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e m i n á r i o T e o l ó g i c o P r e s b i t e r i a n o

R e v . J o s é M a n o e l da C o n c e i g á o

TEOLOGIA
PARA
VIDA
b I - n° 1 - J an eiro - J u nho 2 0 0 5

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W F am M ?. c $ A
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f lE V m
Wilson do Amaral Filho (Presidente), Ph. Adonias Costa da
J u n t a d e E d u c a c á o T e o l ó g i c a : R cv.
Silvcira (Vice-Presidente), Ph. Wagner Winter (Secretario), Rev. Arival l)ias Casimiro (Tcsou-
reiro), Rev. Paulo Anglada, Rev. Sergio Victalino e Ph. Uzicl Cueiros.

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R e g io n a l de E d u c a c á o
Campanati (Vice-Presidente), Ph. lvan Edson Riheiro Gomes (Secretario), Rev. Marcos
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Ph. Dr. Paulo Rangel do


D i r e t o r i a d a F u n d a c ;á o E d u c a c i o n a l R e v . J o s é M a n o e l d a C o n c e k ;á o :
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Vargas (Secretario) e Rev. Jones Carlos Louhack (Tcsourciro).

Rev. Pau­
C o n g r e g a c á o d o S e m in á r io T e o l ó g i c o P r e s b it e r ia n o R e v . J o s é M a n o e l d a C o n c e ic ;á o :
lo Riheiro Fontes (Diretor), Rev. Osias Mondes Riheiro (Deáo), Rev. Daniel Piva, Rev. Doni/.cte
Rodrigues Ladeia, Rev. Ceorge Alberto Canelhas, Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa,
Maestro Parcival Módolo, Rev. Wilson Santana Silva, Rev. Fernando de Almeida, Scm.
Wendell Lessa Vilela Xavier,.Rev. Alderi Sou/.a de Matos e Rev. Márcio Coelho.

Rev. Ageu Cirilo de Magalháes Júnior, Rev. 1 )aniel Piva, Rev. Donizcte Rodrigues
C o n s e lh o E d ito r ia l:
Ladeia, Rev. George Alberto Canelhas, Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa, Maestro Parcival
Módolo, Rev. Paulo Riheiro Fontes e Rev. Wilson Santana Silva.

E d ito r : Rev. Ageu Cirilo de Magalháes Júnior

R e v is á o : Sem. Wendell Lessa Vilela Xavier

C a p a e P r o i e t o G r á f i c o : Id é ia Dois Design

G k a v u ra da cap a: Entrctim de Rohert Olivétan avee le jeunc Calvin [Robert Olivetan em conversa com
o jovem Calvino] de H. Van Muyden. As outras gravuras da obra sao do mesmo artista.

Teología Para Vida / S em inário Teológico P resbiteriano Rev. José M anoel


da C oncei^áo. - Sao Paulo: Vol. 1, n. 1 (ja n./ju n.2 0 0 5 ) — S em inário
JMC, 2005 -

Sem estral
ISSN
1.Teología - Periódicos. I. S em inário Teológico Presbiteriano Rev. José
M anoel da Concei^áo.

CDD 21 ed. - 230.0462


280

E n d e r e z o pa ra c o r r e s p o n d e n c ia
Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceiqáo
Rúa Pascal, 1 165, Campo líelo, Sao Paulo, SP, c e p 0461 6-004
Telefone: 5 5 4 3 -3 5 3 4 - Fax: 5 5 4 2 -5 6 7 6
Site: www.seminariojmc.br
E-mail: seminariojmc(")seminariojmc.hr

A revista Teología para Vida é urna publicarán semestral do Seminário Teológico Presbiteriano
Rev. José Manoel da Conceigáo. Permite-se a reprodugáo desde que citados a fonte e o autor.
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O E PAUTA ME NT O DE MÚS I CA

“I m p r e s s á o ” o u “E x p r e s s á o ”
O PAPEL DA M ÚS I CA NA
M issa R omana m edieva l e

no C ulto R eform ado

M aestro P a r c ív a l M ód o lo

Regencia na Westfcilische Landeskirchenmusikschule, em


Herford, Alemanha
M estrado com especializado em música dos séculos 17 e
18 tam bém na Westfcilische Landeskirchenmusikschule
Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do
institu to Presbiteriano M ackenzie
M estrando em Ciencias da Religiáo pelo Instituto
Presbiteriano Mackenzie
Titular da Orquestra de Sunden, Westfalia
Direcáo da Orquestra Sinfónica M unicipal de Americana
por 14 anos
Regente regular da Orquestra Filarmónica de Rio Claro, SP,
e da Orquestra Sinfónica da U N IC A M P
M aestro convidado da Orquestra Sinfónica e da Orquestra de
Cámara de Goiánia, GO, bem como da Sinfónica de Belém, PA
M aestro visitante da Orquestra Sinfónica de San Diego, USA
“G astdirektor” da Orquestra do Teatro da Opera de
Bielefeld, Alemanha
“I m p r e s s á o " o u “E x p r e s s á o ”
O PAPEL DA MÚS ICA NA M l S S A R O M A N A
MEDIEVAL E N O C U L T O R E F O R M A D O

RESUMO
Qual é a fungáo da música na igreja? Gerar um ambiente
propicio para adoragáo ou com unicar a Palavra? M aestro
Parcival M ódolo responde a esta pergunta com profundida-
de e clareza. Nos primeiros tópicos do artigo, o autor faz um
passeio na área da Antropología e traz ao ¡eitor a d efin id o
do que é música. A seguir, o autor vai para a Idade M édia e
analisa a insergáo da música no culto reformado, bem como,
quais eram os pressupostos dos reformadores com relagáo a
este meio cúltico.

PALAVRAS-CHAVE
Música; Música Sacra; Missa Romana; Culto Reformado.

ABSTRACT *
W h at is the role of music in the church? Is it to create a
favorable environment for worship, or comunícate the Word?
M aestro Parcival M ódolo answers this question in a deep
and clear way. In the first topic of the article, the author,
from an anthropological perspective, proposes a definition
for music. After this, he goes to the Middle Age in order to
analyse the insertion of music in Reformed Service, and the
assumptions of the reformers regarding worship.

KEYWORDS
Music, Sacred Music, Román M.ass, Reformed Service
/I p a la v ra deve perm anecer em sen próprio uso pragm ático, p orta a b a t a
a o Iodo O utro, questionam ento sobre a causa últim a, oríentagño p a r a a
resposta dcrradeira.

Ellul

IN T R O D U JO
Troncos de árvores, blocos e láminas de pedra percutidos; búzios,
cánulas vegetáis e ossos soprados; embiras, cipos ou crinas retesa­
das e beliscadas; emissóes sonoras vocais e inflexóes melódicas ar­
ticulando ou nao palavras... Parece, mesmo, que alguma forma de
música tem acompanhado o homem desde o inicio da sua historia.
D e fato, até boje - e nisso sociólogos, arqueólogos e antropólogos
concordam - nenhum grupo humano foi encontrado que nao cul-
tivasse algum tipo de expressáo musical em sua comunidade: mú­
sica vocal, apenas; m úsica in stru m en tal, apenas; ou as duas,
independentes, ou com plem entares, sim ultáneam ente. Nao sao
poucas as referencias ao fato, o da presenta da música ñas com uni­
dades mais antigas, como a de Domingos Alaleona: “A origem da
música perde-se, como dizem os historiadores, na noite dos tem ­
pos. Náo há povo antigo no qual nao se encontrem m a n ife sta re s
m usicais”.2
Claude Lévi-Strauss, na abertura de seu O cru e o cozido, observa
que “... a natureza produz ruidos, e náo sons musicais, que sao
monopolio da cultura enquanto criadora dos instrum entos e do
can to”.3 O autor dos Tristes Trópicos compreendeu que, embora
troncos, búzios e cánulas sejam faltam ente oferecidos pela nature­
za, é a freqüéncia da percussáo, ou a intensidade do sopro, ou a
variedade do uso que criaráo aquilo que se poderá chamar “M úsi­
ca”. No que se refere á voz humana, que “sempre esleve lá”, ísto é,
que estava naturalmente disponível, sao suas diferentes inflexóes,
suas variadas nuangas de emissáo que criaráo seqüéncias inteligí-

Os textos das epígrafes aos capítulos sao de ELLUL, Jacques. A paiavra luimilluida. Sao Paulo:’
Paulinas, 1984.
ALALEONA, Domingos. Historia da Música. Sao Paulo: Ricordi, 1972, p. 39.
LEVI-STRAUSS, Claude. O Cru c o Cozido (Mitológicas v. I ). Sao Paulo: Cosac e Naif, 200 4 , p. 42.
I m p r e s s a o ” o u “ Ex pressao ” 113

/eis, compreensíveís, e que podem ser definidas como musicais. É


sor isso que o sociólogo franco-belga pode concluir: os sons
tiusicais nao existiriam para o homem se ele nao os tivesse inven­
i d o ”.4 A m ateria prima já lá estava, a música nao.

I . M ú s ic a c o m o v e íc u lo

A p a la v r a é, n ecessariam en te, d it a ' a alguém . E se n a o h á ninguém ,


será d ita a si m esm o ou a D eus. Su pde um ouvido. S e ja d e o G r a n d e
O uvido —evoca urna resposta. A p a la v ra , q u a lq u er p a la v ra , a expressao
grosseira, o insulto, a exclam agáo, o soliloqu io d a o inicio a um diálogo.

(p. 1 9 ).

5e música, entáo, é veículo de comunicaqáo anterior á palavra, ela,


üém disso, tam bém é com u nicad o que transcende os limites do
jróprio grupo cultural, espalhando seu conteúdo, a palavra, para
ilém da cultura local. Nao fosse assim e a cangáo de vitória das
nulheres hebréias, cantando que seu rei m atara milhares de inimi-
*os, mas que o jovem Davi matara dez milhares ( I S m 18.7), teria
:hegado, no máximo, aos ouvidos de Saúl (v. 8) e jamais ao arraial
io inimigo (1 Sm 21. 11) . Nao teria fixado as palavras na memoria
iesses mesmos inimigos por tanto tem po (I Sm 2 9 .5 ), o que o
'elato bíblico nos diz que aconteceu! Nao conseguisse a música
:spalhar seu conteúdo para além da cultura local e o pensamento
Reformado, em boa parte contido nos coráis luteranos,5 nao teria
se espalhado com tam anha velocidade, nao apenas entre os habi­
tantes de W ittenberg, mas entre boa parte do povo de fala germá­
nica; náo só entre o clero e os acusadores de Lutero, mas também
;ntre os laicos, que nada conheciam de disputas teológicas; náo só
m tre os homens mais sábios e ilustres, mas tam bém — e especial­
mente - entre os camponeses simples e entre iletrados aideóes.

1 Idem.
“Coral Luterano", aquí, refere-se ao género musical naseido com a Reforma Protéstame para o
culto reformado, um tipo de música que se apresentou como alternativa ao “Coral Gregoriano”,
a música que se cantava na Liturgia Romana.
114 T e o lo g ía para V id a

Além do que já se disse, música também foi, para alguns povos,


algo com o “modeladora cultural e m oral”. N áo sao raras as afirm a­
r e s dos pensadores gregos sobre o poder que a música tem de
“form atar” a sociedade. Platáo reconheceu-a como poderosa para
influenciar a forma de governo e náo hesitou em dizer que náo se
podia mudar a música sem com isso efetuar mudanza correspon­
dente na co n stitu id o do Estado. Fabre D ’Olivet, inspirado pelo
historiador Políbio, conhecido por sua prec.isáo, conta que, entre
todos os povos da antiga Arcádia, os Cinetanos, que náo pratica-
vam regularmente nenhuma forma de música, eram os mais selva-
gens e atribui, enfáticam ente, sua selvageria ao fato de náo terem
afinidade com essa forma de arte. Declara-se convencido de que,
só quando passaram a fazé-lo, cantando hinos religiosos em louvor
aos deuses e aos heróis nacionais, tiveram seu com portam ento
mudado. e quando o Céu os inspirou a se aproximarem da
música, que humaniza as pessoas, chegaram-se ao único modo de
libertá-los de sua antiga selvageria”/’
Também, por isso, música e culto formam binom io inseparável
desde os tempos mais remotos do relacionam ento do homem com
o ser divino: se música ajudava os seres humanos a se com unica­
ren! entre si, ela devia ser ferram enta para que os seres humanos se
comunicassem com o sagrado.
Deve-se ter em mente, sempre, que a música da qual aqui se
fala refere-se a qualquer forma de música, vocal e instrumental,
soando independentem ente ou simultáneam ente. Para certos po­
vos, a voz era a expressáo maior de com unicadlo com o divino.
Para outros, instrumentos musicais especialmente criados para o
culto tornavam-se sagrados e, as vezes, configuravam o próprio
objeto de culto.
Eduardo Viveiros de Castro, que estudou os indios da América
do Sul, chama at en gao para dois aspectos do canto entre eles: pri-
meiro, que o canto é quase sempre religioso; e, segundo, que esse é
um trago comum de todas aquelas sociedades:

* FABRE D ’OLIVET, Aiitoine. Música (¡presentada como ciencia e arte. Sáo Paulo: Madras, 200 4 , p, 27.
" Im rr-essáo" ou "Expressáo” 11S

[...] o xam an ism o, a pajelanqa é esse n cialm e n te can to . E seu c a n ­


ta r é e x a ta m e n te fazer os deuses falarem ; o c a n to nessas s o cie d a ­
des ind ígenas, e isso é outro trago comum n elas, é fo rte m e n te co n o ta d o
do p o n to de v ista religioso. Q u er dizer, c a n ta r é a a tiv id ad e religiosa
p o r excelencia. A fala d ivina é sem pre ca n ta d a , d ig am os assim , o
c a n to é a fo rm a suprem a da fala.

Assim, concluimos até aqui que: 1) algum tipo de música acom-


panha o homem por toda sua historia; 2) que ela pode servir como
meio de comunicagáo entre pessoas de urna mesma cultura e que
pode levar mensagens de um grupo cultural a outro; 3) vimos tam-
bérn que música e culto estáo fortemente associados: se sons musi­
cais sao bons veículos para espalhar m ensagens entre os seres
humanos, certam ente devem ser úteis para que estes se com uni­
quen! com o ser divino.
Agora elevemos cam inhar mais um passo considerando o se-
guinte: se há música para espalhar mensagens, para falar da divin­
dade e para falar á divindade, haveria, quem sabe, alguma música
através da qual a própria divindade falasse aos homens? Que fizes-
se, portanto, o caminho inverso, náo do homem para a divindade,
mas sim da divindade para os homens?

2 . O HOM EM FALA COM D eüS E D e US FALA COM O HOMEM

“D eus j a l a . É preciso que Ihe respondam os”. O hom em criado p o r D eus é


um ser J a la n t e . T alvez se ja um dos sen tid os d a im agem d e D e a s : o
respondedor, o responsável, o sem elhante que vai dialogar, na distan cia e
na comunicagiio, portan to aquele que em meio a toda a criagdo é cap az de

p a ia v ra . (p. 6 4 ).

Analisando a música ritual, cúltica, de diferentes grupos culturáis


desde os mais primitivos, náo será difícil perceber que a comunica-

/ CASTRO, Eduardo Viveiros de. O Papel da Religido no Sistema Social dos Povos Indígenas. Cuiíiba:
GTM E, J 999, p. 24. Grifo nosso.
116 T e o lo g ía i’ a i i a V id a

gao do hornem com o divino pode ser cam inho de máo dupla: Se
os homens créem que podem falar ao divino através da música,
alguns também créem que a divindade pode falar com o ser huma­
no por seu intermédio. Castro mostrou que, ñas comunidades sul-
americanas em que estudou, o que se dá é exatam ente isso, música
tam bém é veículo para a divindade comunicar-se com o homem:
“A forma, por excelencia, de comunicagáo da divindade, dos espiritas,
com os humanos, é através do canto. Entáo, o canto é a voz do além,
a voz do transcendente.”8
M antendo-se as devidas proporgóes que a historia e a geogra­
fía, isto é, o tempo, o espago e a cultura exigem, o fenóm eno repro-
duz, aqui, mutatis mutandi, o pensam ento de M artin h o Lutero
quanto á música no culto: para Lutero, a origem divina da música
a aproxima da própria fé e a torna predestinada a acom panhar
sempre a vida crista. Por isso tem espago garantido e honroso'no
culto, onde ela é, por um lado, resposta dos homens ao chamado
de Deus, mas tam bém é anúncio, prodamagáo.
M as para melhor compreendermos essas idéias, devenios, an­
tes, lembrar o que Lutero disse sobre o culto. W alter Blankenburg,
em seu Kircke und M usik,9 destaca um importante aspecto - o de
que o culto luterano nao era um sacrifwium oferecido a Deus pelos
hom ens, mas sim um beneficium, um presente de Deus aos seus
filhos. A graga de Deus e sua béngáo chegavam ao seu povo através
da Palavra e do Sacram ento (beneficium); as oragóes, louvores e agóes
de gragas da comunidade elevavam-se até ele (sacrificium), conceito
que Lutero esclarece de maneira m ilito simples:

“Essas sao as duas fungóes do sacerd o cio : ouvir D eu s falar, e falar


com D eu s, que nos ouve. A través da béngáo, do serm áo e da distri-
buigáo do S a n to S a cra m e n to , D eu s vem até nós e fala con o sco ;
e n tá o eu o ougo e n o v am e n te vou até ele, falo nos p róprios ouvi-
dos de D eu s, que ouve m inh a o rag áo.” 'ü

Idem. Grifo nosso.


|(Bl.ANKENBURG, Walter. Kiivhe und Musik. Góttingen: Vamlenlioeck & Ruprecht, 1979, p. 326.
Apud REED , Luther D. The Lutheran Liturgy. Philadelphia: Fortress; f 947, p. 8. Tradugáo nossa.
I m p iu s s á o " ou “ Expr essáo ” 117

Christiane Bernsdorf-Engelbrecht11define o culto reformado como


im encontro da Igreja com seu Senhor, encontro esse bipolarizado
;ntre Wort / “Paiavra” (em especial a prédica) e Antwort / “Resposta”
'o louvor e a oragáo da comunidade). Com a concepgáo do sacerdocio
reral de todos os crentes, Lutero náo mais aceitou que os fiéis perma-
"íecessem passivos no culto, e caberia á música papel importante nos
lois polos. Assim que, na concep<,:ao reformada do culto bipolarizado
;ntre Wort e Antwort, náo cabe á música papel apenas no segundo
^ólo, o da resposta do fiel ao convite divino. Música litúrgica12 tem,
;la também, fungáo de anuncio, de “proclam ado” ( V erkiindigung ), e
:1a o faz eficientemente "... Pois as notas (...) vivificara o texto”.13 Em
autras palavras, se o homem fala a Deus através dos cánticos religio­
sos, também Deus pode falar ao homem por seu intermédio.
Parece que surge, aqui, urna dupla fungáo para a música litúrgica,
ama divisáo funcional: Música é bom veículo para o homem falar
;om Deus, mas também é eficiente meio para Deus falar ao homem.
Náo importa se a mesma música pode ocupar ambos os papéis, to­
mar as duas fungóes; importa, por enquanto, apenas reconhecé-los.

3. M ú s ic a c o m o fe n ó m e n o so n o r o

E ntre os sons existe um, fu n d am en tal p a ra nos: a p aiavra. E la nos introduz


noutra ditnensSo, a relagáo com o ser vivo, com o humano. A P aiavra é o som
p o r excelencia p a ra o homem que o diferencia de todos os outros. (p. 17).

11 BERN SDORF-EN GELBRECH T, Christiane. Geschichte der Evangelischen Kiivltenmusik, Band 1,


Band II. Wilhelmshaven: Heinrichshofen, 1980, v. l ,p . 13.
12 Há que se fazer clara distingáo entre “Música Sacra” e “Música Litúrgica . Chamamos Sacra
toda música cujo tema central, ou género, ou forma, tem como ponto de partida o ambiente
religioso, textos religiosos ou a historia da religiao. Chamarnos “Litúrgicas” as obras musicais
vocais ou instrumentáis produzidas para o culto, para a liturgia, comprometidas com o ambiente,
com o cultuante e o cultuado. É “sacro”, assim, mas náo litúrgico, o oratorio O Messias, ou o Saúl
(ambos de G. F. Handel), produzidos gara os teatros ingleses; sao “sacras”, ainda, as grandes
“Missas” dos compositores do Romantismo, já que, apesar do texto, nenhuma foi escrita para
qualquer culto mas, antes, para o teatro. Sao “Litúrgicos”, porém, os Prelúdios e as Cantatas
Sacras de J. S. Bach, por exemplo, ou de outros tantos compositores que compunham para a
liturgia dos cultos da igreja onde trabalhavam, comprometidos com o ambiente cúltico. Nem
toda música sacra, portanto, é litúrgica.
15 "... Da die noten [...] den text lebendig machen”. LUTH ER, Martin. Tischreden. In: D. Martin
Luthers Werke, vol. 6. Weimar, 1951, n. 2545.
118 T e o lo g ía i >a i v a V ida

Quando aqui falamos em música, referímo-nos específicam ente ao


fenómeno sonoro musical, á arte de com binar os sons com algum
sentido lógico, estético. Nao nos referimos ao conjunto letra-m ú-
sica. As palavras que, acrescentadas á música, formaráo os cánticos,
precisam ser compreendidas, a priorí, como um elem ento á parte,
já que é extramusical. O texto, assim, no primeiro m om ento das
c o n sid e ra re s sobre qualquer música, náo deve ser levado em con-
ta, já que primeiro nos referimos á música “pura”, independente
do texto. Por isso mesnio faz-se necessário esclarecer exatamente a
que tipo de fenómeno nos referimos quando falamos em “m úsica”,
quer dizer, que a definamos. Porém, defini-la pode ser tarefa náo
muito simples.
Até a primeira metade do sáculo 2 0 , a maior parte dos tratados
de teoria musical definía música como “a arte de com binar os sons
de maneira agradável ao ouvido”. 14 H oje consideramos essa defini­
d o ultrapassada, envelhecida, pois provoca, evidentemente, a se­
guí n te questáo: “agradável ao ouvido de q u em ?” Que ouvido
determ inará se dada co m b in a d o de sons pode ser considerada
“m úsica”? Se aceitássemos a d efin id o , restringiríamos o fenóm e­
no musical ao gosto cultural, o que quer dizer, por exemplo, que a
música das antigas dinastías chinesas, difícil de ser compreendida
hoje, jamais poderia ser considerada “m úsica” por muitos de nós,
cidadáos ocidentais do terceiro milenio! Aínda como exemplo, mas
considerando a questáo pelo ángulo oposto: se música é urna com ­
b in a d o de sons “para que resultem agradáveis ao ouvido”, sempre
haverá alguém que a julgará “agradável”, ao menos o “com posi­
to r”! Nesse caso, qualquer “agrupamento sonoro” deveria ser mú­
sica. Deve-se buscar, portanto, urna d efin id o mais apropriada.
Considerando que música é, indiscutivelmente, um fenómeno
sonoro, parece obvio defini-la como “urna forma de arte que tem
como material básico o som ”, conforme e.xpressou Penna.15 Mas
esse som precisa ser modelado de acordo com os valores culturáis

^ Veja, como exemplo, SIN ZIG, Pedro. Dicionário Musical. Rio de Janeiro: ICosmos, 1976, p.384.
PENNA, M. I)ó, Re. Mi, Fá c Muito Mais: discutindo o que é música. ín : Revista da Associa^íio de
Arte-Educadores de Sao Paulo, ano II, n“ III, Sao Paulo: 1999, p. 14.
" I m i’iu s s á o ” ou “ Ex pressáo ” 119

de urna dada sociedade, num mom ento específico de sua historia.


Assim, Penna retoma a d efin id o anterior e a com plem enta: “músi­
ca é urna linguagem artística, culturalmente construida, que tem
como m aterial básico o som ”.16 O som, portanto, é o ponto de
partida, o material básico, mas náo o único. M urray Shafer, impor­
tante com positor e educador canadense contemporáneo, em seu
Ouvido Pensante, discute as definigóes mais conhecidas de “M úsi­
ca” e oferece urna outra atual, embora provisoria: “M úsica é urna
organizad o de sons (Ritm o, Melodía, etc.) com a intenglo de ser
ouvida”.17 Shafer alerta para a “intengáo”: nem todo som aleatorio
e música, portanto, e, nesse caso, aproxima-se da d e fin id 11 de Penna,
quando este falou em “linguagem culturalmente construida”. Mas
Shafer reconhece que música é fenóm eno complexo e que suas
partes, ritm o, melodía, etc, precisam ser organizadas.
D e fato, entre os diversos elementos “constituidores” da músi­
ca, alguns se destacam. Os mais importantes sao o ritmo (freqüén-
cia com que um evento ocorre em dado espago de tempo - neste
caso o pulso e os acentos tónicos e átonos do conjunto) e a melo­
día (sucessáo de sons, isto é, um som seguido de outro, numa or-
dem continua). Náo existe música sem esses elem entos.18 A eles se
acrescentam outros, como a harmonía (a co m b in ad o de diferen­
tes melodías, tocadas ou cantadas sim ultáneam ente), que aparece­
rá sempre que a música for pensada, cantada ou tocada por mais
de urna voz ou instrumento.
Concentrando-nos apenas nesses tres, é fato hoje indiscutível e
científicam ente experimentado, que cada um desses elementos tem
agáo (ou influencia) preponderante sobre parte específica do orga­
nismo humano: o ritm o sobre os músculos; a melodia sobra as
emogóes e a harmonía sobre o intelecto.

ídem. «
'' SHAFER, Murray. O ouvido pensante. Sao Paulo: UNESP, 1991, p. .35.
18 É possível haver urna forma de música só com o elem ento ritmo. Fanfarras, grupos de
instrum entistas ritim istas certám ente fazem música. Mesrno esses, porém, freqiientem ente
formam estruluras rítmicas complexas para que melodías simples, vocais ou instrumentáis, se
articulem. Quando falamos em música aqui, entretanto, pensamos no padrao usual, regular (nao
no extraordinario) de música Européia e Americana.
T e o l o g ía para V ida

Assim, e ci estiutura rítinica da m úsica, o R itm o , iniplícito ou


explícito,19 que interfere em nossa estrutura muscular, altera nos-
so pulso cardíaco, nossa velocidade de marcha, ou nosso sistema
respiratorio.20 Sao as M elo d ía s que interferem poderosam ente
com as e m o l e s humanas e podem levar pessoas da alegría as lá­
grimas ou da euforia á calm a em poucos instantes.21 Sao as H ar­
monías, e la b o r a d a s em est.rut.uras de ma i o r ou m e n o r
complexidade, que exigiráo maior ou m enor esforzó intelectual
do ouvinte para apreciá-las.22
M úsica, portanto, fenómeno presente em todas as culturas hu­
manas, linguagem artísticam ente elaborada de acordo com a ne-
cessidade e a habilidade de cada grupo cultural, age sobre os seres
vivos e pode influenciá-los, alterando seus sinais orgánicos, em oci­
onáis ou intelectuais.
Tudo isso posto, queremos concentvarmo-nos, agora, na música
da igreja. Na música praticada ñas celebragóes litúrgicas anteriores
á Reform a Protestante, bem como ñas idéias dos reformadores a
seu respeito; nos papéis que a música pode exercer no culto; em
suas duas fungóes principáis no servido litúrgico, ponto central
deste trabalho, “impressáo” ou “expressáo”.

4 . Os PO SSÍV EIS PAPÉIS DA M Ú SICA NO CULTO: “ Im P R E S S Á O ” e


“E x p re s s á o ”

A p a la v r a é, portan to, essen cial. [ . . . ] A p roclam agñ o qu e su póe urna


henneneutica, é ato de p a la v ra , com unía historicidadc de transm issdo c
urna a tiv id ad e de interpretando, (p. 6 9 ).

Melodías implícitamente sempre formam ou causam” ritmos cjue te rito apelo muscular. Sao
ritmos causados pela piópria construidlo da melodía, mas que agem sobre o organismo como
qualquer outra estrutura rítmica.
Embora sempie falemos aquí sobre a at;áo da música sobre seres humanos, também animais
inacionais estáo sujeitos a mesma influencia. No caso do R itm o, a mesma ac;;ío é exercida sobre
, mamíferos e até sobre os répteis.
' As M elodías agem também sobre os mamíferos irracionais (mas nao sobre os répteis), da mesma
n forma e com as rnesmas conseqüéncias que sobre os humanos.
Só seies humanos decodificam H arm onías. Animáis irracionais náo.
“ IM I'IIE.SSAO” OIJ “ EXI’ RESSÁO”
121

Podemos dizer, grosso modo, que a música tem duas fungóes bási­
cas no culto, de “impressáo” ou de “expressáo”. Ou, dito de outra
forma, qualquer música, em quaiquer culto, pode desempenhar
um dos dois papéis: ou ela será “M úsica de Impressáo” ou “M úsica
de Expressáo”. Queremos defender que qualquer forma de música,
em qualquer hora do culto (qualquer culto e qualquer m úsica),
utilizada consciente ou inconscientem ente, assumirá esses papéis.
Esta “divisáo funcional” foi bastante utilizada pela Escola de
Herford24 no século 2 0 , desde a década de cinqüenta. No Brasil,
to rn o u -se co n h ecid a esp ecia lm e n te através de Jo á o VVilson
Faustini,25 em seu livro sobre música e adoragáo, embora ali ele a
utilize de form a mais restritiva.
O papel de “impressáo”, o secundário, mas que aqui analisare-
mos em primeiro lugar, certamente é o que causou, e ainda causa,
maiores dificuldades quando visto da perspectiva do culto. E bem
verdade que, consciente ou inconscientemente, alguns grupos religi­
osos o tem valorizado em diferentes épocas da historia e, mais re-
centem ente, os que buscam, em seus cultos, apelo mais emotivo
entre seus fiéis. Relaciona-se com o poder que a música tem de atuai
sobre nosso corpo e nossas emogóes, alterando-as, acalmando-no^
ou excitando-nos, ainda que sem palavras. Ela pode criar diferentes
atmosferas: de alegría, de paz, de tristeza, de majestade, ou simples-
mente um ambiente devocional, quando for apropriada. Se as pala­
vras de um cántico nao sáo bem compreendidas, desaparece seu
papel de expressáo (do qual falaremos abaixo), podendo, porém,
subsistir o de impressáo. Longas melodias, repetigáo exaustiva de
frases musicais, extrema énfase melódica com grandes saltos inter­
calados de cromatismos, sáo recursos musicais que geram, em essén-
cia, música emotiva e de efeito contagiante que, embora possam vir
acompanhando texto dele nao dependem, nern com ele se preocu-

24 C h am am o s de E sco la de H erford o grupo de p en sad o res da W e stfá lisc h e


Landeskirchenmusikschule que, na segunda metade do século 20, eram responsaveis por elaboiai
toda a música da Igreja Luterana Alema. Dentre eles destacam-se: Alexander Vólker, Lebrecht
Schilling, W ilhelm Ehm ann, ]oh.annes I-I. E. Koch e C h ristiane B ern sd o rft-tn g elb rech t
(observado do autor).
25 FAUSTIN I, J. W. Música c Adoragáo. Sáo Paulo: SO EM U S, 1996, p. 15.
122 T e o lo g ía i >a r a V id a

pam. Sua finalidade é alcangar os presentes emocionalmente, crian­


do “am biente” preparatorio, suposta ou verdaderam ente litúrgico.
De outro lado, os cánticos entoados pela congregagáo ou grupo
especial, em diferentes momentos de culto, cujos textos tenham
sido elaborados e escolhidos para que a mensagem neles contida
seja compreendída, absorvida e fixada pelos participantes, cánticos
esses apropriados para cada m om ento específico do culto, e cujo
sentido seja reforgado pela música, esses podem ser classificados
com o música de expressáo”. A música, nesse caso, será veículo
para o texto e será táo mais eficiente quanto rnelhor for seu “casa­
m en to” com as palavras, isto é, quanto m elhor a música puder
expressar, por si só, as idéias contidas no texto.
Há música, portanto, que valoriza o fenómeno musical, em si; e
há música que quer ser serva do texto e veículo para que este seja
bem compreendido pela comunidade.
O que parece ter despertado tanta antipatía em alguns dos re­
formadores e, antes deles, nos pais da Igreja, quanto ao uso da
música instrum ental ou de um tipo de música “ricamente orna­
m entada” no culto, foi a consciencia de que os sons podiam exer-
cer grande poder sobre as emogóes humanas. Eles declararam seus
temores de que a música pudesse chamar tanto a atengáo para si,
desviar tanto os fiéis da Paiavra, inebriá-los tanto pela sua beleza,
que poderia levá-los a perder o eixo central do culto. Seria a “mú­
sica pela música”, no máximo para criar am bientes atraentes, isto
é, apenas em sua fungáo de “impressáo”.
Agostinho, em suas Confissocs, revela suas preocupagóes quanto
aos prazeres do ouvido, prazeres esses que prendem e subjugam
com maior tenacidade do que outros prazeres (compare-se as “Con-
fissóes” X. 3 2 com a X. 3 3 ). É im portante observar, entretanto,
que mesmo Agostinho reconhece o valor da música quando ela é
serva do texto e náo espetáculo em si mesma:

“Porém qu an d o m e lem b ro das lágrim as d erram ad as ao ouvir os


cá n tico s da vossa Igreja nos p rim ord ios da m in h a con v ersáo á fé, e
ao sen tir-m e agora atraíd o, nao pela m ú sica, m as pelas letras des-
, sas m elod ías, can tad as em voz lím p id a e m odulagóes apropriad as,
“ I MI ’ R E S S Á O ” OU “ EXPKESSÁO” 123

reconhego, de novo, a grand e utilid ad e desse costu m e. [...] P o rta n ­


to, sem p ro ferir urna sen tenga irrevogável, in d in o -m e a aprovar o
co stu m e de c a n ta r na Igreja, para que, pelos d eleites do ouvido, o
e sp irito , d em asiad o fraco, se eleve até aos afeto s de piedade.
Q u an d o , as v ezes, a m ú sica m e sen sib iliza m ais do que as letras
que se c a n ta m , con fesso com dor que p e q u e i.”

As idéias de Calvino sobre a música no culto, expressas em um


sermáo sobre o livro de Jó, sao muito semelhantes as de Agostinho:

N á o se pod e co n d e n ar a m úsica em si; m as porqu e o m u n d o quase


sem pre ab u sa d éla, d evem os ser m ais circu n sp eto s [...]. O E sp irito
de D eu s co n d e n a [...] a vaidade que e stá associad a á m ú sica [...]
pois os h o m en s tém m u ito prazer nela: e q u an d o eles assen tam
seus prazeres n essas bases e em coisas terre n as, eles náo p en sam

em D e u s .”' 7

Ñas “Institutas”, aínda se pode ouvir algo da voz agostiniana;

E ce rta m e n te , se [...] o can to , por um lado, co n cilia digniclade e


graga aos atos sacros, por out.ro, m u ito vale para in c ita r os ánim os
ao v erd ad eiro zelo e ardor ao orar. C o n tu d o , im p óe-se d ilig en te­
m en te guard ar que náo estejam os ouvidos m ais a te n to s á m elod ía
que a m e n te ao sen tid o espiritual das palavras. |...J A p licad a, por­
ta n to , e sta m oderagáo, dúvida n en h u m a há que seja urna p rática
m u ito san ta, da m esm a fo rm a que, por out.ro lado, tod os e quais-
q u er c a n to s que háo sido com p o stos ap enas para o e n c a n to e d e­
leite dos ouvidos n em sao com p atív eis com a m ajestad e da Igreja,
28
nem pod em a D eu s náo desagradaren! sobrem aneira.

“ AGOSTINHO, Santo. Confissocs. Sao Paulo: Abril Cultural, 1973. C o le r o Os Pensadores, p.


2 1 9 ,2 2 0 . '
2' Apud STEV EN SO N , Robert M. Pattems o f Protestcmt Church Music. Durham: Duke Umversily
Press, 1953, p. 17.Tradu<;So nossa. . _ .
“ CALVINO, Joño. As Instituías ou Tratado da ReligiSo Crista. Sao Paulo: Casa Editora 1 resbiteriana,
1989, III, 20. 32.
124 T e o lo g ía para V id a

Assim, se para Calvino os excessos da música sao condenáveis,


por outro lado, quando ela é bem utilizada, é prática santa que
ajuda n o s atos sacros e intensifica o ardor e o zelo do fiel. M as
desde que a m ente esteja mais atenta as palavras que os ouvidos á
música, quer dizer, quando a música é veículo para o texto e nao
espetáculo em sí mesma. Ai está a razáo de tanto cuidado. O pro­
blema nao é a música, em si, que Calvino, aliás, sabia apreciar. O
perigo era o “excesso de prazer” nela. Demasiada atragao por coi­
sas terrenas desviava o pensam ento das pessoas e as afastava de
Deus.
Para Lutero, a música é “Donum divinum et excellentissimum”,2-
um maravilhoso presente divino”, poderoso e m isterioso, dado
exclusivamente aos homens. M as ele sabe muito bem que ela pode
governar os sentím entos humanos. N o prefacio de urna colegáo de
canqóes publicada em 1538, Lutero escreveu:

Eu an se io de to d o coragáo q u e a m ú sica, e sta d iv ina e preciosa


dádiva, seja iouvada e exaltad a p o r to d o o povo [ .. .] . A exp erien cia
prova q u e, ao lado da Palavra de D eu s, s ó a m ú sica m erece ser
exaltad a co m o sen h o ra e g o v ern an te dos se n tim e n to s d o coragáo
h u m a n o ... M a io r louvor que esse é im possível de se im ag in ar.5"

Parece, aquí, que Lutero, mesmo conhecendo o grande apelo


emocional da música, nao o condena, ao contrario, o exalta. Apenas
parece! E preciso compreender que, apesar do grande amor de Lute­
ro pela música, era a teología a fonte de suas convicgóes sobre o
propósito e o uso da música no culto. Sua consciencia de que músi­
ca era um maravilhoso presente de Deus o levou á natural conclusáo
de que ela era um dom para ser recebido com gratidáo e aprego, e
que devia ser usado para a gloria de Deus e o bem da humanidade.
Nada parecía mais natural para ele do que o fato que música devia
ser juntada á Palavra. O evangelho é a boa nova que traz fé, esperan-

‘>l)
m LUTH ER, Martin. Encomion Musites. In: D . Martin Luther Werkc, vol. 50. Weimar, 1944, p. 372.
LUTH ER, Martin. Luthcrs SSmmtliche Schriftm, editado por BU SZ IN , W.E. St. Louis Edition
1972, p. 4 28. T r a d u jo nossa. »
" I m p r e s s a o ” o u “E xpressáo "

qa. e alegría. A música tem a íorca para acender esta mensagem, dar
vida as palavras, impressionar o coragáo humano e exprimir a ale­
gría que ela mesma traz. Que fantástica com b in ad o para o culto
cristáo! Nada haveria melhor para preservar e espalhar o evangelho!
A en fase, assim, é o ensino teológico e evangélico.

5. C oral L u t e r a n o X C oral G r eg o r ia n o

a revela gao de D eus é transm itida p ela p a ia v ra dos homens, p ela p a ia ­


vra e n a d a m ais. A agáo, o m ilagrc, a o bra sao aeom pan ham en tos d a
p a ia v ra , autentificagdes, demonstragdes, acessórios. N a d a signiftcam scm
a p a ia v ra . Só ela pode transm itir a p a ia v ra de D eus que táo-som ente pode
ser o m eio de qu e D eus se serve p a r a se revelar aos homens. (p. 1 0 7 ).

Lutero e seus seguidores produziram um novo tipo de cántico evan­


gélico, contendo a Paiavra de Deus e do evangelho no vernáculo,
para uso congregacional no culto dominical ou em qualquer outra
ocasiáo. Esse novo tipo de cán tico passou a cham ar-se C oral
L u te ra n o ” ou “C o ral A le m áo ” em co n trap o sig áo ao “C oral
Gregoriano” da igreja romana, cantado por dez séculos." Lutero
mesmo escreveu muitos Coráis e algumas outras melodías. Para isto
fez versóes metrificadas de salmos, traduziu e adaptou antigos 1li­
nos latinos, arranjou e espiritualizou cangoes sacras de origem des-
conhecida, urna délas de origem folclórica, escreveu textos e compós
melodías. Suas revisóes e melhorias de material preexistente resulta­
ran!, na maior parte das vezes, em cánticos novos e origináis.
As m elo d ía s, segu n d o L u tero , co m o le m b ra B e rn sd o rf-
Engelbrecht, deviam ser “fáceis de aprender e de m em orizar”32
(Fasslich und gut singbar). Compostos ou adaptados, textos e melo­
días deviam ser sempre apropriados um ao outro. A declamagáo

" O canto gregoriano nascevi com Gregorio Magno, bispo de Roma entre os sáculos 6" e 7”,
tornou-se a música por excelencia d;> liturgia católica romana até a Reforma no sáculo 16.
a BERN SDO RF-EN GELBRECH T, Christiane, Geschichtc dcv Evangelischen Kirchenmmik, Bañil
Band II. Wilhelmshaven: Heinrichshofen, 1980, v. 1, p. 16,17.
T e o lo g ía para V id a

silábica tinha primazia, sem melismas33, facilitando a compreensáo


do texto, preservando todas as características da iíngua local, o
que Lutero assim justificava: “O texto e as notas, a acen tu ad o , a
melodía e os movimentos, tudo deve vir da língua local; senáo será
mera imitacáo, como fazem os m acacos.”34
Era música “de expressáo”, portanto, que devia ser cantada por
todos os fiéis, na língua local para que fosse compreendida, assimi-
lada e servisse de ensino religioso. Por isso importava que os textos
fossem apropriados para os diversos m omentos do culto (louvor,
confissáo, dedicagáo...) e sobre variados temas religiosos, para di­
ferentes datas litúrgicas e do calendário cristáo. Cantando-se teo­
lo g ía e d o u trin a , a m ú sica au xiliav a na m em orizagáo e no
esclarecim ento do sentido das palavras. M úsica devia ser a “expli­
c a d o do texto” e urna espécie de “sermáo em sons”.35
Pode-se dizer que, na missa romana, celebrada ao som do canto
gregoriano, o papel preponderante da música era o de “impressáo”,
isto é, o de criar urna atmosfera cúltica, majestosa, mística. Por isso
náo importava que os textos fosse sempre cantados em latim, já que;

"... urna tradugáo co m p le ta da litu rgia teria sido a to sacrilego. Para


os a n a lfa b e to s, m esm o o “m issal para os L eig os” náo o ferecia solu-
gáo. A cred itava-se que a litu rgia era urna esp écie de m ágica que
náo deixava de b en eficiar os o u v in tes ou e sp ectad ores, qu er en ten -
d essem qu er n á o .” 16

Náo importava que os cánticos repetissem, a cada celebragáo,


as palavras litúrgicas da “Missa Rom ana” (o Kyrie, o Gloria, o Cre­
do, o Sanctus, e o Agnus D ci). Náo importava, aínda, que só os
membros do clero cantassem e que os fiéis apenas ouvissem, sem

” Passagens melódicas com seqüéncias de varias notas para urna única sílaba de texto.
Apud BERN SDORF-EN GELBRECH T, Christiane. Geschichtc dcr Evangelischcn Kirchcnmusik, Band
, I, Band II. Wilhelmshaven: Heinrichshofen, 1980, v. 1, p. 108. Tradu^áo do autor.
Vide, sobre esse tema, MÓDOLO, Parciva], Música: Explicatio Tcxtus, Pmeilicatio Sonora. In: Riles
Reformata, Vol. ], N° I, Janeiro-Junho 1996. Seminario JM C.
" I m p r e s s á o ” o u "Ex pr essáo ” 127

compreenderem o sentido das palavras: era música essencial mente


“de impressáo”!
D iferente, porém, da missa romana, a música da Reform a é
essencial e funcionalm ente outra. Seu papel primordial, tanto dos
coráis luteranos quanto dos salmos calvinistas,37 é o de “expres­
sáo”. Por isso os textos litúrgicos eram cuidadosamente seleciona-
dos e, quando transformados em hinos, deviam ser cantados por
todos, hom ens, mulheres e crianzas, e na língua local. Os fiéis de­
viam aprendé-los e guardá-los ñas mentes e nos coragóes. Canta-
vam d ou trina reform ada e interiorizavam suas verdades para
sempre.
D esnecessário dizer que, nos nossos dias, no que se refere á
música litúrgica das igrejas protestantes brasileiras, há considerá-
vel distandam ento dos ideáis dos primeiros anos da Reform a. E
comum, hoje, urna supervalorizac’áo do espetáculo, da busca da
“música pela m úsica”, ou da música para criar am biente em ocio­
nal e m ístico; da música, enfim, exercendo seu papel de impressáo,
apenas. Utilizassem a música em sua plenitude potencial e poderi-
am, com mais eficiencia, fixar nos coragóes e intelectos a palavra
que ela pode levar consigo. Mas para isso teriam que rever boa
parte d o qu e cantam e considerar cuidadosamente com o cantam.
Afinal, música sacra litúrgica deve ser serva do texto, veículo para
a Palavra.
Se vamos aos teatros e aos espetáculos musicais públicos, que­
remos ouvir a beleza da música e aplaudir o artista. No culto, po­
rém, adoramos a Deus, falamos com ele, ouvimos sua Palavra e
respondemos. Náo há lugar para a “música pela m úsica”. No culto
reformado, há, sim, lugar “honroso” para a música, como afirmou

M>HAHN, Cari Joseph. Historia ¡lo Culto Protestante no Brasil. Sáo Paulo: A STE, 1989, 77.
17 Se o “Coral Luterano” é o nomexjue se dá ao género musical nascido com a Relorma Luterana
(v. nota 5) “Salmo Calvinista” é a música da Reforma Calvinista, fruto do ideal de cantar no
culto apenas palavras da Escritura, de forma simples e modesta, sem harmonías complexas e
sem acompanhamento instrumental. O “Salterio de Genebra”, com todos os 1.50 salmos bíblicos,
que exigiu intenso trabalho de Calvino, m úsicos profissionais e poetas, em sucessivas e d ile s ,
foi quem primeiro os pubücou.
128 T e o l o g ía para V ida

Lutero.38 M as ela só recebe essa “mais alta honra” quando ocupa


seu lugar “ao lado da teologia”, quando é fiel serva do texto, quan­
do é música que revela a Paiavra.
Podemos concluir como iniciamos, com as palavras de Jacques
Elull (1 9 8 4 ), preocupado, ele tam bém , com a desvalorizado da
paiavra na igreja crista contem poránea:

“A p a ia v r a é, portan to, essencial. [ . . . ] A proclam agño qu e supde urna


herm eneutica, é a to de p a ia v ra , com urna historicidade d a transm issao e
urna a tiv id ad e de interpretagao

“R ealiza-se, entíio, a m ais inconcebível inversao: qu an d o todo o cristian is­


mo, a Igreja e a j é sao fu n d a d o s únicam ente n a P aiav ra d e D eus, e qu e n ao
pode ser expressa a náo ser p ela su a correspondente p a ia v ra hu m an a, o
desprezo e aban d on o desta p a ia v ra exprim an, inelutavelm ente, aban d on o
e desprezo d a P aiav ra de D eus". (p. 2 0 2 ) . ”

Depois — i¡a lado — da teologia, a música o lugar mais próximo c a mais alta honra (Nach der Theitlosfa
der Música den nahesten Locum und hochste Ehre). Luther (195 ^ n. 7030)
ELL.UL, Jacques. A paiavra huntilhada, Sao Paulo: Paulinas, 1984, p. 69.
Idem. p. 202.

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