pelas
quais o homem se exterioriza, realizando-se em seu fazer) da alienação (uma
forma particular e degradada da objetivação)”.
Se as objetivações humanas correspondem ao modo histórico de
se produzir uma ambiência estável, não é possível separar o fluxo da vida
humana dessa ambiência. Foi isso que percebeu Gadamer, por influência de
Heidegger, ao sinalizar o papel eminentemente positivo da tradição, talvez
a grande objetivação humana. Ao contrário de certa perspectiva iluminista
que tendia a desqualificar esta noção, Gadamer (1999, p. 422) afirmava:

a tradição sempre é um momento da liberdade e da própria histó-


ria. Também a tradição mais autêntica e venerável […] necessita
ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é sempre conser-
vação é como tal está sempre atuante nas mudanças históricas.

Dentro de um ponto de vista crítico, é comum se pensar na tradi-


ção hegemônica, que tende a estabelecer domínio sobre grupos oprimi-
dos. Mas este não é o único caso em que ela se dá. Também se constroem
tradições como sinal de resistência. Um exemplo brasileiro corresponde
ao modo com que povos escravizados de origem jeje e nagô (amplamente
denominados como nagôs) construíram uma cosmologia própria, já decor-
rente da diáspora. Como afirma Muniz Sodré (2017, p. 90),

os orixás nagôs são zelados como princípios cosmológicos


contemplados no horizonte de restituição de uma soberania
existencial. Soberania aqui significa a reelaboração de um perten-
cimento, que ficou em suspenso por efeito da migração forçada
da escravatura.

Esse é um autêntico caso da constituição de uma tradição que, nos


termos de Gadamer, “necessita ser afirmada, assumida e cultivada”. Como
toda tradição real, ela é viva e se transforma, mas não pode simplesmente
ser pensada como uma “identidade evanescente”, nos termos de Holloway.

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Isto não significa, naturalmente, um enaltecimento acrítico às rela-
ções de tradição. Habermas já havia criticado Gadamer justamente por não
ter considerado as relações de poder que ela enseja. Segundo Habermas
(1987, p. 21), “linguagem [e a tradição que ela enseja] também é médium de
dominação e de poder social. Ela serve à legitimação de relações de violên-
cia organizada”. É nesse sentido crítico que a dialética negativa e crítica de
Adorno e Holloway tem papel inestimável. Mas isso não significa abandonar
o diálogo com a herança e a tradição.
Toda objetivação, aqui pensada com a ideia de tradição, também se
perfaz a partir de relações de poder. Mas se esta noção é articulada com o
conceito de antagonismo anteriormente apresentado, antagonismo e rela-
ções de poder estão plenamente imbricados, não é possível um elemento
sem o outro. Estas relações podem ensejar dominação e submissão, como já
dito, mas também podem apontar para negociações e aprendizados mútuos.
A perspectiva que Holloway apresenta tenta conjugar, de forma
emblemática, uma espécie de “reino da diferença” – um enfrentamento
constante à identidade – com uma ausência de poder, pensado como um
“poder-sobre”, poder de determinadas pessoas sobre outras. Mas, levada
ao extremo, essa utopia significaria uma ausência de antagonismo, em últi-
ma instância uma ausência da própria diferença que Holloway tenta evocar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um processo de formação crítica é um processo no qual sujeitos
ativos, mediados pela práxis, lidam com e transformam a objetividade que
os antecede, atuam criativamente diante da dialética de estabilidade e
transformação que marca a vida humana, numa perspectiva cada vez mais
emancipadora. Sabendo-se históricos, esses sujeitos percebem cada vez
mais que não há determinação objetiva última no presente ou no futuro. As
“condições objetivas” são fatores a ser interpretados pelo seu mundo social
presente e pelo horizonte que desejam construir, não uma prisão. Mas eles
não partem do zero, o passado não é pura determinação a ser superada e
descartada, também é fonte de aprendizado, reverência e cultivo, mesmo
que transformado.

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Sabendo-se sociais, estes sujeitos reconhecem que podem convi-
ver com outros sujeitos, com diferentes tradições e diferentes horizontes.
Não há a garantia de um “nós” que conjugue os mesmos propósitos. Mas
a construção crítica de um projeto emancipatório alimenta, ao menos, a
perspectiva de que estas diferenças fundamentais, os antagonismos que
elas ensejam, não devem significar relações de domínio e submissão. Ao
contrário, se há um motivo central para a insurgência é reunir todos que
se oponham a todas as formas de domínio. Não uma oposição abstrata a
qualquer forma de poder, mas a qualquer uma que possa tolher, no sentido
mais concreto da palavra, a ideia de liberdade.
Sob uma perspectiva brasileira, urge o resgate, cujo patrono só
pode ser Paulo Freire, de uma formação prático-crítica que possibilite a
emergência de cada vez mais sujeitos críticos. Os educadores que se arris-
cam a participar desse processo não podem almejar objetivos específicos
que não sejam a autoemancipação desses sujeitos. São eles que vão esta-
belecer as próprias condições objetivas, são eles que farão um diálogo com
a própria tradição, com o que querem manter e transformar nela. São eles
que a viverão como um espaço de libertação, e que podem recusar o que
ela traz de aprisionamento. O que deriva de tal processo é um futuro aber-
to, mas é justamente por ele que vale lutar.

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90 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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SUJEITOS QUE OBJETIVAM, OBJETOS QUE ASSUJEITAM 91

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92 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA:
ENTRETECERES DO PEDAGÓGICO E DO COLONIAL1
Catherine Walsh

A Marielle Franco, gritadora, “agretadora” e semeadora


de vida, ante a violência-guerra-morte no Brasil.

Então, o que queremos lhe dizer é que a situação está muito fodida.
EZLN (2015)

Não nos intimidaremos, não deixaremos a luta.


Nem uma morte a mais! Nem uma mulher a menos!
Se tocam uma, tocam a todas [e todos].
Coordenadora feminista de Temuko
Chile, março de 2016

GRITOS
Escrevo gritando. Gritando escrevo.
Xs que me conhecem sabem que nunca – ou pouquíssimas vezes
– grito; minha maneira de expressar os sentimentos de frustração, indigna-
ção, raiva, dor e horror é outra. Não obstante, agora não posso conter este
chiado que nasce de muito dentro e que sai por todos os poros e orifícios
do meu corpo, como estrondo. Os órgãos em seu conjunto, liderados pela
alma e pelo coração, gritam NÃO! Gritam DIGNIDADE! E gritam VIDA!

1 Este texto foi baseado no capítulo de livro “Gritos, grietas y siembras de vida: entretejeres de
lo pedagógico y lo decolonial”, de Catherine Walsh, parte do livro Pedagogías decoloniales:
prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)viver, Tomo II, editado pela própria Catherine
Walsh, pelas Ediciones Abya-Yala, Quito-Ecuador, 2017. Tradução de Laurenio Sombra.

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Meu grito é produto e reflexo do acúmulo de um sentir. De uns
sentires “sentidos e vividos” que começaram a transbordar ante o desapa-
recimento dos 43 de Ayotzinapa, os silêncios cúmplices a respeito nas uni-
versidades mexicanas onde estive depois e as ameaças que eu mesma vivi.
São sentires que encontram raízes – também – no contexto equatoriano,
meu lugar de vida e luta desde muitos anos.
À diferença dos países claramente liderados pela direita, no Equador
“os modernos conquistadores [estão] vestidos de esquerda progressista”,
para usar a expressão do subcomandante insurgente Galeano. (EZLN, 2015,
p. 190) O projeto capitalista-modernizador-extrativista, com sua destruição
e despojo da Mãe Natureza e dos modos de vida em/de relacionalidade, jun-
to com a lógica patriarcal-paternal-colonial em ascensão, a criminalização
do protesto, a crescente violência e repressão a jovens e mulheres, além do
silenciamento de um pensar crítico, já caracterizam os momentos atuais.
O autoritarismo é o modus operandi. A resistência, desobediência e diver-
gência, inclusive no pensamento e raciocínio político, epistêmico, sociocul-
tural e existencial, têm suas consequências reais. Por certo, esta realidade
não é particular do Equador, está presente hoje em todo Abya Yala,2 com
vestimentas tanto “progressistas” como “direitistas”,3 inclusive no interior
da maioria das universidades.
Minha universidade não é exceção. Hoje (abril de 2016), enquanto
escrevo, estamos enfrentando uma forte crise ante os interesses do po-
der externo – especificamente do governo nacional – por reger, controlar
e intervir na universidade. Mas também ante o regime do poder interno,
com seu projeto de resistência concebido de cima, que pretende impor um
só pensar-atuar – ou, melhor, um atuar sem pensar –, levando nossa casa
de estudos e seu projeto educativo crítico ao precipício. É um resistir que

2 As políticas de nomeação, sem dúvida, são parte do peso ainda presente da colonialidade.
Minha opção aqui é por “Abya Yala” não simplesmente por sua (contra) política indígena y
kuna de nomear (que pode ser criticada por excluir os povos de origem africana), mas mais
amplamente por seu enraizamento territorial: “terra em plena maturidade”. Ao deixar de
nomear “América”, exorcizamos – como disse Vanesa Fonseca (1997) – “a pluralidade do con-
tinente na alucinação da totalidade de um nome, do nome de uma mulher (terra de Américo)
que deve sua existência ao olhar desejante do outro”.
3 Entre os muitos exemplos, há o recente (maio de 2016) da Nicarágua, onde o governo sandi-
nista pretende tomar territórios rama e afrodescendente kriol para seu uso na construção do
canal. Ver Mendoza (2016) sobre o significado deste território. (INTERVIEW…, 2015)

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indigna e faz destruir. Destrói não apenas o delicado tecido social-políti-
co-intelectual com seus fios diversos e plurais, mas também a base sobre
a qual docentes, estudantes e empregadxs temos construído ao longo de
mais de 20 anos este projeto crítico sentipensante andino-sul-americano.
Seu projeto demanda a confrontação e – à maneira da velha esquerda (pa-
ternalista-patriarcal) – exige a obediência cega e o consenso silenciador,
ao mesmo tempo que patrocina, avança e protege interesses individuais
políticos e partidários. Assim, pergunto: resistir (as ações do governo) para
fortalecer o regime interno do poder? Resistência em troco de quê? Resis-
tência de quem e para quem? E para quê?
Resistir não para destruir, mas para construir, digo eu. Essa é a pos-
tura e a práxis pela qual luto – pela qual alguns lutamos –, uma resistência
ética, crítica e digna contra o autoritarismo dos regimes externos e internos
de controle e poder, para defender a universidade (estudantes, docentes e
empregadxs, e o pensamento crítico e plural), propondo sua reconstrução
participativa e democrática desde dentro. Uma postura praxista difícil de
encaminhar quando a base de sustentação e as paredes desta casa de estu-
dos – que tem sido meu lar-lugar de fazer e sentir-pensar-atuar-pedagogi-
zar durante praticamente 20 anos de minha vida – começam a desmoronar
e colapsar. Grito, mas às vezes não sai nada da boca. É um grito preso no
peito. Uma “grita” que faz vibrar.4
No Equador, a esperança coletiva que muitxs sentíamos ante a nova
Constituição de 2008 – de cujo processo ativamente participei (WALSH,
2008, 2009) – se converteu em um coletivo pesar. A “aposta posta” no Es-
tado (com maiúsculas) e na possibilidade de sua refundação radical, inter-
cultural e plurinacional (possibilidade e aposta também lutadas na Bolívia)
já se desvaneceu. Também, e de forma paralela, vem dissipando-se a via-
bilidade atual e efetiva da luta – concebida em sentido amplo – devido às
atuais rupturas, fragmentações, divisões, cooptações e capturas, tanto a
nível organizativo como individual.
De fato, esta realidade está presente em toda a região; é parte
da estratégia e efeito do sistema de poder capitalista-extrativista-patriar-

4 Aqui estou recordando “as gritas” de que fala Mayra Estévez (2016, p. 84) como atos sono-
ros de rebeldia ante o contexto colonial e suas sonoridades dominantes: “uma vibração em
defesa”.

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 95

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cal-moderno/colonial, que busca romper o tecido social e debilitar a luta
para assim exercitar “a destruição/despovoamento e, simultaneamente, a
reconstrução/reordenamento”. (subcomandante insurgente Galeano, em
EZLN, 2015, p. 316)5
A atual violência física, sexo-genérica, sociocultural, epistêmica e
territorial desespera. Também desespera a busca de respostas às perguntas
praxistas do que fazer e – mais criticamente – de como fazê-lo. Ou seja,
como criar, fazer e caminhar hoje processos, projetos e práticas – pedago-
gias como metodologias imprescindíveis, diria Paulo Freire – a partir das
gretas deste sistema de guerra-morte mundial. Como argumentarei mais
adiante, talvez sejam as gretas existentes e as que vão tomando forma “no-
-lugar” (assim recordando a formulação e conceitualização de Arturo Esco-
bar) que dão pauta, espaço, causa, posição, realização e razão às práticas
pedagógicas descoloniais.
Falo de um sistema de guerra-morte pensando a partir do fortale-
cimento e da regeneração do que Nelson Maldonado-Torres (2008, p. 4)
chamou de “paradigma da guerra”, um paradigma “que está profundamen-
te conectado à produção da raça e ao colonialismo, bem como à perpetua-
ção, expansão e transformação do patriarcado”. Este paradigma marca uma
forma de conceber a humanidade, o conhecimento, a ordem e as relações
sociais centrais do mundo-vida moderno. “Violência e guerra […] não são
resultados contingentes de projetos históricos particulares”, diz Maldona-
do-Torres (2008, p. 5), mas “dimensões constitutivas das concepções domi-
nantes de civilização e dos processos civilizatórios”, dimensões-concepções
que não apenas definem, mas também advogam por eliminar “aos outros”,
eles e elas que perturbam, ameaçam e resistem a esta “civilização”.
O sistema de guerra-morte atual se enraíza no projeto – que ao
mesmo tempo é uma lógica – civilizatório-ocidental-patriarcal-moderno/
colonial e em seu coração de capital. Este projeto-lógica é constitutivo do

5 Sobre o exemplo da Nicarágua (conforme a nota 3), o comentário do ativista-intelectual


peruano Roberto Espinosa, na lista virtual Ubuntu, parece muito acertado: “se esta esquerda
do FSLN é capaz de dividir organizações indígenas e afrodescendentes (como o fez também
o MAS, AP etc.) para impor a colonialidade do poder e da natureza, do ‘desenvolvimento’
com o desastre do novo canal interoceânico, em benefício capitalista-imperialista, seja em
sua versão privada (transnacionais) ou ‘estatal-comunista’, será cada vez maior o desafio e a
dificuldade de reconstruir outra esquerda de efetiva descolonialidade do poder”.

96 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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sistema guerra-morte (em seu presente e em sua longa duração), e assim
pretende moldar e permear todos os modos e as possibilidades de viver,
estar, ser, saber, sentir, pensar e atuar.
Vilma Almendra nos recorda como, “com a instalação da Conquista,
dos senhores das guerras, dos comerciantes da palavra, dos mercadores
da vida, dos saqueadores dos bens comuns e de muito mais”, começaram
os processos e práticas de submissão, desprezo, fragmentação, confisco,
violência, guerra e morte. São processos e práticas que continuam com as
atuais “estratégias do projeto de morte: submissão com terror e guerra,
submissão com legislações de confisco, submissão com captação e coopta-
ção dos movimentos”, diz Almendra, e “submissão ideológica para coloni-
zar o território do imaginário […] de modo a garantir e legitimar o modelo
econômico do capitalismo a serviço das transnacionais”. Submissão, con-
fisco e eliminação.
Em 31 de março de 2016, assassinaram Berta Cárceres, líder lenca
e fundadora – em 1993, junto a uma dúzia de companheirxs – do Conse-
lho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH).
Berta, lutadora incansável contra as empresas transnacionais e as políticas
neoliberais extrativistas, lutadora pela Mãe Terra e pela vida. Como ela dis-
se em 2015, ao receber o prêmio Goldman do meio ambiente, o aparato
repressivo armado de Honduras protege os interesses das empresas trans-
nacionais vinculadas ao poderoso setor econômico, político e militar do
país. Berta explicou que as políticas neoliberais extrativistas aumentaram a
perseguição, violência, repressão e criminalização, assim como o confisco
das comunidades e seu deslocamento forçado. (HERNÁNDEZ, 2016)
Ela foi vítima da mesma violência que denunciou, violência que na
mesma semana também terminou com a vida de quatro líderes campone-
ses em Cauca e uma irrisória condenação (cinco anos de cárcere) para o
assassino do comunero mapuche José Quintriqueo, no Chile. Menos de duas
semanas depois, foi assassinado Nelson Garcia, outro ativista hondurenho
do COPINH.
Berta Cárcere, Nelson Garcia, os companheiros de Cauca e José
Quintriqueo são alguns a mais na longa lista que cresce a cada dia: a lis-
ta dxs eliminadxs no projeto-guerra contra a vida, um projeto-guerra que
marca xs descartáveis por seu gênero, sua condição de empobrecimento

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e racialização, assim como por suas lutas para defender suas terras, rios,
bosques e dignidade frente à cobiça, destruição, exploração e interesses
do capital daqueles a quem os e as zapatistas chamam a “hidra capitalis-
ta”. (EZLN, 2015) Muitxs conhecemos alguém na lista ou alguém que “eles”
querem acrescentar. Assim é necessário reconhecer as ameaças que vivem
cotidianamente líderes-lutadoras, como dona Máxima Acuña no Peru (tam-
bém ganhadora, em abril de 2016, do prêmio Goldman) e Relmu Ñamku na
Patagônia. Também é necessário denunciar as ameaças que ocorreram nes-
te 28 de abril de 2016 no norte do Cauca contra Alexa Leonor Mina e Mery
Yein Vida, integrantes da mobilização de mulheres pelo Cuidado da Vida e
o Território Ancestral, assim como Francia Márquez, representante legal do
Conselho Comunitário de Toma.6
Ademais, deve-se ressaltar o terror especial das violências pouco
imagináveis que viveram centenas de mulheres no território-região do Pa-
cífico colombiano, muitas já eliminadas simplesmente por serem mulheres
e portadoras de lutas da e pela vida. (LOZANO, 2016) Recordo o caso espe-
cífico de Sandra Patricia Angulo em Buenaventura, documentado pela Rede
das Asas Mariposas Construindo o Futuro.

O que fizeram a Sandra Patricia Angulo foi feito a todas nós. Nos
dói saber que ela defendeu sua vida até o final, e dói saber que ela
foi caçada por cinco homens, que se uniram para degradá-la, para
fazê-la sofrer, para, segundo eles, ‘dar-lhe um aviso’, machos, ma-
chos assassinos, machos que se valem de uma mulher só a quem
perseguem e caçam. Até quando, Buenaventura? Até quando, Co-
lômbia? (RED DE ALAS NOVAS CONSTRUYENDO FUTURO, 2015)

Em uma entrevista recente, a comprometida intelectual argentina


Rita Segato referiu-se à crescente “pedagogia da crueldade”. A referência

6 No dia 28 de abril de 2016, ao terminar a mobilização dos Conselhos Comunitários do Norte


do Cauca em defesa de seus direitos e do estabelecimento de um acordo com o governo
colombiano, Francia Márquez recebeu a seguinte mensagem de texto no seu celular: “BOM,
llego la hora de ajustar cuentas com los que se seacen llamar defensores del território esos
hp [provavelmente “hijos de puta”] de eduar mina, Fransia marquez Jhonjairo Valverde Sabe-
mos como semueben y la orden es darles de baja para que nose opongan al desarrollo seles
albirtio y a hora atemganse att las bacrin” (Mensagem que circulou pela equipe de direitos
humanos do Processo de Comunidades Negras na Colômbia, PCN, Associação de Conselhos
Comunitários do Norte do Cauca, Aconc, e Conselho Nacional de Paz Afrocolombiano, Conpa).

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específica de Segato é ao contexto da Guatemala (ainda que certamente
não termine lá) e ao caso conhecido como “Sepur Zarco”, onde agentes
do estado em um quartel militar de “descanso” submeteram durante seis
anos (e quando já começavam neste país os processos de paz) um grupo de
quinze mulheres maya q’eqchi’ à escravidão sexual e doméstica, depois de
fazer desaparecer seus maridos, porque aspiravam aos títulos de sua terra
ancestral. (SEGATO apud GAGO, 2016) Para Segato, que realizou a perícia
antropológica de gênero no caso, “a pedagogia da crueldade é a estratégia
de reprodução do sistema”.

A crueldade expressiva denota a existência de uma soberania


paraestatal que controla vidas e negócios em um determinado
território e é particularmente eficaz quando se aplica ao corpo
das mulheres. Este ‘método’ é característico das novas formas
de guerras não convencionais, inauguradas em nossas ditaduras
militares e guerras sujas contra as pessoas, as guerras internas,
as guerras chamadas ‘étnicas’, dos soldados assalariados das
empresas militares privadas, dos universos dos sicários que tra-
balham para as máfias, e do acionamento paraestatal das forças
estatais de segurança em temos de ‘democracia real’. Por isso,
falo de um novo conflito informal e de guerras não convencio-
nais que configuram uma cena que se expande no mundo e, em
especial, na América Latina, com muitas fases. Ali, a crueldade
expressiva é a estratégia, e o corpo das mulheres e crianças é o
objeto tático, para alcançar, pela exemplaridade e truculência, o
tecido social em seu centro de gravidade. (SEGATO apud GAGO,
2016, p. 3)

Este juízo – histórico por expor um crime de gênero como um crime


de estado – pôs em cena a operação da pedagogia da crueldade e o corpo
das mulheres como campo de batalha. As condenações a 240 e 120 anos
de prisão aos dois militares responsáveis são, sem dúvida, marcos impor-
tantes, inclusive para ressaltar “as múltiplas formas de guerra que hoje se
desenvolvem contra as mulheres, fazendo do seu corpo o principal territó-
rio de luta”. (GAGO, 2016, p. 1) Ademais, como explica Segato (apud GAGO,
2016, p. 4):

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 99

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Um aspecto muito importante da reparação material, moral e co-
munitária que elas reclamam, entendida a partir de sua própria
perspectiva, é que o Estado, através da sentença exemplar, decla-
ra e estabelece publicamente sua inocência, condição indispen-
sável para que a comunidade as reintegre e possa constituir-se e
sanar o tecido social. O mais impressionante foi sua grande co-
ragem, todo esse tempo, sem assustar-se – pois o inimigo nunca
deixou de ser truculento – e sem desistir.

Assim, pergunto se, para além da “pedagogia da crueldade” a que


foram submetidas, estas mulheres não exerceram sua própria pedagogia de
resistência-existência da e pela vida. Com esta pergunta, estou recorrendo
ao sentido que Paulo Freire deu à resistência-existência em seu livro Peda-
gogia da indignação. A sobrevivência física e cultural dos oprimidos e opri-
midas, dizia Paulo, não está enraizada na resignação ou adaptação à lesão
destrutiva do ser ou na negação da vida; está fundamentada na rebelião
contra a injustiça – a rebelião como autoafirmação – e na resistência física
à qual se soma a resistência cultural, “a resistência que nos mantém vivos”.
(FREIRE, 2004, p. 61) Dussel (2005, p. 436), pensando com Freire, ressalta
esta “ação-na-qual-se-vai-tomando-consciência-ética-transformadora: liber-
tação”; cujo processo ético, material e objetivo é a vida. Recordada aqui
também é a re-existência de que fala Adolfo Albán: os mecanismos e práti-
cas que procuram a redefinição e ressignificação da vida em condições de
autodeterminação e dignidade.7 (ALBÁN, 2008) Não seria tudo isso parte da
pedagogia própria destas mulheres, sua pedagogia de luta – e de gritos e
gritas – pela vida?
Os gritos não são apenas reações e expressões de susto. São tam-
bém mecanismos, estratégias e ações de luta, rebeldia, resistência, deso-
bediência, insurgência, ruptura e transgressão ante a condição imposta de
silenciamento, ante as tentativas de silenciar e ante os silêncios – impostos
e estratégicos – acumulados.8 Os gritos reúnem silêncios e reclamam – se

7 Dizia Freire (2004, p. 98): “fazer o mundo ético é uma consequência necessária de produzir
existência humana, ou o prolongamento da vida na existência […]. Existência é a vida que se
conhece a si mesma como tal”.
8 Não se deve esquecer que, enquanto o silenciamento foi empregado historicamente como
um dispositivo de disciplinamento e de dominação, o silêncio estratégico fez parte também,
ao longo da história, das práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)viver. A estratégia do

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apoderam de novas – vozes sequestradas (GARZÓN, 2014), subjetividades
negadas, corpos, natureza e territórios violados e despojados. Como bem
explica Maldonado-Torres, o grito de espanto do colonizado ou colonizada
não é simplesmente uma expressão de horror e terror; pode ser entendido
mais criticamente como uma prática e intervenção (política, epistemológi-
ca, ontológica-existencial) que aponta e caminha para uma atitude descolo-
nial e para a ideia e possibilidade de descolonização.

Os princípios do giro descolonial e a ideia de des-colonização se


fundam sobre o ‘grito’ de espanto do colonizado ante a transfor-
mação da guerra e a morte em elementos ordinários de seu mundo
da vida, que vem a transformar-se, em parte, em mundo da morte,
ou mundo da vida apesar da morte […]. São muitos os tipos de in-
tervenções críticas dos colonizados/racializados […]. A orientação
fundamental deste tipo de intervenção, e atitude correspondente,
se remete ao espanto e ao grito da subjetividade vivente e doadora
frente à modernidade/colonialidade. (MALDONADO-TORRES, 2007,
p. 159-160)

Meu grito certamente não é o mesmo grito das mulheres e homens


que viveram e vivem a ferida colonial e seu entretecer de padrões de po-
der que racializam, empobrecem, sexo-generizam, violam, desumanizam e
desterritorializam. Não grito “por” estas sujeitas e estes sujeitos, não grito
“pelos” povos ou pelas comunidades. Elas e eles têm seus próprios gritos.
Meu grito é parte de um espanto relacionado e relacional, é um grito frente
ao sistema capitalista-extrativista-patriarcal-moderno/colonial que nos está
matando a todxs (ainda que não necessariamente do mesmo modo), frente
à desesperança que desespera (incluindo os chamados “progressismos”) e
frente ao que e como fazer (fazer pensar, fazer atuar, fazer lutar, fazer gri-
tar) em e desde os contextos meus e com outros contextos e coletividades
de baixo.
Tenho que liberar o grito, fazê-lo sair do meu peito, sentir, escutar e
andar na sua vibração. Assim deixa de ser só meu, começa a mesclar-se com

silêncio, assim, é contemplada e construída nas pedagogias e pedagogizações “casa adentro”


– de caráter político-epistêmico, performativo, cultural-ancestral, rebelde, humanizante e
afirmante (GARCIA; WALSH, 2017; GARZÓN, 2014; HAYMES, 2013; VILLA; VILLA, 2013) – que
afinam posturas próprias e coletivizam a palavra, a escuta, o saber e o fazer.

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 101

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as “sonoridades de ligação e resistência frente à diminuição da vida […], se
replica”. (ESTÉVEZ, 2016, p. 82) A “sair da pele do [meu] grito. Meter[-me]
na pele do mundo por [meus] poros”, como disse Édouard Glissant (2010,
p. 16), é ser parte desse nós que com e desde os distintos contextos “de
baixo” nos deixam ressoar. Já não posso, já não podemos reter mais a indig-
nação e a raiva, o horror e a dor, ante todos estes fatos ainda presentes e
próximos, ante a estratégia do projeto-guerra de morte que está em plena
operação e com a tormenta que agora nos vem em cima. (EZLN, 2015)
Os mexicanos falavam há mais de um ano de 150 mil mortos, 50
mil desaparecidos e 50 mil sequestrados. Quantos são hoje? Ayotzinapa foi
apagado das notícias, mas a luta dxs familiares e amigxs pelos rastros dos
normalistas segue sem cessar. Nisso os meios de comunicação sem dúvida
são cúmplices: cúmplices de fazer desaparecer as lutas de vida. Algo similar
ocorre a respeito dxs zapatistas; o não estar nos meios de comunicação
(incluindo os meios “alternativos”) faz pensar que já não existem, que sua
existência rebelde, sua raiva digna e sua prática de autonomia, liberdade e
pensamento crítico ante o sistema capitalista e o mau governo mexicano
evaporaram. Claro, o problema não está ali. No México, como faz tempo
na Colômbia, a guerra de morte chegou a caracterizar a vida cotidiana da
maioria, a que se aterroriza, espanta e cala. Esta guerra é parte do que al-
guns – incluindo o presidente venezuelano Nicolás Maduro – chamam de
“capitalismo paramilitar”, uma clara tendência global do modelo neolibe-
ral de desenvolvimento promovido principalmente pela América do Norte.
(ANAYA, 2015) De fato, é uma guerra bem equipada, com sua quadrilha
complexa de aparatos, armas, ferramentas e atores que – ainda que mudem
de rosto, estratégia e território nacional – mantêm o mesmo propósito e
objetivo. SupGaleano (apud EZLN, 2015, p. 326) explica muito bem:

A guerra também vem nos escudos e cassetetes das distintas polí-


cias nos despejos; nos mísseis israelenses que caem sobre escolas,
hospitais e bairros civis da Palestina; nas campanhas mediáticas
que precedem invasões e jogos que as justificam; na violência
patriarcal que invade os rincões mais íntimos; na intolerância he-
terossexual que estigmatiza a diferença; no fanatismo religioso;
nos modernos mercados de carne humana viva e seus órgãos; na
invasão química do campo; nos conteúdos dos meios de comu-
nicação; no crime organizado e desorganizado; nos desapareci-

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mentos forçados; nas imposições dos governos; nos despojos
disfarçados de ‘progresso’. Em suma: na destruição da natureza
e da humanidade.

Como também argumentei em outro lugar (WALSH, 2016), é uma


guerra tornada projeto, cujos efeitos sobre a população chegam a alterar
radicalmente – e até eliminar – a vida e o tecido social. Silêncios e silencia-
mentos extremos de individualismo e indiferença nas pessoas, rupturas de
tecidos comunitários, organizativos, coletivos e em nível da luta político-
-social são apenas algumas das alterações que caracterizam os momentos
atuais, parte também de uma hegemonia ideológica e de pensamento que
está invadindo todas as esferas.
Não é casual que as mulheres sejamos parte do eixo de ataque,
particularmente se consideramos que são as mulheres que estão lideran-
do hoje muitas das lutas contra o sistema capitalista-patriarcal-moderno/
colonial, o extrativismo e a destruição da natureza-vida.9 Lourdes Huanca,
líder camponesa peruana do Femucarinap, falou em 2013 sobre esta lide-
rança e luta das mulheres contra a violação e a invasão dos “territórios de
nossos corpos”. Para ela, esta invasão e violação (física, simbólica, cultural
e territorial) tem a ver tanto com a presença nas comunidades de projetos
e indústrias extrativistas como com as mudanças que esta presença impul-
sionou nas relações, estruturas e dinâmicas comunitárias. O incremento do
alcoolismo, o fomento de comportamentos machistas e o uso distorcido de
conceitos cosmogônicos como dualidade e paridade fazem o jogo da supe-
rioridade do homem e “o poder dos testículos”, diz Huanca (apud WALSH,
2015a, p. 120), justificando o uso do poder masculino sobre corpos femini-
nos como “natureza”.
Argumenta a filósofa e teórica feminista María Lugones (apud HEVIA,
2012) que a atual violência com as mulheres e o crescente feminicídio têm
a ver com “desvalorização total do trabalho e dos corpos que antes produ-
ziam mais-valia e agora não valem nada”. A Comissão Interamericana de
Mulheres informou em 2012 que o feminicídio na América Latina alcança

9 Exemplos recentes foram as múltiplas mobilizações e manifestos de mulheres de comunida-


des e organizações de base em 8 de março de 2016, incluindo a Coordenadora Feminista de
Temuko (DENUNCIAN…, 2016) e as mulheres amazônicas em defesa do território. (CAIZA,
2016)

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 103

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“níveis próximos ao de pandemia”. Acrescento eu: níveis de horror. Depen-
dendo do país, estima-se que entre 60% e 90% dos homicídios de mulheres
são feminicídios, ou seja, mortes de mulheres por parte de homens que as
matam pelo fato de serem mulheres. Refiro-me a essas mulheres que mor-
rem a praticamente cada quatro dias na Peru, cada três dias na Bolívia, a
cada 50 horas na Ecuador, a cada 31 horas na Argentina, 15 por dia no Brasil
(60% mulheres negras), 4 por dia em Colombia, 54 por mês em Honduras e,
no México, mais de 4 mil por ano. (COLECTIVO GEOGRAFÍA CRÍTICA, 2017;
MAPA…, 2013; VALDÉS, 2015)
Sem dúvida, o feminicídio é uma ferramenta do capital-patriarcado
– como afirmava o pronunciamento/posicionamento da mobilização “Mu-
lheres habitantes do Estado do México”, em 24 de abril de 2016. (EL FEMINI-
CIDIO…, [201-?]) As mulheres em geral, especialmente as mulheres jovens,
camponesas, indígenas e afrodescendentes, não são apenas descartáveis,
são ademais alvos de eliminação, subordinação, captura, silenciamento,
desterro e desterritorialização ante o sistema bulldozer-escavadeira-arras-
tador do capital e sua matriz patriarcal-moderno/colonial de poder.
Grito, gritas, gritamos. Os decibéis, o eco e a ressonância vão cres-
cendo. Confundem-se, se comunicam, se mesclam e se tecem com outros
gritos – com todos os gritos do mundo e desde baixo – incluindo os gritos
dos outros seres, com os da água, os rios e o mar, as montanhas, as árvores,
os pássaros e animais, com os gritos e as gritas dxs ancestrais cuja presença
e memória seguem vivas. São gritos de horror, dor, bravura, raiva e indig-
nação, gritos contra o projeto de guerra-morte. Mas também são gritos de,
desde, por e pela vida, por e para re-existir, re-viver e con-viver com justiça
e dignidade. São gritos que chamam, imploram e exigem um pensar-sentir-
-fazer-atuar, que clamam por práticas não apenas de resistir, mas também
de in-surgir, práticas como pedagogias-metodologias de criação, invenção,
configuração e co-construção – do que fazer e como fazer – de lutas, cami-
nhares e semeares dentro das fissuras ou gretas do sistema capitalista-mo-
derno/colonial-antropocêntrico-racista-patriarcal. “Deixar o grito, forjar a
palavra. Não é renunciar ao imaginário nem às potências subterrâneas, é
assumir uma duração nova, ancorada no surgimento dos povos”, dizia Glis-
sant (2010, p. 16).

104 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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A palavra aos gritos do mundo, na qual tem alcance a voz de
todas as comunidades. O acúmulo de lugares-comuns, de gritos
deportados, de silêncios mortais para comprovar que o poder dos
Estados não é o que move de verdade e para aceitar que nossas
verdades não se conjugam com o poder. (GLISSANT, 2006, p. 30)

GRETAS
Deixei já há um tempo a esperança grande, a ESPERANÇA com
maiúsculas. Refiro-me à ESPERANÇA de mudar ou transformar o sistema
capitalista-moderno/colonial-patriarcal em seu conjunto e totalidade, e de
crer que outro mundo a nível global – e de maneira paralela, que outro es-
tado – realmente é possível.10
Minha aposta hoje em dia está em e por esperanças pequenas, ou
seja, em por esses modos-muito-outros de pensar, saber, estar, ser, sentir,
fazer e viver que são possíveis e, ademais, existem apesar do sistema, de-
safiando-o, transgredindo-o, fazendo-o fissurar. Não deixo de querer uma
mudança para todo o mundo, para toda a região ou para todo o país, como
também disse a comandante Dalia, do EZLN (2015, p. 121): “se não lutamos,
o sistema capitalista vai seguir até que nos acabe todos, e nunca vai haver
uma mudança”. Assim, retomo as palavras do subcomandante insurgente
Galeano: “nossa rebeldia é nosso NÃO ao sistema. Nossa resistência é nosso
SIM a outra coisa possível”. (EZLN, 2015, p. 221) Pensar e atuar a respeito
desta “outra coisa” para reconhecê-la, lutar por ela, caminhar para ela e
multiplicá-la de baixo são atividades político-epistêmicas que desmontam,
deslocam e interrompem os universalismos da totalidade, incluindo os que
vêm orientando a esquerda e o feminismo eurocentrados.11

10 Por isso mesmo, deixo de pensar e escrever com maiúsculas a palavra “estado”. Depois da
experiência vivida nos últimos anos no Equador e de observar de perto a Bolívia, deixei de
crer na possibilidade da radical refundação e transformação estatal. Assim, também me dei
conta dos perigos de engrandecer (com o poder da letra e o significado) esta instituição que
até com sua “vestimenta progressista” alenta e alimenta o sistema capitalista-patriarcal-mo-
derno/colonial. Por isso mesmo, aqui neste texto o “estado” perde o seu poder “maiúsculo”.
11 É importante a crítica ao feminismo eurocentrado que fazem Espinosa e colaboradores
(2014) em seu livro de compilação de intelectuais, ativistas, pensadoras e acadêmicas pro-
venientes de Abya Yala: Tejiendo de otro modo. Feminismo, epistemología y apuestas descoloniaes
en Abya Yala. Ver também: Espinosa e colaboradores (2013) e Cariño e colaboradores (2017).

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 105

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 105 29/08/2019 06:33


Minha aposta – pessoal e coletiva – é desaprender a pensar a partir
do universo da totalidade e aprender a pensar e atuar em seu exterior, suas
fissuras e gretas, onde moram, brotam e crescem os modos-outros, as espe-
ranças pequenas. As gretas converteram-se em parte de minha localização
e lugar. São parte integral de como e onde me posiciono política, epistêmi-
ca, ética e estrategicamente. São parte integral também das transgressões,
indisciplinamentos, rupturas e deslocamentos que me obrigam a olhar-me
criticamente, a aprender a desaprender para reaprender a pensar, atuar,
sentir e caminhar de modo descolonial, individual e coletivo. Assim são
constitutivas de como concebo, construo e assumo minha práxis, inclusive
na universidade. (WALSH, 2014)
Ponho minha energia, esforço e atenção no encarnado, situado e
local, nas fendas existentes – em processo e por vir – que desafiam, trans-
gridem, interrompem e deslocam o sistema dominante, nas fissuras que
vêm de baixo, onde se encontram, se constroem e caminham formas de
estar-fazer-ser-sentir-pensar-saber-viver muitas outras e nas próprias pos-
sibilidades de fazer fender, fissurar. Refiro-me tanto a estratégias, práticas
e metodologias-pedagogias que se entretecem com e se constroem nas
lutas de resistência, insurgência, afirmação, re-existência, re-humanização
e libertação (WALSH, 2013) como às ações sociais, políticas, epistêmicas,
artísticas, poéticas, performáticas, espirituais – todas pedagógicas – que
empregamos para quebrar e fissurar, para in-surgir e construir, assim como
para alargar e aprofundar as gretas. É a tudo isso que me refiro quando falo
de espaço, lugar, incidência e fazer das gretas descoloniais. (WALSH, 2013)
As gretas dão luz a esperanças pequenas.12 Penso na flor que apare-
ceu de um dia para o outro em uma pequena fenda das grades exteriores de
pedra e cimento de minha casa, também nas duas folhas verdes que brota-
ram ante meus olhos no asfalto de uma vereda em plena cidade. As gretas
em que penso revelam a irrupção, o começo, a emergência, a possibilidade
e também a resistência do muito outro que faz vida apesar de – e fendendo,
fissurando – as próprias condições de sua negação.13 Para muitxs, estas

12 Assim, penso na luz de que falou Gloria Anzaldúa (2015, p. 8): “a luz que ilumina a escuridão”,
a luz que é a lua, a sombra e o sonho.
13 De fato, esta não é a única forma de pensar as fissuras ou gretas. Nas comunidades negras do
Pacífico, disse Juan García, as pessoas falam das fissuras como ameaça e perigo, como estas

106 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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gretas passam de forma inadvertida, desapercebidas e invisíveis, fora das
esferas de percepção, atenção e visão. Isto se deve, em grande medida,
à naturalização míope da vida e do viver contemporâneo, mas também à
inabilidade – inclusive entre muitxs da chamada esquerda – de imaginar e
compreender os modos-outros que existem e poderiam existir nas bordas
e rupturas. (WALSH, 2014) As gretas assim requerem um refinamento do
olho, dos sentidos e da sensibilidade para poder ver, ouvir, escutar e sentir
o muito outro devindo e sendo, e para reconhecer nele a esperança peque-
na que não apenas grita, mas também afirma e caminha vida.
“Nosso caminhar, ainda que exista sempre à borda da possibilidade,
existe”, nos recorda o Coletivo Gretas. Seu caminhar e lutar são os de mui-
tos coletivos e indivíduos em Abya Yala hoje que buscam, geram e se situam
nas e a partir das gretas; fissurando para construir, diariamente e a partir de
diferentes espaços, geografias e tempos, formas de estar, fazer, sentir, pen-
sar, saber, existir e viver muitas outras. “Alargamos um pouco mais a greta
que habitamos no muro das impossibilidades econômicas e políticas”, diz
o Coletivo, “e tornamos mais profunda a rachadura dentro do grande muro
do capitalismo […]. Enfim, damos espaço a tudo o que se oponha ao cho-
que sistêmico e existencial que imobiliza a vontade de mudar o mundo”.
(COLECTIVO GRIETAS, 2012, p. 2)
As gretas, claro, são a consequência das resistências e insurgências
exercidas e em marcha. Abrem-se e tomam forma na própria luta, em le-
vantamentos, rebeliões e movimentos, mas também em práticas coletivas
e cotidianas. Refiro-me a práticas não baseadas na lógica da modernidade/
colonialidade capitalista-patriarcal-heteronormativa-racializada com seu
“monólogo da razão moderna-ocidental” (BAUTISTA, 2009), negação on-
tológico-existencial, epistêmica e cosmogônica-espiritual, exploração da
natureza e projeto de guerra-morte, e sim em suas exterioridades, bordas e
fissuras. São essas fissuras construídas, criadas, moldadas e vividas de baixo
que dão lugar a processos e práticas que o sistema de poder – e também a
esquerda tradicional, partidista e “revolucionária” – jamais pôde nem pode-
rá imaginar ou compreender.

fendas onde pode entrar o forâneo, o bicho (real ou simbólico) que vai comendo e destruin-
do de dentro (conversação pessoal, abr. 2016).

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 107

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O capitalismo, como sabemos, se pensa e se posiciona como oni-
potente, global e totalizador. Por isso mesmo, a postura da esquerda lati-
no-americana foi, historicamente, pela sua transformação e derrota total.
O problema com esta postura, como bem explica Gustavo Esteva (2014), é
que não permite libertar a ação política, nem se dar conta das fissuras de
baixo e de sua força e possibilidade esperançadora.

Em uma luta anticapitalista […] não podemos libertar a ação po-


lítica enquanto mantivermos uma visão do capitalismo que nos
submerge nessa paranoia, quando ele é percebido como um sis-
tema unificado, homogêneo, que ocupa todo o espaço social e do
qual nada pode escapar. (ESTEVA, 2014, p. 40-41)

Esta visão paralisante – à qual me refiro acima como a Grande Espe-


rança – se nutre, seguindo Esteva, “com a ideia de que este sistema mundial
só pode ser desmantelado em seu conjunto”. A esquerda educada nesta
tradição, diz Esteva (2014, p. 41),

luta continuamente contra um espectro ou adia continuamente


a luta real contra o capitalismo, porque não conseguiu haurir a
força que se requer para enfrentar o gigante que sua imaginação
concebe. Esta postura desqualifica toda a realidade não capitalis-
ta […] e rechaça toda a luta parcial contra o capitalismo e mais
ainda a que pretende localizar-se mais além do capitalismo.

Assim, Esteva (2014, p. 65) argumenta pela necessidade de “sair dos


cárceres intelectuais e ideológicos […] libertar a esperança de sua prisão
intelectual e política” e construir “novas formas de luta transformadora”.
(ESTEVA, 2014, p. 7) Tal aposta recorda a chamada de Paulo Freire (2003,
p. 50), quase ao final da vida, para “reinventar as formas de ação política”.
Freire (2003, p. 55-56) dizia que “deve-se reinventar a forma de lutar, mas
jamais parar de lutar”, devem ser buscados novos caminhos de luta, novas
formas de rebeldia.
No livro O pensamento crítico frente à hidra capitalista, resultado de
uma reunião-seminário-semeador de pensamentos, com a participação da
Comissão Sexta do EZLN, os subcomandantes insurgentes Moisés e Galea-
no (autorreferidos como SupMoisés e SupGaleano) ressaltam a necessidade

108 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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de novas formas e métodos de luta, resistência e rebeldia ante as múltiplas
cabeças atuais e cambiantes do capitalismo – a “hidra” capitalista capaz de
transformar-se, adaptar-se e regenerar-se – e ante a catástrofe ou tormenta
que está por vir: “as coisas estão mudando e os companheiros e compa-
nheiras estão mudando as formas de luta. Temos que buscar mudar para
sobreviver”. (EZLN, 2015, p. 355)
Nesta busca por mudar, os e as zapatistas empregam sua metodo-
logia – que é uma pedagogia – de caminhar e perguntar. Perguntando, se
caminha. Perguntando, também fissuram o muro da história.

Se não há greta, bom, deve-se fazê-la arranhando, mordendo, chu-


tando, golpeando com mãos e cabeça, com o corpo inteiro, até con-
seguir fazer na história essa ferida que somos […]. As zapatistas e
os zapatistas aprenderam que, se param de arranhar a greta, esta
se fecha. O muro se refaz a si mesmo. Por isso devem seguir sem
descanso. Não apenas para alargar a greta, sobretudo para que não
feche […]. Agora o importante é a greta. (EZLN, 2015, p. 198, 201)

Durito, um pequeno escaravelho que usa lentes e fuma cachimbo,


protagonista de muitos dos contos do já finado subcomandante insurgente
Marcos, também tinha muito o que dizer sobre o muro e as gretas:

Achatando-o, os governantes colocaram o mundo como se fosse


uma parede que divide uns dos outros. Mas não é uma parede
assim como conhecemos. É uma parede reclinada. Ou seja, não
há apenas um lado e o outro, mas há um acima e um abaixo.
[…] O muro e os que estão acima pesam muito, então os que es-
tão abaixo não se conformam, murmuram, conspiram. Ademais,
o grande peso provocou uma grande greta no muro […]. Os de
baixo, ou seja, a imensa maioria da humanidade, tratam de apro-
ximar-se da fissura para ver o que é que pesa tanto e, sobretudo,
porque devem suportar esse peso […]. A rebeldia no mundo é
como uma greta em um muro: seu primeiro sentido é aproximar-
-se do outro lado. Mas, depois, este olhar debilita o muro e ter-
mina quebrando-o por completo. A rebeldia vai mais além do que
ocorre na ‘mudança’ moderna, [a que] aproveita a greta para ir-se
para o outro lado do muro, o de cima, esquecendo, consciente
ou inconscientemente, que pela greta não podem passar todos
[…]. A rebeldia, ao contrário, vai muito mais além. Não pretende

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 109

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aproximar-se do outro lado, muito menos passar para lá, o que
quer é debilitar o muro de tal forma que acabe por desmoronar-
-se e, assim, não haja mais um e outro lado, nem acima e abaixo.
(SUBCOMANDANTE INSURGENTE MARCOS, 2003 apud COLECTIVO
GRIETAS, 2012, p. 7-8)

No texto “Fissurar o capitalismo”, John Holloway (2011, p. 22-23, 28-29),


intelectual inglês radicado há muito tempo no México, argumenta que:

as gretas sempre são as perguntas, nunca respostas […]. É desde ali


que começamos, desde as gretas, as fissuras, os cismas, os espaços
de negação-e-criação rebelde […] de outro-fazer. A greta é uma
insubordinação do aqui-agora, não um processo para o futuro.

Sua importância, neste sentido, está em seu próprio fazer, em seu


fazer sendo e fazendo. Holloway ressalta isto quando fala do método e da
atividade prático-teórica da greta:

Lançarmo-nos fisicamente contra as paredes e também determo-


-nos a refletir e buscar as gretas ou as falhas na superfície. As duas
atividades são complementares, a teoria só tem sentido se é enten-
dida como parte do esforço desesperado por encontrar uma saída,
por criar gretas que desafiem o avanço aparentemente irrefreável
do capital, das paredes que estão nos empurrando para a nossa
destruição […]. A abertura das gretas é a abertura de um mundo
que nos é apresentado como fechado […]. O método da greta é o
método da crise: queremos compreender a parede não a partir de
sua solidez, mas de suas gretas. (HOLLOWAY, 2011, p. 8-9)

Assim, as gretas como estamos propondo e pensando – junto com


Holloway, o EZLN, o Coletivo Gretas e um amplo nós – são o lugar do fa-
zer prático-teórico e, sem dúvida, político-pedagógico, das esperanças
(esperançares) pequenas. São parte do como, ou dos “comos”, na palavra
de Olvera Salinas (2017), das rupturas, transgressões e deslocamentos da
lógica e da ordem capitalista-patriarcal-moderna/colonial, da re-existência
fazendo-se e destas formas muito-outras constitutivas do colonial – que o
constroem, fazem, caminham e pedagoziam. Nas gretas é onde começam a
entretecer-se, sem dúvida, o pedagógico e o descolonial.

110 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Como expliquei com mais detalhes anteriormente (WALSH, 2013),
entendo a pedagogia como uma prática e um processo sociopolítico pro-
dutivo, como uma metodologia essencial e indispensável, fundamentada
na realidade das pessoas, suas subjetividades, histórias e lutas, como dizia
Freire (1974). Mas meu entendimento não fica aí. Reconheço as limitações
de Freire (WALSH, 2013, 2015b), incluindo sua orientação ideológico-políti-
ca enraizada em posturas, visões e paradigmas emancipatórios ocidentais.
Esta orientação que ele mesmo criticou ao final da vida não lhe permitia ver
com clareza as estruturas racializadas, heteronormativas e patriarcais, as
experiências vividas da colonialidade e as lutas por autonomia, autodeter-
minação e descolonização. (SMITH, 1999)
Por isso mesmo, penso a pedagogia, as pedagogias e a pedagogização
– assim ressaltando sua “verbalidade” – (VÁZQUEZ, 2014) com e mais além
de Freire. Neste pensar, encontro ressonância e acompanhamento especial na
postura da feminista caribenha Jacqui Alexander e seu poderoso livro Pedago-
gies of Crossing. Em seu texto, ela se alia com a compreensão de Freire de pe-
dagogia como método, ao mesmo tempo que define seu projeto atravessando
outros domínios que a conduzem mais além dos confins da modernidade e do
aprisionamento do que ela denomina sua “episteme secularizada”.
O projeto de Alexander é “perturbar e reconstituir as divergências
herdadas do sagrado e do secular, que se corporizam e descorporizam”
através das pedagogias que derivaram do “cruzamento”, concebido como
mensagem significante e existencial, como passagem até uma configuração
de novas maneiras de pensar e ser. A posição de Alexander não é explicita-
mente a partir do descolonial, no entanto ela compromete esta perspectiva
em sua análise da fragmentação material e psíquica e do desmembramento
produzido pela colonização, bem como em sua ênfase no trabalho de des-
colonização em relação com a ânsia de todo o conjunto, o que Vázquez
(2014) descreve como “relacionalidade”. Aqui ela sustenta que

Os movimentos de libertação de esquerda não compreenderam


isto suficientemente na psicologia da libertação […]. O que temos
pensado como uma política de oposição tem sido necessário, mas
nunca nos sustentará, já que, enquanto pode dar-nos alguns ga-
nhos imediatos (que se fazem mais efêmeros quanto maior for a
ameaça, o que não é uma razão para não lutar), não pode em úl-

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 111

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tima instância alimentar esse lugar profundo dentro de nós: esse
espaço do erótico […] a Alma […] o divino. (ALEXANDER, 2005,
p. 291-282, tradução nossa)

Para Alexander, as pedagogias devem ser concebidas neste senti-


mento; apela e conjura o modo-outro do descolonial. Por isso, aqui consi-
dero particularmente relevante sua compreensão múltipla de “pedagogia”:

Como algo dado, como entregue na mão, revelado; como algo


que irrompe, transgredindo, perturbando, deslocando, inverten-
do conceitos e práticas herdadas, como essas metodologias psí-
quicas, analíticas e organizacionais que utilizamos para conhecer
o que cremos que conhecemos para tornar possíveis diferentes
conversações e solidariedades; como um projeto tanto epistêmi-
co como ontológico amarrado a nosso modo de ser e, portanto,
semelhante à formulação de Freire da pedagogia como metodo-
logia indispensável. Pedagogias [que] convocam conhecimentos
subordinados que são produzidos no contexto das práticas de
marginalização, para que possamos desestabilizar as práticas
existentes de conhecer e assim cruzar fronteiras fictícias de exclu-
são e marginalização. (ALEXANDER, 2005, p. 7, tradução nossa)

Com Alexander, encontro uma afinidade que permite ir mais além


das divisões e totalizações que a colonialidade impôs e até movimentos
que melhor apontam para o como do descolonial, para suas pedagogias e
práxis, especialmente em relação às gretas.
Assim, me interessa – nos interessa – não apenas o que desperta, se
abre e se desdobra nas gretas, mas também – e mais criticamente – o como
de seu fazer. Ou seja, como se faz – como fazemos – as ações, processos,
práticas metodológico-pedagógicas e lutas praxistas de fissurar, e como estas
atividades impelem, provocam e avançam formas outras de estar, ser, pensar,
saber, sentir, existir e viver; formas que interrompem, transgridem e fissuram
a matriz de poder e seu projeto-guerra de morte. São estas “pedagogizações”
e fissuras que dão sustento e andamento às esperanças pequenas, esperanças
que, quando começam a falar-se, aliar-se e tecer-se, se fazem mais fortes e
mais irrefreáveis em seu alentar, crescer e caminhar. No entanto, “pensar que
só a esperança transforma o mundo e o atuar movido por essa ingenuidade é
um modo excelente de cair na desesperança”, dizia Freire. “A esperança nos

112 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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imobiliza, nos faz sucumbir ao fatalismo de que nos é possível reunir as for-
ças indispensáveis para o embate recriador do mundo”. Por isso, “a esperança
necessita da prática para tornar-se história concreta”. (FREIRE, 2002, p. 8)
A luta tem de ser movida pela esperança, pelo fundamento ético-his-
tórico de seu êxito, como sustenta Freire. A esperança “faz parte da nature-
za pedagógica do processo político do qual essa luta é expressão”. (FREIRE,
2002, p. 9) A esperança, neste sentido, é por si só um componente necessário
e constitutivo da prática pedagógica e da pedagogia prática, praxista, das gre-
tas e da ação, e de seu como fazer fissurar. Mas também é parte das práticas
pedagógicas e pedagogias praxistas de semear. Refiro-me também às semen-
tes de resistência, re-existência e vida (onde há guerra-morte) – que incluem a
vontade de politicamente, ontológico-existencialmente e coletivamente lutar
“decifrando uma práxis transformativa” (ALEXANDER, 2005, p. 130), como a
“esses comos” (SALINAS, 2017) de seu germinar, propagar, cultivar e cuidar.

SEMEADURAS
“Semear vida onde está a morte. Este é apenas um ponto de par-
tida”, disse Olvera Salinas. “Semear vida, aí onde apenas está a morte” é,
ademais, o chamamento que vem fazendo os Pueblos en Camino (dos quais
Olvera faz parte) desde 2014, em suas jornadas de encontros desde e com
os povos de baixo para resistir e transformar.

Resistimos a maus governos tentando criar os próprios; resisti-


mos ao afã capitalista de lucro com economias a partir dos povos;
resistimos ao patriarcado criando comunidades entre mulheres e
homens; resistimos à colonialidade desclassificando-nos; resisti-
mos à morte semeando vida. E por isso chamamos ao encontro
entre xs de baixo.14

“Semear vida, aí onde apenas está a morte foi e é o caminho/hori-


zonte de milhões de pessoas, organizações, coletivos, comunidades, povos
em campos e cidades do Planeta Terra para não desaparecer. E também se
tornou nosso caminho/horizonte”. (ENCUENTROS…, [201-?]) Em palavras
de Manuel Rozental, também integrante de Pueblos en Camino, “como a
morte não é alternativa, deve-se semear o futuro de vida”. (LAO, 2009)

14 Ver: https://sembrarvidaahidondemeroestalamuerte.wordpress.com.

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 113

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Hoje a aposta de semear é fundamento central das insurgências,
resistências e re-existências de muitos povos, comunidades e coletividades,
enfrentando, a partir de e com xs de baixo, a violência, o desmembramento,
o despojo, a desterritorialização e a destruição relacionados com a acumu-
lação do capital global e sua lógica e sistema de guerra-morte, desenvol-
vimentista, ocidentalizante, modernizante e patriarcal-moderno/colonial.
Não se deve esquecer que, no que diz respeito a esta lógica e sistema, o fe-
minicídio, o extrativismo e o extermínio das forças inter-com-relacionadas
e vitais de seres, saberes, territórios, memórias e comunidades – da própria
Mãe Natureza – têm um papel funcional.
Neste contexto e frente a esta realidade, o ato de semear – a semeadu-
ra – é um ato insurgente. Insurgente por seu insurgir e incidir; por fazer-nas-
cer, renascer, ressurgir, criar e construir possibilidades, esperanças e perícias
de vida e viver que não apenas afrontam a lógica-sistema dominante, mas tam-
bém contribuem para o seu fissuramento, debilitamento, desmantelamento e
destruição eventual, com o crescimento de algo radicalmente distinto.
A semeadura, neste sentido, não é um ato descontextualizado,
desterritorializado, descorporificado ou individual. É um ato persistente,
consciente e situado que em sua prática, processo e continuidade invoca
e convoca as memórias coletivas, que seguem muito vivas, as rebeldias,
resistências e insurgências dxs ancestrais e antepassados, bem como da
coletividade-comunidade. Na prática, processo e continuidade se desco-
brem, inventam e realizam métodos de como fazer, pedagogias vivas, de
vida e dignidade renascentes, que cultivam sementes de descolonialidade
e seus germens, brotos, raízes e crescimentos “muito outros”. De fato, esta
semeadura, este fazer-semear e seus “comos” não estão apenas na – tam-
pouco apenas são da – terra. Têm a ver com todas as esferas da vida, da re-
-existência física, simbólica, social, cultural, cosmológico-espiritual, como
também de saberes, sabedorias e conhecimentos.
O EZLN argumenta que, ante a tormenta que vem e ante as múltiplas
cabeças crescentes, cambiantes e generativas da hidra capitalista, necessita-
mos cultivar novos sementeiros de pensamento crítico, sementeiros e semen-
tes que podem fazer crescer novos métodos – novas pedagogias – de luta.15 “A

15 Diz SupMoisés que, “com o pensamento crítico, analisamos o modo do inimigo, que nos
oprime, explora, reprime, despreza, rouba. Mas também com o pensamento crítico vamos

114 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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semente […] que questiona, provoca, alenta, impulsiona a seguir pensando e
analisando. Uma semente para que outras sementes escutem que devem cres-
cer e o façam do seu modo, segundo seu calendário e geografia”. (SUPGALEA-
NO apud EZLN, 2015, p. 33) “Daí vejam que semente é boa”, diz SupMoisés, “e
que semente pensam que não é boa ou que não se pode pôr em prática, vejam
o que se tem primeiro de fazer, e segundo, e terceiro, e quarto”. (EZLN, 2015,
p. 179) “Trata-se de agarrar as sementes e escolher quais nos servem” (EZLN,
2015, p. 350) e daí o que e como fazer, semear e lutar.
Para mim, a semeadura não pode ser separada dos gritos e das gretas.
É entretecida em atitude, cumplicidade e no afã criativo, propositivo e “per-
guntativo” do que e como fazer (o que e como gritar, fissurar, semear e cami-
nhar). São entretecidas em – apelam e conjuram – modos-outros de pensar,
sentir, saber, expressar, atuar, agenciar – estando, sendo, sentindo, pensando,
sabendo, gritando-fissurando-semeando, lutando – desde, com, por e pela
vida ante a guerra-morte que é o capital-global-racista-patriarcal-colonial.

ENTRETECERES PELO GRITO: FISSURANDO,


SEMEANDO E FAZENDO CAMINHAR
Meus gritos não pararam, tampouco seu espanto, raiva, indigna-
ção ou vibração. O que ocorre é que agora não são apenas meus. Formam
parte de um entretecimento de gritos, interrompendo e transgredindo os
silêncios impostos e implodindo a partir do seu acumular. Ouça, não pode
escutá-los em seu lutar?
A partir das gretas, os gritos sonoros fazem tremer, mas também
fazem fissurar. Aqui estão xs gritões e gritadorxs arranhando, golpeando e
quebrando, juntando forças – como não basta com os gritos– para atuar,
pensar, lutar e também semear.
Assim, os gritos, gretas e semeaduras vão entretecendo-se, entre-
tecendo-nos em um cada vez mais crítico e urgente caminhar. São os gri-
tos, gretas e semeaduras das pessoas que, em parte, fazem o caminho. Um
caminho que certamente não se faz apenas com fissuras na estrutura, mas
– como bem afirma a feminista descolonial Betty Ruth Lozano – também

vendo como é nosso caminho, como são nossos passos […]. Os chamamos para que façam
seus próprios sementeiros e nos compartilhem o que assim semeiem”. (EZLN, 2015, p. 349)

GRITOS, GRETAS E SEMEADURAS DE VIDA 115

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com mundos fora dessa estrutura: “como ontologias da vida que puderam
ser porque não conseguiram ser completamente colonizadas, colonização
inconclusa que agora se pretende terminar” (conversação pessoal, 11 maio
2016). As pessoas, a partir de seus mundos-outros e a partir de suas práti-
cas-outras, conseguem plantar, apesar de e nas quebras da estrutura-siste-
ma-lógica dominante fazerem caminho e se fazerem caminhar.
Como adverte Enrique Dussel (2002, p. 322): “sem a práxis não se
faz caminho”. O caminho não se pode fazer sem referências, “Se necessita
de uma bússola para saber em que direção se deve caminhar. A bússola são
os princípios”, diz, “e a direção se descobre em sua aplicação concreta, com
o material da práxis cotidiana, militante, solidária”. É esta práxis que Freire
entendeu como a ação e reflexão no mundo para mudá-lo, uma práxis ético-
-política – significativa ou de sentido como dizia a feminista afro-americana
bell hooks (1994, p. 47) – fundamentada na luta da, por e pela vida. Em seu
pensar com Freire, Dussel ressalta esta ética da práxis, consciência e ação,
e seu sentido pedagógico:

A práxis de ‘transformação’ não é o lugar de uma ‘experiência’


pedagógica; não se faz para aprender; não se aprende na aula
com ‘consciência’ teórica. É a mesma práxis transformativa da
‘realidade real’ e histórica onde o processo pedagógico vai sendo
efetuado como progressiva ‘conscienti-zação’ (‘ação’ na qual se vai
ganhando consciência ético-transformativa: libertação) […]. Tra-
ta-se de um processo realíssimo, concreto […] ético ‘material’: a
vida. (DUSSEL, 2002, p. 436)

É a ética da luta, a práxis de viver o que cada um afirma e a pe-


dagogia viva que se constrói e construímos no caminho de lutar, semear,
cultivar e sustentar os mundos-outros e modos-outros, que vão marcando e
significando os entreteceres do pedagógico e do descolonial. Refiro-me às
práticas ativas, as apostas praxistas-políticas e os processos metodológicos
e organizativos que empregamos e inventamos tanto para lutar contra o
projeto guerra-morte como parar criar, possibilitar e afirmar a vida fora da
lógica-estrutura capitalista-patriarcal-moderno/colonial imperante.
Essas são as pedagogias descoloniais que construímos, “sentipensa-
mos”; os gritos, as esperanças e as forças que se juntam fazendo caminhar.
Um juntar que nos faz saber que não estamos sós, que não somos poucxs e

116 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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que estes mundos-modos-práticas-muito-outros existem e seguem em sua
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EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA:
A EDUCAÇÃO PARA O DIÁLOGO INTERCULTURAL COMO
VIA DECOLONIAL PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Aline Cristina Oliveira do Carmo

INTRODUÇÃO À CORRENTE DOS ESTUDOS


PÓS-COLONIAIS/DECOLONIAIS E SUAS VERTENTES:
O DEBATE MODERNIDADE/COLONIALIDADE
A nova inflexão nos estudos sobre o colonialismo, que destacam sua
inegável relação com a modernidade (de modo a indicar a permanência dos
seus efeitos nos dias atuais), é um assunto que tem sido profundamente
debatido nos últimos anos em diferentes áreas do conhecimento, especial-
mente nas áreas das letras e das ciências sociais.1 Esse assunto pode ser
identificado como objeto de estudo em inúmeras produções bibliográficas
de autores de diversas regiões do mundo, especialmente provenientes de
países do hemisfério sul, nas Américas e Caribe, África e Ásia. Aos poucos,
observamos autores da filosofia também participando do debate, levantan-
do a questão de se a filosofia, tal como é produzida nos dias atuais, também
é capaz de reproduzir o colonialismo.

1 Cf, por exemplo: BONNICI, T. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais. Mimesis,
Bauru, v. 19, n. 1, p. 7-23, 1998; CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Prefácio de Ma-
rio de Andrade. Tradução do francês por Noémia de Sousa. Lisboa: Sá da Costa, 1978; WA
THIONG’O, N. Decolonizing the Mind. The Politics of Language in African Literature. London:
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121

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 121 29/08/2019 06:33


Em um estudo que traça um quadro descritivo dos estudos pós-co-
loniais, Gabriel Sena Jardim (2014) indica que:

Os estudos pós-coloniais configuram um campo epistemológico


de abordagens críticas sobre os efeitos da colonização nas cul-
turas e sociedades atuais, um conjunto de contribuições teóri-
cas desenvolvidas especialmente a partir de estudos literários e
culturais (SAID, 2007, 2011; HALL, 2009; GILROY, 2001; BHABHA,
1998). Inspirados pelo pós-estruturalismo, desconstrutivismo e
pós-modernismo, os teóricos pós-coloniais propõem a dissolução
de dicotomias e hierarquizações que enrijecem identidades cultu-
rais, evidenciando processos de essencialização e dominação que
se constituíram historicamente, desde o período colonial, e man-
tiveram-se após as lutas por independência. (COSTA, 2006 apud
JARDIM, 2014, p. 28-29)

Através de uma crítica à essencialização das identidades culturais,


entendida como uma construção discursiva com efeitos na realidade, os
estudos pós-coloniais desenvolvem uma análise do discurso colonial, com
o intuito de evidenciar o processo de formação dos sujeitos nesse contexto.
Se, por um lado, Jardim enfatiza a importância de autores do conti-
nente asiático para a caracterização do contexto interpretativo dos estudos
pós-coloniais, de outra parte há também uma importante vertente desses
estudos na América Latina e Caribe. Nesta, o grupo modernidade/colonia-
lidade confere destaque ao conceito de colonialidade do poder, do qual se
desenvolveram os conceitos de colonialidade do saber e do ser.
A colonialidade foi um conceito desenvolvido originalmente no iní-
cio dos anos 1990 por diversos autores latino-americanos, especialmente o
sociólogo peruano Aníbal Quijano. De acordo com o autor,

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do


padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de
uma classificação racial/étnica da população do mundo como pe-
dra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos
planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência
social quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se
a partir da América. (QUIJANO, 2010, p. 84)

122 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Dessa forma, ele enfatiza uma compreensão da modernidade de
modo a destacar como um de seus elementos formadores o colonialismo
europeu nas Américas, tido como um dos meios de expansão do capita-
lismo pelo mundo. Ao estabelecer uma diferenciação entre colonialismo
e colonialidade, essa perspectiva busca evidenciar o estabelecimento de
categorias do pensamento e do poder capazes de manter uma estrutura
de dominação mesmo após o término de uma relação oficial em termos de
metrópole e colônia. Para Quijano (2010, p. 84),

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a,


colonialismo. Este último refere-se a uma estrutura de dominação/
exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de
produção e do trabalho de uma população determinada domina
outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além
disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre,
necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialis-
mo é obviamente mais antigo, enquanto a colonialidade tem vindo
a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que
o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e,
mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade
de modo tão enraizado e prolongado.

Como se pode notar, a diferenciação entre colonialismo e colonia-


lidade parte de uma constatação simples, isto é, de que as relações de co-
lonialidade na esfera política e econômica não terminaram com o fim do
colonialismo. (BALLESTRIN, 2013, p. 99) Essa constatação, evidentemen-
te, não foi notada somente por Quijano, e diversos autores, como Ramón
Grosfoguel (2008), Nelson Maldonado Torres (2008) e Boaventura de Sousa
Santos (2010), assim como diversos grupos de pesquisa seguem discutindo
essa questão sob diferentes enfoques, como a crítica ao capitalismo, algu-
mas vertentes do feminismo e as literaturas pós-coloniais.2
De acordo com essa perspectiva, em grande parte influenciada pe-
los estudos de Frantz Fanon (1925-1961), o ser colonizado é compreendido
como um produto da modernidade, em sua íntima relação com a colonia-
lidade do poder e do saber. Assim, o ser moderno é construído como um

2 Cf., por exemplo: Spivak (1999).

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 123

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 123 29/08/2019 06:33


sujeito vinculado à cultura ocidental, tomada como modelo único de huma-
nidade e civilização. Nessa perspectiva, a produção do sujeito colonizado
ocorre por meio de um processo de desumanização, no qual sua humanida-
de só é reconhecida na medida em que se adequar ao modelo civilizatório
imposto pelo colonialismo. No mundo colonial (e por vezes no pós-inde-
pendência), essa adequação se efetiva por meio de práticas de apagamento,
silenciamento e criminalização das línguas e práticas tradicionais dos povos
colonizados, tidas como primitivas, selvagens e inadequadas para os propó-
sitos da colonização moderna.3
Por essa razão, a filósofa indiana Gayatri Spivak, em um livro que
se tornou referência dos estudos sobre feminismo pós-colonial, a partir
de uma leitura crítica de um diálogo entre Foucault e Deleuze, enfatiza a
necessidade dos intelectuais de darem voz aos sujeitos subalternizados, em
vez de tentarem falar por eles.

Na minha opinião a prática radical deve estar atenta a esse duplo


sentido do termo representação, em vez de tentar reinserir o su-
jeito individual por meio de conceitos totalizadores de poder e
de desejo. […]. Pode o subalterno falar? O que a elite deve fazer
para estar atenta à construção contínua do subalterno? A questão
da ‘mulher’ parece ser a mais problemática nesse contexto. Evi-
dentemente, se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de
três maneiras. […] As precauções que acabo de expressar são váli-
das apenas se estamos falando da consciência da mulher subalter-
na – ou, mais aceitável, do sujeito subalterno. Relatar, ou melhor
ainda, participar do trabalho antissexista entre as mulheres de
cor ou as mulheres sob opressão de classe no Primeiro ou no
Terceiro Mundo está inegavelmente na ordem do dia. Devemos
acolher também toda recuperação de informação em áreas silen-
ciadas, como está ocorrendo na antropologia, na ciência política,
na história e na sociologia. (SPIVAK, 2010, p. 54, 110-111)

3 Com efeito, no período colonial há um importante documento legal que explicita o projeto
civilizacional para o Brasil pensado por Portugal referente às populações indígenas, mas com
importantes evidências relativas ao tratamento à população negra. Trata-se do Diretório dos
índios, elaborado em 1755 e publicado em 1757, em vigor durante o período pombalino. Em-
bora tenha sido curta a vigência da lei do Diretório, muitas de suas determinações mantêm
seus efeitos até os dias atuais, como a diferenciação entre negros e índios, a adoção da língua
portuguesa como oficial e o uso de nomes de origem portuguesa e cristã em detrimento dos
nomes nativos. Cf. ALMEIDA, R. H. O diretório dos índios: um projeto de “civilização” no Brasil
do século XVIII. Brasília, DF: UnB, 1997.

124 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 124 29/08/2019 06:33


Dessa forma, Spivak argumenta que o sujeito subalternizado se
refere àquele que é tratado como objeto, cuja voz não pode ser ouvida,
pertencendo às camadas mais baixas da sociedade, formadas por modos
específicos de exclusão. Citando Foucault, ela enfatiza que a repressão sig-
nifica uma determinação ao silêncio e uma afirmação de inexistência, o que
pode ser reforçado por intelectuais que apenas falam pelo outro, em vez de
concederem espaços para que falem por si mesmos e sejam efetivamente
ouvidos. (SPIVAK, 2010, p. 157)
Sendo assim, destaca-se, como ponto em comum na análise dos au-
tores que participam do diálogo sobre pós-colonialismo e decolonialidade,
uma crítica à epistemologia moderna. Nessa perspectiva, tal epistemologia
é caracterizada pelo princípio da neutralidade científica, que estabelece
uma separação entre sujeito e objeto de conhecimento. Ora, consideran-
do que de fato tal neutralidade não existe no contexto do colonialismo
(já que foi explicitamente denominado como uma missão civilizatória que
visa dominar ou mesmo extinguir povos considerados selvagens), uma com-
preensão pertinente do processo do conhecimento desde uma perspectiva
da descolonização deve reconhecer o lugar de fala dos interlocutores neste
debate. Isso porque todo conhecimento parte de um determinado lugar, e
é produzido e reconhecido como tal por determinadas pessoas, segundo
determinados valores aceitos pelo grupo. Reconhecer tais limitações no
processo do conhecimento, ao contrário de impedir uma verdadeira inves-
tigação científica ou filosófica, aponta para uma abertura de horizontes
na qual está presente uma diversidade de sujeitos produtores de saberes,
tomados pela visão colonial como simples objetos de conhecimento, uso e
exploração alheios.

A IDEIA DE UMA EDUCAÇÃO PARA O DIÁLOGO INTERCULTURAL


Discutindo o papel da educação no combate às opressões, a escrito-
ra afro-americana bell hooks (2013) reflete sobre o impacto que a cisão en-
tre mente e corpo – enfatizada pela epistemologia moderna, especialmente
com Descartes – pode ter no processo educacional. De acordo com a auto-
ra, tal cisão reforça a separação entre teoria e prática e, por conseguinte,
a falta de compromisso ético na prática pedagógica de muitos professores.

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 125

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Em contrapartida, a autora defende a teoria como prática libertadora, isto
é, a produção do conhecimento a partir de nossas dores, a fim de curá-las.
(HOOKS, 2013, p. 103)
Em Ensinando a transgredir (2013), obra em que reúne artigos nos quais
reflete sobre sua prática como educadora em universidades nos Estados Uni-
dos, hooks apresenta reflexões nas quais enfatiza a importância de pesquisa-
dores e profissionais da educação unirem teoria e prática, especialmente no
que tange à defesa da diversidade, através do combate ao racismo e ao sexis-
mo. No artigo “A teoria como prática libertadora”, ela apresenta seu encontro
com a teoria em um contexto de dor e desespero, de modo que a busca pela
compreensão do que ocorria dentro de si e ao seu redor a levou a direcionar
seus estudos a fim de que sua dor fosse embora. (HOOKS, 2013, p. 83)
No contexto educacional, é frequente a identificação, especialmen-
te na experiência de pessoas negras, seja quando crianças, adolescentes ou
adultas, da ocorrência de momentos de dor e incompreensão em decorrên-
cia do racismo. A esse respeito, afirma Azoilda Loretto da Trindade (2013,
p. 131-132):

Uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada ao ser discriminada,


sofre, se revolta, fica furiosa, deprimida... Enfim, tem várias rea-
ções. Agora, imaginemos um ser humano negro de 0 a 6 anos de
idade, uma criança negra que é, numa sociedade racista, discrimi-
nada 24 horas por dia e, muitas vezes, com o silêncio omisso dos
adultos, da professora.
Essa criança tem que se sustentar sozinha nestas situações. In-
felizmente, ainda há muita insensibilidade para com as crianças
negras. Estas, ao serem discriminadas, ficam acuadas, envergo-
nhadas, inibidas em denunciar. Se essa é uma experiência muito
confusa para uma pessoa adulta, imaginemos para um ser hu-
mano de pouca idade, uma criança de 0 a 6 anos. Professores
e professoras, acreditem, a criança pode não saber expressar
oralmente a discriminação, mas ela sente, sofre, seu corpo fica
marcado com a discriminação e com a omissão, com o silêncio
conivente, com a falta de acolhida do adulto que ela tem como
referência no momento.

Levando em conta o papel do estudante e do educador como su-


jeitos do processo educacional e não como objetos (ou meros receptores/

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reprodutores de teorias estrangeiras), as possibilidades de transformação
desse contexto para o fim do racismo parecem mais viáveis através de uma
proposta voltada para o diálogo. Dessa forma, bell hooks defende a teoria
e a educação como lugares de cura, tarefa que só é possível na medida
em que direcionarmos nossa prática para esse fim. bell hooks coloca essas
questões sob a perspectiva da relação entre teoria e prática, afirmando:

Quando nossa experiência vivida está fundamentalmente ligada a


processos de autorrecuperação, de libertação coletiva, não existe
brecha entre a teoria e a prática. Com efeito, o que essa experiên-
cia mais evidencia é o elo entre as duas – um processo que, em
última análise, é recíproco, onde uma capacita a outra.
A teoria não é intrinsecamente curativa, libertadora e revolucio-
nária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e di-
rigimos nossa teorização para esse fim. (HOOKS, 2013, p. 85-86)

Por essa razão, Paulo Freire (2011, p. 79-85) critica a educação


bancária, na medida em que fixa na figura do professor o único sujeito
possível da relação educacional, na qual o aluno permanece como objeto.
Como alternativa a esse modelo, Freire propõe a pedagogia do oprimido,
posteriormente denominada por ele de pedagogia da autonomia, na qual o
educando é chamado igualmente para agir como sujeito no processo de
ensino-aprendizagem.
Notadamente, a relação de sujeito e objeto observada por Paulo
Freire possui importantes referências na análise sobre a relação entre co-
lonizador e colonizado apresentada pelo filósofo e psiquiatra martinicano
Frantz Fanon. Com efeito, Freire (2011, p. 68) comenta a análise de Fanon a
respeito da violência praticada entre os próprios oprimidos, como sintoma
de que aprenderam a desejar a ser igual ao colonizador, que os violenta coti-
dianamente. Nessa perspectiva, a ideia de neutralidade do conhecimento é
vista como forma de omitir as violências praticadas na sociedade colonial e
sua permanência na atualidade. No âmbito escolar e na educação em geral,
essas violências são reproduzidas na relação entre educador e educando.
Fanon descreve essas violências dando as bases para o que hoje os estu-
dos pós-coloniais/decoloniais denominam como colonialismo epistemológico
e epistemicídio. Como venho observando neste trabalho, trata-se de práticas

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 127

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educacionais baseadas no silenciamento de narrativas contra-hegemônicas
– isto é, narradas por vozes e corporalidades não-hegemônicas, tais como
negras, indígenas, africanas, árabes, de mulheres, LGBTs etc. –, sujeitas às
políticas de controle, vigilância e extermínio, típicas do colonialismo.
Frantz Fanon (2008, p. 180), em sua descrição do processo colonial
e do modo como ele afeta a formação dos sujeitos colonizados e a cons-
ciência que têm de si mesmos, destaca o papel da educação nesse processo:

Às vezes me pergunto se os inspetores do ensino e os chefes da


administração estão conscientes do seu papel nas colônias. Du-
rante vinte anos insistem, com os seus programas, em fazer do
negro um branco. Por fim desistem e dizem: indiscutivelmente
vocês têm um complexo de dependência diante do branco.

Por identificar na linguagem uma via importante de construção da


subjetividade, o autor defende a superação de uma educação que reprodu-
za o racismo, incluindo a literatura e as cantigas infantis. A percepção de
uma realidade de negação da humanidade para a pessoa negra é observada
pelo autor desde a infância, momento em que observa o início dos traumas
decorrentes dessa situação.

São jornais escritos pelos brancos, destinados às crianças brancas.


Ora, o drama está justamente aí. Nas Antilhas – e podemos pensar
que a situação é análoga nas outras colônias – os mesmos perió-
dicos ilustrados são devorados pelos jovens nativos. E o Lobo, o
Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, o Selvagem, são sempre represen-
tados por um preto ou um índio, e como sempre há identificação
com o vencedor, o menino preto torna-se explorador, aventurei-
ro, missionário ‘que corre o risco de ser comido pelos pretos mal-
vados’, tão facilmente quanto o menino branco. Algumas pessoas
poderão pretender que isso não é muito importante, porque não
refletiram sobre o papel dessas revistas ilustradas […]. Impor os
mesmos ‘gênios maus’ ao branco e ao negro constitui um grave
erro de educação […]. Fica logo claro que queremos, nem mais
nem menos, criar periódicos ilustrados destinados especialmente
aos negros, canções para crianças negras, até mesmo livros de
história, pelo menos até a conclusão dos estudos. Pois, até prova
em contrário, estimamos que, se há traumatismo, ele se situa nes-
te momento da vida. (FANON, 2008, p. 130-132)

128 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Considerando os danos psicológicos e geracionais decorrentes do
colonialismo descritos por Fanon, a ideia de uma educação para a diversi-
dade cultural busca o rompimento com os padrões coloniais do poder, do
saber e do ser, expressos no racismo e nas opressões de gênero. Assim, a
educação intercultural visa direcionar nossa prática educativa para resta-
belecer o equilíbrio psicoafetivo daqueles que tiveram sua subjetividade
desintegrada pelo colonialismo. Isso significa dizer que reconhecer a di-
versidade cultural constitui elemento informador e enriquecedor de toda
sociedade democrática, e não o reconhecimento de identidades redutoras
ou confinadoras da subjetividade humana e de suas diversas possibilidades
de expressão.
Nessa perspectiva, desenvolve-se a compreensão do trabalho edu-
cacional como uma ação preventiva e formativa contra os danos psicológi-
cos decorrentes do colonialismo moderno, por meio do fortalecimento da
autoestima, bem como da construção de espaços seguros para o diálogo,
a escuta e a produção do conhecimento. Através de uma reflexão sobre
nossa prática pedagógica, pode-se compreender a educação como o de-
senvolvimento de um espaço de afeto e acolhimento para a produção e
compartilhamento de saberes, em oposição a um espaço e a uma cultura de
silenciamento e dominação.

PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA E RE-EXISTÊNCIA AFRODIASPÓRICA


Ao identificar no discurso da democracia racial um processo de de-
negação da identidade brasileira, Lélia Gonzalez, filósofa negra nascida no
Brasil, defende o conceito de amefricanidade como expressão de outro en-
tendimento sobre a história e a identidade do continente no qual o país
está inserido.

Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação


histórico-cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica
e, sobretudo, da ordem do inconsciente, não vem a ser o que
geralmente se afirma: um país cujas formações do inconsciente
são exclusivamente europeias, brancas. Ao contrário, ele é uma
América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t
pelo d para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras:
Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasilei-

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 129

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ra tem no racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contex-
to, todos os brasileiros (e não apenas os pretos e os pardos do
IBGE) são ladinoamefricanos. […] Enquanto denegação de nossa
ladinoamefricanidade, o racismo ‘à brasileira’ se volta justamente
contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros),
ao mesmo tempo em que diz não o fazer (‘democracia racial bra-
sileira’). (GONZALEZ, 1988, p. 69)

Ao colocar em relevo essa importante dimensão da história de


formação do continente, para além de referenciais europeus, o conceito
de amefricanidade, como uma característica inerente a todos da região
em razão da forte presença de culturas indígenas e africanas, contribui
para o desenvolvimento de ações afirmativas destinadas à elaboração
de currículos escolares e universitários efetivamente mais democráticos.
Dessa forma, a autora diferencia a experiência dos africanos que vivem no
continente da vivenciada por aqueles marcados pela vida nas Américas e
Caribe, no seio dos quais é criada a Améfrica. Nesse contexto, ela afirma
que as especificidades aí desenvolvidas podem contribuir de modo par-
ticular para o mundo pan-africano, ao mesmo tempo que se abandona
uma idealização da África, criticada por ela, uma vez que está distante da
experiência concreta daqueles que atravessaram o Atlântico e aqui tive-
ram que desenvolver novas estratégias de existir e re-existir. (GONZALEZ,
1988, p. 77-78)
Avançando nessas reflexões, Miranda, Riascos e Arboleda (2016)
enfatizam a necessidade de identificar um corpo conceitual próprio da
diáspora africana, capaz de revisar o cânone ocidental presente nas univer-
sidades. Nesse sentido, eles propõem um aprofundamento na compreensão
do quilombismo, conceito que remete às práticas de resistência e orga-
nização social desenvolvidas por povos africanos e seus descendentes no
contexto da diáspora.

São análises urgentes nas quais se enfatiza na necessidade de re-


visar o chamado cânone ocidental, para a organização da trans-
posição didática e da prática educativa nas universidades. Por fim,
nossa defesa é que a mudança de posição ou status de todo o
chamado ‘resto do mundo’ está diretamente relacionada a outro
referencial teórico. Para a diáspora africana, especificamente, é

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urgente fortalecer um corpo conceitual próprio, à maneira de pe-
dagogias quilombolas. Para este quadro que estamos propondo,
incluímos a noção de ‘quilombismo’ colocada por intelectuais e
ativistas afro-brasileiras/os em suas estratégias de composição de
redes (Devés-Valdés, 2008), organizando-se a partir de coletivos,
associações e fóruns, já que o Quilombo dos Palmares consoli-
da estes vínculos ao longo da história de resistência quilombola.
Quilombismo significa mover-nos em direção às nossas raízes, re-
ver os caminhos que temos feito sem vontade de fazê-los (porque
foram processos violentos) e estabelecer vínculos fundamentais
para preservar, conhecer e construir outros referentes para a diás-
pora africana. Trabalhar para essa tarefa é adotar o quilombismo,
o qual também está presente em diferentes regiões do planeta.4
(MIRANDA; RIASCOS; ARBOLEDA, 2016, p. 27-28, tradução nossa)

Para esses autores, o quilombismo, conceito desenvolvido por Ab-


dias do Nascimento em 1980 e profundamente informado pelos estudos
anteriores realizados por Beatriz Nascimento no mesmo período, é indica-
do como referencial teórico e prático, a fim de contribuir para um agencia-
mento distinto daquele estabelecido pelo sistema colonial. Dessa forma,
eles ressaltam não somente a capacidade de sobrevivência e resistência
das populações negras frente à violência racial nas suas mais diferentes
expressões, como também revelam o caráter criativo e propositivo dessas
populações no desenvolvimento de práticas decoloniais, contribuindo para
a construção de sociedades pós-coloniais.

4 “Son análisis urgentes en los cuales se hace énfasis en la necesidad de revisar el llamado ca-
non occidental, para la organización de la transposición didáctica y de la práctica educativa
en las universidades. Por fin, nuestra defensa es que el cambio de posición o status de todo
lo llamado ‘resto del mundo’ está directamente relacionado a otro referencial histórico. Para
la Diáspora Africana, específicamente, es urgente fortalecer un cuerpo conceptual propio a
manera de Pedagogías Quilombolas. Para este cuadro que estamos proponiendo, incluimos
la noción de ‘Quilombismo’ planteado por intelectuales y activistas afrobrasileñas/os en sus
estrategias de composición de redes (Devés-Valdés, 2008), organizándose a partir de colecti-
vos, asociaciones y foros, ya que el Quilombo dos Palmares consolida estos vínculos a lo lar-
go de la historia de resistencia quilombola. Quilombismo significa movernos hacia nuestras
raíces, rever los caminos que hemos hecho sin ganas de hacerlos (por que fueron procesos
violentos) y establecer vínculos fundamentales para preservar, conocer y construir otros re-
ferentes para la Diáspora Africana. Trabajar para esa tarea es adoptar al Quilombismo, el cual
también está presente en diferentes regiones del planeta”.

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 131

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A aventura colonial criou categorias específicas para a extrema e
extensa dominação de pessoas. […] As categorias ‘indígenas’ e
‘negros’ são ressignificadas pelos movimentos sociais e em seus
processos decoloniais (de liberação do imposto como cultura
do colonizador) vão questionando e afirmando suas opções às
identidades impostas pela ordem colonial a partir dos vínculos
com os seus ancestrais. África, então, retorna à sua origem. Um
continente com distintas sociedades, línguas, visões de mundo e
muitos caminhos desconhecidos. Dizer que os africanos captura-
dos em terras africanas foram escravizados e dispersos por todo
o mundo – sabendo que existem distintos grupos étnicos que
são convertidos em ‘negros’ – se converte em um mecanismo de
subalternização extremamente poderoso com o qual emerge a
crítica pós-colonial. Decolonizar é um compromisso que requer
o rechaço da perspectiva superficial do pluralismo e da diversi-
dade cultural. Por isso, é necessário vincular a categoria ‘negro’,
em primeiro lugar, ao movimento da Negritude de Aimé Césaire
(1913-2008) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001), entre outros
pensadores pan-africanos. O objetivo é justamente desnaturalizar
o sentido colonial de ser negra/o. As aprendizagens decoloniais
são aprendizagens que provocam questões sobre outras civiliza-
ções ignoradas pela coisificação das/os africanas/os capturadas/os.5
(MIRANDA; RIASCOS; ARBOLEDA, 2016, p. 27, tradução nossa)

Frantz Fanon entende que o trabalho de fortalecimento da cultura


nacional deve ter por objetivo não tanto um resgate do passado, mas antes
estabelecer um novo posicionamento do povo colonizado em direção a um

5 “La aventura colonial creó categorías específicas para la extrema y extensa dominación de
personas. […] Las categorías ‘Indígenas’ y ‘Negros’ son categorías resignificadas por los mo-
vimientos sociales y en sus procesos decoloniales (de liberación de lo impuesto como cultura
del colonizador) van cuestionando y afirmando sus opciones a las identidades impuestas por
el orden colonial a partir de los vínculos con sus ancestros. África, entonces, vuelve a su ori-
gen. Un continente con distintas sociedades, idiomas, visiones del mundo y muchos caminos
desconocidos. Decir que los africanos capturados en tierras africanas fueron esclavizados y
dispersados por todo el mundo, – sabiendo que existen distintos grupos étnicos que son
convertidos en ‘Negros’ – se convierte en un mecanismo de subalternización extremada-
mente poderoso con el cual emerge la crítica postcolonial. Decolonizar es un compromiso
que requiere el rechazo de la perspectiva superficial del pluralismo y la diversidad cultural.
Por este motivo es necesario vincular la categoría ‘Negro’, en primer lugar, al movimiento de
la Negritud de Aimé Césaire (1913-2008) y Léopold Sédar Senghor (1906-2001), entre otros
pensadores panafricanos. El objetivo es justamente desnaturalizar el sentido colonial de ser
Negra/o. Los aprendizajes decoloniales son aprendizajes que provocan preguntas sobre otras
civilizaciones ignoradas por la cosificación de las/os africanas/os capturadas/os”.

132 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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processo de libertação que restabeleça a humanidade desse povo. Dessa
forma, a sua reflexão parece estar de acordo com a visão de Stuart Hall, ao
compreender a identidade não como essência, mas como posicionamento,
isto é, a base a partir da qual os sujeitos políticos se constituem e cons-
troem sua experiência na diáspora.
Nesse sentido, os estudos de Beatriz Nascimento sobre os quilom-
bos apontam não apenas para o caráter mutável dos seus diversos sen-
tidos ao longo da história, como também para seu caráter institucional
alternativo ao sistema colonial, capaz de nos alimentar esperanças em
tempos de crise:

É enquanto caracterização ideológica que o quilombo inau-


gura o século XX. Tendo findado o antigo regime, com ele
foi-se o estabelecimento como resistência à escravidão. Mas
justamente por ter sido durante três séculos concretamen-
te uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua
mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência
nacional […]. Como antes tinha servido de manifestação rea-
tiva ao colonialismo de fato, em 70 o quilombo volta-se como
código que reage ao colonialismo cultural, reafirma a heran-
ça africana e busca um modelo brasileiro capaz de reforçar
a identidade étnica. Toda a literatura e a oralidade histórica
sobre quilombos impulsionaram este movimento que tinha
como finalidade a revisão de conceitos históricos estereoti-
pados […]. Durante sua trajetória o quilombo serve de sím-
bolo que abrange conotações de resistência étnica e política.
Como instituição guarda características singulares do seu mo-
delo africano. Como prática política apregoa ideais de eman-
cipação de cunho liberal que a qualquer momento de crise da
nacionalidade brasileira corrige distorções impostas pelos po-
deres dominantes. Por tudo isto o quilombo representa um
instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da iden-
tidade negra brasileira para uma maior autoafirmação étnica
e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema
em que negros estavam moralmente submetidos projeta uma
esperança de que instituições semelhantes possam atuar no
presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à
identidade cultural. (NASCIMENTO, 2006, p. 122-125)

EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 133

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CONSIDERAÇÕES FINAIS PROVISÓRIAS
Como visto, seja como políticas compensatórias ou como políticas
de reconhecimento, os direitos do multiculturalismo ou da interculturalida-
de – isto é, de proteção à diversidade cultural – devem ser compreendidos
como políticas garantidoras de direitos humanos.
Isso significa dizer que o reconhecimento do direito à proteção das
manifestações culturais de matriz africana, bem como os direitos funda-
mentais da população negra à educação, à moradia e à representatividade
política, por exemplo, pode ser expresso através de políticas públicas vol-
tadas para a proteção de suas casas religiosas, incentivo ao resgate e ao
ensino de suas histórias e a outorga de título coletivo de propriedade às
comunidades remanescentes de quilombos. Assim, tais políticas não visam
necessariamente destruir a unidade nacional do Estado, mas criticar seu
uso como uma estratégia de homogeneização e consequente apagamento
das culturas nacionais de outros povos, igualmente integrantes desse Esta-
do que se pretende democrático.
Ainda que restem muitos desafios a serem enfrentados, é possível
observar que o crescimento de países do hemisfério sul – e de suas res-
pectivas produções intelectuais e normativas – evidencia a expressão de
diversos olhares e propostas sobre o que é (ou como deveria ser) uma so-
ciedade efetivamente democrática, nas suas mais diversas formas – liberal,
comunitária etc. Dessa forma, os estudos pós-decoloniais apontam para
uma compreensão que exige o reconhecimento da dignidade não apenas
do homem branco europeu e de seu respectivo imaginário social, como
também de todos os povos, com especial atenção àqueles particularmente
afetados pelo colonialismo, como os povos indígenas e os pertencentes à
diáspora africana.
Como resposta a essa realidade, o desenvolvimento de políticas da
identidade negra é entendido como uma prática decolonial, na medida em
que expressa a resistência de intelectuais e ativistas da diáspora africana
ao processo histórico de sua desumanização. Entretanto, em vez de apenas
lamentos e relatos de violência e discriminação, os processos de identifica-
ção afrodiaspórica apresentam novas linguagens, narrativas e saberes, que
contribuem significativamente para construir um novo humanismo, cuja

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necessidade é apontada por Fanon e diversos autores críticos da moderni-
dade/colonialidade.
Essas novas linguagens representam um movimento muito mais am-
plo, através das quais esses autores identificam mundos possíveis, tanto
para desenvolver e ampliar o escopo de atuação de pensamentos e práticas
tradicionais desses povos quanto para criar novas terminologias, destina-
das à identificação de formas de resistência e re-existência (isto é, de con-
solidação da dignidade plena desses povos) diante do colonialismo. Dessa
forma, os conceitos estudados revelam a existência de uma condição his-
tórica comum dos povos da diáspora africana (marcada por uma vivência
de deslocamento, discriminação e genocídio), cujos laços de solidariedade
atravessam as fronteiras nacionais, de forma a não apenas combater o racis-
mo em diversas partes do mundo, como também a restabelecer a humani-
dade desses grupos e legitimar os saberes produzidos por eles.

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EDUCAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E JUSTIÇA 135

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 135 29/08/2019 06:33


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136 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA:
APUNTES A LA COMPRENSIÓN
DE UN CAMPO EN DEBATE
Santiago Arboleda Quiñonez

INTRODUCCIÓN
La etnoeducación en general y en particular la afrocolombiana, úni-
ca en las Américas, nace en la segunda mitad de los años ochenta, como
una respuesta ante el etnocidio de larga duración contra la cultura de las
comunidades y de las sociedades afrodiaspóricas en el país. Esto es, una
defensa frente al racismo y a la eugenesia que fue oficializada por las po-
líticas públicas educativas, que buscaron abiertamente, hasta finales de la
década de los años 1980, negar los rasgos específicos que portan las prác-
ticas de estas colectividades, hacer invisibles sus contribuciones y aportes
a la construcción de las naciones y, en consecuencia, excluir sus cuerpos
mayoritariamente del sistema educativo, pero también sus conocimientos,
sus epistemologías y ontologías holísticas, relacionales y complejas fun-
damentadas en sus sistemas de pensamiento-acción, que se expresan con
notoriedad en su concepción de la vida/muerte y de las relaciones biocén-
tricas con sus entornos, más allá de los antropocentrismos; a través de sus
matrices espirituales y religiosas.
En esta dirección, las pugnas y los debates por la etnoeducación afro-
colombiana bien podrían situarse y dialogar con las denominadas pedago-
gías decoloniales en su dimensión de saberes, aprendizajes y metodologías
de lucha, desde la re-existencia para la descolonización, la humanización

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expropiada y despojada históricamente. Es decir, para la re-humanización.
(WALSH, 2013, 2017)
Este artículo brinda un acercamiento inicial a una de las trayectorias
de construcción e institucionalización del campo de la etnoeducación afro-
colombiana. Trayectoria diagramada por la relación que ha sido establecida
entre las comunidades educativas afrocolombianas locales y regionales, el
movimiento social afrocolombiano articulado a dichas comunidades por la
pertenencia de varios de sus maestros y maestras y el Estado, a través del
Ministerio de Educación Nacional (MEN). Entre las diversas trayectorias de
este campo con sus correspondientes especificidades, podemos destacar el
papel jugado por las universidades en la gestión de eventos y la creación
de licenciaturas en etnoeducación; el papel de las secretarias de educación
municipales y las departamentales en la difusión e implementación de la
etnoeducación y la cátedra de estudios afrocolombianos o el importante
rol cumplido por algunos núcleos de profesores al interior de los sindicatos
docentes departamentales, en la sensibilización del profesorado del país y,
en general, de las comunidades educativas, entre otras. Todas las trayecto-
rias pendientes de reconstrucción y comprensión, en su complejo entrela-
zamiento que escapan a los límites de este texto.
Aquí, se busca ilustrar algunos tópicos en discusión alrededor de
los enfoques socio-políticos y pedagógicos que presenta la etnoeducación
al interior del “movimiento pedagógico afrocolombiano”, en particular y
del movimiento social de comunidades negras en general, tópicos que han
permitido la configuración de una “comunidad temática”, de articulaciones
nacionales. Se aboca también los alcances y los obstáculos de la Cátedra de
Estudios Afrocolombianos, en su proceso de institucionalización, en el sis-
tema educativo nacional. Todo eso ha sido enmarcado en la inquietud sobre
las formas de construcción concreta, que en tiempos del multiculturalismo
han gestionado los grupos étnicos, en medio de grandes avatares.
La producción bibliográfica, tenida en cuenta, sobre Etnoeducación
Afrocolombiana, hace referencia directa a los temas pedagógico-políticos
que caracterizan este debate, por lo que se deslinda la posibilidad de in-
cluir como bibliografía etnoeducativa alguna parte de la producción litera-
ria, etnográfica e histórica, que sobre estas poblaciones se ha escrito y que
hacen parte de los contenidos curriculares, que moviliza la etnoeducación

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afrocolombiana, pero no corresponden propiamente a las reflexiones peda-
gógicas y educativas concretas inscritas en el horizonte político de disputa,
que está en juego en este campo.
Con base en las publicaciones iniciales, que dieron forma a esta co-
munidad temática, en la primera parte del texto se presentan los princi-
pales eventos que permitieron entroncar las demandas y las agendas del
movimiento social, con las necesidades del Ministerio de Educación Nacio-
nal para la formulación de la nueva política pública estatal, que se concretó
en la Ley general de educación nacional (Ley 115 de 1994), y algunas inquie-
tudes y propuestas de las comunidades educativas implicadas en el diálogo
con la academia.
Se plantea una posible cronología cuya primera fase estaría entre
1992 y 1996, con el “Congreso Pedagógico de Etnoeducación para el pueblo
Afrocolombiano”, realizado en Tumaco, y la publicación por parte del Minis-
terio de Educación de los lineamientos etnoeducativos conjuntos para las
comunidades indígenas y las afrocolombianas, los cuales, de cierta forma,
los equiparaban como grupos étnicos, socavando sus diferencias específi-
cas que, sin embargo, en la socialización de los mismos se van a pronunciar,
explicitando las particularidades culturales y sus trayectorias históricas, en
relación con el Estado y el conjunto de la sociedad, es decir, en las últimas,
sus disimiles estrategias de lucha por la descolonización colectiva de sus
modos de vidas.
La segunda parte se ocupa de trazar una fase comprendida entre
1998 y 2001, con la expedición del Decreto ministerial 1122, – reglamen-
tario de la Cátedra de Estudios Afrocolombianos –, en que se publican los
lineamientos de la misma, enfatizando su aplicación en el área de Ciencias
Sociales. Se abordanlos argumentos centrales de tres autores afrocolombia-
nos, que representan las dos posiciones sobresalientes sobre el proyecto
etnoeducativo y la Cátedra de Estudios Afrocolombianos, que han sido es-
grimidas al interior del movimiento social afrocolombiano y su movimiento
pedagógico en gestación. Esto autores son Juan de Dios Mosquera, Fabio
Teolindo Perea y Jorge Enrique García; quienes se debaten, en este momen-
to, entre la opción de un proyecto de integración inclusiva a la nación co-
lombiana, desde la educación, y un proyecto de autonomía negociada, que
apunta al reconocimiento de una nación negra o afrocolombiana, al interior

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 139

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de la nación colombiana, partiendo, especialmente, de la costa pacífica, lo
cual se debería afianzar desde la etnoeducación, como uno de sus compo-
nentes indispensables.
Por último, se esbozan los resultados preliminares de la socialización
de la Cátedra de Estudios afrocolombianos, a partir de 2001, destacando las
publicaciones y los aportes de varios maestros y maestras afrocolombia-
nas, que se les dieron la tarea de construir materiales didácticos para su
implementación, hasta 2004; con la expedición de la directiva ministerial
del MEN (11, Mayo 19 de 2004), con la cual se confirmaba la escasa socia-
lización e implementación que había tenido dicha cátedra en el aparato
educativo oficial del país.
La cronología propuesta busca tener en cuenta una articulación en-
tre hechos y acontecimientos propiciados tanto por el movimiento social
afrocolombiano, con sus comunidades educativas regionales y sus esfuer-
zos de dinamización nacional, como los propiciados por el Ministerio de
educación Nacional, en su proceso de estatización de la política pública
y la centralización de las decisiones desde Bogotá, sobre los destinos de
la etnoeducación en una constante tensión y disputa con las regiones que
le habían dado origen partir de sus experiencias en contextos concretos,
que resultaban marginadas en muchos momentos ante la limitada interlo-
cución a través de la comisión pedagógica nacional para comunidades ne-
gras, creada para tal fin, con representaciones de voceros departamentales,
pero cada vez más constreñida, por la tendencia impositiva del gobierno
de turno.

EVENTOS FUNDACIONALES Y PRIMERAS PUBLICACIONES:


LA CONSTITUCIÓN DE UNA COMUNIDAD TEMÁTICA
Sin perder de vista como antecedentes varios esfuerzos de organiza-
ciones y personas que han dado como resultado la producción y la socializa-
ción de una serie de materiales fotocopiados y de circulación limitada, con
diversos énfasis temáticos, a lo largo de los años ochenta, debe plantearse
de entrada que la bibliografía especifica en el campo de la etnoeducación
afrocolombiana o afroeducación, como algunos autores prefieren llamarla,
se sitúa con claridad a inicios de la década de los 1990, y está asociada,

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estrechamente, al reconocimiento y al ejercicio de los derechos étnicos de
dichas comunidades, en la constitución de 1991, la Ley 70 de 1993, y demás
legislación concerniente.
En relación con estos antecedentes, vale la pena destacar, por sus
notorios avances y aportes, el trabajo que ha sido realizado por el Centro de
Pastoral Afroamericana (Cepa), del Vicariato de Buenaventura, entre 1987
y 1990: “PROYECTO DE EDUCACIÓN AFROAMERICANA”, dando continui-
dad a los contenidos de sus Encuentros de Pastoral Afroamericana (EPA). El
material elaborado por clérigos, monjas y docentes laicos, miembros de la
pastoral, es un texto guía para docentes en la básica secundaria, que busca
brindar una visión de totalidad de las sociedades y las culturas afroamerica-
nas, puntualizando la afrocolombianidad. De ahí, que pase por la historia, la
antropología, la economía, la literatura, la danza, la música y la religiosidad,
a través de diferentes secciones y unidades articuladas por actividades de
profundización y evaluación que deben desarrollar los estudiantes. A pesar
de su significativo valor pedagógico-didáctico y de su validación en algunas
instituciones de Buenaventura, este no se publicó, ni se difundió como se
esperaba, básicamente debido a problemas financieros institucionales.
En medio de la intensa movilización de líderes y sectores de las
comunidades afrocolombianas, que implicó el desarrollo del artículo transi-
torio 55 de 1991, para dar surgimiento a la ley 70/93, el tema educativo, si
bien conservó su especificidad, con la discusión de los diferentes niveles y
elementos implicados en la producción y transmisión de conocimientos co-
herentes y pertinentes, con los correspondientes contextos; el movimiento
social, conformado por un número significativo de docentes, explicitó más
aún y hasta radicalizó en algunos momentos, sus concepciones políticas
de la educación. El sistema educativo calificado como aparato de domina-
ción, negación y enajenación de los hombres y mujeres afrocolombianos,
solicitaba cambios de fondo, en consecuencia, se planteaba la necesidad de
reconocimiento y afirmación de la identidad en tanto transformación fun-
damental de la educación en el país. Estableciendo una evidente continui-
dad con la agenda política para la educación, planteada en los años 1970,
dado que en los congresos y encuentros de la cultura negra y afroamericana
y, en general, en diferentes eventos de los líderes afroamericanos y afroco-

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 141

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lombianos, este tópico fue objeto permanente de reflexión debate y lucha
en el mismo sentido.1
Movilizando estos presupuestos, en diciembre del 1 al 4 de 1992,
se realizó en Tumaco el “Congreso Pedagógico de Etnoeducación para el
pueblo Afrocolombiano”, fue organizado por la Secretaría de Educación
Municipal y el CEID de Nariño. En este evento, además de presentar al-
gunas experiencias de innovación educativa, se avanzó en la concepción
política de la etnoeducación para comunidades Afrocolombianas, como el
proceso de descolonización, la construcción de identidad y las nuevas po-
sibilidades de dignificación social. De este congreso derivó la necesidad
de realizar un nuevo evento de carácter nacional, que permitiera ampliar
el número de experiencias y de enriquecer el intercambio y el conocimien-
to, contando con el apoyo del Programa Nacional de Etnoeducación del
MEN. Dicho evento se convocó para el siguiente año, desembocando en
el “Primer Seminario-Taller de Etnoeducación para Comunidades Afroco-
lombianas”, que se llevó a cabo en Cartagena entre el 7 y el 11 de Octubre
de 1993. El encuentro que se puede considerar, por sus resultados, como
el punto de partida y entronque efectivo entre la política pública estatal
en ciernes, la academia, las comunidades y sus experiencias educativas.
En el Seminario-Taller, si bien lo central fueron presentadas las ex-
periencias y las propuestas educativas a desarrollar, destacándose por sus
niveles de madurez los trabajos del “Colegio Comunitario Agrícola Luis Car-
los Valencia” en Villapaz, la “Asociación Casita de Niños” y la experiencia
de las “Veredas Unidas” en el norte del Cauca, y el proceso etnoeducativo
del Palenque de San Basilio. En virtud de la diversidad de actores, líderes
del movimiento social, funcionarios, profesores universitarios y docentes
de las comunidades y al calor de la recientemente sancionada ley 70 se
presentaron un conjunto de propuesta tendientes a reglamentar la ley, am-
pliando, con ello, el abanico del debate y enmarcando lo jurídico-político

1 Desde 1975 con el primer encuentro de la población negra colombiana en Cali, pasando por
los Congresos de la Cultura Negra de las Américas, Cali, 1977; Ciudad de Panamá 1980 y Sao
Pablo 1982, entre otros eventos, se puede constatar la agenda educativa de lucha popular
que propuso la presencia de África y sus legados en América dentro de los sistemas educa-
tivos, garantizando el ingreso de las poblaciones negras a la educación formal, como uno
de los mecanismo de superación de la exclusión histórico estructural, bajo los criterios de
identidad, igualdad, antirracismo y justicia social, etc. han sido constantes.

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como intrínseco para el avance y la consolidación de las experiencias et-
noeducativas, en el marco del nuevo ordenamiento legal del país. En el
que, desde luego, se avizoraban cambios del sistema educativo, bajo el
imperativo delpluralismo cultural y el derecho a la diferencia, por lo cual,
muchos de los elementos jurídicos esenciales, que luego vamos a encontrar
en los decretos reglamentarios (804 de 1995, 1122 de 1998, entre otros), se
presentaron y tomaron forma inicial en esta oportunidad.
A través de la publicación de sus memorias en 1994, este semina-
rio-taller contribuyó a la formalización de una mirada comparativa nacional
de las experiencias, en relación con el congreso de Tumaco, marcando ejes
territoriales centrales en el tema de la afrocolombianidad. Primero, en la
costa pacífica y luego en el Caribe, pero lo que es más importante es que el
seminario legitimó y fortaleció una “comunidad temática” reflexiva en tor-
no a la etnoeducación, revelando sus rasgos de discusión, sus ámbitos de
enfoque y sus particularidades discursivas. Aquí, se traza, de cierta manera,
una agenda con diferentes líneas de acción, que en adelante orientan el
debate nacional y colocan en escena a sujetos individuales y colectivos de
trabajo que son claves para las contribuciones posteriores, muchas de las
cuales se derivan de una serie de encuentros regionales y nacionales, que
alimentan la producción bibliográfica.
En ese mismo año, se realizó el segundo seminario-taller en Gua-
pi(Cauca) con el objeto de dar continuidad al trabajo iniciado en Cartage-
na, cuyo propósito fue la definición de los lineamientos de etnoeducación,
reglamentación del capitulo VI de la ley 70/93 yelanálisis de la situación
especifica de la educación básica en el Pacífico, concretándose en la prác-
tica la institucionalización estatal de la etnoeducación afrocolombiana, a
partir de una serie de experiencias que se venían realizando de manera
localizada en diferentes comunidades y subregiones, como en el caso del
sur del valle y del norte del Cauca, en San Basilio y en Tumaco, por ini-
ciativas de innovaciones y transformaciones necesarias emprendidas por
las correspondientes comunidades, casi siempre por fuera de los cánones
oficiales. En adelante, el Ministerio de Educación, a través del programa de
etnoeducación nacido en 1985, para atender básicamente la etnoeducación
indígena, se encargaría de señalar las orientaciones y de centralizar las de-

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cisiones sobre la etnoeducación afrocolombiana, lo que implicó una serie
de tensiones y pugnas entre el centro y las provincias.
Con el auspicio de Plan Pacífico y el programa Opción Pacífico, se
publicó, en agosto de 1994, el texto pedagógico “Educación, Cultura e
Identidad” como apoyo a los participantes en el taller del mismo nombre,
en su mayoría docentes. Este material comprende una serie de ponencias
de investigadores de diversas universidades, en especial, de la Universi-
dad del Valle, y docentes y líderes del movimiento social de comunidades
negras, abarcando temas sociales, culturales, pedagógicos y ambientales;
el libro da cuenta de una concepción integral del quehacer pedagógico
y educativo, está orientado al mejoramiento docente en el municipio de
Buenaventura, recoge, además, experiencias que habían sido presentadas
en el seminario-taller de Cartagena, perfiladas desde ese momento como
referentes novedosos en este campo, especialmente las del occidente del
país, incluyendo experiencias indígenas. Además, se registraron trabajos
de los docentes que realizaron el texto de la Pastoral Afroamericana arriba
mencionado. Debe resaltarse que las coordinadoras del programa y edito-
ras del libro, profesoras de la Universidad del Valle, venían desarrollando un
reconocido trabajo de innovación educativa con comunidades afrocolom-
bianas, en el sur del Valle del Cauca (Villapaz y Quinamayó), desde los años
ochenta,2 trabajos antes señalados.
Con esta publicación se confirman varias tendencias características
de la producción bibliográfica que nos ocupa; por un lado se trata de una
discusión que ubica el plano socio-político en yuxtaposición con el peda-
gógico y didáctico, pesando mucho más lo político, por su función de con-
tundente interpelación al Estado y a la sociedad en su conjunto, al menos
de manera muy evidente en una primera fase, que llega tal vez hasta 1996.
De otro lado, en lo sucesivo, los productores del discurso etnoeducativo
afrocolombiano van a ser en su gran mayoría profesores(as) afrocolombia-
nos(as) en ejercicio, algunos(as) al tiempo líderes del movimiento social;
con distintos énfasis en el tratamiento del tema. De la mano de estos inves-
tigadores y estasinvestigadoras se configuró, fundamentalmente, el campo
de la etnoeducación afrocolombiana en este periodo.

2 Ceneyra Chávez y María Cristina Navarrete. Se destacan también los nombres de conocidos
líderes del Proceso de Comunidades negras (PCN), Libia Grueso y Carlos Rosero.

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El texto “La etnoeducacion: realidad y esperanza de los pueblos In-
dígenas y Afrocolombianos” (1996), publicado por el MEN, tras el propósi-
to de decantar los resultados de distintos eventos nacionales y regionales
para concretar la puesta en común de unos elementos orientadores; “li-
neamientos etnoeducativos”, dirigidos a las comunidades, desde las cuales
en últimas provenían los aportes, se constituye en un punto de llegada
en el entronque entre las comunidades y el Estado para la ejecución de la
política pública. Este documento, que además avanza en señalar los com-
ponentes reinterpretativos que los grupos étnicos habían hecho a los Pro-
yectos Educativos Institucionales (PEI), re-nombrados por estos, Proyectos
Etnoeducativos Institucionales, contextualiza las reflexiones en el marco
jurídico existente, especialmente el reciente decreto 804 de 1995. En otras
palabras, en este nivel se tramita la política pública, cerrando una fase a la
vez que daba apertura a un nuevo trayecto, cuya tendencia va a ser la socia-
lización y la discusión de los alcances del proyecto etnoeducativo al interior
de las comunidades afrocolombianas, su relación con el resto de la sociedad
colombiana y su lugar en el Estado.
Paralelamente se amplía el espectro de la reflexión sobre los as-
pectos pedagógicos y curriculares y se publican una serie de propuestas
en torno a enfoques para el desarrollo de la etnoeducación y de la Cátedra
sobre las sociedades africanas, afroamericanas y afrocolombianas, de obli-
gatoriedad en el sistema educativo del país, de lo cual nos ocuparemos en
las páginas siguientes.

LA ETNOEDUCACIÓN: DE EXCLUSIONES, INCLUSIONES Y


TENSIONES AUTONÓMICAS
El concepto de etnoeducación afrocolombiana revelaba un campo
de tensiones y debates entre investigadores pertenecientes al movimien-
to social de comunidades negras, que de fondo muestra diversas postu-
ras ideológicas y políticas en el seno del mismo movimiento. Aquí, nos
ocuparemos de tres autores, cuyas obras han tenido una difusión y un im-
pacto nacional, tanto por su trayectoria como por los planteamientos que
movilizan. Estas obras dan cuerpo a una segunda fase o etapa en el tema
etnoeducativo, cuyo momento de partida puede precisarse en 1998, con la

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expedición del decreto 1122, por el cual se reglamenta el desarrollo de la
Cátedra de Estudios Afrocolombianos,3 producto de la incidencia del traba-
jo que venía realizando la Comisión Pedagógica Nacional de Comunidades
negras desde 1996, como “asesora”4 del MEN.
Si bien el decreto significó un avance en la política pública de reco-
nocimiento, al tiempo difundió la sospecha entre varios sectores, de estar
reduciendo el amplio y el promisorio marco abierto por la etnoeducación
afrocolombiana, tan solo a la Ciencias Sociales en la educación formal bási-
ca y media, con la implementación de la Cátedra de Estudios afrocolombia-
nos. De ahí que tanto los trabajos que vamos a referir como otros, advertían
de manera insistente a la comunidad nacional de docentes, que se debía
superar el reduccionismo y la confusión que, a su juicio, estaría generando
la promoción descontextualizada de este decreto que conllevaba a pensar
simplistamente que etnoeducación era igual a cátedra, razón más que su-
ficiente para sensibilizar a los docentes y a los administradores educativos
sobre cuál era la diferencia y la cercanía entre ambos escenarios de trabajo,
destacando el proceso de construcción de la etnoeducación afrocolombiana
como campo que contiene a la cátedra; de esta manera se buscaba facilitar
la comprensión de los alcances reales del proyecto para la nación, y a la vez,
brindar indicaciones para la puesta en marcha de la Cátedra de Estudios
Afrocolombianos en todo el sistema educativo, como lo indicaba el decreto.
En esta dirección, avancemos entonces en el examen de los trabajos
de los tres autores afrocolombianos, iniciando por el libro La Etnoeducación
Afrocolombiana (1999), del profesor y conocido dirigente del Movimiento
Nacional por los Derechos Humanos de las Comunidades Afrocolombianas,
CIMARRON; Juan de Dios Mosquera. Dentro de este debate para este autor
la etnoeducación Afrocolombiana es:

3 En el mismo año, 19-22 de mayo, la Universidad de la Guajira realizó el Primer Congreso


Nacional Universitario de Etnoeducación, en este se presentaron algunos trabajos sobre co-
munidades afrocolombianas, que por los límites del artículo no comentaré.
4 El asesor siempre será un contratado necesario del asesorado. En este caso, se trata de un
asesor por ley, lo cual es una novedad jurídica, pero más aún es colectivo (comisión), lo que
en la práctica implicó que fuera un convidado en momentos críticos de la política nacional,
que depende del mandatario de turno, no solo con los grupos étnicos, sino también de
manera individual dentro del cuerpo colectivo con relación a la consulta previa que tomaba
forma jurídica y práctica en el país.

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El proceso de socialización y enseñanza a todos los colombianos
de la afrocolombianidad a través de los sistemas educativo, cul-
tural y de medios de comunicación. Es el enaltecimiento de los
valores históricos, etnológicos, culturales, productivos y ecológi-
cos, y del extraordinario aporte de los pueblos africanos y afro-
colombianos a la construcción y al desarrollo de la nacionalidad
y de todas las esferas de la sociedad colombiana. (MOSQUERA,
1999, p. 25)

En este contexto, la etnoeducación afrocolombiana resulta una re-


valoración, una puesta en escena total de los elementos constitutivos de
las sociedades de ascendencia africana. Se propugna por la sensibilización
y construcción de conciencia del resto de los colombianos, es decir, por la
‘fundación’ de una nueva mentalidad para la convivencia, la tolerancia y, en
general, para lograr mejores niveles de equidad en la sociedad nacional.
Continúa el autor:

La etnoducación Afrocolombiana debe asumirse como un proyec-


to de todos los colombianos. No debe confundirse con la mera
reforma curricular o una simple cátedra afrocolombiana o la in-
troducción de valores tradicionales de la cultura de las comunida-
des en ciertos niveles educativos. Debemos asumir y desarrollar
la etnoeducación como un movimiento pedagógico nacional de
construcción de una nueva actitud ética de los colombianos en
sus pensamientos, relaciones y comportamientos con las comuni-
dades Afrocolombianas. (MOSQUERA, 1999, p. 26)

La etnoeducación solicita la centralidad de la política educativa en


una nación multicultural, por lo tanto, implicaría en gran medida una trans-
formación radical del sistema educativo y sus contenidos. En esta direc-
ción, se constituye en camino de inclusión para los afrocolombianos y en
garantía de un desarrollo y fortalecimiento de la identidad nacional más
adecuados a la realidad pluriétnica del país. Empero, siendo un proyecto
de singular importancia para todo el país, quienes deben tomar la iniciati-
va de liderarlo son los propios afrocolombianos, a través del movimiento
pedagógico, de donde se puede concluir que son estos, en últimas, los que
claman por la inclusión en un sistema educativo, social, cultural y político
que históricamente los ha discriminado y los ha hecho invisibles por la vía

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efectiva de la exclusión racista. En esta dimensión, de fondo, quieren “hacer
valer” su ciudadanía nacional, ejerciendo la igualdad de derechos conferida
a la totalidad de los ciudadanos colombianos, a la vez que culturalmente
se diferencian, esgrimiendo una renovada ética y, por lo tanto, política de
la relación.
Siendo que el núcleo dinamizador del proyecto etnoeducativo debe
estar en el seno de los afrocolombianos. Este proyecto debe enfrentar tam-
bién un problema anunciado por varios autores desde los años 70s, lo cual
se convierte en un gran escollo, en esta óptica, determinante para el logro
de sus objetivos. El autor precisa:

El racismo, interiorizado por las propias personas en contra de sí


mismas, es una de las más detestables formas de alienación que
tenemos que hacer desaparecer a través de las acciones etnoedu-
cativas que adelantamos los educadores y las comunidades. Este
trauma psicológico, debemos definirlo como endorracismo y es el
resultado de los siglos de explotación esclavista y de enajenación
de la personalidad y la identidad cultural africana. (MOSQUERA,
1999, p. 39)

En este punto, se invoca el carácter liberador y por qué no “resu-


rreccional” de este proyecto, resuenan los postulados filosóficos y pedagó-
gicos de Paulo Freire, confirmando las dificultades internas que tienen las
comunidades afrocolombianas para avanzar con celeridad según sus pro-
puestas. Se revelan, hasta cierto nivel, los riesgos y lastres reales que con-
lleva la inclusión reclamada para que arroje logros significativos; teniendo
en cuenta las debilidades en cuanto al auto reconocimiento positivo que
evidencian vastos sectores de la afrocolombianidad. En consecuencia, las
complejidades que entraña esta doble estrategia interna y externa al tiem-
po, lleva a pensar en el cómo hacerlo superando las debilidades y en los
ingentes esfuerzos planificados de mediano y largo plazo que tendrán que
desplegar las comunidades con los correspondientes apoyos, reflexiones en
plena construcción y para nada consolidadas entre los autores, ni tampoco
en el movimiento social, dada la novedad de la coyuntura en que estaban
inscritos. De ahí, que para algunos, las solicitudes de inclusión sean un
fuerte campo de debate como se observará adelante.

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Otro autor de nuestro interés es el profesor Fabio Teolindo Perea, en
su libro La Etnoeducación y la Cátedra de Estudios Afrocolombianos (1999). Este,
utiliza como sinónimos los conceptos de Etnoeducación Afrocolombiana y
Afroeducación, sin entrar en las diferencias semánticas que pueden presentar
entre sí. Para Perea (1999, p. 29), estas nociones se deben entender como:

La Afroeducación es un proceso permanente de la recuperación


y desarrollo de conocimientos y aptitudes que se busca para la
reconstrucción y valoración del Ser Afro en el tiempo y espacio,
con autonomía y autodeterminación para participar con equidad
y poder en la vida de la comunidad y del contexto nacional e
internacional.

El autor, al igual que el anterior, miembro activo del Movimiento


Nacional Cimarrón, nos indica que tal definición procede de los talleres de
sensibilización y capacitación con docentes, atravesados por la visión cima-
rrona. La Afroeducación se explicita entonces como un proyecto político.
Este planteamiento dista muy poco del ideario general esgrimido por el
movimiento social de comunidades negras en sus distintas variantes. Com-
probando, de entrada, que todo proyecto educativo es al tiempo un proyec-
to político, sin embargo, llama la atención como se asigna a la educación
prácticamente la responsabilidad total del funcionamiento de un proyecto
de sociedad. En otras palabras, se supra valora la educación, mientras se
simplifica la complejidad de la sociedad con sus esferas e interacciones;
lo cual ha sido una marcada tendencia del discurso de las elites políticas
nacionales, en momentos cruciales donde se ve altamente amenazada la
relativa estabilidad nacional. Precisando mucho más el ámbito educativo el
autor expresa:

Como prospecto ideal y futurista, queremos una educación inte-


gral, liberadora, investigadora, concientizadora, reivindicadora,
dignificadora de los derechos humanos, que propicie el entendi-
miento interracial e intercultural entre las diversas etnias y pobla-
ciones. (PEREA, 1999, p. 35)

Fija entonces unas pautas pedagógicas coincidentes totalmente con


lo expuesto por Juan de Dios Mosquera, que a la postre movilizan puntos

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de vista comunes entre los investigadores que se han ocupado del tema.
Es decir, que estos elementos deben orientar las acciones educativas al in-
terior del proyecto etnoeducativo de las comunidades negras, es en sí un
consenso oficializado en el decreto 804 de 1995, por lo tanto, no amerita
ya discusiones.
Se puede plantear que en estas construcciones se acogió y apro-
pio de forma reflexiva la pedagogía liberadora de Freire como corriente
pedagógica pertinente a estos contextos, a la vez que otras teorías de
la educación,5 que han resultado enriquecida por las discusiones sobre
biodiversidad, territorio, interculturalidad y etnodesarrollo, entre otras
categorías que se conectan y que revelan hasta cierto punto debates con-
temporáneos y nuevas realidades en un mundo globalizado

Por ser integral (la afroeducación) hay que dirigirla a todos los co-
lombianos. Pero, por tratarse de un proceso experimental, su fase
inicial puede partir con una mayor dedicación desde las comu-
nidades afrocolombianas como actores principales y centros de
aplicación. Si las comunidades afrocolombianas como beneficia-
rios directos no se apropian de este proyecto, mucho menos los
harían los otros componentes étnicos y poblacionales del país.
(PEREA, 1999, p. 31)

Aquí, se muestra con mayor claridad lo expuesto arriba en cuanto


a la visión integracionista de la etnoeducación afrocolombiana, quizás los
dos autores coinciden totalmente por su adscripción ideológica en el mo-
vimiento cimarrón, incluso en el enfoque expositivo del tema se observan
fuertes similitudes, destacando que este último, elabora una interesante
propuesta para el desarrollo e implementación de la cátedra de estudios
afrocolombianos, de acuerdo con los propósitos trazados en su libro, que
retomaremos adelante.
Ahora, al examinar la dirección y el énfasis que se propone para
la etnoeducación, surgen al menos dos interrogantes iniciales. Si asumi-
mos en rigor las consecuencias del multiculturalismo colombiano, desde

5 Se ha aludido directamente en algunos trabajos a la pedagogía histórico- cultural, al cons-


truccionismo y a las coincidencias del pensamiento educativo para el futuro expuesto por
Edgar Morín, con los principios y aspiraciones de la etnoeducación.

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luego, de cara al reconocimiento de derechos, ¿a quienes beneficiaría la
etnoeducación en esta perspectiva?, avanzando ¿sobre quién o quienes
debe recaer la responsabilidad de la inclusión con equidad? Las respuestas
resultan obvias, por lo que conviene repensar el punto de partida de la re-
flexión de estos autores, reasignando el rol real y posible que la comunidad
afrocolombiana puede jugar en el desarrollo de la etnoeducación, en tanto
proyecto de sociedad intercultural.
Por su parte, el profesor e investigador Jorge Enrique García, quien
fue coordinador de la Comisión Pedagógica Nacional de Comunidades Ne-
gras, en su libro Educar para el Reencuentro. Reflexiones sobre Etnoeducación
Afrocolombiana (2000), nos muestra una posición diferente a los autores an-
teriores, fundamentalmente en su concepción socio-política, de lo cual se
ocupa en gran medida su trabajo, considera que:

La Etnoeducación debería entenderse como la propuesta educa-


tiva del grupo étnico que le permita existir como tal, es decir, en
la defensa de sus aspiraciones como pueblo, sin prescindir de los
aportes de otros grupos humanos. En el caso Afrocolombiano,
se trata del intento de vivir como negro en medio de la informa-
ción de un mundo, irremediablemente, interconectado. (GARCÍA,
2000, p. 62)

En este tópico, observamos, con García, como todos los autores es-
tán de acuerdo en cuanto al sentido que tiene la etnoeducación en su doble
concepción político-educativa, traduciéndose en una búsqueda de los gru-
pos étnicos marginalizados por pervivir con sus particularidades. No obs-
tante, como veremos adelante, la diferencia radica en el peso significativo
conferido a determinados conceptos, según el caso. García quien se ocupa
de manera especial por la etnoeducación afrocolombiana en el Pacífico, sin
perder de vista las otras experiencias afrocolombianas, ubicándonos en un
enfoque global precisa:

Los expertos (académicos, dirigentes comunitarios y políticos,


docentes etc.) asumen de dos formas la etnoeducación: unos
creen que es la manera de contribuir al proyecto de vida (léase
político) de las comunidades negras, mientras que otros piensan

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 151

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que es la oportunidad de aportar a un proyecto de nación inter-
cultural desde la educación. (GARCÍA, 2000, p. 97)

Estas dos perspectivas se imbrican y traslapan de una forma muy


intrincada en los sujetos y colectivos que participan de estos temas, al
punto que, por momentos, pareciera no haber diferencias en sus discur-
sos, dado que, en última instancia, el peso del marco legal existente sobre
etnoeducación parece tener, de manera cierta, un efecto de reducción y
conducción del debate, circunscribiéndolo en la mayoría de las ocasiones
al aparato educativo, aun reconociendo la profundidad política que revis-
te. En este sentido, el autor reconoce que el Ministerio de Educación Na-
cional, esencialmente, ha sintetizado la etnoeducación afrocolombiana en
cuatro elementos básicos: la identidad, la autonomía, la diversidad cultural
y la solidaridad. Sin embargo, en las diferentes discusiones comunitarias,
producto de los disímiles posicionamientos, se han puesto en juego un
conjunto de elementos que la hacen compleja, partiendo de la valoración
histórico-cultural del territorio, el rechazo a la discriminación racial, la in-
corporación de los valores y prácticas ambientales de sostenibilidad y la
organización comunitaria, llegando hasta el tratamiento diferenciado de
los contextos rurales y urbanos a la hora de plantear los procesos etnoedu-
cativos, que dan contexto al proyecto político-educativo en construcción.
Profundizando su postura política, además de llamar la atención so-
bre el excesivo sentido colectivo que se le ha dado a la identidad en la et-
noeducación, olvidando casi siempre la constitución individual y su relación
directa con lo social, García plantea acerca de la etnoeducación afrocolom-
biana en el proyecto de nación y sociedad que:

Es notoria la inclinación de nuestra dirigencia, lo mismo que


nuestros académicos, hacia un discurso, que bajo el pretexto de
concebir la nación desde la interculturalidad, pretenden más bien
reafirmar la integración de los negros al modelo de sociedad na-
cional. Se podría decir, en esta perspectiva, que tiene mayor peso
la postura según la cual los negros deben ser reconocidos como
ciudadanos del país y, en consecuencia, poseedores de todos los
derechos que todas las demás expresiones de la nacionalidad,
que aquella que apuesta por la construcción de un proyecto polí-
tico propio que conduzca hacia un ‘pueblo negro’, y no solamente

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a ‘hombres y a mujeres con derechos ciudadanos’. (GARCÍA, 2000,
p. 123)

La noción de interculturalidad resulta problemática para este autor.


Desde esta, los afrocolombianos que él señala estarían aceptando, instru-
mentalmente, un camino de homogenización en el mapa de la ciudadanía
propuesta por el Estado-nación, renunciando a un plan que, evidentemente,
exige rupturas sensibles con las búsquedas integracionistas. La aceptación
paciente de las invitaciones a la consolidación de la interculturalidad, según
lo sugiere, esconde las marcadas asimetrías sociales y económicas que carac-
terizan al país. De hecho entonces, aquí, una fuerte beta de debate de ¿cómo
asumir la interculturalidad desde los afrocolombianos? Desarrollando su pro-
puesta, – vale la pena citar en extenso lo que García (2000, p. 125) expresa:

En este sentido, la Comisión Pedagógica tendrá el reto de fijar


un derrotero, desde el sector educativo, para la comunidad ne-
gra nacional, asumiendo para ello el carácter político del discurso
pedagógico. En efecto, será necesario que los distintos sectores
del movimiento social afrocolombiano, representados en la co-
misión, en consenso, definan a qué tipo de sociedad colombiana
le apuestan cuando se plantean la formulación de políticas edu-
cativas que contengan las conveniencias socio-económicas, po-
líticas y culturales de la comunidad negra. Si lo que se busca es
un integracionismo a ultranza, quizás no se requieran esfuerzos
adicionales en el sistema público de educación; pues, de hecho,
no solo hemos venido integrados a la nacionalidad, ostentando
la categoría de ciudadanos de tercera, sino que a consecuencia
de esta cuasi-asimilación se ha desvanecido el pensamiento y la
posibilidad de ser un pueblo autónomo.

A pesar de lo que propone como gran tarea de la Comisión Pe-


dagógica, dado su carácter de máximo órgano de discusión, definición y
consulta de estos asuntos, son reconocidas, ampliamente, las dificultades
operativas y de relacionamiento con el Ministerio de Educación, que ha te-
nido y tiene tal comisión. No obstante, lo importante es subrayar lo crucial
del debate en la agenda de trabajo. Pero, en el seno de este debate lo que
está en juego es la concepción sobre autonomía que profesa cada sector,
incluso la propia política pública. Por lo tanto, ¿cuáles son los alcances rea-

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 153

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les de tal aspiración autonómica?, y en razón, ¿cuáles son sus límites? La
interpretación sobre la autonomía, en relación estrecha con la intercultu-
ralidad, configura un delicado escenario de pugna entre los representantes
del movimiento social, las comunidades de base según sus tendencias, las
ONGs y el Estado, que genera múltiples tensiones complejas en sus posi-
bilidades de resolución y que se manifiestan en temas tan candentes como
la aplicación de la normatividad para el nombramiento y la contratación de
maestros, en los territorios colectivos de las comunidades negras, sobre lo
cual hay agudas posiciones encontradas, incluso al interior del movimiento
social. Finalmente, redondeando su visión radical del proyecto etnoeduca-
tivo, García (2000, p. 183) nos dice:

Se trata de convertir los procesos pedagógicos en instrumentos


para la construcción de una ‘Nación Negra’ o lo que es lo mismo
‘Pueblo Negro’ a partir de la afirmación y del fortalecimiento de
los valores étnico-culturales. Esto significa ser una nación indepen-
diente dentro del territorio colombiano.

El mismo señala algunos obstáculos que presenta su propuesta, por


ejemplo, la dispersión de los afrocolombianos en el territorio nacional y
sus diversos grados de inserción en la sociedad, lo cual ha generado una in-
mensa pluralidad ideológica y de acceso al consumo, que diferencia diame-
tralmente lo rural de lo urbano. Además, reconoce su fuerte participación y
desempeño en sectores institucionales, tal es el caso del sector educativo.
Hasta aquí, podemos confirmar la constitución del tema de la etnoe-
ducación afrocolombiana, como un campo intelectual específico, conecta-
do a otros campos y debates disciplinarios, de los cuales se ha alimentado,
como es lógico, en cualquier esfera intelectual. Dicha especificidad radi-
ca en la emergencia de disputas y pugnas discursivas cruciales, que dan
cuenta de fronteras y puntos profundos de contacto entre los diferentes
planteamientos. En su conjunto, se hace inteligible una realidad; un nuevo
posicionamiento de la intelectualidad afrocolombiana, generando formas
de auto representación y construcción de relatos “propios”, sobre sus as-
piraciones, deseos y maneras de ver la construcción del proyecto nacional
en el contexto contemporáneo. Lo que para nada ha implicado aislamiento
o esencialismos, por el contrario, aparece como un escenario en el cual se

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vierten interpretaciones de la vida nacional y mundial en las orientaciones
que dan sentido a los proyectos políticos-pedagógicos.Lo anterior es im-
portante porque nos permite vislumbrar la manera en que al interior del
magisterio, maestros afrocolombianos, que además comportan una reco-
nocida presencia, asumieron la construcción del multiculturalismo desde su
perspectiva, mostrando elementos significativos para el debate pedagógico
nacional, al tenor de las profundas transformaciones que vive el sistema
educativo, a la vez que rebasando el marco del debate mismo, debido a las
circunstancias sociales y legislativas en las cuales se inscriben sus esfuerzos
y sus reflexiones.
Dos grandes vertientes, matizadas en su interior, y que en lo peda-
gógico no se excluyen, caracterizan estas reflexiones sobre etnoeducación
afrocolombiana:

• La etnoeducación como cambios en el currículo: en esta, se pro-


pone, básicamente, la inclusión de contenidos sobre el afrocolom-
biano, bajo diferentes estrategias en los programas institucionales,
como forma de concretar la convivencia intercultural en la nación.
En un matiz complementario, busca afectar también los medios de
comunicación masivos y el sistema cultural, es decir, clama por ha-
cerse visibles positivamente los sujetos y comunidades. Esta se ajus-
ta más a contextos urbanos.
• La etnoeducación como plan de vida o de etnodesarrollo: estos,
hacen un fuerte hincapié en transformar la realidad general de
las comunidades, por lo cual tiende a un punto de partida más
rural, donde el sistema educativo es solo una esfera. Desde ahí,
extiende un puente a lo urbano y encuentra coincidencias con la
necesidad de visibilidad y equidad que propone la convivencia
intercultural, profundizando el contenido de la autonomía y la
autodeterminación.

En cualquiera de los dos casos se valora la Cátedra de Estudios


Afrocolombianos como un logro relevante de la comunidad negra y se
han elaborado un conjunto de reflexiones y materiales didácticos para su
desarrollo.

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 155

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LOS AVATARES DE LA CÁTEDRA DE ESTUDIOS AFROCOLOMBIANOS
Después de algunas discusiones y propuestas de orientaciones curri-
culares para la implementación de la Cátedra de Estudios Afrocolombianos,
que fue reglamentada por el decreto 1122 de 1998, solo en mayo de 2001,
con motivo de la conmemoración de los 150 años de la manumisión legal
de la esclavitud, el Ministerio de Educación Nacional, estaba presentando
al país los lineamientos oficiales.6 Se reavivó un debate que venía haciendo
curso como lo hemos visto, en torno a los contenidos y la forma de imple-
mentarla en el currículo escolar y, complementario a ello, las estrategias de
socialización en las comunidades educativas nacionales. Rápidamente que-
dó manifiesta la inconformidad de un sector de la comunidad con los alcan-
ces de dicho decreto, que inscribió la cátedra en el área de ciencias sociales,
de tal suerte que se instauraron dos tendencias claramente diferenciadas:
la que encaró la cátedra como una asignatura en las ciencias sociales, según
lo indicaba la norma; y la otra que planteó la transversalidad de la misma,
aspirando a modificar el diseño curricular en su conjunto, a través de la dis-
tribución de contenidos concernientes a estas problemática en la totalidad
de asignaturas y en actividades extracurriculares.
En cuanto a los contenidos, las dos posturas abogaban por trami-
tar en el seno de la escuela, el paso de una representación folclorizante y
anecdótica de la historia, la cultura y la vida de las comunidades negras a
una representación coherente y contextualizada que dignificara los aportes
integrales de estas sociedades a la construcción nacional. Es decir, si bien el
propósito es común, el punto de partida y la metodología difieren. Acorde
con estas tendencias se produjeron algunos materiales, desde las experien-
cias etnoeducativas concretas, como lo indicamos al inicio, de forma locali-
zada y de mucho valor pedagógico, para la construcción de conocimientos
significativos y del fortalecimiento de identidad. De manera sucinta, hare-
mos referencias solo a las publicaciones que por distintas razones- entre la
que se desacata las articulación de redes del movimiento social- que com-
portaron en este periodo mayor circulación en el ámbito nacional.

6 Debe destacarse como antecedente inmediato, las orientaciones curriculares para la Cátedra
de Estudios Afrocolombianos, publicadas por la Secretaría de Educación del Distrito Capital.
Noviembre de 2000.

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Volvamos sobre el trabajo del profesor Fabio Teolindo Perea (1999).
Este, partiendo de una concepción de modelo pedagógico integrado, pro-
pone la transversalidad de los contenidos de la cátedra, distribuyendo una
serie de temas en cada una de las asignaturas especificas que conforman las
áreas, indicando además ejemplos de posibles proyectos de aula y núcleos
temáticos; de esta manera, su trabajo brinda unas orientaciones básicas,
especialmente, dirigidas a los docentes de secundaria de todo el país.
El texto guía de los profesores Cidenia Rovira de Córdoba y Darcio
Antonio Córdoba Cuesta “Cátedra Afrocolombiana, apuntes para clases”
(2000), que concibe la cátedra como una nueva asignatura, con una clara in-
tención pedagógica tanto para los maestros como para los alumnos, brinda
un cuerpo temático de nueve ejes que entreveran pasado y presente, África,
América y Colombia; tratando de abarcar en las ciencias sociales la totali-
dad de ámbitos de construcción social. De una manera bastante sugestiva,
terminan integrando la dimensión lingüística y literaria, tanto académica
como de la tradición oral de los afrocolombianos en esta área.7 El trabajo
está pensado para el bachillerato, sin embargo, señalan sus autores, que
se pueden adaptar a los últimos grados de primaria. Resultando, en conse-
cuencia, uno de los mayores aportes por concretar relación transdisciplina-
ria y un logro altamente significativo para el desarrollo de la cátedra.
En este orden, el libro del educador y político Libardo Arriaga Co-
pete, Cátedra de Estudios Afrocolombianos (2002), se dirige, especialmente, a
los maestros, tanto por la forma en que presenta los temas con un marcado
enfoque histórico como por la densidad en su tratamiento. Este libro, ade-
más, compila una serie de lecturas de variados autores especialistas en los
estudios africanos, afroamericanos y afrocolombianos, que van cerrando
cada capitulo a manera de síntesis, por lo que arroja a los educadores un
amplio espectro de autores y materiales bibliográficos introductorios.
“Educando desde las Raíces”, Guía práctica para maestros (2003),
el texto elaborado por un colectivo de profesores de la costa nariñense,
aboca la cátedra desde una perspectiva transversal, acogiendo los indicado-
res de logros previstos por el MEN, como orientadores del modelo para la

7 En este sentido, debe señalarse también el importante trabajo que ha sido coordinado por
las investigadoras Amitzuri Montaño y Edyd Torres en la costa caucana, con la producción de
la colección de cartillas y otros materiales didácticos “Nuestro Caminandar”.

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 157

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preparación de las asignaturas. Ofrece variados ejemplos por grados y por
áreas que van desde el preescolar hasta el grado 11º, destacándose el tipo
de logros propuestos y los temas, básicamente, por el nivel explicativo que
logran al facilitar, de hecho, la labor a los docentes. Esta guía es una senci-
lla herramienta que abre muchas posibilidades pedagógicas y didácticas a
los docentes, apuntalando el pleno desarrollo de la cátedra en el contexto
educativo de la costa nariñense.
Frente al tópico de la socialización e implementación en las insti-
tuciones educativas, pese a los esfuerzos de construcción que ya han sido
indicados, el balance era bastante revelador. Durante el año 2002, el Minis-
terio de Educación Nacional llevó a cabo un limitado programa de difusión
y socialización de los lineamientos para la cátedra,8 especialmente, a través
de las universidades y de algunas organizaciones de comunidades negras,
en varias regiones del país donde la concentración de población afrocolom-
biana fuera importante. Este programa permitió identificar, en el caso del
departamento del Valle del Cauca, las demandas formativas de los docentes
para tal labor, frente a las nulas ofertas de las universidades. Al tiempo,
mostró también el desconocimiento normativo en las secretarias de educa-
ción municipales y departamentales en algunos casos, y en otros, el abierto
desinterés y la resistencia de los funcionarios y los directivos docentes por
el tema. Desde luego, la importancia del programa residió en la sensibiliza-
ción inicial lograda.
Por su parte, los comisionados pedagógicos para comunidades ne-
gras evaluaban la precaria implementación de la cátedra y, en consecuencia,
el débil impacto en la estructura educativa del país en el periodo que aquí
estudiado. Si se tiene en cuenta que la Cátedra de Estudios Afrocolombia-
nos se crea mediante la ley 70 de 1993, el panorama después de 11 años
era poco alentador, en la medida en que la intermitencia en la ejecución y
el seguimiento de la política había dejado su desarrollo, finalmente, a la
voluntad de los planteles educativos. Siendo así, si la cátedra, como algu-
nos plantean, es un instrumento fundamental para afianzar la convivencia
intercultural por esta vía, tal convivencia se mostraba cada vez más remota.

8 En el mismo año, Julio, el 30 y el 31 se realizó el primer foro nacional de Etnoeducación


afrocolombiana. Este, reveló una sensible crisis para el fortalecimiento del proyecto etnoe-
ducativo en general.

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En sus propósitos de reposicionar la etnoeducación afrocolombiana
y en ello la cátedra, la comisión pedagógica logró que se expidiera, al igual
que se hizo para las comunidades indígenas, una directiva ministerial (011,
Mayo 19 de 2004). Esta, no revelaba más que los inveterados incumplimien-
tos de la legislación existente. Llama la atención, sin embargo, que frente a
la cátedra, esta directiva apropiaba como válidos los dos enfoques de desa-
rrollo en discusión, rebasando lo que, estrictamente, ha sido planteado en
el decreto reglamentario, como se puede observar:

[…] Los estudios afrocolombianos deben ser considerados como


un eje que atraviesa toda la vida escolar y, especialmente, todas
las áreas fundamentales del sistema educativo colombiano, toda
vez que el conjunto de aportes de los afrocolombianos a las cien-
cias, la lengua, el arte, la religión, la matemática, los valores de
convivencia, entre otros, no son reducibles a un solo campo del
saber y por el contrario, rebasan las expectativas de un área de
estudio. En todo caso, el abordaje de los temas de la Cátedra
de Estudios Afrocolombianos es de obligatorio cumplimiento en
todos los establecimientos educativos del país, en especial en el
área de las ciencias sociales. (MEN, 2004, p. 4)

Finalmente, queda claro que frente a la inclusión formal que pro-


clama el multiculturalismo de Estado opera una exclusión real que, por lo
general, tiende a menguar las posibilidades de transformación de las reali-
dades. (AROCHA, 1999) Se incluye discursivamente, mientras en la práctica
se refuerzan los mecanismos de invisibilización y negación, instrumentali-
zando, sin embargo, en algunos niveles, un falaz sentimiento de participa-
ción. En esta ruta, el multiculturalismo, como tendencia general, termina
escamoteando las aspiraciones de un reconocimiento positivo y minimizan-
do las búsquedas de autonomía plena al grupo étnico afrocolombiano y en
este caso, lo hemos expuesto en el marco de sus aspiraciones educativas
durante este periodo.
No obstante, la lucha e insurgencia epistémica y política por la de-
fensa de la cultura y las formas de vida de estas comunidades se sigue
abriendo paso en el seno del aparato educativo formal de un lado, pero
también, ante los límites impuestos por este, ha continuado avanzado por
fuera y en sus fronteras, a través de procesos comunitarios no formales, a

LA ETNOEDUCACION AFROCOLOMBIANA 159

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través de programas y estrategias artísticas de diversa índole. La etnoedu-
cación, por lo tanto, a partir de este periodo, delineó un campo de tensión,
debate y prácticas disidentes en contextos rurales y urbanos que se hace
necesario continuar reconstruyendo y reflexionando dentro de las agendas
de las luchas étnico-populares del continente.

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EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR”:
VIEJAS PRÁCTICAS PARA NUEVOS MODELOS
Maria Luiza de Castro Muniz

INTRODUCCIÓN
A lo largo de la historia de la colonización y colonialidad en el Ecua-
dor, hubo diversos ciclos de acercamientos a las nacionalidades amazónicas
situadas en el “Oriente”. Bajo la premisa de “trasladar a la modernidad”
(TRUJILLO, 2001, p. 79) a sus pueblos y nacionalidades indígenas, el Esta-
do, los misioneros (católicos y evangélicos), o bien las empresas petroleras
que actuaron en la región norte-amazónica, fueron responsables directos e
indirectos por desplazamientos y aniquilaciones de los pueblos indígenas.
Especialmente a partir de la segunda mitad del siglo XX, misiones religiosas
“civilizatorias” fueron responsables por proyectos “educativos” desarrolla-
dos en fuerte vinculación con el modelo de desarrollo del Estado Ecuato-
riano. Se concebía la educación como siendo capaz de constituir el sujeto
nacional que el mismo modelo exigía: “un ciudadano capaz de asumir las
tareas productivas que el país necesitaba”. (ZAPATA, 2013, p. 177)
Con la llegada del expresidente Rafael Correa al poder en el año de
2007, tiene inicio un conjunto de transformaciones aglutinadas bajo la “Re-
volución Ciudadana”, en donde se estaba construyendo supuestamente un
“Nuevo Ecuador”, a partir de una “nueva época petrolera” y de la “minería
responsable”. Las dos últimas expresiones indicaban las posibilidades de
conciliación entre el modelo neodesarrollista, anclado en el extractivismo,
y el principio del Sumak Kawsay, incluyendo un desarrollo social planifica-

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do desde el Estado hacia grupos y regiones históricamente olvidadas. La
traducción del principio filosófico andino como “Buen Vivir” pasó a ser re-
chazada como ejemplo de la apropiación e instrumentación de términos
originarios indígenas por parte del gobierno en favor de un proyecto aleja-
do de la ‘con-vivencia’ armónica sujeto-naturaleza.
En la coyuntura post Constitución de Montecristi (2008), el Estado
fue reconocido como plurinacional e intercultural. Esto abriría una nueva
“ventana de oportunidad” histórica para la de(s)colonización de las institu-
ciones estatales, “des-reconstruidas” a partir de la inclusión transformadora
y “agrietante” (WALSH, 2014) de la diversidad invisibilizada en la sociedad
ecuatoriana, con sus múltiplos idiomas, territorialidades y saberes otros, ade-
más de la ampliación del concepto-practica plurinacional.
En este trabajo serán abordados algunos elementos responsables por
la frustración de este “horizonte de expectativas” (KOSELLECK, 2006) con én-
fasis al campo de la Educación, y más específicamente al proyecto de creación
de las Unidades Educativas del Milenio (UEM). El objetivo aquí depositado no
es analizar las UEM en profundidad, sino la transversalidad del discurso pro
extractivista petrolero y minero en la reestructuración del modelo educativo,
particularmente de la Educación Intercultural Bilingüe (EIB), con los impactos
sobre la vida comunitaria en/con el territorio.
Primeramente, serán presentadas algunas características y procesos
históricos con relación a la EIB en Ecuador. En el contexto de la construc-
ción del “Nuevo Ecuador”, se objetiva evidenciar el desencuentro entre los
principios de la “Revolución Ciudadana” y las perspectivas comunitarias, las
cuales conectan directamente la educación con los saberes compartidos “en
lugar” (ESCOBAR, 2014), en un flujo pedagógico cotidiano e inter generacio-
nal, “casa adentro” y “casa afuera”. (WALSH; GARCÍA, 2015) En este sentido,
vale enfatizar la comprensión del lugar mismo como ‘escuela’, como espacio
de aprendizajes o transmisión de saberes, construidos desde el territorio. Se-
guidamente, serán contrapuestas estas dimensiones de la vida comunitaria
con el sentido “Milenario”, atemporal, estandarizado y “moderno” atribuido
a las UEM. Resaltase, además, la coyuntura del año de 2015 como epicentro
de la insurgencia contra el modelo educativo-extractivista vigente. Además,
son incorporados algunos análisis (RODRIGUEZ CRUZ, 2017a, 2017b; TO-
RRES, 2017; WALSH, 2014) que apuntan el vaciamiento de categorías como

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interculturalidad, plurinacionalidad y Sumak Kawsay, resaltando incluso que
el Sistema de Educación Intercultural Bilingüe (Seib) y el Sistema Nacional de
Educación estuvieron basados en la importación de modelos educativos oc-
cidentales, reproduciendo un sistema social, cultural, político y económico
hegemónico vigente.

ESCENARIOS Y DES-CAMINOS HACIA EL “NUEVO ECUADOR”


Inicialmente, cumple resaltar la noción del lugar como escuela, lan-
zándonos a las ontologías relacionales de muchos pueblos con sus expe-
riencias “en lugar”, en/con/desde el territorio. Esta perspectiva todavía
existente en muchas sociedades no occidentales se basa fundamentalmente
en la no división entre “naturaleza” y “cultura”, entre el individuo y la comu-
nidad, el entorno; se considera una relación continua con todo el mundo,
humano y no humano. (ESCOBAR, 2014, p. 59) Arturo Escobar se refiere a la
práctica post dualista del “inter-existir” que estaría relacionada a los senti-
dos incluidos en la Constitución ecuatoriana de 2008, tales como el Sumak
Kawsay – principio filosófico que expresa una con-vivencia armónica con la
“naturaleza” – y los propios “derechos de la naturaleza” – expresos en el
Capítulo Séptimo de la Carta Magna. A la práctica identificada por Escobar
se asocian discusiones sobre el post desarrollo, transiciones post extracti-
vistas y consideraciones sobre la interculturalidad, en donde la “globalidad”
sería un camino de posibilidades hacia el fortalecimiento y la recreación del
“pluriverso”, de una “activación política de la relacionalidad”. (ESCOBAR,
2014, p. 66) El llamado a esta activación “ya no oscilará solamente entre
‘izquierda’ y derecha”, sino que tendrá que comprender “la derecha, la iz-
quierda y lo epistémico-ontológico”. (ESCOBAR, 2014, p. 132)
En estos términos, si las ofensivas para des-territorializar equivalen
a la supresión o eliminación de mundos, la ocupación y defensa de los terri-
torios colectivos tienen la dimensión antológica como la más importante.
En la construcción del “Nuevo Ecuador”, estas y otras cuestiones
acabaron ocultadas por detrás de una “interculturalidad funcional” (WALSH,
2014), ordenadora y moderna, estructurante y neo colonizadora. En este
abordaje, fruto del cruce entre Educación y Territorio, se evidencia en am-
bos los campos una funcionalidad que no rompe con la metodología-peda-

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gogía instrumentalizadora – y quizás la profundiza –, característica de los
“a-cercamientos” misioneros y de multinacionales petroleras, especialmen-
te en el caso Amazónico.
En la actualidad, la división aleatoria del territorio en bloques de
petróleo o su concesión para la apertura de los gigantes tajos de mega
minería a cielo abierto son territorialidades impuestas que demuestran un
completo alejamiento con relación a las “cosmo-convivencias” hombre-na-
turaleza de las poblaciones amazónicas.
Sumándose a esto, las características de la “revolución educativa”,
impulsada por el gobierno de Rafael Correa (2007-2017), es posible afirmar
que la inadecuación de las UEM refleja y refuerza los descaminos del pro-
yecto de desarrollo basado en actividades extractivas, despojos territoriales
y violaciones diversas a los derechos colectivos y ancestrales de las pobla-
ciones amazónicas.
El modelo arquitectónico estandarizado es uno de los rasgos del
proyecto que propuso racionalizar las construcciones escolares en el te-
rritorio, fusionando a varias escuelas de los alrededores. En la práctica, a
partir del Plan de Reordenamiento de la Oferta Educativa (2012), esto “llevó
al cierre de cientos de escuelas pequeñas – comunitarias, unidocentes, in-
terculturales – sobre todo en zonas rurales”. (TORRES, 2017)
Un modelo escolar único, dispendioso, abundante en cemento y
hierro, se oponía a las escuelas más pequeñas, las “escuelitas comunitarias”
defendidas por el movimiento indígena desde la CONAIE, y nombradas “es-
cuelitas de la miseria” por el expresidente Rafael Correa. (CORREA DELGA-
GO, 2015a) Los críticos del modelo de las UEM oponen “[e]standarización
versus diversidad, cemento versus naturaleza, infraestructura versus peda-
gogía, desarraigo versus espíritu comunitario”. (TORRES, 2017)
Antes de ingresar al espacio de las escuelas, es importante retro-
ceder unos pasos hacia la imagen que se construye del “Nuevo Ecuador”
a partir de la “Revolución Ciudadana” y de las premisas plurinacionales e
interculturales que constituyen la Constitución de 2008. La Carta Magna
fortalece el Seib, estableciendo el uso de la lengua de la nacionalidad res-
pectiva como lengua principal del proceso de enseñanza/aprendizaje, y el
castellano como lengua de relación intercultural (Art. 347, Numeral 9). Ade-
más, en el 2011, la Ley Orgánica de Educación Intercultural Bilingüe dicta-

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minó que la interculturalidad debía incorporarse y ser transversalizada en
todo el sistema de educación nacional (Art. 26).
En abordaje anterior (MUNIZ, 2017), identifiqué el “Buen Vivir de
Estado” como un límite al carácter plurinacional e intercultural del Estado
ecuatoriano. Desde su origen, es importante subrayar que la elaboración
de la Constitución de Montecristi, aprobada vía referéndum, no ha sido una
experiencia sin conflicto o disputas. Estas permiten antever divergencias de
fondo con relación a valores y prácticas que caracterizarían la “Revolución
Ciudadana”, especialmente frente a la conciliación entre el proyecto de de-
sarrollo y los principios filosóficos-epistemológicos-pedagógicos caracterís-
ticos del Sumak Kawsay.
La agenda indígena presentaba propuestas más allá de la democra-
cia representativa, con inclusión de derechos comunales. Según algunos de
los lineamientos presentados por la CONAIE en el 2007, la gestión de los
recursos naturales bajo un Estado plurinacional estaría asociada al auto-
gobierno o al gobierno comunitario. Esto significaba que el Estado pluri-
nacional garantiría la existencia de “gobiernos territoriales comunitarios”,
responsables por el “manejo y protección de la biodiversidad y de sus re-
cursos naturales”, además del manejo de asuntos de vital relevancia, como
la salud y la educación. (MUNIZ, 2017, p. 296)
Las relaciones conflictivas entre el presidente Rafael Correa y el
movimiento indígena tenían una razón crucial: el concepto y las prácti-
cas alrededor de la plurinacionalidad, las cuales habían sido afirmadas y
reforzadas desde la fundación de la organización indígena en 1986. En
este sentido, el reconocimiento de la plurinacionalidad representaba una
redefinición del concepto de ciudadanía, no en el ámbito individual, sino
tomando en cuenta sujetos colectivos de derecho. Según Floresmilo Sim-
baña, este sería el camino para superar la confusión de que existe apenas
una forma de pertenecer al Estado, una forma individual que generaría un
único tipo de derechos, los individuales. Simbaña explica que la plurina-
cionalidad implica que se pueda hablar en pertenecer al Estado como co-
lectividades, como pueblos y nacionalidades. La ciudadanía en este caso
implicaría derechos y obligaciones individuales, pero sobre todo colecti-
vas. (SIMBAÑA, 2007, p. 112)

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La perspectiva de “refundar el Estado moderno”, que alimentaba la
participación de la sociedad civil y de movimientos sociales en el proceso
de creación de la nueva Constitución (2007-2008), exigía la combinación de
distintos conceptos de nación dentro de un mismo Estado. Según Boaventu-
ra Souza Santos (2010), una tradición comunitaria de Estado, proveniente
de experiencias originarias e indígenas, estaría conectada a un concepto de
autodeterminación, pero no de independencia. De acuerdo con la propuesta
de la CONAIE, en el 2007-2008, sería deseable un régimen de autonomía,
reconocimiento de la libre determinación sobre el territorio, y la perspec-
tiva de los modos propios de justicia, salud y educación. En término eco-
nómicos, el Sumak Kawsay sería inseparable de la propiedad comunitaria/
colectiva. (MUNIZ, 2017, p. 301)
Descalificada como “extremista”, “infantilista” y propuesta por una
“minoría social”, la plurinacionalidad ha cruzado un largo trayecto de de-
bates, presiones y movilizaciones hasta ser introducida en el Artigo 1º de la
Constitución. Sin embargo, esto no puso fin a las disputas e impases para
la implantación de un horizonte de posibilidades atravesado por la idea de
autogobierno. Según Santos (2010), la creación de un nuevo tipo de institu-
cionalidad estatal, una nueva organización territorial, la democracia intercul-
tural, el pluralismo jurídico, la interculturalidad y políticas públicas de nuevo
tipo, bajo nuevos criterios de gestión pública, de participación ciudadana,
estos elementos en conjunto, serían inherentes al horizonte mencionado.
En el sentido opuesto, se verifica un proceso de centralización de
poder y pérdida de autonomía, especialmente si tomamos en cuenta los
ejes centrales de este trabajo: Educación y Territorio. Pese a que los discur-
sos oficiales afirmen lo contrario, la centralización de poder y en la gestión
pública se hizo sentir en el manejo de los recursos naturales bajo dos pre-
misas: la defensa de la soberanía nacional y la consecuente defensa de lo
“estratégico”. Este último vocablo se ha convertido en una llave maestra
para romper con las siguientes trabas al desarrollo impresas en la Cons-
titución de 2008: su carácter plurinacional e intercultural, además de las
garantías a los derechos colectivos y de la naturaleza.
El proyecto modernizador de la “Revolución Ciudadana” ha elegido
una meta: confrontarse al “atraso” representado por el manejo ineficiente
e ineficaz de recursos como el agua. En este caso, así como en el caso de

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la EIB, lo comunitario sería un disfraz bajo el cual se mantenían intereses y
prácticas retrógradas, poco republicanas y nada convergentes con el mode-
lo de gestión pública defendido. Este se acercaría al tipo ideal weberiano
racional-burocrático, presumiblemente más ecuánime y técnico, disociado
de la “partidocracia” y del “adoctrinamiento político”. (CORREA DELGADO,
2016a) En su discurso, reiterado en diversas ocasiones, el expresidente
Correa ha asociado las Juntas de Agua a la “politiquería” que se buscaba
combatir desde una nueva institucionalidad. En el caso del agua, esta nueva
institucionalidad se ha expresado por medio de la aprobación de la con-
troversial Ley de Aguas en el 2014, definiendo la creación de la Autoridad
Única del Agua, entidad responsable por dirigir el “sistema nacional estra-
tégico del agua”, y cuyo titular, gozando del rango de ministro/a, pasaría a
ser designado por el jefe del poder ejecutivo, el/la Presidente/a.
El proceso de centralización ha llevado que se establecieran posi-
bles modificaciones en el “Orden de prioridad para las actividades producti-
vas” (Art. 94 – Ley de Aguas), “en atención a las características de la cuenca,
en el marco de los objetivos y lineamientos de la planificación hídrica y el
Plan Nacional de Desarrollo”.
A pesar de lo que pueda parecer, el tema Educativo no está tan ale-
jado de la centralización mencionada en las líneas anteriores. Con relación
a la Unidad Educativa del Milenio de Vitoria del Portete, región central a
proyectos de desarrollo minero y megaminero del gobierno, Mónica Silvana
González ha indicado algunos factores relacionados al cambio de percep-
ción de la población local. “Pese a que en un inicio la población rechazó el
proyecto [de la UEM] por conocer que se viabilizaría con dinero de la mine-
ría, luego la percepción paulatinamente cambió gracias a la socialización de
las bondades del proyecto”. Según la autora,

otro factor muy importante fue el rumor que se generó en torno a


la vida del líder Carlos Pérez, que no reside en el sector desde su
juventud y no conoce el diario vivir de la comunidad, al parecer
goza de una buena posición económica en la ciudad de Cuenca y
buscó una novia extranjera1 (Entrevista R.T). (SILVANA, 2016, p. 55)

1 Manuela Picq, catedrática franco-brasileña y pareja del dirigente indígena Yaku Pérez, fue
obligada a dejar Ecuador, tras su detención en el contexto de las protestas en el año de 2015.
Ella ha podido regresar al país apenas en el 2018, durante el gobierno de Lenin Moreno.

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Yaku Pérez – nombre adoptado posteriormente por el líder indíge-
na – fue unos de los principales actores a impulsar marchas y protestas en
contra de la Ley de Aguas, manteniendo desde la Ecuarunari – brazo de la
CONAIE en la Sierra ecuatoriana– fuerte oposición al proyecto extractivista
del gobierno Correa.
Del mismo modo que en el caso de los recursos hídricos, en el año
de 2009, la Dirección Nacional de Educación Intercultural Bilingüe (DINEIB)
fue re-centralizada y con ello perdió la autonomía técnica, financiera y ad-
ministrativa. Esto ha representado “la pérdida de un espacio esencial para
los pueblos y nacionalidades indígenas, ya que, a través de esta instancia
desconcentrada, aquellos ejercían el derecho a decidir sobre su propia edu-
cación”. (RODRIGUEZ, 2017a, p. 78) Morocho (2012) afirma que, además de
disminuir el presupuesto de inversión a la mitad, el no cumplimiento del
principio de “progresividad” de los derechos ha llevado a una “representati-
vidad folclórica, funcional a la consolidación del modelo capitalista basado
en el extractivismo minero y petrolero de las transnacionales”. (MOROCHO,
2012, p. 82)
La Dirección ha surgido a finales de la década de 1980 con la institu-
cionalización de los rasgos autogestionarios de la EIB en el ámbito del Esta-
do. En su época, el establecimiento de la Dirección Nacional de Educación
Intercultural Bilingüe (DINEIB) – creada durante el gobierno del socialdemó-
crata Rodrigo Borja –, dio la organización jurídica y el apoyo estatal necesa-
rios para que se pudiera avanzar en el sentido de la educación bilingüe. Sin
embargo, Walsh (1994) observa que en este, entonces, la EIB todavía no te-
nía “la recepción, los recursos y el apoyo estatal suficientes “para establecer-
se como una verdadera alternativa a la educación hispana”. (WALSH, 1994,
p. 102) Ya en la década de 1990, Walsh ha advertido que la EIB no era “sola-
mente un asunto pedagógico/lingüístico, más bien un componente integral
de la lucha Estado-nación”. (WALSH, 1994, p. 126) En aquel momento, la
CONAIE criticaba el excesivo control administrativo del Estado uninacional.
Consideradas las debidas especificidades, otro punto de convergencia con
el escenario de la posterior “Revolución Ciudadana” fue la conexión entre
los procesos educativos y las estrategias de implementación y legitimación
de un determinado proyecto extractivista de larga escala. Con el apoyo del
Ministerio de Educación, los acercamientos del Instituto Lingüístico de Ve-

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rano y de la empresa petrolera Maxus a la nacionalidad Waorani – ubicada
al norte de la Amazonía ecuatoriana – llevaron a una serie de divisiones,
favoreciendo además una especie de “pedagogía extractivista”.

LO COMUNITARIO/ANCESTRAL VERSUS LO “MILENARIO”/


ATEMPORAL
El “modelo ecuatoriano de educación gratuita y de calidad”, que es-
taría asentado en la construcción de centenas de UEM, fue estructurado con
base en tres ideas fuerza resaltadas por Correa en mayo de 2014: 1. “gran
inversión en infraestructura”; 2. “sacar el mayor provecho a la infraestruc-
tura (dos jornadas, una matutina y otra vespertina)”; 3. “escuelas grandes”.
(TORRES, 2013) Estas ideas son contrapuestas a lo que sería representado
por las “escuelitas comunitarias”, descalificadas por el mandatario ecuato-
riano en repetidas ocasiones como siendo “escuelas de la miseria”.
Antes de mencionar una y otra visión sobre las UEM, es válido in-
terponer una relación fundamental para comprender el sentido de la “Re-
volución Educativa” y de la “Revolución Ciudadana” del gobierno de Rafael
Correa. Primeramente, hay que subrayar la implementación de una ‘peda-
gogía del desarrollo’, en donde los discursos acerca del ideal de moder-
nización integran un “horizonte de expectativas” (KOSELLECK, 2006) y
contribuyen para un ejercicio constante de futurización. Hay, por lo tanto, lo
que Reinhart Koselleck identifica como una interferencia mutua de los con-
ceptos históricos sobre los acontecimientos políticos y sociales. Diciendo
de otro modo, sobresale la idea de un “futuro deseado” que establece un
“campo de posibilidades finitas”, las cuales roban del presente la “posibili-
dad de experimentarse como presente”. (KOSELLECK, 2006, p. 37)
El historiador alemán aborda el proceso que caracteriza la Moderni-
dad y que condujo al desplazamiento de la acción social por la “dimensión
inescapable del devenir”, un tránsito desde los “espacios de la experiencia”
hacia los “horizontes de la expectativa” – dos categorías históricas presen-
tadas por el autor. De este modo, en la nueva configuración de mundo, con
el futuro transformado en enigma, ocurre la inclusión de todas las historias
bajo un único proceso de la historia universal. Mirar para la América salvaje
desde la Europa civilizada significaba mirar hacia atrás – y sigue la mis-

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ma lógica en los procesos contemporáneos de la modernidad/colonialidad.
Por lo tanto, la ordenación de la historia del mundo impone a la primera
(América) una experiencia constante del progreso, rumbo a objetivos más
avanzados para alcanzar la segunda (Europa), supuestamente ubicada en un
tiempo-espacio distinto.
A partir de esta reflexión, es posible establecer una relación entre
el discurso de la “Revolución Educativa” y la historia de los conceptos de
Koselleck, comprendiendo el sentido de la Educación “Del Milenio” y sobre
todo su correspondencia con el proyecto de desarrollo basado en la explo-
tación de recursos naturales.
El calificativo “Del Milenio” hace referencia a las “Metas Del Mile-
nio” de la ONU, y además imprime también el “sello de modernidad y van-
guardia” (ASTORGA, 2012, p. 18) sintetizado en la defensa y propaganda de
un camino hacia la “Patria Nueva”. En total oposición, las dichas “escuelitas
comunitarias” son asociadas, desde el discurso oficial, a la ineficiencia e
ineficacia, al proselitismo de “politiqueros” que deseaban “conservar sus
espacios de poder” (CORREA DELGADO, 2015a) , manteniendo el “adoctri-
namiento político” (CORREA DELGADO, 2016a), a la ignorancia de grupos
que estarían en defensa de una “pre modernidad” y del “folclor” de la mi-
seria. En síntesis, las escuelas cerradas/fusionadas estarían ‘atrás’, en un
pasado al cual uno desearía regresar apenas por ignorancia, “complejo de
inferioridad” u oportunismo. (CORREA DELGADO, 2016a)
La imprescindible sustitución de uno por el otro – del atraso y mi-
seria por la modernidad y vanguardia – exigiría las vultuosas inversiones
en gigantes unidades educativas. Sin embargo, lo que está efectivamente
en cuestión es un modelo educativo que se retroalimenta de un modelo de
desarrollo, y viceversa. Considerando que el desarrollo está necesariamen-
te en el ámbito de una configuración mundial de poder, caracterizada por
una determinada relación social de producción, dominación, explotación
y conflicto (QUIJANO, 2000), el desarrollo capitalista como tal incluye la
monetarización de las relaciones comunitarias, la masculinización de los
espacios, además de procesos de desterritorialización y la alteración de la
geografía local.
El desarrollo, obtenido a través de la extracción de recursos natu-
rales en larga escala, exigiría adoptar un ‘mal necesario’ para superar la

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pobreza, conceptuada desde afuera, desde indicadores que, frecuentemen-
te, desconsideran las potencialidades comunitarias y locales, asociadas al
atraso, a lo arcaico. La perspectiva de incentivar la producción y los cono-
cimientos (re)producidos en ámbito comunitario se vuelve algo instrumen-
talizado, tratase en general de iniciativas pensadas y proyectadas desde las
empresas o desde el gobierno, con el intuito de ofrecer una contrapartida a
las comunidades ubicadas en las zonas de influencia del proyecto extractivo
– minero o petrolero.
Entre documentos del Ministerio de Minería analizados, fueron en-
contradas referencias a algunas de estas iniciativas. En el ámbito educati-
vo, es válido subrayar que, entre los registros oficiales sobre las acciones
oficiales en las zonas de los proyectos mega mineros, encontrase una nota
sobre el “Plan Nacional de Capacitación para el Sector Minero”, realizado
de forma conjunta con el Ministerio de Educación. En Memorando interno,
de julio de 2016, informase sobre un “permiso de ingreso a la compañía
Lundin Gold Inc. para efectuar una visita al proyecto Fruta del Norte” (Ama-
zonía Sur). (ECUADOR, 2016) Entre los objetivos indicados, el principal es
“[e]fectuar el levantamiento de figuras profesionales inherentes a minería
según los niveles de educación correspondientes”, con el fin de identificar
perfiles de “formación académica dentro del programa de Bachillerato Téc-
nico Productivo para el Sector Minero”. (ECUADOR, 2016) Nótese que, en el
mismo cantón Yantzaza, el discurso oficial se ha encargado anteriormente
de relacionar los “estándares de calidad” de la UEM Diez de noviembre con
la inversión originada de las regalías mineras (UNIDAD…, 2015): “Esta obra
construida por el Gobierno Nacional, a través de Ecuador Estratégico E.P.,
fortalece la educación de más de 1.400 niños y jóvenes que viven en la zona
de influencia del proyecto minero Fruta del Norte”. (LA UNIDAD…, 2016)
A partir de su análisis, Rodríguez refuerza la tesis de que el Estado
“cierra el circuito educativo de las unidades del milenio y las universidades
de excelencia y lo dirige hacia su objetivo económico principal: la explota-
ción de la matriz productiva”. (RODRÍGUEZ CRUZ, 2017, p. 83) La retórica
oficial alrededor del buen vivir, del plurinacionalismo y de la interculturali-
dad está atravesada por una “pedagogía-puente”, destinada a trasladar el
sujeto hacia un espacio-tiempo supuestamente mejor y más desarrollado,
civilizado, moderno. Con algunas distinciones y especificidades, vemos esta

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práctica como análoga a la educación bilingüe “civilizatoria” y evangelizado-
ra de los acercamientos misioneros de mediados del siglo XX. Sin embargo,
se hace aún más sofisticada, ya que adopta nuevos dispositivos de apropia-
ción cultural, que institucionalizan e instrumentalizan conceptos filosóficos
y elementos espirituales en favor de un proyecto de desarrollo basado en
la extracción de recursos naturales en larga escala. (MUNIZ, 2016, p. 388)

Esta es la primera Unidad Educativa Intercultural Bilingüe en el


cantón Francisco de Orellana y la cuarta en la provincia, luego
de las UEM Nuevo Rocafuerte, Dayuma y Dayuma Kento. Esta-
mos haciendo un importante esfuerzo. Insisto, el desafío de
superar la pobreza sin perder la identidad. Para mantener esa
identidad, para fortalecer la educación bilingüe, tenemos un
programa de Escuelas del Milenio que se llama Guardianas de
la Lengua. (CORREA DELGADO, 2016a)

El discurso del expresidente Rafael Correa pone en evidencia un


concepto específico sobre pobreza e identidad. Eventuales debilidades de
las escuelas comunitarias son convertidas en una regla para caracterizar y
descalificar toda la estructura. No existe en su discurso la comprensión fun-
damental sobre lo que era la base de la educación comunitaria, la conexión
“casa-adentro/casa afuera” (WALSH; GARCÍA, 2015), tal cual en el menciona-
do caso de las Juntas de Agua. Dice Correa:

Pero nos convencían de que esos eran los grandes logros de las
comunidades. Y son especialistas para poner nombres bonitos
a la miseria: [a] esas escuelas, que eran las escuelas de la mise-
ria, les llamaban ‘escuelitas comunitarias’. Esas son las grandes
conquistas: ‘¡Nadie nos puede quitar la escuelita comunitaria!’. Y
así nos mantenían en el círculo perpetuo de la mala educación,
y sus consecuencias: baja productividad, bajo ingreso, pobreza.
(CORREA DELGADO, 2016a)

En oposición al argumento del expresidente y su noción de “‘pobre-


za’ versus ‘productividad’”, algunos estudios consultados (ASTORGA, 2012;
RODRÍGUEZ CRUZ, 2017; TORRES, 2013; VENEGAS, 2016) apuntan limita-
ciones e insuficiencias de las UEM, bien como de la reestructuración del
propio sistema educativo en Ecuador, durante la “Revolución Ciudadana”.

174 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Al contraponer argumentos en defensa de las “escuelitas comunita-
rias” y aquellos en defensa de las UEM, cruzando “Educación y Territorio”,
llegase a evidenciar varios obstáculos, no apenas a la EIB sino a la propia
construcción del Estado intercultural y plurinacional y a la transición hacia
un nuevo modelo de desarrollo – o “post desarrollo”.
Afirmase que “el bilingüismo (lengua indígena/castellano) y la Natu-
raleza siguen sin ocupar el centro de los modelos pedagógicos conforme al
Sumak Kawsay”. (RODRÍGUEZ CRUZ, 2017, p. 83) Marta Rodríguez concluye
que la mejora en las condiciones materiales de aprendizaje en las UEM no
ha resultado en la implantación real de la modalidad educativa intercultural
bilingüe. La autora afirma que el

tratamiento de la educación, en general, y de la educación in-


tercultural bilingüe, en particular, no permite refundar el Estado
sobre los principios de interculturalidad, plurinacionalidad y
del Sumak Kawsay que recoge la normativa de mayor categoría, la
Constitución. (RODRÍGUEZ CRUZ, 2017, p. 84)

A partir de los discursos del expresidente, es posible identificar al-


gunos ejes argumentativos y sus respectivas fragilidades, según los autores,
documentos y literatura consultados.

“Cobija corta” vs. gastos excesivos

Esta escuela se la han dado sus padres, su comunidad, la Patria,


nuestro petróleo, nuestros impuestos, nuestros recursos, y ha
costado muchísimo esfuerzo. Tener esta unidad significa no tener
Centros de Salud, significa que dejamos de hacer algunos CIBV,
significa que otras escuelas no pudieron ser remodeladas, porque
no nos alcanza el dinero para todos. Así que aprecien lo que tie-
nen, ¡cuídenlo!, porque es de ustedes. (CORREA DELGADO, 2016a)

En administración pública, es común la metáfora de la “cobija corta”


en días fríos. El dilema es: ¿calentar los pies o las orejas? Tratase de una
perspectiva que pone énfasis a los recursos escasos y siempre más reducidos
que las innúmeras demandas sociales existentes, obligando el gestor público
a priorizar inevitablemente uno u otro sector/región, mientras varios se que-

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 175

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dan fatalmente descubiertos. A pesar de su discurso de superación de la “lar-
ga noche neoliberal”, Correa recoge una y otra vez a una perspectiva todavía
inserida en el marco del estado de restricciones y escasez –antes dictado por
el Consenso de Washington y los organismos multilaterales. En el discurso de
marzo de 2016, durante la entrega de la UEM Wankurishpa Yachana Pampa
Mushuk Ayllu (Orellana), el expresidente se lanza en contra de las críticas al
“excesivo gasto público”. Lo mismo estuvo presente, meses antes, en Victoria
del Portete, cuando se hacía referencia al “satanizado gasto público”.
El argumento, sin embargo, oculta y tergiversa los distintos mati-
ces entre las críticas al modelo de las UEM y las perspectivas de reducción
del Estado. Las primeras apuntan hacia caminos para interculturalizarlo,
no para su minimización. En un estudio que analiza específicamente el
caso de la implementación de las UEM en Cotopaxi y Chimborazo – dos
provincias ubicadas al Sur de Quito –, el autor observa que con los más
de USD 900 millones gastados en las UEM se podría haber mejorado la
calidad de la educación, invirtiendo en la capacitación de más docentes
kichwas, por ejemplo, y sobre todo se podría haber

prevenido y disminuido en algo la migración forzada de los niños/


as y jóvenes, disminuyendo la deserción obligatoria, especialmente
de las niñas de las comunidades, quienes no cuentan con garantías
de seguridad para el traslado a las UEM. (SÁNCHEZ, 2017, p. 22)

Vale observar que, frente al afecto de la ‘cobija corta’, entre los cri-
terios para definir los rumbos de la política pública, “se ha dado prioridad a
El Pangui por las regalías mineras anticipadas del Proyecto Mirador” – afir-
mó Correa durante la inauguración de la UEM Arutam, en octubre de 2015.
(CORREA DELGADO, 2015b) Y, algunos meses después, en enero de 2016,
durante la inauguración de la Unidad Educativa del Milenio Nueva Gene-
ración del cantón San Juan Bosco – zona de influencia de proyectos mega
mineros–, el expresidente explicaba en que:

Con la minería no cometeremos el error que cometieron los go-


biernos anteriores con la explotación del petróleo, cuando se sa-
caba el petróleo por allá quedaba la basura la contaminación y la
plata iba a Quito a Guayaquil o a Miami. Ahora contamos con una
Ley que beneficia con el 60% de las regalías mineras a los habitan-

176 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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tes de las zonas de influencia de los proyectos mineros. (CORREA
DELGADO, 2016b)

Wilson y Bayón (2017) han presentado en “La Selva de los Elefantes


Blancos” un extenso estudio sobre los megaproyectos y los extractivismos
en la Amazonía ecuatoriana. Con relación a El Pangui, ellos subrayan que “la
puesta en escena de los recursos “infinitos” en el sector educacional provee
una legitimación ideológica para la intensificación de la explotación de los
recursos “finitos”, funcionando como un espectáculo del progreso social
que ha tenido éxito ganando aceptación hacia la minería a gran escala tanto
en la región como a nivel nacional”. (WILSON Y BAYÓN, 2017, p. 166)
Esto se lo puede comprender desde la lógica de la política distribu-
tiva, sin embargo, según Boaventura de Sousa Santos, en el ámbito del ca-
pitalismo extractivista, por falta de canales democráticos, no hay espacios
para el “conflicto distributivo”, lo cual, “no llega siquiera a existir como
problema político”. (SANTOS, 2014, p. 361) Y Ecuador, a pesar de todo el
discurso del “socialismo del siglo XXI”, no ha escapado a la regla.
Es válido enfatizar aquí la relación entre el discurso de la ‘cobija
corta’ y algo que Santiago Arboleda Quiñonez (2018) identifica como la
“imposición de competencias ciudadanas”. Apenas en medio a la esca-
sez naturalizada se mantiene con mayor eficacia aquella imposición sobre
indígenas y afros, que deben competir en distintos niveles. “Eso de la
competencia, y de trazar distintas estrategias para que compitieran entre
grupos, en la zona andina los mantuvo divididos”. (MUNIZ, 2018) Como
resultado de esta dinámica, dice Arboleda, al indígena se le concede un
“plus filantrópico católico”, “hay una acción internalizada del mestizo que
se siente descendiente de él, y que niega al negro”. La excepción vendría
de espacios de difícil acceso, dónde no fue tan fuerte o fue casi inexis-
tente la presencia de la institucionalidad colonial y se pudo tejer una
“solidaridad y unos tipos de cultura que no eran ni del uno ni del otro,
sino compartidos”, construyendo lo afro indígena. En Brasil, en la Guajira
colombiana con los afro wayús, entre afros e indígenas de la Sierra Ne-
vada, estos son espacios donde hay una potencialidad de diálogos afro
indígenas, potenciando incluso conexiones en temas de etnoeducación
y educación intercultural, relaciones interétnicas. Tratase de una realidad

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 177

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distinta a lo que pasa en gran parte de Ecuador, dónde la trayectoria de la
Educación Intercultural Bilingüe por dentro del Estado no se ha cruzado
con los senderos abiertos desde la Etnoeducación Afro.
Veamos adelante la dicotomía inherente al discurso oficial entre un
“nosotros” y un “ellos”, donde la (no) aceptación del modelo de desarrollo
extractivista ha funcionado como divisor de aguas

Pasado vs. futuro


Para defender las inversiones realizadas, se ha lanzado mano de otra
estrategia discursiva. La contraposición entre un pasado que sería “prohi-
bido olvidar” – esta es una recurrente y conocida expresión en el acervo de
slogans oficiales – y un presente/futuro de abundancia y políticas distribu-
tivas. “El progreso, el futuro, está en la educación, está en la investigación,
está en la universidad, está en la ciencia, la tecnología, está en la conciencia
social” – dice Correa Delgado (2016a). Queda evidente el marco positivista
del horizonte de la “Revolución Ciudadana”. El progreso ubicado en el futu-
ro, un “horizonte de expectativas” trazado desde el presente, que les roba
a perspectivas otras la posibilidad del porvenir.
Según Correa (2015b), “¡La inmensa mayoría de los pueblos indíge-
nas quiere carreteras, energía, comunicaciones, salud, educación, moder-
nidad! Algunos nos quieren hacer creer que la premodernidad es sinónimo
del Buen Vivir” – dice Correa en la inauguración de la UEM Arutam, en el
Pangui. El sentido de estimular el ciudadano, tomado individualmente, a
“salir adelante” refuerza un grave efecto de las UEM, que es su interferen-
cia en las relaciones entre comunidad-escuela-“naturaleza”. (MONTALUISA,
1988) Los juegos de palabras dicotómicos asocian conceptos temporales,
que ubican en un mismo eje extractivismo/UEM/Buen Vivir/futuro/(ultra)
modernidad. En otro eje estaría la pobreza/las “escuelitas de la miseria”/el
pasado/la premodernidad.

La legitimidad de las urnas vs. la resistencia de las calles/


territorios (2015)
Otro argumento utilizado por Correa contrapone la legitimidad de
las urnas versus la protesta en las calles, accionando los principios de la

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democracia representativa liberal, según la cual el rito de las elecciones es
el momento máximo de la participación democrática, y los representantes
elegidos están – invariablemente – mejor habilitados y más legitimados
para decidir que las masas pasionales, irracionales. Según James Madison
(1751-1836), padre federalista y uno de los teóricos del modelo de de-
mocracia representativa, en un gobierno sería más posible que la vo-
luntad publica, expresa por los representantes del pueblo, estuviera en
armonía con el interés público que la opinión expresa directamente por
el pueblo. (MUNIZ, 2010, p. 147) Con frecuencia, el exmandatario exhor-
taba: “¡Somos más! Si mañana fueran las elecciones, les volveríamos a
ganar tres a uno. Somos muchísimos más, y llevarán luto eterno, porque
el pasado no volverá”. (CORREA DELGADO, 2015b) En marzo de 2016
(Orellana), Correa Delgado (2016a) decía:

[q]ué pena da cierta dirigencia que marcha contra la historia, que


promueve acciones contra su propia gente con tal de hacer daño
al Gobierno. Si las piedras, los palos, la quema de llantas, los cie-
rres de carreteras, lo que llaman ‘la protesta social’, la moviliza-
ción, produjeran progreso, ya seríamos más desarrollados que
Suiza, ¿o no ha sido la triste historia de nuestro país eternamente
aquello? Eso no va a promover progreso. Eso va a servir para que
ciertos malos dirigentes mantengan sus espacios de poder.

Al reproducir un concepto a-histórico y lineal de progreso, el ex-


presidente descalifica las movilizaciones que, meses antes (agosto/2015),
habían tomado las calles de Ecuador como un factor de “atraso” o, mínima-
mente, un factor incapaz de aportar al traslado necesario hacia este punto
en el futuro llamado “progreso”.
En Victoria Portete (oct/2015), el expresidente también ha reproduci-
do la misma lógica argumentativa que establecía un “nosotros” versus “ellos”:

[e]n la parroquia San Gerardo, donde está la mayor parte del pro-
yecto Loma Larga, la Revolución Ciudadana [obtuvo en las urnas]
60%, los tirapiedras antimineros 15%. Y luego nos hablan de de-
mocracia; pero, con palos, piedras, mentiras quieren imponer la
agenda rotundamente rechazada en las urnas. ¡No señores, aquí
se vive una democracia y mandará, la voluntad de las mayorías!
(CORREA DELGADO, 2015a)

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 179

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Durante el gobierno de Correa, grupos críticos a la política extrac-
tiva, especialmente representantes indígenas amazónicos, fueron identi-
ficados como el “otro negativo”, o el “contradestinatario”, “excluido del
colectivo de identificación conformado por el enunciador y sus pro desti-
natarios. (CERBINO, 2016, p. 37) De este modo, los otros fueron excluidos
del nosotros – el país, la “Patria Nueva”, “la nación”, “el pueblo” – abordado
discursivamente por el Presidente, y en diferentes momentos estuvieron
impedidos de expresar-se, siendo exteriorizados(as) de la “Revolución Ciu-
dadana” – los(as) outsiders. (MUNIZ, 2016, p. 365)
La legitimidad de las urnas sirve de respaldo a la vitrina extractiva
en que se convierten las UEM. La vitrina se contrapone al “adoctrinamien-
to político” y al sabotaje de “politiqueros locales”, expresiones presentes
igualmente en el discurso del mandatario ecuatoriano:

[…] la minería por supuesto que va a ser de la mejor calidad del


mundo, claro hay minería muy mala en Bolivia y Perú, pero vayan
a ver en Canadá en Australia y vamos a seguir los buenos ejem-
plos no los malos ejemplos. Y aquí tienen un Proyecto muy im-
portante, San Carlos Panantza, que está en etapa de exploración,
pero lamentablemente ‘prohibido olvidar’ atrasado por una inva-
sión dirigida por politiqueros locales. ¡Ya basta! A rechazar estas
cosas, no me hacen daño a mí, le hacen daño a Morona [Santiago],
le hacen daño a San Juan Bosco, le hacen daño a Gualaquiza, a
Palora, le hacen daño a Limón Indanza, le hacen daño a Morona a
Sucúa, le hacen daño a la Patria. (CORREA DELGADO, 2016b)

Los ejes arriba citados no agotan las posibilidades de análisis, sino


permiten identificar líneas argumentativas que sustentaron y visaban legiti-
mar una “articulación Estado-empresa”, la cual ocurre en diversos ámbitos,
incluso el Educativo.

2015: ENTRE INSURGENCIAS E INAUGURACIONES


Al inicio de 2015, habían 51 UEM operativas y 23 estaban en cons-
trucción. El Ministerio de Educación (ME) había anunciado, en enero, el
objetivo de concluir 300 UEM hasta el 2017. (GALLEGOS SEVILLA, 2015)
Hasta marzo de 2016, un 20% de las 60 UEM se encontraban en la región

180 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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amazónica. (LA AMAZONÍA…, 2016) Según la página del ME, hasta febrero
de 2018 estaban en funcionamiento un total de 97 UEM (2014), de las cua-
les 24 están ubicadas en la Amazonía.
En junio de 2015, tras el IV Encuentro de Educación Intercultural
Bilingüe “Dolores Cacuango”, representantes de dirigencias y bases del mo-
vimiento indígena declararon “enemigo de la Educación y en particular de
la Educación Intercultural Bilingüe al Señor Rafael Correa Delgado, a su
Ministro de Educación, así como a todos sus colaboradores quienes”. Se
resaltaba la “actitud servil” frente a “las recetas imperialistas de EEUU y
China”, y el cierre masivo de las “escuelas bilingües y rurales, impidiendo y
limitando el cumplimiento del derecho universal de acceso libre a la educa-
ción de calidad, cercanía y con calidez a los sectores indígenas, campesinos
y urbanos pobres”. (COMUNIDAD…, 2015)
En el evento se ha rechazado la construcción de las escuelas del
milenio. Uno de los casos más emblemáticos era el caso de Sarayaku, cuya
población había rechazado la obra física y el modelo pedagógico del Go-
bierno, que había planificado la construcción en un terreno de por lo me-
nos cinco hectáreas. (POR QUÉ DECLARARON…, 2015) Los delegados del
Pueblo Kichwa Amazónico, reconocido internacionalmente por su lucha en
contra de la explotación petrolera en sus territorios – e incluso beneficia-
dos por una sentencia del a CIDH en contra del gobierno ecuatoriano –, ex-
plicaron que la comunidad ha diseñado su propuesta (Sacha Runa Yachay o
“Saberes de la Selva”) (GUALINGA VARGAS, 2012), con materiales didácticos
de su cultura. El gobierno, según decían, no les tomaba en cuenta.
Durante el IV Encuentro, delegaciones de distintos pueblos y na-
cionalidades (Kichwa Kayambis, Karankis, Otavalo, Panzaleo, Puruwa, Gua-
ranka, Sarayaku, Kañari, Saraguro, Navon, Shuwar, Achwar, Tsachila, Awa y
otros) denunciaban la violación a los derechos a una educación propia, de
calidad, basada en las prácticas culturales ancestrales. A la época, se cele-
braba los 25 años del Levantamiento Indígena, momento emblemático para
el reconocimiento de la historia, cultura y de la existencia misma de los
pueblos indígenas, bien como para el proceso de construcción de un Estado
Plurinacional e Intercultural – un camino todavía inconcluso. Y amenazado
por un grave retroceso, según dejaba ver la exigencia para que se pudie-
se “materializar el derecho a la Educación Intercultural Bilingüe a través

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 181

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de la interculturalidad y plurinacionalidad, reconocida en la Constitución”,
pero amenazada por la pérdida de “autonomía e independencia política,
administrativa, técnica”. Además, se reivindicaba la “inversión necesaria en
infraestructura, tecnología, pedagogía”, pero una inversión que permitiera
“dinamizar los conocimientos, saberes y las artes de los pueblos”. Esto, a
juzgar por lo que abordamos aquí, no se hacía posible con el modelo de la
Revolución Educativa en curso.
Dos meses después, empezaba la “Marcha por la Vida y Dignidad”.
En todo el país, hubo protestas bajo la convocatoria al Levantamiento y
Paro Nacional, movilización liderada por la CONAIE y movida por otros mo-
vimientos sociales. Las vías de diversas ciudades y provincias fueron toma-
das por protestas, las cuales, en los meses siguientes, serían descalificadas,
deslegitimadas, reprimidas y criminalizadas por el gobierno Correa.2
En la Marcha, miles de personas fueran sumándose desde Tundayme
– en el extremo sur del país – hasta llegar a Quito. En los centros urbanos
y en la capital se unieron organizaciones sociales, sindicales, estudiantiles,
jubilados y distintas personas que expresaron en este, entonces, su des-
contentamiento con varias acciones del gobierno de Correa, incluyendo la
dicha “Revolución Educativa” y el avance de los proyectos extractivos.
Las protestas se basaban en un “mandato popular” de siete pun-
tos. Se exigía el archivo de enmiendas constitucionales anunciadas por el
gobierno – con relación, por ejemplo, a cambios en el Código de Trabajo –;
la restitución del 40% al aporte de las pensiones jubilares; el libre acceso a
la educación superior y a la educación intercultural bilingüe; el respeto al
Parque Yasuní – amenazado con el avance de la frontera extractiva petrolera
en la Amazonía – y a los “derechos de la naturaleza” – reconocidos constitu-
cionalmente –; la derogatoria de leyes y decretos que coartaban libertades
y derechos – como el Decreto 16 –; y la reestructuración del Consejo de
Participación Ciudadana.
En Tundayme, punto de partida de la Marcha, está ubicado el Pro-
yecto Mirador, desarrollado por la empresa China Ecuacorriente S.A. (ECSA).
El proyecto mega minero situado en la Cordillera del Cóndor, frontera con
Perú, ya era el más avanzado del país, cuando José Tendetza, líder shuar

2 Para algunos datos sobre el proceso de criminalización de la protesta en el 2015 y en los


meses siguientes, ver: Comisión Ecuménica de Derechos Humanos (2015).

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conocido por su oposición a la empresa china, fue encontrado sin vida a las
márgenes del río Chuchumbletza, en diciembre de 2014.
Los alcances y amplitud de las protestas y movilizaciones de 2015
fueron contrarrestados por las versiones oficiales. Sin embargo, un indica-
dor de su fuerza y representatividad son los datos generados sobre la repre-
sión de las fuerzas policiales y militares en diversas partes del país. Apenas
en la primera semana de movilizaciones, la cifra de detenidos que registró
la CONAIE fue de cerca de 151 personas. La mayoría de los detenidos se
registraron en Quito, Saraguro y en el Puyo.
Otro ‘efecto colateral’ de las protestas de 2015 fue la destitución
irregular de Franco Viteri, presidente de la CONFENIAE – brazo amazóni-
co de la CONAIE –, en septiembre de 2015. Él fue sustituido por Felipe
Tsenkush, una decisión respaldada por el gobierno nacional desde su Se-
cretaria Nacional de Gestión de la Política (SNGP) y desautorizada por los
dirigentes de las organizaciones indígenas amazónicas. Viteri, originario
de Sarayaku, siguió siendo reconocido como presidente de la CONFENIAE
hasta la elección del Achuar Marlon Vargas, en septiembre del año siguiente
(2016).
La insurgencia de 2015 fue contrarrestada por el gobierno con la
criminalización y judicialización de la protesta (KALAPAQUI, 2016; KALAPA-
QUI; BUENDÍA, 2016), pero también con la bien orquestada convergencia
entre discursos, inversiones suntuosas e inauguraciones, las cuales rendían
imágenes de una política pública eficaz y eficiente, pese las críticas:

Ustedes saben que estamos en un año muy duro. Las personas so-
mos lo que en las dificultades demostramos ser. Los politiqueros
mediocres vendrán a tratar de sacar provecho de las dificultades
diciendo que estas se deben a las malas políticas económicas de
Correa. No es verdad. Estamos enfrentando factores externos,
como el desplome del precio del petróleo, como la apreciación
del dólar… Pero, pese a esos problemas, el país sigue adelante
porque tenemos fe en nosotros mismos y sabemos que, juntos,
podremos superar cualquier dificultad, cualquier desafío. Lo más
importante de esta Revolución es que hemos podido recuperar
la fe en nosotros mismos y no nos van a poder robar la esperan-
za. De estos tiempos difíciles saldremos más fortalecidos. Hemos
invertido en educación más de 19 MIL MILLONES de dólares en
todo este período de gobierno. (CORREA DELGADO, 2015b)

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 183

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Arriba están reproducidas las palabras de Correa durante la inaugu-
ración de la Unidad Educativa del Milenio Arutam,3 el 5 de octubre de 2015,
en la zona de influencia del Proyecto Mirador.
Algunos días después (20 de octubre), el expresidente llegó a Victo-
ria Portete, otra zona de influencia de proyectos mega mineros, para inau-
gurar una nueva UEM.

El problema es si necesitamos o no la minería, y por supuesto que


la necesitamos. Si nuestros recursos naturales se transforman en
colegios, en escuelas, en caminos, en centros de salud, en hospi-
tales, por supuesto que necesitamos esa minería. Realmente esta
escuela no se ha construido con las regalías mineras de Loma Lar-
ga, porque todavía no empieza la explotación. De hecho, ninguna
gran minería en el país ha empezado su explotación, pero logra-
mos negociar con un importante proyecto en Zamora Chinchipe,
el proyecto Mirador, en el cantón El Pangui, para que nos den
regalías anticipadas y con esos recursos hemos construido esta
UEM en Victoria del Portete, entre muchas otras obras.

El argumento se repite en una y otra inauguración de las UEM. Loma


Larga (ex Quimsacocha) está entre los cinco proyectos mineros clasificados
como “emblemáticos” o “estratégicos” del gobierno de Correa. Se trata,
además, de los proyectos cupríferos Mirador-Mirador Norte y Panantza-San
Carlos (Cordillera del Cóndor, Amazonia Sur), los proyectos auríferos Fruta
del Norte, Loma Larga y Río Blanco. Los dos últimos, relativamente más mo-
destos en su tamaño, están ubicados en zonas de páramo, en la provincia
serrana de Azuay.
Según datos citados por Sacher (2017), el mismo gobierno de Co-
rrea ha presentado la mega minería como una “proveedora estable de fu-
turos ingresos”. Los ingresos anuales previstos por conceptos de regalías
serían de USD 784 millones (en la fase de explotación de los cinco proyec-
tos mencionados), y su producción representaría el 5,6% del PIB, un 14% de
las exportaciones anuales. (SACHER, 2017, p. 173)

3 Arutam es el nombre de un ser divino de la selva, asociado a las cascadas por los pueblos de
la nacionalidad Shuar, y asociado por los misioneros salesianos al Dios católico en sus proce-
sos “educativos” de evangelización/“civilización”.

184 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Por otro lado, Correa informó sobre la inversión de “más de 5 millo-
nes de dólares” en la construcción de la UEM Arutam y “más de 6,8 millones
de dólares, con equipamiento” en la UEM Victoria del Portete. En su concep-
to de “mineralo-Estado”, Sacher observa que el gobierno no solamente ha
proporcionado la fuerza pública y una “nueva institucionalidad minera” al
servicio de la minería, sino que también ha movilizado todos los ministerios –
incluyendo, evidentemente, el joven Ministerio de Minas, y los de Ambiente,
Interior, Agricultura, Educación, Salud etc. (SACHER, 2017, p. 311) De este
modo, además de “la construcción de grandes infraestructuras energéticas y
de transporte, financiadas con deuda pública para garantizar las condiciones
materiales de la futura explotación”, Sacher también resalta “la construcción
de obras como las aldeas y escuelas del milenio”, bien como la “construcción
y difusión permanente de narrativas legitimadoras en las sabatinas del Presi-
dente de la República” y a través de medios de comunicación controlados por
el gobierno. (SACHER, 2017, p. 312)
En síntesis, tenemos una “articulación Estado-empresa” (ECUADOR,
2015) – así mismo nombrada en documentos oficiales –, en donde el Estado
se presenta como garante sociopolítico de la acción de las empresas en el
territorio, junto a las comunidades. Como parte de esto, está la promoción
de un modelo educativo pensando en función de un proyecto de desarrollo
específico, que abaliza y refuerza la devaluación de lo comunitario, ances-
tral, de las pedagogías vinculadas y desarrolladas desde/con el territorio.

CONCLUSIONES
Esta lectura retrospectiva de las relaciones entre el proyecto educa-
tivo y extractivo del gobierno Correa se desarrolla en un momento que nos
exige un análisis crítico de las perspectivas sobre “refundar el Estado mo-
derno”, las cuales alimentaron el proceso de creación de la nueva Constitu-
ción (2007-2008). Considérese en particular el déficit de autonomía a partir
de los (limitados) espacios de interlocución ofrecidos desde la “Revolución
Ciudadana” de Correa y, posteriormente, con la propuesta de reconciliación
nacional presentada por Lenin Moreno.
Los límites para un diálogo horizontal con el gobierno del actual
presidente ecuatoriano, ex aliado político de Correa, estuvieron impresos

EDUCACIÓN Y TERRITORIO EN EL “NUEVO ECUADOR” 185

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 185 29/08/2019 06:33


desde su inicio en los mapas de las concesiones mineras y en los anuncios
para la ampliación petrolera. Durante su primer año de gobierno (2017-
2018), se han desarrollado algunas negociaciones en el ámbito del dicho
“Diálogo Nacional”, con la apertura de las puertas del Palacio de Caronde-
let al movimiento indígena, tras la propagada ruptura con el mandatario
anterior. Temas como la EIB y la creación (vía decreto presidencial) de la
Secretaría de Educación Intercultural Bilingüe (SeEIB), prometen resolver
las demandas expresas en las calles en el año de 2015. Sin embargo, una
vez más, el gobierno parece estimular e invitar a la “competencia ciudada-
na” entre los diversos sectores sociales, especialmente afros e indígenas,
mientras anuncia que la cobija de las políticas públicas se ha hecho aún
más reducida, exigiendo una revisión de la política distributiva y de las an-
teriores prerrogativas pro Estado. Además, defiende un saneamiento de las
cuentas públicas afectadas por casos de corrupción. Esto suele resultar en
la ecuación neoliberal: cortes presupuestarios + privatizaciones.
En el caso de las UEM, el lanzamiento de cada nueva unidad ha sido
una oportunidad para el gobierno anterior reafirmar la importancia y los
“nuevos” rasgos de su política extractiva, minera y petrolera, buscando una
diferenciación con el pasado de la “larga noche neoliberal” por medio de
una política distributiva anclada en el capitalismo extractivista, que, sin em-
bargo, ha actualizado viejas formas de despojo territorial y epistemológico.
En este texto pretendí lanzarme al terreno de los discursos oficiales,
encontrando en ellos la orientación de una política educativa asociada di-
recta e indirectamente al desarrollo de proyectos extractivos, considerados
“estratégicos”.
Es importante resaltar los límites para transversalizar la intercultu-
ralidad en todo el sistema nacional, contradiciendo la Ley Orgánica de Edu-
cación Intercultural. Nótese los procesos inconclusos hacia la inclusión de
conocimientos y saberes ancestrales en las mallas curriculares nacionales
– es decir, hispanas. Este estudio ha buscado enfocar la existencia de una
‘pedagogía extractivista’, ejecutada en una vía de mano única, diseminada
en diversos ámbitos de la acción estatal, orientadora de políticas y discur-
sos oficiales. Ratificando el análisis de otros autores, pudimos afirmar que,
en Ecuador, el modelo exportador-extractivista sigue siendo protagonista,
influenciando inclusive los horizontes del sistema educativo.

186 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Finalmente, en medio a los diálogos del movimiento indígena junto
al gobierno de Moreno, particularmente con relación a la Educación, se
activan dos señales de alerta y reflexión: el primero evidencia fuerzas que
reproducen la disociación entre las agendas de la EIB (indígena) y el proyec-
to/ proceso de la etnoeducación afro; el segundo, a partir de experiencias
anteriores, sugiere cuidado con las trampas del serpenteo al Estado, prin-
cipalmente considerando los riesgos de una nueva representatividad fol-
clórica y funcional a la reacomodación del modelo capitalista extractivista.

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190 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL:
APUNTES PARA ENTENDER EL MOVIMIENTO
Enrique Téllez Fabiani

SENTIDO DE LA CUESTIÓN
Hacia 1950, el México civil había logrado tomar el control definitivo
del gobierno; a partir de entonces, había una percepción de continuidad,
estabilidad y atemporalidad política. Ciertamente, México, por un lado, era
visto como un modelo extraordinario dentro del conjunto de Latinoamérica
gracias al consenso alcanzado por las múltiples facciones políticas que le
dieron legitimidad; y, por otro lado, debido a la estabilidad económica de
las circunstancias con lo que se ganó el nombre del “milagro mexicano” a
este periodo de tiempo de posguerra. La autonomía de la institución esco-
lar más importante del país, la Universidad Nacional Autónoma de México
(UNAM) había sido ganada gracias a las gestiones de Justo Sierra en 1929.
No es exagerado decir que el poder político reside en la cabeza del
gobierno, el presidente; de ahí, que el sistema de elección haya sido la ins-
titución más importante desde entonces hasta hace relativamente poco. El
partido político – Partido de la Revolución Institucional (PRI) – es fuente de
elección y autoridad en toda la vida pública, porque se había proclamado la
no reelección en la época revolucionaria. El candidato era simultáneamente
el presidente.
Después de la masacre de estudiantes en Tlatelolco, el 2 de octubre
en 1968, el sistema político pierde legitimidad y se cuestiona fuertemente
su autoritarismo. La UNAM asume un papel significativo en las movilizacio-

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nes; pero el sistema sabe cooptar, lo mismo que incluir a los intelectuales
a su seno, sabe reprimir y exterminar, tanto como premiar y condescender.
Es un sistema complejo, ambiguo, de difícil discernimiento. No tiene una
ideología única, contiene todas en una extraña convivencia donde lo único
importante es conservar los privilegios. Es un sistema patrimonialista (que
asume su soberanía absoluta del país entero como suyo propio), patriarca-
lista (el presidente es “padre” de la patria), corporativista (incluye a todos
siempre y cuando estén alienados al sistema).
Una buena parte de la información disponible no son los datos in-
cuestionables de los archivos, ni las interpretaciones objetivas de los histo-
riadores más agudos, sino testimonios de quienes estuvieron cerca de los
acontecimientos que, además por la cercanía cronológica, nos llega has-
ta nuestros días como historia viva, de hecho: como una herida sin sanar
convertida en palabra. Y no es una cuestión metafórica: hasta el momento
en que escribo este texto, no se tiene deslinde de responsables ni hechos
claros.
Dice Monsiváis que lo que definió la rebeldía en el 68 fue la rabia,
el rencor social y el impulso de la marginalidad que quiere dejar de serlo:
voluntad de trascender un cierto estado de cosas. Estos tres elementos,
que se resumen en una profunda indignación, serían más que suficientes
para pensar en un “acontecimiento” desde el cual emergen las volunta-
des del querer-vivir y de la concientización. Pero este acontecimiento no
es meramente formal, es plenamente sustancial, al hacer de un origen
de una teoría o idea, hasta cierto punto mítico, algo tan concreto, una
reacción a la impunidad de los victimarios. Tarea que justamente le toca
a quienes perdieron un miembro familiar, o un colega universitario. Por
mucho tiempo fue esta la voz más importante que se dejó sentir a nivel
social, y solo hasta mucho tiempo después a nivel político. Se trata de la
politización de la indignación. Es decir, tuvieron que pasar muchos años
antes de hacerse escuchar para que la sociedad politizara estas denun-
cias. Sobre todo porque la impunidad, como siempre, estuvo acompañada
de encubrimientos.
La respuesta del gobierno mexicano se trató de una “fortaleza”,
como la mayoría de los comentaristas perciben el autoritarismo, que es más
bien una franca y manifiesta “debilidad”: si una organización es incapaz de

192 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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sumar voluntades, quiere decir que se encuentra en un estado de debilidad.
El Estado mexicano, como es la regla en la mayoría de los casos latinoame-
ricanos, es un Estado débil. Por ello, y debido ala falta de la legitimidad que
le permitiría gobernar en paz, tiene que arrojar a la calle a los militares y
reprimir a los que expresan su disidencia o inconformidad. Si eso es una
muestra de debilidad, la sociedad, aún desorganizada e ignorante, contiene
elementos de mayor fuerza interpretativa de la patología de Estado. Se
sabe quién es el enemigo real, se sabe cuál es la orientación adecuada a sus
necesidades. Al constituirse como comunidad, aún de manera acrítica, se
está formando como comunidad política. Lo que hemos visto es un lento
paso desde el caos hacia la politización de indignación que es el primer
paso a la comunidad política, apenas vislumbrada cincuenta años después,
en 2018.

BREVÍSIMA CRONOLOGÍA DE LA MASACRE


Llama la atención que aquello que se percibe como un acontecimien-
to, tan aparentemente breve como dramático, sea en realidad un proceso
de varios meses que inició con una pelea, que pudo ser disipada en térmi-
nos más elocuentes como una tensión focalizada con solución igualmente
focalizada, llegó a convertirse en una matanza de centenares de personas
congregadas en la plaza de Tlatelolco, cerca del centro histórico de la Ciu-
dad de México. Previo a esto, hubo un evento que encendió la movilización
de los sectores estudiantiles de las instituciones más importantes del país.
Primero, un conflicto muy local entre estudiantes, el 22 de Julio. Le siguen
más conflictos que empiezan a escalar de tono. Luego, el “bazucazo”, es
decir, una puerta de la preparatoria obra maestra del barroco, queda des-
truida por la acción de una bazuca del ejército, el 30 de julio. Esto encendió
la mecha de la lucha por la autonomía. Le sigue manifestaciones callejeras
múltiples de varios centros educativos, tanto públicos como privados, mí-
tines, declaraciones públicas, vínculos con sindicatos y otras agrupaciones,
algunas de maestros. El 18 de septiembre el ejército invade la Ciudad Uni-
versitaria y sube el nivel y la frecuencia de la violencia. El 2 de octubre se
desencadena la masacre de cientos de personas, no solo estudiantes. Hasta
el sábado 5, se registra una declaración de un líder; le sigue conferencias

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL 193

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de miembros del Consejo Nacional de Huelga (CNH) el día 9. Hasta el 4 de
diciembre se regresa a las clases.1

AUTONOMÍA UNIVERSITARIA Y SOBERANÍA POLÍTICA


La historia de las universidades en América Latina está manifiesta y
explícitamente vinculada a las insurgencias populares. En torno a los años
sesenta, y de manera muy particular en el 68, se registran un sinnúmero de
actos de protestas estudiantiles o de solidaridad con luchas populares que
recurrieron a la universidad para lograr su apoyo. La historia que corre del
68 al 89 marcan un hito en la historia de la educación y las insurrecciones
populares en nuestro continente. Y aún antes:

Tras los movimientos campesino-sindicales y las protestas elec-


torales de la primera mitad de la década de los sesenta, el mo-
vimiento estudiantil extendió sus brazos. Entre 1963 y junio de
1968 se registraron por lo menos 53 revueltas estudiantiles. […].
No obstante, poco después las fuerzas armadas consiguieron en-
volver al sucesor de Genaro Vázquez, Lucio Cabañas, en una ‘es-
piral apocalíptica’, pero no hay que olvidar que la ausencia de un
proyecto político de largo plazo en Guerrero [al sur de México] es
una de las constantes fundamentales que explican el retorno de la
insurgencia en los noventa. (BIZBERG; MEYER, 2009, p. 223 y ss.)

Pero a todos ellos, le sucedieron los movimientos guerrilleros de


Vázquez y Cabañas en los setenta. Es decir, la violencia perpetua genera
violencia perpetua. El poder fetichizado es fundamentalmente débil, y su
reacción es la fuerza, pero es una fuerza contradictoria, porque justo se
debe a su imposibilidad de sumar voluntades políticas, ya que desaparece
al antagonista, desapareciendo con ello el campo de la política y desplazán-
dose al campo militar. Es decir, un ámbito de cosas donde pierde sentido la
política, como voluntad de vivir. Es una guerra perpetua por mantenerse en
el poder. Todo esto será el antecedente de la aparición pública del Ejército
Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), hacia 1994.

1 Con información de la cronología de Poniatowska (2012, p. 337-350).

194 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Es decir, entre estos años, hay dos casos extremos: la masacre de los
estudiantes en Tlatelolco, como efecto de varias intervenciones militares
en escuelas y centros superiores de educación, y el asesinato de los jesuitas
en la Universidad Centroamericana Simeón Cañas, en San Salvador. Ambos
marcan una época a través de la cual se escribe la guerra fría. No afirmo que
sean asesinatos vinculados o parecidos, sino que ambos son signos de una
guerra fría, como efectos indirectos de la globalización en curso, aunque
con efectos directos en sus historias particulares. Es importante no confun-
dir lo local (los dramáticos hechos entre militares y sectores civiles) con lo
global (la guerra fría eminentemente ideológica).
Hay aspectos de la vida humana que no solo son difíciles de defi-
nir, sino que se “descubren” por su negación, no en su afirmación, como
la dignidad, la autonomía, etc. Sabemos que somos dignos hasta que
se vulnera (se niega) ese aspecto. Surge, entonces, la conciencia de ser
digno. El mismo pasó con el significado de la UNAM. Un aspecto era la
materialidad de sus edificios y otro, muy diferente, la relación simbólica
(propiamente la institucionalización) que había construido con la socie-
dad. No solo era un símbolo de estatus social o posibilidad de mejora
laboral, sino que se convirtió en bastión de soberanía política frente a
la agresión del gobierno.
La simple pregunta por la autonomía (en abstracto) nos obliga a
reflexionar en torno a la conciencia del ser autónomo (en concreto). Pero,
como suele pasar, siempre se descubre en negativo: cuando los testimonios
hablan de “violar la autonomía” significa que el último reducto soberano
es uno de los bienes más preciados para los más vulnerables: la apenas
naciente clase media que se la juega toda en un regreso fracasado o en un
futuro que le permita trascender su actual estado de incertidumbre. Dice
Monsiváis que en “el 68 la Autonomía Universitaria, hasta ese momento un
concepto casi abstracto, reinicia su poderío movilizador”. En efecto, se tra-
ta de una actitud acrítica, cotidiana, que deviene concreta en la medida en
que manifiesta su negación extrínseca, ya sea con la policía, o las interven-
ciones de agitadores, “porros”, de gente más bien encubierta, infiltrados
del gobierno, los tanques, las bazucas, las bayonetas y demás artillería. Sin
embargo, lo más significativo es el descubrimiento de algo invisible, pero
tan perturbadoramente presente y concreto que resulta un impulso intrín-

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL 195

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seco a quien lo padece. Es una voluntad desde muy al interior de la todavía
débil comunidad política que se va emancipando. Esta soberanía manifiesta
en el espacio universitario es casi una extensión de la corporalidad humana,
de las víctimas de la represión brutal.
La Universidad es una institución que se descubre ya no como paso
obligado al acceso de un puesto de trabajo, sino como un resquicio de sal-
vación política en un sentido amplio. Se recurre a ella porque es un lugar
desde donde se pronuncia la interpelación contra la dominación del Estado,
lugar involuntariamente político por excelencia, de manera que de su vul-
nerabilidad surge la vulnerabilidad de la sociedad misma. Enclave de posi-
bilidades es el órgano crítico del gobierno que le es ajeno a lo burocrático
(casi la única labor del momento de la clase media). El pueblo descubre la
UNAM, un pueblo que nunca fue descubierto por la Revolución Mexicana, y
no ha sido descubierto por la academia misma.

¿Eso quiere decir que si no entran los soldados a las escuelas, la


reacción hubiese sido distinta, menos homogénea, mucho más
política que jurídica y política? Sí, exactamente eso, si uno se
atiene a las protestas por represiones anteriores, tan escasamen-
te concentradas en la protección de lo simbólico. Por eso surge
o resurge ‘lo universitario’ de cientos de miles… (MONSIVÁIS,
2008, p. 33)

El valor simbólico es primero acrítico y después se trata de la de-


fensa política de un islote urbano que es patrimonio intangible soberano.
Después se convertirá en un patrimonio concreto, en el sentido de que se
asume ya como propio, y, por ello, vale la pena su defensa. Revueltas va más
allá, pensando a la Universidad casi como un lugar sagrado, al que le atribu-
ye ya no solo un lugar de crítica, sino de transformación. En tono optimista,
Revueltas habla de autogestión como una conquista de libertad:

Aunque el concepto de autogestión no fue explícitamente des-


plegado como tal por el movimiento de la generación 68, la au-
togestión constituye, no obstante, su conquista teórica esencial y
uno de los más grandes logros obtenidos. La autogestión fue, de
hecho y sin duda alguna, la práctica misma del Movimiento, su
forma existencial de ser, en concordancia con su propia realidad

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concreta y su contenido como cuestionamiento del régimen. […].
Esto era poner en marcha la democracia como forma operativa de
libertad… (REVUELTAS, 2008, p. 137)

Esta libertad tiene relación con la autodeterminación política en úl-


tima instancia, y para este intelectual era el primer paso para que “todos los
sectores del pueblo” pudieran cambiar el rumbo de la Historia. Esto iba vin-
culado a todo el movimiento social – a coordinarse con la autonomía uni-
versitaria para la consecución de los mismos fines de libertad. El resultado
de todo este proceso es la politización de un pueblo que no tiene referen-
cias para darse medios para la consecución de otros fines culturales. Dice:

Lo que sí constituye el acto teórico, la acción teórica en profun-


didad, es la remoción, el trastorno de la realidad interna, trastor-
no y remoción, […], movimiento teórico, es precisamente lo que
hace ser a la historia; lo que ha de convertirse en historia real.
[…] Consistía en desmitificar la historia del país; en iniciar, por
primera vez, la apertura hacia la existencia de la historia real de
México. […]. La Universidad crítica es una conciencia colectiva,
pero además es una conciencia de la cultura (en su sentido más
amplio) que ha de asumirse en sus dos aspectos: como conoci-
miento y como transformación, esto es, precisamente crítica, de
la realidad. (REVUELTAS, 2008, p. 151 y ss.)

Todo el programa de acción política de Revueltas se encuentra aquí.


No es la libertad abstracta, sino la transformación concreta de la realidad
más vívida e inmediata en la que cotidianamente se encuentra. La univer-
sidad es el lugar privilegiado de donde surge una clase social (una clase
media profesionista en acenso que reclama sus privilegios de acuerdo con
sus méritos) capaz de pensar la sociedad en la que vive. Consciencia de sí.
El intelectual orgánico busca un Estado que lo represente. La militancia
construye un Estado cumpliendo su tarea histórica de crear condiciones de
posibilidad formal (educativa, política) para lograr el fin universitario del
ejercicio político de la crítica. Posteriormente, hablaremos de un ciudada-
no que construye un Estado, pero esta tarea tardará todavía muchos años
después del 68, y costará mucha sangre, tortura, desaparecidos que la élite
política tratará de ocultar.

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL 197

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LA UBICACIÓN DEL 68 EN LA HISTORIA MEXICANA
En este apartado, quiero expresar una cuestión que suele no apare-
cer en los textos referentes al movimiento del 68. Se le puede considerar
como el fin (de la Revolución Mexicana), la culminación de un Estado de-
sarrollista (en un punto intermedio de desenvolvimiento de la guerra fría),
o el principio de la democracia en este país. Me parece que no se puede
valorar la insurgencia estudiantil si solo se le reduce a una de estas pers-
pectivas; más bien, opino que deben ser complementarias para entender el
panorama general de su explicación. Además, suele faltar un marco teórico
más sólido que trataremos de ofrecer diseminadamente a lo largo de esta
trabajo.
a) Hay quienes consideran que el sexenio de López-Portillo (1976-
1982), aun con las excentricidades del mandatario, marcó el fin de la revo-
lución social; todo ello porque acabó un régimen donde, por lo menos en
el papel, se le intentó hacer justicia a las clases pobres. Era un político con
claras inclinaciones culturales y con un discurso de izquierda. Pero como
candidato único a la presidencia al inicio de su mandato y como estratega
económico, con inflaciones increíblemente grandes, al final de su sexenio
cayó en el total descrédito y hasta en la lástima. El “milagro mexicano” que-
daba en entredicho además de que el país estaba sumido en una grave crisis
de legitimidad heredada desde 1968. Por otro lado, de López-Portillo (quien
no tuvo contendientes políticos: llegó a la presidencia sin competencia par-
tidista, lo cual habla de la despolitización de la sociedad en ese momento)
no se hace ninguna relación explícita con los acontecimientos de Tlatelolco,
porque más bien el que se llevó el problema consigo fue el sucesor de Díaz
Ordaz: Luis Echeverría (1970-1976). Estos son los personajes clave de los
sucesos del 68.
Hay también quienes marcan al gobierno del general Cárdenas como
el fin de la Revolución Mexicana (1934-1940). Es casi una muerte prematura,
que además funciona en un esquema de “capitalismo autónomo”, junto a
Perón en Argentina y Vargas en Brasil. Ambas posiciones no dan cuenta
del 68 porque Cárdenas es considerado como un gran “populista” (en otro
sentido que escapa ahora por la amplitud del tema) que tendría más bien
afinidad con dicho movimiento, pero que es muy anterior a su gobierno. Lo
que es un hecho es que, desde una década antes a la masacre de Tlatelolco,

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no todos los sectores estuvieron conformes con lo que se les proponía, los
médicos, los ferrocarrileros, los sindicatos obreros habían hecho estallar
huelgas y se habían manifestado de mil maneras para demostrar su disiden-
cia en la política. La mano dura de Díaz Ordaz empezó a verse frente a la
reacción de las huelgas de médicos. Por otro lado,

el movimiento estudiantil de 1968 hizo que el sistema se estre-


meciera hasta los cimientos. Existía en México una larga y vene-
rable tradición de activismo estudiantil y era costumbre sofocar
los disturbios por medio de la fuerza limitada (como en Guerre-
ro, Morelia y Sonora) o despidiendo al rector (como en la UNAM
en 1966). En estos casos, las autoridades y los estudiantes re-
conocían y aceptaban las reglas del juego, una serie de límites
y códigos que ninguno de los dos bandos estaba dispuesto a
transgredir. Esta vez iba a ser diferente. […]. Las universidades
fueron radicalizándose de modo creciente y acabaron convertidas
en semilleros de oposición. La relación entre los estudiantes y el
Estado, que históricamente había sido enriquecedora para ambas
partes, degeneró en amistad mutua y franca hostilidad. De ningún
modo puede decirse que la matanza de Tlatelolco anunciara el fin
del régimen, pero sí abrió una delicada fisura en el edificio del
Estado. (ANNA et al., 2001, p. 353 y ss.)

Al final del sexenio de Díaz Ordaz ya no había rastros de consenso


postrevolucionario. A partir de entonces, el sistema no recuperaría el equi-
librio entre la legitimidad y el acrecentamiento material de la población,
que fueron de inspiración a otras revoluciones, como el agrarismo para la
revolución rusa, o la “cobertura universal de salud” para la cubana. Ya no ha-
bría proyecto factible emanado de la lucha armada. Ya no habría principios
políticos que guiaran las acciones en las instituciones, ni normatividades
que restringieran la tríada de poderes republicanos. Lo que seguiría es la
simple conservación instrumental del poder, para lo cual habría que buscar
la legitimidad en un nuevo modelo económico, el neoliberalismo puesto en
marcha hasta el sexenio de Miguel de la Madrid, en 1982, pero que tampo-
co lograría superar los rezagos que hasta nuestros días seguimos viviendo,
una reforma económica sin reforma política. Sin embargo, no hubo frutos
sanos: el crecimiento anual desde entonces sería cercano a cero, el descon-
tento social crecería, y la única salida que se plantearía es la venta del único

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y último insumo del país: el petróleo, misión lograda hasta las reformas
de Peña Nieto, dando por sepultado la nacionalización de este por Lázaro
Cárdenas en 1938.
b) El desarrollismo sigue siendo un tema significativo para la filoso-
fía; toda vez que justo hay todavía una polémica en torno a las categorías
marxistas en la teoría de la dependencia. La historia del capital contiene
historias locales, situadas en las historias nacionales, que se dejan “arras-
trar” por una economía que despolitiza a la sociedad. En el siglo XX esto es
de la mayor importancia, porque quizá por primera vez, no solo en México,
sino en el mundo, las sociedades informadas, mediamente educadas, se
dieron cuenta de que la soberanía sobre la vida (en todos sus sentidos) no
la tenían los mismos seres humanos, sino el capital mismo.
Las desproporciones de la población se dejan ver dramáticamente
en muchas regiones del planeta: lo mismo en Europa occidental que en el
sureste asiático y América Latina. Es muy claro que el mundo deja de ser
rural por convertirse en urbano y esto provoca un desequilibrio en la ofer-
ta y en la demanda de productos y servicios en los dos ámbitos de la vida
cotidiana. En algunos casos, la población que entra a las universidades se
multiplica por siete. Esto provoca un desbalance entre lo que pueden ofre-
cer los gobiernos y el Mercado como oportunidad laboral de acuerdo con
los estudios, a pesar de que se habla de los “años dorados” de la postguerra
que contiene una especie de reavivamiento económico, un nuevo reacomo-
do planetario. Lo que es un hecho es que no todos tendrán trabajo, ni todos
serán remunerados con una actividad profesional. No obstante, el malestar
de la sobrepoblación y las subsecuentes movilizaciones estudiantiles en va-
rios países no representan una revolución para Hobsbawn, porque:

Y como si hubiera un solo momento en los años dorados después


de 1945, correspondiente al surgimiento mundial simultáneo que
los revolucionarios habían soñado en 1917, fue en 1968 cuando
desde el Occidente, los estudiantes se rebelaron en EUA y Méxi-
co, hasta el Oeste con Polonia, Checoslovaquia y Yugoslavia socia-
listas, profundamente estimulado por la extraordinaria irrupción
del mayo de 1968 en París, epicentro de los levantamientos es-
tudiantiles continentales. Lejos de una revolución, pero conside-
rablemente más que un mero ‘psicodrama’, o ‘teatro callejero’,
como calificaron algunos grandes apáticos observadores como

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Raymond Aron. Después de todo, 1968 terminó la era del general
de Gaulle en Francia, la era de los presidentes democráticos en
EUA, las esperanzas del comunismo liberal en la Europa del comu-
nismo central y (a través del silenciamiento posterior a la masacre
estudiantil de Tlatelolco) marcó el inicio de una nueva era en la
política mexicana. (HOBSBAWN, 1994, p. 298)

Hobsbawn subraya que no pudo ser una revolución dado que no


podía darse de manera aislada, aunque claramente había nexos con otros
sectores de la sociedad y con la clase trabajadora. Además, la historia se
prolonga hasta varios después; en México todavía con la masacre nueva-
mente del “jueves de corpus” (10 de junio de 1971) y la subsecuente la
“guerra sucia”, que prácticamente no ha terminado y tiene como punto
culminante en tiempos recientes la masacre de los estudiantes de Ayotzi-
napa; en Argentina, con el “Cordobazo” y sus múltiples secuelas; en Perú,
los disturbios en la universidad de Ayacucho y las guerrillas como Sendero
Luminoso; entre muchos intentos de transformación más en la región y en el
mundo entero. Interpelación, irrupción, resistencia van de la mano con la
posición privilegiada de ser estudiante en América Latina. Continúa:

Los estudiantes mexicanos pronto aprendieron (a) que el aparato


del Estado y de partido reclutaba sus cuadros esencialmente de
las universidades; y (b) que entre más revolucionario eran los es-
tudiantes, mejores los trabajos que se les ofrecía después de su
graduación. (HOBSBAWN, 1994, p. 300)

Y esto es algo que, me parece, apenas se está descubriendo en tor-


no a todos los acontecimientos que, a lo largo y ancho del mundo, se fue-
ron multiplicando y coincidieron en esta fecha: los movimientos sociales
en EUA en torno al segregacionismo y en contra de la guerra de Vietnam,
el mayo parisino, las revueltas en varias universidades en América Latina,
algunos de hecho que fueron eco del Cordobazo, Praga, Berkeley etc.

En 1968, la prosperidad material era el signo dominante en Eu-


ropa occidental. […]. En cualquier caso, 1968 fue parte de una
época de auge y abundancia, en la que una masa de beneficiados,
los estudiantes, se rebelaron contra lo que quedaba de autori-
tarismo en la Europa occidental democrática, especialmente en

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Francia, donde las instituciones universitarias se habían quedado
rezagadas con relación a la dinámica del cambio social. Un indica-
dor es suficiente para entender el cambio: de menos de 100 mil
estudiantes universitarios en Francia, en 1960, diez años después
las universidades de ese país albergaban a 651 mil. […]. Era la
rebelión en la época del consumo, la insubordinación de las ge-
neraciones jóvenes contra la estructura tradicional de autoridad,
empeñada en mantener sus privilegios. (BIZBERG; MEYER, 2009,
tomo 4, p. 396)

En este punto, todavía hay mucho que se puede documentar por-


que, y esto es parte de nuestra hipótesis, aún no se han interpretado de
manera panorámica los distintos movimientos y sus vínculos intrínsecos
que suponen la pérdida de soberanía de los Estados por parte del capital en
tanto entidad invisible, y que, justamente por ello, requiere de un estudio
filosófico más profundo.
c) Desde otras perspectivas, nos damos cuenta de que hay un in-
tento por explicar la democracia actual, o, en el caso de México, desde
la escisión interna del PRI en 1987, con Cuauhtémoc Cárdenas (hijo del
general Lázaro Cárdenas) y Muñoz-Ledo. Y esto también juega un papel
primordial en la explicación que, visto exclusivamente desde la perspecti-
va misma, sería reduccionista, pero articulado a las otras dos perspectivas
reducen la complejidad de la visión unilateral de la historia; es decir, el
acontecimiento del 68 sería solo un momento (sin restar su significado
propio) de una serie de momentos que desde muy antaño (diría casi inde-
finible tiempo atrás), forman un conjunto de la historia de la soberanía y
la constitución de un pueblo. Antes había “obedientes”, como lo pide We-
ber, o “enemigos”, como Schmitt. Sin embargo, la profesionalización de
las clases medias va en aumento y en la misma proporción; no hay cabida
para todos en el mundo laboral. La simple conciencia de que estudiando
se puede alcanzar un mayor nivel social en la muy jerarquizada sociedad
mexicana, producto de una continua lucha clasista y racial desde tiempos
coloniales, obliga a tomar en serio a la preparación técnica (a cualquier
nivel) que se ofrece en las instituciones de educación superior en las ciu-
dades grandes del país. Pero definitivamente no es su desaparición o cri-
sis, como dice Zermeño:

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El movimiento del 68 constituye, junto con otras luchas sociales
como la del magisterio o la de los médicos, un movimiento que
ataca puntos neurálgicos del sistema: se trata de un movimiento
de clases medias crecientes y en tanto tales enemigas innatas de
la predeterminación de las opciones políticas o del campo políti-
co, así como enemigas del Estado fuerte y autoritario, producto
de una ‘situación de masas’ que vivió su mayor coherencia en una
época ya pasada. […]. La ‘situación de masas’, base del populismo
y del Estado autoritario y piramidal ahí surgido (cuyo punto cús-
pide fue el cardenismo) comienza a convivir con un tipo de fuer-
zas sociales que, más que delegar su poder en instancias siempre
superiores, se plantean la tarea de recapturar, de hacer bajar a lo
social, las parcelas de poder que por la herencia de nuestra es-
tructura política tienden a concentrarse a nivel del Estado. (ZER-
MEÑO, 2010, p. 50)

Así, hay tres sectores que no están en “crisis”, sino que ponen en
crisis al sistema, a saber, un sector politizado de izquierda, un sector de
base estudiantil radical joven y un sector profesionista. En otras palabras,
no hay cabida para ellos en el orden vigente del Estado.
De lo anterior, vemos que solo la articulación de estas tres pers-
pectivas nos ayudan a discernir lo que acontece en el largo plazo, visto en
retrospectiva, a cincuenta años del asesinato de Tlatelolco. Veamos. Las ins-
tituciones que se crearon a partir del movimiento revolucionario de 1910
van sufriendo un desgaste entrópico inevitable e imprevisible. No se le hace
justicia ni a la totalidad del país, por demás extenso y despoblado, ni a la
totalidad de las clases sociales, ni a cualquier otra diferencia. Pero todo gira
en torno a un partido político que es más eso: tiene el control social de la
población entera; o, al menos, cualquier privilegio que se quiera, por gran-
de o pequeño que sea, tendrá que ser concesión de este partido. El control
político lo tiene el presidente, el control social lo tiene el partido, y el con-
trol económico es una combinación de ambos. Con tal centralismo político,
la federación no tiene sentido, lo que se traduce como: no hay posibilidad
de que una región interna del país, pueda ser relativamente autónoma.
La federación conviene cuando hay problemas (para dejar que se mueran
solos), pero cuando hay riquezas materiales (como el petróleo), la federa-
ción interviene positivamente a su favor. Las instituciones emanadas de la
lucha armada de principios de siglo XX adquieren legitimidad en la medida

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que funcionan relativamente bien para la población urbana con ciertas po-
sibilidades de acceso a privilegios antes impensados.
Pero es parcial y a cuentagotas. La riqueza no es para todos, las
enormes fuentes de materias primas, el petróleo, etc., son para el capital,
y, solo de manera secundaria y accesoria, para la “familia revolucionara”,
lema que aún es mencionado por algunos políticos actuales del PRI. Hay
represión localizada en los antagonistas políticos que son reminiscencias
de la Revolución y que son aplacados con toda la fuerza militar. La repre-
sión del 68 es un momento de desencanto. Surge, entonces, la ilegitimidad
del régimen. En el ámbito rural, los guerrilleros se atrincheran en muchos
puntos escarpados de la república; en el ámbito urbano, los estudiantes se
vuelven críticos frente al orden vigente que no ofrece respuesta a las deman-
das sociales. De hecho, no existe una sociedad civil aun; hay una “opinión
pública” a la que solo se le escucha como susurro desde las altas esferas del
poder. Pero dicha “opinión pública” habla sin respuesta. En el monólogo
se da cuenta que no tiene un interlocutor dispuesto a dialogar, no porque
se reconozcan como “incultas”, o “irracionales” sus demandas, sino por-
que no hay una voluntad racional frente a sus necesidades. Se trata de una
“opinión pública” todavía amorfa, pero que adquiere una concientización
de la precariedad y vulnerabilidad que, poco a poco, irá transformando en
instituciones propias de una sociedad más informada, consciente y activa.
Aún no se habla de Derechos Humanos,2 ni de Sociedad Civil, a pesar de
que existe una clase media flotante que procura “saltar” hacia arriba en la
escala social, porque existen las posibilidades de hacerlo mediante estudios
universitarios, pero surgirá en el calor de la politización de una disidencia
cansada de esperar respuestas y harta de violencia.

2 Hay casos excepcionales dentro del activismo social en el país, como el CENCOS, pero no es
un discurso generalizado ni en la sociedad ni en el Estado. Además, agrega Aguayo: “Daniel
Cosío Villegas, Carlos Monsiváis, Octavio Paz y Elena Poniatowska estaban mucho más cerca
de las ideas y la práctica del pionero del movimiento de los derechos humanos, José Álvarez
Icaza, que de las tesis sostenidas en Madera. Y ésta era una forma de quitar legitimidad
a la represión oficial. Por ejemplo, entre 1971 y 2004 se habían vendido más de 500 mil
ejemplares de La noche de Tlatelolco de Elena Poniatowska. Ningún discurso presidencial,
ninguna novela de escritores a sueldo del gobierno (el caso de La Plaza de Luis Spota), pudo
contrarrestar ese texto que estableció una verdad histórica fundada en el rechazo a la violen-
cia estatal”. cfr. Aguayo, S. “El activismo civil en la transición mexicana a la democracia”, en:
BIZBERG; MEYER, 2009, tomo 3, p. 298.

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De hecho, la industrialización de la Ciudad de México, desde finales
del siglo XIX hasta la mitad del siglo XX, cuando decididamente las trasna-
cionales norteamericanas ven en el norte de esta ciudad un polo muy atrac-
tivo para afincar las “maquilas”, trajo consigo una migración del campo a
la ciudad. Con este tránsito, surgen las clases medias urbanas que tratarán
de encontrar una mejora sustancial de las condiciones materiales de vida.
La mayoría huye también de la violencia y arbitrariedad en sus tierras. A
pesar del ascenso cualitativo y cuantitativo de dichas clases, lo que supone
variables económicas y sociales inéditas en la historia económica del país,
no deja de brillar por su ausencia la “ciudadanía plena” y el “estado de de-
recho”.
En este sentido, el 68 es, a mi modo de ver, parte de un largo pro-
ceso de hacerse comunidad política. Es la politización de un malestar mi-
lenario. La universidad representa la única posibilidad de una clase media
emergente de acceder a otros lugares de la pirámide social. En otros mo-
mentos de la historia, solo con un cierto linaje o por méritos militares era
posible. Bien visto, hablamos de la primera vez en que un ciudadano tiene
dicha posibilidad por sus méritos profesionales exclusivamente.

LOS NOMBRES DEL ESTADO MEXICANO


En este momento, México goza de una “ventaja comparativa” con
respecto a la región latinoamericana: es una excepción a la dictaduras mi-
litares, dirigidas desde Washington. Solo que tendrá la particularidad de
tener un partido político que, en realidad, lo es todo en la política: se decía
entonces que era la “mejor oficina de empleo”; y, al menos en ese contexto,
la supervivencia que hasta nuestros días es vigente se debe a que “por lo
menos daba empleos”. Pero tiene un inconveniente grave: es un totalitaris-
mo mitigado, ampliamente ambiguo, que algunos denominan, “dictablan-
da”, parafraseando el término de “dictadura”.
A ese Estado que puede tener un aspecto temible por las facultades
de reprimir fuertemente a sus disidentes, pero a la vez de ser sumamente
benévolo cuando se sabe ser obediente frente a la figura presidencial, Oc-
tavio Paz lo denominará “ogro filantrópico” (título de un libro, de varios
más, de ensayo político de 1979); y, en efecto, esta doble cara del Estado

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polariza a la sociedad mexicana de una manera tan brutal que se puede ver
la continuación de lo que Humbolt (doscientos años antes) denominó el
“país de las desigualdades”, pero en el contexto colonial en torno al 1800.
Es bien conocida su decisión de renunciar al cargo de embajador en la India
cuando ocurrió la masacre de Tlatelolco, dejando claro su opinión sobre
Díaz Ordaz. Poco tiempo después, surgen sus diferencias con Echeverría
cuando éste manda reprimir brutalmente una manifestación en el Jueves
de Corpus (10 de junio de 1971). Desde entonces, marca su marginación
del sistema político mexicano, y su posición política todavía tendría tintes
hacia la izquierda. Funda la revista Plural, pero el periódico que la publica es
intervenido por el gobierno y expulsa al director, Scherer García, quien pos-
teriormente sería el dueño de uno de los medios impresos más importantes
de México aún en la actualidad, el Proceso. Este personaje, además, revisará
los archivos sobre la responsabilidad del gobierno mexicano en el asesinato
de los estudiantes en Tlatelolco, el 2 de octubre de 1968. Scherer-García era
director del periódico El Excélsior, que sufrió literalmente un “golpe de Esta-
do” cuando fue despedido por Luis Echeverría. La revista Plural, de Octavio
Paz, publicada dentro del mismo periódico, desapareció de prensa.
En torno a 1980, hay un cambio radical en el pensamiento político
de Paz, pero una década después, cuando le otorgan el nobel de literatura
(en el sexenio de Salinas de Gortari), es ya claramente un intelectual escép-
tico de todo lo que no sea capitalismo y liberalismo. Paz era ya un intelec-
tual que había olvidado el movimiento insurgente del 68 formando parte,
entonces, del establishment de la “gran familia revolucionaria”. En su confu-
sión teórica condena la violación de los derechos humanos en el comunis-
mo, pero calla frente a las atrocidades del “mundo libre”. En 1994, al calor
del surgimiento del zapatismo, su primer texto en el periódico La Jornada
fue decepcionante para un público mucho más informado que en los años
sesenta: menciona que le “sorprende” el movimiento guerrillero, sorpren-
diendo al resto de los intelectuales, cuya sorpresa más bien fue que estos
zapatistas se manifestaron más tarde que temprano en el escenario político.
En un horario excepcionalmente vistoso en el culmen de la televi-
sión mexicana, y liderado por el ya celebérrimo Octavio Paz, comienza una
charla de intelectuales, en su mayor parte ex-comunistas transformados en
apologistas de la democracia liberal, justo por motivo de la caída del muro

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de Berlín. No hay ningún intelectual que surja de la insurgencia estudiantil
del 68, como si no existieran. La intervención de Vargas Llosa será la pieza
más recordada de aquel programa televisivo. El peruano no tiene reparo en
hablar de la “dictadura perfecta”. Se ve de mal gusto que se transmita su
intervención. Pero, como era de esperarse, no hay argumentos sólidos en
contra y más bien se le trata de evadir; su postura es inapelable y moral-
mente victoriosa frente a los invitados. Pero, el video oficial que después se
lanza a la venta aparece cortado, sin su participación. Con esta sutileza se
maneja la dictadura del “PRI-Gobierno” y los intelectuales a los que necesita
para legitimarse en el poder, y que son sus principales fuentes teóricas de
justificación para la permanencia en el largo plazo en el poder.

ACONTECIMIENTO 68
A juzgar por el desenvolvimiento propio del movimiento entre dos
frentes antagónicos, el Estado y la “opinión pública” (la sociedad civil de en-
tonces), los fenómenos visibles de esta dialéctica es el de un “poder” como
fuerza opresora, y del otro lado una masa indefinida de estudiantes. Ambos
definen al otro como su negación propia: el Estado responde con la fuerza
policiaca y militar porque se trata de “comunistas” infiltrados; por su parte,
los estudiantes intentan organizarse frente a la represión desmesurada del
Estado. La consecuencia natural de concebir a los frentes así, es que solo se
podría definir la política en un sentido exclusivamente negativo, tanto del
concepto de lo político, como de la práctica de la política, pero también,
tanto de un actor como del otro. Visto desde esta perspectiva, se trata de
una concepción cerrada que no da cabida a pensar en una alteridad, propia
de un frente político de liberación.
Lo que vemos es un poder que “manda mandando” y que descuida
totalmente la obediencia; no es un “poder obediencial” que “manda obe-
deciendo”, como poder delegado desde una fuente, que es el pueblo, a sus
representantes. Para discernir esto, por lo pronto basta dos comentarios.
El primero tiene relación con el vínculo entre frentes políticos. Visto como
dialéctica entre el Estado-ciudadano, es reduccionista y cae en falacias de
insuficiencia. En respuesta creemos que la categoría de “alteridad” puede

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL 207

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servir para describir mínimamente a ese frente indefinido, plebs, en tanto
poder en sí que irrumpe e interpela a la Totalidad fetichizada del Estado.
En segundo lugar, el concepto negativo del poder es en sí mismo in-
suficiente y por esa razón confunde los aspectos parciales con la totalidad,
lo particular con lo universal, lo que es una determinación necesaria, pero
no suficiente; de ahí que, en la definición de poder, el aspecto negativo solo
debe entrar como defección. Lo corrupto en el sistema político no puede
ser parte de su concepto si nos atenemos a una definición que intente res-
catar la práctica política como un servicio al otro, en la solidaridad. A partir
de esta definición, ahora sí por defección podemos decir que su no-cum-
plimiento es la corrupción. En un Estado corrupto, asesinar estudiantes es
legítimo. Pero eso no define la política, sino su corrupción. De hecho, matar
al antagonista supone pasar del campo político a cualquier otra cosa menos
a la política. Para muchos, esto define lo político cuando es, en realidad,
una violación a un cierto principio político que supone la muerte de la
política, como muerte del hermano político, dado que justamente el “hom-
bro-a-hombro”, el “cara-a-cara”, la proximidad define lo político.
El acontecimiento es un punto de referencia de los múltiples ac-
tores; en este caso, no solo los estudiantes, sino los distintos sindicatos y
otras agrupaciones que se unieron a los estudiantes. Es un momento origi-
nario donde la apuesta es de “todo o nada”, en el sentido de la posibilidad
de perder hasta la vida en un caso extremo, pero igualmente de ganar la
posibilidad de ser responsable de un acto político, de la historia en un sen-
tido extremo. Dice Dussel (2009, p. 71 y ss.):

El acontecimiento, entonces, es la intersección de una situación


(no solo objetiva, sino de una objetividad componente inevitable
de la intersubjetividad) con un modo muy especial de transfor-
mación por el que un mero observador pasa de ser un pasivo
sub-jecto a ser un actor.

Los actores adquieren tal responsabilidad que se comprometen en


dicha situación en la que se abre un futuro totalmente indefinido e incier-
to; pero un futuro claramente utópico, que niega la realidad vigente como
no-deseada, pero en tránsito de transformarla en una realidad deseada. Ya

208 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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sea que el sueño fuera la democracia, la posición social, o la simple libertad,
el 68 fue el nacimiento de la responsabilidad política del pueblo mexicano.

REFERENCIAS
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BIZBERG, I.; MEYER, L. Una historia contemporánea de México: las instituciones.
Ciudad de México: Océano, 2009.
DUSSEL, E. Política de la liberación: arquitectónica. vol. II. Madrid: Trotta, 2009.
HOBSBAWN, E. The age of extremes: a history of the world, 1914-1991. Nueva York:
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PONIATOWSKA, E. La noche de Tlatelolco: testimonios de historia oral. México:
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ZERMEÑO, S. México: una democracia utópica – el movimiento estudiantil del 68.
Ciudad de México: Siglo XXI, 2010.

EL ACONTECIMIENTO 68 Y LA INSURGENCIA ESTUDIANTIL 209

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 209 29/08/2019 06:33


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EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO
LATINO-AMERICANO: A UNIVERSIDADE E
A CONTRIBUIÇÃO DAS MADRES DE PLAZA DE MAYO
Ivandilson Miranda Silva
Luciano Costa Santos

INTRODUÇÃO

O ‘sujeito’ da educação é o próprio oprimido quando, pela cons-


ciência crítica, se volta reflexivamente sobre si mesmo, e desco-
brindo-se oprimido no sistema emerge como sujeito histórico,
que é o sujeito pedagógico. (DUSSEL, 2007, p. 440)

Este artigo analisa a educação popular e o contexto latino-america-


no, focalizando a contribuição do movimento das Madres de Plaza de Mayo
na criação, em 2000, da Universidade Popular, que em 2015 se transformou
no Instituto Universitário Nacional de Diretos Humanos Madres de Plaza de
Mayo (IUNMa). A ação das Madres de Mayo como prática de educação popu-
lar na contemporaneidade da América Latina visa demonstrar, a partir dessa
instituição, a importância do conhecimento/saber em suas diversidades e
práticas sociais como ciência produzida.
Tendo as perspectivas de práticas pedagógicas da educação popular
e descolonizadoras no Sul da Argentina, as Madres de Plaza de Mayo con-
solidaram, em 2000, a Universidade Popular das Madres como instrumento
de construção de cidadania e de ciência enquanto conhecimentos e práti-

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cas sociais descoloniais1 e anti-imperiais, cujas iniciativas se articularam na
direção do estabelecimento das universidades populares com o propósito
de vincular a teoria e a prática como ferramentas sociais de/para os setores
populares argentinos.
A experiência das universidades populares tem se constituído como
possibilidade/realidade ante o processo do não (re)conhecimento e/ou legi-
timação do acesso da maioria da população pobre ao conhecimento cientí-
fico/filosófico/social em suas dizibilidades contemporâneas. Boaventura de
Sousa Santos, em entrevista realizada a Benzaquen (2012) sobre as univer-
sidades populares, afirma que:

A Universidade é popular, não porque o conhecimento acadêmico


tenha de ser divulgado entre as classes populares, mas porque
são as classes populares a protagonizar diálogos entre os seus
conhecimentos próprios e os conhecimentos acadêmicos. (BEN-
ZAQUEN, 2012, p. 3)

A construção dessa instituição de ensino superior voltada para os


movimentos populares que estão fora das benesses do sistema capitalista,
sobretudo do neoliberalismo, dialoga com as perspectivas teórico-meto-
dológicas dos debates sobre as epistemologias do Sul, as pedagogias des-
coloniais afrodiaspóricas e o campo da formação descolonizadora SulSul
enquanto saber democrático e diversificado, abrangendo uma “ecologia de
saberes” que percebe o conhecimento como uma atividade de intervenção
na realidade social, cultural, ambiental, política e humana, situada em de-
terminado espaço.
A universidade, no século XXI, ainda reforça/traz o ranço de produ-
ções de conhecimentos altos, de produções culturais universais e conheci-
mentos instrumentais a serviço de formação de mão de obra qualificada por
meio do tripé ensino-pesquisa-extensão. Contudo, as demandas sociais, em
suas diversidades e interculturalidades, desmitificaram a colonialidade do

1 Para Benzaquen (2012, p. 4), “A ideia de propor uma ciência descolonial surge de um grupo
de latino-americanos que verificam algumas ‘falhas’ na teoria pós-colonial. O que parece uma
simples alteração de prefixo acarreta uma nova significação. O ‘pós’ pressupõe um depois
de algo, o ‘des’ significa um desejo de pôr fim à colonização que acabou enquanto relação
política, mas não enquanto relação social, e que é parte constituinte da modernidade”.

212 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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saber de reprodução de padrões de conhecimentos e significações das cul-
turas europeias e norte-americana como uma sedução de acesso ao poder
– conhecimento como regulação. (QUIJANO, 1992; SANTOS, 2002)
A concepção da Universidade das Madres de Plaza de Mayo possibi-
litou uma universidade de ideias socioculturais para além da formação de
mão de obra qualificada e conhecimentos instrumentais. Diante desse con-
texto, as universidades populares são ações ancoradas numa perspectiva de
um outro mundo, de um outro modus de saber e de viver na interculturali-
dade de conhecimentos horizontais.
Em junho de 2015, ainda no governo da presidenta Cristina Kirch-
ner, a Universidade Popular das Madres se transformou no Instituto Uni-
versitário Nacional de Direitos Humanos Madres de Plaza de Mayo, criado
a partir da Lei nº 26.995. O Instituto depende administrativa e economica-
mente do Ministério da Justiça e Direitos Humanos e, por sua característica,
a oferta acadêmica se estrutura na área de formação profissional, investi-
gação, produção e extensão no campo das ciências humanas e sociais com
orientação em direitos humanos, e tem como princípio substancial a forma-
ção acadêmica integral em um todo harmônico com o regime democrático
e republicano da Argentina.
Atualmente, o IUNMa sofre influência e intervenção direta do go-
verno de Mauricio Macri, que venceu as eleições presidenciais em 2015. Tal
fato torna duvidoso o trabalho dessa instituição, pois o recente governo
não tem boas relações políticas com as Madres de Mayo e pode desconfi-
gurar todo o projeto que nasceu com a Universidade Popular das Madres.
Portanto, o artigo visa discutir a educação popular em seu contex-
to latino-americano e o protagonismo das Madres de Mayo com a univer-
sidade que propôs mudanças políticas, sociais, científicas e culturais na
contemporaneidade, e pretende refletir sobre os desafios do movimento
diante do IUNMa.

AS MADRES DE MAYO E SUA LUTA CONTRA A DITADURA


A Argentina do século XX foi marcada por diversos eventos ditato-
riais em sua história. Segundo Quiroga (2005), essas ações que configuram
ditaduras ocorreram nos anos 1930, 1943, 1955 e 1962, sempre com o su-

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 213

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posto objetivo de colocar “ordem no Estado”. Mas as ditaduras de 1966 e,
sobretudo, a de 1976, para Quiroga, são diferentes, pois os militares terão
poder estratégico na condução das políticas de Estado.
A ditadura civil-militar na Argentina de 1976 perdura até 1983. A pre-
sidente María Estela Martínez (Isabelita Perón) foi deposta por uma junta
militar sob a liderança do general Jorge Rafael Videla,2 que permaneceu no
poder até 1981.3 Isabelita foi a primeira mulher a governar a Argentina, após
a morte de seu esposo (o político mais emblemático e popular da Argentina
no século XX) Juan Domingo Perón, em 1974.

O Processo de Reorganização Nacional foi imposto na Argentina


em 24 de março de 1976. A trajetória conflituosa no espaço
político, até os acontecimentos dos setenta, não tinha deixa-
do marcas tão profundas em seus cidadãos. A ditadura militar
acabou com o período democrático, e desta forma, impondo o
poder de Estado por meio da força, feriu os diretos do homem e
sua cidadania. Antes de desaparecer as pessoas, desapareceram
seus direitos fundamentais. Perdeu-se o direito à vida, a liberda-
de de expressão, o direito de morrer com dignidade. (STEINKE,
2011, p. 1)

Para Oliveira (2015, p. 104), a ditadura civil-militar argentina, em


sete anos (1976-1983), promoveu “o terrorismo de Estado” e foi responsá-
vel pela morte de 30 mil pessoas.
A maioria dos mortos eram pessoas da classe trabalhadora e so-
bretudo jovens, que desapareceram e nunca foram encontrados e enter-
rados por seus familiares. De acordo com Steinke (2011, p. 4), os militares
buscavam atingir seus objetivos por meio da tríade “sequestro, detenção
clandestina, desaparecimento”. A repressão queria eliminar qualquer tipo
de oposição ao regime, e essa crueldade marcou a ditadura argentina como
a mais sangrenta da América Latina.

2 Chefe da Junta de Reorganização Nacional, que fazia parte junto com Agosti (chefe da Aero-
náutica) e Massera (chefe da Marinha).
3 Durante o Processo de Reorganização Nacional entre 1976 e 1983, a Junta Militar foi dirigida
por quatro generais: Jorge Videla (1976-1981); Roberto Viola (1981); Leopoldo Galtieri (1981-
1982) e Reynaldo Bignone (1982-1983).

214 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Esse processo autoritário, segundo Oliveira (2015, p. 106), promo-
ve, em termos econômicos, “um visceral antiestatismo e pela defesa aberta
do livre-cambismo, transnacionalizando a economia argentina (com forte
participação dos EUA) e destruindo o que restava da herança peronista”.
A Argentina inicia, assim como o Chile em 1973, o processo paulatino de
“neoliberalização” de sua economia e, obviamente, o favorecimento do
grande capital estadunidense, que esteve presente e influente em todas as
ditaduras da América do Sul.

As Madres vão em busca dos seus hijos e hijas


A ditadura tentou a todo momento desestabilizar os movimentos
sociais utilizando-se da violência. Essa não foi uma característica apenas da
Argentina, mas de todas as ditaduras do Cone Sul. Heroicamente, muitas or-
ganizações resistiram promovendo ações políticas e, entre elas, temos as Ma-
dres da Plaza de Mayo, um movimento que se insurgiu contra os militares em
abril de 1977 para denunciar o desaparecimento4 de seus filhos e filhas que
se tornaram prisioneiros políticos e depois foram brutalmente assassinados.
Essa brutalidade, evidenciada por Oliveira (2015), dimensiona o ta-
manho da violência praticada por esse regime:

A ditadura argentina de 1976 ficaria conhecida por aplicar osten-


sivamente duas formas de extermínio de matriz francesa, pro-
fundamente vinculadas entre si: o desaparecimento – sequestro
e morte de pessoas, sem informação sobre o paradeiro de seus
corpos e os chamados ‘vuelos de la muerte’, onde indivíduos se-
dados eram lançados ao Rio da Prata de aviões das FFAA, geral-
mente à noite. (OLIVEIRA, 2015, p. 108)

As Madres, desesperadas, foram para a Praça de Maio, que ainda


é o centro do poder estatal argentino, local onde está situada a Casa Ro-
sada. No início, 14 bravas mulheres começam a buscar informações sobre
o desaparecimento dos seus filhos, e esse gesto será fundamental para a

4 É importante salientar que os desaparecimentos começaram antes do golpe de Estado, entre


1974 e 1975, com a consolidação da Aliança Argentina Anticomunista (AAA) ou Triple A, que
tinha como intuito combater grupos armados, como Montoneros (“Exército de Perón”) e o
Exército Revolucionário do Povo (ERP). Esse processo foi ampliado com a ditadura de 1976.

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 215

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organização de um dos maiores símbolos da luta por direitos humanos e
redemocratização da Argentina e do mundo.
De acordo com Oliveira (2015, p. 112):

Aquelas quatorze mulheres reunidas em abril de 1977 não obje-


tivavam fundar um movimento. Seus nomes eram: Azucena Villa-
flor, María Adela Gard de Antokoletz, suas irmãs Cándida Felicia
Gard e María Mercedes Gard, Josefina García de Noia, Élida de
Caimi, María Ponce de Bianco, Rosa Contreras, Beatriz Aicardi de
Neuhaus, Delicia de González, Raquel Arscuschin, Haydée de Gar-
cía Buela, Mirta Acuña de Baravelle, Berta Zeff de Brawerman. De
acordo com outros relatos, não eram apenas estas, mas o que
acabou registrado historicamente foi que aquelas mulheres fun-
daram o movimento ao irem à Plaza de Mayo em 30 de abril da-
quele ano.

As Madres circulavam na praça para que a ação não soasse como


subversiva aos olhos dos agentes do governo. Esse ato continua sendo re-
petido, até os dias de hoje, todas as quintas-feiras, às 15h30, no sentido
anti-horário. Tal atitude é a marca pela busca dos seus filhos desaparecidos.
Outro elemento importante são os lenços brancos na cabeça, que antes
eram fraldas. Os lenços passam a ser uma espécie de identificação das Ma-
dres que escrevem neles o nome dos filhos.

Quando a fralda foi substituída por um lenço, rompeu-se com a


imagem infantil dos filhos a favor da juventude, fase da vida em
que muitos deles estavam quando desapareceram. A opção pela
cor branca no lenço ligava-se ao desaparecimento, à ausência, à
incerteza e à falta de informação sobre a situação dos parentes
desaparecidos. (PAULA, 2016, p. 7)

As Madres, que foram chamadas de “las locas” pelos militares e civis


que sustentavam essa estrutura de poder, nunca desistiram de lutar por
democracia e por justiça. Para Gonçalves (2012, p. 131), “à ditadura não
restava sombra de dúvidas de que eram loucas”.
Desde a década de 1980, as Madres estão divididas em duas asso-
ciações: Madres de Plaza de Mayo-Linea Fundadora e Associação Madres
de Plaza de Mayo. As Madres tiveram divergências sobre a continuidade da

216 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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luta e como levar esse processo adiante. Mas, todas as quintas-feiras, elas
seguem juntas pela memória revolucionária de seus filhos e filhas.

A organização das Madres possibilitava que nenhuma delas se


isolasse na luta. Sob o lema ‘todos os desaparecidos são nossos
filhos’, levaram adiante a ideia da mulher com nome de flor e
socializaram a maternidade, o que, ao mesmo tempo potenciali-
zou o movimento e deu grandeza a cada minuto de resistência.
(GONÇALVES, 2012, p. 133)

Esse elemento de lutar pela memória dos desaparecidos e conside-


rar que “todos” são seus filhos é a grande questão que une o movimento,
mesmo que cada associação tenha hoje sua visão política sobre a Argentina
pós-ditadura. Os filhos e filhas não foram encontrados, mas os netos (al-
guns) estão sendo descobertos, como informa em comunicado a Associação
das Avós da Praça de Maio.5

As Avós da Plaza de Mayo convocam uma conferência para anun-


ciar a feliz notícia da reunião de uma neta nova, o número 127,
que acontecerá amanhã, 28 de dezembro, às 13 horas, na sede do
vice-rei Cevallos 592, 1º 2.6 (ABUELAS, 2017)

A luta dessas mulheres continua firme, pois os resquícios da Di-


tadura de 1976 ainda rondam a sociedade argentina, após os 40 anos de
atrocidades e desrespeito completo aos direitos humanos.

A UNIVERSIDADE DAS MÃES DA PRAÇA DE MAIO: ORIGENS


A Universidade Popular da Plaza das Madres de Mayo (hoje Instituto
Universitario Nacional de Derechos Humanos Madres de Plaza de Mayo),
em Buenos Aires, foi fundada em 2000.

5 Avós da Plaza de Mayo é uma organização não governamental criada em 1977, cujo objetivo
é localizar e restaurar suas famílias legítimas, todas as crianças desaparecidas pela última
ditadura argentina.
6 Abuelas de Plaza de Mayo convoca a una conferencia para anunciar la feliz noticia del en-
cuentro de una nueva nieta, la número 127, que se desarrollará mañana, 28 de diciembre, a
las 13 hs., en la sede de Virrey Cevallos 592, 1º 2.

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 217

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A Universidade Popular das Madres foi consolidada como instru-
mento de construção de cidadania, tendo como grande princípio dessa ini-
ciativa um conhecimento que possibilite compreender a realidade e lutar
por direitos humanos.
Essa é a tarefa original da Universidade Popular das Madres na Ar-
gentina, fundada em 2000, pondera Basile (2002):

Nesta Universidade é proposto como principal tarefa o desenvol-


vimento de uma educação voltada para a transformação social.
Quais são as implicações desse ensino? Envolve primeiro a forma-
ção de uma perspectiva crítica do status quo e, consequentemen-
te, a possibilidade de lutar por uma sociedade melhor. (BASILE,
2002, p. 3)

Sobre a Universidade Popular das Madres de Plaza de Mayo, seu


propósito é articular teoria e prática, gerar ferramentas para a sociedade,
abrir um espaço para que os setores populares possam participar e criar
formas de construção política.

A UPMPM é fundamentalmente uma universidade de luta e de


resistência que objetiva contribuir para a formação do pensamen-
to crítico, latino-americano, engajado em um profundo compro-
misso político de transformação da realidade, como assinalam as
próprias Madres na apresentação da universidade em sua página
oficial. (OLIVEIRA, 2015, p. 15)

A Universidade Popular da Plaza de Madres de Mayo constitui sua


ação comprometida com o tripé ensino-pesquisa-extensão. Os cursos apre-
sentados pela Universidade Popular seguem a lógica dos seus princípios
éticos e de realização da cidadania.
A universidade, segundo Oliveira (2014), começa com poucos cursos
e depois passa a oferecer cursos de graduação como Direito, Licenciaturas
em História e Trabalho Social, cursos de formação (Capitalismo e Direitos
Humanos, Cooperativismo, Jornalismo Investigativo, Psicologia Social etc.),
seminários anuais (Leitura metodológica do Capital, Literatura e Política,
Ecologia e Capitalismo etc.) e oficinas (pintura, fotografia, narrativa etc.).

218 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 218 29/08/2019 06:33


A UPMPM se oferece como um espaço alternativo, crítico ao ‘po-
der oficial’, representando uma ‘contraoferta’ tanto às universi-
dades privadas quanto às universidades públicas argentinas. Esta
universidade, criada pelo movimento social de maior referência
daquele país, propõe um tipo de conhecimento que se baseia na
experiência, sobretudo por ter surgido justamente da experiência
de sofrimento daquelas mulheres durante a ditadura, sendo a me-
mória o nexo entre filhos e mães, que com o passar dos anos, não
quiseram mais ‘enterrá-los’ a fim de poder manter seus sonhos
‘vivos’. (OLIVEIRA, 2014, p. 6)

Percebe-se que, na construção da Universidade Popular das Mães


da Plaza de Mayo, há um cuidado com o que Boaventura Sousa Santos,
em “Epistemologias do Sul”, chama de “ecologia de saberes”, que propõe
o conhecimento “como intervenção no real – não o conhecimento como
representação do real – é a medida do realismo”. (SANTOS, 2010, p. 57)
A Universidade Popular das Madres é uma possibilidade contempo-
rânea de pensarmos em novos caminhos para a educação e, principalmente,
para a qualificação das lutas do movimento social no Cone Sul.
A análise sobre a Universidade Popular das Madres de Plaza de
Mayo e sua contribuição para a educação popular, na contemporaneidade,
é pertinente, pois, entendendo educação popular na perspectiva de Freire
e Nogueira (2005, p. 19), “como um esforço de mobilização, organização
e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica”, essa
universidade apresenta novas possibilidades de uma outra educação, sobre-
tudo no nível superior, que tem vivido um processo de sucateamento por
parte dos governos latino-americanos.
A abertura para o capital estrangeiro, que tem investido for-
temente na compra de faculdades e universidades privadas de capital
local, redimensionou o cenário do ensino superior na América Latina,
principalmente na América do Sul. O ensino privado ganhou forças e
recursos públicos por meio de financiamentos e créditos educativos.
Essa ação acabou atraindo muitos estudantes para as instituições de
ensino privado e, ao mesmo tempo, essa política enfraquece as univer-
sidades públicas, que carecem de verbas para manter suas atividades e
estrutura.

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 219

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 219 29/08/2019 06:33


É importante perceber como a Universidade das Madres de Mayo se
manteve e como, atualmente, o IUNMa funciona. As lições de tal processo
podem contribuir para fomentar a discussão sobre universidades populares
no Brasil e na América do Sul.
Esse modelo de universidade também contribui para o debate sobre
que educação queremos para o século XXI, que universidade pode produzir
respostas para a contemporaneidade sob os pontos de vista dos subalterni-
zados, dos oprimidos, da classe trabalhadora, dos mais pobres, que vivem
em péssimas condições de trabalho, amontoados nas periferias, subúrbios,
favelas, e vivem em situações subumanas no campo.
A Universidade Popular da Plaza de Madres de Mayo é uma chama
de esperança para aqueles que acreditam na produção de conhecimento
livre, democrático e comprometido com os direitos humanos. Pensar que
a universidade popular, consoante às ideias de Paulo Freire de se provo-
car um outro mundo, pode trazer novas possibilidades de uma educação
libertadora.
Nesse sentido, é preciso ponderar que:

Se o discurso do acadêmico soa alto e dominante sobre o falar


popular, esse discurso congela-se em conceito, congela em inte-
ligência, faz com que esta adormeça no interior de frases feitas.
Desaparece a ênfase na luta, entendida como curiosidade interro-
gadora e crítica de ordem. Permanecerão somente os pacotes de
frases feitas. (FREIRE; NOGUEIRA, 2005, p. 30)

O diálogo entre o conhecimento classicamente reconhecido e edu-


cação popular deve ser feito da forma mais respeitosa possível, sob pena
de congelamento da fala do povo e de suas experiências. Essa percepção é
necessária.

O INSTITUTO UNIVERSITÁRIO NACIONAL DE DIRETOS HUMANOS


MADRES DE PLAZA DE MAYO (IUNMA)
O IUNMa foi criado pela Lei nº 26.995 como unidade funcional, com
dependência administrativa e econômico-financeira do Ministério da Justiça
e Direitos Humanos, e tem sua sede na cidade autônoma de Buenos Aires.

220 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 220 29/08/2019 06:33


O IUNMa tem como princípio fundamental a formação acadêmica
no âmbito de uma defesa irrestrita dos direitos humanos, como um todo
harmônico com o regime democrático e republicano da Argentina. Seus
objetivos correspondem, então, ao que está estipulado na área dos direitos
humanos.
Entre os objetivos do Instituto, que estão no artigo sétimo do seu
estatuto, destacamos os seguintes:

a) criar e transmitir conhecimento acadêmico e científico so-


cialmente relevante, através de atividades de ensino, pesquisa
e vinculação de comunidades, com especial ênfase nos direitos
humanos, garantindo treinamento excelência profissional e com-
promisso com a comunidade,
b) organizar e a educação universitária em atividades cursos à
distância, em graduação, pós-graduação, favorecendo uma oferta
acadêmica que responda à solução de problemas da comunida-
de, respeitando o especial Humanos, c) treinar pessoas reflexivas,
comprometidas com os direitos humanos e preservação da me-
mória, respeitosa do regime democrático, solidariedade e capaz
de trabalhar em colaboração com outros, k) para constituir uma
comunidade acadêmica e de trabalho solidário entre gerentes,
pessoal não docente e estudantes para ajudar construção cole-
tiva do conhecimento, l) promover ações destinadas a alcançar o
acesso igual ao ensino superior universidade, m) contribuir para
a preservação da memória, a consciência histórica e a procure por
Justiça como uma herança cultural inalienável do povo argentino,
no contexto da democracia e do respeito pelos direitos huma-
nos, recuperando e vivificando a experiência das Mães da Plaza
de Mayo e da diferentes assuntos sociais comprometidos com a
justiça, a democracia e a luta contra negligência e impunidade.
(IUNMA, 2015, p. 3-4)

O IUNMa oferta os seguintes cursos de graduação: a) Direito, b)


Licenciatura em História, c) Bacharelado em História, d) Licenciatura em
Trabalho Social, e) Licenciatura em Comunicação.
Atualmente o Instituto vive em contraste político, pois o governo
do presidente Mauricio Macri tem promovido intervenções, inclusive na di-
reção (reitoria) da instituição, e isso tem criado uma série de manifestações
contra o governo.

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 221

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 221 29/08/2019 06:33


Desde então, a situação no IUNMA permanece o mesmo ou pior.
As aulas são ministradas em salas de aula improvisadas em espa-
ços doados por organizações sociais e sindicatos. ‘Nós estamos
pedindo um lugar para ensinar como se fôssemos mendigos’, dis-
se o chefe das Mães da Plaza de Mayo, Hebe de Bonafini. ‘Para
isto é preciso acrescentar os cortes salariais e de orçamento’ do
governo nacional, acrescentou o oficial. (DIAZ, 2017, p. 1)

Esse tipo de política compromete o trabalho do Instituto e o legado


das Madres que viabilizaram essa ideia de uma educação pública, de quali-
dade e comprometida com o desenvolvimento social. O Instituto é parte de
uma experiência inovadora de educação para a América Latina e precisa ser
preservado e potencializado. Por isso, é preciso afirmar que qualquer pers-
pectiva de transformação social, por meio do trabalho educacional, deve se
referenciar no seu caráter humanista para incentivar o desenvolvimento da
autonomia educacional no processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentindo, Frigotto (2010, p. 31) afirma que:

[…] as concepções, a organização dos processos e dos conteú-


dos da educação podem refletir duas dimensões antagônicas: (i)
subordinação à esfera do capital, elegendo como perspectiva a
pedagogia das competências, assumindo o ideário individualista
e imediatista; (ii) a formação do ser humano como totalidade –
ser humano, classe social e força de trabalho – numa dimensão de
compromisso social coletivo.

Esse modelo de universidade que passa a ser instituto e irá de-


pender da política pública do atual governo argentino deve se manifestar
por meio da vontade de modificação de paradigma, com o humano no
centro, e não o capital. Tal prática poderá fazer com que a educação seja
uma referência liberadora para a nossa América Latina. A Universidade
das Madres foi um passo importante para se pensar outra possibilida-
de de educação. A luta política na Argentina dirá se o IUNMa continuará
mantendo o legado das Madres e da Universidade Popular ou negará a
história desse empreendimento revolucionário de educação e luta por
uma sociedade melhor.

222 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 222 29/08/2019 06:33


CONCLUSÃO
A educação popular e os movimentos sociais são desafiados, nes-
te momento histórico da América Latina, a pensar respostas para este
contexto de enfraquecimento da democracia, aumento do autoritarismo,
ampliação do neoliberalismo e fragilização dos laços humanos. Por conta
dessa questão, Streck (2009, p. 10) afirma que “um movimento social é,
por princípio, a busca de um outro lugar social”. Esse outro lugar, outro
mundo, outra realidade é necessário e exige um rompimento de ordem,
de paradigma.
Para Freire (2015, p. 74), “não se pode esquecer que a libertação
dos oprimidos é libertação de homens e não de ‘coisas’”. Nesse sentido,
a educação popular significa uma ação que se concretiza a partir da
luta dos sujeitos políticos contemporâneos, que trazem consigo novas
lógicas, novas propostas educacionais e uma outra possibilidade de hu-
manidade.
A educação popular deve contribuir para a formação de cidadãos,
incluindo-os na sociedade e, consequentemente, no mercado de trabalho.
O aumento do gasto público com educação ainda é insuficiente para que
uma transformação no campo, estritamente governamental, aconteça. Pre-
cisamos de mais incentivo e de projetos inovadores que tratem a educação
como algo modificador de vidas, como algo revolucionário.
A partir da experiência da Universidade Popular, torna-se neces-
sário consolidar transformações significativas nas políticas e práticas
educativas para se alcançar um modelo de desenvolvimento que permita
a justiça social. O trabalho da Universidade Popular das Madres foi uma
dessas inovações e precisa ser melhor analisado, divulgado e replica-
do, na medida do possível, em diversas regiões da América Latina e do
mundo.
É preciso acreditar em boas iniciativas e pensar em política públicas
para educação que sejam eficazes e promovam o desenvolvimento político,
econômico e social dos países que necessitam de educação de qualidade.
Um novo mundo é possível, e isso passa por um novo olhar para as práticas
inovadoras em educação.

EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 223

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 223 29/08/2019 06:33


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EDUCAÇÃO POPULAR E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO 225

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Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 226 29/08/2019 06:33
A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS:
UM EDUCADOR INSURGENTE E ECUMÊNICO
Elizete da Silva

Ensina a criança o caminho em que ela deve andar


e até quando envelhecer não se desviará dele.
Provérbios – Bíblia Sagrada

INTRODUÇÃO
Os estudiosos do componente didática de forma recorrente falam
de João Amós Kominsky ou Comenius como o fundador da pedagogia mo-
derna ou um pioneiro dos estudos dos métodos educacionais, autor da
Didática Magna. No entanto, nem sempre são ressaltados o contexto his-
tórico e as matrizes religiosas e filosóficas que formaram o pensamento
comeniano e o seu pioneirismo na defesa de uma educação universal, entre
outros avanços da contemporaneidade. Atualmente, o acesso à educação é
aceito como um direito universal, e este foi um princípio básico do pensa-
mento de Comenius, nascido em 1592 na Morávia e falecido em 1670 em
Amsterdam.
O objetivo deste artigo é refletir, do ponto de vista histórico, sobre
a relação entre educação e religião, a partir de sua trajetória, bem como
trazer para o debate como suas concepções pedagógicas foram capazes de
conceber uma sociedade plural e ecumênica, apesar da intolerância e das
guerras religiosas do alvorecer dos tempos modernos. Para entendermos

227

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 227 29/08/2019 06:33


suas ideias, é imprescindível conhecer os discursos e representações reli-
giosas e políticas que forjaram sua visão de mundo.
Em outubro de 2017, o mundo ocidental comemorou os 500 anos
da Reforma Protestante. Para alguns historiadores, um significativo fato,
que determinou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna; outros
opinam que a conquista da América por Cristóvão Colombo seria o aconte-
cimento fundante da transição do medievo para a modernidade. Porém, se
há polêmica na definição de um marco, os pesquisadores estão de acordo
que o movimento reformista teve um caráter religioso, com profundos des-
dobramentos econômicos, sociais e políticos para o continente europeu
e a América transformada em colônias pelas respectivas metrópoles. Sem
dúvida, uma consequência da expansão das ideias reformadas foi o estabe-
lecimento de escolas públicas e de uma nova perspectiva, ao propor uma
educação universal. Comenius viveu esse contexto.
Norteia este artigo uma perspectiva de história cultural, dialogando
com o conceito de representações. (CHARTIER, 1990) Atualmente, a his-
toriografia tem trabalhado a noção de trajetória, a qual se pauta na vida
cotidiana, nas relações de gênero, nas pertenças religiosas e identitárias vi-
vidas pelos sujeitos, inseridos nos seus grupos e contextos sociais. Segundo
Pierre Bourdieu (1996, p. 81), a trajetória “significa uma série de posições,
sucessivamente, ocupadas por um mesmo agente (ou mesmo grupo), em
um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações”.

COMENIUS: UM HERDEIRO DOS IRMÃOS MORÁVIOS E DA


REFORMA PROTESTANTE
No final do período medieval, ocorreram vários movimentos consi-
derados heréticos, questionando a autoridade papal, o poder salvífico da
Igreja Católica, a leitura do texto das Escrituras apenas pelos sacerdotes, o
luxo e a venda de bens sagrados pelo clero. Numa ordem feudal, legitimada
pelo catolicismo, tais movimentos, que atraíram milhares de homens e mu-
lheres, constituíram-se também como movimentos sociais contra a explo-
ração feudal e as desigualdades sociais calcadas em vassalagem e servidão.
Valdenses, cátaros, albigenses wiclefistas desafiaram o poder eclesiástico e
constituíram-se como comunidades religiosas, que atravessaram séculos e
chegaram à Reforma Protestante em 1517.

228 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Dentre esses grupos religiosos dissidentes, que persistiram em suas
doutrinas opostas aos dogmas católicos, encontram-se os hussitas, segui-
dores das ideias do professor João Huss (1369-1415), reitor da Universidade
de Praga, condenado pelo Concílio de Constança como herético, queimado
vivo na fogueira, juntamente com seus textos, em 1415, em praça pública.
Os hussitas também foram chamados de Irmãos Boêmios ou Irmãos Morá-
vios, os quais organizaram a Fraternidade dos Irmãos, com o propósito de
viverem o cristianismo primitivo, longe da idolatria vigente na Igreja Cató-
lica, conforme suas fontes. (HUTTON, 1909)
Os Irmãos Morávios acalentavam ideias milenaristas, comuns na
Idade Média e nos primórdios da Modernidade, porém não desejavam ape-
nas mil anos de felicidade no céu, também aspiravam a construir na Terra
o Paraíso, prevalecendo as virtudes cristãs e uma sociedade baseada na
harmonia, na qual as crianças seriam educadas nos princípios evangélicos,
como conceberia posteriormente Comenius. Alguns grupos pegaram em
armas, outros pacificamente amalgamaram princípios valdenses, wiclefis-
tas e hussitas, e “organizaram-se como comunidade igualitária. Tudo foi
socializado. Ao ampliar-se, essa organização deveria, no espírito de seus
criadores, realizar progressivamente o paraíso na terra”. (DELUMEAU, 1997,
p. 107)
A Igreja dos Irmãos Morávios sobreviveu às perseguições e ao opró-
bio de serem considerados heréticos. Segundo a narrativa da excomunhão
e morte de Huss por John Foxe (2003, p. 120), escritor do século XVI que
escreveu o Livro dos mártires: “Todavia a sua memória não pôde ser apagada
das mentes piedosas, nem pelo fogo, nem pela água, nem por qualquer
outra tortura”. O mestre Huss foi transformado em herói nacional, ainda
hodiernamente, e na Tchecoslováquia é considerado e reverenciado como
um dos fundadores da pátria.
Quando da eclosão da Reforma, os Irmãos Morávios reconheceram
no pensamento luterano a identidade cristã, perseguida desde o século
XV. Duas missivas foram endereçadas ao reformador alemão, concitando-o
a manter suas ideias frente a Roma: “O que Huss foi para a Boêmia, você
Martinho, é agora para a Saxônia. Fique firme”. (BAINTON, 2017, p. 126) A
hierarquia católica pensava de forma similar: na disputa de Leipzig, Lutero
foi instado por Eck a abandonar os erros, e o debatedor o acusou de hus-

A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS 229

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sita, da heresia boêmia. Como resposta, Lutero declarou: “entre os artigos
de João Huss, encontro muitos que são claramente cristãos e evangélicos,
os quais a igreja universal não pode condenar”. (LUTERO apud BAINTON,
2017, p. 122)
Não houve acordo nas disputas teológicas em que Lutero debateu
suas 95 teses. A Reforma dividiu a cristandade, e as lutas de representações
saíram do campo das ideias, transformando-se em conflitos armados; as
Guerras Religiosas duraram mais de um século (1524-1648).

Várias guerras, com acordos não cumpridos, tratados nulos em


sua eficácia social ou religiosa. As diversas tentativas de harmonia
entre católicos e seguidores das ideias reformadas falharam ape-
sar do empenho do moderado intelectual Melanchton, colabora-
dor de Lutero. (SILVA, 2017a, p. 36)

Entre os protestantes também não havia unanimidade: dentre as


tendências da Reforma, os radicais anabatistas que discordavam do batismo
infantil, do vínculo com o estado e queriam reformas sociopolíticas foram
rechaçados por luteranos e calvinistas.
Foi neste contexto conflituoso que nasceu João Amós Comenius, no
Reino da Morávia, em uma família de Irmãos Morávios, e recebeu educação
formal no Ginásio dos Irmãos, onde prevalecia o pensamento do mestre
João Huss. Na sua obra A escola da infância, Comenius reconheceu a relevân-
cia do mestre de Praga: citou exemplos bíblicos de pais e mães que piedo-
samente oravam pelos filhos, a exemplo de Ana, Salomão e “assim também
a mãe do mestre Huss, mártir da Boêmia, quando o levava à escola num país
estranho, caiu algumas vezes de joelho pelo caminho para rezar por ele”.
(COMENIUS, 2011, p. 82)

EDUCAÇÃO DA JUVENTUDE PARA SALVAR A HUMANIDADE


O Reino da Morávia no final do século XVI e no XVII era constituído
por um campo religioso que refletia as disputas políticas entre o Sacro Im-
pério católico e os príncipes protestantes. A hierarquia católica se referia
à Boêmia como sementeira de heresias, e as pressões para os protestan-
tes retornarem ao catolicismo constantemente extrapolavam a oratória e

230 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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transformavam-se em perseguições. Comenius ficou órfão na infância e foi
acolhido por uma tia, que o criou. Aos dezesseis anos ingressou no Ginásio
da Fraternidade dos Irmãos Morávios. “Destinado a ser orador e sacerdote,
recebe o nome bíblico de Amós”. (KULESZA, 1991, p. 34)
Com formação acadêmica em filosofia e teologia, Comenius estudou
nas universidades de Herborn e Heidelberg, em centros acadêmicos ale-
mães que refletiam o pensamento reformado. Nessas instituições o jovem
estudante recebeu sólida educação e a influência de humanistas, a “exem-
plo de Pierre Ramus e Ludovicus Vives, que o impressionaram fortemente,
contribuindo para a formação das opiniões do futuro sábio” (ARAÚJO, 1996,
p. 35-36), bem como conhecimentos de outros humanistas, a exemplo de
Erasmo de Roterdã, crítico ferrenho da escolástica católica e de Lutero.
As universidades foram criadas no medievo pela Igreja Católica,
e a educação estava a cargo do seu clero. Os reformadores protestantes
deveriam fornecer outros métodos e respostas propositivas, demandadas
por uma nova conjuntura de ascensão do capitalismo e da burguesia. Em
1575, o conde de Nassau fundou a Universidade de Leiden, nos Países
Baixos, considerada a primeira universidade protestante do mundo. As
antigas universidades da Alemanha, Inglaterra e Suíça foram reestrutura-
das dentro dos princípios reformados, mesmo que algumas recebessem
estudantes católicos.
Quanto à educação básica, a preocupação com a alfabetização da
população em geral era uma necessidade vital, segundo a ótica protestante.
A centralidade da Bíblia era um dos fundamentais princípios da Reforma, e
a devoção pessoal e da comunidade fazia-se através da leitura bíblica e de
outros textos comentados pelos pastores. Uma das primeiras medidas de
Lutero foi traduzir a Bíblia para o alemão, permitindo sua leitura por todos
os fiéis, não apenas para os sacerdotes, como ocorria na Igreja Católica.
Os professores Filipe Melanchton e Martinho Lutero sabiam que o
sucesso do movimento reformado dependia da educação e formação de
novos quadros na visão doutrinária da Reforma. Além de exortar em seus
sermões aos pais que enviassem os filhos à escola, Lutero apelava às au-
toridades germânicas que cuidassem da educação, convencido de que a
ignorância era um grande mal que dificultava a própria salvação dos indiví-
duos. Nas palavras do reformador alemão: “o progresso de uma grande ci-

A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS 231

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 231 29/08/2019 06:33


dade não depende do acúmulo de grandes tesouros… o melhor e mais rico
progresso é quando possuem muitos homens instruídos, muitos cidadãos
ajuizados, homens bem-educados”. (LUTERO apud JARDILINO, 2009, p. 45)
O educador Comenius bebeu nessas fontes protestantes. Os prin-
cípios norteadores do método comeniano fundamentavam-se na observa-
ção da natureza, no pensamento filosófico dos clássicos e dos humanistas
do período e da sua formação religiosa como Irmão Morávio e pastor da
comunidade protestante. Na saudação ao leitor da Didática Magna, afirma
que “da educação virá a salvação de todo o gênero humano” e que se trata
de um árduo trabalho. Para comprovar sua tese, citou Cícero, preocupado
com a educação dos romanos, e Filipe Melanchton no século XVI: “a edu-
cação é coisa um pouco mais difícil que a tomada de Tróia”. (COMENIUS,
1996, p. 47)
Em 1614, ao retornar à Morávia, Comenius se tornaria professor e
posteriormente administrador da Escola de Prerov, na qual ele havia estu-
dado, com o objetivo de contribuir na formação da juventude de seu país.
“Com entusiasmo se dedica às atividades pedagógicas e, além de ensinar as
corriqueiras matérias daquela época, não esquece também de cultivar nos
jovens os nobres princípios da moral e da religião”. (ARAÚJO, 1996, p. 36)
Para Comenius era um santo dever das autoridades abrir escolas, bem como
dos religiosos: “interessa a toda Cristandade, a fim de que em toda e qual-
quer comunidade de homens bem ordenada (quer seja cidade, vila ou al-
deia), se construa uma escola para a educação da juventude”. (COMENIUS,
1996, p. 135)
O educador tcheco citava recorrentemente a Bíblia como referência
para as suas ideias. Os textos bíblicos não eram apenas um recurso discur-
sivo ou retórico, Sola Scriptura era um dos pilares da Reforma, e a única
regra de fé e prática dos reformados se constituía na Bíblia como um livro
infalível e divinamente inspirado, distintamente da Igreja Católica, que tam-
bém recorria à tradição patrística. Ao iniciar o primeiro capítulo da Escola
da infância, Comenius afirma que as crianças são dádiva divina, e referencia
seu argumento com um versículo do Salmo 127: “Os filhos são a herança
do Senhor, é uma recompensa, o fruto do ventre”. (BÍBLIA SAGRADA apud
COMENIUS, 2011, p. 1) E nos conselhos às mães e educadores das crianças,
citou os Provérbios de Salomão, especialmente este da nossa epígrafe.

232 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 232 29/08/2019 06:33


Os Irmãos Morávios viviam a simplicidade do Evangelho e admitiam
que todos os homens e mulheres são filhos de Deus e que, diante da divin-
dade, todos são iguais e usufruem das suas bênçãos. Comenius apresenta
aos leitores de forma concisa que “Didática significa a arte de ensinar” e
que seu projeto é “ensinar tudo a todos”. (COMENIUS, 1996, p. 43) Uma
proposta universalizante, bem distinta das ideias pedagógicas anteriores
que privilegiavam a aristocracia e os homens. Seguindo um princípio re-
formado, Comenius preconizaria na sua Didática Magna uma escola pública
para todas as pessoas: “devem ser enviados às escolas não apenas os filhos
dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus,
ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias”. (COME-
NIUS, 1996, p. 139)
A escola almejada pelos reformadores deveria atingir todas as cama-
das sociais, pois todos deveriam ler e entender as Sagradas Escrituras, e os
protestantes condenavam as imagens e santos como pecado de idolatria.
Segundo C. Hill (2003, p. 35), que estudou a repercussão da Bíblia nas revo-
luções da Inglaterra do século XVII, “para os católicos, as imagens serviam
como os livros dos iletrados. Os protestantes e os impressores demonstra-
ram que mais pessoas podiam aprender a ler, o que criou uma nova cultura
e um novo interesse pela educação popular”.
As mulheres não foram esquecidas, pois “perante Deus, não há pes-
soas privilegiadas”. Amós Comenius rompeu com a velha tese da inferiori-
dade feminina, a qual alegava que, através delas, isto é, de Eva, entrou o
pecado no mundo. De forma clara, defendeu a extensão do processo edu-
cativo às mulheres, ressaltando em sua Didática Magna:

As mulheres são igualmente imagens de Deus, igualmente par-


ticipantes da graça e do reino dos céus, igualmente dotadas de
uma mente ágil e capaz de aprender a sabedoria (muitas vezes
até mais que o nosso sexo). Igualmente para elas está aberto o
caminho dos ofícios elevados. (COMENIUS, 1996, p. 141)

Para o educador tcheco as mulheres podiam exercer todas as ativi-


dades existentes na sociedade, como a medicina, o governo dos povos e o
próprio exercício sacerdotal, enquanto profetisas.

A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS 233

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Embora o protestantismo não tenha alcançado avanços significati-
vos em relação à questão de gênero, do ponto de vista teológico admitia o
sacerdócio universal: homens e mulheres estavam em relação de igualdade
diante de Deus. Ainda no século XVI, algumas mulheres passaram a reivin-
dicar o exercício do pastorado. No século XIX, o grupo dissidente Quaquer
já ordenava mulheres e, no final do mesmo século, teólogas lideradas por
Elizabeth Stanton nos EUA publicaram a Bíblia da mulher, criticando o andro-
centrismo dos protestantes, além de reivindicarem igualdade nas relações
de poder nas comunidades religiosas. (ALMEIDA; SILVA, 2011) O acesso à
educação propiciava às mulheres reformadas um espírito crítico sobre a
própria estrutura eclesiástica.
No método de Comenius também estava presente uma perspectiva
dialógica, sem arrogância ou imposição intelectual, frente aos educandos
no processo de aprendizagem. Pedindo o aval de Cristo de um coração
simples, o educador tcheco asseverou: “não há para mim diferença alguma
entre ensinar e ser ensinado, advertir e ser advertido, entre ser mestre dos
mestres (se me é lícito falar assim) e discípulo dos discípulos”. (COMENIUS,
1996, p. 52) Um pensamento similar seria posteriormente divulgado pelo
educador Paulo Freire, quatro séculos depois e em outras latitudes, “quem
ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender”. (FREIRE,
2001, p. 259)
Em 1616, Comenius foi eleito pastor da Igreja Morávia em Zara-
trice. Continuou como professor e escritor de textos pedagógicos para o
estudo de línguas estrangeiras. Biógrafos de Comenius citam inquietações
pelo fato de ele desprender tempo em suas atividades como professor, des-
curando das tarefas pastorais. Em suas palavras: “que alguns podem achar
estranha à vocação de um teólogo estudar os problemas escolares e saiba
que esse escrúpulo pesou tão fortemente sobre o meu coração a ponto de
o fazer sangrar”. (COMENIUS, 1996, p. 51) Mas a dicotomia era só aparente.
A doutrina da vocação, explanada por Max Weber (1967, p. 52), resolveria
a tensão com a ética intramundana, estar no mundo e viver para o serviço
divino. Comenius acrescentou: “prestando homenagem a Deus e pedindo
publicamente conselho a todos acerca de tudo aquilo que uma intuição
divina me sugeriu”. (COMENIUS, 1996, p. 51)

234 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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O Concílio de Trento (1545-1552), como reação à Reforma Protes-
tante, instituiu várias medidas internas na Igreja Católica, sempre refe-
rendadas pelas monarquias que se mantiveram fiéis ao Papa. Na Morávia,
o domínio dos Habsburgos determinou muitas perseguições aos protes-
tantes. Entre 1618 e 1620, uma sublevação da população protestante
tcheca contra o catolicismo imposto deu início à Guerra dos Trinta Anos.
Levou a atos de violência, como a defenestração dos representantes do
monarca católico e a batalha de Monte Branco, com a derrota dos refor-
mados. Os Irmãos Morávios foram duramente perseguidos, considerados
seguidores dos hereges hussitas.
Em 1621, com família estruturada, Comenius foi obrigado a fu-
gir para a Boêmia, refugiando-se da guerra fratricida que matava tanto
católicos quanto protestantes. O educador teve a casa saqueada, e seus
livros e manuscritos foram queimados. Um ano após a fuga, morreram
acometidos pela peste sua esposa Magdalena Vizovská e seus dois filhos.
Em 1623, vivendo como refugiado, mas exercendo o pastorado e a docên-
cia, o educador tcheco escreveu O labirinto do mundo e o paraíso do cora-
ção, tendo como personagem central um peregrino que anseia pela paz,
um paraíso, aos moldes da Cidade do Sol, de Campanella. Também redigiu
sermões e manuais bíblicos para doutrinar sua comunidade e, em 1628,
no primeiro exílio em Leszno, redigiu a Escola da infância – confira, por
exemplo, Kulesza (2011).
Escola da infância se transformou num marco da atitude que a socie-
dade moderna passou a ter frente à infância: as crianças deveriam ser vistas
não mais como adultos em miniatura, mas como pessoas em processo de
formação, que requeriam “nossa maior atenção”. (COMENIUS, 2011, p. 1)
conforme o próprio título do capítulo primeiro. Para o educador tcheco,
os filhos representam tesouros divinos e que a “educação deles tem como
objetivos: fé e devoção; bons costumes e conhecimento de línguas e artes”.
(COMENIUS, 2011, p. 9) Um aspecto inovador foi a condenação dos castigos
físicos e a adoção de métodos persuasivos e lúdicos para motivar as crian-
ças à aprendizagem.
Na mesma medida em que condenava as punições de alunos como
algo negativo, pois “querem conduzir os jovens à força, martirizando-os”,
Comenius (2011, p. 12-13) concebia o processo educativo como uma ativi-

A TRAJETÓRIA DE JOÃO AMÓS COMENIUS 235

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dade prazerosa: “é da natureza da ação docente e discente, a doçura e a
alegria, o puro divertimento e deleite para a alma”. Podemos inferir que o
professor Comenius, mesmo vivendo a vida tormentosa de um refugiado,
encontrava em suas atividades docentes a alegria de prestar um serviço a
Deus e ao seu povo.
Em meio à Guerra dos Trinta Anos, novamente foi obrigado a fugir
para a Polônia, onde fundou uma escola de gramática e o ginásio, no qual
trabalhou por 13 anos. (HUTTON, 1909) Em 1630, Comenius começou a es-
crever a Didática e o seu famoso Manual de latim, orientando os alunos para
a aprendizagem correta. Os textos de Comenius e seus métodos começa-
ram a ser divulgados na Europa protestante. Entre 1634 e 1637, escreveu a
Pansofia, que ao chegar às mãos do nobre inglês Hartilib foi imediatamente
publicada, mesmo sendo uma versão preliminar. Em 1641, a convite de Har-
tilib, visitou Londres e divulgou seus métodos e propostas para reformar as
escolas inglesas, inclusive com conferências no Parlamento Britânico.
A Pansofia de Comenius era uma proposta audaciosa e ecumênica
em meio às querelas religiosas e as batalhas pela fé, que dividiam a Europa
e causavam tantas dificuldades pessoais ao educador tcheco: “que pudesse
conduzir a tolerância religiosa ao fim dos conflitos entre as nações e a um
contínuo e universal progresso científico”. (KULESZA, 1991, p. 36) Em 1642,
aceitou o convite da rainha da Suécia Kristina Augusta para reformar as
escolas suecas. O projeto comeniano era regenerar a humanidade, unindo
a função de pastor e educador. No entanto, sua atuação não se limitou ao
campo intelectual das ideias.
Participou ativamente das tentativas de um concerto político que
colocasse fim aos conflitos religiosos, decorrentes de interesses econômi-
cos e políticos dos monarcas e príncipes envolvidos nas disputas religio-
sas pós-Reforma Protestante. No século XVII, as escolhas religiosas tinham
também consequências políticas, e Comenius não separou sua atuação pas-
toral, de educador e político: “Neste tempo na Boêmia, religião e política
eram inseparáveis… Ser um protestante era ser um rebelde”. (HUTTON,
1909, p. 168) Comenius foi um insurgente, aos moldes proféticos, seguindo
seu nome e a identidade do profeta veterotestamentário Amós, trazendo
uma mensagem nova de unidade, de paz entre as nações e as confissões
religiosas.

236 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Como autoridade sacerdotal e o capital simbólico que havia amea-
lhado como educador, Comenius tinha competência diplomática para inter-
vir nas negociações pela paz. Participou das conferências interconfessionais
em 1644 e 1645 que conduziram à Paz de Westifália, conferenciando com
autoridades católicas, visando um entendimento entre a Igreja Católica e os
Reformados. Em Toruń, a convite do rei da Polônia, Comenius participou do
debate com “dezoito luteranos, que deviam confrontar dezoito católicos,
entre os quais oito jesuítas, vinte e dois reformados (calvinistas), e o por-
ta-voz dos Irmãos Morávios, o conhecido pedagogo Comênio”. (TUCHLE,
1983, p. 232-233)
O educador tcheco e bispo dos Irmãos Morávios não perdeu a opor-
tunidade de contestar a intolerância religiosa com as armas intelectuais
que brandia e usava competentemente: “Comenius escreveu inúmeros pan-
fletos de combate a posições surgidas durante as conferências, sempre no
sentido ecumênico que o caracterizava”. (KULESZA, 1991, p. 41) Na disputa
com o capuchinho Valerian Magni, assessor do arcebispo de Praga e de-
fensor da restauração católica, Amós Comenius redigiu Judicium de judicio
Valeriani Magni, defendendo a unidade cristã, o fim dos conflitos religiosos
e a reconciliação da humanidade a partir dos princípios cristãos.
Apesar do amplo debate sobre as teses que dividiam católicos e pro-
testantes, o Tratado de Westifália foi extremamente decepcionante para o
educador tcheco: a liberdade religiosa foi apenas concedida para católicos,
luteranos e calvinistas, certamente em decorrência do poder bélico e eco-
nômico que detinham, sendo excluídos dessa liberdade religiosa os Irmãos
Morávios e outros grupos dissidentes menores, a exemplo dos anabatistas.
A Paz de Westifália em 1648, que pôs fim às guerras religiosas por absoluta
exaustão das forças dos beligerantes, ainda hoje é considerada um momen-
to significativo, quando o direito internacional e a autodeterminação dos
povos e nações começaram a dar os primeiros passos no Ocidente.
Amós Comenius trabalhava e vivia num ambiente conflituoso, po-
rém manteve sempre atitudes e práticas ecumênicas de respeito às diver-
gências religiosas ou de concepções políticas. Segundo um historiador que
escreveu sobre a Igreja Morávia e a atuação clerical de Comenius, “não
acreditava num cristianismo dogmático e formal. O historiador Jesuíta Bal-

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bin disse: escreveu muitas obras, mas nenhuma foi dirigida contra a Igreja
Católica”. (HUTTON, 1909, p. 168)
Na realidade, a Paz de Westifália só contemplou alguns grupos re-
ligiosos, e os conflitos persistiram. Os Irmãos Morávios continuaram a ser
perseguidos. Em 1656, camponeses católicos incendiaram a cidade de Lis-
sa, um refúgio polonês onde vivia uma população morávia, da qual Come-
nius era pastor. Mais uma vez, ele perdeu todos os seus livros, pertences e
os preciosos manuscritos. Fugiu para a Silésia, posteriormente dirigiu-se a
Hamburgo e finalmente aceitou o convite para instalar-se em Amsterdam,
considerada no período um refúgio para protestantes e judeus persegui-
dos. O Conselho Municipal forneceu os recursos para Comenius publicar
suas obras didáticas. Em 1657 foi publicada sua Didática Magna e posterior-
mente outros livros e panfletos religiosos.
No seu exílio de Amsterdam, Comenius encontrou acolhida e tran-
quilidade necessária para continuar o seu projeto de reformador da escola,
através de escritos e conferências. Como pastor, não se esqueceu da sua
comunidade religiosa Morávia, escrevendo sermões e um catecismo, dou-
trinando-os mesmo a distância. Em 1660, escreveu um relato da situação
dos Irmãos Morávios endereçada aos círculos religiosos puritanos ingleses,
que haviam recepcionado suas ideias pedagógicas e religiosas. Certamente
não havia se esquecido do seu projeto de internacionalização da ciência e
da educação, que se concretizaria a partir da Real Sociedade Científica de
Londres, anteriormente aceito pelo círculo político de Hartilib.
Os interesses comerciais do capitalismo nascente também faziam
parte do contexto em que viveu. Ibéricos católicos e saxônicos protestan-
tes disputavam os mares e os mercados avidamente. Portugal bateu-se
em guerras contra a Espanha, e ingleses contra holandeses: seguir a mes-
ma confissão religiosa não garantia fidelidade ou lealdades nos negócios
concorrentes. Nos interesses das companhias de comércio fundadas por
mercadores calvinistas e anglicanos, não entrava lealdade religiosa. En-
tre 1652 e 1667, a Inglaterra anglicana e as Províncias Unidas calvinistas,
atual Holanda, guerrearam entre si pelo controle de rotas comerciais que
incluíam colônias na Indonésia e Nova Amsterdam, atual Nova York, nos
EUA. (ISRAEL, 1998)

238 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Certamente, para o Irmão Morávio Comenius, aqueles fatos eram
muito estranhos. Para um pastor que vivia o igualitarismo evangélico e pre-
conizava um concerto entre os povos, presenciar duas nações, ditas pro-
testantes, deflagrarem batalhas pelo controle comercial de suas colônias
deveria ser o apocalipse. Uma pedra de escândalo, pois não eram os cató-
licos que estavam propagando os conflitos, mas exatamente os reforma-
dos, que queriam salvar a humanidade da secular influência negativa do
catolicismo, como afirmaram Lutero e outros reformadores. Mais uma vez,
Comenius exerceria, em nome da fraternidade entre as nações, o papel de
árbitro e pacifista. Em meio a mais uma guerra fratricida, o educador tche-
co de vocação internacionalista participou das negociações para pôr fim
ao conflito anglo-holandês, que resultou no Tratado de Breda, na Holanda.
(GOMES, 1996, p. 27)
Neste período, 1667, escreveu Angelus pacis (anjo da paz), com um
cunho exortativo, demonstrando a necessidade de relações pacíficas entre
os países e a humanidade em geral. “Comenius faz uma profética condena-
ção da exploração colonial de outras nações que também estavam incluídas
nos seus planos de reforma universal”. (KULESZA, 1991, p. 49) Amós Come-
nius já era ancião e tinha autoridade religiosa advinda de seu sacerdócio,
bem como da experiência pessoal dos horrores da guerra. Vivera anterior-
mente na Inglaterra e naquele momento já habitava há dez anos os Países
Baixos, portanto era capaz de intermediar, apontar soluções alternativas
para os conflitos que não terminaram com a Paz de Breda, e sim adentraram
o século XVIII.

O OLHAR DOS CONTEMPORÂNEOS E DOS ESTUDIOSOS DA


ATUALIDADE
Contemporâneos de Amós Comenius, como o filósofo e matemático
René Descartes (1596-1650), autor da famosa frase “Penso, logo existo” e
da obra O discurso do método, entendia que o método comeniano estava
muito imbrincado com a religião, por isso deveria ser visto com reservas.
Por duas vezes Comenius conferenciou, pessoalmente, com o pensador
francês na Holanda. Em 1642, encontraram-se durante quatro horas, porém
não interagiam em seus projetos científicos. Segundo um estudioso da obra

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de Comenius: “cada um se convence do contraste entre seus programas. O
ideal pansófico comeniano devia parecer a Descartes privado de rigor ma-
temático e com nexos evidentes da cultura mística alemã do século XVI”.
(KULESZA, 1991, p. 28)
Gottfried W. Leibniz, filósofo e matemático alemão que viveu entre
o final do século XVII e início do XVIII, também era um defensor da unidade
dos cristãos católicos e protestantes, chegando a propor um concílio ecu-
mênico, numa tentativa de restaurar e fortalecer a convivência pacífica en-
tre os diversos ramos cristãos. Grande admirador de Comenius, lhe dedicou
versos, elogiando a sua obra e a relevância de suas ideias:

a sua obra superará a morte, as sementes que você espalhou caí-


ram na terra fértil. As gerações futuras colherão os frutos que es-
tão crescendo. Chegará o tempo Comenius, quando as multidões
de gente boa honrarão o sonho das suas esperanças e aquilo que
você fez. (LEIBNIZ apud ARAÚJO, 1996, p. 167)

Os iluministas do século XVIII, que viviam sob o primado da razão,


desconsideraram a obra de Comenius, impingindo um julgamento anacrô-
nico, de que ele obscurecia a racionalidade e vivia sob o signo do milenaris-
mo e de confusas ideias apocalípticas. Na verdade, é preciso destacar que o
milenarismo fez parte da visão de mundo de vários pensadores do período,
inclusive do Padre Vieira, considerado um grande autor do barroco, o qual
preconizou o Quinto Império para Portugal, imbuído de um espírito pro-
fético, “com temas bélicos tomados à Bíblia para instilar a reformação dos
costumes católicos, ainda mais por julgar descabidas as teses enunciadas
por Martinho Lutero”. (ARAÚJO, 2014, p. 104)
Como alguns pedagogos e cientistas contemporâneos analisaram
e avaliaram a contribuição de Comenius? Os pesquisadores da atualidade
são unânimes ao ressaltar a relevância do educador tcheco: o estudioso
Frederick Eby, da Universidade do Texas, avaliou o insucesso ou sucesso das
propostas comenianas como: “o primeiro grande profeta da idade moderna
sofreu o destino usual que aguarda homens de visão muito arrojada”. (EBY,
1976, p. 178) O pesquisador italiano Mario Manacorda (1997, p. 220), numa
perspectiva marxista, afirma que em Comenius “se sintetiza o velho e o
novo da pedagogia”.

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Em 1957, quando Jean Piaget era diretor do Escritório Internacional
de Educação, voltaram-se os olhares à obra comeniana. Ele opinou que Co-
menius foi “o primeiro a ter concebido, em toda a sua plenitude, uma ciên-
cia da educação como coloca essa ciência no centro de uma ‘pansofia’, que
para ele deve constituir um sistema filosófico global”. (PIAGET, 2010, p. 13)
Segundo o educador francês, os conflitos e a sua permanente condição de
exilado “forneceram a ele os impulsos necessários para as suas convicções
internacionais, assim como suas experiências de educador são o ponto de
partida para sua reflexão pedagógica”. (PIAGET, 2010, p. 17)
Joaquim Ferreira Gomes, docente da Universidade de Coimbra, tra-
dutor da Didática Magna para a língua portuguesa, na sua introdução ao
livro do educador tcheco concluiu que “Comênio contribuiu decisivamen-
te para a criação de uma ciência da educação como disciplina autônoma,
pelo que é considerado justamente o pai da pedagogia moderna”. Analisan-
do o pensamento comeniano da universalização da escola, o pesquisador
coimbrão acrescenta: “Comênio é, sem dúvida, o mais ardente apóstolo
da democracia do ensino”. (GOMES, 1996, p. 35) Apóstolo com uma verve
profética, que criticou as velhas práticas da educação apenas para a oligar-
quia e almejava instaurar uma nova ordem educacional, uma revolução nos
métodos pedagógicos.
Jean Delumeau, historiador francês contemporâneo, considera Amós
Comenius um seguidor de ideias milenaristas, da construção da felicidade
humana, de um novo Céu e uma nova Terra. “Um dos espíritos mais eminen-
tes do século XVII. Teve em seu tempo uma grande reputação de humanista
e pedagogo. Homem sensível, pacifista resoluto, Comenius também esperava
um período de paz da Igreja”. (DELUMEAU, 1997, p. 166) Para Delumeau, em
nada as ideias milenaristas toldaram a importância da obra comeniana.
Ressaltando a relevância da obra como educador e difusor de uma
visão de mundo democrática da educação, bem como precursor de ideias e
práticas ecumênicas, a ONU, em 1956, reconheceu Amós Comenius como
um pensador da paz mundial. A Unesco, em 1992, instituiu a Medalha Co-
menius para pessoas que se destacaram como defensores de uma prática
educacional universalizante. “Paulo Freire foi um dos primeiros agraciados
com essa comenda”. (KULESZA, 2011, p. XVI) O educador tcheco e o educa-
dor brasileiro, distantes quatro séculos, beberam da mesma fonte cristã dos

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princípios evangélicos de paz, justiça e igualdade. Freire foi militante da
Juventude Universitária Católica (JUC) (FREIRE, 2001), entidade que engros-
saria a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base (CEB).
Se o paralelismo de suas trajetórias se separa por um oceano, tam-
bém se aproxima em exílios e perseguições. Durante o governo militar, que
instalou a ditadura em 1964 no Brasil, Paulo Freire foi acolhido por um
órgão ecumênico de origem protestante, o Conselho Mundial de Igrejas
(CMI), com sede em Genebra, fundado em 1948, que em muito deve às
ideias ecumênicas e de respeito à diversidade religiosa de Comenius. A
assembleia inaugural do CMI ocorreu em Amsterdam, com a presença de
140 igrejas, com o propósito de construir “aliança ecumênica que tem seu
fundamento na fé cristã e que se manifesta no compromisso de trabalhar
concretamente pelo Reino de Deus”. (SILVA, 2010, p. 93-94) Segundo o tex-
to bíblico, “o Reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, paz e
alegria no Espírito Santo”. (BÍBLIA SAGRADA, Romanos, 14:17)

O PENSAMENTO DE COMENIUS NO BRASIL


A obra de Comenius tem sido citada pelos estudiosos brasileiros,
nem sempre com a necessária contextualização do momento histórico em
que foi produzida. O pesquisador Kulesza (1991, p. 48) reportou-se à exis-
tência na Biblioteca Nacional de exemplares de “livros de Amós Comenius
editados no século XVII, a exemplo da Janua linguarum, Orbis pictus e Erudi-
tionis scholasticae Janua Rerum e Linguarum structuram externam. De 1957, a
Opera didactica omnia”. Esta edição de 1957 foi traduzida para o português
com o título de Didática Magna pelo professor Joaquim Ferreira Gomes, e é
a que estamos usando neste texto.
Os políticos liberais brasileiros do século XIX queriam uma educa-
ção técnica, que levasse o país para a industrialização, e o modelo eram os
países protestantes, especialmente os EUA. Em 1880, discursando na As-
sembleia Geral do Império, Rui Barbosa (apud SILVA, 2017b, p. 104) opinou:

Do protestantismo é filha a educação popular, que constitui o


grande característico, o principal instrumento e a necessidade
vital da civilização moderna; ao protestantismo encontra-se asso-
ciada em toda parte uma exuberância de prosperidade individual.

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Mesmo sendo católico e crítico do catolicismo, Rui Barbosa defen-
deu a imigração de colonos protestantes para o Brasil como uma forma de
implementar o progresso nacional. Esquecia o vate baiano que fatores de
ordem econômica e política pesavam na balança do progresso dos países de
maioria reformada. Não bastava, apenas, seguir as teses luteranas.
Em 1882, no seu parecer exarado sobre A reforma do ensino primá-
rio no Brasil, Rui Barbosa referiu-se ao educador tcheco: “Amós Komensky,
um dos mais extraordinários vultos em toda a história da pedagogia, esse
poderoso espírito que autoridades de hoje apontam como o primitivo cria-
dor do método indutivo”. (BARBOSA, 1946, p. 202) O jurista baiano era
um entusiasta da educação e não poupou elogios aos países protestantes
que primavam pela alfabetização da juventude, em detrimento dos países
católicos que, segundo ele, viviam na ignorância. “Rui descobriu Comenius,
quando traduziu o livro de Alisson N. Calkins, Primary Object Lessons, inspi-
rado em Comenius e Pestalozzi”. (KULESZA, 1991, p. 49)
A escola anexa ao templo foi uma característica que o protestantis-
mo preservou, inclusive no Brasil. Ainda no século XVII, no período deno-
minado Brasil Holandês, de 1630 a 1654, os comerciantes da Companhia
das Índias Ocidentais, em sua maioria calvinistas, organizaram a Igreja Re-
formada no Brasil, com presbitério, sínodo e toda a estrutura eclesiástica
vigente no protestantismo dos Países Baixos. Pastores, diáconos, consola-
dores e professores, além da catequese protestante, fundaram escolas para
alfabetizar crianças e adultos, incluindo negros e indígenas convertidos às
doutrinas reformadas. (SILVA, 2017a, p. 103)
A relevância dos Irmãos Morávios como educadores foi reconhecida
inclusive pelas autoridades católicas. No período regencial, em 1833, o Re-
gente Padre Feijó desenvolveu esforços diplomáticos para trazer ao Brasil
educadores protestantes da irmandade Morávia para alfabetizar a popula-
ção brasileira, especialmente os indígenas. O projeto de Feijó não se con-
cretizou devido às turbulências políticas que levaram à sua renúncia, que
contou com a acirrada oposição do Arcebispo Primaz do Brasil D. Romualdo
Seixas, sediado na Bahia, que inquiriu o Regente: “se não haveria missioná-
rios católicos, a quem confiar a evangelização dos índios e o prosseguimen-
to da bela obra civilizadora dos Jesuítas?”. (LEONARD, 1963, p. 40)

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No século XIX, as missões que vieram da Europa e dos EUA funda-
ram templos, congregações e escolas protestantes no Brasil, com o objetivo
de educar as crianças da comunidade, mas também organizaram colégios
e internatos, abertos à população em geral. Uma novidade das escolas pro-
testantes foi o Jardim de Infância e classes com alunos e professores de
ambos os sexos. Vasni Almeida, ao estudar a educação protestante no país,
concluiu que, além de almejar formar uma nova mentalidade, o objetivo
era “Cristianizar a sociedade, através dos princípios do protestantismo, era
tido como uma das condições básicas para o seu avanço social e moral”.
(ALMEIDA, 2011, p. 414)
O analfabetismo era e ainda é um problema da sociedade brasileira
bem como para as comunidades protestantes, em virtude da necessidade
da leitura da Bíblia. Os missionários, que estabeleceram a Primeira Igreja
em Salvador em 1882, tinham consciência da questão, visível no cotidiano
dos grupos. O Reverendo Taylor referiu-se a analfabetos na congregação,
tal qual uma “senhora velha e corcunda, que não conhecia uma letra do
analfabeto que foi recebida pela igreja e agora estava a caminho do batisté-
rio”. No momento da profissão de fé, muitos irmãos confessavam não saber
ler, e todos respondiam afirmativamente à pergunta de que queriam ler a
Bíblia. “Eles queriam aprender, na maioria não para outra coisa, mas para
ler a Palavra de Deus, 75% do povo não sabe ler!”. (TAYLOR, 1969, p. 33-36)
Em 1924, o humanista tcheco Valdomiro Lorenz traduziu e publicou
sob o título Um apóstolo do progresso dois textos de Comenius: o primeiro
ensaio com o título João Amós Kominsky; o segundo, elaborado pelo educa-
dor Fernando de Azevedo, foi intitulado Clarões por entre sombras. Segundo
o mestre Azevedo, mesmo reconhecendo que o conhecimento sobre o pen-
samento comeniano ainda era muito superficial no Brasil: “Não há quem
em rodas do ensino não conheça de nome o grande Comenius (Jan Amós
Komensky), a cuja sombra se acolhem os que abordam assumptos de peda-
gogia”. (AZEVEDO apud ARAÚJO, 1996, p. 121)
Azevedo pensou a realidade do sistema escolar brasileiro de forma
sistemática. Em 1937, publicou Educação e seus problemas, arguindo as au-
toridades sobre a gravidade da educação brasileira e seu viés elitista, as-
segurando a necessidade de democratizar o sistema, com uma inspiração
nitidamente comeniana: “ou o governo porá ombros à tarefa tremenda…

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do Estado, de construir com audácia o sistema de organização educacio-
nal substituindo a escola de uns pela escola para todos […] ou terá de se
resignar a debater-se inutilmente, sobre o solo minado”. (AZEVEDO, 1937,
p. 20) O desafio persiste, pois a escola pública, em todos os níveis, de-
mocrática e de qualidade, continua como bandeira de luta do movimento
docente no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Comenius nasceu, viveu e morreu sob o signo das Guerras Religio-
sas, um labirinto político e religioso no qual viveu como um verdadeiro
peregrino em busca de paz e liberdade, para escrever e aplicar no cotidiano
as ideias ecumênicas e pacifistas que preconizou. Era um professor em trân-
sito por diversos países e, em cada lugar onde se refugiou, fundou colégios,
ministrou conferências, escreveu livros e panfletos argumentando e defen-
dendo o melhor método para o ensino e a aprendizagem. Defendeu um
concerto entre as nações, sendo lembrado atualmente como precursor de
vários órgãos de cooperação internacional, a exemplo da ONU e da Unesco.
Comenius foi um homem de seu tempo, viveu no alvorecer da mo-
dernidade, período de conflitos. A sua trajetória nos permite afirmar que
também foi um insurgente, não se conformou com as disputas e discrimi-
nações e, de forma propositiva, se rebelou contra a realidade circundante,
trabalhando pela paz no mundo, por uma educação democrática, o diálogo
inter-religioso e a união dos cristãos. Trazer o pensamento comeniano para
a conjuntura atual é de suma relevância para a reflexão e a proposição de
alternativas e projetos emancipatórios, capazes de resistir a uma globaliza-
ção excludente e intolerante, que vivemos hodiernamente.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, B.; SILVA, E. Mulheres protestantes: uma trajetória nem sempre submissa.
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“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO”: DIALOGANDO SOBRE O
CORPO INSURGENTE E A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA
DOS ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
Leonardo Augusto Oliveira de Santana
Sueli Ribeiro Mota Souza

INTRODUÇÃO
Este estudo tem como finalidade apresentar o contexto da socioe-
ducação por meio do binômio “bicho solto, sujeito preso”, abordando a
contradição subjacente no processo de estigmatização da juventude e a
importância de situar os dispositivos históricos constitutivos da sociedade
brasileira, sobretudo no sistema socioeducativo.
O objetivo deste trabalho consiste em analisar o processo de dis-
ciplinarização no atendimento aos adolescentes privados de liberdade, as
práticas sociais ali engendradas e o contexto socioeducativo como con-
dição na constituição dos sujeitos de direitos, além de problematizar os
corpos insurgentes e a dimensão ético-política diante das questões que os
atravessam.
Outrossim, o estudo visa ampliar a discussão a partir de um recorte
histórico do campo social e institucional e de como ao longo do tempo o
Brasil foi constituindo o campo das políticas de atendimento à infância e
juventude.
O percurso metodológico refere-se a uma pesquisa bibliográfica,
tendo de modo mais amplo o efeito de emergir algumas categorias que
parecem importantes chaves. Para a consecução do estudo, compreende-se

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a utilização da pesquisa bibliográfica feita a partir do levantamento de refe-
rências teóricas já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos,
como livros, artigos científicos, páginas de websites. Qualquer trabalho cien-
tífico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador
conhecer o que já se estudou sobre o assunto.
Os exemplos mais característicos desse tipo de pesquisa são inves-
tigações sobre ideologias ou aquelas que se propõem à análise das diversas
posições acerca de um problema. (GIL, 2007, p. 44)
Entende-se a pesquisa bibliográfica como um processo no qual o
pesquisador tem “uma atitude e uma prática teórica de constante busca
que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente”, pois
realiza uma atividade de aproximações sucessivas da realidade, sendo que
esta apresenta “uma carga histórica” e reflete posições frente à realidade.
(MINAYO, 1994, p. 23)
Para tanto, a construção do marco teórico do presente trabalho se
deu a partir de determinadas categorias de pensadores, como Goffman,
sobretudo em relação ao que a sociedade estabelece para a categorização
das pessoas e de suas atitudes e os processos de exclusão social. Ainda
na esteira do referido pensamento, Agamben contribuiu com a concepção
de corpos em rebelião, encarnando um poder de inventar-se a si mesmos
numa linha de fuga das amarras sociais.
Essas categorias analíticas têm possibilitado uma aproximação da
complexa prática social da medida socioeducativa, trazidas a campo pelos
pesquisadores como quadro analítico, suscitando novas categorias, advin-
das da própria revisão de literatura.

O PROCESSO DE DISCIPLINARIZAÇÃO NO ATENDIMENTO AOS


ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
A chamada “sociedade disciplinar”, para Foucault (2002), demons-
trava ter mecanismos de poder muito vivos, visto que vigiar era mais
rentável do que punir. Essa compreensão está consubstanciada pelas trans-
formações históricas do sistema penal e pelo surgimento de modelos de
controle disciplinar que repercutem na contemporaneidade. Muitos aspec-
tos permanecem e intensificaram-se como controle social punitivo, os quais

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se particularizam nas medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes
em conflito com a lei.
A formação da sociedade disciplinar ocorreu no século XVIII e início
do século XIX, quando mudanças sociais nestes últimos séculos levaram a
alterações no jogo do poder, que foi gradativamente substituído pelo que
Foucault (2002) denominou de “sociedades disciplinares”, as quais atingi-
ram seu apogeu no século XX. Essas mudanças de poder ocasionaram alte-
rações das instituições penais com aspectos contraditórios, como a reforma
e a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Eu-
ropa e do mundo. Tais alterações nos jogos de poder foram reelaborações
teóricas da lei penal, por meio de legisladores como Beccaria, Bentham e
Brissot, autores do 1º e 2º Código Penal Francês da época revolucionária.
(FOUCAULT, 2002)
Nas palavras de Foucault (2002, p. 29),

O homem de que nos falam e que convidam a liberar já é em si


mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma
alma o habita e o leva a existência, que é ela mesma uma peça
no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma efeito e
instrumento de uma anatomia política, a alma, prisão do corpo.

A prisão e seus correlatos são versões do horror semelhante aos


campos de concentração ainda presentes na atualidade nos formatos varia-
dos da privação de liberdade. Pedir prisão para jovens e para adolescentes
é mais intolerável ainda, mesmo quando se fala de aumento de tempo de
internação em medidas socioeducativas. Para os adolescentes e jovens bra-
sileiros, pedimos garantia de direitos, possibilidades de vida concretas e
sem menoridade pejorativa. Defendemos adolescentes como sujeitos de
direitos e não rotulados de menores e aprisionados. No Brasil contemporâ-
neo, o fenômeno da violência entre os jovens assume maiores proporções,
dadas as complexas dinâmicas da desigualdade social do crime organizado
e do tráfico de drogas, fatores presentes quando analisamos o contexto
institucional. (KODATO; SILVA, 2000; LOPES, 2005; SANT’ANNA; AERTS;
ZALUAR, 2004)
Falando de juventude contemporânea, Espinheira (2004) descreve
de forma lúcida e impactante suas relações com a violência. A juventude é

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uma rebelião constante. A juventude pobre, por seu lado, luta duplamente
para viver a intensidade que a sua condição requer. A sensação de que está
desperdiçando a vida por não realizar certos desejos no tempo requerido
pelo prazer inquieta os jovens e os lança para a concretização, a todo custo,
do que desejam, e isso leva a situações de risco, inclusive daqueles que po-
dem levá-los à morte ou a matar. A violência banalizada pela frequência de
ocorrências de cadáveres nas ruas, jovens sequestrados em suas residências
e desaparecimento. (ESPINHEIRA, 2004, p. 21)
À luz de Goffman (1988, p. 14),

O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspec-


tiva: Assume o estigmatizado que a sua característica distintiva
já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela é
nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptí-
vel por eles? No primeiro caso está-se lidando com a condição
do desacreditado, no segundo com a do desacreditável. Esta é
uma diferença importante, mesmo que um indivíduo estigmati-
zado em particular tenha provavelmente experimentando ambas
as situações.

O termo “estigma” se encaixa na perspectiva que procura depreciar


o outro a partir de suas escolhas e modos de interação na realidade cotidia-
na, com uma lógica que difere das normas sociais e nem a função de excluir,
indicando que há uma atuação do sujeito contrária às regras vigentes.
Esses jovens, carentes em seus direitos básicos, como moradia,
educação, saúde, necessitam cedo entrar no mundo adulto, se veem como
tal, não recebem proteção especial e são, ainda, recrutados pela violência
da criminalização sem se darem conta de que não são réus, mas vítimas
do controle social seletivo. Eles entram no mundo adulto muito cedo em
função da responsabilidade pela subsistência e até por uma questão de
sobrevivência, uma vez que não possuem os direitos fundamentais garanti-
dos pelo Estado. Com isso, não estou afirmando que a marginalidade seja
uma estratégia de sobrevivência. Isto seria leviano. Contudo, esses jovens,
antes do cumprimento da medida socioeducativa de privação de liberda-
de, em sua maioria, não possuem o direito de serem assistidos em suas
necessidades primordiais, compatíveis com as características dessa fase da
vida (adolescência), como os filhos da família burguesa, que têm acesso a

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oportunidades que lhes permitem a construção de um projeto de vida dig-
na e a projeção para um futuro mundo adulto aos padrões impostos pela
sociedade.
Essa lógica perversa da exclusão considera jovens pobres e “crimi-
nosos” como “não humanos”, “bichos soltos”, ou seja, como não se en-
quadram nos modelos sociais de comportamento ou de consumo, não são
considerados cidadãos e, por isso, podem ser vítimas de homicídios e de
outros atos violentos. Nesse sentido, a maneira encontrada para lidar com
o problema social do jovem infrator é a prática do extermínio, seja retiran-
do-lhe a vida propriamente dita, seja negando-lhe os direitos garantidos
por lei ou, ainda, determinando-lhe a crença de que o tratamento recebido
é justo e legal.
Dessa forma, durante o processo do cumprimento da medida so-
cioeducativa de internação, as garantias de direitos são acionadas às leis in-
ternas, e o sistema jurídico no Brasil que a adota deve garantir a satisfação
de todas as necessidades das pessoas de até 18 anos de idade, incluindo
não apenas o aspecto penal do ato praticado pelo ou contra o adolescente
ou criança, mas seu direito à vida, à saúde, à educação, à convivência fami-
liar e comunitária, ao lazer, à profissionalização, à liberdade, entre outros.
(SARAIVA, 2002, p. 14)
Fato que caracteriza esse contexto diz respeito ao aspecto central
da instituição total que é a ruptura de diferentes autoridades, lugares e
coparticipantes na realização das atividades da vida em geral. (GOFFMAN,
2003, p. 17-18)

Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no


mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada
fase de atividade diária do participante é realizada na companhia
imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas to-
das elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas
coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias
são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade
leva, em tempo predeterminado, a seguinte, e toda a sequência
de atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único
supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da
instituição.

“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO” 253

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Essa disciplinarização, exercida em instituições como prisões, esco-
las, quartéis, entre outras, envolve uma forma definida de individualização,
irradiando influência fora do seu espaço fechado e condicionando o campo
de possibilidades de outras ações. Especialmente à prisão compete, nesta
função disciplinadora, a vigilância contínua dos indivíduos, a sua observa-
ção e exame constantes, despojando-os e transformando-os de acordo com
o modelo de homem ideal estabelecido pela sociedade. Nesses grandes
“espaços disciplinadores”, cada indivíduo tem o seu lugar e, em cada lugar,
há um indivíduo, o que facilita uma vigilância constante e tem como efeito
uma “individualização normalizante”. (FOUCAULT, 2002, p. 169)
Para Loic Wacquant, os atos infracionais cometidos pelos jovens das
classes baixas, no Brasil, possuem, de fato, relação com a falta de uma rede
de proteção social.

Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a


juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desem-
prego e do subemprego crônico continuará a buscar no ‘capita-
lismo de pilhagem’ da rua (como diria Max Weber) os meios de
sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já
que não consegue escapar da miséria do cotidiano. (WACQUANT,
2001, p. 8)

Nesse sentido, somente a partir da internação dos adolescentes em


conflito com a lei é que se instaura a possibilidade de inserção no campo
da garantia de sujeito de direitos, pois a priori na aplicação da medida so-
cioeducativa de internação são considerados fora do gênero humano, apar-
tados pela ruptura de pertencimento, de vínculos societais, tornando-os
sujeitos excluídos, desafiliados ou aqueles cuja trajetória é feita de uma
série de rupturas em relação a estados anteriores. (CASTEL, 1997, p. 48)
Wacquant (2011), na análise sobre as formas do capitalismo de ex-
pansão das prisões e da miséria, aborda de forma relevante a questão do
aprisionamento de jovens. O autor indaga se é possível, de fato, acreditar
que prender algumas centenas de jovens a mais (ou a menos) mudará o
que quer que seja no problema que insistem até mesmo em se recusar a
nomear: o aprofundamento das desigualdades e generalização da precarie-
dade salarial e social sob o efeito das políticas de desregulamentação e da
deserção econômica e urbana do Estado. (WACQUANT, 2001, p. 70)

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Para Goffman (2003), qualquer tipo de incentivo dado ao trabalho
dentro das instituições totais não terá a mesma significação estrutural que
tem no mundo externo, pois, para ele, a atividade realizada na instituição é
uma consequência da divisão que há entre a equipe dirigente e o internado.
As atividades de lazer e esporte são consideradas pelos internos
como destinadas a “passar o tempo”, e não como direito de realizar ati-
vidades culturais, esportivas e de lazer previsto no Estatuto da Criança e
do Adolescente. Goffman (2003, p. 64-65) contribui para o entendimento
dessa questão ao afirmar que:

[…] entre os internados de muitas instituições totais, existe um


imenso sentimento de que o tempo passado no estabelecimento é
tempo perdido, destruído ou tirado da vida da pessoa; é tempo que
precisa ser ‘apagado’; é algo que precisa ser ‘cumprido’ ‘preenchido’
ou arrastado de alguma forma […] este sentimento de tempo mor-
to provavelmente explica o alto valor dado às chamadas atividades
de distração, isto é, atividades intencionalmente desprovidas de
seriedade, mas suficientemente excitantes para tirar o participan-
te de seu ‘ensinamento’, fazendo-o esquecer momentaneamente a
sua situação real […] Algumas atividades de distração são coletivas
– por exemplo, jogos ao ar livre, participação em bandas, ensino de
arte, algumas são individuais, mas dependem de materiais públicos
– por exemplo, leitura e ver televisão.

Tal como aponta Cruz (2010), embasados em ideias preconceituosas


e segregacionistas, temos assistido ao fortalecimento das medidas discipli-
nadoras,

seletivamente direcionadas para um segmento delimitado da po-


pulação: adolescentes pobres, negros e moradores das periferias
urbanas; de forma que o reordenamento do poder e das funções
do Estado no neoliberalismo e a consequente produção de infân-
cias e adolescências desiguais foram acompanhadas por práticas
de inclusão precária. (CRUZ, 2010, p. 86-87)

Tais características são típicas do processo de criminalização da po-


breza e incluem ainda a individualização da violência e a revisitação de práti-
cas e políticas higienistas, menoristas e de contenção penal da miséria social.

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A perspectiva de a política de internação de criança e jovens oriun-
dos de famílias carentes, consideradas, pela ideologia veiculada, sem con-
dições de orientar ou proteger/educar seus filhos, atinge os filhos das
classes populares como diferenciados e os rotula como menores com
conduta antissocial e menores carentes e, por esta razão, são tratados
separadamente, como se não fossem originários da mesma situação de
marginalização social. Desde o primeiro código de menores, estas vidas
são estigmatizadas pela sociedade. Em relação ao que a sociedade es-
tabelece para a categorização das pessoas e de suas atitudes, conforme
Goffman (1988) aponta:

A sociedade estabelece meios de categorizar as pessoas e o to-


tal de atributos considerados como comuns e naturais para os
membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes estabe-
lecem as categorias de pessoas que tem probabilidade de serem
neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes
estabelecidos nos permitem um relacionamento como outras
pessoas previstas sem atenção ou reflexão particular. Então,
quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspec-
tos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos,
a sua identidade social – para usar um termo melhor do que
status social, já que nele se incluem atributos como honestida-
de, da mesma forma que atributos estruturais, como ocupação.
Baseando-nos nessas preconcepções, nós a transformamos em
expectativas normativas em exigências apresentadas de modo
rigoroso.

Nesse sentido, a criminalização é a visão segundo a qual o problema


do crime é o criminoso, o qual já nasce predisposto a seguir esse caminho,
seja por características biológicas ou hereditárias, ou ainda por circuns-
tâncias de sua história de vida, como a pobreza e o rompimento dos laços
familiares. Como destaca Caldeira (2000, p. 134),

se a desigualdade [social] é um fator explicativo importante, não


é pelo fato de a pobreza estar correlacionada diretamente com
a criminalidade, mas sim porque ela reproduz a vitimização e a
criminalização dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e a sua
falta de acesso à justiça.

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A forma de o Estado tutelar a infância era confinando-a nos interna-
tos, ou seja, em instituições totais. Nesse sentido, o estigma da delinquên-
cia estava associado à pobreza, como se esta fosse um fenômeno natural da
sociedade. Goffman (1998, p. 15) ainda afirma que acreditamos que alguém
com um estigma não seja completamente humano. Enclausurar a infância
pobre fazia parte da estratégia de poder, que pretendia domesticar o corpo
para controlar a alma.
Pelo exposto, demonstra-se como as políticas de direitos foram se
constituindo no Brasil, caracterizando-se por uma sociedade marcada já em
sua constituição pela desigualdade, pela exclusão de muitos em detrimen-
to do bem-estar de poucos; por outro lado, o “Estado” passou a executar
políticas sociais não autônomas, mas como inibição e/ou paralisação, em
uma relação de concessão, não de direitos adquiridos, o que demarca na
contemporaneidade as políticas e as práticas sociais.

A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA E O CORPO INSURGENTE DOS


ADOLESCENTES EM CONFRONTO COM A LEI
Na vigência da indistinção entre exceção e regra, entre lícito e ilí-
cito, habita-se a fronteira entre a insubmissão e a captura institucional –
condenados à rebelião, estes corpos encarnam um poder de inventar-se a si
mesmos numa linha de fuga das amarras sociais. Forjam um modo peculiar
de existência: uma espécie de experiência existencial direta, concreta, dra-
mática e corpórea da realidade. (AGAMBEN, 1998)
O hiper-realismo é então um modo de subjetivar-se em meio à
opressão, ao estigma e à violência, quando os adolescentes dobram-se às
lógicas tanatopolíticas. Mas, ao dobrarem-se, encarnam um movimento de
desterritorialização, um devir minoritário, escapando “tanto aos saberes
constituídos quanto aos poderes dominantes”. (DELEUZE, 1992, p. 217)
Nesse sentido, configuram um modo de subjetivação singular.
Uma espécie de subjetividade nômade ou dissidente, como já chamara os
modos contraculturais de subjetivação que abririam pontos de fuga para
a implosão de certos paradigmas normativos de personalidade social.
(PERLONGHER, 1986, p. 78)

“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO” 257

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Esta vida hiper-realista, este vetor de existencialização, apoia-se em
duas operações: a) uma operação na realidade, quando insistem que são
“porta-vozes da realidade”, que estão “mostrando a real”; b) uma performati-
zação de si, espécie de “projeção de si mesmo na mais audaciosa das vidas”.
Ao encarnar uma performance do real da morte, ao “projetar-se na
mais audaciosa das vidas”, ao não renunciar aos riscos da vida, os jovens
não constroem uma estratégia contra seu aniquilamento? Não recolocam a
luta contra a redução da idade penal como uma luta política por excelência,
uma vez que com a redução trata-se de ampliar o limiar dos que estarão
expostos à morte? Não nos relembram um outro sentido da dominação? –
que Foucault toma de Hobbes: “a soberania nunca se forma por cima, por
uma decisão do mais forte. […] Ela se forma sempre por baixo, pela vonta-
de daqueles que têm medo”. (FOUCAULT, 1999, p. 110-111) Nesta perspec-
tiva, não é a derrota que fundamenta uma sociedade de dominação, mas o
medo, a renúncia aos riscos da vida.
Os jovens privados de liberdade, minimizados a mero corpo orgâni-
co, despojados de qualquer direito, estão muito próximos do que Giorgio
Agamben chama de “vida nua” ou “vida matável”: a vida que pode ser des-
cartada, pois foi empurrada para fora dos limites do contrato social e da
humanidade. Agamben (1998) toma a enigmática figura do direito romano
arcaico, o homo sacer, como chave de compreensão da política ocidental.
O homem sacro é aquele que, julgado por um delito, pode ser morto sem
que isto constitua um homicídio ou uma execução ou um sacrilégio. É uma
vida humana residual e irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte
como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício a possam resgatar. Ela
está incluída na ordem jurídica apenas sob a forma da sua exclusão. Evi-
dencia-se nesse caso uma esfera-limite do agir humano: a esfera da decisão
soberana que, no estado de exceção, suspende a lei e implica assim a vida
nua. A relação de exceção não pode ser definida nem como uma situação de
fato, nem como uma situação de direito: ela institui entre ambas um “para-
doxal limiar de indiferença”, em que “a violência se transforma em direito
e o direito em violência.
Ferrándiz (2002) propôs que a análise dessas práticas fosse feita a
partir da noção de “espaço ferido”, que seria um espaço sociológico, geo-
gráfico, corpóreo, simbólico e existencial de qualidades ambíguas: ao mes-

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mo tempo duro e vulnerável, tenso, mas cotidiano, precário, articulado na
periferia socioeconômica e nas sombras da pobreza, da criminalização, do
estigma e da morte.
Experiências que têm lugar no contexto de um espaço ferido não
são redutíveis nem a explicações medicalizadas, nem a projeções de cor-
te burocrático, nem a critérios de objetividade estatística, muito menos a
uma análise da subjetividade isolada da situação socioeconômica cultural
na qual se constitui. Trata-se de um modo de estar no mundo traumático,
dificilmente comunicável, raramente verbalizado, com um grande potencial
para desestabilizar universos simbólicos e pouco compatível com noções
absolutas como verdade/falsidade. É um tipo de experiência que, se aparece
no âmbito público, o faz de forma oblíqua, por meio de detalhes fragmen-
tados ou descontínuos, em experiências corporais sutis ou maciças, carre-
gada de intensidades emocionais ou de estados alterados de consciência e
em rastros incertos de memória. (FERRÁNDIZ, 2005)
Ao tomar esses atos como agenciamentos coletivos, desessencia-
liza-se e desindividualiza-se, sendo que o sofrimento social não é um pro-
blema médico ou psicológico, o que reforçaria sua dimensão individual,
mas uma experiência social na qual “as conexões coletivas e intersubjetivas
da experiência” estão impedidas ou arruinadas, porém na qual também se
expressam modalidades de resistência na disposição da linguagem e dos
corpos. A resistência, nesse caso, não é um movimento calculado, mas a
manutenção da existência dos sujeitos no jogo social. Isso significa sair
da invisibilidade por meio de ações que, ainda que condenáveis, ou justa-
mente por serem assim, colocam os sujeitos numa posição ativa dentro do
imaginário social. (CARVALHO, 2007)
Esses jovens que “não nasceram para semente” estão a nos dizer que
não basta desvelar os dispositivos de controle, exclusão e dominação que
os atravessam para que esse sofrimento ganhe sua potência política; é fun-
damental construir a história de suas linhas de fuga. (DELEUZE; GUATTARI,
1996; DONZELOT, 1986) Afinal, se algo caracteriza os movimentos juvenis
inseridos nos processos de exclusão e marginalização, é também sua ca-
pacidade de transformar o estigma em emblema, quer dizer, fazer operar
como signo contrário as qualificações negativas que lhes são imputadas.
(REGUILLO, 2002)

“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO” 259

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Para que as insurgências e as rebeliões juvenis não se afirmem ape-
nas como uma forma degradada de vingança diante da demanda urgente
de justiça e, desse modo, mais geradora de ódio e de desconfiança, será
necessário que ampliemos suas conexões, seus agenciamentos coletivos.
Uma primeira condição para que o hiper-realismo opere como “in-
surreição” é a de ser escutado mais além do que em um processo “psíquico”
ou “psicossocial” que afeta os adolescentes privados de liberdade, mas em
seu duplo “laço político”: como lugar-cruzamento de técnicas de si e técni-
cas políticas e como dimensão que afeta a todos, e não apenas aos jovens,
porque fala dos limiares em que a vida está colocada.
O confronto com a lei engendra-se pela produção dos sentidos, pela
“produção da verdade”; é um ponto nevrálgico das operações de poder,
como já sugeriu Foucault (2008, p. 25). Assim, nossas modelizações teóri-
cas participam da luta pela produção dos sentidos.
Em contraposição à criminalização dos corpos insurgentes, à apre-
sentação dos conflitos protagonizados pelos jovens como barbárie e horror,
à constituição do discurso da periculosidade e da patologia dos jovens, e
à produção do medo, trata-se de encontrar outros ângulos analíticos que
abram novos espaços de reflexão e que permitam pensar algumas relações
entre processos políticos, sociais e subjetivos que atravessam vidas cotidia-
nas de adolescentes em espaços sociais de trauma, estigma e perigo.
Assim, não trata-se apenas de pensar a vida como uma instância iso-
lada de suas formas produzidas, atrelada apenas a um Estado protetor do
direito à vida, dessa vida pensada como um fato e separada das formas que
ela reveste. Por isso seria preciso que a ideia de cidadão, ou de homem, ou
de direitos humanos, sofresse um alargamento em direção a toda essa va-
riação de formas de vida de que uma biopolítica, como sentido de potência
da vida, deveria poder encarregar-se. (PELBART, 2000, p. 28)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de continuar a contribuir com essa discussão, sinali-
zo a necessidade de realização de outros estudos, a fim de repensar as prá-
ticas sociais e institucionais na constituição de produção e/ou reprodução
dos efeitos de mecanismos de poder visíveis ou invisíveis do processo de
objetificação dos sujeitos privados de liberdade.

260 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 260 29/08/2019 06:33


Sendo assim, lançados na impossibilidade, esses jovens acentuam a
provisoriedade e a vida.

Constroem territórios subjetivos a partir das próprias linhas de


escape a que são impelidos, ou dos territórios de miséria a que
foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são ca-
pazes de transformar seus fiapos de vida em momentos de deses-
pero coletivo. (PELBART, 2003, p. 32)

Os adolescentes em confronto com a lei operam, assim, uma rever-


são da tanatopolítica ao construírem modos de resistência e de subjetivação
ancorados na potência da vida. São “sujeitos impossíveis e insuportáveis
para a manutenção do poder, na medida em que desvelam e desmontam a
conjuntura dominante, pois no centro de seu movimento está subjacente o
querer viver”. Cabe esclarecer: não a vida como projeto – aquilo a que esses
jovens são sistematicamente demandados, seus “projetos de vida” –, mas a
vida como potência, como microfísica do poder.

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“BICHO SOLTO, SUJEITO PRESO” 261

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 261 29/08/2019 06:33


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Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 262 29/08/2019 06:33


LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO
DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA NO CONTEXTO
DOS ANOS 1980, NARRADOS NO FOLHETO VIDA DO
PROFESSOR, DE ANA MARIA DE SANTANA
Gilmário Brito
Jaqueline Oliveira

INTRODUÇÃO
Considerando com Brito (2009) que o folheto de cordel é um gêne-
ro de poesia popular impresso no qual se articulam várias linguagens que
podem contribuir para organizar leituras de modos de vida e veiculação
dos processos cotidianos que tratam de diversas temáticas e insurgências
constitutivas da cultura popular, neste artigo vamos apresentar e analisar
as lutas e reivindicações de professores e experiências de alfabetização de
adultos no interior da Bahia no contexto dos anos 1980, narrados no folhe-
to A vida do professor, de Ana Maria de Santana.1
A coleção de folhetos de autoria da referida professora foi loca-
lizada no acervo de literatura de cordel da Fundação Cultural da Bah-
ia como atividade de pesquisa do Grupo de Estudo Educação, História,
Cultura e Linguagens (GEHCEL), que realizou levantamento e classifica-
ção por temas folhetos relacionados ao objeto da pesquisa. As leituras e

1 O texto resulta da pesquisa Histórias de poetas e memórias de leitores de folhetos de cordel da EJA
de escolas do município sobre o cotidiano de Salvador entre 1940 a 1960 e do plano de trabalho de
iniciação científica realizado por Jaqueline Maria Santana Oliveira, desenvolvido no GEHCEL
sob orientação e coordenação do professor Gilmário Moreira Brito.

263

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 263 29/08/2019 06:33


consultas sobre essa poetisa no acervo da referida fundação indicam que
foi a única poetisa da Bahia que escreveu e publicou folhetos nos anos
1980. Buscando estabelecer diálogos com moradores de Salvador, narrou
temáticas relacionadas à urbanização, à propaganda de casas comerciais
e, principalmente, à “vida do professor”, apresentando aspectos de sua
experiência como professora alfabetizadora e poetisa atenta às lutas da
sua categoria na década de 1980.
Assim, analisar as lutas de professores e experiências de alfabetiza-
ção de adultos a partir desse folheto significa enfrentar, “jogar luz” sobre
uma nova forma de enfocar os sujeitos, privilegiando suas experiências nar-
radas em poesia. Esta opção metodológica se afasta de uma abordagem da
historiografia que privilegia os grandes acontecimentos e fatos históricos
que enfocam ações colonizadoras e heroicas narradas a partir de registros
e documentos oficiais, tomados como única referência na elaboração da
história, para se aproximar de concepções epistemológicas propostas pela
história social.
Recorrer a esta fonte de memória, registro impresso de experiên-
cias, suporte de práticas sociais e meio de comunicação constituiu-se em
preocupação de poucos historiadores brasileiros. Localizamos dois autores
que publicaram livros importantes em distintos períodos utilizando a lite-
ratura oral e de folhetos de cordel como fonte para a escrita da história no
Brasil: Calmon (1947), com A história do Brasil na poesia do povo, e Curran
(1998), com A história do Brasil em cordel.
Mas a literatura de folhetos recebeu atenção de estudiosos que,
preocupados com hábitos, valores e mentalidade dos “pobres”, voltaram
atenções para “pressões” jogadas sobre os costumes e as tradições de cul-
turas populares. Observando os conflitos entre a transmissão oral e a alfa-
betização na Inglaterra, Thompson (1998, p. 13) considerou que “o povo
estava sujeito a pressões para ‘reformar’ sua cultura segundo normas vindas
de cima, a alfabetização suplantava a transmissão oral, […] pelo menos, era
o que se supunha”, mas é preciso considerar que tal presunção necessitava
enfrentar as insurgências e “resistências teimosas” das tradições de oralida-
de mediadas pelo povo.
Nas pesquisas sobre cultura popular para investigar a atuação, in-
surgências e mediações de grupos populares na Europa dos séculos XVIII

264 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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e XIX publicadas nos livros O queijo e os vermes, de Ginzburg, El “descubri-
miento” de la cultura popular, de Burke, e O povo por escrito, de Bollème, os
autores apontam a importância da literatura de folhetos usada como fonte
para compreender as inter-relações culturais. Se Ginzburg (1987, p. 15-34)
nos faz reelaborações de ideias e crenças advindas do cruzamento entre
cultura escrita e cultura oral, chamando atenção para a complexidade dos
procedimentos de leitura/audição de textos por sujeitos portadores de uma
tradição de oralidade e para o terreno de relações e migrações culturais,
o texto de Burke (1984, p. 86-92) nos coloca no interior de um sugestivo
debate em relação à cultura popular, enquanto Bollème (1988) nos impele
a questionar as utilizações de popular como engajamento em um discurso
político.
De acordo com Brito (2009), os folhetos de cordel podem ser usa-
dos tanto como mídia quanto como suporte de relações sociais, nas quais
podem ser encontradas evidências para a história, porque possibilitam o
estabelecimento de inter-relações com diferentes atores sociais. Isso sig-
nifica que esta expressão artística nasce da fala de pessoas comuns, que
rememoram suas histórias através da oralidade e de suas narrativas para
afirmar a própria existência. Portanto, o folheto da literatura de cordel é
um suporte impresso no qual se expressam a linguagem corporal, escrita e
da voz para se tornar um veículo de comunicação literária, através do qual
poetas expressam seus modos de ver e se situar no mundo e sobre a reali-
dade social e cotidiana.
Porém, é imperioso notar que Luyten (1984, p. 20) considera que
esse tipo de manifestação popular se realiza apenas de forma oral, porque
é um tipo de comunicação que, “na realidade, significa a troca de informa-
ções, experiências e fantasias de analfabetos ou semiletrados para seus se-
melhantes”. É claro que esta abordagem empobrece os sentidos do folheto
que, entre outros significados, veicula narrativas poéticas de forma impres-
sa relacionadas ao universo cultural de compradores, mas também pode se
constituir em um novo suporte de leitura e de aprendizagem tanto no sen-
tido do letramento quanto da alfabetização. Nesse sentido, leituras atentas
e contextualizadas de folhetos possibilitaram a apreensão de problemas
sociais, culturais e políticos presentes em narrativas poéticas dos folhetos.
A esse respeito, a poetisa Ana Maria de Santana narra em seus versos as-

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 265

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pectos peculiares tanto sobre suas experiências e práticas docentes como
movimentos sociais presentes em Salvador na década de 1980, inerentes
à mobilização e às lutas de professores, sua categoria profissional, como
veremos a seguir.

O FOLHETO A VIDA DO PROFESSOR, DE ANA MARIA DE SANTANA:


MEMÓRIAS DOS PROFESSORES E RELAÇÕES DEMOCRÁTICAS E
DIALÓGICAS PARA FORMAR ALUNOS CRÍTICOS E AUTÔNOMOS
A vida do professor é um dos folhetos de autoria de Ana Maria
de Santana, o qual narra aspectos de sua experiência como professo-
ra alfabetizadora de adultos na zona rural do município de Alagoinhas,
Bahia, e informa sobre lutas dos professores pela regulamentação da sua
categoria profissional da educação no estado. Inserida no contexto das
lutas pela redemocratização do país na década de 1980, traz questões
enfrentadas pelos movimentos dos professores que, entre outros pontos
de pauta, reivindicavam reposição salarial, implantação do piso nacional
e aposentadorias dignas para o trabalho docente. No folheto, a autora
apresenta uma estrutura poética de sete versos em cada estrofe e utiliza
métricas e rimas para se dirigir a seu público leitor, provavelmente cole-
gas e alunos.
Para compreender as concepções de educação apontadas no folhe-
to, recorremos ao conceito de educação proposto por Brandão (1985), que
o concebe como resultado de todo conhecimento adquirido na vivência em
sociedade que é plural e, portanto, não existe um único modelo de educa-
ção, que também não se restringe apenas ao espaço escolar. A esse respei-
to, Libâneo (2002) define a educação como “fenômeno plurifacetado”, que
ocorre em muitos lugares e modalidades, institucionalizadas ou não.

Em várias esferas da sociedade surge a necessidade de dissemi-


nação e internalização de saberes e modos (conhecimentos, con-
ceitos, habilidades, hábitos, procedimentos, crenças, atitudes),
levando a práticas pedagógicas. Mesmo no âmbito da vida pri-
vada, diversas práticas educativas levam inevitavelmente a ativi-
dades de cunho pedagógico na cidade, na família, nos pequenos
grupos, nas relações de vizinhança. (LIBÂNEO, 2002, p. 27)

266 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Nesse sentido, a educação se associa a processos inseridos nas rela-
ções sociais, na comunicação e nas inter-relações pelas quais os membros
de uma sociedade trocam saberes, habilidades, técnicas e atitudes existen-
tes no meio culturalmente organizado para, com isso, reelaborar as condi-
ções necessárias para produzir novos significados para os saberes e valores.
Nesse sentido, jovens e adultos reelaboram de forma constante e dinâmica
suas variadas experiências.
Naquele contexto de lutas e de reivindicações, os educadores de-
fendiam ações para democratizar a gestão e promover mudanças na orga-
nização do sistema educacional. Segundo Cunha (2010), a democracia é um
método ou conjunto de regras, de procedimentos para constituição de um
governo e para decisões políticas. O processo de retomada e de construção
da democracia no Brasil, após o regime civil e militar brasileiro de 1964,
ganhou uma nova dinâmica a partir do início da década de 1980, que vai
receber ancoragem institucional, ou seja, sua base legal na Constituição de
1988. Neste período, o país vivenciou um dos momentos mais decisivos e
importantes da sua história.
A Constituição Federal de 1988 delegava à União, aos estados, ao
Distrito Federal e aos municípios a responsabilidade de organizar os siste-
mas de ensino de forma colaborativa. Isso implicou em mudanças na admi-
nistração e na organização do sistema educacional, cuja responsabilidade
cabia agora à União, que também se incumbia de atender, financeiramente
e de forma técnica, os estados e municípios. A estes cabia atuar de forma
conjunta, tendo em vista proporcionar tanto a obrigatoriedade da escolari-
dade como um ensino de qualidade.
Neste contexto, o folheto A vida do professor, de Ana Maria de San-
tana, se ocupa de registrar na forma de narrativa poética esse momento
de efervescência política do país e de apresentar as barreiras a ser trans-
postas para alcançar uma educação de qualidade com foco voltado para
aprendizagem dos sujeitos. Em sua narrativa, a poetisa joga ênfase sobre a
luta árdua dos professores interessados em proporcionar um aprendizado
significativo articulado à realidade dos alunos que viviam em condições de-
ploráveis. Na condição de integrante da categoria dos professores, defendia
uma escola pública que fosse agente de transformações e não reprodutora
das concepções de educação do sistema capitalista.

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 267

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Nesse sentido, é possível observar que, para esta autora, o profes-
sor deve conduzir o processo de mediação formulando questionamentos
aos alunos para instigá-los a refletir a partir de sua inserção na sociedade,
a fim de que possam ser estimulados a pensar de forma crítica e autônoma
no processo de ensino e aprendizagem. Nesta conduta, o educador deve
promover uma ruptura com as amarras e os mecanicismos de poder as-
sentados em paradigmas tradicionais, para não se colocar no processo de
mediação de conhecimentos como o único portador de conteúdo capaz
de transmiti-lo a alunos destituídos de saberes e tratados como tábulas
rasas. Esta perspectiva nega os procedimentos de uma educação bancária
na qual o professor é o depositante e os alunos são meros depositários,
para afirmar uma educação dialógica mediante a qual os sujeitos envolvidos
constroem juntos os caminhos através da reflexão crítica. É notório que as
concepções educacionais de Paulo Freire ajudam a dialogar com a narrativa
de Ana Maria, principalmente quando enfatiza a importância das relações
afetivas incorporadas na didática do professor e no lugar que este assume
diante dos alunos e do mundo.

III
O professor é um ente
Que tem uma condição
Com todo afeto e carinho
Do fundo do coração
Devotamente, alma pura
Ensina uma criatura
Cumprindo a sua missão.
(SANTANA, 1980, p. 1)

Nesta estrofe, a poetisa dedica ao docente o lugar de um ser espa-


cial: “O professor é um ente”, ou seja, um ser que, além de ser uma pessoa
com significado, em sua acepção, tem a missão educativa de construir ca-
minhos para autonomia de sujeitos inseridos na construção da cidadania,
porque o ente “tem uma condição”. Uma condição que a cordelista sig-
nifica como constitutiva do trabalho que o professor realiza mobilizando
sentimentos de “afeto e carinho”, além de uma forma de mediação do co-

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nhecimento que vem do “fundo do coração” e lhe orienta cumprir “a sua
missão”, isto é, seu grande ofício de “alma pura”.
Os significados atribuídos aos professores podem ganhar dimen-
sões ainda mais profundadas, quando se analisa de forma sistemática quais
são os resultados dos sentidos atribuídos ao mestre na vida dos sujeitos.
Os sentidos da condição de professor podem ser entendidos de acordo com
a concepção de Arendt (2007, p. 15), quando sugere que três atividades fun-
damentais regem a condição humana na terra: o labor, o trabalho e a ação.
Destes, o trabalho merece destaque porque, de acordo esta abordagem, é
concebida de forma artificial pelos homens, ou seja, está intimamente re-
lacionado com a produção e a existência das pessoas que estão no mundo.
Ainda a esse respeito, Arendt (2007, p. 15) sugere que

O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da exis-


tência humana, existência esta não necessariamente contida no
eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compen-
sada por este último. O trabalho produz um mundo artificial de
coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Den-
tro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse
mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas in-
dividuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.

A perspectiva apontada por esta autora indica que a “condição” do


trabalho do professor é constituinte de sua condição ontológica, porque é
produzido para o mundo e está estritamente atrelado à produção da exis-
tência de sua vida e da vida de outros sujeitos.
No decurso da narrativa a poetisa mostra que a condição do pro-
fessor vai recebendo novas demandas que historicamente vão sendo incor-
poradas à condição específica do trabalho, desafiando-o a enfrentar novas
relações, abordagens, tecnologias e mediações para mostrar as qualidades
necessárias para manter atividades pedagógicas dinâmicas e contextuali-
zadas no exercício profissional. Mas os desafios e atitudes evocadas pela
autora para o professor perdem a aura específica da dimensão instrumental
para ser regida pelo amor à profissão, menos pelo significado romântico
de educação e mais pelo compromisso político de propor diálogos com
educandos capazes de situá-los no contexto e nas relações de poder a que

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 269

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 269 29/08/2019 06:33


estão inseridos, para decidir de forma autônoma a importância da cidada-
nia em seu estar no mundo.
A esse respeito, importa refletir sobre a coerência do professor in-
teressando em uma educação democrática, articulando-a em um posiciona-
mento “político-pedagógico” que, de acordo com Feire (1996, p. 45),

Deve fazer parte da nossa formação discutir quais são estas quali-
dades indispensáveis mesmo sabendo que elas precisam ser cria-
das por nós em nossa prática, se nossa opção político-pedagógica
é democrática ou progressista e se somos coerentes com ela.
É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes
como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade,
gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura do novo, disponibi-
lidade à mudança, persistência na luta, recusa ao fatalismo, iden-
tificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a
prática pedagógica-progressista que não se faz apenas com ciên-
cia e técnica.

Em sua abordagem, Ana Maria também mostra o caminho reali-


zado pelo que “ensina uma criatura”, “cumprindo a sua missão”, quando
evoca o compromisso quase sagrado de estender atividades pedagógicas
ao interior da zona rural. Nesse sentido, embora recorra ao conceito de
“missão” – uma tradição de evangelização realizada no interior da Bahia,
inclusive em Alagoinhas, pelos capuchinhos desde os séculos XIX e XX,
que possivelmente tem muitos significados nas memórias de moradores
da região –, a proposta da poetisa é provocar os recursos mnemônicos
das lembranças para identificar os modos de viver e sentir de educandos
da zona rural.
A esse respeito, Freire (1996, p. 45) sugere que a prática pedagó-
gica engajada necessita estar pautada na opção político-pedagógica do
professor, ser movida pelas relações de respeito entre professor e aluno
que priorizem o desenvolvimento cognitivo, sensorial, motor e criativo dos
sujeitos. São diversas as possibilidades de práticas pedagógicas nas quais
o docente interessado em ações democráticas pode, em um processo dia-
lógico, mediar atividades que proporcionem ricas experiências para serem
exploradas no processo de ensino-aprendizagem.

270 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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A VIDA DO PROFESSOR: REGISTRO DAS LUTAS DOS PROFESSORES
POR SALÁRIOS, RECONHECIMENTO PROFISSIONAL E
REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS NO CONTEXTO DA DÉCADA DE 1980
No contexto das lutas pela redemocratização do país na década de
1980, a poetisa, mulher e educadora, mostrou seu engajamento na frente
de luta dos professores e deixou clara sua reflexão sobre a situação da edu-
cação no estado da Bahia:

V
Salário de professor
Eu torço que seja igual
Que esteja tudo em dia
Isto não faço por mal
Pois perante a disciplina
Esta missão é divina
Coisa quase sem igual.

VI
Um professor bem merece
Ser por todos respeitado
Assim cumpra seu dever
E não seja descuidado
Não desfaço dos demais
Que qualquer seja capaz
E saiba dar o seu recado.
(SANTANA, 1980, p. 2)

Ao se referir ao salário do professor, a poetisa em sua narrativa re-


gistra e avalia a discrepância existente entre os salários dos docentes que
exercem atividades em diferentes níveis: “Salário de professor/ Eu torço que
seja igual”, mostrando que na década de 1980 não existia uma equidade
quando se refere aos valores recebidos pelos professores.
Para acompanhar a repercussão da discussão sobre as condições
salariais e trabalhistas dos professores, recorremos ao Diário de Notícias de
21 de março de 1981. A matéria apresentava uma pauta sobre as reivindi-

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cações dos professores inseridas em uma campanha salarial que reivindica-
va, além do reajuste salarial, dignidade e valorização do trabalho docente
na Bahia,

As principais reivindicações dos professores da rede pública esta-


dual são: Piso salarial, […] regularização e aplicação total e imedia-
ta do Estatuto do Magistério, Redução da carga horária por tempo
de serviços sem prejuízos de vencimentos, reajuste salarial de 50%
a partir de janeiro. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 21 mar. 1981)

Como mostra este fragmento da matéria, os professores de Salva-


dor e do interior da Bahia lutavam para assegurar o pagamento salarial de
acordo com o piso nacional – um valor mínimo que deveriam receber por
jornada de trabalho –, já que os vencimentos eram diferenciados, depen-
diam da natureza do contrato e do vínculo trabalhista estabelecido com o
ente da Federação: estado ou municípios. Neste contexto, era raro o mu-
nicípio que pagava aos professores um salário equivalente ao estabelecido
como piso nacional. Assim, era flagrante que os governantes da Bahia reali-
zavam profunda desvalorização e deixavam de reconhecer a importância do
trabalho dos professores para a educação do estado.
Para garantir que o piso fosse implantado e beneficiasse toda a clas-
se dos professores, a bandeira levantada pela Associação dos Professores
Licenciados da Bahia (APLB) era sua regulamentação. Para regulamentar o
piso, foi de fundamental importância a aplicação integral e imediata do Es-
tatuto do Magistério até a década de 1980, quando os professores da Bahia
exerciam a profissão sem proteção jurídica, ou seja, sem o reconhecimento
institucional e formal do estado.
A consulta ao Diário de Notícias ajuda a perceber que, na conjuntura
de 1980 atravessada por reivindicações e lutas contra a ditadura civil-mili-
tar, a APLB também conseguiu de forma organizada assegurar a mobilização
e a participação dos profissionais na Bahia que reivindicavam respeito e
valorização profissional e dos professores da rede pública estadual.
Atenta ao contexto, Ana Maria aborda em sua narrativa questões
que pulsam nos debates da categoria para dar ênfase à falta de reconheci-
mento expresso na questão salarial, como o desrespeito à categoria profis-
sional dos professores, reforçando a concepção de que “Um professor bem

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merece/ Ser por todos respeitado”. É muito provável que “todos” seja uma
referência, entre outras autoridades, também ao governador da época que,
nesse período, era Antônio Carlos Magalhães, um político que mantinha
estreitas ligações com os militares.
Apesar da grande mobilização e da luta dos professores da Bahia
durante décadas para garantir um estatuto que regulamentasse a profissão,
isso só foi efetivado pela Lei nº 8.261, publicada em 29 de maio de 2002.
Considerando que estamos vivendo em 2018 a desmontagem de leis que
significaram conquistas históricas de vários grupos da sociedade brasileira,
vamos apontar rapidamente algumas conquistas consubstanciadas pela le-
gislação do Magistério na Bahia, especialmente no artigo 2, que institui “O
exercício do magistério, fundamentado nos direitos primordiais da pessoa
humana”, e seus parágrafos, que estabelecem os seguintes princípios: I –
“liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o saber produzido pela socieda-
de, através de um atendimento escolar de qualidade”; II – “crença no poder
da educação que contemple todas as dimensões do saber e do fazer no pro-
cesso de humanização crescente e de construção da cidadania desejada”;
III – “reconhecimento do valor do profissional de educação, asseguradas as
condições dignas de trabalho e compatíveis com sua tarefa de educador”;
IV – “garantia da participação dos sujeitos na vida nacional, no que diz
respeito ao alcance dos direitos civis, sociais e políticos”; V – “promoção
na carreira”; VI – “gestão democrática fundada em decisões colegiadas e
interação solidária com os diversos segmentos escolares”; VII – “conjunção
de esforços e desejos comuns, expressos na noção de parceria entre escola
e comunidade”; VIII – “qualidade do ensino e preservação dos valores regio-
nais e locais”. (BAHIA, 2002)
Ainda assim, é importante ressaltar que somente nos incisos III e IV
do parágrafo 2º são descritas as leis de valorização e reconhecimento da
classe dos professores – mais de 20 anos depois de pautadas como prin-
cipais reivindicações da categoria. Tal regulamentação ainda é objeto de
debate da categoria no sindicato da APLB, que ainda luta para ampliar con-
dições salariais que dignifiquem o trabalho da classe e seu reconhecimento
pelos governantes da Bahia.
Mas, é importante ressaltar que, se o contexto dos anos 1980 era
de embates e desafios, a categoria dos professores aproveitou esta onda

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de mobilização para enfrentar mazelas relacionadas ao processo de organi-
zação sindical, e provocou um debate que permeia uma nova consciência
do trabalho educativo. A esse respeito, Cabrera e Jáen (1991, p. 196) consi-
deram que houve transformações importantes no trabalho educativo, que
levou o professorado a dar ênfase e “subscrever compromissos de classe e
incorporar-se ativamente às dinâmicas autenticamente transformadoras da
sociedade, por sua vinculação de classe com o proletariado”.
Voltando ao recorte da matéria publicada no Diário de Notícias de
1981, outra reivindicação da classe era “a redução da carga horária por tem-
po de serviços sem prejuízos de vencimentos”, o que sinaliza a insatisfação
dos professores com longas jornadas de trabalho, nas quais não eram in-
corporadas atividades pedagógicas exercidas dentro e fora da sala de aula.
Se essas questões já eram evocadas desde a década de 1980, somente de-
zesseis anos depois da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), pautada na Constituição de 1988, o professor de ensino fundamental
e médio teve a carga horária regulamentada.2
Assim, a jornada de trabalho do professor foi estabelecida com uma
carga horária de 40 horas semanais, incluindo-se as Atividades Complemen-
tares (AC), que possibilitam acrescentar ao trabalho pedagógico a organiza-
ção e o planejamento de atividades coletivas e individuais.
A narrativa do folheto Vida do professor expõe tanto o processo de
desvalorização do trabalho do professor naquele contexto como provoca
aos representantes políticos a atribuir maior visibilidade e respeito para
essa categoria. É importante ressaltar que o folheto de cordel, como veí-
culo de comunicação, consegue apreender e expressar, em uma época de
efervescência política de movimentos sociais, as reivindicações dos profes-
sores frente a uma democratização no âmbito educacional através de uma
professora e poetisa.
Nos últimos versos a poetisa chama para discussão de forma indire-
ta o grupo dos professores que se sentem instigados com essas questões:
“Não desfaço dos demais/ Que qualquer seja capaz/ E saiba dar o seu re-

2 “Art. 24º. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo
com as seguintes regras comuns: I – a carga horária mínima anual será de oitocentas horas,
distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo
reservado aos exames finais, quando houver”. (BRASIL, 1996)

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cado”, provocando-os tanto a aprimorar suas competências e habilidades
intelectuais para se manterem atualizados na mediação dos diálogos com
os saberes dos educandos, como para participar e transmitir de forma ativa
e significativa sua mensagem política para fortalecer a luta da classe dos
professores e se aproximar da palavra de ordem defendida pela direção da
APLB como referência a ser incorporada pelos professores da rede estadual.
Nesse sentido, ao afirmar o interesse para “dar o seu recado”, Ana Maria
tanto convida toda a classe para discutir essas questões como chama a cate-
goria para mostrar a indignação e as reivindicações às autoridades da Bahia.

A VIDA DO PROFESSOR E AS EXPERIÊNCIAS DA PROFESSORA


ANA MARIA DE SANTANA NA ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS DA
ZONA RURAL DE ALAGOINHAS
O folheto A vida do professor, além de manter uma narrativa atenta
à conjuntura dos anos 1980, prenhe de reivindicações de movimentos so-
ciais, inclusive dos professores e de lutas pela redemocratização do país, a
poetisa insere em sua narrativa, nas estrofes VIII e IX, relatos da experiência
de ser professora de adultos na zona rural, exercendo o ofício como alfabe-
tizadora de senhoras do entorno de Alagoinhas:

VIII
Aqui, prezado leitor
Deixo uma parcela agora
Para falar do passado
Daquela escola de outrora
Quando eu alfabetizava,
Muita vez até pegava
Na mão de alguma senhora.

IX
Ana sei que não aprendo
Sinto o dedo endurecer
Tenha calma gente boa,
Porque querer é poder
E ninguém nasce sabendo

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Atenção estou querendo
E você vai entender.
(SANTANA, 1980, p. 3)

Conjugando reflexões daquele contexto às memórias vividas, esses


versos evocam momentos cuidadosamente guardados na memória por Ana
Maria, porque se referem a suas experiências como alfabetizadora de adul-
tos. Ao falar “daquela escola de outrora”, ela recorre à imagem, a um tipo
de arranjo escolar que, tanto na estrutura física quanto curricular, já não
fazia parte do formato institucional e pedagógico da escola em que traba-
lhava, mas se trata de um momento vivenciado e atualizado pelas lembran-
ças do poetisa: “Quando eu alfabetizava/ Muita vez até pegava/ Na mão de
alguma senhora”.
Considerando que a experiência e a sensação de manusear um lápis
é uma habilidade treinada durante anos, começa em casa e se prolonga por
vários anos do percurso escolar até adquirir a competência cursiva, mediar
atividades de leitura e de escrita para senhoras, possivelmente mulheres
pouco jovens, cujo contato com atividades em sala de aula e com materiais
e tecnologias pedagógicas era muito reduzido ou inexistente, deve ter sido
uma tarefa que requereu muita paciência e persistência de Ana Maria, des-
de os exercícios finos até a conquista da leitura e da escrita. Dito de outra
forma, a aquisição da competência da escrita requer o desenvolvimento da
coordenação motora fina no processo de aprendizagem dos alunos. Ferrei-
ro (2001) considera que a etapa dos primeiros rabiscos sobre o papel cons-
titui o nível pré-silábico, se caracteriza por uma escrita espontânea, mas é
uma atividade mediada pelo professor.
A poetisa começa com o verso “Deixo uma parcela agora”, talvez se
reportando aos leitores, provavelmente ex-alunos ou pessoas que partilha-
vam o seu trabalho de alfabetização. Na condição de professora dessa mo-
dalidade de ensino, num contexto dos anos 1950 a 1960, no qual ainda era
recorrente a utilização no interior da Bahia e do Nordeste de cartas de ABC
e de cartilhas na aprendizagem de moradores das zonas rurais, a poetisa vai
recorrer à proximidade sonora com a oralidade e aos versos rimados do cor-
del como método para alfabetizar as senhoras a partir dos primeiros traços.

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É importante ressaltar que o processo de aprendizagem registrado
no folheto de Ana Maria resulta da mediação de saberes entre sujeitos por-
tadores de culturas diferentes, e as mudanças ocorrem a partir das inter-
-relações culturais de professora e senhoras/alunas estabelecendo diálogos
nas práticas de alfabetização.
Nesse sentido, Vygotsky (2001) afirmaria que o ser humano se cons-
titui como sujeito a partir da sua interação social com o mundo e lhe pos-
sibilita se mostrar na comunicação com os outros, de entender e se fazer
entendido. Ao recorrer ao folheto como suporte para mediar a aprendiza-
gem, as práticas da poetisa e da professora trabalham com uma noção de
educação direcionada para transformações e mudanças dos conhecimentos
e saberes das senhoras/alunas da zona rural que não tinham habilidade com
o lápis para o desenvolvimento da escrita.
A proximidade que adquiriu com as senhoras/alunas nas atividades
de leitura, decodificação e interpretação do código escrito foi também
uma oportunidade que a professora encontrou de inseri-las em uma so-
ciedade grafocêntrica normatizada pela linguagem escrita, já que as edu-
candas, em sua maioria, eram trabalhadoras, moradoras da zonal rural. É
notável que a poetisa traga nas memórias do seu percurso laboral a res-
ponsabilidade de transformação e mediação no processo de alfabetização
das senhoras/alunas que foram marcadas pelas raízes da desigualdade e
da marginalização social.
Na estrofe IX a poetisa incorpora o diálogo com uma aluna expres-
sando a sua dificuldade no encontro com a escrita: “Ana sei que não apren-
do/ Sinto o dedo endurecer”, a poetisa logo lhe responde: “Tenha calma
gente boa/ Porque querer é poder/ E ninguém nasce sabendo/ Atenção es-
tou querendo/ E você vai entender”. Nos versos a professora se ocupa em
mostrar que o processo de alfabetização acontece de forma processual e
gradativa envolvendo o interesse e a vontade do educando de construir o
seu próprio caminho no percurso da escrita.
A resposta da professora Ana Maria à sua aluna não mostra apenas
sua vontade de ensinar; revela também que existe uma crença na prática
pedagógica como agente de transformação social dos sujeitos. Nesse senti-
do, compreendemos que utilizava uma concepção ideológica da pedagogia
que se aproxima da abordagem proposta por Paulo Freire, especialmente

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quando destaca a importância da prática pedagógica mediada por ações
dialógicas capazes de estabelecer trocas constantes entre educadores e
educandos a partir das suas referências culturais e do contexto social e
político.

O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para


refletir sobre sua realidade tal como a fazem e refazem […]. Atra-
vés do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sa-
bemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a
realidade […]. O diálogo sela o relacionamento entre os sujeitos
cognitivos, podemos, a seguir, atuar para transformar a realidade.
(FREIRE; SHOR, 2000, p. 64)

Assim, é no sentido proposto por Freire (1987, p. 45) – “se não amo
o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível
o diálogo” – que Ana Maria assume o lugar de atenção às condições de
marginalização e de exclusão do acesso de uma cultura escrita a que foram
submetidas as alunas/senhoras, tentando alimentar diálogo que envolve
a oralidade no cuidado afetivo e as tentativas de promover desbloqueios
manuais “da coordenação fina” que puseram limites corporais a elas. A de-
dicação, o empenho e o cuidado nutridos pela poetisa fazem parte dos
princípios de amorosidade capazes de romper com a ignorância, a aliena-
ção e possibilitar às educandas a transformação pelo conhecimento.
No folheto A vida do professor, a poetisa esclarece que o seu primeiro
contato com as senhoras/alunas foi realizado em curso de semelhante ao
EJA, atualmente denominado de Educação de Jovens e Adultos, uma modali-
dade de ensino que possibilita a trabalhadores que não puderam terminar a
escola continuar os estudos em turnos flexíveis a sua condição de trabalho.
Para situar a importância da alfabetização de adultos no contexto
de 1980, recorremos ao Censo Demográfico. O IBGE demonstra a que a
taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade no Brasil na
década de 1980 era de 25,5% da população. Mas é importante ressaltar que
o processo, as políticas e programas de alfabetização de adultos no Brasil
passaram por mudanças radicais referentes às concepções epistemológicas
e políticas desde o processo da redemocratização, notadamente sobre o
lugar que o educando deve assumir como sujeito importante no processo

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de ensino-aprendizagem, ao estabelecer relações dialógicas com o educa-
dor, tendo em vista partir de saberes prévios para a construção de novos
conhecimentos.
Em seu percurso como alfabetizadora, Ana Maria narrava o seu es-
forço em visualizar os primeiros rabiscos de suas alunas e a vontade de que
elas explorassem o mundo da escrita valorizando as suas bagagens cultu-
rais. A proposta dialógica para o ensino que identifica o professor como
mediador no ensino e aprendizagem foi reforçada nos anos 1980 pelas
professoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky (2008). Ambas provocaram as
concepções pedagógicas relacionadas ao processo de alfabetização mais
referendado pela escola brasileira ao sugerirem uma concepção diferencia-
da, na qual o professor passa a ser mediador na aprendizagem dos sujeitos,
reportando-se aos alunos como sujeitos cognoscentes. Assim, o professor
precisa conhecer o nível de conhecimento de cada aluno para trabalhá-lo
de forma significativa.
Naquele contexto, ainda eram recorrentes concepções tradicionais
e conservadoras sobre a alfabetização. Utilizavam-se cartilhas que traziam
métodos prontos com ênfase no aprendizado das letras-sílabas-palavras-
-texto. Esta metodologia centrava-se em dois pilares: a forma como os
alunos deveriam aprender, e não naquilo que eles já sabiam, e no poder
hierárquico do professor, que possuía a última palavra e detinha a verdade
sobre o ensino dos acontecimentos.
A escola regular foi organizada, durante muito tempo, tomando
como referência o currículo tradicional, cujo conteúdo baseado nas disci-
plinas ficava sob a responsabilidade do professor, que raramente se preocu-
pava com as experiências e saberes dos alunos ou da forma como estavam
inseridos no contexto social. Os métodos de ensino privilegiavam a soletra-
ção e a memorização como forma de reproduzir o conhecimento codificado
na linguagem escrita, muitas vezes distante da realidade vivenciada por
muitos alunos.
Na sua experiência como professora da rede municipal em Salva-
dor, Ana Maria percebeu na sala de aula as dificuldades encontradas pe-
los alunos para compreender plenamente os textos narrados em prosa nas
cartilhas e os textos disponíveis nas escolas em que trabalhava, e resolveu
utilizar sua habilidade poética para elaborar folhetos da literatura popular

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 279

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com rima, verso curto e sonoridade de temáticas relacionadas ao universo
cultural deles.
Ao que parece, a poetisa tentava se aproximar de Freire, que ela-
borou um método de alfabetização de adultos no qual propunha que a lei-
tura de mundo realizada pelos educandos deveria ser considerada como
conhecimento prévio dos alunos relacionado às suas vivências. Ao manter
permanentes reflexões sobre seu método, Freire (1989) considera que a
leitura do mundo precede a leitura da palavra, e ambas são importantes no
processo de alfabetização dos alunos. A primeira é fundamental porque os
alunos, antes de chegar aos espaços formais de ensino, são pessoas com
histórias, experiências e vivências diferentes. Eles trazem para a escola sua
bagagem cultural, que não pode nem deve ser ignorada ou desprezada pe-
los professores.
Naquela condição de alfabetizadora de senhoras/alunas na região
de Alagoinhas, Ana Maria não era apenas uma docente da educação de adul-
tos; ela atuava como mediadora no processo de aprendizagem que buscava
despertar uma consciência crítica a respeito de sua condição sócio históri-
ca, que poderia conduzi-las a assumir seus lugares na sociedade.
Porém, percebemos a complexidade da poetisa em ser professora
de mulheres analfabetas de sua região, pois esse ofício exigiu dela sensibi-
lidade e competência para perceber que o ser humano está inserido em um
mundo complexo, onde a cultura, a razão, o afeto e a vida em sociedade
podem nos conduzir para diversos caminhos da existência.
Os docentes da Bahia têm um grande desafio: aprender com novos
contextos, desconstruir barreiras, respeitar saberes de todas as parcelas da
população mantida à margem do processo educativo, trazer para dentro
da sala de aula as vivências, saberes e experiências que constituem a baga-
gem cultural acumulada pelos alunos trabalhadores. Para isso, educador e
educando precisam participar juntos de um sistema de inter-relações, de
trocas e diálogos que possam contribuir para promover a inclusão social e
contribuir para despertar nos educandos trabalhadores da EJA consciência
crítica do seu estar no mundo.
Nos versos seguintes, Ana Maria narra sobre os locais onde realiza-
va as mediações para as referidas senhoras da zona rural de Alagoinhas. Na
maioria, foram alfabetizadas tanto em fazendas que pertenciam aos senhores

280 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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da região, isto é, a grandes fazendeiros, como em outras pequenas cidades
no entorno daquele município. É perceptível também que ela busca dar
visibilidade ao encanto que sentiu em ter exercido o ofício de alfabetizado-
ra, e do prazer de assumir a responsabilidade de conduzi-las dos rabiscos,
“chuviscos”, até a conquista da escrita formal, mediante a qual chegaram
a ocupar postos profissionais de visibilidade: “Não importa ser rabiscos/
Amanhã diga sem mágoas/ Será toda essa água/ Resultado de chuviscos?”.
Nesse processo, a professora dá continuidade à sua narrativa dando ênfase
ao percurso do seu trabalho como professora, sublinhando que no início
tinha pouca idade, mas contribuiu para a formação profissional e pessoal
de vários alfabetizados.

XI
Doutor, soldado, enfermeira,
Com todos já me encontrei
Eu tinha 16 anos
Quando este cargo enfrentei
Em cada um, amigo
Tenho prazer quando digo:
Gente que alfabetizei.
[…]

XIII
Nasci em Alagoinhas
Vim para o Sul com pouca idade
Comecei a lecionar
Nas fazendas, na cidade.
Preciso me aposentar,
Meu direito quero olhar,
Já tenho bastante idade.
(SANTANA, 1980, p. 4-5)

Assim, na estrofe XI a poetisa demarca os elementos que considera


mais significativos para rememorar a experiência profissional da professora
Ana Maria de Santana. O encontro da poetisa com ela é realizado pela re-
memoração: a poetisa relembra que a missão de alfabetizadora iniciou aos

LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 281

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dezesseis anos, porque a região onde residia era constituída por uma popu-
lação carente, de baixa renda, e a maioria dos moradores eram analfabetos.
No início da narrativa ela afirma que o resultado do seu trabalho
proporcionou seu reencontro de alunos que se tornaram: “Doutor, soldado,
enfermeira/ Com todos já me encontrei”, revelando como e quando iniciou
sua experiência de professora e alfabetizadora: “Eu tinha 16 anos/ Quando
este cargo enfrentei”; “Em cada um, amigo/ Tenho prazer quando digo:/
Gente que alfabetizei”. Ao evocar as lembranças sobre as experiências da
professora, é possível notar que a gênese dos saberes moldados com os
alfabetizados resultou dos “chuviscos”, a partir dos quais organizaram co-
nhecimentos e conquistaram lugares de poder na sociedade. O reencontro
da professora com os educandos bem posicionados parece lhe traduzir um
sentimento, uma crença de que sua dedicação em uma educação transfor-
madora foi capaz de romper com o estado de marginalização e de exclusão
social de alguns.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As memórias evocadas por Ana Maria de Santana em seu folheto
A vida do professor revelam uma alfabetizadora que inicia sua experiência
como professora em espaços não institucionalizados, ou seja, nas fazendas
de grandes proprietários da zona rural e no entorno do município de Ala-
goinhas, enfrentando as dificuldades com o espaço físico, acesso às tecno-
logias pedagógicas e reduzida facilidade de manejo da senhoras/alunas para
ministrar aulas em espaços não convencionais e manter uma rotina flexível
na rotina de trabalho com elas.
Assim, recorre ao folheto de cordel como suporte de relações cul-
turais reconhecido pela professora e pelas senhoras/alunas para colocar em
prática uma concepção de educação dialógica que atravessa as narrativas
de seus folhetos.
Ela compreendia que esta relação só podia ser estabelecida a partir
de trocas de saberes e experiências de vida quando são compartilhadas
entre educadores e educandos. Esta não é uma relação que se estabelece
pala barganha, são permutas pactuadas na divisão de poder e troca de afeto
que existem entre sujeitos flexíveis, que buscam compreender e favorecer

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novas interações e vivências para ampliar nos educandos conhecimentos de
si e dos outros.
Mais do que suas experiências como professora e poetisa, Ana Ma-
ria de Santana também utiliza o folheto como mídia, um meio de comuni-
cação que vai fazer circular e dar visibilidade às reivindicações e lutas dos
professores por reposição salarial, implantação do piso nacional de salários
e, principalmente, reconhecimento de sua categoria profissional, cujo Esta-
tuto só foi homologado em 2002.
Ciente da condição ontológica do trabalho de alfabetizadora, Ana
Maria acreditava que sua missão educativa pudesse contribuir para romper
com a alienação e a subordinação em que se encontravam as senhoras/alu-
nas, mulheres residentes na zona rural de Alagoinhas que, ao participarem
da aquisição da leitura e da escrita a partir de seus lugares e saberes, con-
quistaram no acesso à cultura escrita uma possibilidade de superar as con-
dições precárias de vida, derivadas do restrito acesso à educação formal.
Nesse sentido, a poetisa e educadora nutria esperanças de que as práticas
educativas se tornariam agentes de transformações sociais dos sujeitos na
Bahia na década de 1980.

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jusbrasil.com.br/topicos/10407522/lei-n-8261-de-29-de-maio-de-2002-da-bahia.
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284 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 284 29/08/2019 06:33


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LUTAS DE PROFESSORES E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NO INTERIOR DA BAHIA... 285

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EDUCACIÓN, POESÍA Y PUEBLO
Juan Cepeda H.

¿Qué es la educación?,
continúa siendo una pregunta fundamental;
¿con qué se educa? y ¿para qué se educa?,
son preguntas esenciales
que no deben obviar otras que generalmente
no son tenidas en cuenta:
¿quién educa? y ¿a quién se educa?

Las teorías de la educación


ven en el educador un ente abstracto
sujeto de los conocimientos necesarios
y radicalmente ético,
y ven en el educando
otro ente abstracto
bien dispuesto a aprender
todo lo que se le enseña
independientemente de sus contextos
familiares, intelectuales, sicológicos, sociales.

¡Teorías ilusas!
¡Teóricos ingenuos!
¿Dónde está la antropología íntegra
que sustentará – de base – toda apuesta pedagógica?
En una antropología íntegra
confluyen
saberes propios de la antropología cultural,

287

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de la antropología filosófica,
de la antropología teológica,
de la psicología social,
de la sociología de las culturas,
de la interdependencia pedagogía-política,
y de las didácticas sociocríticas contextuales,
¡por lo menos!

Se sabe que el conocimiento de la lengua


en que se da el acto educativo
también es fundamental,
tanto como las tradiciones literarias
desde las que mitos, leyendas y coplas
ofrecen el marco referencial
a partir de donde se sustenta
el sentido personal,
tanto de quien enseña como de quien aprende.

No se comprende
lo enseñado
por fuera de estos juegos del lenguaje literario,
que solo es literario
para los académicos,
nunca para el pueblo.
En el pensamiento popular
lo mitológico y ancestral
es sentido fundamental
fundamentador
de la existencia socio-personal
en que se vive.
Ya Rodolfo Kusch señaló debidamente
el aporte de la sabiduría ancestral
para la comprensión del sentido existencial
de lo latinoamericano;
y Martin Heidegger
hizo ver en el lenguaje
y, especialmente, en la poesía
la mejor posibilidad de comprensión
de ese sentido ontológico
desde el cual estamos siendo

288 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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todos los seres humanos;
aunque vale aclarar
– para no dejar de verdadear –
que la poesía,
en contextos humildes y populares,
se encarna como simple copla
propia de la tradición oral
que va de boca en boca,
lo que emerge espontáneamente
en el canto de la trova,
tan propia de los campesinos
de uno y otro lugar.

Nos corresponde, pues, estudiar


todo este trasfondo
cultural y popular
que se encuentra a la base
de aquella antropología íntegra
tan necesaria a la hora de enseñar
y de aprender.
¿Cómo esconder
estas verdades profundas
sin las cuales seguiremos
intentando educar
pero sin poder lograr
el arraigo de niños y jóvenes
en su más propia cultura
y en su más viva tradición,
y desde donde se puedan asumir
nuevos conocimientos
y viejas sabidurías
que nos posibiliten vivir
fraterna, ecológica y pacíficamente?

Es evidente, entonces, que a la educación toda


le hace falta untarse de pueblo;
a la universidad, a la vida académica,
le hace falta untarse de pueblo;
a los profesores, a los investigadores,
les hace falta untarse de pueblo.

EDUCACIÓN, POESÍA Y PUEBLO 289

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Lo popular, lo tradicional, lo ancestral
ha sido visto con desdeño
por los diversos investigadores
de la vida académica y universitaria.

Solamente ha sido validado


lo “científico”, lo objetivamente cierto.
¿No es así?
Miremos los textos de estudio
que se usan en una y otra institución educativa.
El paradigma occidental de la ciencia
se impone explícita o solapadamente
en una y otra cultura,
aún en detrimento de lo más propio.

En Colombia, por ejemplo, es propio de campesinos


ir conversando entre coplas y dichos;
sin embargo, no hay estudios
que evidencien el trasfondo cultural
de esos pequeños versos
y de su contenido pedagógico y ético:
encasillados como folclor
pasan a ser saberes desdeñados
como si no enseñaran nada.
Veamos, entonces, aquí, algo de esta sabiduría popular:

Hasta que el pueblo las canta,


las coplas, coplas no son,
y cuando el pueblo las canta
ya nadie sabe su autor.1
El pueblo sabe lo que produce,
sabe lo que hace,
y sabe lo que canta.
Canta lo que hace y, así, produce coplas,
sin exigir otros derechos de autor
que los derechos del pueblo.

1 Las coplas – poesía popular campesina – van de boca en boca, aunque a veces se las apaña
en una u otra antología impresa; por ejemplo, se disponen de algunos ejemplos aquí: https://
www.todacolombia.com/ informacion-de-colombia/coplas-colombianas.html.

290 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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El pueblo canta coplas
y son coplas porque el pueblo las canta,
sin protagonismos individualistas.
La sencillez compartida
se hace canto social
que habla de una psicología profunda,
existencial,
de los integrantes de esa comunidad
sentida como pueblo.
Se comparte lo que se es
y como se es:
sin buscar protagonismos,
sin buscar aparentar lo que no se tiene.
Sencillez radical y verdadeante.

La intención fundamental de la copla


radica en la expresión natural
y ontológica
de sentimientos sociales
que se pueden presentar en una imagen, o situación,
concreta.
Normalmente, una copla no busca universalizar,
aunque a veces lo logra
a través de situaciones muy concretas:

No hay mal que dure cien años


ni cuerpo que lo resista,
ni aguacero que no escampe
ni mal que por bien no venga.

En esta sencilla copla


que anda de boca en boca
entre nuestros campesinos
se teje todo un tratado de ética popular:
a pesar de las dificultades
– personales o sociales,
físicas, psicológicas o espirituales –
vale la pena siempre luchar,
esforzarse siempre,
que en algún momento cambiarán

EDUCACIÓN, POESÍA Y PUEBLO 291

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las condiciones
que podrán hacer más llevadero
el ritmo de la vida;
además, independientemente
de que esas condiciones cambien o no,
vale la pena esforzarse
(esta es una regla de vida
que nos enseña toda semilla:
ella no es que duerma y descanse debajo de la tierra,
ella se esfuerza por brotar,
y luego por crecer,
y finalmente por fructificar.
Todo su ser es mero esfuerzo),
como bien lo expresa el poeta
Porfirio Barba Jacob:
“Vivir es esforzarse”.
Aunque todo se vea y se sienta oscuro
– como debajo de la tierra –,
aunque todo se vea y se sienta grande, inmenso
– como cuando apenas se emerge al mundo –,
aunque todo se vea y se sienta doloroso y bastante difícil
– como cuando se va a dar a luz –,
vale la pena esforzarse,
no cansarse,
dar otro poquito más…
mientras el cuerpo resista.

Para el campesino siempre hay esperanza,


inclusive cuando se pierde la cosecha.
El diluvio no es eterno, no:
no hay aguacero que no escampe,
no hay verano que no termine,
no hay vida que no aporte su fruto,
ni hay ser humano que no pueda cambiar.
Si mantenemos la esperanza,
podremos esforzarnos un poquito más.
El campesino lo ha aprendido de la semilla,
y así lo enseña.
No hay mejor maestra que la naturaleza:
Natura, decía don Anastasio.

292 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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¡Cuánto nos hace falta aprender
de la naturaleza!
Y, al contrario, parece ser
que cada vez nos alejamos más de ella,
enajenados por el mundo fantasioso
de las tecnologías y la virtualidad,
de lo que, sin embargo, también podemos aprender:
no hay mal que por bien no venga.

La naturaleza de la vida campesina


enseña que no se debe ser dogmático
juzgando entre lo bueno y lo malo,
entre lo negro y lo blanco
(lo que no quiere decir
– ¡para nada! –
que no haya bueno ni haya malo,
o que no haya negro ni haya blanco):
comprender implica transformar.

Cuando se afirma
que “no hay mal que por bien no venga”,
en el substrato de lo explícitamente afirmado
hay un implícito
que hace de operador seminal
desde el cual se comprende ontológicamente.
Toda comprensión
(y no mera y superficial interpretación)
conlleva, de fondo, una actitud psicológica
desde donde se abren los distintos horizontes,
bajo los cuales se ubican
los nuevos saberes. La comprensión social
de los campesinos
implica un pozo de sabiduría
que no responde a los cánones racionales
de la objetividad científica,
sino a la existencia interconectada
del ser humano con su contexto íntegro:
humano-natural-social-espiritual.

EDUCACIÓN, POESÍA Y PUEBLO 293

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El quehacer y cada uno de los actos
de la gente campesina
se encauzan, siempre, por márgenes
naturales-espirituales
que, normalmente, se muestran contradictorios
y niegan
la objetividad de lo indudablemente “científico”.

Se es
comprendiendo
lo otro y al otro,
en lo mismo y en sí mismos.

No hay mal que por bien no venga,


expone la negación de una ética afirmativa
que conlleva también la negación de una ciencia objetiva.
La naturaleza misma del dicho y la copla
niega, muchas de las veces,
el lirismo de la gran poesía culta,
pero afirma la existencia concreta y afectiva
del ser humano en su más drástica sencillez,
sin tapujos, sin conveniencias sociales,
sin permisos hipócritas.

Se es
verdadeando
lo propio que es lo ajeno
de nosotros y los otros
(porque nunca deberíamos olvidar
que somos
los demás
de los demás).

¿Se puede decir, entonces, con ese dejo


despectivo de los académicos
que la copla es mero folclor?,
¿se puede considerar, entonces, de verdad
que la sabiduría popular
no habla de la verdad, no es buscadora de la verdad,
no expresa verdadeante lo verdadero?

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Estos cantos que cantamos
y que les llaman folclores:
malhaya nombres tan raros
que ponen esos señores.

Es preciso, entonces, cuestionar


los contenidos y las modalidades
de lo que enseña la escuela y la universidad
al servicio de la ciencia.
La academia, sierva de la ciencia,
¡jah!,
¡y de espaldas al ser humano!

Es preciso, entonces, negar


las afirmaciones que se nos imponen
objetivamente,
para posibilitar comprensiones otras
de lo que somos,
y de como estamos siendo,
con lo que podamos ser
tal cual somos:
humanos,
hermanos del río, del árbol, de la montaña,
cuya actitud natural
pueda ser comprendida
más allá de lo meramente racional como
sentipensar;
un sentipensar ontológico
en el que se expresen saberes verdadeantes
que nos posibiliten vivir,
desde las entrañas,
cual semilla
existencial
que quiere brotar
al verdor natural desde el que estamos siendo
reales, naturalmente,
y desde donde busquemos realizarnos
con un sentido de ser
íntegro

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que no nos niegue de antemano el espíritu
que enriquece
todas nuestras posibilidades
de ser.

296 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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SOBRE OS AUTORES

Aline Cristina Oliveira do Carmo


Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ),
tem experiências de ensino e pesquisa nas áreas de Filosofia e Direito, com
especial interesse nos temas: descolonização, diáspora africana, diversidade
cultural e direitos fundamentais.

Catherine Walsh
Es profesora principal y directora del doctorado en Estudios Culturales La-
tinoamericanos de la Universidad Andina Simon Bolivar, sede de Ecuador,
donde también dirige el Taller Intercultural y la Cátedra de Estudios de la
Diáspora Afro-Andina.

Elizete da Silva
Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)
e pós-doutorado na Universidade de Èvora, atuando principalmente nos
seguintes temas: religião, protestantismo, campo religioso, Bahia e Feira
de Santana.

Enrique Téllez Fabiani


Es doctor en Estudios Latinoamericanos con especialidad en Historia de las
ideas filosóficas, por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).

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Francis Mary S. C. da Rosa
Doutoranda em Educação e Contemporaneidade do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB).

Gilmário Moreira Brito


Possui doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é professor titular da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB).

Ivandilson Miranda Silva


Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contempora-
neidade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Jaqueline Oliveira
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporanei-
dade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); possui gradua-
ção em Pedagogia pela UNEB.

Juan Cepeda H.
Es profesor-investigador de Ontología en América Latina na Universidad
Santo Tomás (Colombia).

Laurenio Leite Sombra


Professor adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),
doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre em
Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).

298 ENTRE-LINHAS: EDUCAÇÃO, FENOMENOLOGIA E INSURGÊNCIA POPULAR

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Leonardo Augusto Oliveira de Santana
Doutorando em Educação e Contemporaneidade do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB).

Luciano Costa Santos


Possui doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC-RS), com estágio doutoral no Institut Catholique de Pa-
ris-Université de Poitiers. Atualmente, é professor adjunto da Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), credenciado no Programa de Pós-Graduação em
Educação e Contemporaneidade (PPGEduC).

Maria Luiza de Castro Muniz


Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em
Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Nadia Heredia
Diplomatura universitaria en Filosofía de la Liberación en Universidad Na-
cional de Jujuy y docente ayudante en Cátedra Bioética Facultad de Medici-
na de Universidad Nacional del Comahue.

Santiago Arboleda Quiñonez


Es maestría/magister en Universidad Internacional de Andalucia, maestría
en Historia Latinoamericana.

Sueli Ribeiro Mota Souza


Fez pós-doutorado na Università degli Studi di Firenze e doutorado em
Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), é titular da Uni-
versidade do Estado da Bahia (UNEB), atuando no Departamento de Educa-
ção e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade
(PPGEduC) da UNEB.

SOBRE OS AUTORES 299

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Colofão
Formato: 170 x 240 mm
Tipologia: Amerigo BT | Klavika
Miolo em papel alcalino 75 g/m2
Capa em Cartão Supremo 300g/m2
Impressão do miolo: EDUFBA
Impressão de capa e acabamento: Gráfica 3
Tiragem de 300 exemplares

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 300 29/08/2019 06:33


Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia_vol6_miolo.indb 8 29/08/2019 06:33
6

VOLUME 6

ISBN 978-85-232-1887-4

9 788523 218874

Entre-linhas-educacao-fenomenologia-insurgencia-capa.indd 1 30/07/2019 09:06

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